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169 MONTEIRO, R. H. e ROCHA, C. (Orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012 ISSN 2316-6479 RETRATOS SILENCIOSOS: FOTOGRAFIAS NUMÉRICAS E A ESTETIZAÇÃO DA MORTE Kárita Gonzaga de Oliveira Arcanjo [email protected] PPG em Arte e Cultura Visual - FAV/UFG Profa. Dra. Rosana Horio Monteiro [email protected] FAV/UFG Resumo Esse artigo se propõe a refletir sobre a fotografia como meio de expressão, considerando-a um signo híbrido, levando em conta a transformação de sua natureza através de processos computacionais. A fotografia e as manipulações permitidas pelo processo digital possibilitaram a criação das imagens que constam desta pesquisa. A partir delas são estabelecidas algumas reflexões em torno do corpo, especificamente no que diz respeito à dualidade vida e morte, observando as relações entre corpo e fotografia na produção artística e na estetização da morte. Palavras chave: fotografia, corpo, morte, imagem numérica. Abstract In this article we propose a reflection on the photography as a way of expression, considering it as a hybrid sign, taking into account the transformation of its nature through computational process. The photography and the manipulations due to digital process made possible to create the images in this research. Considering them, some reflections are made on the body, specifically concerning the life and death duality. We propose exploring the relations between body and photography in the arts production and in the aestheticization of death. Keywords: photography, body, death, numeric image Se existe um meio de expressão que tem suscitado discussões de toda sorte desde o seu surgimento, gerando opiniões diversas e discursos de toda espécie, esse meio é a fotografia. Não se trata aqui do meio estritamente como “suporte” técnico, mas se reconhece que ele está intrinsecamente ligado a tudo que envolve as escolhas estéticas daquele que o manipula. O grau de aperfeiçoamento e inovação trazidos pela imagem fotográfica, pelo processo mecânico de reprodução da imagem e mais recentemente os processos digitais, tem fomentado amplas reflexões acerca da sua natureza mais profunda. Diante das variadas abordagens para se pensar a fotografia e também das diversas transfomações que ela sofreu até ser adotada pelos artistas, busca-se refletir nesse trabalho, a característica indicial da imagem fotográfica, e a idéia imagem fotográfica pertencer a uma única categoria de signos, tantas vezes disseminada em seu percurso histórico e que continua gerando controvérsias.

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6479RETRATOS SILENCIOSOS: FOTOGRAFIAS NUMÉRICAS E A

ESTETIZAÇÃO DA MORTE

Kárita Gonzaga de oliveira [email protected]

PPG em Arte e Cultura Visual - FAV/UFG

Profa. Dra. rosana Horio [email protected]

FAV/UFG

Resumo Esse artigo se propõe a refletir sobre a fotografia como meio de expressão, considerando-a um signo híbrido, levando em conta a transformação de sua natureza através de processos computacionais. A fotografia e as manipulações permitidas pelo processo digital possibilitaram a criação das imagens que constam desta pesquisa. A partir delas são estabelecidas algumas reflexões em torno do corpo, especificamente no que diz respeito à dualidade vida e morte, observando as relações entre corpo e fotografia na produção artística e na estetização da morte.Palavras chave: fotografia, corpo, morte, imagem numérica.

Abstract In this article we propose a reflection on the photography as a way of expression, considering it as a hybrid sign, taking into account the transformation of its nature through computational process. The photography and the manipulations due to digital process made possible to create the images in this research. Considering them, some reflections are made on the body, specifically concerning the life and death duality. We propose exploring the relations between body and photography in the arts production and in the aestheticization of death.Keywords: photography, body, death, numeric image

Se existe um meio de expressão que tem suscitado discussões de toda sorte desde o seu surgimento, gerando opiniões diversas e discursos de toda espécie, esse meio é a fotografia. Não se trata aqui do meio estritamente como “suporte” técnico, mas se reconhece que ele está intrinsecamente ligado a tudo que envolve as escolhas estéticas daquele que o manipula. O grau de aperfeiçoamento e inovação trazidos pela imagem fotográfica, pelo processo mecânico de reprodução da imagem e mais recentemente os processos digitais, tem fomentado amplas reflexões acerca da sua natureza mais profunda.

