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TEORIA SOCIAL E BIOLOGIA

Ricardo Waizbort

Pesquisador da Casa de Oswaldo CruzRua das Laranjeiras, 210 ap. 1010

22240-000 Rio de Janeiro � RJ [email protected]

Teoria social ebiologia:

perspectivas eproblemas daintrodução do

conceito de histórianas ciênciasbiológicas

Social Theories andBiology: perspectivesand problems of theintroduction of the

historical concept intobiological sciences

WAIZBORT, R.: �Teoria social e biologia:perspectivas e problemas da introdução doconceito de história nas ciências biológicas�.História, Ciências, Saúde � Manguinhos,Vol. VIII(3): 632-53, set.-dez. 2001.

A teoria da evolução por seleção natural deCharles Darwin, ao relacionar os seres vivosgenealogicamente, interpreta as espécies e suafantástica diversidade como uma história detransformações lentas e graduais. Embora asdescobertas de Darwin sejam importantíssimas econtinuem a ser corroboradas pelas novas teorias etécnicas da biologia molecular, a teoria (sintética)da evolução é pouco conhecida fora dos círculosacadêmicos. Nesse sentido são de granderelevância as novas abordagens que tentamestabelecer elos consistentes entre a teoria social ea teoria (neo)evolutiva. Para que essa ponte possatornar-se ainda mais sólida, seria importantederrubar as barreiras que separam o público emgeral, e o escolar em particular, da perigosamensagem de Darwin, que afirma serem nossascapacidades sociais e mentais originadas no reinoanimal sem interferência alguma de forçasespeciais.

PALAVRAS-CHAVE: história, neodarwinismo,seleção natural, apropriação do conhecimento.

WAIZBORT, R.: �Social Theories and Biology:perspectives and problems of the introduction ofthe historical concept into biological sciences�.História, Ciências, Saúde � Manguinhos,Vol. VIII(3): 632-53, Sept.-Dec. 2001.

By establishing genealogical relations amongliving beings, Charles Darwin�s theory ofevolution through natural selection interpretsspecies and their fantastic diversity as a longhistory of slow and gradual transformation.Although Darwin�s discoveries are of extremeimportance and, as a whole, remain scientificallyvalid, being corroborated by the new theories andtechniques emerged from molecular biology, the(synthetic) theory of evolution is little knownoutside the most academically strict circles. Inthis sense, there is great relevance in the newapproaches that try to establish consistent linksbetween social theory and the (neo)evolutionarytheory. In order to reinforce and make this bridgeeven more feasible, it would be important toknock down the barriers that separate the generalpublic � students specially � from Darwin�sdangerous message that our social and mentalcapacities have originated from the animalkingdom without the interference of any specialforces.

KEYWORDS: History, neo-Darwinism, naturalselection, education.

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RICARDO WAIZBORT

Podemos comparar o registro geológico de que dispomos a umahistória do mundo elaborada de maneira imperfeita e escrita numdialeto em extinção, e da qual possuímos apenas o último volume,relativo a somente dois ou três países. Deste volume, apenas sepreservaram alguns capítulos soltos, e de cada página apenas umaspoucas linhas.

(Darwin, 1985, p. 251)

Crise, ciências humanas e ciências biológicas

Avida nas sociedades humanas do Ocidente se encontra em evidenteameaça. Convivemos com uma situação grave: desemprego, fome,

doenças, miséria, extermínios, guerras são palavras que apenas resvalamna radicalidade dos problemas sociais. O contexto é crítico. Quando fuiconvidado a participar do encontro Teoria Social e Biologia1, a perguntaque logo me ocorreu foi: que contribuições a biologia atual poderiaoferecer para problemas que afligem as ciências sociais? Essa perguntaimplicava imediatamente a seguinte: que problemas sociais ou humanosclamam por uma luz vinda das ciências biológicas?

Note-se que essas questões não admitem respostas simples. Antesde mais nada, tanto a biologia como a teoria social são ciências cominúmeras ramificações. De que biologia se fala: da embriologia, daanatomia, da fisiologia, da paleontologia, da evolução, da psicologiaanimal, da biologia molecular? De que teoria social se fala: da sociologia,da historiografia, da filosofia, dos estudos literários? Sem querer cair emproblema de definição, a questão que nos concerne aqui hoje dizrespeito à teoria biológica que se conhece como teoria da evolução,também chamada de neo-evolucionismo ou teoria sintética da evolução.Para meus fins me dirigirei a essa doutrina como a atualização críticado darwinismo que hoje se aplica a todas as ciências biológicas.Entretanto, o neo-evolucionismo não é uma teoria consensual. Existe,no mínimo, uma polarização entre aqueles que crêem que a seleçãonatural é o único ou o mais importante mecanismo causal e direcional,e aqueles que crêem que a evolução estará sempre encoberta pormistérios e que a mente humana jamais terá capacidade para explicara história da vida na Terra por inteiro. Embora esse quadro sejadeclaradamente esquemático, é possível preenchê-lo colocando RichardDawkins e Daniel Dennett de um lado e Stephen Jay Gould, RichardLewontin e Noam Chomsky do outro (Dennett, 1998). Gostaria dedeixar claro que a história do debate acerca das causas da evoluçãocompreende um sem-número de outros cientistas e filósofos importantes,sobretudo, mas não exclusivamente, da Europa e dos Estados Unidos.

Sublinho uma trivialidade: o homem é um animal social. A expressão�animal social� possui obviamente dois termos. A aceitação de que ohomem é um animal é muito antiga e talvez seja anterior a Aristóteles

1 Este artigo resulta demeu pronunciamento noencontro Teoria Social eBiologia, que ocorreu em2.12.1999, por iniciativada Casa de OswaldoCruz, do InstitutoUniversitário dePesquisas do Rio deJaneiro e doDepartamento deSociologia daUniversidade Federal deMinas Gerais. O objetivodo encontro era�formular uma agenda dequestões para a teoriasocial, considerando aimportância crescente dabiologia e das hipótesesque o neoevolucionismotem sugerido para aintegração das diferentesdisciplinas científicas�.No presente artigodesenvolvo dois pontos:a importância crescenteda biologia na sociedademoderna, com especialênfase nodesenvolvimento dastécnicas da biologiamolecular; a importânciado neoevolucionismopara a integração dediferentes disciplinascientíficas, levando emconta o poderexplicativo do algoritmo�descendência(hereditariedade) commodificação (mutação)mais seleção natural�, aperigosa idéia de Darwin(Dennett, 1998).

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(o homem é um animal político). Mas a idéia de que o homemcompartilha com �todos� os animais e plantas �um� ancestral comumdata de aproximadamente 140 anos. A origem das espécies de CharlesDarwin, que completou silenciosamente essa idade no dia 24 denovembro de 1999, é certamente um marco nesse assunto. Entre asquestões que podem ser derivadas da teoria de Darwin está aquela queraciocina que, se o homem é um animal social, se também divisamosoutros animais sociais na natureza, então a socialização do homempoderia ser estudada biologicamente, evolutivamente, naturalisticamente,como a de um animal qualquer. Ocorre que assim caímos num intrincadoparadoxo circular, pois trata-se da mente humana procurando descobrircomo a própria mente humana emergiu e funciona.

