Post on 03-Jul-2015
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Os muros de Udi (Underground do
Uber Alles)
Daniel Faria
Sapo não esguicha veneno de propósito
(manchete do caderno científico da FSP)
Edições Gratuitas, 2010.
Ler Swift em Udi
Por cinco horas Célia Se enfeitava (E quem seria mais rápido?) Com camadas e camadas De cremes, pomadas, óleos Perfumes e pós De todos os tipos. Estefânio, aproveitando-se Da folga da criada Entrou no quarto de Célia e
Fez as devidas anotações, E pra que não restem Dúvidas, o que segue É um inventário:
De cara, Estefânio deu com
Um avental engordurado, Mas apostando em mera Coincidência seguiu em frente. Sobre a penteadeira viu
Uma escova com creme Caspas e fios de cabelo, Tudo tão misturado Entre pedaços amarelos De seborréia que mais parecia Um prato de exóticas Comidas tropicais. Ali ainda
Entre frascos de perfumes, óleos e Infusões cheirando a hortelã Um recipiente Com os restos de comida De entre os dentes De um ogro talvez Nadando entre gosmas Espessas de catarro: ali a dama Cuspia o refugo De seu hálito floral.
Pra melhor inspecionar Estefânio recorreu às virtudes
Da poderosa lente De aumento usada por Célia,
Capaz de multiplicar Por mil o tamanho Dos pontos de pus Ocultos em seu rosto delicado
E agigantar a meleca Que pendia recôndita Em seu nariz, compondo O piercing de esmeraldas.
Indo ao canto do quarto Atrás do biombo Estefânio sentiu O fedor mais intenso, Lento e adocicado De sua vida, como Se ele tivesse aberto A Caixa de Pandora Com seus vapores maléficos. Não acreditando Estefânio trouxe à luz
O penico, Que por negligência, Da criada, guarnecia
Um troço parecido Com um bom naco
De carne assada. Os arabescos fedorentos Causavam náusea Como se saídos do fundo Da garganta do demônio, E seu tamanho mais lembrava O produto de um fila brasileiro, E por isso Lamentando-se Estefânio Canta: “Meu coração é uma piscina De sangue e merda E porra onde Célia nada, Porque, ai de mim!
Célia caga!” O pior pra Estefânio É que todas cagam E não há perfume que Não o lembre do quarto de Célia, nem máscara de creme Que não o assombre Com a massa de seborréia E caspas. Ele ainda aprenderá A abençoar a ordem que brota De tamanha confusão, As tulipas que repousam
Sobre o monte de estrume, A beleza arrancada Com afinco por cada
Musa-yahoo, como se lê Nas viagens de Gulliver.
70 personagens de um romance
Inacabado de Lima Barreto
O medíocre aponta o dedo pra lua,
pra melhor ver o próprio dedo.
Citação tirada da placa inaugural da rodoviária de Uberlândia.
Primeiro Movimento É tudo sempre o mesmo Marlon. Eles vivem no mundo Da lua e escrevem Por encomenda, nos rigores do método Taylorista enfiam a viola no saco e tomam O café Melado de açúcar. Paus pra toda obra
Fazem de tudo Pra “introjetar”
Que a corporation é uma corporação De ofício: de fato Se vê romantismo Nesse lance de relatório Artesanal. (Mas num ônibus ninguém Os distinguiria De uma excursão de gerentes de bingo). São fodidos Pedindo emprego, A missão da empresa é dizer que: A cidade é boa, a terra É fértil; ubérrima Diria Policarpo Quaresma, Um sonho tornado real. Segundo Movimento No coro dos infelizes Você pensa que é Especial porque usa a escrita Como escarradeira e não quer Ser confundido Com os gerentes de bingo: “Minha camisa Amarrotada É minha bandeira” ou A estátua tem Uma cabeça grande E brilhante E um corpo de dar Inveja Aos cães amestrados Com seus diplomas iluminados Pelo luar do sertão Mas as notas de rodapé São de barro (O sonho apocalíptico De Daniel).