Diante das variadas abordagens para se pensar a fotografia e também das diversas transfomações que ela sofreu até ser adotada pelos artistas, busca-se refletir nesse trabalho, a característica indicial da imagem fotográfica, e a idéia imagem fotográfica pertencer a uma única categoria de signos, tantas vezes disseminada em seu percurso histórico e que continua gerando controvérsias.

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6479A existência do referente na fotografia, conforme defendida por

Barthes1(1984), funda-se inteiramente no dispositivo técnico que propicia a gênese da imagem e o índice se define de maneira constitutiva como a impressão física de um objeto real que existiu ali em algum momento. Esta questão levantada por Barthes é também abordada por Dubois, sintetizando que “a relação que os signos indiciais mantêm com seu objeto referencial é sempre regida pelo princípio central de uma conexão física”. (1993, p.62).

Dubois (1993) buscando maneiras de relativizar essa “aderência” do referente à imagem expôs aspectos importantes para que a fotografia não corresse o risco de uma absolutização da referência, como se não houvesse mais nada além disso na imagem fotográfica. Entre outros aspectos, o autor menciona que “a fotografia era uma mensagem sem código”, como insistentemente foi afirmado por Barthes (apud DUBOIS, 1993, p. 86-87), mas ela só se constitui uma mensagem sem código no pequeno momento de proximidade física com seu referente. Dubois trata dessa questão afirmando:

porque é aí, e somente aí, entre a luz que emana do objeto e a impressão que deixa na película, que o homem não intervém e não pode intervir sob pena de modificar o caráter fundamental da fotografia. Mas afora isso, afora o próprio ato da exposição, a foto é imediatamente (re-) tomada, (re-) inscrita nos códigos. (1993, p.86)

Assim, admitindo a existência do código, Dubois ainda atesta que “um mesmo signo pode depender das três categorias semióticas ao mesmo tempo” (1993, p. 64).

A fotografia, tanto no seu surgimento como atualmente através dos processos digitais, coloca novas questões que nos obrigam a repensar o que antes se acreditava suficiente para explicar e corroborar práticas comuns. Cada vez que um novo meio de expressão se transforma, ele abala todas as idéias anteriores, desestruturando as formas de pensamento, desconstruindo valores e estabelecendo outros, obrigando-nos a revisar antigos conceitos.

em conformidade com Machado

o processamento digital e a modelação direta da imagem no computador colocam novos problemas e nos fazem olhar retrospectivamente, no sentido de rever as explicações que até então sustentavam nossas práticas e teorias. (1991, p.1)

A fotografia é abordada por Machado (1991) como base tecnológica, conceitual e ideológica para outras mídias contemporâneas. Esse autor, vê as

1 “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos. em suma referente adere”. (BartHeS, 1984, p.16)

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6479estratégias semióticas como meio para compreendê-la e definí-la, de maneira

a suscitar uma outra possibilidade considerando-a em sua natureza simbólica, mesmo possuindo um grau de indicialidade e iconicidade sempre presente.

Assim, na abordagem que estrutura o presente trabalho, pensaremos a fotografia contemporânea nos termos da teoria dos signos de Charles S. Pierce.

A intenção aqui não é tratar da fotografia e das suas qualidades plásticas particulares somente com base na relação de conexão física que o signo fotográfico mantém com seu referente ou objeto, ou em sua analogia com esse referente (iconicidade), mas arriscar despretensiosamente, partindo da construção de um objeto de estudo, algumas reflexões em torno da fotografia como a expressão de um conceito geral e abstrato. Ou seja, no sentido pierceano de termos, como símbolo, embora não deixando de reconhecer que uma mesma imagem fotográfica pode interpor as três categorias, tendo ainda consciência de que colocar a fotografia no terreno do conceito, com base em referenciais apontados pelas imagens digitais, não é uma tarefa das mais fáceis.

Na acepção de Santaella “a fotografia é um signo híbrido: trata-se de hipoícones (imagens) e de índices” (1990, p. 65-69). ou seja, a autora admite as duas ênfases simultaneamente: que o signo fotográfico mantém uma relação de semelhança com a imagem na sua aparência e que também mantém uma conexão direta e dinâmica com o objeto (é o referente que causa a fotografia).

