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TTTTT atiana Motta Lima

“Como será que isso era esse som que hojesim gera sóis dói em dós. Aquele que consi-dera a saudade uma mera contraluz que vemdo que deixou para trás não esse só desfaz osigno e a rosa também”. Trecho da música“Genipapo Absoluto” de Caetano Veloso.

“O cantor que ‘se esquece de si mesmo’ nocanto (...) e o canto que ‘recorda’ (....) O can-to se revela através do atuante, enquanto oser humano o faz através do canto”. Trechode artigo de Kris Salata no qual fala sobre otrabalho realizado sobre os cantos na “artecomo veículo” (Salata, 2007, p. 241).

memória talvez seja uma das ‘palavras pra-ticadas’1 de Grotowski mais difíceis de seranalisadas porque ela envolve uma série deinvestigações que, ultrapassando larga-mente uma noção mais estrita de teatro,

diz respeito a uma certa percepção de si experien-ciada pelo atuante. A noção esteve eminente-

mente relacionada a um trabalho sobre si reali-zado pelo atuante, ou, dizendo mais claramen-te, sobre aquilo que é ou pode vir a ser experien-ciado como si. Podemos ainda inverter asentença e dizer que a memória é, no percursode Grotowski, uma experiência que permitiuque o atuante ‘relaxasse’ uma certa percepçãomais habitual – e pretensamente estável – da suaprópria subjetividade.

A noção de memória no percurso deGrotowski jamais foi fixa, tendo assumido dife-rentes formas ao longo de suas investigações.Esta é uma das razões por que ela permite (eexige) um trabalho de fôlego do pesquisadorque a ela se dedique. No âmbito desse artigo,trabalharei apenas sobre alguns pontos que con-sidero mais relevantes para uma aproximaçãocom essa noção/prática. Para levantar esses pon-tos, vou me debruçar – ainda que de maneiraimpressionista – sobre duas experiências: otrabalho de Ryszard Cieslak em “O Príncipeconstante”, espetáculo de Grotowski de 1965,e “The Letter”, Action2 dirigida por Thomas

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Tatiana Motta Lima é atriz e professora do Departamento de Interpretação e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO.

1 No sentido de colaboração entre conceito e experiência na obra de Grotowski.2 Action é o nome que se dá as obras da ‘arte como veículo’, principal vertente de trabalho do Workcenter

of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.

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Richards3, e que foi desenvolvida no Workcenterof Jerzy Grotowski and Thomas Richards nos úl-timos anos4. São obras extremamente diferen-tes e que dizem respeito a momentos, além dedistantes entre si no tempo, também distantesnas intenções e investigações dos artistas envol-vidos. Por outro lado, são obras que permitemuma aproximação com certas maneiras de con-siderar e experimentar a memória presentes nopercurso de Grotowski e de seus colaboradores.

Dividi, portanto, essa ‘aproximação’ emduas sessões que chamei de: 1) “O Príncipeconstante” ou a memória da organicidade e 2)“The Letter” ou a memória do “eu-ninguém”.Essa divisão não significa necessariamente quecada uma das obras tratava a memória de ma-neira totalmente diferente, mas, apenas, quecada uma delas me permitiu enxergar certasfacetas que considero importantes para estudaressa questão na obra de Grotowski.

1. “O Príncipe constante”1. “O Príncipe constante”1. “O Príncipe constante”1. “O Príncipe constante”1. “O Príncipe constante”ou a ou a ou a ou a ou a memóriamemóriamemóriamemóriamemória da da da da da organicidadeorganicidadeorganicidadeorganicidadeorganicidade

A história é conhecida: em 1990, em um en-contro dedicado a Ryszard Cieslak que haviafalecido no mesmo ano5, Grotowski revelou o

que chamou de alguns segredos sobre o trabalhodeste ator no espetáculo “O Príncipe constan-te”. Contou que Cieslak não havia, de modoalgum, trabalhado sobre a construção do prínci-pe Ferdinand, personagem central da peça, masque havia feito o seu trabalho a partir de umamemória precisa de um período da sua adoles-cência no qual o ator tinha vivido sua primeiragrande experiência amorosa (sensual/sexual).

Grotowski afirmou que a memória psico-física dessa experiência – que durou em média40 minutos – era atualizada (através de ações fí-sicas), principalmente durante os três monólo-gos realizados pelo ator ao longo do espetáculo.O personagem do príncipe – e seu drama –aconteciam, segundo Grotowski, apenas na‘mente do espectador’. Grotowski, como espec-tador de profissão6, preparava essa possibilidadede ‘leitura’ para o espectador tanto através dopróprio texto do espetáculo, quanto através dacomposição entre a ação de Cieslak e os outroselementos da peça, como o cenário, os figuri-nos e o trabalho dos outros atores A cena pre-parada por Grotowski dava a ver ao espectadornão a memória de juventude de Cieslak, mas ahistória de um príncipe cristão que se recusava,até o fim, a renegar sua fé diante dos mourosque o haviam aprisionado7.

3 Thomas Richards é diretor do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, localizado emPontedera, Itália.

4 The Letter foi o nome dado pelo Workcenter, em abril 2008, a essa Action. Em 2005, ela começou a serestruturada e chamava-se , naquele momento, Action en Création.