Terceiro Movimento Uberland – Ubermensch, É latim, é inglês É alemão É a finitude Do homem ocidental É a hermenêutica pós-moderna É o festival de citações A carta na manga e o bolso vazio À sombra dos clones De Roberto Justus. É o lirismo Do pesadelo acadêmico. É a poesia Sem charme Dos concursos, escrita Com os tipos dos carimbos1
Que não deveria ter sido Escrita,
Não merece ser lida.
1 Carimbo: etimologicamente, o ferro em brasa usado pra marcar os escravos que saíam de Luanda. Escravos como Aristóteles, mas sem o consolo da filosofia, fechada para o balanço. Falida.
Um hotel em Udi
Hospedado no inferninho
O sujeito reage bem
Ao cheiro de esgoto
Impregnado nos lençóis
Lendo O Samurai Corporativo,
Vulgo
Pecuarista do ying yang.
"O mundo é rico
de inimigos".
No café da manhã
Sun Tzu apontou
O dedo indicador
Pra testa do discípulo
Usando o polegar
Como gatilho
Depois disse à recepcionista
"O seu chocolate
Está no frigobar"
& Sun Tzu disse:
"A buceta é a crise do liberalismo"
Welcome Mr Ego
1. O meio é a massagem. 2. A falta de classe é o motor da história. 3. O eu não é senhor No seu condomínio fechado. 4. Sun Tzu e Bill Gates subindo a ladeira. 5. Walter Benjamin era um sujeito Diferenciado. 6. Um cantinho e um violão. 7. Um laptop e a Arte da Guerra
8. Um estilo e um reconhecimento. 9. Uma casa no second life, um avatar, um cartão de crédito e nada mais. 10. Um tipo assim na mão E um otimismo na cabeça. 11. É sempre bom lembrar Que um pastel vazio Está cheio de ar. (depois de ouvir Gilberto Gil na propaganda do Pão de Açúcar) 12. etc etc etc
Opereta (pra ser encenada em qualquer hotel)
Ubu-Estilista entra no saguão do Uberplace. Oito olhos na cabeça grande,
muitas bocas, línguas grandes, cabelo arrepiado. Sobe lentamente pela escada. Em
cada andar deixa um dos seus quatro pares de óculos escuros, como se fossem
oferendas e ele um tipo de sacerdote. No quinto andar entra na Suíte Penitencial e da
varanda proclama, naquele ritmo tipicamente papal, de canto falado:
- Vocês sabiam que:
- Pobre prefere pepsi-cola porque é mais doce?
- A classe média prefere o amargo
da coca-cola?
- Os 2 princípios são a sanca e a cerca elétrica? Os pequenos e escuros
labirintos?
- Certas perguntas não devem ser feitas num açougue?
Nas outras varandas surgem as Capivaras, usando bigodinhos à Castro Alves,
vestidas como aquelas crianças da serenata de natal:
- Ó preclaro mecenas, prometemos:
- Estourar miolos de estudantes. Celebrar nossos aniversários bêbados,
caídos em frente às padarias. Mostrar nossas certidões de nascimento à polícia.
Ubu-Estilista responde:
- Que figuras exemplares!
- Vocês levarão dois brindes: um círculo dourado (no formato de um dos andares
do inferno) com o desenho de um mapa em traços negros. O mapa da mina pra vocês,
soldados rasos, pendurarem no pescoço. E ainda mais, um grosso e reluzente supositório
da Unimed, no modelo Maiêutica a Fórceps.
Uma das capivaras responde, depois de limpar os restos de strogonoff de frango
do bigode:
- Magnífico, sempre sonhei com esse dia top de linha, com secretárias obesas
que guardam poemas nas gavetas, desde minha infância imito o típico rastejar do
calango do Planalto Central, nada me impede de, um pouco mais colado ao chão, chegar
ao nível da lagartixa, tenho minh’alma carimbada pelas flores espinhosas do cerrado.
Ubu-Estilista encerra a cerimônia:
- Vocês têm um grande futuro pela frente, eu barganho com o presente. Quando
aqui cheguei, esta merda era só estrada de terra. Nenhum clubezinho sequer. Com
minhas mãos comecei a cavar esta vala, quer dizer lavar este vale, quer dizer gravar esta
mala que vocês de hoje em diante carregarão, sempre mais fundo, cavando uma
boquinha se me permitem a expressão. Só não vos chamo de cordeiros porque cordeiros
são apetitosos e não causam ânsia de vômito.