As idéias de Darwin continuam válidas hoje? O que é exatamente oevolucionismo? E o neodarwinismo? Qual é a causa ou quais são ascausas da evolução? Qual o estatuto ontológico da seleção natural?Que papel ocupa o acaso nas teorias evolucionistas? Como se explicamos processos cognitivos do homem e de outros animais? Essas perguntas,entre outras, têm sido feitas há dois anos pelo grupo de estudos �Odarwinismo em questão�, que faz parte do Núcleo de Filosofia dasCiências da Vida e da Saúde, coordenado pela filósofa dra. Vera Vidal.Resultados concretos dessas atividades podem ser constatados nos artigosdessa seção da revista Manguinhos, nas palestras proferidas gravadasem fitas cassete (ainda indisponíveis) ao longo dos anos de 1999 e2000, nos encontros regulares e trabalhos finais dos inscritos no referidogrupo de estudos.

O número de publicações direta e indiretamente ligadas ao tema dodarwinismo é impressionante. Na rede internacional de comunicações(Internet), o nome �Charles Darwin� dá acesso a 66.786 sites. Se podemosmedir a vitalidade e a fertilidade de uma teoria científica e filosóficapelo volume de textos que induz, então a idéia fundamental de Darwincontinua mais viva do que nunca. Ao mesmo tempo, o próprio mercadobrasileiro tem se empenhado em traduzir, em muitos casos pela primeiravez, clássicos da literatura da biologia evolutiva, como uma seleção decartas de Darwin (2000a), sua autobiografia (2000b) e sua obra sobre aexpressão das emoções no homem e nos animais (2000c).

Entretanto, as dificuldades de estudar as idéias de Darwin dentro deseu próprio contexto são muitas. Embora a medula da teoria sejasimples e possa ser resumida em um silogismo muito econômico,baseado em duas premissas e uma conclusão,2 as idéias de Darwinpululam em seu texto e não é fácil destrinchar os nós desse labirinto,sobretudo quando muitos darwinistas e antidarwinistas se apropriaramdessas idéias de forma equívoca, para fins ideológicos muito distintos.Além disso, não se trata especificamente da importância da idéia deum homem transformado em herói ou santo, Charles Darwin, mas deuma reflexão que ocorre em torno da idéia de uma explicação causal,a seleção natural, acerca da diversidade e da adaptação dos seres vivos

2 Gould (1987, p. 1).Primeira premissa: �Osorganismos variam, eessas variações sãoherdadas (pelo menosem parte) por seusdescendentes.� Segundapremissa: �Osorganismos produzemmais descendentes doque aqueles que podemsobreviver.� Conclusão:�Na média, adescendência que variacom mais intensidadeem direções favorecidaspelo meioambiente sobreviverá ese propagará. Variaçõesfavoráveis, portanto,crescerão na populaçãoatravés da seleçãonatural.�

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aos seus ambientes naturais, sem interferência de poderes divinos. Issoé o que o filósofo da ciência Imre Lakatos (apud Regner, 1994, p. 108)chamaria de história interna da ciência: a parte lógica e epistemológicade uma teoria, a face objetiva da empresa científica.

Por outro lado, o contexto social, econômico e político no qual seinsere o personagem histórico Darwin é extremamente mais complexo,brilhante e irracional, como demonstra, por exemplo, já pelo título, afamosa biografia Darwin: a vida de um evolucionista atormentado(Desmond e Moore, 1995). Essa obra apresenta, desde o início, oentrelaçamento inexorável entre o trabalho científico de Darwin e suainserção em um contexto histórico específico e em mutação. Umaimagem que fica dessa obra é a da tensão instável e crítica entre asdescobertas de um homem, as resistências de outros, as aderências deterceiros, as críticas amigáveis e as destrutivas, os desenvolvimentos eapropriações da perigosa idéia de que há uma explicação natural paraa diversidade de seres vivos e de suas estruturas adaptativas. A descobertade Darwin não é a obra de um homem, mas uma descoberta feita porgerações que lutaram e lutam contra o preconceito e o dogmatismo,para tentar tirar a humanidade das trevas da ignorância e olhar paraalém de espelhos circulares ou divinos. 3

Darwin afirmou que, como todas as outras formas de vida, o serhumano também é um produto histórico e contingente da luta pelasobrevivência que se trava entre as espécies próximas e, principalmente,entre indivíduos de uma mesma espécie e de uma mesma população.Essa luta, entretanto, no mais das vezes, não é um combate corporaldireto contra um oponente ou inimigo, mas uma luta silenciosa pelosrecursos naturais disponíveis que, embora sejam fartos, pela extensãoda matéria viva, tornam-se logicamente limitados. O recurso naturaltalvez mais importante, bastante disponível mas limitado na natureza,são os parceiros sexuais. Estamos falando aqui, é claro, daquelas espéciesque se reproduzem sexualmente. É a partir da possibilidade doacasalamento e da procriação que se consegue contar uma história deparentescos, de genealogias, história que pode ser descoberta,recuperada, com trabalho e sorte, tanto por meio do estudo e daclassificação dos fósseis, como pela comparação da embriologia dediversos grupos (de animais e plantas), assim como pela comparaçãodas seqüências de bases nitrogenadas dos genes das mais diferentesespécies.

Embora alguns historiadores e filósofos da ciência considerem aevolução por seleção natural o mero reflexo da competitiva sociedadevitoriana em que Darwin viveu, a verdade talvez esteja mais próximade ser encontrada a meio caminho entre as teses que crêem que ateoria de Darwin apenas espelha a sociedade de sua época e aquelasque acreditam que a hipótese de Darwin se refere a algo objetivo, quese encontra decididamente na realidade (e não apenas na mentehumana).

3 O problema dacircularidade doconhecimento nasciências sociais e naturaisé de extremaimportância aqui. Umapergunta não pode seradiada pois temconseqüênciasepistemológicas epedagógicas: todoconhecimento humano éfruto da projeção nascoisas da estrutura damente ou do espíritohumano? O escritorargentino Jorge LuisBorges, em muitos deseus contos, jogou comessa pergunta. Umexemplo se encontra em�A busca de Averróis�, noqual o narrador conta asaga do comentaristaárabe da Poética deAristóteles, que apareceno título do conto,enfrentando os conceitosde tragédia e comédiasem conhecer a tradiçãoclássica da literaturaocidental. O narradorcoloca-se na mesmasituação que opersonagem criado porele: �Senti, na últimapágina, que minhanarrativa era um símbolodo homem que eu fuienquanto escrevia, e quepara escrever essanarrativa fui obrigado aser aquele homem, eque, para ser aquelehomem, tive de escreveressa narrativa, e assimaté o infinito� (Borges,1982, p. 71-80).

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Darwin relacionou os seres vivos não pelas características semelhantesou diferentes que os indivíduos possuíam entre si (conceito tipológicoou essencialista de espécie), mas por suas relações de descendênciahereditária, por seu parentesco ou genealogia (Mayr, 1987; Ghiselin,1987; Hull, 1987). Darwin estava trabalhando sobre o problema daorigem das espécies, no sentido de buscar uma explicação natural paraa talvez incomensurável diversidade de espécies que se pode observarno mundo vivo. Desmond e Moore (1995, pp. 359-70) contam que,quando Darwin foi estudar os cirripédios � pequenos crustáceos quevivem nas crostas rochosas do mar �, pensou que os indivíduos e asespécies deveriam ser muito parecidos. Para seu espanto, descobriuque as diferenças entre os indivíduos e entre os diferentes grupos dessepequeno artrópode com concha eram imensas, o que lhe rendeu umtrabalho muito mais longo e fastidioso do que a princípio previra.

