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    MMMMM ovimento, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p.31-57, maio/agosto de 2005

    De que so feitos os danarinos de aquilocriao coreogrfica e formao de intrpretes

    em dana contemporneaMnica Dantas*

    * Professora da Escola de Educao Fsica da Universidade Federal do Rio Gran-de do SulMestre em Cincias do Movimento HumanoDoutoranda em Estudos e Prticas Artsitcas pela Universit de Qubec Montral

    Resumo: Este artigo prope-se a discutir a formaodo intrprete em dana contempornea, com o objetivode compreender como a sua participao na criao deobras coreogrficas pode constituir-se um dos elemen-tos centrais na formao desse danarino. Para tanto,realizou-se um estudo predominantemente etnogrfico,tendo-se como elemento central de coleta de informa-es entrevistas semi-estruturadas com danarinos daLia Rodrigues Companhia de Danas, quando da reali-zao do espetculo Aquilo de que somos feitos . Daanlise dos dados, emergiram as seguintes categorias:

    do corpo treinado ao corpo disponvel; pertencer ouno ao mundo da dana; autonomia dos danarinos;impregnar a coreografia, apropriando-se da obra. Esteestudo sugere que a participao na criao de coreo-grafias proporciona uma experincia do corpo em mo-vimento a qual desafia os padres estabelecidos peloensino tradicional da dana, constituindo-se uma impor-tante ao pedaggica para a formao de danarinos.Palavras-chave: formao de danarinos, criao co-reogrfica, dana contempornea.

    Discutir a formao de danarinos nos dias de hoje exige,em primeiro lugar, situar-se em relao diversidade das mani-festaes de dana de que dana estou falando? na cenacontempornea. Os festivais competitivos de dana realizadosno Brasil, dos quais o Festival de Joinville o mais conhecido,so um exemplo dessa diversidade. Em 2004, as inscries paraesse festival eram divididas em sete gneros: bal clssico derepertrio, bal clssico, dana contempornea, jazz , dana derua, danas populares e sapateado. No entanto, os festivais com-

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    petitivos de dana so apenas uma das instncias e das maispolmicas que legitimam a dana artstica no Brasil. Festivaise mostras no-competitivos, como o Panorama Rio Arte de Dan-a (Rio de Janeiro), o Conexo Dana (Regio Sul) e o DanaBrasil (Rio de Janeiro/Braslia), voltados especificamente para adana contempornea, constituem outras instncias de difusoe legitimao da chamada dana cnica, realizada para ser apre-ciada e consumida como produto artstico.

    Essa concepo da dana como arte segue a proposiode Schaeffer (apud Arbour, 1999), que apresenta uma viso prag-mtica da arte, distanciada de todo projeto normativo. Segundo Arbour (1999), trata-se de observar o funcionamento das fron-teiras da arte, em vez de tentar fixar normas internas, o queresolveria a questo de saber se aquilo que bom ou ruim arteou no. Assim, arte o que nomeado como tal, seja pelosartistas, pelos experts ou por uma certa comunidade. A questodo valor das obras no pertence delimitao do campo arts-tico, mas sim anlise da relao que nos liga s obras. O artistater determinado o que arte, mas ser necessrio que umacomunidade inteira o acompanhe. Desse modo, no mbito dadana, as associaes de classe, a mdia e a crtica especializadas,os programadores de teatros, os curadores de festivais, bem comoo pblico e a comunidade artstica constituem algumas dessasinstncias legitimadoras.

    Neste artigo, proponho-me a discutir a formao do intr-prete em dana contempornea, com o objetivo de compreendercomo a sua participao na criao de obras coreogrficas podeconstituir-se um dos elementos centrais na formao desse dan-arino. Essa questo me interessa desde que, em 1986, passei aintegrar o Grupo Haikai, um coletivo de danarinas em que acriao coreogrfica era uma tarefa compartilhada por todas.Minhas primeiras reflexes sobre o tema foram esboadas naminha dissertao de mestrado e tomaram flego a partir dasinvestigaes efetivadas para a realizao de meus estudos dedoutorado. Desse modo, as proposies aqui articuladas refe-rem-se a uma anlise parcial das informaes coletadas para arealizao da minha tese junto aos danarinos e coregrafa daLia Rodrigues Companhia de Danas, durante a realizao doespetculo Aquilo de que somos feitos .