O dom de ser observado
O sol te fisgou
No flagrante delito
De caminhar pelas ruas.
O sol tem dedos
Azuis e unhas afiadas
No ofício das sanguessugas.
O sol se retorce por dentro
Do meu couro cabeludo
Como se o seu cérebro
Fosse massa de modelar.
O sol é uma puta, ou melhor
O sol é um olho vigilante
Que joga o clarão sobre você,
Imigrante ilegal, atrás
Dos muros da cidade qualquer.
O sol está grudado em sua pele
E nas paredes quentes do meu apartamento.
O sol torrou meus olhos
E se esconde no capuz preto
Porque sabe que é culpado
Porque, no íntimo,
Reconhece que o sol é um justiceiro
Cheio de razão, apesar
De você ser frio e verde escuro
Por dentro.
Udi Grudi
A cidade é de carne
Seu sangue é lodo, tubulações
Subterrâneas onde circula
O rio canalizado
(Assassinado), o rio onde nada
Meu avô, que morreu delirando
Com pescarias.
A cidade é a terra
Das minhas pernas
Crivadas de raízes e pequenas plantas
Que arranco, pacientemente.
Se tento fugir
Da cidade é em mim
Que encontro refúgio, e se completo
Minha saída do labirinto
De carne e lodo e musgo que sou
Eu me encontro novamente
Na cidade.
Sou um emaranhado
Infértil
De lodo urbano, mas
Que minha carne seja salva
Junto com a carne da cidade
Que me habita, que eu seja
Condenado como um verme
Roendo sua carniça, qualquer coisa
Menos a ilusão de um nome próprio.
Udipalestra
“Começando pelos verbos: atravessar, repensar, instigar, inserido e
focar.”
“é legal que o Vesúvio tenha inserido suas lavas em Pompéia, porque
agora temos um sítio arqueológico intacto e instigante”
“a lava preservou o salão das pinturas eróticas”
“mas focou a pica do prefeito de Pompéia, pão e circo de auditório
cultural”
“e se o Vesúvio tivesse estourado sobre Uberlândia? repensaríamos os
vestígios que restariam, por exemplo a lista telefônica (o instigante mapeamento
da cidade) AÇOUGUES/ACRÍLICO AÇÚCAR/ADVOGADOS
ADVOGADOS/ALARMES AR/AREIA BISCOITOS/BLOQUEADORES
BOMBAS/BOUTIQUES CABELEIREIROS/CAÇA
CAMINHÕES/CAMISETAS CHURRASQUEIRAS/CIRURGIÕES
COFRES/COLCHÕES CONTROLE/CÓPIAS CÓPIAS/CORTINAS
DEDETIZAÇÃO/DEMOLIÇÕES DESENTUMPIMENTO/DIGITAÇÃO
ENTULHO/ENXOVAIS ESCOLAS/ESPUMAS EVENTOS/FACULDADES
FACULDADES/FANTASIAS FERRO/FESTAS FLORICULTURAS/FOGÕES
FRANGOS/FUNERAIS GUINDASTES/HOSPITAIS
INTERNET/JOALHEIROS LIMPEZA/LINGERIE MÉDICOS/METAIS
MOTOCICLETAS/MOTOSSERAS NOIVAS/ÓCULOS
ÔNIBUS/ORTOPEDIA PAPELARIAS/PÁRA-CHOQUES POÇOS/´PORTAS
PROTÉTICOS/PSICÓLOGOS SELF/SEX TANQUES/TATUAGENS
TERAPIA/TERRAPLANAGEM TURISMO/ULTRASSONOGRAFIA
VIGILÂNCIA/ZÍPERES
os cus carbonizados de Pompéia. Mas, como um buraco pode ser
carbonizado? Tem aí um problema de método.”
