Trópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como metáfora na modernidade tardia

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    DEBATE DEBATE

    Tróp icos do discurso sobre r isco:

    risco-aventura como metáfora

    na modernidade tardia

     Tropics of risk discourse: risk-adventureas a metaphor in late modernity

    1 Programa de EstudosPós-Graduados emPsicologia Social,PontifíciaUniversidade Católicade São Paulo.Rua Monte Alegre 984,São Paulo, SP05014-091, [email protected] 

    Mary Jane P. Spink1

    Abstract This article discusses new uses of interpretative repertoires of risk, especially those re-lated to adventure. The author argues that the language of risk as adventure has multiple uses,as both a hedge against de-traditionalizing processes typical of late modernity and a figure of speech for new sensitivities stemming from the imperative of coping with the imponderability and volatility of modern risks. The article begins with an overview of the historical meanings of risk, seeking to argue that, as language in use, risk is a useful vantage point for understanding the transformations currently under way in the forms of social control, suggesting that we are experiencing a transition from disciplinary society, typical of classic modernity, to risk society.The discussion then focuses on recent transformations in images of risk, with special emphasis on the trend to use risk-adventure as a metaphor for late modernity.Key words Risk; Risk-Adventure; Reflexive Modernization; Risk Language 

    Resumo Este artigo tem como objetivo situar as novas modalidades de uso dos repertórios in-terpretativos sobre risco, especialmente no que se refere à perspectiva da aventura. Propõe que,como aventura, a linguagem do risco cumpre atualmente funções múltiplas, sendo tanto um an-teparo aos processos de destradicionalização típicos da modernidade tardia, como uma figura de linguagem utilizada para falar de novas sensibilidades decorrentes do imperativo de enfren-tar a imponderabilidade e volatilidade dos riscos modernos. Inicia com uma visão panorâmica dos sentidos históricos do risco buscando argumentar que a noção, entendida na perspectiva da linguagem em uso, permite explorar as mudanças que vêm ocorrendo nas formas de controle so-cial que nos possibilitam falar de uma transição da sociedade disciplinar, formação típica da 

    modernidade clássica, para a sociedade de risco, formação emergente na modernidade tardia.Finaliza apontando para as transformações que vêm ocorrendo nas imagens sobre risco, buscan-do destacar o uso crescente do risco-aventura como metáfora da modernidade tardia..Palavras-chave Risco; Aventura; Modernidade Reflexiva; Linguagem do Risco 

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    Este texto tem o duplo objetivo de síntese e dereposicionamento frente à questão do risco namodernidade tardia. Como síntese, visa siste-matizar as reflexões e resultados das pesquisassobre risco por nós desenvolvidas desde 1997(Spink, 1997, 1998, 1999). Como reposiciona-mento, pretende argumentar a favor da exis-

    tência, hoje, de novas modalidades de uso dosrepertórios interpretativos sobre risco. Propo-remos, mais especificamente, que o risco, vistona perspectiva da aventura, cumpre atualmen-te funções múltiplas, sendo tanto um anteparoaos processos de destradicionalização típicosda modernidade tardia, como uma figura delinguagem utilizada para falar de novas sensi-bilidades decorrentes do imperativo de enfren-tar a imponderabilidade e volatilidade dos ris-cos modernos.

    Começaremos traçando uma visão panorâ-mica dos sentidos históricos de risco. Apoian-

    do-nos nas teorizações de Hayden White (1994),buscaremos mais especificamente traçar o en-redo arquetípico dos trópicos do discurso so-bre risco. Pretendemos, por meio dessa pano-râmica, argumentar que a noção de risco, en-tendida na perspectiva da linguagem e m uso,permite explorar as mudanças que vêm ocor-rendo nas formas de controle social que nospossibilitam falar de uma transição da socie-dade disciplinar, formação típica da moderni-dade clássica, para a sociedade de risco, forma-ção emergente na modernidade tardia.

    Com essa contextualização como base, ocerne do nosso argumento propõe que esta-

    mos vivendo formas variadas de destradiciona-lização do risco que se fazem visíveis não ape-nas na multiplicidade de novas modalidadesde aventura, mas também no uso metafóricodo risco-aventura para referir-se sobretudo àimponderabilidade e volatilidade dos riscosmanufaturados.

     Antes, porém, são necessários alguns escla-recimentos conceituais. Ao utilizar o termo ris -co-aventura estamos nos referindo, apenas par-cialmente, às novas modalidades de aventura eaos novos usos de antigas modalidades de jo-gos de vertigem. Optamos pelo termo compos-

    to risco-aventura, para enfatizar um desloca-mento importante dos sentidos modernos dorisco que recuperam a aventura como dimen-são positivada da gestão dos riscos.

    Os teóricos do risco, como Gary Machlis &Eugene Rosa (1990), buscam incorporar essadimensão em seus esquemas tipificadores soba denominação de “risco desejado”. O risco de-sejado, segundo a definição dada por esses au-tores, refere-se às “atividades ou eventos que têm incertezas quanto aos resultados ou conse-

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    qüências, e em que as incertezas são componen-tes essenciais e propositais do comportamento ”(Machlis & Rosa, 1990:162). Acatam, assim, aimpossibilidade de compreender risco apenasna perspectiva racionalizadora da análise deriscos, entendida como a triangulação entrecálculo, percepção e gerenciamento dos riscos.

    Faz-se necessário esclarecer também, queas pesquisas que vêm sendo por nós desenvol-vidas focalizam risco na perspectiva da lingua -gem em uso . No referencial que estamos elabo-rando no Núcleo de Pesquisa em Psicologia So-cial e Saúde da Pontifícia Universidade Católi-ca de São Paulo (Spink & Frezza, 1999; Spink &Medrado, 1999; Spink & Menegon, 1999), váriasdimensões de uso da linguagem são enfatiza-das. Buscamos, de um lado, entender a cons-trução de conceitos no âmbito de domínios desaber específicos e sua cristalização em discur-sos. Falamos, nesse caso, de discursos ou do

    uso institucionalizado de repertórios interpre-tativos. Mas buscamos também entender a lin-guagem na perspectiva dinâmica de uso nocontexto das práticas discursivas. Focalizamos,nessa perspectiva, os processos de interanima-ção dialógica que pontuam as trocas lingüísti-cas e a dinâmica de posicionamentos que daíemergem.

    Entretanto, seja no enfoque dos discursoscristalizados, seja no das práticas discursivas, éa noção de repertório interpretativo (Potter &

     Wetherell, 1987) que ocupa o papel teórico cen-tral. Chamamos de repertório interpretativo oconjunto de termos, conceitos, lugares-comuns

    e figuras de linguagem utilizados para falar deum fenômeno específico. Sendo produções cul-turais e estando inscritos nos textos, imagens elugares de memória que constituem o imagi-nário social, os repertórios são melhor com-preendidos quando abordados no tempo longoda história. A familiarização com essas produ-ções implica, portanto, a realização de uma ar-queologia dos usos dos repertórios em diferen-tes épocas históricas. Constituem, nessa pers-pectiva arqueológica, um reservatório de senti-dos passíveis de serem reativados nos proces-sos de compreensão do mundo, que chama-

    mos de produção de sentidos.Com o objetivo de entender os repertórios

    sobre risco do ponto de vista arqueológico doscontextos históricos de uso, foi feita uma ex-tensa pesquisa bibliográfica sobre a emergên-cia, circulação e uso da linguagem do risco emdiferentes domínios do saber. Tratava-se de umprojeto ambicioso que abarcou a etimologia dapalavra risco e seu emprego no contexto dos

     jogos, da economia, da saúde, da tecnologia eda biotecnologia, buscando entender as múlti-

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    plas dimensões do debate sobre risco presen-tes em inúmeros textos publicados em livros eartigos. É com base nessa vasta revisão da lite-ratura que forneceremos uma visão panorâmi-ca dos sentidos históricos de risco.

    Uma visão panorâmica dos sentidoshistó ricos de risco: o enredo

    arquetípico dos discursos sobre o risco

    Mesclam-se nesta panorâmica três dimensões:uma forma de se relacionar com o futuro, umaforma de conceituar risco e uma forma de geriros riscos. Considerando, inicialmente, o riscocomo uma  forma específica de se relacionar com o futuro , nunca é demais reiterar que a pa-lavra risco emerge na pré-modernidade, ou se-

     ja, na transição ent re a sociedade feudal e asnovas formas de territorialidade que dariam

    origem aos Estados-nação. Obviamente, a hu-manidade sempre enfrentou perigos diversos,sejam os riscos involuntários decorrentes decatástrofes naturais – terremotos, erupçõesvulcânicas, furacões – sejam aqueles associa-dos às guerras, às vicissitudes da vida cotidianaou ainda os voluntários, decorrentes do quechamaríamos hoje de “estilo de vida”. Entretan-to, esses eventos não eram denominados ris-cos. Eram referidos como perigos, fatalidades,hazards ou dificuldades, mesmo porque a pa-lavra risco não estava disponível nos léxicosdas línguas indo-européias.

     Assim, a própria emergência da palavra ris-

    co no catalão no século XIV, nas línguas latinasno século XVI e nas anglo-saxônicas no século

     XVII já constitui um rico campo de investiga-ção. Embora tenhamos engrossado as fileirasdos etimólogos diletantes, não se trata aqui deexplicitar as hipóteses prováveis desse surgi-mento tardio do vocábulo. Basta ressaltar o con-senso de que a palavra emerge para falar da pos-sibilidade de ocorrência de eventos vindouros,em um momento histórico onde o futuro pas-sava a ser pensado como passível de controle.

     Vale fazer aqui uma breve digressão sobreas diversas possibilidades de pensar o futuro.