5 Esse relato foi feito em 9 dezembro de 1990 na sala do Théâtre de l’Odéon, Paris. A palestra foi publicadasob o título ‘Le Prince constant de Ryszard Cieslak” no livro Ryszard Cieslak, acteur-emblème des annéessoixante, de 1992.

6 É assim que Grotowski chamava o encenador – aquele que preparava a história que ia ser percebidapelo espectador – no artigo “O diretor como espectador de profissão”. Esse artigo, baseado em umaintervenção de Grotowski feita em Volterra em 1984, foi publicado tanto na revista Máscara de janeirode 1993, quanto no livro Il Teatr Laboratorium de Jerzy Grotowski 1959-1969, p. 241-57.

7 Seria faltar com a verdade deixar de dizer que Grotowski percebia este trabalho em torno da narrativacomo uma forma de aquietar a mente do espectador (para que ele não ficasse se perguntando o que oespetáculo queria dizer) permitindo que outros canais de recepção/percepção fossem abertos para rece-ber e se confrontrar com a investigação que estava ocorrendo no ator.

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Creio que essa história deu origem a al-guns mal entendidos que obscureceram a po-tência – e a descoberta – do trabalho sobre amemória realizado com (e por) Cieslak em “OPríncipe constante”. Há, em geral, uma pressa– tanto por parte de artistas como de pesquisa-dores – por retirar de cada experiência relatadapor Grotowski uma ‘metodologia’ de trabalho,um ‘como fazer’. Falta um ‘demorar-se’ frenteaos relatos de Grotowski que é, de certa forma,um ‘demorar-se’ frente aquilo que pode ser ain-da desconhecido, um ‘demorar-se’ frente ao ou-tro e a especificidade de sua investigação.

Na tentativa de retirar uma ‘metodologia’dessa experiência realizada por Cieslak, estabe-leceu-se uma fórmula que pode ser descrita maisou menos assim: trabalha-se sobre uma memó-ria importante para o ator, recupera-se essa me-mória em um trabalho com ações físicas (e tam-bém essa noção não é de todo investigada) e,depois,coloca-se essa memória dentro de umacena ‘outra’ que não se refere e nem revela a pró-pria lembrança, mas que a utiliza como uma es-pécie de combustível invisível para uma certaintensidade teatral.

Mas será que essa fórmula nos aproximadaquilo que foi experimentado em “O Príncipeconstante”? Será que não construímos com essa‘metodologia’ rápida uma noção/prática de me-mória mais fraca do que aquela relatada porGrotowski em 1990? E gostaria de ressaltar oadjetivo ‘fraca’ que utilizei na frase anterior, poisnão se trata aqui de criticar como ‘errados’ cer-tos approaches ou ‘relembrar’ uma qualquer ‘ver-dade’ grotowskiana que estaria sendo esquecidaou pervertida. Não trago nenhuma ‘boa nova’(ou ‘velha’, já que Grotowski trabalhou no sé-culo passado!). Minha intenção (e interesse) éque, a partir de um exame crítico, possamos dis-cutir a maneira como, através de nossas ações

teatrais (ou de outro tipo), estamos conceituan-do/praticando as noções de corpo, memória esubjetividade no trabalho do atuante.

A idéia não é, portanto, a de trazer pro-cedimentos ‘corretos’, e criticar aqueles que este-jam sendo utilizados, mas de colocar em questãocertas categorias – que são, ao mesmo tempo,certas práticas – com que pensamos sobre aatuação. E, nesse sentido, o ‘diálogo’ com Gro-towski (esse jurássico, como dizia em tom depilhéria Flaszen, referindo-se a Grotowski e a elepróprio) pode ser extremamente proveitoso.

O que considero importante, em primei-ro lugar, é que o trabalho sobre a memória rea-lizado por Cieslak no espetáculo “O Príncipeconstante” não foi baseado em um método ‘uti-litário’ de construção de cenas. A memória nãoera vista como um arquivo acessável a ser utili-zado pelo ator e pelo diretor para construção deuma cena ‘intensa’. Ela foi, ao contrário, a pos-sibilidade de fugir – ou alargar, ou relaxar – dosarquivos da biblioteca habitual atrás de arqui-vos (e mesmo esse termo deixa a desejar, já quedesconhece a relação de transformação realiza-da em mão dupla entre a memória e o atuante)esquecidos, renegados; de arquivos ‘selvagens’,não adestrados.

O trabalho sobre aquela memória de ado-lescência foi para Cieslak a descoberta do queGrotowski veio a chamar de organicidade. Foi adescoberta, dentro do Teatro Laboratório (T.L.), de uma nova abordagem, de uma nova re-lação – diferente daquela que operava até então– com o corpo, com o outro e com o mundo.

Flaszen em entrevista concedida em1977,8 chegou mesmo a afirmar que “a primeiraaceitação da natureza-corpo-fisiologia apareceu[no Teatro Laboratório] em ‘O Príncipe cons-tante’ com Cieslak. Até então, tudo que tinha aver com natureza e corpo era deformado (...) Da

8 Importante ressaltar que essa era a época do “parateatro”, época de crítica veemente à própria noção deteatro que era considerado como mais um dos meios de evitar o encontro verdadeiro entre os homens.Segundo Flaszen, o parateatro era também um tempo de aceitação do corpo-natureza-fisiologia, “becauseit is – as it is – ugly or lovely. It is” (Flaszen, 1978 [1977], p. 321).