    Possveis definies em dana contempornea

    No existe consenso para uma definio de dana contem-pornea, e o termo pode crevestir inmeras formas de dana.

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    1 O bal surgiu nas cortes italianas e francesas nos sculos XVI e XVII. O ensino dobal foi sendo sistematizado a partir da criao da Academia Real de Dana eMsica por Lus XIV, em 1661, e segue princpios como a verticalidade, a projeodos movimentos, oen dehors (rotao externa da articulao coxo-femural), otronco como eixo bastante rgido.

    2 A dana moderna surgiu no incio do sculo XX, tendo como fim fazer da danauma arte do seu tempo. Sem estabelecer um sistema universal de criao, inter-pretao e ensino em dana, como no caso do bal, a dana moderna estruturou-se a partir de diferentes mtodos, instaurando diferentes poticas.

    3 Merce Cunningham (1919). Coregrafo norte-americano que em 1952, cria seuprprio grupo, trabalhando por muito tempo em parceria com o msico JohnCage. Seus princpios estticos so: o movimento expressivo para alm detoda inteno; a dana movimento, no emoo; o acaso regula as relaesentre msica, elementos cenogrficos, luzes e movimento; o abandono da cen-tralizao e da hierarquizao do espao cnico; o espao fragmentado e asaes cnicas so mltiplas e simultneas.

    4 A dana ps-moderna um movimento norte-americano que teve incio nos anos60, a partir da experincia de um grupo que realizava performances na JudsonChurch, uma igreja presbiteriana de Nova Iorque. Os ps-modernos colocaramem questo os valores e as prticas da dana seja bal ou dana moderna realizada at ento, procurando abolir sua espetacularidade, aproximando-a deprticas de movimento cotidianas.

    5 Pina Bausch (1940, Alemanha) estudou dana moderna na Alemanha e nos Esta-dos Unidos, e, desde 1973, dirige o Wuppertal Taznstheatre, onde vem desenvol-vendo seu trabalho conhecido como dana-teatro. A coregrafa afirma ser estauma forma ligada tanto ao teatro quanto dana, na qual as tcnicas de danaso utilizadas no com o intuito de produzir o movimento danado, mas sim paracontrolar a emoo e dissoci-la do gesto.

    6 O but uma dana de origem japonesa, surgida no final da dcada de 40, quequestiona tanto os valores tradicionais japoneses quanto os padres demodernidade impostos pela americanizao que comeava a emergir com o finalda Segunda Guerra Mundial.

    Em geral, este termo utilizado para abarcar diferentes poti-cas da dana nos dias de hoje as quais no se enquadram nasclassificaes tradicionais, como bal1 e dana moderna.2 Histo-

    ricamente, identificam-se, em coregrafos como o norte-ameri-cano Merce Cunningham,3 na dana ps-moderna4 e na dana-teatro de Pina Bausch,5 algumas das matrizes conceituais e tc-nicas da dana contempornea. Desse modo, os trabalhos maisrecentes da gerao da dana ps-moderna norte-americana; anouvelle danse europia; a dana-teatro, o but6 japons e seusseguidores no Ocidente; e as criaes brasileiras, latino-ameri-canas e africanas que buscam uma identificao com a culturalocal podem ser designadas como dana contempornea. Poroutro lado, essa denominao consolidou-se nos anos 80 e j viusurgir alternativas comodanse dauteur e nouvelle danse nos pa-ses de lngua francesa, new dance na Holanda, nova dana emPortugal e no Brasil, alm de termos mais especficos, como van-guarda ps-bauschiana (Lepecki, 1998). Autores como Lepecki,