    Pierre Bourdieu, em texto publicado original-mente em 1963, defende a tese de que as dis-posições sobre o futuro estão associadas àscondições materiais de existência, que permi-tem ou não defini-lo como “...uma estrutura particular de probabilidades objetivas – um fu-turo objetivo ” (Bourdieu, 1979:8). Apoiando-seem pesquisas etnográficas e estatísticas, reali-zadas na Argélia ent re 1958 e 1961, consideraque a adaptação à economia capitalista impli-ca a incorporação da disposição à previsibili-

    dade e cálculo que, por sua vez, “... exige uma disposição determinada em relação ao tempo e,mais precisamente, em relação ao futuro, sendo que a ‘racionalização’ da conduta econômica supõe que toda existência se organiza em rela-ção a um ponto de fuga ausente e imaginário ”(Bourdieu, 1979:18-19).

    É esse tipo de relação com o futuro que ge-ra o clima propício à incorporação plena daperspectiva do “risco”. Não que haja uma au-sência de qualquer disposição ante o futuronuma economia pré-capitalista. Trata-se, en-tretanto, de um futuro pautado na “previdên-cia” – a habilidade de “ver de antemão” a partirda inscrição na própria situação, a partir daidentidade entre tempo de trabalho e tempo deprodução. Como afirma Bourdieu (1979:22),“longe de serem ditados pelo desejo prospectivo de um futuro projetado, as condutas de previ-dência obedecem ao cuidado de se conforma-

    rem aos modelos herdados ”. Já o capitalismoimpõe que se rompa essa unidade. Opõe, assim,ao “futuro prático”, lugar de potencialidades ob-

     jetivas, a noção de futuro como lugar dos pos-síveis abstratos de um sujeito intercambiável.

    Mais uma vez é preciso deixar claro quenão se trata da ausência da possibilidade decálculo. O que Bourdieu parece afirmar é que,nas economias pré-capitalistas, o cálculo estáa serviço da eqüidade, pautada num espírito desolidariedade, mas “opõe-se em absoluto ao es-pírito do cálculo que, fundamentando-se na avaliação quantitativa do lucro, anula as apro-ximações arriscadas e desinteressadas (pelo me-

    nos nas aparências) de uma moral de generosi-dade e honra ” (Bourdieu, 1979:35).

     A transição de um futuro pautado em soli-dariedade para outro marcado pelo cálculo dosriscos, pode ser traçada a partir dos repertórioslingüísticos disponíveis para significar o futu-ro. Há, conforme discutimos em textos anterio-res (Spink, 2001), uma incorporação gradativade termos, passando de fatalidade à fortuna(Giddens, 1991), e incorporando paulatina-mente os vocábulos hazard (século XII), perigo(século XIII), sorte e chance (século XV) e, noséculo XVI, risco.

     Após emergir como vocá bulo na pré-mo-dernidade, risco haveria de tornar-se um con-ceito fundamental na modernidade clássica.Entretanto, a possibilidade de efetivamenteutilizar o conceito de risco como estratégia degoverno, envolve um longo processo de forma-lização que pode ser melhor entendido como oenredo arquetípico do desenvolvimento dacompreensão, segundo as teorizações de White(1994) sobre os trópicos do discurso. De acordocom esse autor, o enredo arquetípico das for-

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    mações discursivas parece exigir que o discur-so se mova de uma caracterização metafóricaoriginal de um domínio de experiência, pas-sando pela desconstrução metonímica de seuselementos, pelas representações sinedóquicasdas relações entre seus atributos e sua supostaessência, chegando então à elaboração dos con-

    trastes e oposições que possam ser discernidosnas representações sinedóquicas, fase que de-nomina ironia.

    No caso do conceito de risco, esse longoprocesso envolveu, de um lado, o lento desen-volvimento da teoria da probabilidade, cujahistória, que tem início no século XVII, é pon-tuada de heróis da matemática, incluindo aíPascal, Fermat, Leibniz e De Moivre. Essa his-tória é contada de forma coloquial por PeterBernstein (1997), no livro O Desafio aos Deuses , ena linguagem social da Filosofia por Ian Hacking(1975), no livro The Emergence of Probability .

    De outro lado, o conceito de risco envolve asofisticação da estatística e seu uso como ciên-cia do estado. Nunca é demais apontar que araiz de estatística é status , que em latim querdizer estado ou condição. Em seu sentido ini-cial, a estatística era o ramo da ciência políticaque dizia respeito à coleção e classificação defatos relevantes para a tarefa administrativa, eé nesse sentido que ela encontra uma primeirafunção no governo das populações na Ciênciada Polícia dos estados alemães dos séculos

     XVIII e XIX (Pasquino, 1991).Mas seria necessário o avanço do cálculo

    das probabilidades para que a mera coleção de

    dados se tornasse um instrumento fundamen-tal de governo. É nesse contexto, então, que en-contramos o primeiro deslocamento no enredoarquetípico do discurso sobre risco. Passamosda metáfora à metonímia e entramos na pri-meira fase da gestão dos riscos, que tem sua ida-de de ouro no século XIX, na ciência sanitáriaque será o berço do Estado do Bem-Estar Social.

    Entretanto, será apenas em meados do sé-culo XX que passaremos à fase da sinédoque,com a progressiva formalização do conceito eaperfeiçoamento das técnicas de cálculo dosriscos. Essa passagem, no domínio da epide-

    miologia, foi brilhantemente detalhada por Jo-sé Ricardo Ayres (1997) em seu livro Sobre o Risco , e é ela que leva também, na segunda me-tade do século XX, à formatação de um campode saber muito específico denominado gestão de riscos : um campo que resulta do casamentoentre o cálculo de probabilidades e a herançada função política da estatística, e que irá geraros sofisticados modelos de análise de riscos.

    O campo interdisciplinar da análise dos ris-cos se inaugura, segundo alguns autores (entre

    eles: Hood et al., 1992; Renn, 1998), na décadade 50, no contexto dos riscos associados à ener-gia nuclear. Esse campo desde cedo engloboutrês áreas de especialidade: o cálculo dos riscos(risk assessment ), a percepção dos riscos pelopúblico e a gestão dos riscos. Mais recentemen-te, a gestão dos riscos passou a englobar tam-

    bém a comunicação sobre riscos ao público.O cálculo dos riscos consiste na identifica-

    ção dos efeitos adversos potenciais do fenôme-no em análise, a estimativa de sua probabilida-de e da magnitude de seus efeitos. Dependeportanto, de quantificação, expressa na abor-dagem hegemônica do Quantitative Risk As-sessment (Hood et al., 1992). A percepção dos riscos volta-se à relação entre o público e os ris-cos tecnológicos, estando associada portanto,ao estudo da aceitação de determinadas tecno-logias, como vem acontecendo com as diversasaplicações modernas da engenharia genética.

     Volta-se também à perspectiva do controlepreventivo dos riscos, buscando, por meio daeducação, influir nos comportamentos deleté-rios para a saúde do corpo e do meio ambien-te. A gestão dos riscos compreende quatro es-tratégias integradas: os seguros, as leis de res-ponsabilização por danos, a intervenção gover-namental direta e a auto-regulação. Progressi-vamente, passou a incorporar também a comu -nicação sobre riscos , na medida em que a parti-cipação pública, quer na aceitação quer no au-tocontrole, passou a ser elemento imprescindí-vel do controle social dos riscos.

    Todas essas arenas iniciaram-se num clima

    de franco otimismo, mas progressivamente, de-pararam-se com críticas, sobretudo por parte deantropólogos vinculados à Mary Douglas e Aa-ron Wildavsky (Douglas, 1992; Douglas & Wil-davsky, 1983). A eles juntaram-se, mais tarde,sociólogos, ecologistas e pensadores oriundosde outros campos disciplinares, incluindo aí aPsicologia Social (por exemplo: Kadvany, 1997;Johnson & Covello, 1987). O debate atual é rico ecomplexo demais para ser abordado neste texto,sendo importante apenas, para a argumentaçãoaqui desenvolvida, apontar que duas dimensõesestão aí imbricadas. Uma refere-se ao não-reco-

    nhecimento, nas abordagens iniciais, da ques-tão dos valores que permeia não apenas a per-cepção do público, mas a própria definição doque vem a ser risco. A outra dimensão refere-seà transformação que vem ocorrendo na nature-za dos riscos, progressivamente mais sistêmicose globalizados. Nessa dimensão, o debate é téc-nico e questiona a própria possibilidade de cál-culo de riscos cada vez mais imponderáveis.

    Chegamos assim à quarta etapa do enredoarquetípico do discurso sobre o risco: a ironia .

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     A gestão dos riscos é um fenômeno da moder-nidade tardia e, sendo uma forma de governarpopulações, devemos entender esse enredo naperspectiva das mudanças que vêm ocorrendona esfera da governamentalidade e que levammuitos autores (entre eles Castel, 1991) a afir-marem que estamos vivenciando o fim da so-

    ciedade disciplinar (ou modernidade clássica)e o início da sociedade de risco (ou moderni-dade tardia). Isso implica entender como pas-samos do foco na gestão da vida para o foco nagestão do risco.

    Da sociedade disciplinar à sociedade

    de risco: a gestão dos riscosna modernidade tardia

    Para Foucault (1977), o que estava em pauta nasociedade disciplinar era a gestão da vida que,

    segundo as reflexões delineadas no livro A Von-tade de Saber , englobou duas estratégias. Uma,desenvolvida a partir do século XVII, centrou-se no corpo-máquina constituindo os disposi -tivos disciplinares . A outra, um pouco mais tar-dia, desenvolvendo-se por volta de meados doséculo XVIII, centrou-se no corpo-espécie eenglobou as técnicas de governo das popula-ções. É no âmbito dessas últimas que se consti-tuirão os biopoderes essenciais para a modernagestão dos riscos.