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mesma maneira, os motivos do mundo eram de-formados” (Flaszen,1978 [1977], p. 321).

Cumpre, agora, ver o que essa noção deorganicidade ou de consciência orgânica – forte-mente ligada à memória – trouxe ao trabalho doT. L. E talvez o ponto mais importante tenhasido exatamente aquela ‘aceitação do corpo’, apossibilidade de experimentar o corpo comonão dissociado da psiquê, da mente, do espírito;tenha sido também a possibilidade de fugir daintrospecção (e da consequente separação entreinterno e externo) e de perceber o corpo atravésdo contato e da experiência da prece carnal.9

Vejamos a citação onde essa segunda no-ção aparece:

Isto se referia àquele tipo de amor [Grotowskifalava da memória trabalhada por Cieslak em“O Príncipe constante”] que, como só podeacontecer na adolescência, carrega toda suasensualidade, tudo que é carnal, mas ao mes-mo tempo, carrega, por detrás disso, algumacoisa de totalmente diferente, que não é car-nal ou que é carnal de uma outra maneira eque é muito mais como uma prece. É comose, entre esses dois aspectos, se criasse umaponte que é uma prece carnal 10 (Grotowski,1992 [1990], p. 17; itálicos meus).

O que estava em jogo naquela lembrançatão bem localizada no tempo – 40 minutos najuventude – e no espaço, era a lembrança de umaexperiência de não dissociação entre o que, se-gundo Grotowski, geralmente, percebemos comodissociado, ou seja, o eu e o outro, o corpo e omental, o interior e o exterior, a prece e a carne.

A memória era a de um primeiro encon-tro amoroso/sexual vivido pelo ator. Mas, o que

se buscava não era exatamente restaurar o mo-mento vivido, recuperá-lo a fim de apresentá-loposteriormente de forma mais ou menos realis-ta (ainda que não revelada). O que se buscavaera, através desse momento/memória, através doque ali tinha se passado a nível psicofísico – ou,se quisermos, a nível energético –,”decolar nadireção dessa prece impossível” (Grotowski,1992 [1990], p. 17). A partitura final do atorservia de base concreta – de pista de decolagem– para aquela prece carnal.

A lembrança do ato amoroso estava escri-ta no corpo de Cieslak e quando realizada emseus impulsos – não trucada, não manipulada –trazia, nela mesma, um espaço de liberdade, denão dissociação; trazia um corpo esquecido, es-condido, mas, talvez, já experimentado naqueleencontro sexual da adolescência do ator. Perce-bemos aqui que não se tratava de debrucar-sesobre uma qualquer memória que fosse impor-tante para o ator, mas de tocar uma certa quali-dade de memória capaz de relembrar/criar umaoutra percepção de/do si mesmo.

Não cabe nesse texto discutir o percursode investigação realizado no T.L, mas devo lem-brar que o termo ato total foi criado por Gro-towski exatamente para ‘nomear’ a experiênciade Cieslak em “O Príncipe constante”. E pode-mos dizer que uma das características da noçãode ato total era justamente a indissociação entreo corpo e o mental. O trabalho realizado porCieslak, a partir e através de sua lembrança deadolescência, permitiu a ele (e também a Gro-towski) descobrir um corpo que, totalmenteaceito na sua corporeidade, sexualidade, carna-lidade, fosse ao mesmo tempo, e justamente porconsequência dessa aceitação, um corpo lumi-noso, de prece.

9 A noção de contato é contemporânea da de organicidade, e a noção de prece carnal, embora tenha apare-cido em conferência de 1990, faz eco com a influência que os escritos de San Juan de la Cruz tiveramno processo de construção do espetáculo “O Príncipe constante”.

10 Todas as citações de Grotowski, Richards e Biagini foram traduzidas por mim. Para as traduções emitaliano, contei com a revisão de Ricardo Gomes, ator, diretor e professor da UFOP .

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Assim, parece-me que não ficamos como mais forte da experiência de Cieslak se in-tentamos transformá-la em um método queacaba, de certa maneira, por coisificar a me-mória e que trabalha, assim, exatamente sobreuma dissociação.

O fragmento de Mario Biagini11 que citologo abaixo refere-se exatamente aos perigos des-sa operação que busca transformar certos pro-cessos criativos em procedimentos produtivos:

Quando você se aproxima daquilo que fazcom uma plataforma programática, corre orisco de esquecer aquilo que você estava fa-zendo junto com a motivação real pela qualo estava fazendo – a raiz escondida, ligada àssuas necessidades – e confunde a motivaçãocom o projeto. O projeto se torna prioritário:deve defendê-lo a todo custo (...) o trabalhose transforma em uma máquina para produ-zir princípios técnicos ou éticos (Biagini,2007a, p. 26).

Gostaria, ainda, antes de passar para apróxima sessão, de levantar certos pontos queexplicitam um pouco mais uma noção de me-mória que esteve relacionada tanto ao espetá-culo “O Príncipe constante”, quanto aos textosde Grotowski da segunda metade da décadade 1960.

