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Desenvolvimento e Políticas Culturais: Conselhos Regionais de Cultura do Distrito
Federal como instrumentos de gestão pública participativa
Documento para su presentación en el VIII Congreso Internacional en Gobierno,
Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 25 al 28 de
septiembre de 2017.
Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi
fatima.makiuchi@gmail.com
Resumen/abstract:
A relação entre a cultura e o desenvolvimento é um problema em aberto. Tanto cultura
quanto desenvolvimento são conceitos polissêmicos e campos em disputa. Sua
conceituação teórica pelas comunidades científicas está em andamento. Do ponto de
vista da gestão pública do Distrito Federal- Brasil, observamos como a gestão pública
da cultura do Distrito Federal tem se definido quanto ao aspecto de intersetorialidade
que o conceito de desenvolvimento porta, uma vez que os discursos oficiais das
políticas públicas tem o desenvolvimento como objetivo a ser efetivado pelo Estado. No
caso do Distrito Federal, acompanhamos a recente criação dos Conselhos Regionais de
Cultura (CRCs) como parte de um processo de democratização da política cultural no
Distrito Federal. Este artigo pretende apontar, a partir da constituição dos CRCs, os
desafios e as perspectivas para a gestão pública da cultura no que tange ao aspecto da
intersetorialidade e da densidade democrática dos processos de gestão a partir de seus
instrumentos. Com os CRCs do Distrito Federal temos a oportunidade de observar os
desdobramentos da gestão pública no território, tanto no que tange às ações da
Secretaria da Cultura do Distrito Federal (SECULT-DF) ao fomentar e estruturar os
processos eletivos e de nomeação dos conselheiros, quanto às ações dos próprios
conselheiros em relação às suas comunidades. Conselheiros e gestores formam um
grupo de atores importantes na rede da gestão pública da cultura. Entendemos o
conselho regional de cultura como um instrumento da gestão da política cultural no
território, a partir do qual é possível compreender a gestão das políticas culturais do
Distrito Federal quanto à sua aderência a modelos de desenvolvimento, sua efetivação
ou não de aspectos intersetoriais da política e à densidade democrática da política,
observando e qualificando o acesso à política.
Palabras clave: políticas culturais; cultura; participação social; conselhos de cultura
Nota biográfica: Doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de
Brasília. Docente e pesquisadora da Universidade de Brasília. Integra o Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional
(PPGDSCI/Ceam). Coordenadora do Observatório das Políticas Culturais (OPCULT).
Introdução
A institucionalização das políticas culturais é um fenômeno histórico recente. A partir
da segunda metade do século XX é que são compreendidas e efetivadas como políticas
públicas, em especial a partir da década de 1960. Nesse período, estruturam-se com
caráter fortemente estatal-nacional e intenso apoio da UNESCO enquanto organização
de fomento e orientação sobre os princípios de sua elaboração. A partir daí, os
ministérios da cultura exercem o protagonismo desse processo, mesmo com debilidades
e deficiências no aspecto da democratização. No entanto, o fato é que a cultura ganha o
status de objeto de intervenção estatal, principalmente no sentido de políticas de acesso.
A oferta torna-se o foco de boa parte das políticas nacionais, acompanhada de
iniciativas relacionadas à proteção do patrimônio.
Ainda que a pesquisa em cultura não seja novidade nas ciências sociais, não é possível
afirmar o mesmo para o campo das políticas públicas culturais. Este campo vem se
formando no bojo da própria agenda da política de cultura e como tal, está sujeito às
fragmentações, temas prioritários e dispersão.