    O poder disciplinar , fundamental para odesenvolvimento do capitalismo industrial, ti-nha por objetivo o controle dos corpos, tornan-

    do-os dóceis e fortalecidos para o trabalho pro-dutivo. Ancorava-se duplamente na organiza-ção da massa indiferenciada mediante siste-mas classificatórios e nas estratégias de vigilân-cia continuada. O principal mecanismo classi-ficatório nesse tipo de gestão era a norma, emais precisamente a definida a partir das dis-tribuições de freqüência. Dessa forma, essa or-ganização era perpassada pela noção do “ho-mem médio”, introduzida por Lambert Adol-phe Jacques Quetelet e aperfeiçoada por Fran-cis Galton (Bernstein, 1997).

    Também a vigilância dependia de dois me-

    canismos. De um l ado, apoiava-se nas “disci-plinas”, saberes específicos constituídos e cons-tituidores das instituições de vigilância: a esco-la, a prisão, por exemplo. De outro lado, paraque essas ordenações fossem internalizadas, avigilância dependia de um regime disciplinarexercido no espaço privado dos lares e das sub-

     jetividades: a higiene.Já os biopoderes voltam-se ao governo do

    corpo-espécie e têm por objetivo a segurança,estratégia de governo que implica o aperfeiçoa-

    mento e uso da informação. É importante, nes-sa perspectiva, entender os riscos e seus corre-latos. É importante também que se desenvol-vam instituições especializadas na análise des-sas séries quantitativas. É obviamente nessavertente que se ancoram as modernas estraté-gias de gestão dos riscos.

    Entretanto, Foucault pensa a modernidadeclássica. Seu projeto, segundo explicitação notexto Politics and the Study of Discourse , de1968, buscava determinar, em suas diversas di-mensões, como deve ter sido o modo de exis-tência dos discursos e particularmente dos dis-cursos científicos (suas regras de formação, comsuas condições, dependências e transforma-ções) na Europa, desde o século XVII, de ma-neira que o conhecimento que é nosso hoje, pu-desse ter vindo a existir, mais particularmente,aquele que tomou como seu domínio o curiosoobjeto chamado homem (Foucault, 1991).

    No entanto, para entender os deslocamen-tos ocorridos mais recentemente, a referênciafundamental é Ulrich Beck (1993). Para Beck, oprojeto da modernidade tardia implica a ges-tão dos riscos (e não mais a gestão da vida).Beck introduz o conceito de sociedade de risco para referir-se a esses deslocamentos, que in-cluem três características: a globalização, a in-dividualização e a reflexividade.

     A globalização , na visão de Beck, se refere àinterseção de ausência e presença ou ao entre-laçamento de relações e eventos sociais que es-tão distantes dos contextos locais. Trata-se doprocesso de separação das relações entre tem-

    po e espaço que tem como conseqüências adesterritorialização. Essa articulação de rela-ções sociais que atravessam vastas fronteirasde tempo e espaço torna-se possível porque omovimento – de pessoas, de produtos e de in-formação – passou a ser facilitado pelos avan-ços nos meios de transporte. Entretanto, não éessa a marca registrada da globalização; suacondição sine qua non são os desenvolvimen-tos na mídia eletrônica.

    Quanto à individualização , não se tratamais da identificação do singular na massa, fa-to que decorre dos processos classificatórios

    da sociedade disciplinar, mas da singulariza-ção por meio da destradicionalização. Beck serefere, com esse termo, às transformações quevêm ocorrendo nas instituições tradicionais –família, trabalho e educação – que fazem comque as biografias tornem-se projetos reflexivose, como tal, processos centrais na constituiçãoda subjetividade contemporânea.

    Por sua vez, a reflexividade refere-se à sus-cetibilidade à revisão crônica da maior partedos aspectos da atividade social e das relações

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    as como formas de anteparo aos processos dedestradicionalização que acompanham a glo-balização. Temos assumido a posição de que,para entendê-las, é preciso antes de tudo situá-las no contexto dos jogos. Optamos, para isso,pelas teorizações hoje clássicas de Roger Cail-lois (1958).

    Caillois baseia seu modelo de jogos ( Tabela1) na interseção de duas dimensões: as diferen-tes modalidades de jogos e o grau de discipli-narização dos jogos. Propõe, dessa forma, qua-tro modalidades básicas de jogos: agôn , jogosde competição; alea , jogos de chance; mimicry ,

     jogo s de simulacro e ilinx , jogos de vertigem. As quatro modalidades aparecem em duas for-mas: uma mais espontânea (ou primitiva) – apaidia e a outra mais regrada – o ludus . Pode-mos pensá-las na perspectiva da sociogênese,ou seja, a paidia como uma forma menos so-cializada dos jogos, típica, por exemplo, da in-

    fância e o ludus como a forma disciplinada, so-cializada e presa a regras de comportamento.Um dos fenômenos mais surpreendentes

    da época atual é o crescimento vertiginoso, qua-se desenfreado, dos jogos de vertigem (ilinx ) eé nesse contexto que situamos o r isco-aventu-ra. Faz parte desse movimento de expansão, aemergência das diversas novas formas de es-portes de aventura, tendo como precursora aWhitbread Ocean Race , com início em 1973.Herdeira das disputas informais entre os tea clippers que faziam a rota entre Europa e Ásiano século passado, a Whitbread mobiliza hojealta tecnologia e recursos sofisticados, sem

    deixar de apelar para a emoção dos riscos ine-rentes ao enfrentamento dos oceanos.

     A década de setenta introduz modalidadesde risco-aventura que utilizam veículos moto-rizados, especialmente as disputas de veícu-

    los off-the-road , sendo as mais conhecidas oRali Paris-Dakar , iniciado em 1979, e o Camel Trophy , realizado em lugares inóspitos em di-ferentes países a partir de 1980.

    O final dos anos 80 vê emergir novas moda-lidades de risco-aventura: os ralis humanos. A primeira competição nessa n ova modalidade

    teria sido o Raid Gauloise , concebido por um jornalista francês, Gérard Fusil e realizado pelaprimeira vez na Nova Zelândia em 1989. Já oEco-Challenge Lifestyles Inc., fundado por Mark Burnett em 1992, como sugere o nome, inovapor associar aventura com ecologia. Trata-se,como seu antecessor, de uma competição deresistência que envolve múltiplas modalidadesde esporte: montaria a cavalo, canoagem, esca-lada, rapel, mountain bike e longas caminha-das. Tem como ingredientes principais o traba-lho em equipe, a resistência, o espírito de aven-tura e a compaixão, mesclados com a cons-

    ciência ecológica manifesta não só no respeitoabsoluto à natureza (“pack it in, pack it out, no camp fires, camp and travel only where permit-ted ” é o lema dos aventureiros ecologistas), co-mo também na ação ambiental efetiva apoian-do iniciativas locais. Também nós, no Brasil,aderimos aos ralis humanos, inicialmente coma Expedição Mata Atlântica, organizada pelaSociedade Brasileira Multisport Adventure Ra-cing a partir de 1998, e mais recentemente comos programas populares de sobrevivência, co-mo o recente No Limite .

    Entretanto, o ilinx não se manifesta apenasnessas formas disciplinadas de jogos de verti-

    gem características do ludus . Para entender amultiplicidade de modalidades de risco-aven-tura é conveniente recorrer mais uma vez aCaillois e a sua proposta de que o ludus podeter formas culturais e institucionais, assim co-

     Tabela 1

    A classificação dos jogos segundo Roger Caillois.

    Agôn  (competição)   Alea (chance)   Mimicry (simulacro)   Ilinx  (vertigem)

    Paidia (algazarra, Corridas Tesoura, pedra, papel J ogos de ilusão Carrosselalarido, tumulto, Lutas Cara ou coroa Máscaras Dançaagitação, riso solto) Fantasias

    Ludus (esportes Boxe Apostas Teatro Esquicom regras, técnicas Esgrima Roleta Circo Alpinismoe equipamentos) Futebol Loterias   Bungee jump 

    BilharDamasXadrez

    Fonte: Roger Caillois (1958).

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    mo formas corrompidas. As  formas cultura is englobam todas as modalidades de esportesque exaltam a velocidade, a adrenalina, a obli-teração da razão pela concentração total naação. Por exemplo, o esqui, o alpinismo, o surfee as diversas modalidades de esportes que en-volvem desafio, sobrevivência e vertigem.

     As formas institucionais se fazem presentessobretudo nas profissões que exigem o domí-nio da vertigem. Inserem-se aqui as tradicio-nais profissões de risco, como os guias de mon-tanha, os bombeiros, os detetives. Mas inse-rem-se também as novas profissões que emer-gem em conseqüência dos riscos manufatura-dos. Ericson & Haggerty (1997:102) definem asnovas profissões do risco como “um grupo ocu-pacional que reivindica para si um conheci-mento abstrato e exclusivo sobre como lidar com riscos específicos, assim como a habilidade de prover serviços especializados para gerenciar 

    esses riscos ”. Incluem-se aqui os gerentes de ris-co em bancos de investimento, os responsáveispela segurança de tecnologias capazes de in-duzir a desastres em larga escala, como a ener-gia nuclear e os responsáveis pela segurançadas novas tecnologias associadas à engenhariagenética.

    Caillois propõe ainda que há  formas cor-rompidas dos jogos de vertigem em que a razãoé obliterada, por exemplo, pelo uso de drogaspsicotrópicas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Essaé a forma de r isco que David Le Breton (1996)chama de blancheur . Trata-se do inverso davertigem e do desafio – em que o risco é ativa-

    mente buscado – com a atração direcionadapara o menos e não para o mais: longe de pro-vocar a morte, há um doce abandono a ela pormeio do álcool, da droga, da fuga ou da vaga-bundagem.