O ponto número um diz respeito à no-ção de contato. Levando em consideração essanoção importante para Grotowski, livramo-nosde entender o seu trabalho sobre a memóriacomo um trabalho que envolvesse qualquer tipode manipulação psíquica. Podemos dizer queaquele trabalho fugia de apoiar-se na introspec-ção, na auto-observação, na autocomiseração ouna autovalorização, abordagens que podem apa-recer quando se trabalha com certas memóriaspessoais. Para Grotowski, o ator não deveria fi-car concentrado “no elemento pessoal como umtipo de tesouro” (...), “procurando a riqueza de

suas emoções”. Esse seria “uma ator que apenasestimularia artificialmente o processo interno,um ator imerso em uma espécie de narcisismo”(Grotowski, 1987 [1966], p. 191). O trabalhocom/sobre a memória em Grotowski não visa-va à introspecção ou à restauração do passado.Ao contrário: o contato, para realizar-se, reque-ria o tempo presente, requeria o ato. De certamaneira, o trabalho baseado na memória aomesmo tempo relembrava e presentificava aque-le corpo do – e para o – contato.

Estar em contato significava, concomitan-temente, perceber o ‘outro’ e reagir intimamen-te de acordo com essa percepção. Grotowskicontrapunha o contato, que forçaria o atora modificar o seu jeito de agir, ao padrão que“está sempre fixo” (Grotowski, 1987 [1966],p. 187). Também importante na ideia de conta-to é que a reação não era nem premeditada, nemresolvida a posteriori: o contato pressupunhauma escuta que era imediatamente reação.

Pode-se também dizer – ponto númerodois – que, nos textos de Grotowski, rememoraré, para o ator, um avizinhar-se de recursos inex-plorados. O trabalho realizado com as lembran-ças íntimas dos atores só tinha importância seas lembranças trabalhadas se apresentassemcomo desafios: se guardassem, para o ator, se-gredos importantes nos quais ele pudesse pene-trar e conhecer (sempre através do contato).

No trabalho com as lembranças estavaimplícita a idéia de autopesquisa e de risco, idéiasnucleares para pensarmos o trabalho do ator noT. L. Grotowski acreditava que o trabalho deator só se realizava quando estava voltado paraa busca do “desconhecido dentro de nós”. O tra-balho sobre a memória não era, portanto, aque-le de reprodução no corpo do já conhecido, masum trabalho ativo de descoberta do ‘desconheci-do no corpo’, ou de um ‘corpo desconhecido’.

Le Goff disse em um de seus textos que a“memorização pelo inventário, pela lista hierar-quizada” não era “unicamente uma atividade

11 Mario Biagini é diretor associado do Workcenter.

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nova de organização de saber, mas o aspecto daorganização de um poder novo” (Le Goff, 2003,p. 426). Podemos fazer uma analogia e dizer queGrotowski não se interessava, no trabalho coma memória, pelo inventário, pela recuperação deuma qualquer lista de fatos passados; enfim, nãose interessava por essa ‘narrativa’ de um si mes-mo privado e estável, ‘narrativa’ que podia seapoderar do corpo do ator – exercer sobre eleum saber/poder – quando este estivesse buscan-do trabalhar sobre a memória. O trabalho so-bre a memória, ao contrário, era um afrontardas crenças, dos automatismos e dos condicio-namentos impetrados por essas ‘narrativas’, poresses ‘padrões fixos’.

Grotowski opunha a noção de um corpodomesticado àquela de um corpo liberado. Nocorpo domesticado era o mental que estava nocomando. As reações corporais no corpo domes-ticado eram vistas por Grotowski como cortadas(Grotowski, 2007b [1969], p. 169), nãocompactuando com o fluxo orgânico, mas, aocontrário, por sua premeditação, pela conscien-tização do movimento, pelo vontade de contro-le do corpo, pela mecanicidade, e pelo automa-tismo dos gestos, se opondo, resistindo àquelefluxo. A memória em Grotowski era trabalhadadentro do dinamismo, do fluxo da vida e não apartir de um controle exercido a partir de umanarrativa mental12.

Nas noções de corpo-memória e corpo-vida, noções de Grotowski do final da décadade 1960, a noção de memória não era anteriorà noção de corpo; não se tratava, portanto, de“realizar a imagem da recordação evocada ante-riormente nos pensamentos” (Grotowski, 2007a[1970], p. 205-6; itálico meu).

Grotowski dizia, por exemplo:

Quando no teatro se diz: procurem recordarum momento importante da sua vida e o atorse esforça por reconstruir uma recordação,então o corpo-vida está como em letargia,morto, ainda que se mova e fale... É pura-mente conceitual. Volta-se às recordações, maso corpo-vida permanece nas trevas. Se per-mitirem que seu corpo procure o que é ínti-mo (...), nisso há sempre o encontro (...) eentão aparece o que nós chamamos de im-pulsos (Grotowski, 2007a [1970], p. 205-6).

Da mesma forma, quando falava em asso-ciações, Grotowski precavia os ouvintes contra aidéia de uma interioridade mais enunciada men-talmente do que organicamente experimentada:

As associações são ações que se ligam a nossavida, a nossas experiências, a nosso potencial.Mas não se trata de jogos de subtextos ou depensamentos. Em geral, não é algo que sepossa enunciar com palavras (...) Esse sub-texto, esse pensar é uma tolice. Estéril. Umaespécie de adestramento do pensamento, éisso, e só isso. Não é necessário ‘pensar’ nis-so. É necessário indagar com o corpo-memó-ria, com o corpo-vida. Não chamar pelo nome(Grotowski, 1993 [1969], p. 25).