Levando em consideração que a fotografia é um processo derivado principalmente da técnica (porém não se trata aqui de aderir a uma acepção estritamente tecnicista do termo), que nos processos digitais a imagem pode ser sintetizada através de equações matemáticas e o registro indicial fotográfico é armazenado numericamente, pode-se dizer que a fotografia não se forma naturalmente. De acordo com Machado,

a fotografia só existe quando há uma intenção explícita de produzi-la [...] e quando tomo uma fotografia o que vejo ali não é apenas o efeito de queimadura produzido pela luz. antes vejo uma imagem extraordinariamente nítida, propositadamente moldurada, enquadrada e composta, [...] sem falar numa inequívoca intenção expressiva significante. (1991, p.7)

Essa intenção expressiva da qual trata Machado não pode ser encontrada em qualquer imagem considerada indicial, a exemplo do que Dubois (1993) já considerava em seu livro O ato fotográfico, quando menciona as características particulares que diferenciam o índice fotográfico de outros tipos de traços: “uma fotografia não é de forma alguma semelhante a uma marca de passos na areia, a uma moldagem ou a uma cicatriz” (1993, p.82). A foto é resultado de muitos

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6479outros fatores, como as propriedades dadas a uma determinada câmera, da

lente que se usa, do enquadramento, da escolha do recorte até os processos de revelação, e atualmente dos processos digitais. Assim, é envolvida por uma série de cálculos complexos e precisos, e o fato de se poder fotografar sem ter domínio sobre esses cálculos não é diferente de saber manipulá-las em computador sem saber programar por exemplo. A fotografia é imagem científica, por isso um signo de natureza simbólica e, como concluiu Machado, também é:

atividade técnica de extrema precisão, baseada na mensuração (da distância e velocidade do objeto, da quantidade de luz que penetra na câmera, da paralaxe entre o visor e a janela do filme, da margem de profundidade de campo, do tempo de revelação, etc.) [...] Eis porque uma fotografia pode ser considerada, sem nenhuma vacilação, um signo de natureza predominantemente simbólico, pertencente prioritariamente ao domínio da terceiridade pierciana,2 porque é imagem científica, imagem formada pela técnica, tanto quanto a imagem digital. (1991, p.1).

Nos estudos das teorias piercenas Santaella afirma que os “símbolos trazem, embutidos em si, caracteres icônicos e indiciais.” (1990, p. 69). Novamente nos deparamos com a idéia de que no mesmo signo podem estar presentes três tipos de signos: índice, ícone e símbolo.

Observando ainda a condição da imagem científica, faz-se pertinente abordar uma outra questão que, do ponto de vista de Couchot (2003), está na origem das imagens digitais ou numéricas, também constituintes do processo de construção do objeto de estudo desta pesquisa. A formação dessas imagens, segundo couchot, se dá inclusive no momento de captura com a câmera digital, “no caso das câmeras numéricas esta operação acontece no exato momento em que a imagem ótica é projetada pela objetiva sobre o fundo da câmara escura” (2003, p. 162).

isso pode implicar que a imagem está distante da realidade, independentemente se ela tenha sido obtida pela síntese3 ou captada por dispositivos especiais, o que gera uma outra possibilidade de entendimento das imagens fotográficas produzidas nesta pesquisa, e propicia aqui retomar a idéia da característica simbólica da imagem fotográfica considerando que tal imagem não depende somente, como trataria Machado, desse momento de captura da imagem e da ostentação da fotografia como índice:

2 São três as categorias piercianas para a apreensão dos fenômenos: “Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva [...]. Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter factual de luta e confronto. [...] Terceiridade, que aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual.” (SANTAELLA, 1990, p.50-51)

3 Imagens sintéticas são aquelas concebidas inteiramente no computador.

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6479Em termos de possibilidades criativas e heurísticas, a tradicional ênfase

na fotografia como índice introduziu nessa área de produção simbólica uma outra distorção: privilegiou aperto do botão disparador da câmera como momento emblemático da fotografia, deixando de lado tanto os preparativos anteriores [...] como também todo o processamento posterior da imagem obtida (1991, p.11)

Na acepção de Couchot “a imagem que aparece sobre a tela do computador não possui mais tecnicamente nenhuma ligação direta com qualquer realidade preexistente.” (2003, p. 163). Pode-se então admitir que essa imagem não é mais somente o registro de um traço ótico, e portanto não é mais testemunho de aderência do real. Couchot acrescenta ainda que a imagem digital “é o resultado de um processo em que a luz é substituída pelo cálculo, a matéria e a energia pelo tratamento da informação. [...] a relação da imagem numérica ao real obedece a uma outra lógica.” (2003, p.164)

assim, outro aspecto fundamental das imagens digitais apresentado por Couchot (2003) é que, mesmo que capturadas pela câmera fotográfica, se constituem em imagens de “outra natureza”.