    São essas dimensões do risco que vêm sen-do foco de reflexão de tantos autores. Algunsbuscam entender a onipresença das  formas culturais do risco-aventura , subsumidas pelosesportes-radicais, como forma de expansão dosprocessos de disciplinarização para além desuas formas institucionais. A aventura, nessainterpretação, passa a ser incorporada ao coti-

    diano como estratégia de edificação. Encontra-mos na mídia exemplos variados dessa funçãoedificadora do risco-aventura, entre eles:

    a) O fortalecimento do caráter, como na re-portagem de capa da Veja São Paulo, de marçode 1998 (França, 1998), intitulada Uma Turma Movida a Adrenalina: Os Riscos, os Benefícios,as Emoções e os Desafios dos Esportes Radicais Praticados por Aventureiros Infantis (Figura 2).

    b) A aprendizagem de flexibilidade e deci-são nos programas de treinamento e desenvol-

    vimento gerencial, como o Quest, desenhadospara dar à gerência corporativa um recurso detreinamento alternativo que combina a emo-ção da aventura outdoor com o treinamentocorporativo tradicional. Segundo descrição for-

    necida no site, “o conceito é aprender fazendo –  fazendo algo fora do escritório que apresenta desafios que podem então ser transferidos pa-ra o mundo real do trabalho ” (Quest: ).

    c) Ou ainda, a busca de novos espaços parao fortalecimento dos laços familiares, comoapregoa a reportagem de capa da Veja São Pau-lo, de junho de 1999 (França, 1999), intituladaLaços de Adrenalina : Pais e Filhos Descobrem na Natureza, em Surpreendentes Aventuras de Fim de Semana, a Chave para uma Convivên-

    cia mais Estreita .Outros autores focalizam as formas corrom-

    pidas e buscam entendê-las na perspectiva dosprocessos de destradicionalização, próprios dasociedade globalizada e do capitalismo infor-macional. Insere-se nessa vertente a instigantereflexão de David Le Breton (1996), que analisatanto as formas culturais quanto as formas cor-rompidas dos ilinx modernos na perspectivado ordálio, ou seja: a busca de significado para avida no enfrentamento da morte, dando chan-

    Figura 2

    Crianças radicais – o risco como fortalecimento

    do caráter.

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    ces iguais de dela escapar. Em suma, “quando o sentido da vida escapa, quando tudo é indife-rente, o ordálio é uma solução. É a única estru-tura antropológica que pode dar uma segunda chance. Ela metaforiza a morte por meio de uma troca simbólica em que o ator aceita que,para poder tudo ganhar, arrisca tudo perder ”

    (Le Breton, 1996:58).São caminhos possíveis, mas que não esgo-

    tam as explicações sobre a onipresença do r is-co-aventura na sociedade contemporânea. Oque estamos propondo, entretanto, é que bus-quemos fugir da sedução dos esportes-aventu-ra ou do questionamento das formas corrom-pidas de ilinx , focalizando o risco-aventura apartir de um novo olhar, buscando entender osusos metafóricos a que se prestam para falarnão mais de riscos mas de imponderabilidade.

    O uso metafórico d o risco-avent ura

    Desde que nos embrenhamos na pesquisa so-bre risco, temos colecionado matérias sobre oassunto em jornais e revistas, nacionais e es-trangeiras, incluindo anúncios e propagandasque utilizam a linguagem do risco. Analisandoas matérias que traziam a palavra risco no seutítulo, publicadas na Folha de São Paulo no pe-ríodo de 1921 a 1998 (Spink, 2000b), verifica-mos um uso crescente em todas as áreas de re-portagem, incluindo esporte, economia, saúdee política. Muitas dessas matérias focalizavamo “risco em si”, seja como metonímia, seja co-

    mo sinédoque. Mas outras faziam um uso me-tafórico do termo, que era utilizado para falarde algo que, embora relacionado, já não eramais risco.

    Esse deslocamento fica mais claro quandoanalisamos as imagens; em suma, muito recen-temente começamos a encontrar imagens rela-cionadas a risco-aventura que já não remetemmais à palavra risco. É possível ilustrar essedeslocamento contrastando dois usos de riscoem imagens. O primeiro é um anúncio de umaempresa de seguros, a  Allianz Group, que sedescreve como “líder em seguros e serviços fi-

    nanceiros na Europa ”, publicado na Veja , e mmaio de 2000. A belíssima imagem, aqui apre-sentada na forma de croquis dada a recusa deautorização para sua reprodução, mostra umoperário sentado em uma viga de prédio emconstrução, “no topo do mundo” com a cidadeaos seus pés.

     A mensagem é clara: onde quer que vocêesteja, a Allianz dará cobertura: “para nós, ad-ministração de riscos significa pensar o impen-sável para evitar que riscos se transformem em 

    perdas. Como uma das maiores seguradoras do mundo, temos a solidez financeira e a capaci-dade técnica que fazem da Allianz uma parcei-ra em que você pode confiar quando e onde pre-cisar” (Allianz Group, 2000:100-101). O anúnciofala tanto da necessidade como da positivida-de do risco, mas a partir da segurança decor-

    rente da escolha de bons gerentes de risco. Em-bora se apóie na metáfora para a comunicaçãoda mensagem, a associação entre a necessida-de de correr riscos e os resultados potencial-mente positivos da empreitada é feita no con-texto do gerenciamento racional dos riscos (Fi-gura 3).

    Já a segunda imagem nem mesmo fala emriscos, embora eles estejam presentes quer nafoto quer na idéia de volatilidade dos fundos.Trata-se de um de três textos publicados na re-vista inglesa The Week , de 29 de abril de 2000,na seção intitulada Making Money: What the 

    Experts Think . O texto em questão, intituladoThrill Seekers or Sound Sleepers (os que bus-cam emoções ou os que preferem um sonotranqüilo), discutia a opção por fundos volá-teis. Iniciava afirmando que “a maioria dos in-vestidores evita a volatilidade excessiva, mas para o jogador hiperativo que gosta de entrar e sair de uma ação em poucas horas, as altas e baixas oferecem possibilidades maiores de lucro a curto-prazo ” ( Week, 2000:35). Concluía, as-sim, que as ações menos voláteis são mais ade-quadas para investidores que preferem “dormirà noite”.

    O texto vem acompanhado da Figura 4,

    também apresentada na forma de croqui, que

    Figura 3

    O risco com segurança.

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    tem por subtítulo Volatilidade: Apenas para os que Buscam Emoções . O salto no espaço, prova-velmente na modalidade de bungee jump , falametaforicamente de risco como aventura, sen-do esta uma atividade própria de quem buscaemoções e, como na reportagem sobre os ho-mens do risco apresentada anteriormente, tem

    “coração forte”.

    Considerações finais

    Concluindo, é esse deslocamento, do risco me-tonímico para o metaforizado, que deveria sero foco de nossas análises, por ser indicativo daemergência de novos discursos sobre risco.Nestes, não é mais o risco, mas a imprevisibili-dade, a imponderabilidade e a complexidadeque marcam nossas experiências cotidianas;são indicativos, portanto, do deslocamento da

    sociedade disciplinar para a de risco a que nosreferimos anteriormente.Buscando fazer uma síntese das muitas tra-

    mas abordadas neste texto, concluiríamos rei-terando quatro aspectos. Em primeiro lugar,risco emerge como conceito quando se tornapossível pensar o futuro como passível de con-trole. Esse é um processo que envolve tanto odesenvolvimento do instrumental necessário(como a teoria da probabilidade) quanto aemergência de um novo objeto de governo (apopulação).

    Em segundo lugar, da pré-modernidade àmodernidade clássica, a gestão dos riscos se

    formata em duas vertentes distintas: a preven-ção e a aposta. Ambas são frutos da crença naracionalidade, mas geram mecanismos de con-trole distintos. Na vertente da prevenção, oprincipal mecanismo de controle é a norma,definida por meio da média estatística. Já navertente da aposta, elemento essencial do com-portamento em uma economia liberal, o prin-cipal mecanismo de gestão é a tomada de deci-são informada que privilegia o processamentoda informação numa perspectiva cognitiva in-tra-individual.

    Em terceiro lugar, na transição para a socie-

    dade de risco ocorrem várias transformações: acrença na possibilidade de controlar o futuro apartir da agregação e análise de séries de infor-mações, passa a ser questionada frente à natu-reza sistêmica dos riscos manufaturados; anorma cede lugar à probabilidade como meca-nismo de gestão e a gestão dos riscos no espa-ço privado se desprende dos mecanismos tra-dicionais de vigilância, pautados nas institui-ções disciplinares, e passa a depender do ge-renciamento de informações que são de todos

    e não são de ninguém. Amplia-se assim, a ex-periência intersubjetiva do imperativo da op-ção, gerando novos mecanismos de exclusãosocial.

    Finalmente, é possível que ainda não te-nhamos os conceitos necessários para expres-

    sar essas novas sensibilidades, gerando assimum solo fértil para a emergência de novos ter-mos, utilizados ainda em sentido figurativo.

    Retomando a teoria tropológica de White(1994), é possível propor que o tempo longo dagestão dos riscos nos leva do uso meta fórico,como aposta no cenário dos jogos, para o me-tonímico, em que impera a norma associada àmédia estatística, à fase da sinédoque, na qualse formaliza o conceito probabilístico de risco,até a fase da ironia, entendida como o questio-namento a partir da contraposição de explica-ções alternativas. Se a interpretação dessa tra-

     jetória do conceito de risco fizer sentido, entãoo estudo minucioso das novas formas de falarsobre ele e as funções que essas práticas dis-cursivas têm na vida social, podem nos dar pis-tas sobre a emergência de novas formas de ges-tão na modernidade tardia e das possibilidadesde produção de sentido a elas associadas.

