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tema deste trabalho. Antes de qualquer anlise, entretanto, necessria uma breve
apresentao narrativa.
A movimentao revolucionria no se resume nem se inicia na tomada do
poder pelos rebeldes. Meses antes disso, j era intensa a propaganda e a crtica polticana capital baiana; as reunies dos clubes liberais e a divulgao de jornais e panfletos
revolucionrios eram do conhecimento de todos, inclusive das autoridades policiais.
Como principal articulador das idias radicais surge a figura do mdico, professor e
publicista Francisco Sabino lvares da Rocha Vieira. Entretanto, Sabino no foi o nico
a disseminar propostas de revoluo. Junto dele, estavam alguns dos homens envolvidos
nos levantes federalistas dos anos anteriores, como Daniel Gomes de Freitas.
No dia 6 de novembro, dada a pouca articulao das autoridades provinciais para
evitar os encontros rebeldes, o Corpo de Artilharia do Forte de So Pedro se amotinou,
contando com a colaborao de Sabino e outros civis notadamente comprometidos com
os clubes e jornais revolucionrios. Na manh do dia seguinte, militares e civis
marcharam juntos em direo ao centro da cidade.
Nesta ltima hora, com os rebeldes assomando as proximidades do Palcio, as
autoridades tentaram se defender, porm os praas e homens do Corpo Policial
mobilizados para esta funo houveram por bem aderir aos levantados. Assim, a nica
soluo para os governantes foi a fuga em embarcaes ancoradas na Baa de Todos os
Santos. Alm das autoridades, foi embarcada tambm uma grande parte do tesouro da
capital, recolhido s pressas para no ser deixado nas mos dos revolucionrios. Eis que
no dia 7 de novembro de 1837, marcado pelos protagonistas e pela historiografia como
o dia de incio da Sabinada, a capital da Bahia ficou sem nenhum dos seus governantes.
A partir da tm incio as movimentaes polticas e militares centrais do episdio que
se pretende discutir aqui.
Os rebeldes se dirigiram Cmara Municipal, onde aclamaram uma ata de sete
artigos com as intenes e propostas do novo regime, descrito como inteiramente
desligado do governo central do Rio de Janeiro. Entre as disposies iniciais, vale
destacar a promoo de recompensas para a categoria militar, sem cujo apoio pouco
provvel que os rebeldes civis tivessem conseguido chegar ao poder.2 Alm disso, foi
2 As atas de 7 e 11 de novembro de 1837 encontram-se reproduzidas diversas vezes ao longo de umacoleo publicada pelo Arquivo Pblico da Bahia. In: Publicaes do Arquivo do Estado da Bahia: A
revoluo de 7 de novembro de 1837. Salvador: Bahia, Cia. Editora e Grfica, 1937-1948. No vol. 1, spp. 59-64 e 114-119. No vol. 2, s pp. 14-15 e 24-27. No vol. 5, s pp. 113-124. Doravante, essa coleoser designada pela sigla PAEBA.
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aclamado o governante do Estado Independente, Joo Carneiro da Silva Rego. Este,
deputado eleito para a Assemblia Provincial, era proprietrio de terras e escravos; uma
figura de quem se esperava poder representar com dignidade o novo Estado em
fundao.Dias aps tais medidas, entretanto, parte significativa da populao da capital se
retirou dali temendo, certamente, a possibilidade de um rumo trgico para os
acontecimentos. Os revolucionrios, antevendo um esvaziamento ainda maior da cidade,
optaram por reconsiderar o item mais radical de sua primeira ata: em 11 de novembro, o
Estado revolucionrio da Bahia reiterava sua independncia, mas passava a afirmar que
voltaria ao conjunto do Imprio com a coroao de Pedro II3. Vale lembrar que este
perodo histrico, conhecido como Regencial, foi prdigo em movimentos de carter
separatista em diversas provncias do Imprio, resultados de embates entre projetos
polticos diversos entre eles, tm destaque os projetos centralistas e federalistas.4
Simultaneamente aos fatos ocorridos na capital baiana, os governantes fugidos
se reencontraram e rearticularam no Recncavo, sobretudo em Cachoeira, So Francisco
e Santo Amaro, para onde foram realocadas as instituies bsicas do governo. A partir
de ento, o presidente da provncia solicitou a ajuda dos senhores de engenho locais e
tambm do governo central para debelar o movimento rebelde da capital. Para tanto, as
foras imperiais repetiram a estratgia j utilizada na Guerra de Independncia (1822-
1823) e tambm na expulso dos holandeses (1625): o cerco da capital por terra e por
mar. Com isso, impediam o abastecimento e a realizao de trocas comerciais com a
cidade, visando tambm conter a expanso da revolta para outras partes da provncia.
Desta forma, os legalistas lograram isolar os rebeldes em todos os sentidos, minando
suas resistncias aos poucos, at a restaurao da cidade nos combates finais de 13 a 16
de maro de 1838.
Os revolucionrios tiveram poucas oportunidades para fugir difcil realidade
do stio. Com isso, a populao local foi vitimada pela fome e pela violncia de uma
guerra que se estendeu durante quatro meses. O governo revolucionrio tentou
administrar a situao, mas chegou ao limite, permitindo a fuga de mulheres, crianas e
idosos da cidade sitiada. Outra evidncia da gravidade da situao se encontra no
3 Cf. Douglas Guimares LEITE. Sabinos e diversos: emergncias polticas e projetos de poder narevolta baiana de 1837. Salvador: UFBa, Dissertao de mestrado, 2006.4 Para um panorama poltico geral do perodo das Regncias, ver: Paulo Pereira C ASTRO. A experincia
republicana. In: Srgio Buarque de HOLANDA (org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira. Tomo II,2o. Volume. So Paulo: DIFEL, 1964. Para uma anlise dos projetos polticos em disputa no perodo, ver:Miriam DOLHNIKOFF. O pacto imperial origens do federalismo no Brasil. So Paulo: Ed. Globo, 2005.