Essa natureza numérica do processo é o que possibilita operar as fusões entre imagens tomadas em diferentes lugares e situações na composição deste objeto de estudo.

Aqui se estabelecem as relações teóricas que o processo de criação das imagens desta pesquisa põe em jogo, a fotografia sai “do domínio do “isso foi” de Barthes para entrar no domínio do “isso pode ser” do numérico” ( RAUSCHER, 2005, p.290). É justamente a potência do numérico que torna possível o conjunto de imagens que constitui essa pesquisa.

Com referência às imagens fotográficas, pode-se dizer que em suas composições, privilegia-se além de uma preparação anterior de captura e produção, todo um processamento posterior da imagem obtida.

A ênfase na fotografia como índice privilegia o momento da captura da imagem, do “disparo”, mas a utilização de toda tecnologia para manipulação de imagens, proporcionou a introdução de novos elementos icônicos e simbólicos.

As experimentações plásticas desenvolvidas durante esta pesquisa se pautaram por assumir composições constituídas através de uma mescla de imagens referenciadas na idéia da morte: corpos sem vida; fotografias antigas de pessoas desconhecidas; imagens de cemitérios; sangue e matérias desgastadas. Na produção destas imagens, apoiada em recursos computacionais para manipulação fotográfica, busco estabelecer algumas reflexões em torno do corpo na fotografia, sua efemeridade e fragilidade, compreendendo a fotografia como um meio de expressão de inquietações subjetivas com relação à morte.

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6479 Além da produção de imagens tornou-se pertinente abordar alguns artistas

que utilizam a fotografia como material do trabalho artístico, como “meio” expressivo de anunciar sua maneira de estar no mundo, ainda como linguagem e instrumento de representação do corpo na arte.

Andres Serrano, fotógrafo nova-iorquino se vale da estetização da morte em sua série The Morgue (1992). Na abordagem de um tema difícil e incômodo o fotógrafo registra corpos impregnados de sofrimento. Pode-se observar nas fotografias de Andres Serrano questões que se aproximam de tudo que é humano: a fragilidade da carne, a efemeridade do corpo, a vulnerabilidade frente a doenças, suas necessidades fisiológicas, dores etc. The Morgue é uma série composta por fotografias de cadáveres realizadas em um necrotério e são envolvidas por uma preparação. Há, por tras de sua prática um aparato técnico que antecipa a captura da imagem. Nessas fotos parece haver uma preparação no que se refere aos corpos, sua posição diante da foto, a maneira como a luz incide sobre eles, as vestimentas e os tecidos denunciam certa organização. elas possuem uma “limpeza” que pode estar relacionada com toda a preparação envolvida, tanto no aspecto de produção dessa fotografia quanto nos procedimentos realizados com um cadáver após sua morte. São também imagens de mortes violentas, as quais trazem como título o tipo de morte pela qual aquele indivíduo passou; ele segue a taxonomia dos legistas para nomear as obras: “Morte por afogamento”, “Morte por pneumonia”, “Suicidio com veneno de rato”.

Outro referencial artístico é a obra de Joel-Peter Witkin, especificamente Cadaver with necklace (1980), fotografia de um velho deitado com uma venda nos olhos e uma corda no pescoço que ele denomina “colar” e The Glassman (1995), fotografia de um cadáver ainda com os olhos abertos instantes depois da autópsia. Joel-Peter Witkin tem uma relação com a morte que começa bem cedo, tendo presenciado ainda criança quando saía de casa um grande acidente com vários carros cheios de famílias, pessoas feridas e mortas. Como ficou separado de sua mãe sentou-se na calçada e um objeto veio em direção a ele - era a cabeça de uma menina. Além disso, na época de se alistar no exército recebeu a missão de fotografar mortes acidentais ocorridas em treinamentos militares.

Diante desses trabalhos me interessa a tensão que se estabelece entre a vida e a morte, a questão da existência e a denúncia da fragilidade do corpo. Essas obras não se limitam a esses aspectos, permeando também outras questões como as religiosas e políticas.