É nesse mesmo sentido que Grotowskidizia que o corpo não tinha memória, como sese tratasse de um bem a ser acessado ou possuí-do, mas que ele era, ele mesmo, memória:

Pensa-se que a memória seja algo de inde-pendente do resto do corpo. Na verdade, aomenos para os atores, é um pouco diferente.O corpo não tem memória, ele é memória.

12 Creio que estas palavras de Beckett, em seu livro sobre Proust, referem-se à mesma coisa: “O mais bemsucedido experimento de evocação é incapaz de projetar mais do que o eco de uma sensação passada,porque, como um ato intelectivo, está condicionado pelos preconceitos da inteligência, que abstrai decada sensação, como sendo ilógico e insignificante, como um intruso discrepante e frívolo, qualquergesto, palavra, perfume ou som que não se possa enquadrar no quebra-cabeça de um conceito” (Beckett,1986, p. 57-8).

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O que devem fazer é desbloquear o corpo-memória (Grotowski, 2007b [1969], p. 173).

Assim, as associações, as lembranças, notrabalho, eram “evocadas sem premeditação”,eram “sensuais se podemos dizer assim” (Gro-towski, 1973 [1972], p. 74).

Enfim, ao nos demorarmos um poucomais frente ao relato de Grotowski sobre o tra-balho de Cieslak em “O Príncipe constante”,vemos a crítica a uma relação mecânica e uti-litária com a memória em favor de uma con-cepção dinâmica, na qual uma certa memóriaindividual é ponte para uma consciência orgâni-ca, para um outro modo de estar, para uma ou-tra corporeidade.

2. 2. 2. 2. 2. The LetterThe LetterThe LetterThe LetterThe Letter ou a ou a ou a ou a ou a memóriamemóriamemóriamemóriamemóriado do do do do eu-ninguémeu-ninguémeu-ninguémeu-ninguémeu-ninguém

Sem ter pretendido dar conta de forma exausti-va da noção/experiência da memória em “OPríncipe constante”, mas esperando ter levanta-do alguns pontos importantes, passo, agora, àsegunda sessão do texto. No confronto entre acomplexidade do trabalho desenvolvido noWorkcenter e as necessidades e limites desse tex-to, optei por enfatizar apenas certas idéias vin-culadas à noção de memória. Idéias que pudedepreender das práticas e dos textos relaciona-dos à arte como veículo. Não me detive, portan-to, nem em apresentar e nem em analisar as in-vestigações e os processos realizados ali13.

The Letter é o título mais recente de umaAction que vem sendo trabalhada no Workcenterpelo menos desde o ano de 2005. A obra utilizacomo “texto-memento14 para o atuante” (Salata,2007, p. 233), o “Hino da Pérola” dos Atos doapóstolo Tomé.

Richards disse que esse era um texto so-bre “o esquecer e o recordar” e resumiu, assim,a história que aparece ali:

O personagem principal da história é ummenino. (...) Os seus pais preparam-no parauma viagem e lhe dão uma tarefa. É necessá-rio que vá a um lugar distante, abandonandoa sua casa. Não é certo que voltará: os paismandam-no para longe e dizem-lhe que po-derá voltar somente se encontrar algo chama-do a pérola. Uma pérola. Eles dizem-lhe quedeve achar essa pérola, que está guardada poruma serpente devoradora. A serpente é peri-gosa, gosta de comer; então, o protagonistadeverá encontrar a maneira de roubar a péro-la da serpente. Se realizar sua tarefa, voltarápara casa, caso contrário, não. Na primeiraparte da viagem, o menino está conscientedaquilo que deve fazer. Chega muito pertoda serpente, vive nas proximidades. Depois,encontra os habitantes desse novo país e sen-te-se atraído por eles. Começa a se vestir comoeles, a comer a comida deles, e gradualmenteesquece a tarefa recebida. Os pais se dão con-ta de longe do que está ocorrendo e procu-ram um modo de lhe fazer chegar uma men-sagem, algo que faça com que ele recorde que

13 Remeto o leitor que quiser suprir essa lacuna ao livro “Il Workcenter of Jerzy Grotowski and ThomasRichards”, organizado por Antonio Attisani e Mario Biagini e editado pela Bulzoni Editora em 2007.Desse livro, retirei quase todas as citações que utilizei nessa sessão do texto. Em português, pode-se lero texto de Grotowski “Da cia Teatral à arte como veículo” publicado no livro “O Teatro laboratório deJerzy Grotowski, 1959-1969, organizado por Carla Pollastrelli e Ludwik Flaszen e publicado em parce-ria pelas Editoras SESC e Perspectiva. Também eu, em artigo publicado na Revista do Lume número 1,fiz uma pequena introdução à arte como veículo.

14 Salata explica esse termo dizendo que a direção do trabalho tende mais a reatualizar (to re-enact) ahistória do que a representá-la (to re-present it).

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está em viagem e que há algo que deve descobrir(Richards, 2007, p. 114; itálicos meus).