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recrutamento de soldados entre escravos e presos condenados. Nos dias finais do
combate, descritos pelo comandante das armas Joo Crisstomo Callado, houve um
nmero elevado de mortos e de edifcios incendiados na cidade.5
Aps a restaurao de Salvador, teve incio o processo de caa aos rebeldes eenvolvidos no movimento. Eram tantos os condenados que as prises pblicas no
foram suficientes. Lotaram-se tambm as barcas prisionais, e muitos foram enviados
para cumprir pena em Fernando de Noronha ou nos campos de batalha contra os
farrapos, no Rio Grande do Sul. Os lderes do movimento entre eles Sabino e Carneiro
Rego foram, aps longos processos, condenados morte. No entanto, com a coroao
de Pedro II em 1840, obtiveram uma anistia por parte do Imperador, tendo suas penas
reduzidas ao degredo em reas distantes, como So Paulo e Mato Grosso.6
Este o universo factual ao qual esta anlise vai se reportar. Neste artigo,
pretende-se introduzir a discusso acerca das relaes entre negros e brancos na
Sabinada, bem como as formas pelas quais a lgica do sistema escravista foi vivenciada
e manipulada por seus protagonistas, tanto em campo rebelde, como em campo
legalista. Tendo em vista que o governo revolucionrio recrutou escravos para combater
em suas fileiras, prope-se investigar de que maneira se davam as relaes entre
combatentes livres e escravos, levando em considerao as diferenas de cor e os
embates de tipo racial que o movimento evidenciou para seus contemporneos e os
analistas posteriores.
A revoluo de 1837 d margem a diferentes abordagens da questo racial, uma
vez que a sociedade baiana oitocentista tinha, entre suas principais caractersticas, uma
profunda diversidade. No conviviam ali apenas os extremos senhore escravo, assim
como no se lhes correspondiam automaticamente as categorias branco e preto. No
universo da cidade de Salvador, grupos miscigenados desempenhavam papis sociais de
toda ordem. Conflitos entre eles eram parte do cenrio urbano desde o perodo colonial
e ainda mais aps a Independncia.7A partir disso, como j apontou a historiografia,
adquire centralidade na Sabinada a parcela negra da populao, bem como a
importncia de uma investigao sobre o lugar social e simblico ocupado por estes
5 Cf. Joo Crisstomo CALLADO. Relatrio dos acontecimentos dos dias 13, 14, 15 e 16 de maro de1838. In: PAEBA, vol 2, pp. 137-224.6 Para uma apresentao factual mais consistente de toda a Sabinada, ver: Paulo Cesar SOUZA.A Sabinada.Op. cit.7
Cf. Joo Jos REIS. Rebelio escrava no Brasil. A histria do levante dos mals em 1835. So Paulo:Cia. das Letras, 2003. Ver tambm: Joo Jos REIS & Eduardo SILVA. Negociao e Conflito. Aresistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Cia da Letras, 1989.
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setores sociais entre rebeldes e legalistas. Vale lembrar que o lder Francisco Sabino era
mulato, conforme descrio dos processos-crime movidos contra ele. Alm disso, outros
representantes importantes da revolta, como o major Santa Eufrsia, eram negros.
Antes de dar incio a essa anlise, entretanto, necessria uma ltimajustificativa de ordem conceitual. A categoria negro, aqui utilizada, estava presente de
forma diferente da atual no universo vocabular dos contemporneos da Sabinada.
Assim, os que hoje podem ser considerados negros, na poca em questo eram
classificados com termos bastante variveis, como pretos (designao genrica para os
de origem africana), crioulos (nascidos no Brasil), pardos, cabras e at mesmo bodes
(designaes genricas para indivduos mestios).8Neste artigo, o uso da categoria
negro pretende caracterizar os homens no-brancos, africanos ou afro-descendentes, que
recebiam diversas nomenclaturas naquele perodo. Quando a anlise da documentao o
exigir, sero utilizadas as categorias nativas.
A anlise basear-se- na documentao recolhida sobre a Sabinada, tanto em
publicaes impressas pelo Arquivo do Estado da Bahia como em manuscritos
recolhidos na mesma instituio. Estes documentos foram selecionados em dois
diferentes grupos: aqueles produzidos no mbito do Estado revolucionrio constitudo
na capital, por um lado, e aqueles produzidos entre as foras imperiais legalistas, por
outro. Desta forma, pretende-se apresentar um panorama comparativo entre a face que
os rebeldes queriam dar ao movimento, e a resposta dada por aqueles que o combatiam,
levando sempre em considerao as anlises j realizadas pela historiografia que vem se
debruando sobre o tema desde meados do sculo XIX.
Eufrsia e Sabino: alianas negociadas entre homens de cor
H indcios de que a cor da pele tenha influenciado na composio das alianas
polticas ao longo do perodo de governo revolucionrio. Como exemplo, prope-se a
anlise da participao do major Santa Eufrsia, j mencionado, na Sabinada. Tendo
construdo sua trajetria junto s milcias negras da Bahia, Eufrsia foi um dos mais
importantes comandantes de armas da revoluo de 1837. Santa Eufrsia foi, nas
palavras do historiador Braz do Amaral, um crioulo de muito valor. O major tambm
8 Cf. Joo Jos REIS.Rebelio escrava no Brasil. Op. cit., p. 23. Ver tambm: Ktia Vinhtico PONTES.Mulatos: polticos e rebeldes baianos. Salvador: UFBa, dissertao de mestrado, 2000.
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foi citado por Manoel Querino, em 1923, em clebre artigo no qual foram nomeados os
homens de cor preta na Histria.9
Para se ter uma ideia do mito construdo em torno de Eufrsia, vale citar que a
prpria historiografia apresenta diferentes verses sobre sua morte. Alguns afirmam queo major teria se suicidado antes de ser preso, outros afirmam que o suicdio aconteceu
depois de sua priso, outros afirmam ainda que ele foi morto pelas foras legalistas.