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    (1998, 1998a) e Louppe, (1996, 1997) tentam identificar traosem comum para as manifestaes de dana surgidas na segun-da metade dos anos 90, as quais j estariam deliberadamente

    esquivando-se da denominao dana contempornea.De toda forma, para compreendermos esse fenmeno ml-tiplo chamado dana contempornea, podemos seguir um en-tendimento similar ao proposto por Cauqelin (apud Arbour, 1999),para quem a arte contempornea tem por singularidadeembaralhar os limites tradicionais das tcnicas, das cincias, dopoltico e da tica. Nesse caso, a arte contempornea participade algo que era concebido at ento como extra-esttico; e comoisso foi colocado mostra pelo artista, torna-se diretamente pro- vocador e tambm revelador de circunstncias que afetam a so-ciedade. Estamos longe da afirmao de que a arte mostra/ constri um mundo novo; no um mundo novo que mostra-do, aquele mesmo mundo onde nos encontramos e que o hbi-to nos impede de perceber. (Arbour, 1999, p. 74)

    Sendo assim, poderamos expandir a idia de dana con-tempornea para a de cena contempornea, uma vez que mui-tas das produes coreogrficas realizadas a partir dos anos 90provocam a diluio das fronteiras entre disciplinas artsticascomo o teatro, a dana, a performance , as artes visuais, as artesmiditicas, o cinema, o vdeo e a msica. Do mesmo modo, es-sas produes utilizam-se de referncias tcnicas, criativas etemticas, pertencentes a diferentes contextos representacionais,como o tradicional, o moderno, o clssico, o popular, o folclrico,a cultura de massa, etc. A partir desses pontos de vista, poder-amos expandir a idia de danarino contemporneo para a deintrprete ou performer , uma vez que esses artistas so solicita-dos a atuar de maneiras diversas, segundo o contexto de cadacoreografia.

    Existe, portanto, uma modificao do papel do danarino;pois, em dana contempornea, os coregrafos tendem a solicitarde seus intrpretes desde a participao nos processos de criaoat atuaes atlticas virtuosssimas, passando por sutis altera-es de estados de corpo e nuances interpretativas. Nesse senti-do, Lepecki (1998) ressalta as novas funes dos danarinoscontemporneos, destacando o seu papel como co-criadores:

    O corpo do danarino no mais o receptculo da vontade-em-movimento do coregrafo. Atualmente, o coregrafo de vanguarda espera mais; ele exige que o danarino seja o intermedirio. O corpo do danarino se transforma de recept-culo mimtico a uma extenso ativa do corpo do coregrafo. O danarino deve

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    7 A educao somtica uma disciplina em emergncia, que se constitui a partirda reunio de diferentes prticas de educao pelo movimento, tais como osmtodos desenvolvidos por Matias Alexander, Moshe Feldenkrais, IrmgardBartenieff, entre outros. De um modo geral, esses mtodos desenvolvem umtrabalho de refinamento da sensao e da percepo do movimento com o objetivode aperfeioar a conscincia do corpo.

    aprender a escutar, a olhar, a transpor o real para o interior da sala de ensaio. Ele deve saber como reescrever este real a fim de fornecer ao coregrafo, no mais umamatria primeira, mas j um arranjo artificial. A matria para a composio j est composta. A tarefa do coregrafo consiste ento em extrapolar esta matriae encontrar uma lgica que lhe sirva melhor, sem deixar de preservar a pureza de sua essncia. (p. 186)

    Esses novos papis do intrprete em dana contemporneasolicitam novas abordagens para sua formao. Assim, tal for-mao passa pelo estudo de diferentes tcnicas de dana e deoutras prticas corporais (esportes e lutas, tcnicas teatrais, pr-ticas em educao somtica,7 entre outras), pelo trabalho comdiferentes coregrafos e pela autoria e co-autoria de obras coreo-grficas. Diversos autores (Davida, 1993; Dantas, 2004; Fortin,1996; Fortin, Long e Lord, 2002; Foster, 1997; Louppe, 1996, 1997;Lepecki, 1998) abordam essas novas circunstncias de formaode danarinos contemporneos. Uma parte dessa discussocentra-se na assimilao de diferentes tcnicas de movimento eno trabalho com inmeros coregrafos como a base de forma-o, prtica esta que engendraria corpos eclticos (Davida, 1993),hbridos (Louppe, 1996) ou corpos de aluguel (Foster, 1997). Autores como Fortin (1996) e Fortin, Long e Lord (2002) abor-dam as novas tendncias pedaggicas que incorporam diferen-tes prticas somticas s tcnicas de dana mais convencionais. Apenas recentemente, iniciaram-se as discusses sobre o papelda criao artstica como elemento formador do intrprete.