“O cu é uma mistura de carne e veias extremamente sensível, você só
focou no buraco. É isso o que aconteceria se o Vesúvio explodisse em
Cuberlândia”
“O sonho do hospital próprio”
“Boca inserida na cloaca do caixa eletrônico: finalizando, finalizando,
finalizando.” “E nunca perder o gancho de vista”
O pensamento parece uma coisa à toa
Mastigando perdas
Como se fossem pedras
Dentadas, lâminas polidas
Em cristalina
Água de esgoto, ou
Entre peixe e refração,
Anzol banzo
Quando estou onde estive
E não sou, & enfim
Aquário de canibais
Ornamentais
É a cidade submersa
Em pensamentos alheios,
Cheia de si, e daí
Saio de mim.
Caio na real. E daí.
A cidade está fora de si.
La Boetie em Udi (Ou
Network Canastrões Iltda)
O segredo do Um
Está escondido nas festas
E jogos que ele promove, está
Escondido nas sentinelas
Que o protegem, contudo
O segredo do Um
Não é o mesmo que suas armas
Por bem dispostas que estejam
Nem o mesmo que seus cavalos,
Por mais velozes, o segredo do Um
Não tem a transparência das taças
De vinho, nem é plano
E frio como os tabuleiros de xadrez;
O Um sempre é servido por 4 ou 5
Que o sustentam
Como os canhões de ar
Que mantêm o suspense
Dos números nas loterias nacionais e
Estes 5 ou 6 são os favoritos do Um,
Os sócios dos bens de suas pilhagens,
Cúmplices de suas crueldades
E estes 5 ou 6 são sustentados
Por outros 600 que crescem às suas sombras
E são coletores de impostos, corsários
Em miniatura
E quem se divertir em tecer esta rede
Logo chegará aos 1.000 aos 100.000
Aos milhões que com estas cordas
Se agarram ao Um, quando um simples
Não bastaria,
E assim visto ao revés
5 ou 6 suportam os males
Causados pelo Um para poderem
Causar outros males aos 600
Que calam o sofrimento para causarem
Outros males aos milhares que restam
E estes se entredevoram
Em torno do espólio que lhes sobrou, enfim
Este é o segredo do Um,
Sua lastimável fraqueza e seu (quase)
Indevassável poder.
Alegoria
Há um cão agonizando sobre o asfalto. Ele tem os olhos amarelos, a língua
esbranquiçada e a respiração lenta e funda de quem morre lentamente. Dolorosamente.
Sua pele lacerada está cheia de carrapatos com o dorso tatuado em listras negras que
formam pequenos roteiros geográficos, pontilhados de flores amarelas. A pele do cão
está grudada no asfalto. Nas poucas vezes em que ele tentou se movimentar, o asfalto
arrancou um bom pedaço de couro e mais uma ferida se abriu em sua pele. Eu sinto a
dor deste cão porque seus nervos se misturaram aos nervos do asfalto e o asfalto está
ligado a mim por meio dos raios de calor constantemente jogados na minha cabeça. Eu
sinto a dor deste cão e por alguns momentos sinto que sou este cão. Da mesma forma
que o asfalto, o sol também brinca de arrancar a dor da minha pele. Também vivo
lentamente, ou morro lentamente o que dá no mesmo.
A memória tem seu preço
A memória não mora
Na cabeça, é na boca
Do estômago
Que se come a memória.
Pergunte ao gato
Que persegue um besouro
A lógica da alegria –
Ele sabe o motivo.
Mas logo esquece o que sabe
E esquece que esquece
E vive fora do tempo
Das suas perguntas e não entende
Porque você lambe o osso
Das lembranças, como uma besta
Faminta.
É no vômito
Criado pela bílis dos mercenários
Injetado como soro intravenoso
Em seu fígado
Que se respira a memória, e tem mais
Você nunca vai se esquecer disso:
Por um precinho camarada os mercenários jogarão o gato morto
num aterro qualquer de Uberlândia, em troca você leva um buraco pesado como
chumbo entubado em seu esôfago
como recordação.
Mais notícias de Udi
Ou, é aí que você se engana
Um rio foi picotado e circula debaixo do asfalto com dificuldade, os canos são
suas pernas
Mecânicas ao passo que ele anda em Udi
Como quem se despede.