Darwin advogou em A origem das espécies (p. 78) que �variedadessão espécies incipientes�. A fonte primária da evolução para ele são assutis diferenças que existem mesmo entre dois seres vivos de umamesma ninhada, ou seja, mesmo entre dois irmãos. Darwin afirma emsua obra magna que lhe importam �apenas� as variações que sãohereditárias. Estudiosos da história das ciências biológicas sabem queCharles Darwin não possuía uma teoria da herança aceitável. Darwindesenvolveu a idéia, em escritos posteriores a A origem das espécies, deque as características adquiridas durante a vida seriam representadasem gêmulas que migrariam para as gônadas feminina e masculina noperíodo reprodutivo, passando assim para a próxima geração. A hipótesesegundo a qual todas as partes do corpo fornecem material genético,sob a forma de gêmulas, para os órgãos reprodutores e, particularmente,para os gametas é chamada de pangênese (Mayr, 1998, p. 1.085). Osexperimentos de Weissman, cortando o rabo de camundongos machose fêmeas e os cruzando durante várias gerações, demonstram que aherança dos caracteres adquiridos não é uma teoria empiricamenteaceitável.4 Como para o bíblico Jacó, cujas ovelhas listradas eram oresultado de seus progenitores ovinos olharem para um bambuzalenquanto copulavam, a explicação lamarckista para a adaptação dosseres vivos tornou-se quase um mito.

A modificação a partir do uso e do desuso é uma intuição quevemos confirmada no mundo mais imediato e cotidiano: os desportistassão muito musculosos, animais mantidos em cativeiros sofrem atrofianos membros, aqueles de nós que praticam a matemática e o hábito daleitura ficam cada vez mais desenvolvidos nessas atividades intelectuais.Entretanto, a redescoberta da genética de Mendel no raiar do séculoXX cerrou para sempre a direção fenótipo-genótipo para a modificaçãohereditária. Ou seja, caracteres adquiridos durante a vida não sãoherdáveis. A chamada segunda lei de Lamarck está errada. Aquelerabo decepado durante a perseguição, aquele dedo perdido em umacidente, aqueles músculos conquistados pela luta contínua não são

4 �Blackmore (1999, p.60) argumenta queLamarck defendia que osorganismos individuaislutavam para melhorar, eos camundongos deWeissman não estavamem nenhuma disputaquando tiveram seusrabos amputados.Portanto, a teoriade Weissman nãopoderia refutar, nostermos propostos, a deLamarck.

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transmitidos aos filhos. As modificações que um corpo individual sofreem sua passagem pela vida não são preservadas nos indivíduos quelhe sucedem. O que é reproduzido nas gerações seguintes é o plano oureceita básica para construir cada novo organismo.

A história da biologia mostra que inicialmente mendelianos edarwinistas se opuseram como o fogo à água (Bowler, 1989, pp. 246-81; Mayr, 1998, pp. 601-13). A teoria de Darwin explicava a evolução,a mudança dos seres vivos; a teoria de Mendel explicava a permanência:como uma característica �reaparecia� na geração seguinte. Mendel queriasaber como as características se transmitiam dos ascendentes para osdescendentes. Darwin explicou como as espécies de seres vivosmudavam a partir da acumulação hereditária (histórica) das diferençasentre indivíduos. A variação individual para ele era a matéria-prima daseleção natural e da evolução.

Ocorre que a genética alcançou um desenvolvimento técnicoespetacular no século XX. Os achados de Darwin viram-se confirmadosna linguagem das seqüências de citosinas, timinas, adeninas e guaninas,que fazem parte do DNA. A descoberta do código genético não sócorroborou, no nível molecular, a idéia evolutiva de Darwin comoconsubstanciou quimicamente os �fatores� de Mendel. Entretanto, asconseqüências do darwinismo são menos pragmáticas do queverdadeiramente filosóficas. Hoje em dia, são as práticas espetacularesdas clonagens, do projeto Genoma Humano, das terapias gênicas, dosanimais e plantas transgênicos, que chegam ao público em geral. Ovelhasclonadas a partir de células de outras, ratos com orelhas, porcos comgenes humanos, o cenário é bem Blade Runner.

A importância crescente da biologia na sociedade moderna

Uma das realizações mais importantes da biologia do século XX foia descoberta da molécula química responsável pela transmissão dascaracterísticas hereditárias nos seres vivos da Terra, o DNA. ComoCharles Darwin, o DNA sozinho não é nada. Apenas no contextocitológico, mergulhado no nucleoplasma eucarioto ou no citoplasmabacteriano, interagindo com várias outras moléculas, o DNA exibe seusignificado. Ademais, o DNA como um todo aparentemente nadasignifica. Estamos interessados a princípio nos genes, pequenas fraçõesde DNA, que podem ter alguns milhares de pares de bases, mas querepresentam apenas 10% do DNA total.

Os genes têm papel fundamental na estrutura física dos seres vivos.Eles são os responsáveis pela transmissão das características hereditáriasdos pais para os filhos.5 Mas não é apenas isso: os genes carregaminformações para construir proteínas. As proteínas são as moléculasque, essencialmente, formam a estrutura física de nosso corpo e detodos os outros animais e plantas (e também dos microrganismos, decélulas e de estruturas celulares): ossos, sangue, pele, pêlo, unha, galhos,

5 Note-se que essaafirmação não implicanem uma definição degene nem uma defenótipo. É importante,mais uma vez, ressaltarque o fenótipo é ainteração entre ogenótipo, a expressãodos genes, e o meioambiente. O meioambiente aqui deve sercompreendido de formaintegrativa, pois se referetanto ao meio ambienteecológico em que seencontra um ser vivocomo o ambientenuclear dos geneseucariotos, o ambientetissular das células, eassim por diante.

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flores, raízes, membranas, mitocôndrias e um número virtualmenteinfinito de outras estruturas físicas macroscópicas e microscópicas. Alémdisso, existe uma classe especial de proteínas com propriedadescatalíticas, as enzimas, que, embora não constituam a estrutura físicados corpos, são responsáveis por acelerar reações químicas vitais. Semas enzimas, essas reações seriam tão lentas que a vida não existiria.Assim, todo o mundo orgânico é feito de proteínas e depende delas.Todo aluno de ensino médio (antigo segundo grau) deveria saber isso.A questão é que a descoberta do DNA como a molécula responsávelpela transmissão das características hereditárias é contada topicamente,desvinculada de tudo mais, do darwinismo, do mendelismo, do neo-evolucionismo, como uma mônada inarticulada no espaço e no tempo.

A informação genética é transferida do gene para a proteína, o quetorna ilegítimo o tipo de herança lamarckista. Por meio das moléculasde DNA contidas no espermatozóide e no óvulo dos progenitores, aprole herda a receita genética para produzir as proteínas que a formarão.O meio ambiente não informa ao corpo como devem ser os corpos nasgerações futuras. As gerações não evoluem, as espécies não setransformam umas nas outras, de nenhum modo, por algum esforço ounecessidade de adaptação dos seres individuais às condições do entorno.Pelo menos em um primeiro momento.6

De fato, o DNA é uma molécula altamente conservadora. Sua lógicaalgorítmica é produzir cópias absolutamente idênticas de si a partir desi. Todavia, ocorrem nesse processo erros de cópia. Se não fosse assim,a vida não teria evoluído, não existiriam insetos e aves, baleias epeixes, anêmonas e árvores. A reprodução dos seres vivos, mesmo dosmais simples, não é exata. Erros de cópia por definição são chamadosde mutação. Uma vez que o DNA possui estrutura física bem definida,as modificações que por acaso ocorram são cegas. Isso significa queuma mudança de base nitrogenada ocorre independentemente dasnecessidades externas e macroscópicas (e às vezes subjetivas) doorganismo em questão.