    Decises metodolgicas

    Os propsitos deste estudo conduziram a uma investigaoqualitativa, de carter predominantemente etnogrfico. Utilizan-

    do-me de estratgias e instrumentos de coleta de informa-es oriundos da pesquisa etnogrfica observao participantee entrevistas busco compreender as relaes entre os proces-sos de criao e manuteno de obras coreogrficas e a formaode intrpretes em dana contempornea.

    A escolha da Lia Rodrigues Companhia de Danas deu-sepor diferentes motivos, dentre os quais destaco o fato de que

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    8 Com o consentimento dos entrevistados, decidi desvelar suas identidades.

    suas obras coreogrficas so reconhecidas pela crtica, pelo p-blico e por seus pares como criaes em dana contempornea eso apresentadas em circuitos de difuso da dana cnica no

    Brasil e no exterior. Por outro lado, acompanho o trabalho dessacoregrafa desde 1993. Tive tambm a oportunidade de partici-par de workshops de composio coreogrfica ministrados porLia Rodrigues, em que pude conhecer seus mtodos de criaoem dana, baseados na participao e na estreita colaboraodos danarinos.

    Meu trabalho de coleta de informaes junto Companhiadeu-se durante os ensaios preparatrios para a apresentao doespetculo Aquilo de que somos feitos em So Paulo. As observa-es dos ensaios comearam no Rio de Janeiro, no local onde aCompanhia trabalha normalmente, e continuaram em So Pau-lo, no local onde o espetculo foi apresentado, ou seja, em trsandares ou mezaninos que constituem uma parte das instala-es do Instituto Cultural Ita, onde estava sendo realizada aexposio de artes visuais Anos 70: Trajetrias. Durante esseperodo, realizei entrevistas com nove danarinos e com a core-grafa, e utilizei um dirio de campo para registrar minhas im-presses. Para este artigo, trabalhei com sete entrevistados: acoregrafa e seis danarinos (Amlia Lima, Jamil Cardoso,Marcela Levi, Marcele Sampaio, Micheline Torres e RodrigoMaia).8 A escolha desses intrpretes deu-se em funo de seutempo de permanncia na Companhia (de 6 a 2 anos, na pocada realizao do trabalho de campo) e de sua participao nacriao de um ou mais espetculos de Lia Rodrigues. Utilizeitambm, como documentos auxiliares, programas de espetculos,material de divulgao da Companhia, matrias publicadas naimprensa escrita e artigos da crtica especializada. As entrevis-

    tas foram gravadas e transcritas na ntegra, e analisadas a partirda identificao de unidades de base e da posterior elaboraode categorias para anlise e interpretao.

    A fim de situar o leitor no contexto da Companhia e da obracoreogrfica que servem de base para a presente reflexo, apre-sento uma descrio do cenrio onde realizei minha coleta deinformaes: a companhia Lia Rodrigues de Danas, o espetculo Aquilo de que somos feitos e os seus intrpretes. Num segundo mo-mento, discuto as categorias que emergiram da anlise e da in-terpretao dos dados.

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    O Cenrio

    A Lia Rodrigues Companhia de Danas A Companhia foi criada por Lia Rodrigues em 1990, na

    cidade do Rio de Janeiro. Desde o seu incio, Lia Rodrigues de-senvolveu suas coreografias a partir de processos de criao queincluem o estudo detalhado do gesto e do movimento; oengajamento do danarino como co-criador; e uma relao mi-nuciosa com o tempo cnico, mediante o trabalho detalhado deestruturas rtmicas, incluindo o uso no s da msica, como tam-bm da palavra pelos intrpretes. Outra caracterstica datrajetria dessa coregrafa uma continuidade potica entre asobras, o que se traduz em uma continuidade de mtodos e dematerial coreogrfico de uma obra para outra. Esse caso, porexemplo, de Gineceu (1990) e Ma (1993), em que o universofeminino e a maternidade perpassam a criao das duas coreo-grafias. Algo semelhante ocorre entre Ma e Folia I e II (1996,1998): o estudo das parlendas est presente em Ma e em Folia Ie II, sendo que, nas duas ltimas obras, as parlendas tornam-seum dos principais elementos a estruturar a coreografia.