Richards, logo à frente, faz uma analogiaentre essa história contada nos atos do apóstoloe todo o trabalho realizado na arte como veículo:

Esqueci alguma coisa? Esta pergunta é fun-damental no nosso trabalho (...) Todos nóstivemos momentos nos quais a vida se tornacomo uma pérola, torna-se de repente resplan-decente, transparente, alguma coisa especialque não se pode descrever com palavras. Onosso modo de perceber a vida, o modo comoela nos atravessa torna-se luminoso. Mas sãomomentos efêmeros, passageiros, aparecempor alguns segundos e depois se esvanecem.Como podemos voltar de novo e de novo atocar esta qualidade? O nosso trabalho estáligado a esta tentativa. O trabalho sobre oscantos, sobre as ações, sobre o texto, é umamaneira de tentar recordar. E a história con-tada no texto, como eu a entendo, fala dessamesma luta – não esqueça (Richards, 2007,p. 114; itálicos meus).

“The Letter”, como vimos, fala, portan-to, de um esquecer e de um relembrar. O textosob o qual se debruça essa Action já havia sidotrabalhado inúmeras vezes por Grotowski emdiferentes momentos do seu percurso e com di-ferentes grupos. O que seria para Grotowski essaamnésia e o que seria essa rememoração, ou essa‘volta para casa’? Haveria, talvez, certas manei-ras de pensar a memória que participariam maisda ‘amnésia’, do ‘esquecimento’, e outras quepermitiriam a experiência implicada na artecomo veículo?

No intuito de aproximarmo-nos dessasquestões, trabalhemos um pouco sobre o frag-mento de texto citado logo acima. Em primei-ro lugar, a memória que parece interessar aRichards está ligada a uma espécie de aconteci-mento. Ele fala de uma qualidade que pode sertocada através da experiência ou, ainda melhor,

de uma qualidade que marca um certo tipo deexperiência. Tocar essa qualidade/experiência se-ria, então, ‘rememorar’.

Em segundo lugar, a memória que o ten-ta está permanentemente sujeita ao esquecimen-to; por essa memória é preciso empreender umaluta – realizar um trabalho, experienciar umprocesso. Ela não é, portanto, uma memória jádomesticada pela história, pelo inventário (so-cial ou individual) pela lista ou pelo arquiva-mento; não é aquela memória da qual já toma-mos ‘posse’ e que permite (é) uma narração maisou menos estruturada e estruturante das identi-dades que também ‘possuímos’. Beckett, em seulivro dedicado a Proust, parece se referir a essamesma memória domesticada quando fala na“memória voluntária” de Proust: “A memóriavoluntária insiste na mais necessária, salutar emonótona forma de plágio – o plágio de si mes-mo” (Beckett, 1986, p. 25-6). Ou ainda: “Amemória que não é memória, mas simples con-sulta ao índice remissivo do Velho Testamento,ele [Proust] chama de ‘memória voluntária’”(idem). Para Beckett, por outro lado, a ‘me-mória involuntária’, que irrompe em várias pas-sagens do “Em Busca do Tempo Perdido”,permite retirar a memória de sua função de “ins-trumento de referência”, retirá-la da “vulgarida-de autoritária da memória eficaz do dia-a-dia”(idem, p. 56), e percebê-la como “instrumentode descoberta” (idem, p. 23).

Quero ainda falar sobre a imagem de ‘vol-ta para casa’ que aparece no texto apócrifo utili-zado na Action. E para isso recorro a um outrofragmento – agora de Mario Biagini – onde estamesma idéia aparece. A citação abaixo permiteque vejamos que essa ‘volta para casa’ está lon-ge de uma qualquer visão nostálgica de volta aum paraíso perdido localizado em algum lugar‘original’ – origem sendo entendida aí de ma-neira estática.

O fragmento começa com uma memóriade infância de Biagini e refere-se, analogamen-te, aquele ‘relembrar-se’ do qual fala o textonão canônico:

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Lembro-me de quando era menino – moravaem uma fazenda: você sai de casa e tudo énovo, percebe que a primavera chegou, omundo é leve, o mundo é um milagre e vocêsente que pertence a ele, que é parte dele.E ao mesmo tempo você é ninguém, e desse serninguém, como uma gaiola que se rompe,uma alegria é percebida. Aquele senhor polo-nês nos lançou um desafio: Cantem, podeacontecer alguma coisa? Através dele e destescantos, descobrimos uma possibilidade? Tal-vez, pequena: alguma coisa, através do traba-lho com esses cantos, pode acontecer. É comose, de repente, revisse aquelas luzes, aquelascores daquela manhã – eu, ninguém: uma gai-ola que se abre por um momento. Naquelemomento, alguma coisa funciona de novo ede novo: “Olha, é um milagre. Esse mundo éleve e eu sou parte de tudo isso”. E depois, talvezainda um pouco mais acima: “Esse mundo éum milagre. Eu quem?” Depois acaba e às ve-zes permanece em você e contigo como umaressonância. Você não está melhor do queantes, só tentou voltar para casa (Biagini,2007, p. 50-1; itálicos meus).