Para compreender a estrutura molecular que nos faz matéria foinecessário romper com o mito da descontinuidade entre o orgânico eo inorgânico. Até as primeiras décadas do século XIX, acreditava-seque as chamadas substâncias orgânicas (aquelas cuja estrutura é umacadeia de átomos de carbono, como as proteínas) só poderiam serproduzidas como resultado de processos que ocorriam por intermédiodos seres vivos. Entretanto, em 1828, Friederich Wöhler conseguiusintetizar uréia (um excreto orgânico de diversos animais presentetambém no leite e no sangue) a partir de substâncias inorgânicas (Ronan,1987, pp. 42-3). A barreira entre orgânico e inorgânico, entre o mundoanimado e inanimado começava a ser derrubada. Tal descoberta serviude base para Oparin (1963), quase cem anos depois, supor que, se osquímicos são capazes de sintetizar substâncias orgânicas em laboratório,é possível que, na Terra primitiva, átomos de certas substâncias simples

6 Atualmente, olamarckismo temrevivido com forçainusitada. Não se trata,entretanto, dolamarckismo histórico, doinício do século XIX. Apartir da descoberta doefeito Baldwin,começou-se a desconfiarda importância daaprendizagem naevolução. A questão écomplexa e remeto ointeressado a textos quetratam do assunto(Dennett, 1998, cap. 13,pp. 386-418; Blackmore, 1999,cap.9, pp. 108-20;Jablonka et alii , 1998).

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pudessem se ligar de maneira a formar compostos orgânicos maiscomplexos. É a idéia de evolução pré-biótica. Dado um tempo geológicoverdadeiramente longo, digamos quinhentos milhões de anos (5 x 108

anos), a matéria orgânica poderia surgir da matéria inorgânica. Note-se que é uma tentativa de contar uma história de como a vida poderiater se originado.

Ainda hoje, o salto das moléculas orgânicas para a vida não écompreendido completamente. As teorias que discutem a origem davida sobre a Terra são todas bastante conjecturais e nunca poderão serdiretamente testadas, pois a origem da vida na Terra foi um fenômenohistórico e, como tal, único e irrepetível. Os coacervados de Oparinnão gozam atualmente de prestígio científico, mas eles abriram umapassagem para se imaginar o cenário de uma Terra primitiva, com umaatmosfera quimicamente distinta da nossa, na qual pequenas substânciasse combinavam devido a circunstâncias históricas específicas.

Voltando um pouco no tempo, a partir talvez dos experimentoscuidadosos e simples, Mendel descobriu, na segunda metade do séculoXIX, que existiam �fatores� responsáveis pela transmissão dascaracterísticas hereditárias e como eles se distribuíam de geração emgeração. Mendel não estudou os fatores no nível molecular, que erainacessível à sua época. O termo �gene� foi adotado mais tardiamente,em um tempo em que �o pai da genética� já havia morrido. Durantecerca de cinqüenta anos perduraram as dúvidas acerca de qual seria abase química dos �fatores� mendelianos.

Provavelmente sem suspeitar sequer da existência dos trabalhos deMendel, em 1869, um médico suíço de 22 anos, Friederich Miescher,isolou dos núcleos de células de pus, �obtido de ataduras usadas naguerra franco-prussiana�, e de esperma de salmão uma molécula queainda não fora identificada. Miescher deu a essas moléculas o nome denucleínas (Burns, 1984, p. 318). Mais tarde, o nome dessa entidadequímica seria universalmente adotado como ácido desoxirribonucléicoou DNA (ou ADN). Assim como as proteínas, os DNAs são polímeros,só que estes são polímeros de nucleotídeos aminoácidos, enquanto asproteínas são cadeias de aminoácidos.

Ocorreu um lapso de quase cem anos entre essa descoberta e acorrelação entre o DNA e a transmissão das características genéticas ouhereditárias. As proteínas foram consideradas fortes candidatas para afunção da transmissão do código capaz de produzir um novo corpo apartir da fecundação, pois estavam presentes em todos os organismosvivos, e isto era logicamente essencial se se desejava descobrir a moléculaque transmitisse o código hereditário universal, ou seja, presente emtodos os seres vivos. Entretanto, o desenvolvimento de técnicas cadavez mais sofisticadas, provenientes da física e da química, permitiu nãosó comprovar que os ácidos nucléicos também eram universalmenteencontrados no reino dos vivos, mas também que o DNA era a moléculaquímica em que se localizavam os fatores de Mendel, os genes.

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Em 1928, o microbiologista Frederick Griffith inoculou camundongossaudáveis com uma cepa não-virulenta de bactérias da espécie Diplococuspneumoniae, mas que tinham tido contato com extratos de cepas deDiplococus pneumoniae mortas por calor. O resultado foi a morte doscamundongos. A explicação foi que as bactérias não-virulentas foram�transformadas� por uma substância que deveria estar ainda intacta eativa no citoplasma das bactérias virulentas mortas pelo aquecimento.O experimento ficou conhecido como �transformação de bactérias� ou�efeito Griffith� e é considerado o primeiro passo na identificação domaterial genético (Burns, 1984, p. 318).

Apesar de extremamente elegante e promissor, o efeito Griffith nãorespondia qual substância teria sido responsável pela transformação doDiplococus pneumoniae não-virulento em virulento. Dezesseis anosdepois, em 1944, três cientistas � Avery, MacLeod e McCarty � repetiramcom sucesso a experiência de Griffith. Só que, em vez de trabalharemcom um modelo animal, trabalharam in vitro, e foram capazes deidentificar a �substância transformante�, o DNA (Burns, 1984, p. 319;Stahl (1970, pp. 27-8); Petit e Prévost (1970, pp. 20-1, 31).

Em 1953, James Watson e Francis Crick propuseram um modelomolecular para o DNA após um ano e meio de trabalho na Universidadede Cambridge. O modelo foi tão importante para a biologia queWatson e Crick dividiram mais tarde o prêmio Nobel de medicina. Oavanço da biologia molecular após a descoberta da estrutura do DNAfoi extraordinário. A replicação do DNA foi estudada nos laboratórios,assim como o processo de �expressão� gênica (�transcrição� do DNA emRNA e �tradução� do RNA em proteínas). Hoje em dia, pode-se determinaro código genético de todas as proteínas cuja seqüência de aminoácidosé conhecida empiricamente. São conhecidas também as alterações(mutações) nas proteínas que causam inúmeras doenças. Decifrar todoo código genético humano foi um sonho que está prestes a se realizar.Entretanto, uma vez mapeado o genoma de nossa espécie, o que fazercom essa fantástica descoberta? Essa é uma pergunta extensamentedebatida, como demonstram, por exemplo, as atas do ComitêInternacional de Bioética da Unesco, de 1998, e o Dossiê Genética daUniversidade de São Paulo (USP), de 1994. A questão do mapeamentodo genoma humano é algo que, assim como as questões doconhecimento e da linguagem, interessa a todos os homens, e nãoapenas aos especialistas.