    De 1997 a 2001, a Lia Rodrigues Companhia de Danas re-cebeu apoio financeiro da Secretaria das Culturas da Prefeiturado Rio de Janeiro, por meio do programa de subveno dana,o qual beneficiou outros nove grupos da Cidade. Esse programaajudou a Companhia a dedicar-se, durante quase dois anos, criao de Aquilo de que somos feitos , que estreou em 2000 no Riode Janeiro e tem tido uma longa carreira, percorrendo vriascapitais e cidades brasileiras, e apresentando-se tambm na Eu-ropa e nos Estados Unidos.

    Aquilo de que somos feitos : o avesso do corpo, oavesso do mundo

    Aquilo de que somos feitos segue dois eixos: uma pesquisa so-bre a materialidade do corpo, do tempo e do espao o que euchamo de avesso do corpo e um conjunto de questionamentose de denncias sobre o mundo contemporneo, formulados emforma de dana o que eu chamo de avesso do mundo.

    Na primeira parte do espetculo, corpos nus criam formasdispersas por entre o pblico. Lia Rodrigues conta que, durantea criao da coreografia, pedia aos danarinos que experimen-

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    9 Durante os anos 60 e 70, Lygia Clark comeou a produzir obras que exigiam aparticipao do pblico e a abolio definitiva da distino entre o espao daobra e o espao real.

    tassem posies e seqncias em que o corpo parecia estranho,esquisito, bizarro: [] era um coisa muito ntima, essas posi-es estranhas, s vezes nos ensaios dava nojo, pareciam fran-

    gos, pareciam aliens (Rodrigues, 2001, p. 3). Uma das pergun-tas que ela fazia aos danarinos era esta: Como o corpo pode virar uma coisa que no estamos acostumados a ver? Para pro- vocar esse estranhamento, a coregrafa e seus colaboradores tra-balharam tambm sobre a temporalidade, propondo uma dila-tao do tempo de observao dos corpos. Lia Rodrigues deseja- va encontrar o tempo necessrio para que o olho do espectadorpudesse perder suas referncias quando olhava para esses corpos.

    Interessava-me trabalhar o tempo. Voc fala a mesma palavra vrias vezes, ela perde o sentido. Com o olho, acontece a mesma coisa: como o olho perde o sentido? Eu cronometrava qual o tempo para o meu olho perder o sentido olhando aqueles corpos. Eu estava interessada num outro tempo, o da qualidade da informao,um tempo mais alargado, eu pensei em dar algo para quem est assistindo. Temsempre que acontecer algo? [Esse tempo era necessrio] para que o pblico pudes-se criar o que deseja nesses corpos. (Rodrigues, 2001, p. 12)

    A utilizao do espao tambm emblemtica: no h se-parao entre o pblico e os danarinos, e as pessoas podemcircular pela sala. Uma das influncias importantes nessa ope-rao de descentralizao do olhar foi a obra da artista brasileiraLygia Clark.9 Em 1998, a Companhia foi convidada a fazer aabertura da Retrospectiva da obra de Lygia Clark, no Museu doPao Imperial, no Rio de Janeiro. Segundo Lia:

    A experincia com a obra de Lygia Clark levou a companhia a perseguir umanova forma de trabalho, algo ligado improvisao, uma mistura de dana e performance, que uma espcie de liberdade estudada. Queramos enfatizar o vis poltico, com um sotaque dos anos 70, a simbologia de transgresso e revoltadaqueles anos. Mas tambm queramos apresentar o corpo sem artifcios, por isso todos aparecem nus criando novas formas, brincando com imagens. (Rodrigues,apud Pavlova, 2000, p. 12)

    Os danarinos nus, que, no comeo do espetculo, se trans-mutam em formas inslitas que secretam uma estranha beleza,tornam-se seres humanos sem identidade, nivelados pela expo-sio de seus corpos enfileirados em posies estticas e por suatransformao em carne, quase em cadveres: corpos empilhadosuns sobre os outros, que tremem de tempos em tempos.