Se observarmos a história das políticas culturais no Brasil poderemos perceber que a
pesquisa sobre esse campo manteve uma relação direta e crítica, com e sobre, a
formação da agenda política na medida em que teóricos e intelectuais das ciências
humanas e sociais produziram reflexões sobre as perspectivas no campo da política
cultural e a relação entre Estado, Mercado e Cultura. (Sergio Miceli e Mario Brockman
Machado, 1984)
Desde 1985, com a criação do Ministério da Cultura durante a gestão do ex-presidente
José Sarney, formaliza-se um campo novo no âmbito das políticas públicas e abre-se um
percurso histórico de constituição da cultura como campo de disputas na agenda das
políticas públicas do país. Durante 1985 e 1994 a instabilidade do Ministério não
propiciou grandes avanços no campo da formulação das políticas – ao contrário, apesar
da aparente abertura, o campo da cultura no âmbito das políticas públicas sofreu
esvaziamentos e severos desmontes com as trocas recorrentes de ministros e mesmo a
extinção do próprio ministério e órgãos associados entre eles a Embrafilme, Fundação
Pró-memória e Funarte durante o governo Collor. (Rubim, 2010)
Com a entrada do governo Itamar, o ministério retorna e entre 1994 e 2001, durante a
gestão FHC, teve como ministro Francisco Weffort. Há duras críticas sobre este
período, sendo a principal o esvaziamento do papel do Estado como indutor de políticas
– prática consoante com a radicalização neoliberal da época. Nesse período a política
cultural era praticamente inexistente quanto à discussão, eixos e prioridades, sendo
confundida com as leis de incentivo fiscal (Rouanet e Audiovisual). (Botelho, 2011)
Nesse contexto, emerge uma dicotomia fundamental para o entendimento das políticas
culturais e sua evolução, estabelecida entre Estado e mercado (Barbieri, 2015). Essa
relação tem um efeito direto no processo de exclusão de manifestações e expressões
culturais que não se enquadram no fomento da oferta, no fortalecimento do circuito
cultural ou do patrimônio. Essa tendência fortalece a demanda pela democratização
cultural, reivindicada como um espaço de participação dos diferentes grupos e atores
não contemplados pela lógica estatal em vigor.
A partir de 2002, com o governo Lula e com a gestão de Gilberto Gil a política cultural
ganha outras dimensões a partir do resgate de um conceito ampliado de cultura:
“A cultura passa então a ser considerada em sua dimensão antropológica, o que
significa assumi-la como a dimensão simbólica da existência social brasileira,
como o conjunto dinâmico de todos os atos criativos de nosso povo, aquilo que,
em cada objeto que um brasileiro produz, transcende o aspecto meramente
técnico. Cultura como “usina de símbolos” de cada comunidade e de toda a
nação, eixo construtor de identidades, espaço de realização da cidadania.”
(Botelho, 2011:70)
Durante a gestão de Gil houve um esforço de reestruturação do ministério e na
formulação de políticas públicas de cultura que implicou na necessidade de se obter
informações sobre a cultura, de tal forma a sistematizar um conjunto de dados que
pudessem gerar informações não somente sobre os diversos segmentos culturais e suas
relações produtivas, mas também diagnósticos sobre as ações culturais e a diversidade
do campo. Esse esforço veio a resultar no Plano Nacional de Cultura (PNC), no Sistema
Nacional de Cultura (SNC) e no Sistema Nacional de Informações e Indicadores da
Cultura (SNIIC), além de outras ações do âmbito da gestão pública da cultura.
Apesar dos esforços políticos em direção à pluralidade e diversidade, na prática, o que
se sucedeu foi uma centralidade do Estado enquanto produtor cultural, mas orientada
também ao papel dos governos locais. Nasce a ideia da gestão cultural local, com a
criação de estruturas regionais capazes de dar subsídio ao desenvolvimento da cultura
nos territórios, sem deixar de estabelecer parcerias com o setor privado.
Mesmo assim, nesse contexto de contradições, é possível perceber, a partir da leitura do
PNC, que a gestão pública da cultura incorporou a ideia de que é importante para
formulação de políticas mais inclusivas, plurais e democráticas a obtenção de dados e
informações sobre as manifestações culturais em suas distintas dimensões (simbólica,
econômica, cidadã), ao mesmo tempo que fomenta a formação qualificada de artistas e
gestores culturais, a pesquisa e a pós-graduação em áreas da cultura, conforme as metas
16 a 19:
“Meta 16: Aumento em 200% de vagas de graduação e pós-graduação nas áreas
do conhecimento relacionadas às linguagens artísticas, patrimônio cultural e
demais áreas da cultura, com aumento proporcional do número de bolsas.