A descoberta da estrutura do DNA foi possível devido a uma sériede desenvolvimentos teóricos e tecnológicos que permitiram ummergulho no mundo molecular, invisível ao olho desarmado. O DNAencontra-se, na maior parte do tempo, no interior do núcleo de umadeterminada célula. Células não vivem sozinhas. Mas estão estruturadasem tecidos que por sua vez dão origem a órgãos, estes a sistemas(nervoso, cardiovascular, esquelético, digestivo); por sua vez estesestruturam organismos que podem se agrupar em populações e até em

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sociedades. As conseqüências sociais e científicas da descoberta dasduas funções básicas do DNA, replicação e síntese, são indisputáveis.O avanço na detecção de doenças genéticas, o tratamento por meio deterapias gênicas, o desenvolvimento de vacinas de DNA, o melhoramentoalimentar (animal e vegetal) por técnicas moleculares permitem hojeuma abordagem interventora que revoluciona as relações sociais.Entretanto, a compreensão da base científica e filosófica desses achadosestá restrita a um público pequeno e no mais das vezes acadêmico, einfelizmente não é proposto até aqui o amplo e desejável debate comoutros setores da sociedade.

Hoje, a engenharia biológica pode fazer um tecido orgânico doenteexpressar a proteína cuja ausência o condena. A intervenção humanapermite que algo que não trazemos dentro do núcleo de nossas célulasseja ali alocado. Genes de uma espécie expressam suas proteínas nocorpo celular de outra espécie. O conceito de identidade biológica sevê questionado. A ciência também tem descoberto que, na natureza, omaterial genético de �todos� os seres vivos não é tão idêntico a simesmo, durante toda a vida do indivíduo que o transporta. Vírus,plasmídeos bacterianos e transposons são exemplos de partículas deDNA capazes de se integrar nos cromossomos de animais e plantas.Além do mais, um tempo após ficar ali residindo, essas partículaspodem abandonar sua morada �levando pedaços do DNA-hospedeirojunto� (Shapiro, 1999). Entretanto, todas essas maravilhas não significamque agora sabemos tudo sobre a natureza dos seres vivos em seusvários níveis de organização. Muito pelo contrário.

Somente nas últimas décadas as ciências biológicas têm interferidodiretamente, em termos moleculares e físicos, no curso dessa história.Mas o homem em sociedade sempre se interessou em produzir deforma artificial uma melhor colheita de trigo e um melhor rendimentode seus rebanhos. Como dependemos da vida de outros seres vivospara nossa sobrevivência, os mecanismos pelos quais a vida se perpetuasempre nos interessaram. Ao engenheirar geneticamente um organismo,e sobretudo o próprio homem, a interação entre o gene que entra eo genoma �selvagem� como um todo não pode ser prevista. Não hásequer uma história acerca dessa interferência, uma vez que adescoberta dos processos epigenéticos é apenas incipiente. Asinterações entre genótipo e fenótipo, a epigênese, estão longe de sercompletamente desvendadas. A biologia do desenvolvimento estáapenas na infância. Aprendemos que o fenótipo é o produto dainteração entre o genótipo e o meio ambiente. Todavia, essa interaçãoé extremamente complexa. Os genes se encontram em ambientes degenes, de DNA (em ambientes atômicos e subatômicos). Ao mesmotempo o DNA está localizado no núcleo das células eucarióticas (e nocitoplasma das procarióticas), mergulhado em um minúsculo oceanoprotéico. As células se encontram reunidas em tecidos. Os tecidosestruturam órgãos. E assim por diante.

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A questão que estou querendo propor aqui é a da relação que podeexistir entre genes e a cultura humana. É certo que o crescimento docérebro no gênero Homo nos últimos sete milhões de anos foi algoextraordinário. É claro que a cultura humana deve muito à linguagemarticulada, ao relato de mitos, à conversa cotidiana, à elaboração delivros. O difícil é saber quem cria quem, em que medida o cérebroconstrói a linguagem (as linguagens) ou a linguagem constrói o cérebro.Pois trata-se de um processo de retroalimentação positiva em que oestímulo de um dos lados favorece o estímulo do outro.

A importância do neo-evolucionismo para a integração dediferentes disciplinas científicas

O ramo da biologia que investiga o comportamento social humanocomo uma espécie de estrutura animal evolutivamente derivada éconhecido como sociobiologia. O problema de fundo que se colocanessa questão é se o comportamento animal, e em especial ocomportamento humano, pode ser reduzido à expressão dos genes.Existem genes que determinam a agressividade e a propensão aoassassinato, assim como existem genes que determinam a cor dosolhos? Ernst Mayr (1998, p. 667), que decididamente não é umsociobiólogo, defende que há poucas dúvidas de que grande parte,senão a quase totalidade, do comportamento social dos animais temum forte componente genético. Como negar que o fato de termos cincodedos, com um polegar opositor, influencia profundamente nossocomportamento, assim como o leão ter garras e dentes afiadíssimosmodela o comportamento dele?

O filósofo da mente Daniel Dennett (1998, pp. 85-6) chama aatenção para uma distinção importante dentro do programareducionista: existiriam os reducionistas gananciosos e osmetodológicos. Os metodológicos concebem os fatores genéticoscomo importantes, mas não únicas peças no esquema de explicação;os gananciosos acreditam que devem reduzir toda explicação nabiologia (e por extensão no comportamento animal) a explicaçõesfísicas. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que RichardDawkins, o autor do tão criticado O gene egoísta, é, antes de tudo,um zoólogo que estuda o comportamento animal, um cientista quetrabalha com organismos no nível macroscópico.

Dawkins propõe que os corpos de todos os seres vivos, e porextensão os de todos os seres humanos, nada mais são do quemáquinas de sobrevivência para perpetuar genes que são muitomais longevos que os indivíduos que os transportam e os transmitem,e que as próprias espécies que compõem esses indivíduos. SegundoDawkins, a evolução biológica obedece à lógica egoísta dos genes.Isso nada mais é que o mais puro darwinismo exposto em termosmoleculares. E segue a ortodoxia que assimilou criticamente os

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achados da genética de populações e da genética molecular. Existeuma competição no nível dos genes, genes disputando entre siquais felizardos entrarão nas fendas cromossômicas das células dosindivíduos das próximas gerações.

Dawkins despende várias páginas no seu texto tentando demonstrarque a metáfora do genoma, como uma biblioteca, tem várias limitações.Aliás, caberia um estudo da construção e da desconstrução de metáforaspelo próprio Richard Dawkins, mas vamos adiante. Ele discute que aexpressão �gene egoísta� não é muito adequada, pois não se trata degenes isolados, mas de complexos gênicos integrados pela evolução,durante centenas e centenas de milhões de anos. Nossos corpos são aexpressão de interações complexas entre os genes que recebemos denossos pais e o meio ambiente em que estamos encerrados como emuma cela. Não podemos deixar de comer, de beber água, de amar, denos locomover, pois o espaço e o tempo nos quais nascemos exigemtodos esses movimentos. E somos providos pela natureza, por maisdistante que ela pareça estar no cenário urbano, de uma estrutura ósseae sangüínea, nervosa e muscular, perceptiva e intelectual. A estruturafísica de todas essas partes do ser humano está codificada, pelo menosem grande parte, nos genes. Hoje não parece mais ficção científicasaber sobre o estado de saúde de um futuro filho, estudando o mapagenético dos pais. Também podemos planejar intervenções molecularese genéticas capazes de suprimir uma deficiência enzimática fatal.Devemos estar preparados para enfrentar o desafio de um mundo ondeas empresas deterão as patentes de vários genes, o que significa dizer,de várias proteínas e enzimas que podem se tornar importantíssimassocial e politicamente. Tais conquistas são também perigosas. Quemhoje se permite ser tão ingênuo a ponto de imaginar que a revoluçãogenética transformará também as relações sociais no sentido depromover a democracia? Ou essas técnicas estarão disponíveis, aomenos a princípio, para aqueles poucos, que conhecemos, que podempagar por elas? Ou cairão nas mãos de inescrupulosos empresários,que desejarão fazer dinheiro com os genes, assim como fazem com osremédios, ou seja, à custa da doença alheia? A idéia de eugenia, éclaro, também está no horizonte: o sonho (ou será o pesadelo?) demelhorar a raça humana, a perigosa idéia de que possa haver algocomo raças superiores e inferiores, e que por meio de um processogenético qualquer se possa purificar ou aperfeiçoar a espécie.