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    Eu ficava olhando aquelas fotos com pilhas de corpos do Kosovo, com pilhas de presos assassinados no Carandiru, com filas de corpos de sem-terra assassinados em Eldorado dos Carajs e no conseguia sentir mais nada. Mas eu preciso sentir, ns precisamos, para poder dizer, fazer alguma coisa. Tenho que me im- portar para poder passar este sentimento aos meus filhos. [] e depois ir ao ensaio, ficar horas discutindo e aprimorando um movimento de mo. Este con-flito entre o real e a arte e para o que ela serve est no centro desse trabalho (Rodrigues, apud Lopes, 2000, p. 10. [Ou ainda] fazer dana no pas, no mundo, muda alguma coisa? Isso faz o que para o mundo? Qual a importnciade fazer dana? (Rodrigues, 2001, p. 3)

    A cena descrita anteriormente serve de transio segundaparte do espetculo, em que os danarinos retornam vestidospara executar movimentos ritmados por uma msica que lem-bra paradas militares. Eles gritam palavras de ordem Peace ,O povo unido jamais ser vencido eslogans publicitrios Nikkon-Sak-Picachu, Porque eu mereo ; divertem-se,cantam e danam em crculo; e finalizam o espetculo com uma

    marcha em que sussurram Hay que endurecer, pero sin perder laternura jams . A criao dessa segunda parte teve como ponto de partida a

    idia de slogans que colam no corpo. Segundo Lia Rodrigues, otrabalho foi desenvolvido [] a partir da memria imediatado que nos vinha mente ao longo dos ensaios. Tem um poucode cada um no espetculo (Rodrigues, apud Riani, 2000, p. 5). Assim, h uma hibridao de passos de bal; de movimentoscotidianos; de gestos conotados (como, por exemplo, um braoelevado com um punho serrado); de movimentos de carat; demaneiras de se danar numa festa ou de danar como os dolospopulares, como Michael Jackson, Gretchen ou o grupo o Tchan.Enfim, inmeras referncias gestuais que se misturam aosslogans falados, mas que no funcionam como tradues dessas palavras.

    A formao dos intrpretesde Aquilo de que somos feitos

    Na poca em que realizei a coleta de informaes, a LiaRodrigues Companhia de Danas era formada por 11 pessoas: acoregrafa, cinco danarinas, dois danarinos e trs danarinasestagirias. Como referido anteriormente, para este artigo, uti-lizarei as entrevistas realizadas com seis intrpretes: Amlia,Jamil, Marcela, Marcele, Micheline e Rodrigo.

    A formao desses intrpretes diversificada, variando deuma formao mais tradicional em dana a uma formao inicial

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    10 A dana criativa um mtodo de ensino em dana que no tematiza uma tcnicaespecfica, mas que aborda os fundamentos do movimento: espao, tempo,ritmo, forma e dinmica.

    11 O jazz uma forma de dana que se originou da hibridao das danas e msicasafricanas e europias nos Estados Unidos. Durante a dcada de 20, a dana jazzfoi absorvida pelo show business e gradualmente foi-se transformando em tcni-ca e estilo codificados, assumindo influncias do bal e da dana moderna.

    em teatro e em expresso corporal. Entre as mulheres, Amlia,Micheline e Marcele apresentam slida formao em dana.Micheline comeou a praticar bal aos quatro anos de idade e,

    desde ento, no interrompeu seus estudos em dana, tendo in-terpretado papis de destaque do repertrio clssico, como Gisellee Don Quixote. No final da adolescncia, comeou a praticar dan-a contempornea e decidiu estudar filosofia. Um pouco mais tar-de ingressou na faculdade de teatro. Amlia tambm estudoudana desde a infncia (a partir dos cinco anos de idade), numestilo mais prximo dana criativa10 e ao jazz,11 na escola onderealizava seus estudos regulares. Na adolescncia, comeou a es-tudar bal e, logo depois, dana contempornea. Marcele, quedurante a infncia havia praticado bal e jazz , e na adolescnciahavia parado de danar, retoma seus estudos em dana e consoli-da sua formao na Escola Angela Viana, onde o ensino das dan-as moderna e contempornea e do bal embasado em uma viso particular do corpo em movimento, proveniente de prticassomticas diversas. Micheline ingressou na companhia em 1997;Marcele, em 1999; e Amlia, em 2000.