    Figura 4

    Risco, volatilidade e imponderabilidade.

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    Madel Teresinha Luz  Risco, perigo e aventura na sociedade da (in)segurança: breve comentário

    O artigo de Spink sobre risco coloca em jogoquestões atuais de natureza teórico-metodoló-gica e substantiva para as ciências sociais, quevalem a pena mencionar, e na medida do pos-sível, aprofundar, ainda que em “breve comen-tário”, pretensão dessas notas.

     A propósito da categoria de risco e seus usosdiversos na contemporaneidade, que a autoradesigna como modernidade tardia, Spink de-

    senvolve uma reflexão bastante densa sobre asrelações entre linguagem, estrutura discursiva,produção de sentidos, suas funções e variaçõesna cultura através da noção de repertório inter-pretativo . Variações que são de natureza histó-rica, é claro, mas também simbólica, expressaspor meio de linguagem, ancoradas em discur-sos mais ou menos estruturados, relativos agrupos sociais, a saberes ou mesmo a formasde agir, a práticas. A complexa abordagem im-plicada na análise da autora supõe uma inter-disciplinaridade em que antropologia, psicolo-gia social, sociologia, história, genealogia e lin-güística têm que andar de mãos dadas. A pro-

    dução social de sentidos através da história,expressa em metáforas, palavras, conceitos,pode ser uma janela aberta para a compreen-são das mudanças da sociedade, de seus mo-mentos de rupturas, de continuidades, bem co-mo da apreensão da direção dessas mudanças.

     Através da anális e da t ransforma ção dos ter -mos, dos conceitos, dos lugares comuns, das fi-guras de linguagem, enfim do que Spink desig-na como repertório interpretativo , é possívelabordar, “a partir de um fenômeno específico”,as profundas transformações em curso na cul-tura, atingindo talvez o mesmo tipo de percep-

    ção que Foucault (1966) evidenciou em suaobra As Palavras e as Coisas  como a passagemde uma cultura da similitude a uma cultura darepresentação (modernidade clássica), quandopôs em foco o conceito de episteme , estabele-cendo uma reflexão ainda hoje atual sobre agênese das ciências humanas. Deste ponto devista, o artigo de Mary Jane interroga essasciências tanto do ponto de vista metodológico(como trabalhar em perspectiva interdiscipli-nar para desvendar surgimentos, evoluções e

    Debate sobre o art igo de Mary Jane P. Spink

    Debate on the paper by Mary J ane P. Spink

    Instituto de Medicina Social,Universidade do Estadodo Rio de Janeiro,Rio de Janeiro,[email protected] 

    mutações na produção discursiva de sentidos?)como conceitual (qual o papel arquetípico dasformações discursivas relativas a determinadostermos, como o de risco, para entender as trans-formações culturais e sociais em curso?) Essasquestões são em si mesmo inovadoras, e cha-mam a atenção para a interação entre a produ-

    ção de sentidos, o imaginário social e as práti-cas sociais nas diferentes culturas.

    Mary Jane Spink trabalha com o que pode-mos designar, parafraseando Isabelle Steng-hers, como um operador conceitual , mais queum simples conceito, que é o de repertório in-terpretativo, que evidencia o papel estratégicoda linguagem na sua abordagem, bem comocom a análise de uma categoria que esc olheucomo “metáfora da modernidade tardia” – risco – significativa do momento de passagem deuma sociedade disciplinar para uma sociedadede risco.

     A linguagem relativa ao risco é situada nu-ma panorâmica sócio histórica dessas varia-ções, vistas sob uma tripla dimensão do risco,entendido e analisado como  forma de se rela-cionar com o futuro , como conceituação e co-mo gestão . O termo é focalizado desde suaemersão na cultura em termos de palavra (aquestão da linguagem é, mais uma vez, a basedo esclarecimento dos sentidos historicamenteproduzidos) no século XIV, em catalão, daí seespraiando para as línguas latinas e anglo sa-xônicas (século XVII), apontando para a idéiade eventos imprevisíveis no futuro, o qual pas-sa a ser representado no imaginário social co-

    mo controlável. A repertorização dos sentidosna história do termo risco é feita em perspecti-va genealógica (no sentido foucaultiano), re-traçando a evolução de sentidos de “fatalidadeà fortuna”, de hazard (perigo) – em francês aca-so – à sorte e chance, no intuito de demonstrara construção metafórica progressiva, dos sécu-los XII ao XVII, da categoria de risco, que se tor-na um dos conceitos básicos da modernidadeclássica referidos ao futuro.

    Por outro lado, o futuro concebido comoum conjunto de eventos controláveis é próprioda lógica do capitalismo moderno, como nos

    ensinou Max Weber (1987) na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.  A objetivação dofuturo como uma série de eventos ou opera-ções controláveis é a ambição máxima da mo-dernidade, tanto em termos de conhecimento(“ciência moderna”) como em termos de açãosocial (“ética do trabalho”). Spink nos referecomo essa reflexão aparece em Bourdieu, quenos mostra como a incorporação da categoriade risco supõe uma “racionalização” da condu-ta e da vida em relação a um futuro abstratiza-

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    do, cuja imprevisibilidade é mensurada (ou pe-lo menos “calculada”), evitando-se assim as“aproximações arriscadas e desinteressadas (...) de uma moral de generosidade ”, típicas de so-ciedades pré-capitalistas, segundo o sociólogofrancês.

     A passagem de termo a conceito envolveu a

    constituição de saberes estruturados na mo-dernidade, como a matemática e a estatística(com o desenvolvimento da teoria da probabi-lidade), sua adoção como ciência de estado (sé-culos XVIII e XIX) até que o discurso estrutura-do na ciência sanitária como “gestão dos ris-cos” produziu no século XIX, segundo a autora,“o primeiro deslocamento no enredo arquetípi-co do discurso sobre o risco ”, passando, em ter-mos de lingüística, da “metáfora à metonímia”.Entretanto, apenas no século XX, segundo a au-tora, já em sua segunda metade, o risco, atra-vés da ciência epidemiológica, estruturou-se

    como um saber de gestão de riscos, gerando so-fisticados modelos de análise, visando a calcu-lar, controlar e/ou prevenir riscos.

    Esse modelo, que representa, segundo Spink,a passagem da metonímia à sinédoque da ca-tegoria de risco na sociedade contemporânea,gera um campo interdisciplinar de análise, pre-venção e intervenção extensivo a áreas cres-centes de conhecimento e atividade social, vi-sando à percepção e gestão de riscos nessasáreas, e envolvem a economia, a saúde, a tec-nologia e seus efeitos, a educação, as políticaspúblicas e, mais recentemente, a comunicação(uma vez que, segundo a autora “a participa-

    ção pública (...) passou a ser elemento impres-cindível no controle social dos riscos ”). Entre-tanto, o modelo “global” de cálculo, prevençãoe controle de riscos enfrenta duas questões atéo momento insolúveis: a questão dos valores implícitos nos riscos (sua percepção, sua defi-nição) e a questão da transformação da nature -za dos riscos , progressivamente mais sistêmi-cos e globalizados. O que cria para tal modelouma situação de “não controle” ou de passa-gem para um novo modelo, o da “gestão de ris-cos”, que assinala, segundo Mary Jane Spink, amudança de uma “sociedade moderna, discipli-

    nar ”, em perspectiva foucaultiana, para umasociedade de “modernidade tardia, de riscos ”.

    No primeiro caso, da sociedade industrialcapitalista, tratava-se de gerir e controlar a vi-da, basicamente das populações, o que trouxeà tona o conceito foucaultiano de biopoder,conjunto de estratégias disciplinares da docili-zação dos corpos para o trabalho, o que levouFoucault a elaborar por coerência o conceitode governamentalidade como mecanismo bá-sico de gestão objetiva/subjetiva da sociedade

    disciplinar. No segundo caso, temos um pro-cesso de deslocamento da gestão da vida paraa gestão dos riscos, em que “globalização”, “in-dividualização e “reflexividade” como caracte-rísticas básicas da modernidade tardia, impli-cam com a transnacionalização do capitalis-mo, em processos de “destradicionalização”, de

    “singularização”, sobretudo do que Spink de-signa como “ironia ” nas estruturas discursivas,que mudam a natureza dos riscos, as estraté-gias de gestão dos riscos pelos indivíduos, emesmo os mecanismos de gestão das popula-ções, embora os relativos ao momento anteriorda modernidade não estejam descartados. Omais importante a assinalar aqui talvez seja amudança do próprio sentido de risco na cultu-ra em função dos processos em atuação.