No segundo semestre de 1999, o amargo tema da eugenia foi revividopelo filósofo alemão Peter Sloterdijk (2000) em uma palestra na Bavieraintitulada �Regras para o parque humano�, gerando uma aguda polêmicacom outro filósofo alemão, Jürgen Habermas. Retomando Nietzschepara criticar Heidegger, Sloterdijk argumenta que a sociedade ocidentaldesde Platão tem sido o resultado da domesticação do homem pelohomem. Partindo de uma seleção psicológica e da lição escolar, ohumanismo teria construído artificialmente uma cultura que preza a

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inibição das forças destrutivas que também compõem o homem. Acultura humanista estaria hoje vencida, aparentemente soterrada nolixo midiático produzido pelas novas formas de dar vazão à barbárie,como a televisão e a Internet.

�Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido emuma palavra: �cultura.�� �O que esta surpreendente variedade sugere éque o modo de vida do homem é em grande parte determinado pelacultura, e não pelo genes.� Essas não são as palavras de um sociólogoou de um historiador, mas de Richard Dawkins (1979, pp. 211, 186).Como considerá-las o discurso de um reducionista, de um deterministaou de um sociobiólogo? A meu ver, O gene egoísta é um livro escritopara chegar à emergência evolutiva de um segundo tipo de replicador.O gene é o primeiro replicador fundamental, que tem mantido a chamada vida acesa sobre a Terra desde que ela espontaneamente apareceu.Através das gerações, os genes transmitiram a informação química egenética para a construção de novos corpos. Assim como os genes ougenomas, providos de suas máquinas de sobrevivência, lutam paraque cópias suas sejam transmitidas para as gerações seguintes, umaidéia, ou meme, luta para alcançar outros cérebros e neles viver. Assimcomo a luta entre os genes (genomas) é inconsciente, irracional e semintencionalidade, também o é a luta entre os memes.

O programa de pesquisa dos memes é um novo ramo das ciênciassociais ou do espírito, a memética.7 Ele tenta estabelecer criticamenteuma relação entre genes e memes, entre a biologia e a cultura, semtentar reduzir gananciosamente uma à outra. A questão, no entanto,começa a se mostrar mais complexa, pois o darwinismo, reinterpretadodessa maneira, ameaça invadir outras áreas do conhecimento com suaconcepção genealógica, histórica. A evolução cultural é o desenvol-vimento de idéias e, sobretudo, de práticas associadas a essas idéias. Éuma história de concepções de mundo que se modificam com o passardo tempo, tanto que, ao olharmos, através dos textos, para civilizaçõespassadas, no mais das vezes não apreendemos de imediato seussignificados. A perspectiva histórica, o reconhecimento de que a vidade ontem pode ter sido muito diferente da de hoje, a cautela para nãoprojetar rápido demais preconceitos atuais sobre outras épocas sãoantídotos admissíveis, embora falíveis, para não promover umaantropomorfização do universo e de fenômenos que gostaríamos decompreender.

Existem historiadores e filósofos da ciência que acreditam que abiologia nasce como ciência, estruturando-se, profissionalizando-se,institucionalizando-se, a partir de Darwin (Caron, 1988). Talvez a biologiatenha nascido algumas décadas antes de Darwin, ou alguns anos depoisdele. O que importa é que o estudo da biologia ganha com Darwin, apartir dele, uma perspectiva �histórica� jamais vista antes. Trazemostalvez de nosso passado escolar a idéia de que a história começa como registro escrito; a pré-história é obviamente tudo o que vem antes

7 A memética é a ciênciaque estuda as idéiascomo se elas fossemmemes ou unidades deimitação cultural. Taispartículas ou átomosculturais seriam análogosaos genes. Há estudostentando modelar asidéias tendo como basetanto a genética depopulações como aepidemiologia. Em todosos casos, trata-se datentativa de estudar acultura de um ponto devista darwinista, valedizer, como a história doembate entreconcepções rivais e decoalizões de entidadesvisando a sobrevivênciae a reprodução. Para osinteressados vale umavisita à página do Jornalof Research in Memetics(url:www.mmu.ac.uk/jom-emit)

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dela. Todavia, estudos teóricos e práticos da biologia evolutiva têmdemonstrado que esse �antes� é muito mais profundo e complexodo que se pensava. Esse passado biológico também padece doproblema da reconstrução histórica, que é trabalhar sempre a partirde informações fragmentadas e insuficientes. Querendo descobrir ahistória pela qual os seres vivos se originaram e evoluíram sobre aTerra, o cientista quer conhecer um processo que foi multidimensional.Seu significado talvez resida na relação entre vários e múltiplosníveis de visão (e de interpretação). Seja partindo do registro fóssil,da comparação entre embriões de várias espécies, da distribuiçãogeográfica dos seres vivos, da composição genética de animais,plantas, microrganismos e fungos, o que importa é descobrir seexiste a possibilidade de uma narrativa científica consistente quepossa ser contada a �partir desses dados insuficientes�. De qualquerforma, trata-se de recuperar um tempo profundo, de dezenas ecentenas de milhões de anos, às vezes bilhões de anos, parareconstruir os passos e os processos que levaram à emergência deformas vivas que, por sua vez, se ramificam.

Os seres vivos transformam-se acompanhando as ondas de mudançasambientais profundas, alteradas por sua vez por fenômenos geológicosmonótonos ou por catástrofes imprevistas. A biologia, desde seu início,estabelece um diálogo com a geologia, com a meteorologia e, maistarde, com a química e a física. Naturalmente a história do própriohomem, interesse da antropologia, é uma ponte entre as chamadasciências biológicas e as ciências sociais. Dado que a emergência e odesenvolvimento do homem a partir de suas raízes primatas são aceitosentre cientistas, sociólogos e filósofos, a pergunta �de onde viemos?�está obviamente respondida: viemos de um ancestral comum entre oshomens, os chimpanzés e os gorilas.