As obras de Andres Serrano e Joel-Peter Witkin colocam em questão também aspectos que permeiam esta pesquisa: o corpo frágil e inerte, a morte

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6479que dilui diferenças de toda espécie e a fotografia como meio e material do

trabalho artístico.Andy Warhol (1928-1987) é mais uma referência, não tanto formal, mas

conceitual, com suas fotos de acidentes automobilísticos, tratando do destino inexorável da morte que aproxima as pessoas, mortes anônimas, cenas traumáticas que podem se tornar corriqueiras.

A série Disasters de Warhol, traz aspectos conceituais que de alguma maneira abordam vida e morte, quando o artista explora a partir de um olhar a relação entre presença e ausência. Aos poucos se descobre que em outras épocas o próprio Warhol constatou que muito do que fazia tinha certa relação com a morte, como, por exemplo, a morte trágica de Marilyn Monroe, a doença de Elizabeth Taylor e o assassinato do Presidente Kennedy, personalidades que foram retratadas pelo artista, assim como as serigrafias realizadas a partir de acidentes ocorridos com pessoas desconhecidas. Muitos dos retratos feitos por Andy Warhol, segundo Giannotti, “não se originaram a partir da presença física da pessoa, mas pelo contrário, de sua ausência”, como nas séries dos desastres em que pessoas anônimas morrem, “se celebram alguma coisa, é a própria morte.” (2004, p. 121).

Quando nos acostumamos a ver uma imagem de morte, especificamente violenta, essa repetição que nos é intensamente oferecida e imposta através de jornais e da mídia televisiva, acaba fazendo com que as pessoas fiquem como que anestesiadas diante das fotos e da morte. É o próprio Warhol quem nos descreve esse momento impactante ao visualizar “a pintura sobre o acidente de avião na primeira página de um jornal, anunciando a morte de 129 pessoas (129 Die!)” e gradativamente a imagem da morte se torna desgastada como “quando você vê uma pintura impactante muitas vezes, elas não têm mais o mesmo efeito.” (WARHOL, apud GIANNOTTI, STILES & SELZ, 2004, p.121-122).

Nas séries de imagens de morte envolvendo os acidentes de carros, pode-se perceber como os corpos viram coisas, se misturam aos destroços. Segundo o Giannotti, “o que torna esses quadros fortes e instigantes é a dualidade em representar uma cena traumática que por sua vez pode se tornar comum, fazendo parte de nossas vidas.” (2004, p. 122).

O trabalho plástico desenvolvido nesta pesquisa remonta impressões da infância e de certo período da adolescência, em que o contato com fotografias forenses realizadas para perícia policial (fotos de mortes violentas) possibilitou um olhar sobre o corpo como algo transitório, perecível, efêmero, considerando também a memória como fator propulsor das primeiras reflexões, influenciando diretamente o processo de criação e constituição das imagens.

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6479O que motiva e impulsiona esta pesquisa é a constituição de um objeto

de estudo focado em questões que permeiam a dualidade entre vida e morte, bem como relações entre corpo e fotografia na produção artística. E estruturou-se a partir de uma mescla de imagens referenciadas na idéia da morte: corpos sem vida; fotografias antigas de pessoas desconhecidas; imagens de cemitérios; sangue e matérias desgastadas.

O corpo humano dissecado começou a fazer parte da pesquisa a partir das imagens coletadas em laboratórios de anatomia humana. O corpo dissecado, que é um objeto servindo de estudo para contribuições à ciência, impregnado de todos os cortes, dilacerações, mutilações, corpo muitas vezes despedaçado mergulhado em formol.

Posteriormente foram realizados alguns experimentos com fotografias antigas encontradas, que pertenciam a minha tia-avó e foram encontradas depois da sua morte. essas fotos carregam a imagem do que já foi. ao me apropriar das fotos das “memórias” da minha tia-avó, eu as (re)significo. As pessoas ali retratadas passam a representar de modo metafórico o ser humano, não alguém especificamente, com uma identidade conhecida. A identidade delas jamais me será revelada, o que intenciono aqui é manter uma aura de mistério que paira em torno delas.