    Do meu ponto de vista, a mutação discursi-va mais significativa em relação a risco aponta-da no artigo, talvez seja a da conexão de risco e 

    aventura em diversos setores das atividades so-ciais e dos valores culturais da atualidade: naeconomia, na educação, nas atividades empre-sariais, no esporte, nos jogos. O cultivo do ris-co como questionamento passa a ser associa-do à coragem, à bravura, à têmpera, à resistên-cia, à disciplina, e mesmo ao espírito de equi-pe, à solidariedade focal. Spink associa essa co-nexão ao processo de globalização e aos efeitosdestradicionalizantes e desterritorializantes docapitalismo transnacional, com a impondera-bilidade sistêmica dos riscos tornando-se umimpedimento ao seu controle e gestão, geran-do novos sentidos metafóricos e novas práticas

    discursivas sobre o risco.Estamos vivendo em uma sociedade onde

    emergem sentidos do risco como prática contí-nua de busca de rompimento dos limites hu-manos, inclusive da vida humana, isto é, comoum arriscar-se , ou então como tentativa decontrole do imponderável através do exercícioobsessivo do cálculo de probabilidades embusca de “segurança” nos mais diversos cam-pos da atividade social, sobretudo no econô-mico (é só refletir sobre a imponderabilidade ea vulnerabilidade crescentes das “apostas” dabolsa de valores). Talvez as novas práticas so-

    ciais e discursivas do risco estejam sinalizandopara alguns sentidos implícitos a serem desve-lados, como o de mimetismo da insegurançado sistema globalizado. Talvez estejam cha-mando a atenção, de forma paradoxal, para aincapacidade da sociedade atual de lidar comseus “riscos” mais evidentes: a dissolução derelações e instituições sociais tidas historica-mente como permanentes, a enorme concen-tração de riqueza, a exclusão social crescentecomo bola de neve, a fragilidade de uma eco-

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     TRÓPICOS DO DISCURSO SOBRE RISCO 1291

    Cad. Saúde Pública, Rio de J aneiro, 17(6):1277-1311, nov-dez, 2001

    Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde  Jorge Careli , Depar tamen to de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde,

    Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected] 

    Edinilsa Ramosde Souza 

    Quando viver é o grande risco-aventura

     Antes de tecer qualquer consideração, quero di-zer do meu contentamento em debater o pre-sente artigo, que traz importante contribuição àreflexão filosófico-científica no tema abordado.

    O artigo é profícuo e dá margem a uma sé-

    rie de questões, mas gostaria de me ater, ini-cialmente, a uma delas. Mais precisamente,quero questionar sobre um ponto que me cha-mou a atenção no título, que foi o uso da partí-cula na modernidade tardia, dando a entenderque haveria outras metáforas possíveis no pe-ríodo referido, ao invés da conotação de que orisco-aventura seria, por excelência, a metáfo-ra da modernidade tardia, o que parece ser atônica do artigo. Gostaria, portanto, que a au-tora explicitasse suas idéias em relação à essaquestão.

    Esperei ao longo de toda a leitura, que a

    abordagem do risco no campo da saúde públicafosse aprofundada. Sendo essa minha área deatuação e a da revista na qual o artigo está sen-do publicado, confesso que me senti um poucofrustrada no desejo de ver o conceito em ques-tão mais discutido nessa área do conhecimento.

     A partir da leitura, fiquei tentada a fazer umexercício reflexivo, aplicando algumas das t e-ses defendidas no artigo, ao tema específico daviolência em um grupo particularmente vitimi-zado por esses eventos – os jovens.

    nomia mundial interdependente que se asse-melha a um grande jogo de azar. A busca de se-gurança em meio à prática do risco (como ilus-tra a imagem citada do operário sentado emuma viga no alto da construção, “dominando omundo” de suas alturas) talvez sinalize, comoum sentido “sintoma”, que a segurança supõe,

    paradoxalmente, uma constante exposição aorisco, como exposição ao perigo de vida . A lei-tura do artigo de Mary Jane Spink, apesar deinstigante, não nos deixa em posição confortá-vel quanto ao futuro da cultura atual, quantoaos sentidos que está gerando, ao menos noque concerne à noção de risco e futuro.

    FOUCAULT, M., 1966. Les Mots et les Choses – Une  Archeologie de las Sciences Humaines . Paris: Galli-mard.

     WEBER , M., 19 87.  A Ética Protesta nte e o Espír ito do Capitalismo . 5a Ed. São Paulo: Pioneira.

    Nas sociedades contemporâneas os jovenstêm sido as principais vítimas da violência,apresentando elevadas taxas de morbimortali-dade devido às suas mais diversas formas – ho-micídios, suicídios, agressões não fatais, maustratos, negligência, dentre outras. Essa vitimi-zação de jovens, tem se apresentado de modo

    globalizado, tal qual alguns dos fenômenos dis-cutidos no artigo, mesmo que em sua dinâmi-ca atuem fatores regionais ou locais específi-cos, como lembra Michel Wieviorka (1997) emseu texto O Novo Paradigma da Violência , noqual o autor busca explicá-la no mundo mo-derno. O caso do narcotráfico exemplifica bemas idéias desse autor. Dentre os fenômenos in-fra-políticos identificados por ele, o narcotráfi-co constitui uma atividade ilegal e criminosaglobal, mas que tem particularidades no seuprocesso de produção, distribuição e comer-cialização inter e intra países. E esse fenômeno

    tem envolvido principalmente uma parcela dapopulação jovem.No caso da violência contra os jovens, os

    estudos têm consolidado resultados que indi-cam que as principais vítimas são os mais po-bres, com baixa ou nenhuma escolaridade equalificação profissional, provenientes de fa-mílias constituídas por mulheres chefes de fa-mília, com baixa renda e residentes nas perife-rias das grandes áreas urbanas. É também nes-ses mesmos espaços sociais de onde costumamser recrutados para o exercício de atividadesilegais e criminosas, engrossando as crescentesestatísticas de infrações por eles promovidas e

    tornando frágil e volátil a linha divisória entrea legalidade e a ilegalidade.

    Trata-se, portanto, de um grupo que paraconseguir usufruir, minimamente, dos benefí-cios das sociedades de consumo precisa assu-mir riscos. E esses riscos são assumidos por ele,seja pela mera aventura da busca de sentido eprazer na vida, seja porque é a única formapossível de sobreviver e ter algum direito, so-bretudo ao reconhecimento, ao respeito no in-terior de seu grupo e ao consumo, mesmo queconseguido de modo ilegal e violento. Nessecaso, percebe-se que o risco assume o significa-

    do de atributo individual, comumente adotadopela epidemiologia (enquanto probabilidadede sujeitos sofrerem danos ou agravos à suasaúde devido ao comportamento de se expor adeterminado fator). Por outro lado, também nãose pode negar a existência de fatores que trans-cendem à vontade desses sujeitos e que trans-formam o risco em algo para além dos compor-tamentos e desejos individuais. Esse risco é en-tão abordado como uma vulnerabilidade pró-pria de certos grupos ou espaços sociais espe-

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    cíficos, como querem os cientistas sociais e osestudos epidemiológicos de âmbito ecológico.Trata-se de um risco que significa uma exposi-ção a determinado(s) fator(es), independenteda vontade de se expor individualmente aele(s). Em outras palavras, encontram-se sobrisco devido a circunstâncias particulares de

    vida – como pertencer a determinado gruposocial ou residir em determinada comunidade– mesmo que não tenham a intenção, sequerinconsciente, de se expor. Como afirma J. L. Ve-thencourt (1990) em trabalho intitulado Psico -logía de la Violencia, muitos desses jovens, cer-tamente, jamais “optariam” (grifo meu) por searriscar em situações violentas se tivessem ou-tras possibilidades e condições de vida.

    Transpondo o pensamento da autora paraesta reflexão, tendo a concordar que a violên-cia que hoje vitimiza os jovens, é também ex-pressão da destradicionalização de instituições

    como a escola, a família e a religião. Tratar-se-ia de um processo inverso àquele identificadopor Chesnais (1981) em seu livro Histoire de la Violence , no qual a constituição de instituiçõescomo a escola e a polícia, em determinadaépoca histórica, foi paulatinamente garantindoos direitos de cidadania e o controle da crimi-nalidade em países da Europa. A meu ver, a des-tradicionalização de certas instituições, sobre-tudo em sociedades capitalistas tardias, comoé o caso do Brasil, está se dando sem que direi-tos básicos tenham sido sequer conquistados.Em outras palavras, já se destradicionaliza oque sequer chegou a se consolidar plenamente

    nas democracias mais recentes.Hoje, pensar a situação do jovem nas socie-

    dades contemporâneas, significa buscar com-preender as situações de exposição a riscose/ou vulnerabilidade, como queiram os espe-cialistas de diferentes áreas do conhecimento,e se indignar com o fato de que cerca de seteem cada dez jovens estão morrendo por umacausa violenta, como acontece nas grandesmetrópoles brasileiras.

    É preciso admitir que existe uma parcela de jovens que não “escolhe” o risco-aventura dosesportes radicais. Para eles, viver é o grande risco-

    aventura . Em meio às mais inóspitas condições,esse risco-aventura é cotidiano e até por issomesmo banalizado, seja no uso da arma de fogoreal como brinquedo, seja na quase indiferençadiante da morte freqüente de amigos e parentes.

    Portanto, é para este grupo que se precisa aprofundar o conhecimento, visando a políticas alternativas e integradoras, sobretudo de inser-ção de camadas cada vez mais significativas de 

     jovens. O artigo em debate, certamente, tem uma contribuição a dar nessa reflexão.

    CHESNAIS, J. C., 1981. Histoire de la Violence . Paris:Robert Laffont.

     VETHENCOURT, J. L., 1990. Psicolog ía de la viol en-cia. Gaceta de la Asociación de Profesores de la Universidad de Venezuela , 62:5-10.

     WIEVIO RKA, M., 1 997. O novo paradigma da violên-cia. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP ,9:5-41.

    Departamentode Epidemiologiae Métodos Quantitativos 

    em Saúde, EscolaNacional de Saúde Pública, FundaçãoOswaldo Cruz,Rio de Janeiro,[email protected] 

    Luís David Castiel 

     Ariadne, Dédalo e os bondes do tigrão

    Nesta tentativa de contribuição ao debate, es-pero fazer jus ao nível de qualidade e de perti-nência alcançados pela Professora Mary Jane

    Spink ao apresentar e desenvolver idéias e con-teúdos muito bem articulados em seu belo ar-tigo. Em função de maior convívio com umadisciplina riscológica por excelência, inicio ocomentário com o foco sobre a epidemiologia.Mais, especificamente pretendo ressaltar opróprio aspecto discursivo – metafórico, en-contrado no conceito de risco. Considere-se,por exemplo, o fato de não ser costumeiro oemprego das designações “grande/pequeno”,“forte/fraco” ou mesmo, “muito/pouco” paraindicar as características do risco, conformesua quantificação.