O nome do rio é método e tem comigo uma porção de citações convenientes pra
nos fazer acreditar que nascemos na pior das eras já que você não pode se contentar com
a irrelevância e o merecido esquecimento, e o outro assunto sério além da teoria é a
política e aí é preciso admitir que mesmo não sendo fracassado Hugo Chávez não tenho
o charme das derrotas de Che Guevara e eu não me convenço dele mesmo com o boné
venezuelano trazido pelo seu amigo, o último comunista
depois da morte de Aldo Rebelo (você morreu engasgado com os trechos
de Gilberto Freyre e Eduardo Prado, mais ácaros de plenário e hemorróidas na língua).
Mas falando em filosofia barata poderia dizer que isto não é um charuto e que
nossa última revolução foi implantar o comunismo no colégio dos tarados salesianos e
do professor de religião que queria ver o “terceiro olho” dos alunos,
Pelo menos o ateísmo livrou meu rabo.
Depois disso a queda foi visível e minha verdade
é a farsa, revolvida por pequenas e cirúrgicas
auto-sabotagens, deixar claro que não tenho meu estilo
meu estilo é cheio de si (quer dizer, de uma terceira pessoa, do alheio).
Mas nem isso dá pra se levar a sério, a sua consciência perversa é uma profissão
De fé como outra qualquer, um amontoado de clichês, nada mais,
literatura não é o álibi perfeito e ressentimento não é autenticidade, não sou eu aqui,
entendeu?, é a cópia da minha cópia e você também é a cópia de uma idéia qualquer.
Complexo de Max Weber, Melancolia Uspiana com o Fim dos Tempos,
Neurastenia do Escritor que só Consegue se Repetir, Megalomania Deuleziana,
Esquizofrenia do Legislador Platônico, Blogueiros Abúlicos, Histeria do Reacionário
Afônico, Euforia do Ego Dilacerado pelos Mil Acessos, Nacional-Desenvolvimentismo
Congênito Ambidestro, Fobia de Todos os Tipos,
Alguma coisa se salva entre a gente.
Carnaval em Uberlândia
Vitrines sem luz –
Lojas fechadas, só
As pessoas no shopping.
Conciliábulo
Mas porque eu deixaria como rastro
O amor que você,
Cobra me cobra pra
A mar como quem anda armado
Ou se armadilha em
Deserto, desterro ou arquipélago, se
Em sua ilha de amigos belicosos
Rastejar se oferece no cardápio frio
Entre seus perdões de chumbo
Pelo que você não tem, alma –
Ulcera engrenagem vazia, concílio
Devorador de sangue, vômito
Inodoro que o amor desmente,
Ou repudia.
Bêbado, eu mijava
Na carcaça do gato morto.
Os olhos são as primeiras
Partes de um cadáver
A serem comidas pelos vermes &
Por isso o gato
Parecia ter três cus –
Isso antes de ele ter
Se tornado um fedorento
Casaco de pele para o asfalto
De Uberlândia.
Distantes, as vozes
Se perdiam em suas confabulações,
Formigavam os muros da cidade,
Teciam os acordos que
As manteriam despertas para o dia.
Eu queria ser esquecido
Como o gato morto, não
Deixar pegadas
No calçamento e que minha
Sombra fosse calcinada pelos seus muros.
Eu morria sem que você
Pronunciasse meu nome:
Um carniça
Não pode assinar tratados de paz
Nem propor composições bélicas, como diziam
Os poucos que se arriscavam a andar a pé e
Tampavam o nariz
E saltavam a carniça do gato,
Entres os muros protetores
E as cercas elétricas da cidade posto de gasolina.
Ler A Bolsa e a Vida
De Le Goff em Udi, segundo a doutrina do Acaso Objetivo
Na parte inferior do cérebro, na região que a ciência denomina de estriado,
reside o vício financeiro do jogador que se apaixona pelo risco. O estriado, ao provocar
ondas de calor que sobem pelo intestino do seu proprietário, também indica a presença
da buceta mais desejada de uma festa, razão pela qual o indivíduo que tem o estriado
volumoso geralmente acaba se acasalando com jovens advogadas, não importa quão
feias. O que este tipo de incauto não sabe é que do estriado sai um canal invisível que,
descendo pelo cu, faz uma ligação direta com o mais profundo dos infernos. A jovem
advogada com quem ele contraiu matrimônio, por ser ótima defensora das moedas que
ele insiste em não devolver vomitando, terá que passar o resto dos seus dias definhando
ao lado de seu túmulo, orando interminavelmente, prostituindo-se para os imensos
fantasmas dos banqueiros culturais. O coitado somente então entenderá que aquela
incômoda ardência em seu rabo não era fruto de prosaicas hemorróidas, mas sim um
presságio de que ele teria que passar a eternidade sentado num chão abrasivo, sob uma
sufocante chuva de fogo.