Dilton Arajo demonstra como a imprensa conservadora procurou, aps a restaurao
da cidade, fixar no imaginrio baiano uma imagem de selvageria para Santa Eufrsia,
afirmando que ele teria cometido barbaridades, como impedir a fuga de uma comitiva
de freiras da cidade durante a revoluo.10
Que o major Eufrsia foi uma liderana importante entre os sabinos, e sobretudo
entre os negros engajados na revoluo, h muitas evidncias. Entre elas, vale citar um
documento de abril de 1838, dando conta de que o chefe de polcia prendeu o preto
Adriano um dos soldados rebeldes que serviu no Ponto do Santa Eufrsia, e a sua
conduta bem notria.11 Esta afirmao aponta para a possibilidade de participao de
africanos (como sugere o uso da categoria preto) nas foras rebeldes que, via de regra,
evitaram a aproximao com africanos, conforme se ver mais adiante. Importa
destacar, neste momento, que houve no curso da revoluo a possibilidade de
participao africana, e que talvez o batalho comandado por Santa Eufrsia fosse um
desses casos. Ainda que o comando revolucionrio no tivesse aberto objetivamente o
caminho para os africanos, e que at recusasse qualquer identificao com esses setores,
havia sim uma parcela de participao deles no movimento. As disposies do Estado
Independente no foram suficientes para manter os africanos de fora da revoluo, pois
havia entre seus correligionrios aqueles que, como Eufrsia, estariam dispostos a
receb-los.
9 Para uma investigao acerca das milcias negras na Bahia, ver: Hendrik KRAAY. Identidade racial napoltica, Bahia, 1790-1840: o caso dos henriques. In: JANCS, Istvn (org.). Brasil: Formao doEstado e da Nao. So Paulo: Fapesp/Hucitec,2003. Braz do AMARAL. A Sabinada. In: op. cit., p. 28.Manoel QUERINO. Os homens de cor preta na Histria. In: Revista do Instituto Geogrfico e Histrico daBahia. 1923, n 48, pp. 353-363.10 Para as diferentes interpretaes da morte de Eufrsia, ver: Braz do AMARAL. A Sabinada. In:PAEBA,Op. cit., vol. 2, p. 28. Paulo Cesar SOUZA.A Sabinada. Op. cit., p. 104. Dilton Oliveira de ARAJO. O tutuda Bahia (Bahia: transio conservadora e formao da nao, 1838-1850). Salvador: UFBa, tese dedoutorado, 2006, p. 47. Luiz Vianna FILHO. A Sabinada (a Repblica baiana de 1837). Rio de Janeiro:
Jos Olympio Editora, 1938, p. 181.11 Arquivo Pblico do Estado da Bahia (APEBa), seo de arquivo colonial e provincial, mao 2837 30de abril de 1838.
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A participao de negros de diferentes origens em uma mesma frente de batalha,
ainda que isso no seja a regra no interior do movimento, algo importante a ser
demarcado na anlise da construo do pensamento racial na Bahia na primeira metade
do sculo XIX. Isso significa, portanto, levantar a hiptese de que havia, no interior daSabinada, alguns elementos que apontam para a possibilidade, ainda que incipiente, de
uma agenda poltica comum entre negros nascidos no Brasil e na frica.
A imagem de que Santa Eufrsia foi o promotor de uma solidariedade negra
entre os sabinos deve, contudo, ser construda com cautela, pois existem evidncias
documentais que levam construo de um quadro mais complexo. Em uma memria
de autor desconhecido, encontra-se que:
A conspirao era demitir Joo Carneiro da Silva Rego, para ser
substitudo por Sabino. Sendo consultado o major Santa Eufrsia (preto
crioulo) sobre a pretendida conspirao disse ele para um oficial superior
que no anua e que com ele conferenciava que estava acostumado dizer
que tinha uso de razo a ser governado por brancos e que a no serem
estes deveriam ser os negros que governasse [sic] a Repblica. 12
A pretenso de ascenso poltica do mulato Sabino, que incluiria um golpe no
vice-presidente aclamado no dia 7 de novembro golpe este jamais concretizado no
obteve apoio do major negro Santa Eufrsia. Neste caso possvel supor que a cor da
pele desempenhou papel central na constituio de alianas entre as lideranas da
revoluo; ainda que entre eles houvesse representantes brancos, negros e mulatos em
cargos de comando, isso no significa que havia convergncia plena de projetos
polticos entre eles. O fato de Eufrsia e Sabino no serem brancos est longe de
representar uma unidade natural de projeto poltico ou mesmo uma tendncia de
congraamento entre eles. Ainda que os dois estivessem sob a bandeira da mesma
revoluo, vlido destacar seno a rivalidade, ao menos a no-parceria entre um negro
e um mulato que ocupavam posies de destaque no movimento. O excerto citado
evidencia que entre o major crioulo e o mulato Sabino no havia espao para uma
suposta solidariedade racial, ainda que ambos fossem livres e sobre eles incidisse a
marca da cor. Em outras palavras, o mesmo Eufrsia que aceitava a participao de
africanos em seus batalhes, recusava-se a promover a ascenso de um lder poltico
mulato. Talvez esse seja um exemplo daquilo que os naturalistas Spix e Martius
12 PAEBa, Vol. 1, p. 341, parntesis originais.
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identificaram como preconceito contra a procedncia mestia, quando de sua viagem
Bahia no incio do sculo XIX.13
A Sabinada apresenta ainda outros episdios de tenses de tipo racial, sobretudo
quando se leva em considerao as diferenas entre homens livres e escravos perceptveis, ordinariamente, a partir de marcadores como a cor da pele. A necessidade
do movimento rebelde de armar cativos para lutar contra as foras legalistas levou ao
encontro, nas mesmas fileiras, de pessoas tradicionalmente separadas, como se ver
adiante.
Homens livres e cativos sob a mesma bandeira
O contexto escravista baiano vinha sendo pontuado, na dcada de 1830, por
diferentes momentos de tenso, proporcionados, sobretudo, por revoltas e diferentes
formas de resistncia apresentadas pelos cativos, seja individual, seja coletivamente. 14
Considerando, alm disso, os freqentes episdios de contestao poltica dos homens
livres neste perodo, bem como a emergncia de diferentes projetos polticos no interior
da sociedade baiana, fundamental investigar o espao conferido aos escravos e
questo escravista na revolta de 1837.
O governo revolucionrio teria promovido a incorporao oficial de cativos
nascidos no Brasil, em um batalho chamado Libertos da Ptria, a partir de 3 de janeiro
de 1838. Mais adiante, em 19 de fevereiro, o Estado Independente reforou a idia de
abolio para os escravos nascidos no Brasil que se dispusessem a pegar em armas em
favor da revoluo15. Entretanto, a documentao leva a crer que a participao de
escravos no movimento foi alm destas iniciativas, sendo talvez mais problemtica,
merecendo um olhar mais detalhado.