Entretanto, a questão não está resolvida, sobretudo porquedesejaríamos descobrir como viemos parar aqui, em meio a tantasconquistas e tantos conflitos. Existem inúmeras teorias que tentamexplicar como o homem evoluiu, ou seja, como chegou a ser o que éhoje. O dr. Hector Seuánez (1979, p. 3), professor do Departamento deGenética da UFRJ apresenta o paradoxo do crescimento rápido docérebro humano:

O homem é uma espécie relativamente nova, porque, embora oprimeiro presumido hominídeo tenha aparecido há uns 15 milhõesde anos, os remanescentes dos seres que podem ser propriamenteconsiderados Homo sapiens não são mais antigos do que 250 milanos. A emergência do homem como o mais bem-sucedido detodos os seres vivos foi alcançada em um número surpreenden-temente pequeno de gerações. Tomando 15 anos como o tempomédio necessário para que os seres humanos atinjam a puberdade,e extrapolando um período similar para nossos ancestraishominídeos, o tempo transcorrido desde a ramificação dos primeiros

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hominídeos do estoque comum homem-macaco até os dias de hojerepresenta 1 x 106 (um milhão) de gerações. Esse número a princípiopode parecer grande. Entretanto, o mesmo número de gerações cobriria250 mil anos no caso de um mamífero menor, como um camundongo,que pode se reproduzir com a idade de três meses. Além disso, nocaso das bactérias, capazes de se dividir a cada vinte minutos, 106

gerações tomariam cerca de uns 76 anos.

O cérebro humano cresceu cerca de três vezes, em pouco maisde 15 milhões de anos, época em que a linhagem que veio dar nanossa espécie divergiu filogeneticamente do tronco comum homem �macaco. Um milhão (106) de gerações, a princípio, representa umtempo relativamente muito curto para que qualquer mudançaprofunda possa ocorrer em uma espécie. Não estou querendo, emabsoluto, sugerir que haja alguma força sobrenatural intervindo naemergência do homem sobre a Terra. Existem várias explicaçõesreligiosas, míticas, filosóficas, literárias, científicas para a origem dohomem no planeta. A interpretação que quero indicar aqui é que asidéias, os memes, sob as mais variadas formas, podem ter contribuídopara guiar a evolução do cérebro humano, o que significa dizer queo cérebro humano cresceu para acompanhar o que se pode chamarde evolução cultural (Blackmore, 1999, pp. 67-81). Não ousoestabelecer aqui uma relação de causalidade linear como �a culturacausou o crescimento do cérebro�. Curiosamente, invertendo o sujeitoe o predicado dessa frase, ela também parece verdadeira. A questãoé que a relação entre o cérebro e a cultura, assim como entre essese a linguagem, é bastante intrincada e não deixou impressões nosregistros fósseis. Estou defendendo então que não pode haver umacompreensão mais profunda da história e da crise do presente senão olharmos ao mesmo tempo para o nosso passado cultural epara nosso passado biológico, evolutivo.

A má assimilação do neo-evolucionismo entre alunos doensino médio

Para as ciências biológicas, o darwinismo permanece vivo muitoapós o desaparecimento de Darwin. O meme evolucionista continuaprogredindo. Todavia, muitas pessoas instruídas continuamcartesianamente agindo no mundo como se ele fosse modelável pornós, enquanto o revolucionário e subversivo é que os genes (e tambémos memes) podem ser interpretados como egoístas, irracionais einconscientes e agem a despeito de nossa vontade ou conhecimento.Os genes são egoístas no sentido de que sua lógica própria de reprodução,desconhecendo qualquer intencionalidade, favorece justamente aquelasmáquinas de sobrevivência mais aptas para propagar os próprios genes.Nós somos máquinas de reprodução dos genes. Nesse sentido, a atual

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propaganda sobre o sexo não faz mais do que reforçar uma velhareceita evolutiva. Há sem dúvida um mundo além da razão e dossentimentos, e esse mundo não é necessariamente bonito nem bom.Todavia, sua realidade (histórica) gravada nas rochas, no DNA, nasrelações de parentesco, na estrutura da sociedade globalizada, nasbibliotecas do labirinto, sugere que o fenômeno complexo quechamamos vida engloba a vida em sociedade, e não o contrário. Nãoé o caso de reduzir gananciosamente a sociologia à biologia, masreconhecer que a biologia é estrutural para a sociologia. Assim comoa física e a química são estruturais para a biologia. Não se trataexatamente de redução, mas de causação descendente (Popper, 1995,p. 39). Os homens em sociedade (ou mesmo em uma imaginávelsituação em que estariam fora dela) são feitos de carne, copulam paraprocriar (por puro prazer ou por dinheiro também), têm uma dezenade bilhões de neurônios, dois olhos, ossos, células... E é no códigogenético das células sexuais, os espermatozóides e os óvulos, que estágravada quimicamente a receita para reproduzir corpos.

É claro que a origem de um fenômeno não explica seudesenvolvimento � devemos evitar o que ficou conhecido como afalácia genética. A origem de um fenômeno não explica seudesenvolvimento nem tampouco seu estado atual. Não podemos explicartoda a história por genes, mas os genes são ao menos personagensmuito importantes. Darwin não se preocupou exatamente com a teoriada herança genética, e sim com o processo de transformação das espécies.Isso não o impediu de chegar à engenhosa teoria da evolução porseleção natural, em que a descendência com modificações ao acasoera a base material sobre a qual operava a seleção natural, gerandoassim, dado o vasto tempo geológico, a diversidade de espécies queele desejava explicar. A chamada teoria sintética de evolução, como onome indica, postula uma espécie de complementaridade entre odarwinismo e as leis da genética clássica de Mendel e o seudesenvolvimento no século XX. O que é mais importante nessa asso-ciação entre genética e evolução, que apresenta várias nuanças entrepersonagens históricos e idéias científicas, é que a herança dos caracteresadquiridos, a genial teoria de Lamarck, adotada muitas vezes pelo próprioDarwin, foi finalmente banida da ciência e hoje faz parte da história.8

Entretanto, na medida em que o Homo sapiens foi se tornandouma criatura cultural, com várias instituições, como a Igreja, o Estado,os partidos políticos, a escola etc., a luta pela sobrevivência deixoude se dar no cenário natural. O homem não vive mais na natureza,mas em sociedade, em cultura. Não é a lógica dos genes que impera,mas uma lógica gravada em linguagem � quer seja essa linguagema da estrutura primitiva dos mitos, quer seja a da propaganda, damoda, da política ou da Academia. Todas essas linguagens vivemem um ambiente que ignora a natureza selvagem e se torna civilizadae urbana. Acordamos diariamente para ir ao trabalho, discutimos

8 Como já foi referidoem nota anteriormente,esse não é o fim dahistória. Nos últimosanos, inspiradoprincipalmente porBaldwin e depois porWaddington, olamarckismo temrevivido, embora emuma reinterpretaçãoheterodoxa (Jablonka,1998). Vários cientistastêm demonstrado que,apesar de asnecessidades dosindivíduos não poderemalterar propriamente ocódigo genético, anecessidade e também opróprio comportamentopodem contribuir paraum fenômeno deamplificação, por meioda seleção natural, daexpressão de umdeterminado fenótipo,acelerando a evoluçãoenquanto o entorno semantiveraproximadamenteconstante.

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política e futebol, almoçamos em restaurantes a peso, e nada dissopode ser encontrado no estado natural.

Segundo muitos adeptos da teoria dos memes, o que éfundamental na cultura, aquilo mesmo que está na sua origem ouraiz, é a capacidade de imitação. Um meme é uma unidade deimitação. Estou tentando mimetizar o darwinismo aqui porque acreditoque sua compreensão conduz a uma forma de interpretar a naturezaque sugere olhar a ciência não apenas como o produto de nossaslimitações, mas também como expressão da riqueza dos seres quehabitam a Terra. Nessa direção acredito que nossa curta participaçãona história deste planeta é tudo que temos, o maior dos tesouros.