Meta 17: 20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e
certificados pelo Ministério da Educação (MEC).
Meta 18: Aumento em 100% no total de pessoas qualificadas anualmente em
cursos, oficinas, fóruns e seminários com conteúdo de gestão cultural,
linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura.
Meta 19: Aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por
ações de fomento à pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento.”
Cultura, desenvolvimento e a política como ação pública – os instrumentos de
gestão da política cultural
A relação entre a cultura e o desenvolvimento é um problema em aberto. Tanto cultura
quanto desenvolvimento são conceitos polissêmicos e campos em disputa. Sua
conceituação teórica pelas comunidades científicas está em andamento. Ao
desenharmos uma pesquisa que leve em consideração o contexto territorial do Distrito
Federal (Brasília, Brasil), e que se debruce sobre essa relação observando as políticas
culturais nesse território, pontuamos, do ponto de vista da gestão pública, a seguinte
questão: sendo o desenvolvimento objetivo do Estado a ser efetivado nas políticas
públicas, como a gestão pública da cultura do Distrito Federal transita pela
transversalidade e intersetorialidade que o conceito de desenvolvimento porta? Nessa
perspectiva ainda podemos perguntar qual modelo (ou modelos) de desenvolvimento a
gestão pública de cultura tem aderência? Como política pública efetivada pelo Estado, a
política de cultura pode também dar pistas da densidade democrática desse Estado, a
partir da observação e do estudo das estratégias e instrumentos de participação social na
política, isto é, interessa saber se os instrumentos da gestão pública da cultura no DF
ampliam a participação social na política e como se dá esse processo.
A transversalidade e a intersetorialidade têm ganhado relevância em políticas públicas.
Autores como Reinach (2013) ao discutir a questão de gênero nas políticas públicas
brasileiras aponta a existência de várias compreensões do que seja transversalidade.
Quinhões e Fava (2010), em estudo sobre os programas complementares do Programa
Bolsa Família, abordam a transversalidade como a articulação entre diferentes esferas
de governo (federal, estadual, municipal) e programas constituídos por atividades
integradas. Serra (2005) define transversalidade muito além da inclusão de um tema
comum em diversas políticas. A transversalidade, diversamente da integração ou
coordenação interdepartamental ou lateral, inclui novos temas e novos pontos de vista
os quais não estão expressos (ou não são possíveis de expressar) em estruturas verticais.
Portanto, a transversalidade não implica na desestruturação vertical das organizações,
mas na incorporação de perspectivas multidimensionais ao desenvolvimento das
políticas e seus instrumentos.
A construção de um instrumento transversal, decorrente de uma percepção
multidimensional dos problemas, gera transformações nas estruturas organizativas, com
criação de novas funções ou novos arranjos institucionais, bem como reflete-se em
várias dimensões da vida do público-alvo das políticas, atingindo diversas esferas da
vida econômica, social, política e tantas outras a quanto corresponder a capacidade de
ação do instrumento.
A metodologia desta pesquisa utiliza a conceituação de instrumentação da ação pública
desenvolvido por Lascoumes e Le Galès (2012), para, por meio do estudo dos
instrumentos da gestão da política de cultura do Distrito Federal compreender como
cultura e desenvolvimento (eixo maior da investigação) estão relacionados nessas
políticas.
Para Lascoumes e Le Galès, a instrumentação da ação pública é “o conjunto dos
problemas colocados pela escolha e o uso dos instrumentos (técnicas, meios de operar,
dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental”
(2012:20).
Do ponto de vista da abordagem da instrumentação da ação pública, os instrumentos da
gestão não são neutros, ao contrário “são portadores de valor, nutridos de uma
interpretação do social e de concepções precisas do modo de regulação considerado”.
Esta abordagem, aplicada à política de cultura do Distrito Federal, pode dar pistas
sólidas sobre como cultura e desenvolvimento estão relacionados na dimensão da gestão
pública local, pois permite apreender aspectos da gestão que de outra forma seriam
praticamente invisíveis. Isso em parte ocorre pelo fato de que nesta abordagem “cada
instrumento tem uma história e suas propriedades indissociáveis das finalidades que lhe
são atribuídas” (2012:20).