Como vimos, aparece novamente o ‘tema’do regresso à casa que se confunde intimamen-te com a idéia do relembrar-se, do rememorar-se. Mas é interessante perceber que esse reme-morar, que esse ‘regresso’, aponta para umaparticipação no mundo, participação na qual asfronteiras entre ‘eu’ e o ‘mundo’ quase se desfa-zem, ou onde corpo e mundo são vistos comoem profunda integração: ‘eu, quem?’, se pergun-ta Biagini. Não há um lugar ao qual retornar,nem um eu ‘mais profundo’ ou ‘mais verdadei-ro’ a ser descoberto, mas, talvez, a percepção –ou experiência – de participar, de ser passante,de ser ‘ninguém’. Ser participante, e não umasubjetividade separada e, em certo sentido, mo-

nopolizadora de um ‘centro’ no qual as coisas –a memória entre elas – transitariam. É na rela-ção, no entre, nas passagens, naquilo que, comoas estações, se transforma, naquilo que está emmovimento, em dinamismo, é enfim nesse ‘não-lugar’ que se ‘volta para casa’, que ‘se relembra’.

Mas, ainda ‘quem’ relembra? A memórianão aparece relacionada a um lugar/experiênciaidealizado/a ou traumático/a, nem é para a sub-jetividade um objeto de contemplação, de pos-se, ou uma esperança de totalidade narrativa.Ela se revela em um’estar com’ ou um ‘ser com’.Não se trata também de uma experiência deintrospecção, já que ‘casa’ e ‘habitante’ se con-fundem. A noção de memória que aparece aquiconfunde-se com o que Grotowski chamou, emcerta palestra, de relaxamento do ego, ou de umapercepção mais alargada de si mesmo ou, en-fim, de uma consciência transparente.

Para finalizar, apresentemos o fragmentode uma entrevista de Biagini da qual retirei otítulo dessa segunda sessão15:

Quem é a pessoa que carrega o meu nome?Posso descobrir que sou ninguém e sentir-meum merda, ou sentir-me de repente como seme tirassem um fardo das costas – uma ale-gria quieta. Conhece Edward Stachura? Li oseu diário (...): em algumas passagens, fala dohomem-ninguém, “not living for himself,being almost absent, he could be like air, likea soothing balm, man-laid-on-the-wound(Biagini, 2007c, p. 259-60).

Enf im.. .Enf im.. .Enf im.. .Enf im.. .Enf im.. .

A noção de memória, quando aparece na obraescrita de Grotowski (ou de Richards, ou deBiagini), nunca está referida a uma regressão oua uma recuperação ou restauração do passado,

15 Embora Biagini não participe dessa Action acredito que o que fala aqui possa, talvez, ressoar nas expe-riências de Cécile Berthe, Thomas Richards, Pei Hwee Tan e Francesc Torrent Gironella, os doers queparticiparam de The Letter.

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seja ele um passado que diga respeito à própriahistória do atuante, seja ele um passado maisalargado, dito ancestral ou original.

Na entrevista de Salata com Biagini essaquestão vem à tona. Respondendo a Biagini,Salata diz: “Você se sente assim quando é crian-ça. Mas depois essa coisa te é retirada e, quandose sente novamente pronto, trabalha para res-taurá-la”. Biagini, então, reage: “Receio que eunão possa restaurá-la”. Salata: “Não se pode?”Biagini: “Seria de fato uma restauração. Ou umaregressão. Não se pode voltar atrás. Se poderedescobrir novamente, em um outro nível deexperiência. Desculpe-me, estava somente sen-do pedante com relação à escolha das palavras”(Biagini, 2007b, p. 282; itálicos meus). O‘pedantismo’ de Biagini reforça a percepção deque não se trata de uma restauração, mas deum acontecimento.

Grotowski utilizou frequentemente aspalavras origem, princípio, fonte, palavras queinúmeras vezes se confundem com (ou estavamrelacionadas) a noção de memória. Mas essa ori-gem também foi para Grotowski sempre umprocesso e uma experiência. Ele dizia que “‘estarno começo’ é uma experiência” (Grotowski,1978, p. 3). E mesmo a memória individual –como aquela que jogou um papel importanteno trabalho do ator Ryszard Cieslak no espetá-culo “O Príncipe constante” – não era requeridapara que se reproduzisse, nos mínimos detalhes,um passado já vivido. Ela era, ao contrário, uti-lizada por ter a potencialidade de atualizar umacerta relação do ator com seu próprio processopsicofísico, com o outro (Outro) e com o mun-do, essas instâncias não estando mais descola-das, mas, ao contrário, atravessando-se mutua-mente, sendo participantes de uma consciênciaorgânica, participantes da anima mundi. A me-mória de 40 minutos de Cieslak era a memóriadesse corpo-vida, liberto das domesticações so-fridas pelo corpo e pela percepção, era memó-ria da organicidade.

Tratava-se de uma memória individual,mas que, ao mesmo tempo, era capaz de desco-brir/inventar um corpo apto a receber um

“Deus namorado”, assim como o descreveuJuan de la Cruz e Santa Teresa D’Avila. Nãodevemos entender essa referência de um pontode vista religioso, no sentido de vinculado a cer-tos dogmas ou crenças, mas místico, assim comoo descreveu Bergson em seu livro “Les DeuxSources de la Morale et de la Religion”. A ‘prece’era ‘provada’, ‘degustada’ no corpo do experien-ciador. Era, portanto, uma prece carnal. Era umaexperiência que punha em jogo certas energiaspsicofísicas do ator.