A evolução biológica implica o reconhecimento de um tempohistórico muito, mas muito mais vasto do que a história humana. Ateoria da evolução é produto da mente humana. O homem emergiutarde na história evolutiva. Os grandes répteis, por exemplo, dinossauros,tiranossauros e brontossauros, desapareceram da Terra há 65 milhõesde anos. A família hominidae, da qual bem mais tarde se originaria oHomo sapiens sapiens, apareceu há cerca de sete milhões de anos. Ohomem moderno atual, tal qual poderia ser reconhecido por qualquerum como ser humano no meio da rua, apareceu apenas há quarentamil anos! A Terra existe há uns cinco bilhões de anos e a vida há unsquatro bilhões e meio. Durante muito mais da metade desse tempoeste planeta foi povoado apenas por organismos microscópicos. Somentenos últimos seiscentos milhões de anos emergiram criaturas pluricelularesmais complexas, como os moluscos, os artrópodes, os anelídeos, osequinodermos, entre outros. A história da vida é profunda e cheia defalhas no registro mais substancial e importante, o registro fóssil. Mas oque se sabe a partir do registro fóssil, por exemplo, de nossa própriaespécie, indica uma narrativa consistente (Leakey, 1995; Leakey e Lewin,1988), embora coalhada de lacunas importantes.

As forças evolutivas que fizeram o homem emergir foram forçascegas, segundo Darwin e todos os biólogos que acreditam em umainterpretação realista da evolução. Todavia, é profundamente equivocadopensar, como pensam alunos do ensino médio, que a evolução dohomem (e de outras espécies) ocorreu ao acaso. Muitos filósofos e cientistasque tentam compreender o fenômeno biológico afirmam que a seleçãonatural é o elemento antiacaso da evolução. Em Levando Darwin asério, Michael Ruse (1995) sugere que, para fins de compreensão, aevolução biológica pode ser dividida em três partes: evolução como fato(o fato de que a vida na Terra vem se modificando profundamente emseus cinco bilhões de anos de existência); evolução como caminho (ahistória dos grandes grupos taxionômicos, como os mamíferos, ou asplantas; ou a história específica de cada espécie: por exemplo, a evoluçãodo gênero Homo a partir do gênero Australopitecus); a evolução comocausa (ou as causas da evolução: seleção natural, deriva [neutralismo],efeito do fundador, equilíbrio pontuado, deriva ontogenética, cladismo).

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O último item, a causa ou causas da evolução, é o que oferecemaiores dificuldades, sobretudo porque ainda hoje existem grandescontrovérsias filosóficas acerca da importância e do status ontológicoda seleção natural. Mesmo entre cientistas debate-se se a seleçãonatural é necessária e suficiente para explicar a grande diversidadee variedade de formas vivas. Entretanto, embora a teoria da seleçãonatural seja criticada por todos os lados, ninguém estuda a evoluçãobiológica sem utilizar esse conceito.

Dobzhansky (1973) afirmou que �nada faz sentido em biologia senãoà luz da evolução�. Embora essas sejam as palavras de um evolucionista,e portanto devam ser relativizadas, os alunos que abandonam o ensinomédio e ingressam nas universidades do Brasil e do mundoprovavelmente levam para a vida acadêmica e profissional uma imagemno mínimo distorcida da teoria da evolução. Em meados de 1999 amídia divulgou a disputa jurídica que culminou com a eliminação daobrigatoriedade de se ministrar a teoria da evolução no ensino médiodas escolas do Kansas e de outros estados norte-americanos. Essadisputa reedita outras que ocorreram no passado e reflete a resistênciados chamados �criacionistas� em aceitar a evolução como um fatocientificamente corroborado. Embora no Brasil o problema religiosonão seja tão acentuado, a teoria da evolução não recebe a ênfase quereclama para ela vários filósofos e cientistas. É o lugar do homem nahistória da vida na Terra que está em jogo.

E que lugar esse animal social ocupa na história da vida e danatureza? Estudos feitos em várias partes do mundo com alunos que játinham passado pelo ensino formal da evolução darwiniana, na verdadepelo ensino da teoria sintética da evolução, demonstram que elespouco absorveram dessas teorias, apresentando especial dificuldadepara promover a síntese entre a teoria da mudança de Darwin, a teoriada permanência de Mendel e a teoria molecular do gene. E levamsobretudo para a vida profissional e acadêmica a idéia de que o homemé o ápice da evolução, de que o mundo é feito para as nossasnecessidades, do eu, do indivíduo atomizado na sociedade de consumo.Uma visão lamarckista e cartesiana, sem dúvida. Os alunos de ensinomédio confundem ainda evolução biológica com evolução cultural,além de interpretarem a ciência como um conjunto de regras fixas parachegar a um resultado verdadeiro e definitivo.

Sugiro que uma possível origem do problema da má assimilação deteorias evolutivas (históricas) por parte de alunos de segundo grau estáenraizada, pelo menos no Brasil, na fragmentação do conhecimento,um grande problema de nossos currículos de ensino fundamental, daquinta à oitava série. Na quinta série estudamos o planeta Terra, umpouco de sua geologia, um pouco da evolução de sua vida, atransformação dos climas, um pouquinho de física, um outro tanto dequímica, e uma série de outras informações �científicas�. Na sexta sérieestudamos a evolução dos seres vivos, mas o foco ainda está na descrição

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e nomeação de espécies, estruturas e funções, sem muita atençãoao processo evolutivo, que se desdobra por dezenas e centenas demilhões de anos. A evolução é ensinada como um assunto a mais,perdido no meio de nomes e de nomes de estruturas. Na sétimasérie ensinamos o corpo humano, mas continuamos a incentivar aconcepção de ciência como memorização, em vez de investir noespírito aventuresco da descoberta científica, vertiginoso e autocrítico.Note-se que a biologia é um dos focos fundamentais dessas trêsséries consecutivas de �ciências�. Na oitava série, o estudo da biologiae do homem é incrivelmente interrompido, substituído pelo estudoda física e da química, como se essas disciplinas pouco ou nadativessem a ver com as ciências da vida. A fragmentação não poderiaser mais dramática. Sobretudo quando, na primeira série do ensinomédio, a biologia volta com toda força reduzida ao estudo da célulainvisível e de suas estruturas e processos microscópicos.

As leis que regem o ensino da biologia prevêem que no estudodessa ciência a ecologia e a evolução ocupem um lugar primordial.Infelizmente, a realidade das salas de aula é outra. Existe uma grandedificuldade em lidar com um volume de conhecimentos muito grande,pois na verdade a biologia atual exige que se saiba pelo menos, emuma boa base, um pouco de química, de física, de matemática(principalmente estatística), de geologia, de paleontologia, e tambémde história e de geografia. Não há disposição e tempo requeridos parao professor se manter atualizado. Vivemos nesses tempos de crise, emque a ciência que procura descobrir as raízes do homem e de seucomportamento é encarada como uma disciplina teórica qualquer eensinada aos futuros dirigentes das nossas cidades e da nação sem umapergunta mais profunda sobre o lugar da espécie humana e de cadaum de nós na �economia da natureza�, para usar as palavras de Darwin.

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Recebido para publicação em outubro de 2000.Aprovado para publicação em fevereiro de 2001.