A primeira questo a ser investigada se haveria integrao entre homens
escravos e livres nas fileiras rebeldes. Para Daniel Gomes de Freitas, Ministro da Guerra
do governo revolucionrio, a aproximao entre soldados livres e escravos no foi uma
boa escolha poltica. Em sua Narrativa dos Sucessos da Sabinada, Gomes de Freitas
analisou os conflitos ocorridos no chamado Batalho Bravos da Ptria, composto,
segundo ele, por patriotas valorosos, at a absurda admisso de escravos. A
participao de cativos era, segundo Gomes de Freitas, algo positivo apenas em relao
13Carl F. P. von MARTIUS & J. B. von SPIX. Atravs da Bahia. Excertos da obra Reise in Brasilien.
So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, p. 116.14 Cf. Joo Jos REIS.Rebelio escrava no Brasil. Op. cit.15 SOUZA.A Sabinada. Op. cit., p. 80-81, 92-93.
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ao aumento da fora fsica do batalho. No entanto, tal incremento no seria justificado
devido diminuio moral trazida pelos escravos tropa.16
Esta chamada diminuio moral pode ser exemplificada nos pedidos de baixa
e deseres ocorridas quando da entrada de escravos nas fileiras rebeldes. Tanto norelato de Gomes de Freitas como na historiografia mencionada a recusa dos soldados
livres de lutar lado a lado com escravos.17 Um desses pedidos de afastamento, do
Tenente Ajudante Augusto Cassiano Pereira, traz a seguinte justificativa:
Tomando em considerao as circunstncias que lhe ho ocorrido no
pode continuar no ativo servio em que se acha, por isso que mui
respeitosamente requer a V. Exa. para que lhe mande demitir do dito
servio, no ficando por isso o Suplicante privado de unir-se s fileiras dos
verdadeiros defensores da Ptria.18
No explicitado o motivo pelo qual o requerente quer se retirar do Batalho,
nem quais as circunstncias que lhe haviam ocorrido, mas seu discurso evasivo parece
ter sido perfeitamente compreendido pelo major que recebeu o requerimento e deferiu
seu pedido de demisso. Ao que o texto indica, o motivo era algo de conhecimento
geral, mas sua discusso em termos explcitos no seria de bom tom. O autor do
requerimento sugeriu ainda que pretendia unir-se s fileiras dos verdadeiros defensores
da Ptria, o que permite afirmar que, no seu ponto de vista, no Batalho dos Bravos da
Ptria os combatentes no seriam verdadeiramente defensores da ptria. Desta forma,
lcito supor que ele estivesse se referindo, ainda que de maneira velada, aos escravos ali
admitidos. Estes no poderiam, em nenhuma circunstncia, ser considerados
verdadeiros defensores da ptria, pela natureza mesma de seustatus social e jurdico.
A concordncia da autoridade com o pedido contido neste requerimento, assim
como a postura indicada por Gomes de Freitas em seu relato denotam que a admisso de
escravos no Batalho dos Bravos da Ptria foi bastante controversa entre as autoridades
rebeldes. Ao aceitar os pedidos de transferncia e demisso dos que se negavam a
continuar servindo ali, as autoridades militares iam contra a determinao vinda do
governo revolucionrio, que pretendia empregar todas as foras possveis no esforo de
permanecer no comando da cidade; alm disso, reiteravam a prtica da discriminao
contra os egressos do cativeiro nas fileiras da revoluo. O relato de Daniel Gomes de
16 PAEBa, vol. 1, p. 267-8.17
Cf. Hendrik KRAAY. As terrifying as unexpected: The bahian Sabinada, 1837-1838. In: HipanicAmerican Historical Review 72:4. Duke University Press, 1992., p. 518.18 APEBa, seo de arquivo colonial e provincial, mao 2836, s/d.
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Freitas menciona que no apenas os soldados rejeitaram os novos colegas, como
tambm a populao, que passou a desprezar o batalho.
A admisso de escravos nas tropas rebeldes refletia a profunda necessidade
encontrada pelos sabinos no contexto da guerra, e no uma disposio em superar astradicionais barreiras sociais da escravido, promovendo o congraamento de homens
livres e cativos. Aos escravos foi proibida a evaso da cidade, a partir de decreto do dia
12 de janeiro de 1838 que afirmava:
todas as pessoas maiores de 50 anos, e bem assim mulheres de qualquer
idade e condio que sejam, podem sair livremente para onde lhes convier,
porm, por terra e sem levarem consigo escravos, que possam de algum
modo prestar servios causa da independncia e do Estado.19
O decreto permite a compreenso do quanto eram importantes os escravos para a
manuteno do governo revolucionrio, sobretudo neste momento em que a gravidade
do cerco promovido cidade j se fazia sentir dramaticamente pela populao. Contava-
se com eles para servios no especificados no decreto, mas sabe-se que, alm das
armas, os escravos eram utilizados como carregadores de munies e diversas outras
funes nos campos de batalha, de acordo com a Narrativa de Gomes de Freitas. 20 A
proibio da sada de escravos da cidade representou, na prtica, uma espcie de
confisco por parte do Estado Independente, que passou a deter o controle sobre a ida e
vinda dos cativos em lugar de seus senhores.