Hoje mesmo eu conheci uma dessas jovens e infelizes senhoras. Ao passar pelo
lúgubre cemitério mais conhecido como Procon, uma voz me intimou a entrar num de
seus mausoléus (o pertencente à família de mafiosos Nossocaixão). O lugar fedia a
miojo misturado com guaraná Mineiro. A moça mais parecia uma velhaca decrépita
enquanto me convidava para ser seu companheiro de refeição. “Ela deve estar querendo
dividir com os pobres o dinheiro conquistado de modo sórdido por seu marido”, pensei.
Porém, saí dali assustado quando a vi tirando o prato de dentro de uma daquelas gavetas
onde se guardam defuntos. O prato estava cheio de sapos e serpentes, que pelo fedor
deviam ter sido cozidos no enxofre.
O curso-fantasma
Um fantasma ensinando conceitos
Vazios a outros fantasmas,
Na boca do estômago de um grande fantasma, ou seja
O grande fantasma habitado
Por fantasmas contabilistas, fantasmas coletores de palavras
Mortas na respiração de um deus quase morto,
O grande animal envenenado
Com carne e vidro moído, ou seja
Vidro moído, a matéria-prima transparente
Na fabricação dos fantasmas, a multidão
Delirante dos fantasmas, a hemorragia divina,
As pessoas de vidro,
Os conceitos vazios, as palavras
Mortas na ponta da língua do fantasma
Orador e suas palavras de vidro moído, ou seja
Tudo isso
Colado no suor das pequenas metrópoles delirantes
Fantasmas, pesadelos de fantasmas herdeiros
De um fantasma que enterra fantasmas.
Santidade barata, quase gratuita
Melhor não ter nascido seria
Melhor ser esquecido, historiadores
Do futuro vomitarão este miasma
Pra cima dos inocentes?
O encanamento enferrujado sob
As avenidas rasgadas como planícies
No meio de um vale desértico
Se misturou como um enxerto
Em suas veias, querida.
Quantas derrotas até chegar aqui,
Você vive nos parâmetros
Dessa metodologia, ancorada.
Mas, se você guarda as ofensas
Como um tesouro? Como você gosta de dizer
Elas te permitem fazer um gancho
Com o mundo & se quando você
Abre a boca se nota que a saliva
Foi substituída pela lama que restou
Da devastação do cerrado, querida,
Em suas lentas, pegajosas palavras?
Eu sei, não é você
Nem sou eu, a culpa é do tempo,
Fazemos bem em ser esquecidos
Enterrados em pleno deserto, ao invés
De cemitérios.
Nunca foi tão fácil ser confundido
Com anjos, você suspira, parece ter se esquecido
Que você mesma cuspiu lama
Nas asas encardidas de uma coisa parecida.
Mimetismo imperfeito
A orquídea finge ser
Jesus plastificado
Como um galã esquecido
Dos filmes de sábado à noite,
Com o charme dos fumadores de haxixe,
Num convite estendido
Na pintura desbotada, azul.
A orquídea se faz passar
Por um bêbado que se emociona
Em lágrimas de cerveja
E se esquece da severidade imposta
Pela vida de imigrante e office boy
Ex-morador do zoológico de Brasília.
Atônitas, crianças
Que medem a distância das estrelas
Correndo com lanternas
Lêem Mein Kampf nos bueiros,
Livro em que a palavra
Deus é repetida mais de vinte vezes
Pelo autor que só tinha um testículo
(As crianças precisam atestar
O mal frente à inocência
Despetalada a cada dia):
As orquídeas colonizaram o mundo
Por meio de disfarces:
A imitação imperfeita
Das flores
Desdobra primaveras.
Na antevéspera de fugir
Gato se esconde no lençol –
O medo dos ecos
Que agora moram na sala.