Como dito anteriormente, o papel da cultura no desenvolvimento dos países ainda é
objeto de discussão e muitas vezes relacionado ao campo da economia cultural, ou
economia criativa, reforçando a visão econômica do desenvolvimento. Apesar dessa
constatação, e como já abordado, muitos discursos da gestão pública da cultura
procuram trazer outros aspectos da cultura que não exclusivamente a econômica, tais
como os direitos culturais, a diversidade cultural, a transversalidade da cultura e o
reconhecimento de que o setor da produção cultural é apenas uma parte do que se pode
se chamar de cultura com vistas à ação estatal. Por isso, uma investigação da gestão
pública da cultura partindo dos seus instrumentos de gestão pode ser considerada uma
pesquisa reversa em negativo, pois ao iniciar com o instrumento, como representante e
produto de um determinado ethos da gestão, explicita os possíveis conflitos entre o
discurso e a prática, o primeiro a partir do não dito e a última a partir do não visível.
É por este caminho que conceitos como transversalidade, intersetorialidade e densidade
democrática são investigados nas narrativas dos gestores e dos beneficiários da política.
O recorte da pesquisa, se debruça sobre duas ações públicas fomentadas pela Secretaria
de Cultura do Distrito Federal (SECULT-DF). A primeira refere-se à reestruturação dos
Conselhos Regionais de Cultura (CRCs) e a segunda ao fomento regular, por meio dos
recursos do FAC-DF, via editais específicos, de ações culturais no Distrito Federal.
Este artigo apresenta as primeiras considerações sobre a ação de reestruturação dos
Conselhos Regionais de Cultura do Distrito Federal – CRCs.
Os Conselhos Regionais de Cultura do Distrito Federal: estrutura e discurso da
política
A reestruturação dos Conselhos Regionais é uma iniciativa do Conselho de Cultura do
Distrito Federal com o apoio da Secretaria de Cultura. O Conselho de Cultura foi criado
pela Lei nº 49, de 25 de outubro de 1989 e regulamentado pela Lei nº 111, de 28 de
junho de 1990. É um órgão colegiado de deliberação coletiva de 2º grau, vinculado à
Secretaria de Cultura, com função normativa e articuladora da ação do governo no
âmbito do Sistema Cultural do Distrito Federal.
A Secretaria de Cultura formalizou, em 2016, as regras do processo seletivo para
instituição dos conselhos regionais de cultura — órgãos consultivos ligados ao
Conselho de Cultura do DF. De acordo com a resolução nº 02, de 03 de junho de 2016,
do Conselho de Cultura do DF, coube às administrações regionais a tomada de
providências para os atos relacionados à eleição dos conselheiros. Os colegiados foram
compostos por dois representantes da administração regional e oito conselheiros eleitos.
O mandato é de três anos e é permitida uma reeleição.
Segundo o discurso da política, os CRCs foram reestruturados num esforço de
descentralização da política cultural e para fomentar a cultura nas regiões
administrativas, uma vez que era esperado que os grupos fossem formados por pessoas
que atuassem na linha de frente do fazer artístico, nas palavras da coordenadora de
Formulação de Políticas Públicas de Cultura, da Secretaria de Cultura: “Não só os
artistas, mas também os espectadores, os líderes comunitários e os consumidores da
cultura daquela região”.
Entre as atribuições dos CRCs estão dar suporte às administrações regionais de forma
consultiva, além de sugerir, acompanhar e debater propostas para a valorização da arte e
da cultura. Cabe ao grupo também a função de definir normas e critérios para
destinação, uso e administração dos espaços culturais e artísticos mantidos pelo
governo.
O fortalecimento da política de descentralização começou em 2015 com os Diálogos
Culturais, atividade itinerante fomentada pela Secretaria de Cultura. Foram 24 encontros
envolvendo as 31 regiões administrativas, além de uma audiência pública com a
presença do secretário de Cultura e de sua equipe.