Os dilemas provocados pela presena de escravos entre os soldados rebeldes
levam ao seguinte questionamento: seria possvel compreender a rejeio aos escravos
nas tropas rebeldes como uma discriminao aos negros, ou esta seria apenas mais uma
manifestao da tenso entre homens livres e escravos? Vale destacar que homens livres
e escravos da Bahia sempre lutaram em campos opostos, como ocorrera h apenas dois
anos antes, na clebre revolta dos mals.21 Aos contemporneos da Sabinada certamente
causava estranhamento ver, em um mesmo lado da luta, homens livres, brancos (ou
tidos como tal) e escravos negros, combatendo, juntos, o governo legalista estabelecido
no Recncavo. Alm disso, era certamente assustadora aos proprietrios a imagem dos
19 PAEBa, vol. 1, p. 197.20 Cf. PAEBa, vol.1, p. 284. As foras legalistas tambm se utilizaram de escravos, cedidos pelos
proprietrios do Recncavo, para servios como fazer trincheiras e carregamentos diversos. Em ofcio de23 de fevereiro de 1838, o presidente da provncia Barreto Pedroso agradece ao proprietrio Jos Ricardoda Silva Horta pelo envio de dez pretos (com um Feitor) para a conduo dos objetos destinados ao
nosso Exrcito. O presidente se compromete, ainda, a ressarcir o proprietrio pelos jornais que perderiaao emprestar seus escravos causa da legalidade. Cf. PAEBa, vol. 5, p. 209.21 Cf. Joo Jos REIS.Rebelio escrava no Brasil. Op. Cit.
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cativos armados, sob ordens que no fossem as suas. Vale lembrar o quanto foi
polmica, na ocasio das guerras de Independncia, a proposta de Labatut para a
incorporao de escravos s fileiras do Exrcito Pacificador.22 Hendrik Kraay afirma
que,aps o 2 de Julho, foi difcil para os senhores restabelecer a autoridade que tinham
sobre seus cativos, uma vez que os ex-soldados escravos haviam adquirido uma nova
identidade e se davam um novo valor, mobilizando-se para a obteno de um novo
status social.23
A documentao evidencia que a iniciativa do governo rebelde de reunir em uma
mesma tropa homens livres e escravos ou libertos, ainda que na letra da lei
escandalizou tambm aos legalistas. Encontra-se em uma carta escrita pelo Presidente
da Provncia Barreto Pedroso, exilado no Recncavo, a Bernardo Pereira Vasconcelos:
Eles tm aumentado sua fora e com especialidade o Batalho dos pretos,
o que, segundo informaes que tive da Capital, tem dado bastante ousadia
aos escravos dela, ao ponto de terem aparecido indcios de insurreio.24
O documento datado de 29 de novembro de 1837, e interessante notar que o
governo legal menciona a existncia de um batalho de pretos antes mesmo do decreto
de criao dos Libertos da Ptria, em 3 de janeiro do ano seguinte. Isso indica que o
decreto teria sido apenas o reconhecimento de uma prtica j corrente entre os rebeldes,
qual seja, a de se armarem escravos para o combate. Aos legalistas, essa prtica assumia
os terrveis contornos de ameaa ao sistema escravista. Entretanto, para os rebeldes
importava manter e garantir a lgica da escravido, conforme se nota na manuteno do
cativeiro dos africanos pelo governo revolucionrio e pelas falas de parte significativa
das suas lideranas.
A discriminao sofrida pelos libertos a rigor, escravos armados sob a
promessa de libertao , bem como a interdio da liberdade aos africanos pela
revoluo, no so experincias isoladas. Elas esto inseridas no contexto de um
Imprio que ofereceu alguns direitos a alguns libertos (apenas os nascidos no Brasil), e
no todos os direitos a todos os libertos.
O ser liberto constitua um marcador social importante no Imprio, legitimado
pela Carta Constitucional, que lhes conferia ostatus de cidados, porm lhes restringia a
22 Cf. Wanderley Pinho. A Bahia, 1808-1856. In: Srgio Buarque de HOLANDA (org.).Histria Geralda Civilizao Brasileira. Tomo II (O Brasil Monrquico), 2o. Volume (Disperso e Unidade). SoPaulo: DIFEL, 1964, p. 265.23
Hendrik KRAAY.Race, State, and Armed Forces in Independence-Era Brazil Bahia, 1790s-1840s.Stanford, California: Stanford University Press, 2001, p. 128-130.24 PAEBa, vol. 4, p. 436.
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participao poltica s eleies primrias. Segundo Andra Slemian, ainda que a
Constituio no apontasse para a condio racial dos libertos, a lei separava ainda
mais os irmos de cor pela sua condio civil e poltica.25 Alm disso importante
notar, conforme apontaram Mrcia Berbel e Rafael Marquese, que a Carta de 1824 sconferiu direitos de cidadania aos libertos nascidos no Brasil, e no aos africanos. Esta
clivagem, segundo os autores, obedeceria a critrios de naturalidade, e no de raa.26
Interessa aqui salientar, entretanto, que as distines estavam postas em termos
institucionais, no apenas para os rebeldes sabinos, mas para todo o Imprio.
Nas fileiras de luta, entretanto, a discriminao aos egressos do cativeiro
certamente refletia diversas tenses, no apenas as de ordem poltico-institucional. As
fronteiras entre livres e libertos poderiam ser reconhecidas atravs de diferentes
marcadores, sendo o mais evidente deles a aparncia fsica. Homens brancos (ou tidos
como tal), cuja cidadania no era motivo de questionamento ou debate, foram postos em
combate ao lado daqueles cuja pertena comunidade poltica da nao fora restringida
constitucionalmente, e mais, cuja aparncia evocava a experincia do cativeiro. Desta
forma, lcito afirmar que as tenses vivenciadas nas tropas da Sabinada no
expressaram apenas conflitos entre homens livres e cativos, mas podem tambm
evidenciar tenses de cunho racial, medida em que a diferena entre uns e outros era
reconhecida sobretudo na constituio fsica.