    Na verdade, os adjetivos utilizados nestas

    circunstâncias estão vinculados à idéia de ver-ticalidade: “alto/baixo risco”. Estes se baseiamno conceito metafórico (comum a outros con-ceitos científicos): “mais é em cima; menos éembaixo”, baseado na representação visual dosaspectos quantitativos em questão, sob o pon-to de vista de um “empilhamento” (como seaparece em determinados gráficos).

    Este conceito metafórico orientacional foidelineado por Lakoff & Johnson (1980). Os au-tores esclarecem que sua formulação, tal comoapresentada, é limitada, pois não assinala a in-separabilidade das metáforas de suas respecti-

    vas bases experienciais. Estas, por sua vez, po-dem variar, mesmo em outras metáforas relati-vas à verticalidade. No caso de, por exemplo,“saúde e vida é acima, doença e morte é abai-xo”, a base experiencial parece ser a posição cor-poral que acompanha estes estados/condições.

    Mais relevante ainda é a constituição doconceito de risco como uma peculiar metáforaontológica, ou seja, enquanto entidade vir-tualmente detentora de substância. Ao trazer-se substância ao risco, este pode ser objetiva-

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    do, e assim, delimitado em termos de possíveiscausas que, por sua vez, podem ser decompos-tas em partições. Esta operação estatística per-mitiria respectivas quantificações e eventualestabelecimento de nexos – associações, cor-relações.

    O indivíduo, ao se expor a supostos “fatores

    de risco”, faz com que o risco, entidade incor-pórea, passe a ter a propriedade de se materia-lizar sob sua forma nociva – que pode ser de-nominada agravo (entre várias outras designa-ções), numa operação semântica equivalente aque demarca doença em sua acepção metafó-rica ontológica. Só que, neste caso, os riscos“existiriam”, por um lado, como potenciais in-vasores de corpos. Mas, por outro, a ambiênciametafórica deste mundo virtual e fantasmáticodos riscos poderia adquirir visibilidade (e, por-tanto, concretude) nos resultados de examesimagéticos/testes laboratoriais indicativos dos

    efeitos da exposição a fatores de risco. Porexemplo, presença/ausência de displasia ma-mária ou taxas elevadas do colesterol (espe-cialmente LDL – o ruim...) ou ainda, mais mo-dernamente, nas testagens gênicas para câncerde mama.

    Mas não é necessária a corroboração médi-co-laboratorial para instituir a “visibilidade/presença do risco”. Basta ser obeso ou apresen-tar trejeitos supostamente relacionados aocomportamento homossexual, para ser virtual-mente incluído em determinadas condições en-caradas como mais vulneráveis (Castiel, 1996).

     Agora, antes de prosseguir, é preciso deixar

    explicitado meu intento (talvez despudora-do...) de imitar o bem sucedido expediente em-pregado por Spink. Ou seja: também utilizarexemplos oriundos da imprensa leiga (e tam-bém da literatura). Na edição latino-americanado conhecido semanário Time de 6 de setem-bro de 1999, a reportagem de capa mostrou ummontanhista pendurado em uma rocha comuma paradoxal fisionomia, aparentando ummisto de deleite e esforço físico. A chamadaenunciava: “Why we take risks. From extreme sports to unprotected sex, thrill is becoming mo-re popular (...)”. Localizado na seção apropria-

    damente chamada “Aventura” – junto ao títulodo texto, Life on the Edge , segue o subtítulo per-guntando se a vida cotidiana está ficando mui-to enfadonha (dull ) e porque, então, america-nos buscam (seek ) o risco como nunca antes(Greenfeld, 1999). Há, em síntese, uma deta-lhada descrição de muitas modalidades de es-portes ditos extremos (ou radicais) incluindocorridas de Fórmula 1, de atividades ligadas ainvestimentos financeiros de risco em bolsas emercados, de profissões que lidam com emer-

    gências – neuro-cirurgiões, bombeiros (solda-dos do fogo). O texto encerra sugerindo que“sem alguma expressão de risco as pessoas po-dem nunca conhecerem seus limites e portanto quem são como indivíduos ”.

    Há na matéria tentativas de explicar o fenô-meno. Entre elas, referências ao best seller de

    Peter Bernstein sobre risco. Deste, um comen-tário é destacado: para todas estas “coisas”acontecerem é preciso um particular tipo deambiente. Tal ambiente enfatiza a presença dagrande prosperidade norte-americana e a au-sência de guerra envolvendo a participação di-reta dos Estados Unidos por mais de uma dé-cada. Difícil avaliar o grau de pertinência des-tas afirmações. A reportagem inclui um inevi-tável teste avaliativo – quiz – da capacidade dese expor a riscos, elaborado pelo psicólogo –entrevistado no texto – Frank Farley da Temple University . Este, por sua vez, postula que correr

    riscos conscientes envolve superar instintos esugere a existência de uma personalidade tipoT – risk takers (com subtipos: T físico – atletasextremos, T intelectual – grandes cientistas...).E conclui (suponho que com regozijo) com umaextrapolação ao afirmar que os Estados Unidossão uma nação tipo T. O espaço disponível e opropósito deste comentário obrigam que evi-temos entrar no mérito dessas proposições...

    No Brasil, a editora L&PM lançará no verãode 2001 uma sintomática coletânea chamadaPrazeres e Riscos (Machado, no prelo) – livro ir-regular, mais estilo “leitura de bordo”, que mes-cla pequenos textos de autores clássicos e con-

    temporâneos de níveis bastante desiguais so-bre aspectos diversos que envolvem tal temáti-ca. Cícero (velhice), Baudelaire (vinho), Balzac(mulher de 30 anos), Dostoievsky (jogo) sãoagrupados com Millor Fernandes (cidadania)mas também com um cirurgião cardíaco, jor-nalistas de Fórmula 1 e de culinária, um espe-cialista profissional em incursões por regiõesinóspitas (prazeres e riscos da aventura), entreoutros.

    Revista Veja – edição de 25 de abril de 2001.Matéria sobre tigres como animais de estima-ção nos Estados Unidos e uma menção a um

    empresário alemão naturalizado brasileiro quecria um tigre de Bengala de quatro anos na suafazenda em Santa Catarina. Diz ele: “É um de-safio, e sem desafios a vida não tem graça ” (Ve-

     ja, 2001:76). O tigre habita uma área de três hec-tares, com cachoeira artificial (costuma banhar-se com freqüência) e come cinco quilos de car-ne por dia, podendo chegar a sete, quando fi-car adulto.

    Estas vinhetas servem, de certa forma, parase juntar aos exemplos apresentados pela au-

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    tora. No entanto, elas pretendem ir além e en-fatizar a impressão, salvo equívoco, de todasreferirem-se, na maior parte das vezes, a umponto de vista específico que se reitera ao lon-go dos exemplos, acentuadamente marcadopelos signos do acesso aos mercados e da parti-cipação nos processos consumidores. Da mes-

    ma forma, muitos dos autores que sustentamteoricamente as postulações de Spink, pare-cem pertencer e analisar contextos equivalen-tes a partir de seus lugares de scholars, em ge-ral, no lado de cima do Equador. Então, creiocaber uma pergunta: “quanto” de suas proposi-ções permanecem sustentáveis e válidas para olado de baixo dessa imaginária linha? Total-mente? Parcialmente? Alguns determinadosaplicáveis a contingências específicas? Quais?

    Para seguir adiante, em uma inflexão meta-fórica, vamos “amplificar” o felino menciona-do anteriormente e fazer referência ao dito

    movimento  funk originário das favelas do Riode Janeiro. Houve grande visibilidade (e audi-bilidade) nacional nesse primeiro verão do no-vo século, com músicas de batida eletrônica re-petitiva e letras de duplo sentido (às vezes nemtão duplo assim...) com fortes conotações se-xuais. A música emblema (“vou passar cerol na mão, assim, assim ” etc...) foi confeccionada pe-lo conjunto autodenominado Bonde do Tigrão,ou seja: um grupo de jovens do sexo masculinodispostos em ritmo de aventura, de preferênciasexual.

    Uma das celeumas ligadas a tal movimentofoi trazida pela divulgação da ocorrência de re-

    lações sexuais desprotegidas (eventualmentemúltiplas) no salão, no decorrer dos bailes. Asmoças já viriam “preparadas” para essa possi-bilidade, ou seja, desprovidas de vestes íntimaspara uma suposta “facilidade de acesso”. Essascircunstâncias seriam responsáveis por engra-vidar e possivelmente contaminar com doen-ças venéreas de distintos tipos e gravidade di-ferenciada. Algo talvez não diferente de muitosbailes de carnaval, quando ocorrem situaçõesonde vigoram estados euforizantes, propícios aexcessos/transbordamentos de várias ordens.

     Ainda assim, não parece tão simples com-

    preendermos o repertório de significados en-volvidos nessa e em outra formas de exposiçãoa riscos. Em particular, seriam aspectos do ris-co-aventura no mesmo registro que as “ formas corrompidas dos ilinx modernos na perspectiva do ordálio ” a partir de Le Breton, referido porSpink? E/ou, em termos mais gerais, como as-pectos ligados à globalização, à individualiza-ção e à reflexividade da sociedade de risco namodernidade tardia, tais como sugeridos porUlrich Beck?