Esses eventos tiveram como objetivo consultar a comunidade do Distrito Federal sobre
suas demandas e propostas de ações que comporiam o Plano de Cultura do DF, que
integra a Lei Orgânica da Cultura e que no momento está em tramitação na Câmara
Legislativa.
Esses encontros serviram para mapear a atuação dos conselhos regionais de cultura em
cada cidade e verificou-se que apenas sete deles estavam ativos, mesmo assim com
nível precário de funcionamento, com estrutura inadequada e sem apoio do poder
público. Ao final de três meses de debates, a secretaria propôs ao Conselho de Cultura
do DF o fortalecimento dessa ferramenta de participação social, definindo a atual
estrutura, com quebra da paridade entre as lideranças comunitárias e os representantes
do poder público, além da criação de oito comitês macrorregionais de cultura, que é
uma instância intermediária, integrada por dois membros do Conselho de Cultura do
DF, um representante da Coordenação Regional de Ensino e o presidente e o vice de
cada conselho regional da macrorregião.
Com os CRCs do Distrito Federal temos a oportunidade de observar os desdobramentos
da gestão pública no território, tanto no que tange às ações da Secretaria da Cultura ao
fomentar e estruturar os processos eletivos e de nomeação dos conselheiros, quanto às
ações dos próprios conselheiros em relação às suas comunidades. Conselheiros e
gestores formam um grupo de atores importantes na rede da gestão pública da cultura.
Ainda segundo o discurso da Secretaria de Cultura, o restabelecimento dos Conselhos
Regionais de Cultura do DF faz parte das iniciativas de fortalecimento das instâncias de
participação social, no qual a descentralização de políticas tem sido uma estratégia
adotada pela Secretaria para ampliar o acesso da comunidade cultural aos serviços da
cultura, o que incluiu a eleição dos trinta e um conselhos regionais de cultura e a
desconcentração de recursos do Fundo de Apoio à Cultura por meio de editais
regionalizados.
Conselhos Regionais de Cultura do DF como instrumentos da gestão da política
cultural: o que nos dizem?
Ao iniciarmos esta pesquisa buscamos como referencias documentais a resolução de
criação do CRCs e as narrativas institucionais e públicas sobre a política de
descentralização da cultura, sobre a natureza da cultura e sobre a gestão política,
buscando os elementos que poderiam apontar para o caráter intersetorial e transversal da
política cultural.
Se tomamos como base a leitura de Lascoumes et Les Galès para os Conselhos
Regionais de Cultura, teremos que buscar os elementos que evidenciem os valores, a
interpretação do social e as concepções de regulação que este instrumento porta. Em
nosso caso, a resolução 02, de 03 de junho de 2016, do Conselho de Cultura do DF, que
criou os CRCs definindo como o conselho é estruturado e suas atribuições, é o
documento principal para esta nossa análise.
O Conselho Regional de Cultura é um instrumento de gestão da política pública de
cultura do Distrito Federal, criado no sentido de descentralizar a política cultural e
fortalecer os processos de participação social – essa é a sua definição formal que pode
ser exemplificada na narrativa do Secretário de Cultura do Distrito Federal: "Olho pra
trás e vejo um avanço nas instâncias atuais de participação cidadã no âmbito da cultura.
A nova estrutura desses conselhos está conseguindo estimular uma forma mais forte,
mais coesa e mais precisa de sensibilizar o poder público sobre suas demandas
territoriais, a partir da voz de representantes das comunidades locais.”
Os valores anunciados pela política pública é o do fortalecimento da participação social
e a descentralização da política.
Quanto à descentralização da política, os CRCs cumprem formal e diretamente essa
função ao serem instâncias regionalizadas, ligadas às Administrações Regionais do
Distrito Federal. No entanto, essa descentralização só poderá ser efetivamente
detectada, na medida em que projetos, ações e fomentos sejam desenvolvidos. O estágio
de organização dos CRCs ainda não permite essa verificação.
Já o valor “fortalecimento da participação social” pode ser discutido à luz da leitura da
resolução, observando que a resolução é também um instrumento de regulação, e,
portanto implica em aberturas e restrições. A institucionalização da participação social
nas políticas cria desafios a sua própria essência democrática e exigindo dos atores
envolvidos maiores compromissos no sentido de tornar o processo participativo cada
vez mais coletivo e amplo.