Vale tambm analisar um pouco mais detidamente as diferenciaes feitas, ao
longo da Sabinada, entre negros africanos e crioulos (nascidos no Brasil). A
historiografia aponta que este tipo de distino foi uma constante ao longo de todo o
regime escravista, sendo conveniente para sua prpria manuteno. Segundo Rafael
Marquese, desde a poca colonial havia maior facilidade de alforrias para os escravos
nascidos no Brasil. Segundo o autor, esse padro obedeceu a uma norma bsica:
quanto mais afastados da experincia do trfico negreiro transatlntico, maiores seriam
as possibilidades de os escravos e as escravas ganharem a alforria.27 A absoro dos
crioulos na sociedade escravista, na condio de libertos, servia tambm como forma de25 Andra SLEMIAN. Seriam todos Cidados? Os impasses na construo da cidadania nos primrdios doconstitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: Istvn Jancs (org.). A Independncia do Brasil: Histriae Historiografia. So Paulo, Fapesp/Hucitec, 2005, p. 834.26 Mrcia BERBEL & Rafael de Bivar MARQUESE. A ausncia da raa: escravido, cidadania e ideologia
pr-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assemblia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824). Paperapresentado Conferncia Slavery, Enlightenment, and Revolution in Colonial Brazil and Spanish
America. Fordham University, New York, maio de 2006.27
Rafael de Bivar MARQUESE. A dinmica da escravido no Brasil: Resistncia, trfico negreiro ealforrias, sculos XVII a XIX. In: Novos Estudos Cebrap 74, documento eletrnico disponvel noendereo http://www.cebrap.org.br, p. 116.
http://www.cebrap.org.br/http://www.cebrap.org.br/7/29/2019 Artigo Sankofa Nov 2010
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angariar sua colaborao para a manuteno do sistema. Marquese ressalta que para
garantir a reproduo da sociedade escravista brasileira no tempo, fundada na
introduo incessante de estrangeiros, era fundamental criar mecanismos de segurana
que pudessem evitar um quadro social tenso como o do Caribe ingls e francs oumesmo o de Pernambuco no sculo XVII. A libertao gradativa dos descendentes dos
africanos escravizados, no mais estrangeiros, mas sim brasileiros, constituiu o principal
desses meios.28
Esta prtica no passou despercebida pelos rebeldes baianos de 1837. Paulo
Cesar Souza destaca que a preocupao dos sabinos em evitar uma insurreio de
africanos levou-os a aprofundar o abismo social existente entre estes e os crioulos,
propondo a libertao apenas para o segundo grupo. Segundo o autor, o apelo aos
escravos crioulos ganha sentido no s por fortalecer o movimento, como por
enfraquecer a possibilidade de insurreio escrava geral. Ao adquirir emancipao, na
aliana com os sabinos, os crioulos comprometiam-se contra os africanos.29
O discurso e a prtica da diferenciao entre crioulos e africanos j estava
presente de forma sistmica na escravido brasileira, e na Bahia isso adquiriu contornos
ainda mais radicais. Um exemplo desta tenso entre crioulos e africanos pode ser
observado no processo de independncia na Bahia, j que aparentemente, os escravos
crioulos no pediam liberdade para os de origem africana, o que refletia a tradicional
inimizade entre os dois grupos.30
No embate poltico entre os lderes sabinos esta diferena se reitera e reconstri.
Parte do movimento considerava legtima a libertao dos escravos nascidos no pas, e
parte considerava esta proposta um absurdo, como j foi visto na Narrativa de Daniel
Gomes de Freitas. Para ele, seria correta a manuteno da escravido para todos,
nascidos no Brasil ou em frica; Freitas qualifica a libertao dos crioulos como um
procedimento nocivo. O prprio decreto de criao do batalho de libertos no pretendia
colocar em xeque o sistema escravista, prevendo que os proprietrios de semelhantes
homens sero indenizados do seu valor. 31
28 Idem p. 118.29Paulo Cesar SOUZA.A Sabinada, op. cit., p. 156.30 Joo Jos REIS & Eduardo SILVA. O jogo duro do dois de julho: o partido negro na Independncia da
Bahia. In: Negociao e Conflito. A resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Cia da Letras,1989, p. 92.31 PAEBa, vol. 1, p. 198.
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importante, portanto, analisar de que maneira o discurso pr-escravista se
desenvolveu entre os homens da Sabinada, que defendiam a estruturao de um Estado
liberal em meio a um contexto imperial.32
Em primeiro lugar, possvel afirmar que a questo do escravismo foi tratadapelos rebeldes de forma muito semelhante a seus adversrios, mantendo-se na esfera da
propriedade. Durante a represso da Sabinada, na defesa do vice-presidente rebelde
Joo Carneiro da Silva Rego, seu advogado argumentou que o crime de insurreio de
escravos jamais foi perpetrado pelos Novembristas, tampouco por Carneiro, que
senhor de escravos, e que pertence a uma famlia possuidora de uma grande poro
deles. Alm de defender seus bens, Carneiro teria tambm zelado pela propriedade
alheia, pois segundo seu defensor mandava entregar todos quantos eram [alistados] por
seus respectivos donos requisitados.33 Vale salientar que tal defesa no teve sucesso: o
homem que assinara o decreto de criao do batalho de libertos no conseguiu
convencer o jri que fosse um defensor da propriedade, e entre outros crimes, foi
condenado por insurreio de escravos.
Para compreender de que maneira o iderio liberal conjugava-se manuteno
do escravismo preciso, inicialmente, analisar o contexto histrico em que essas idias
e prticas se davam. O sculo XIX inicia-se em uma grave crise, que culminou na
desarticulao do Antigo Regime e do Sistema Colonial nas Amricas.34 Neste perodo
houve uma profunda alterao de modelos e prticas sociais, gerando novas instituies,
como por exemplo a que Dale Tomich denominou segunda escravido: The prior
interdependence of colonialism and slavery was broken up, and the conditions of
existence, function, and significance of each were modified (...). This second slavery
developed not as a historical premise of productive capital, but presupposing its
existence and as a condition for its reproduction. The systemic meaning and character of
32 Segundo Larry Tise, todo aquele que atua para a manuteno das estruturas escravistas, ainda que sejapor uma postura de no-interveno no sistema, tido como pr-escravista: by proslavery I mean quitesimply the general attitude of favoring slavery, either favoring the continuance of the institution of Negroslavery, or opposed to interference with it (...). Hence, at least in my point of view, a proslavery thinkerwas anyone who urged the indefinite perpetuation of slavery for any reason whatsoever. Larry E. TISE.
Proslavery. A History of the defense of slavery in America 1701-1840. Athens: The University of GeorgiaPress, 1987, p.xv (Preface).33
PAEBa, vol. 3, p. 235.34Cf. Fernando A. NOVAIS Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808) . So Paulo:Hucitec, 1995.
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slavery was transformed.35 Reconfigurado na teoria e na prtica, o escravismo passou a
ter seu lugar garantido em meio aos regimes liberais oitocentistas das Amricas.