    Beck, assinalado no texto como referênciafundamental, postula a complexidade e a na-tureza sistêmica (meu sublinhado) dos riscosmodernos – “riscos manufaturados, produtosdos desenvolvimentos da ciência e da tecnolo-gia” (Beck, 1993, apud Spink). No entanto, co-mo salienta Lupton (1999), as representações

    de Beck (e, de certa forma, também de Gid-dens) podem ser consideradas excessivamenteespeculativas, tratando mais de processos es-truturais e organizacionais, sem incluí-los demodo suficiente especificamente nos proces-sos reais e experiências da vida cotidiana e ins-titucional. Pode-se, ainda, argumentar que Beck e Giddens em sua ênfase na individualizaçãonão dedicam um reconhecimento suficientequanto a aspectos simbólicos compartilhadosdo risco, sejam comunais, sejam estéticos.

     A reflexividade não está apenas baseada emavaliações de caráter cognitivo, mas também

    depende de interpretações, vinculadas a dimen-sões sócio-culturais ainda localizadas, mesmoem meio a processo desterritorializantes. Asrespostas ao risco são também desenvolvidasmediante a pertença das pessoas a grupos e re-des sociais, o acesso a recursos materiais e a in-clusão/exclusão nas relações de poder.

     A exemplo da figura mitológica, mescla dehumana e deusa, Ariadne – Beck e Giddens pro-curam nos orientar no interior do labirinto (in-clusive dos riscos) da modernidade tardia (Cas-tiel, 1999). Mas, neste caso, creio que o próprioDédalo (que instruiu Ariadne a usar o fio con-dutor para permitir Teseu encontrar a saída do

    labirinto após matar o Minotauro) tem dificul-dades para compreender as cambiantes dimen-sões e formas desse labirinto tardo-modernoque se reconfigura autonomamente sem ces-sar. Poderia Ariadne nos ajudar a escapar dosalto-falantes do grande labirinto midiático on-de tonitroa o onipresente Tigrão que não paroude nos acossar nos últimos tempos? Em outrostermos, como lidar com a pletora de novos eexcessivos signos que decerto continuarão aser gerados e, feito almas penadas, sairão à ca-ta de significados para depois desapareceremrapidamente, como ocorre nestes tempos si-

    multaneamente proliferativos e evanescentes?Latour (1999) refere-se ao mito de Dédalo

    para estudar o “coletivo de humanos e não-hu-manos ” (forma com que o autor evita se referirà “sociedade” e a “sujeitos” e “objetos”, por es-ses termos manterem vínculos com proposi-ções modernistas) constituído cada vez maispor artefactos técnicos e por suas intercone-xões labirínticas com os humanos. Dédalo re-presenta bem a sinuosa configuração do saber-fazer técnico para além do caminho retilíneo

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    SPINK, M. J . P.1296

    Cad. Saúde Pública, Rio de J aneiro, 17(6):1277-1311, nov-dez, 2001

    O risco-aventura e os limites de

    uma teoria da história

    O risco-aventura como metáfora na (da) mo-dernidade tardia, desde o início da leitura do

    exercício de translocação conceitual empreen-dido por Mary Jane Spink, remeteu-me à noçãode uma sociedade que, muito mais do que anomeada por Beck (1992), para além do poderdisciplinar, advoga a si a delimitação da traje-tória do homem, modulando seu tempo e suavivência pessoal. É como se a sempre presentepergunta de Gauguin: “de onde viemos, quem somos, para onde vamos? ” – fundamento denossa historicidade – estivesse respondida, nãomais através de respostas múltiplas, diferentesem substância e estrutura, mas num sentidoquase linear e especificado: viemos de uma he-

    rança genética codificada, que conjugada comos fatores de risco nela compreendidos e aque-les adquiridos, nos molda, e encaminhamospara uma morte passível de ser probabilistica-mente datada se tais riscos forem consideradose administrados. Fica implícita que a fase in-termediária – “o quem somos” – permanece li-gada, talvez como jamais o fora, à idéia de li-berdade, só que esta liberdade, agora, não estámais numa condição de “essência”, como pen-savam os iluministas, mas qualificada pela mar-ca da opção e da escolha embutidas na “aven-tura” de viver. O que se pauta não é o reforçodo conceito de livre arbítrio, pois nele se ins-

    creve uma percepção teológica de mundo, masa de liberdade/aventura perante a vida e a mor-te. Não é mais Deus quem fez os homens e es-ses, porque dotados de livre arbítrio, seguemou não Seus desígnios. A escolha que atualmen-te se patenteia é de outra ordem. Não somosdotados de livre arbítrio porque não há quemsobre nós tudo sabe; somos, isso sim, dotadosde liberdade de opção e escolha de conduzir a“aventura” de nossas vidas, mediante a gestãodas informações sobre todos e quaisquer riscosestudados, medidos e nomeados. Essa ilusãonos é vendida dentro das fronteiras de um mer-

    cado alicerçado numa ordem social que, na fal-ta de uma reflexão mais profunda, eu chamariade ordem social da imagem mediática.

    E o que tal ordem parece pretender? Paramim é claro e, a própria argumentação levadaa cabo no texto de Mary Jane Spink, referenda-a. Trata-se, como diz um dos personagens dasérie Arquivo X , de “inventar” o futuro para me-lhor controlá-lo. Mas, se somos assolados, naatualidade, por uma certeza de que algo mu-dou, de que há muito viemos sofrendo tran s-

    formações de algum modo decisivas e de quenossa vertiginosa história tecnológica do pre-sente modula novas formar de sentir, essa his-tória, por outro lado, remete-se para a produ-ção de novos sentidos que nos permit em ou-tras e mudadas interpelações com o mundo eseu conteúdo. Assim, é necessário abrir-se pa-

    ra as surpresas, para a heterogeneidade, paramúltiplas semioses e se isso pode ser qualifica-do como aventura, então, bem vinda ela seja.

    Uma teoria da história que considere e sepreocupe em oferecer instrumental para umaprática crítica capaz de reconhecer as próprias“tecnologias semióticas” (Haraway, 1999) dohomem para a fabricação de sentidos, talvezmais que constatar uma sociedade de risco aBeck, enseje refletir sobre o núcleo dela, ou se-

     ja, a questão da vigência atual de sociedades decontrole, conforme o delineado por Deleuze(1992) e dentro delas pensar a ética da ação hu-

    mana, sobretudo, na transformação do cami-nho ditado pela metáfora do risco-aventura. Évoltar-se para o “quem sou?” Pensar o ser ho-dierno relacionado a um corpo que é ao mes-mo tempo propriedade e produto (Vaz, 1996).Propriedade porque é resultado de uma identi-dade construída pelo consumo e pela realida-de de que cada um de seus órgãos são matéria-prima/produtos colocados à disposição de no-vas tecnologias.

    Entretanto, pensar a ética da ação humana,dentro dessa nova realidade do corpo é tam-bém, no meu entender, não abdicar de um pro-

     jeto de (re)atualizar a vontade de utopia inter-

    ligada ao desejo e à nece ssidade, porque semele não há como (re)equacionar o viver socie-tário e, principalmente, as dimensões assusta-doras assumidas pela fome e pela miséria emescala mundial. A democracia social deve per-manecer no horizonte assim como a luta con-tra o esvaziamento do processo político. Tantoa transmutação para a política do corpo, quan-to a assunção do risco-aventura como metáfo-ra na (da) modernidade, parece-me, funciona-rem mais como símbolos do que signos/sinaisda realidade que se deseja/precisa mudar. Seenquanto símbolos escapam, em parte, a um

    projeto de racionalismo totalizador, por outrolado não podem se limitar à mera constataçãode um determinado modo de se apropriar domundo. Nesse sentido, faz-se necessário em-preender uma ética de valorização da ação hu-mana que precisa da materialidade históricade uma razão afetiva.

     A aventura não seria, então, aquela embuti-da nos repertórios interpretativos do risco, masuma semelhante ao do camponês de uma “es-tória” sempre contada por Cornelius Casto-

    Instituto Fernandes Figueira,

    Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected] 

    Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso 

  • 8/18/2019 Trópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como metáfora na modernidade tardia

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     TRÓPICOS DO DISCURSO SOBRE RISCO 1297

    Cad. Saúde Pública, Rio de J aneiro, 17(6):1277-1311, nov-dez, 2001

    riades em suas conferências (Heller, 1993). A “aventura” deste camponês era a do viver plan-tando oliveiras para seus netos, pensando noquanto eles iriam usufruir do horto, o que fa-zia, segundo ele, não por desprendimento, massim por prazer, porque via os arbustos cresce-rem. Do risco-aventura, enquanto plot de uma

    meta-narrativa sobre a tardo-modernidade, sepensássemos como o camponês de Castoria-des, passaríamos à aventura ética de plantar,mesmo sem a certeza de que alguém irá fazeruso daquilo que plantamos, todavia podendodesejar que alguém o faça. No caso não seriaconsiderar o risco como ator histórico e, sim,considerar e aceitar a história como risco.

    BECK, U., 1992. Risk Society: Towards a New Moderni-ty . London: Sage Publications.

    DELEUZE, G., 1992. Conversações . Rio de Janeiro:Editora 34.

    HARAWAY, D., 1999. Situated knowledges. In: The Sci-

    ence Studies Reader (M. Biagioli, ed.), pp. 172-188,New York: Routlegde.HELLER, A., 1993. Uma Teoria da História . Rio de

    Janeiro: Civilização Brasileira. VAZ, P., 199 6. O Corpo-Propriedade . Rio de Janeiro:

    Programa de Pós-Graduação em Saúde da Cri-ança