* * *
Os ecos chegaram primeiro
Os ecos serão os últimos
Depois da luz apagada e da porta –
Trancados por fora.
* * *
Sala branca, território
Livre para os barulhos da rua:
Gritaria de ecos na sala vazia.
* * *
Gato se esconde na mala –
Conversa de ecos
Na sala desabitada.
* * *
Onde o gato se meteu? –
Ecos conversam
Sobre o medo na sala branca.
* * *
Gato e ecos trocam
Idéias sobre o vazio:
Luz apagada, sala sem móveis,
Mala enviada como relíquia
No caminhão de mudanças.
* * *
Na chegada eram dois
Gatos e oito ecos, na saída
Um gato a menos e quatro
Ecos a mais.
* * *
Gatos se tornam ecos
Quando morrem na cidade
Vazia, ecos são guardados
Nas malas, como relíquias.
Nas malas vão vestígios das salas, vazias.
Entrar – sair – do – no – Inferno Você é um pretenso filósofo um pretenso poeta um pretenso outsider um pretenso professor um pretenso qualquer coisa da mesma forma que os outros estão pretensamente alegres pretensamente tristes pretensamente na sua, quer dizer na deles, em suma o Inferno é mera pretensão como outra qualquer, não interessa qual é a sua das máscaras que são pretexto de música que é pretexto de vida que é pretexto de longas caminhadas que são pretexto de morte que é um pretexto do Inferno que é um pretexto de você que é um mero pretexto, quer dizer talvez um mágico faça sumir o gato do apartamento como pretexto tardio e isso vai se repetir inúmeras vezes sempre como pretexto de outra coisa, você vai dizer que não era bem isso o gato pode ter sido enforcado, deixa eu dizer de novo de outro jeito, agora vai mas vai se repetir como os erros de uma máquina estressada, assim: A sua língua é subliminar, todas as línguas são subliminares na montanha-russa supralunar, não estamos falando de torre de babel, certo?, não tem nada a ver, estamos falando de onde tudo o que se diz é pretexto de uma música inexistente, não há música nos ruídos, mas eles querem dizer alguma coisa ou você quer dizer alguma coisa naquilo que eles poderiam querer dizer, você não é um compositor sacramentado, você às vezes não suporta os ruídos, quer dizer “conversas”, eles têm que ser combinados como se alguém mudasse aleatoriamente a sintonia do rádio e isso, no final das contas, desse como resultado alguma música, algum esboço de música que é, aí está, quer dizer o Inferno, esta música dos diabos Você pode inventar algo assim como uma montanha russa platônica e tecer comentários sobre a esfera de cristal, o éter, isso como alegoria, será mesmo que não é literal?, sobre a natureza líquida do tempo etc, os outros pensam que ele deve estar mentindo, cheio de pretensões ou pretextos, vão te filmar e colocar no youtube pra você ver lá o seu fantasma que (como todas as aparências) não mente, quer dizer mas a questão não é quem está fingindo e sim o que está sendo fingido quando todos estão fingindo, se todos não caíram, com você, dentro daquela velha história do mentiroso que só engana a si mesmo, o mais dantesco dos otários Outros vomitam. Você sabe: é seu o vômito deles e as aparências (por isso, os fantasmas) não mentem, quer dizer Você pode caminhar à vontade neste lugar em que nada muda de lugar você vai ter a sensação de caminhar em círculos mas aqui não há círculos você caminha em linha reta, para onde?, com sede, uma sede tão profunda que te faz criar caretas, taí, você virou uma caricatura, mas é aquela velha história da máscara que esconde o que mesmo? nada e do pesadelo de uma pessoa que bebe água, mas a água é ar e a sede continua e a pessoa acorda e percebe aliviada que era apenas sede mesmo e vai beber água e percebe que a água virou ar de novo, quer dizer as tais máscaras que ficam grudadas na cara, como as aparências (por isso os fantasmas) não mentem O Inferno não está para além da vida, está logo abaixo da vida, é o que sustenta a vida e permite suas caminhadas e devaneios, o Inferno não é um castigo, é mais um pretexto para redenções súbitas e passageiras, isto é, pequenas passagens para o Paraíso,