Alfredo Bosi afirmou que o dilema entre escravido e liberalismo um falso
impasse. Segundo o autor, a diversidade de linhas e idias que marcou o liberalismoeuropeu permitiu sua adequao, na Amrica, a um discurso pr-escravista: Uma
linguagem ao mesmo tempo liberal e escravista se tornou historicamente possvel: ao
mesmo tempo, reflua para as sombras do esquecimento a coerncia radical-ilustrada da
inteligncia que amadurecera no ltimo quartel do sculo XVIII.36
preciso considerar, portanto, que naquele perodo o horizonte ideolgico da
sociedade escravista foi reconstrudo sobre novas bases, e que por isso o discurso liberal
dos rebeldes baianos de 1837 no era incoerente e nem limitado pela defesa do
escravismo. Neste sentido, a Sabinada exemplar em mostrar a perda de
operacionalidade dos modelos antigos e a necessidade de busca por novas idias e
prticas. A proposta de abolio condicional dos escravos, na qual apenas os nascidos
no Brasil seriam libertados, ao mesmo tempo inovadora e restritiva. Inovadora demais
para os seus contemporneos, e restritiva demais para parte significativa da
historiografia que analisou este aspecto do movimento.
Assim, a discusso realizada at aqui permite afirmar que a escravido foi uma
das questes centrais da Sabinada. Ao governo rebelde interessava a absoro de parte
da populao escrava em suas fileiras, aumentando-lhe o nmero e a fora para oferecer
combate tanto ao adversrio externo, os legalistas do Recncavo, quanto ao adversrio
interno, os escravos africanos. O critrio que delimitou a possibilidade de libertao
para os escravos durante a revoluo foi o nascimento em territrio brasileiro, de modo
a reiterar as clivagens j correntes na Bahia e no Imprio.
A disposio do comando rebelde de incorporar egressos do cativeiro aos
batalhes revolucionrios esbarrou, contudo, na resistncia das prprias autoridades
militares do Estado Independente e dos soldados j assentados, que se recusaram a
dividir espao com os novos recrutados. O limite da incorporao dos supostos libertos
seria, portanto, a evidncia de sua relao com o cativeiro exposta na aparncia e na cor
35Dale TOMICH. The second slavery: bonded labor and the transformation of the Nineteenth-Centuryworld economy. In: Through the prism of slavery. Labor, capital and world economy. Boulder, Co.:
Rowman & Littlefield, 2004, p. 61.36Alfredo BOSI. A escravido entre dois liberalismos. In: Revista Estudos Avanados v.2 n.3. SoPaulo: set./dez. 1988, p. 17.
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da pele. Era impossvel a eles misturar-se aos demais sem que sua condio estivesse
estampada no rosto.
Aos legalistas, a possibilidade de se armar e libertar escravos para a luta
revolucionria na capital delineou-se como ameaa a toda a lgica do sistemaescravista, sobre a qual o edifcio de seu poder estava construdo. Desta forma, os
envolvidos com a participao de escravos na Sabinada desde lderes at soldados
foram exemplarmente punidos por insurreio escrava, como se escravos fossem.
A inteno demonstrada pelo comando rebelde ao longo de toda a sua estada no
poder foi, contudo, a de manter a escravido no Estado Independente, no apenas para
os africanos como tambm para os crioulos que no se dispusessem a lutar pela causa.
Evitar a insurreio de escravos tambm era parte dos objetivos rebeldes, que
afirmavam, a todo momento, ter os cativos sob controle. A escravido, inclusive para os
liberais radicais, era algo perfeitamente legtimo e compreensvel na esfera da
propriedade, direito mximo a ser preservado. Vale questionar, portanto, se a populao
escrava tinha pensamentos to moderados em relao ao cativeiro durante a Sabinada.
Nas brechas da revoluo: resistncia escrava durante a Sabinada
Os senhores de terras e escravos sabiam que a revoluo na capital era um
momento propcio a todo tipo de contestao da ordem, e preveniram-se de todas as
formas contra a ameaa mais radical, que seria a fissura da ordem escravista ou a
emergncia de um movimento escravo organizado.
Joo Jos Reis aponta que as situaes de confronto entre os homens livres eram
momentos favorveis expresso das tenses prprias escravido, alimentando uma
tradio da audcia entre os escravos da Bahia. As revoltas escravas ocorriam
principalmente nos momentos em que o sistema de controle diminua: feriados,
domingos e dias santos, perodos de instabilidade social e desordens. 37
De fato, a Sabinada representou aos cativos da Bahia um momento adequado
prtica da resistncia. Para alm dos boatos de insurreio divulgados entre os
legalistas, encontram-se registros de aes rebeldes escravas que podem ser associadas
ao momento especfico da revoluo. Este parece ser o caso do proprietrio Jos Maria
Pereira, que relatou ao chefe de polcia a seguinte situao:
No dia 4 de dezembro prximo passado soube por comunicao de minha
senhora que o preto Joo, por mim arrematado, no querendo fazer
37 J. J. REIS.Rebelio escrava no Brasil, op. cit., p. 69.
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absolutamente nada, e mesmo dizendo que era livre, e que no queria
servir, tornando-se embirrante no seu pensar, fora levemente castigado
com bolos, e que em virtude disto tinha desaparecido de casa, e que apesar
de grandes esforos em sua procura pelo mato e todo aquele contorno
nenhuma notcia havia ainda dele.38
Nota-se que o escravo Joo sentiu-se no direito de afrontar sua senhora durante a
Sabinada, sentindo-se livre durante a vigncia do Estado Independente. Sua birra
parece ter aumentado em muito depois do leve castigo que tomou para se lembrar de
sua condio. Desapareceu e, ao que indica o documento, at junho do ano seguinte
ainda no tinha sido encontrado.