Os CRCs foram reestruturados a partir de demandas locais, em audiências públicas
realizadas entre a Secretaria de Cultura e grupos e movimentos culturais regionais do
Distrito Federal. Estes grupos e movimentos são formados, majoritariamente, por
artistas e produtores culturais.
Nesse sentido, o valor “fortalecimento da participação social” deve ser reformulado para
“fortalecimento de qual tipo ou modelo de participação social”, ou dito de outra forma,
de qual participação social está-se falando?
O artigo 5º. da resolução apresenta um recorte específico para as vagas que representam
a “sociedade civil” no conselho, e este recorte é o “das lideranças culturais”:
“Art. 5º. As oito vagas da sociedade civil serão ocupadas por lideranças culturais
respeitando o equilíbrio entre os setores culturais e a singularidade da Região
Administrativa.
§1º Consideram-se setores culturais as linguagens artísticas e expressões
culturais manifestadas pelo circo, teatro, dança, música, audiovisual, fotografia,
literatura, artes visuais, arte urbana, artesanato, cultura popular, design, moda,
arquitetura, jogos eletrônicos e aplicativos web, cultura afro, dentre outras
sugeridas pelos Conselhos Regionais de Cultura e formalmente reconhecidas
pelo Conselho de Cultura do DF.
§2º Representantes de um mesmo setor cultural não poderão ocupar mais do que
2 vagas disponíveis à comunidade cultural. O equilíbrio entre os diversos setores
culturais serão validados pelo Conselho de Cultura do Distrito Federal.
(...)”
Ainda que a partir de 2002 a política nacional de cultura tenha encaminhado uma
abertura na compreensão do conceito de cultura, de tal forma a abarcar a dimensão
simbólica da existência social brasileira, o Conselho de Cultura do DF não efetivou esse
entendimento nessa resolução. A participação social desenhada é aquela que permite e
demanda de um mesmo grupo social, a saber, os agentes culturais, aqui entendidos
como aqueles que produzem cultura no sentido artístico e fortemente ligada ao aspecto
técnico. Esse é um aspecto regulatório de âmbito restritivo da participação social na
política cultural. Não está previsto, por exemplo, assento para o cidadão comum, que
seria o beneficiário “indireto” da política, mas que na verdade é o verdadeiro usuário da
política e sobre o qual se sustenta toda a justificativa de fomento cultural. O espaço é
apenas para quem produz ou faz a gestão da cultura. Isso significa que ainda não estão
claramente contempladas as ações que favoreçam, por exemplo, a pluralidade das
manifestações culturais ou o direito da fruição cultural por parte de qualquer cidadão.
Esse fato pode ser um sinalizador de incongruências entre o discurso da política pública
e a prática da gestão dessa mesma política e um desafio para a efetivação da política
cultural com maior densidade democrática e capilaridade territorial.
Essa constatação não difere dos resultados encontrados por Carmo (2016), em seu
trabalho sobre o financiamento da cultura no Distrito Federal, no qual observou o
financiamento realizado pelo FAC entre os anos de 2011 e 2014. Nessa pesquisa,
Carmo aponta que mais de 77% dos recursos destinados ao fomento da cultura na média
para os anos de 2011 a 2014 foram direcionados às ações da cadeia produtiva da cultura,
beneficiando às linguagens artísticas consolidadas e que mesmo os recursos menores,
destinados à memória ou formação também estavam mais alinhados à perspectiva das
artes.
A resolução também dá pistas a partir daquilo que não foi dito. É interessante notar, por
exemplo, que o artigo 10º. não menciona o número mínimo de votos que um
conselheiro precisa ter para que a eleição seja válida, o que legalmente sugere que um
voto bastaria, o que nos leva a questionar a ideia de participação social ou mesmo a
densidade democrática envolvida nesse processo. Ainda, no artigo 8º. a sociedade civil
votante pode ser toda a comunidade de moradores da região administrativa, a partir dos
16 anos, o que difere substancialmente daqueles membros da sociedade civil que podem
se candidatar.