que também, por si mesmo, não é nada, sendo o Paraíso um pretexto do Inferno – ambos, pretextos da Realidade que por fim não é nada além de ruídos que solicitam, conclamam, forçam a barra no sentido de que alguma melodia saia desse vômito todo Por exemplo, e isso é literal, você pode pensar em mergulhar observando com a devida concentração os olhos que ficam negros quando ocultos por uma máscara dourada – não se trata de uma máscara “poética” de um carnaval veneziano – e a garota que está usando a máscara não simboliza nada, além de ser bonita, nada de metáforas, por favor, trata-se apenas de uma forte variação de eletricidade, um curto-circuito como aquele que te fez desviar os olhos quando você ainda estava pretensamente em si, no pleno controle de suas (risíveis) capacidades então você resolveu se preservar, quer dizer hoje não, ainda sinto uma pedra, quer dizer uma perda, na boca do estômago e agora momentos depois você caiu no limiar dos olhos que devem estar por trás da máscara, já que é pra brincar de pop cult cite o campo gravitacional das naves em guerra nas estrelas, você se lembra quando ela tirou a máscara, foi antes de tudo, naquela hora em que tudo era pretexto, mas no exato instante em que, em que mesmo?, alguém grita e os seus (quer dizer, não os dela) olhos explodem
Você por um momento pensa em como seria bela uma recaída romântica, numa hora dessas?, e cantar a luz negra de um destino cruel ilumina esse teatro sem cor onde estou representando o papel de palhaço do amor e ri notando o que poderia ter de literal nisso tudo Agora se o seu amigo te revelar que enfim você está morto há uns dez minutos, e um seu brother não mentiria numa hora dessas, e você sabe muito bem no que isso vai dar, em nada, porque tudo é alegoria (principalmente o Paraíso, o Inferno e a Realidade), aí você está frito rapaz, você definitivamente estará morto, até quando Não é nada disso o que ele diz Não me venha com essa você pode se lembrar do Dom Quixote que não via um elmo no lugar de um penico ele dizia que aquilo era um elmo enquanto para os outros aquilo era um penico, aquilo não é nada além de aquilo, mas aquilo não presta pra nada, é como vômito, ao contrário de elmo ou penico que não existem, mas, sei lá, servem pra alguma coisa, você não serve pra nada como a perda não serve pra nada e nem mesmo as máscaras servem pra nada, o que não impede que Dom Quixote seja ou aja como ou fingisse ser um louco, como numa doença psiquiátrica cujo sintoma é fazer-se de louco, a loucura de quem pretende ser louco, ou aquela frase tipo Napoleão Bonaparte foi um louco que acreditou ser Napoleão Bonaparte, ou como diria um desses psicólogos de poltronas televisivas, cada um vive a sua fantasia
Para os outros você e seus erros visíveis e risíveis é um lance inesperado, do seu ponto de vista, você e seus erros risíveis e visíveis, ah não, isso é inacreditável, quer dizer, por fora a surpresa e por dentro a perplexidade com as suas cagadas e você sempre achou canastrão e ridículo o choro simulado sem lágrimas e agora você está no Inferno e não tem lágrimas para chorar e melhor não falar de perdas, quer dizer derrotas, mas é só disso que você está falando, certo?, nas entrelinhas é isso, ponha mais essa na conta do vômito, de qualquer coisa que seja aquilo, melhor não comentar, aí é que você se engana, o Inferno não é o amor que ainda ontem se enforcou com o próprio cinto e
deixou um bilhete tão cheio de revelações como não se esqueça de pagar a conta da luz etc, o papo é outro Você estará grunhindo quando disser que são todos porcos E todo esse egocentrismo, peraí, não vai dar em nada, você vai sair do Inferno como entrou, de mãos vazias, e quanto aos pequenos paraísos e pelo menos a eletricidade, é isso aí, nada vai dar em nada, você vai ser, na pior das hipóteses, uma paródia, um pretexto, algo assim como o sábio da montanha, na melhor uma sabedoria possível seria ficar nos ruídos sem procurar uma música, mas a partir de então você só falará por ruídos e mais uma vez sua sabedoria será inútil, e se isso fará de você um santo, um otário ou um xarope tanto faz A viagem foi boa, uma festa dos infernos