So dois os aspectos que chamam a ateno neste relato. O primeiro deles que
esta atitude foi tomada pelo escravo antes que o governo rebelde acenasse com a
possibilidade de abolio. Joo libertou-se no incio de dezembro de 1837, e o decreto
de criao do Batalho de Libertos da Ptria viria somente em janeiro de 1838. 39 Alm
disso, a abolio prevista pelo movimento foi restrita aos escravos nascidos no Brasil. O
escravo em questo, segundo sugere o termo preto, provavelmente era de origem
africana, estando portanto fora dos quesitos necessrios para ser aceito nas foras
rebeldes. Destaca-se, portanto, a identificao que este preto teve com o movimento,
considerando-se livre e enfrentando a violncia de seus senhores. O documento sugere
que o tempo da revoluo pode ter delineado aos olhares dos escravos um horizonte de
libertao, e alguns deles tomaram ao p da letra a possibilidade de fugirem ao cativeiro
amparados pelo novo regime. No caso do escravo Joo, observa-se que a Sabinada no
o libertou, mas ele libertou-se em virtude da Sabinada. A Sabinada no era um
movimento simptico aos africanos, mas este africano foi, ao que o relato indica, muito
simptico revoluo.
O engajamento de escravos tanto crioulos como africanos nas fileiras
rebeldes foi freqente, mas nem sempre voluntrio. A idia de que a Sabinada foi um
momento de congraamento geral entre os negros, identificados a um projeto poltico
que dissesse respeito diretamente s suas demandas, pode portanto ser relativizada. A
prtica do recrutamento forado de homens negros pelo governo rebelde demonstra que
nem todos os homens de cor estavam envolvidos voluntariamente no movimento, e que
o movimento lidou de maneira violenta com alguns deles.
O testemunho de Maria Rita Ferraz d indcios desta prtica. Ela afirma que
38APEBa, seo de arquivo colonial e provincial, mao 2837 04 de junho de 1838.39 PAEBa, vol 1., p. 198.
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em conseqncia da gloriosa Proclamao da Independncia do Estado
assentaram praa vrios escravos da Suplicante em diferentes Batalhes
existentes em diversos pontos, como sejam. Paulo: pardo; Leocdio: idem;
Jos crioulo, Gabriel idem, e Matheus idem, acontece porm que esteltimo sendo preso para o dito fim.40
Por isso, ela pede ao Ministro da Guerra Daniel Gomes de Freitas que por um
despacho de V. Exa. fique o escravo da suplicante denominado Matheus da Cruz isento
das prises para recrutamento. Como resposta ao requerimento, Daniel Gomes de
Freitas categrico ao afirmar que este Governo no ordenou a priso de escravos,41o
que reitera sua j comentada disposio em manter a escravido dentro dos limites
sagrados da propriedade.
Semelhante o caso de Domingos Francisco dOliveira,
que tendo um escravo crioulo de nome Jos, (...) fora este mesmo escravo
preso pelos rebeldes que lhe sentaram praa, apesar das reclamaes que
[duas palavras ilegveis] o Suplicante, cujo escravo se acha [ilegvel]
presente preso, e como sua propriedade, que fora lhe fora tirada, vem
reclamar a V. S. a sua entrega.42
Neste caso, contudo, o governo revolucionrio parece no ter devolvido o
escravo ao seu senhor. Com a entrada das foras legalistas na cidade, o escravo fora
preso como rebelde e seu senhor mais uma vez ficou a ver navios. Ao que indica a
documentao, no obteve de volta sua propriedade. importante destacar que este
requerimento descreve mais um caso em que o Estado Independente prendeu um
escravo, desrespeitando a autoridade exercida por direito pelo seu proprietrio; isso
informa que a participao de negros na Sabinada foi, em alguns casos, resultado de
uma imposio, e no de um engajamento voluntrio pela causa. As foras legalistas,
contudo, no levaram nada disso em conta no momento da restaurao, punindo
igualmente negros voluntrios e negros recrutados fora pelo movimento rebelde.
Consideraes finais.
Ao realizar a experincia de reunir escravos, ainda que sob a promessa de
libertao, a homens livres em suas fileiras, a Sabinada explicitou a existncia da
discriminao no apenas em relao condio jurdica como tambm condio
40
APEBa, seo de arquivo colonial e provincial, mao 2837 s/d.41 Idem.42 Ibidem.
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fsica, j que a aparncia dos libertos da Ptria evocava a experincia infame do
cativeiro. A escravido, eixo prtico e simblico que articulava e alimentava a
discriminao maioria negra, foi cuidadosamente mantida pelo governo rebelde, cujo
liberalismo protegia ao menos em tese todo e qualquer direito de propriedade.Longe de ser um consenso, a presena negra trazia aos sabinos a desconfortvel
proximidade das demandas sociais desses grupos, tradicionalmente marginalizados, e
servia tambm sua desqualificao perante os adversrios. Os valores do escravismo e
das fronteiras sociais que lhe so subjacentes estavam to arraigados entre as lideranas
revolucionrias que informaram embates e discordncias entre elas.
A possibilidade de participar da fundao de um Estado Independente, por um
lado, e a desorganizao social e senhorial, por outro, fizeram da Sabinada um episdio
propcio prtica da resistncia e rebeldia entre os escravos da Bahia tanto os
nascidos no Brasil, relativamente bem-vindos pelo governo sabino, como os africanos,
que cavaram seus espaos na revoluo revelia das ordens expressas pelo comando
revolucionrio. A presena de escravos e homens de cor no movimento alimentou, entre
os legalistas que combatiam a Sabinada, a circulao de boatos de insurreies o que
acabou por justificar uma fortssima reao quando da retomada da capital baiana em
maro de 1838.
Atentos aos passos dos rebeldes, os legalistas notaram prontamente o perigo que
havia, no contexto da revoluo, de uma unio poltica efetiva entre negros de diferentes
origens e estatutos jurdicos. Este perigo se evidenciava, sobretudo, na imagem
construda em torno do militar rebelde Santa Eufrsia, cujo batalho teria reunido
crioulos e africanos, e cuja figura evocava liderana entre os homens negros da cidade
em guerra. A luta empreendida pelos legalistas contra o movimento da capital passou a
ser uma cruzada em defesa do escravismo e da manuteno das fronteiras sociais e
raciais tais como eram tradicionalmente praticadas desde tempos coloniais.
Finalmente, vale dizer que a Sabinada oferece um vislumbre do horizonte social
a partir do qual seria construdo e consolidado o iderio do chamado racismo
cientfico, na segunda metade do sculo XIX. Este, entretanto, um caminho
investigativo a ser percorrido mais adiante.
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