E a memória daquele fato da vida deCieslak era, portanto, a pista de decolagem paraaquela experiência, para aquele acontecimento.Rememorava-se ali uma organicidade que foravivida (realmente? virtualmente?) na adolescên-cia do ator. E quando coloco entre parênteses apossibilidade de aquela ser uma memória virtu-al não estou querendo duvidar de Grotowskiquando este afirmou tratar-se de um fato con-creto ocorrido com Cieslak. Quando falo devirtualidade da memória quero apenas apontarpara algumas das características dessa noçãoem Grotowski.

Em primeiro lugar, tratava-se de percebera memória não como um lugar estático a seracessado, como uma ‘coisa’ fixa e já possuídaque devesse ser relembrada, mas como uma ‘re-lação’ que se transforma com e no tempo. A ex-periência (memória) dialoga com o experencia-dor, numa via de mão dupla. E, nesse diálogo, amemória não se apresenta igual a si mesma, masem um dinamismo que é característica do estarhic et nunc. Podemos inclusive nos perguntaronde começa a memória e acaba a imaginação.Ou vice-versa.

Além disso, Grotowski, muitas vezes, cha-mou a atenção para a possibilidade do que po-deríamos chamar de uma memória-desejo, oude uma memória-tentação: não a memória doque foi, mas do que poderia ter sido, deveria tersido, gostaria de ter sido. Uma memória queabre as portas, portanto, para dimensões virtu-ais de nossa subjetividade. Ela é, simultanea-mente, quasememória e maisquememória16, nosentido que não é restauração de um passado já

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vivido, e nem mesmo apenas uma atualizaçãodaquele passado.

Talvez ainda valha a pena continuar, mes-mo que rapidamente e à guisa de finalização,falando um pouco sobre a noção de origem (eessência) na sua relação com a memória, já queessas noções são parceiras nos textos de Gro-towski, principalmente a partir da época do Te-atro das Fontes, e geram malentendidos. Nessestextos, a memória era, como já disse, a memóriade uma consciência transparente, capaz de trans-formar em experiência a idéia de se ser, ao mes-mo tempo, passante e participante no/do fluxoda vida. Nesse mesmo sentido, Attisani compa-rou Grotowski com Artaud dizendo que, assimcomo a artista francês, Grotowski colocava “no-vamente e corretamente o tema do retorno àsorigens (...) sem nenhuma nostalgia românticaou afetação metafísica. Neste sentido o traba-lho sobre o que é esquecido pelo corpo e no cor-po...” (Attisani, 2006, p. 53).

E a fala de Biagini parece reforçar essapercepção de Attisani:

(...) recentemente vejo muitos grupos de tea-tro procurarem cantos antigos, textos anti-gos, danças antigas para utilizarem no traba-lho; procuram nesses elementos uma fonte.Procuram algo de autêntico, e nessa investi-

gação se voltam para formas arcaicas como secontivessem uma resposta. Mas onde estão asfontes antigas? Estamos de acordo, do quetemos necessidade não é de arqueologia masde uma água viva (...) As fontes antigas so-mos nós (Biagini, 2007c, p. 409).

A origem, a fonte, o princípio ou a essênciado qual fala Grotowski são/estão – muitas vezes– nesse relembrar (ou nesse relembrar-se), ounesse ‘algo’ (eu?) que relembra. Nesse cantadorque ‘esquece de si mesmo’ no canto (...) e [no]canto que ‘recorda’ (....) Na pergunta na qualpassado, presente e futuro se interligam: “Comoserá que isso era esse som que hoje sim gera sóisdói em dós”?

O ano de 2009 – “ano Grotowski” segun-do a UNESCO – marca a comemoração dos 50anos de fundação do Teatro das 13 Fileiras, emOpole. Marca, ainda, os 10 anos de morte deGrotowski em Pontedera, cidade que sediava esedia o seu Workcenter. Mas, frente ao que esti-vemos refletindo sobre a noção de memória, tal-vez esse inventário de datas não faça tanto sen-tido quanto a possibilidade que temos de, emdiálogo com o percurso de Grotowski e seuscompanheiros, relembrar, descobrir, inventar efazer aquilo que sintamos como nossas tenta-ções e desejos mais fortes.

Referências bibl iográficasReferências bibl iográficasReferências bibl iográficasReferências bibl iográficasReferências bibl iográficas

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BIAGINI, Mario. “Seminario a ‘La Sapienza’, ovvero della coltivazione delle cipolle”. In: ATTISA-NI, Antonio & BIAGINI, Mario. Opere e Sentieri – Il Workcenter of Jerzy Grotowski and ThomasRichards. Roma: Bulzoni Editore, 2007a, p. 21-62.

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RESUMO: o artigo sugere problematizar a compreensão da palavra memória nos textos e nas prá-ticas de Jerzy Grotowski. Partindo-se de duas referência centrais nos estudos de sua obra conceituale artística – a encenação de “O Príncipe Constante”, em 1965, e as experiências mais recentes noWorkcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards – discute-se a percepção superficial do sentidode memória, traduzida na transformação daquelas experiências em fonte para um método fechadoe pragmático de utilização. Como se tenta demonstrar, mais do que identificar um acervo do passa-do acionado pelo pensamento, a idéia de memória em Grotowski remete a uma atualização corpo-ral que aponta para o que ainda não é conhecido e que se revela como um elemento descondicio-nador da consciência de si do ator.PALAVRAS-CHAVE: memória, Grotowski, Cieslak, Richards, perceção de si, atuante.

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