“Art. 8º O eleitor, maior de 16 anos, deverá apresentar-se no local de votação
com um documento de identificação e comprovante de residência atualizado.
(...)
Art. 10. O processo seletivo será regido por esta Resolução e compreenderá as
seguintes etapas:
a) convocação da sociedade civil com no mínimo trinta (30) dias anteriores à
eleição, com ampla divulgação neste período;
b) inscrição por auto-declaração;
c) eleição dos candidatos, por meio de voto direto, secreto e facultativo;
d) verificação do comprovante atualizado de residência, do portfólio de
comprovação de atuação no segmento cultural auto-declarado, da cópia do RG
ou documento de identificação com foto e das declarações do candidato eleito; e
e) publicação do resultado no DODF.”
Por último, em seu artigo 11º., o conselheiro terá que comprovar “experiência na área
cultural de no mínimo três anos, comprovada por histórico, currículo ou portfólio e
declaração por ficha de inscrição”. Dessa forma, a resolução de criação dos CRCs
mostra um processo de endogenia, que privilegiou uma categoria social, a saber, o
artista ou produtor cultural.
Considerações Finais
O Conselho Regional de Cultura encaminha um modelo de participação social na
política de cultura do Distrito Federal que ainda permanece marcado pela exclusão dos
cidadãos comuns, reforçando uma ideia de cultura ligada apenas às artes e as técnicas,
deixando de lado, por exemplo, manifestações culturais identitárias que não são
passíveis de tornarem-se produto cultural.
No que tange aos aspectos de intersetorialidade e da transversalidade, o discurso da
política cultural, no caso sobre o processo de reestruturação dos CRCs, deixa claro a
ênfase que é dada à cultura enquanto instrumento de agregar outros campos da política
pública:
“Mas eu tenho certeza de que se a gente tiver essa capacidade de promover uma
integração maior entre os autores culturais, entre as comunidades das diversas
cidades e o governo, nós vamos poder fazer muito mais e vamos fazer muito
melhor. Eu tenho uma convicção muito clara de que a cultura é um instrumento,
não apenas da economia, eu tenho convicção de que a cultura hoje tem um papel
muito importante em uma cidade com as características de Brasília do ponto de
vista do desenvolvimento econômico. Mas eu vejo a cultura muito além disso.
Nós temos ainda uma sociedade preconceituosa, uma sociedade violenta, uma
sociedade com muitas diferenças sociais e eu tenho uma convicção muito grande
de que a cultura é um dos instrumentos, que se não for o instrumento mais
eficiente para mudar paradigmas, para criar novos valores, novos conceitos e
construir uma sociedade mais justa, mais solidária, mais generosa, mais
amorosa.” 1
A ênfase no desenvolvimento econômico restringe as possibilidades de outros arranjos
sociopolíticos, mesmo que se saiba que a cultura tem uma abrangência muito mais
ampla que aquela visão conservadora da cultura como bem e serviço artístico-cultural.
A reestruturação dos conselhos regionais de cultura poderia ser uma oportunidade de,
por um lado, capilarizar a politica cultural e, por outro, estruturá-la a partir do território
compondo com outros setores da política pública. A política de cultura no território
poderia se beneficiar dos aportes das políticas de educação, turismo, trabalho, saúde,
juventude, entre outras, mas para isso precisaria antes realizar a dimensão simbólica da
cultura, aquela que se relaciona a uma determinada coletividade, aos modos de ser, fazer
e viver num dado lugar.
Há por certo, uma valorização da dimensão simbólica da cultura nos discursos oficiais
da política cultural, mas é preciso admitir que efetivar esse universo simbólico nas
políticas é um desafio em aberto. Ainda, esse desafio precisa ser contextualizado à luz
das discussões sobre desenvolvimento, já que os critérios que definem a adoção de
1 Pronunciamento do Governador Rodrigo Rollemberg, no I Encontro de Conselheiros Regionais de
Cultura do DF, em março de 2017, Museu Nacional , Brasilia.
modelos de desenvolvimento são notadamente econômicos e isso impacta a própria
formulação de politicas culturais ou mesmo o entendimento de cultura.
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