Quando me aproprio destas fotos, para conseguir uma imagem maior em dimensão e qualidade da resolução, “refotografo”; imprimo, para então banhá-las com sangue, fazer interferências e logo em seguida fotografá-las novamente. É uma maneira de recodificar a imagem. Percebo ainda que ao refotografar com câmera digital, trago essas fotos antigas para o mundo das imagens numéricas mencionadas anteriormente. ao manchar essas fotos com sangue, trago este sangue para um lugar que não é o seu, o sangue também tem significados simbólicos e particulares.

Se pegarmos como referência o termo no dicionário de símbolos, encontraremos a conceituação de que “o sangue é universalmente considerado o veículo da vida [...] participa da simbologia geral do vermelho” (CHEVALIER; GHeerBrant, 2002, p.800). Assim, o sangue nas fotografias permanece em destaque e sua cor é preservada, o vermelho na simbologia é considerado:

universalmente como o símbolo fundamental do princípio de vida [...] e no paganismo possui também uma significação fúnebre: a cor púrpura tem relação com a morte. Porque esta é, com efeito , a ambivalência deste vermelho do sangue profundo: escondido, ele é a condição da vida. Espalhado significa a morte. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p..944)

Num último momento fotografo alguns cemitérios, que na minha concepção reforçam a idéia de fim, de destino dos corpos materiais, depósito dos restos

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6479corporais, da matéria inerte. É também um ambiente impregnado de muitas

memórias.A construção das imagens, depois de capturadas, passa a ser realizada em

Photoshop4. A imagem numérica tem essa característica do isso pode ser em oposição ao “isso é isso, é tal” que Roland Barthes afirmou, pressupondo que a foto não pode ser transformada (1984, p.14). Ao contrário, Couchot explicita que “a imagem contem uma infinidade potencial de outras imagens. É uma imagem na potência da imagem.” (2003, p. 267). Essas mesclagens das fotografias só são possíveis graças a isso.

Ao manipular e sintetizar todas essas imagens em uma composição específica, não existe uma seqüência lógica para se sobrepor os planos desses elementos. A articulação dos mesmos se altera de imagem para imagem no intuito de que tudo possa se misturar, confundindo os planos e criando certa movimentação do olhar por todas as áreas visíveis na imagem fotográfica.

Seguem abaixo algumas imagens resultantes desse processo:

Kárita Gonzaga, s/título, fotografia digital,50x80cm-2007 Kárita Gonzaga, s/título, fotografia digital,50x80cm-2007

4 o Photoshop é um programa para editoração eletrônica de fotografias criado em 1989 pela Adobe Systems Incorporated. Desde o seu lançamento transformou-se numa das principais ferramentas digitais para retoque e composição fotográfica. (VALVERDE, Monclar, 2003, p.35)

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Kárita Gonzaga, s/título, fotografia digital, 80x50cm-2007

Kárita Gonzaga, s/título, fotografia digital, 80x50cm-2007

Explorar a fotografia como meio de expressão, como linguagem artística, como forma de anunciar uma maneira particular de estar no mundo possibilita uma infinidade de reflexões.

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6479O presente trabalho se constitui através da fotografia considerada um signo

híbrido de natureza indicial e icônica, que à medida que é explorado suscita também reflexões em torno de sua natureza simbólica. outro aspecto levado em consideração é a transformação da natureza da fotografia que se dá através dos procedimentos computacionais. O caráter fotográfico do trabalho está presente em sua iconicidade, porém a partir do momento que a imagem se constrói no ambiente do computador todo o seu caráter indicial se perde. A imagem que resulta só foi possível através do caráter híbrido deste processo.

Neste trabalho, o corpo, a morte, a linguagem fotográfica e a tecnologia das imagens numéricas, são a base para empreender uma produção ainda repleta de possibilidades nos campos da teoria e da criação artística.

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Page 12: sorte desde o seu surgimento, gerando opiniões diversas e ... · anteriores, desestruturando as formas de pensamento, desconstruindo valores e estabelecendo outros, obrigando-nos

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Kárita Gonzaga de Oliveira Arcanjo é fotógrafa, graduada em em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Uberlândia. Aluna do curso de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de artes Visuais – FaV/UFG.

Rosana Horio Monteiro é professora adjunto 4 na Universidade Federal de Goiás (UFG), atua no Programa de Doutorado e Mestrado em Arte e Cultura Visual. Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade católica de campinas (1987), Mestre (1997) e Doutora (2001) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Investiga principalmente os seguintes temas: imagem e ciência e teoria e história da fotografia.