    Seja no Brasil ou em outros pases sul-americanos, como aVenezuela e a Argentina, quanto nos pases norte-americanos eeuropeus, as famlias de classes mdia e alta incentivam suasfilhas a praticarem dana durante a infncia e a adolescncia,enfatizando-se a aprendizagem do bal. Esse estilo tende a re-forar determinadas qualidades, como a graa, a leveza, a deli-cadeza, a disciplina, a boa postura e o alinhamento corporais,atributos ainda hoje presentes e desejados em certos modelosde feminilidade (Foster, 1997; Fauce, 2000). Por outro lado, amaior parte das companhias de dana contempornea no Brasile no exterior possui intrpretes com slida formao em bal.

    Ter sido bailarino clssico no um fator de discriminao emdana contempornea, desde que o indivduo seja capaz de aten-der s diferentes solicitaes do coregrafo e de cumprir suasfunes como intrprete e performer .

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    12 Teatro fsico designa um conjunto de manifestaes teatrais que tm em comumuma abordagem do trabalho do ator centralizado nos aspectos fsicos emparticular o corpo e a voz. O teatro fsico utiliza uma variedade de estilos, tcni-cas e linguagens, como a mmica, o circo, a dana, as artes marciais e rituais, etodos os seus desdobramentos.

    13 Constantin Stanislavski (1863-1938), encenador e terico russo, desenvolveu oMtodo das Aes Fsicas.

    14 Jerzy Grotovsky (1933-1999), polons, desenvolveu uma abordagem particular dotrabalho do ator, incorporando influncias das prticas teatrais tradicionais dooriente.

    No caso dos homens que integram a Companhia, a forma-o em dana comea a partir da idade adulta. No Brasil, geral-mente h uma srie de dificuldades e preconceitos em relao

    prtica da dana masculina, principalmente em se tratando dobal e das danas moderna e contempornea, por estarem aindato relacionadas a esses esteretipos femininos. Ao entrarempara a Companhia Jamil em 2001 e Rodrigo em 1999 , ambos j possuam longa experincia em teatro, com destaque para aprtica do teatro fsico.12 Jamil destaca que o trabalho de pro-fessores como Moacir Ges, no Rio de Janeiro, influenciado pe-las abordagens de Stanislavsky,13 foi uma das principais refe-rncias da sua formao. O ingresso no curso de teatro da UniRiopossibilitou o aprofundamento dessas experincias, em funodo trabalho desenvolvido com um grupo que pesquisava as pos-sibilidades de construo de personagens mediante a elabora-o de partituras de movimento, buscando estruturar a cena tea-tral a partir do corpo e da gestualidade dos atores. Jamil come-ou a estudar dana na Escola de Angel Vianna com o propsitode aperfeioar seu trabalho em teatro: Eu comecei fazendo tea-tro, na verdade eu nem tinha pretenso de comear a danar, euestava procurando um trabalho de corpo para me auxiliar notrabalho de pesquisa de gesto no teatro (Cardoso, 2001, p. 1). A partir de ento, ele concluiu o curso tcnico de formao debailarino dana contempornea na Escola Angel Vianna einiciou sua carreira em dana.

    Rodrigo tambm optou por aperfeioar sua formao tea-tral mediante o estudo de tcnicas de teatro fsico. Ele situa suaexperincia com Massud Saidpur como fundamental, pois esseartista, que trabalhou com Jerzy Grotowski,14 desenvolveu ummtodo baseado em um intenso treinamento fsico e vocal, que

    desperta o corpo e coloca-o em um estado de alerta, inten-sificando a presena cnica do intrprete. Antes de ingressar naCompanhia, Rodrigo havia feito dois meses de aulas de danacontempornea.

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    15 A partir dos anos 70, a expresso corpral se desenvolveu e se afirmou como umaprtica que utiliza-se de tcnicas de interveno provenientes da dana, da mmi-ca e de certas abordagens da interpretao teatral.

    Marcela, que integra a companhia desde 1995, possui umaformao inicial em expresso corporal.15 A expresso corporalpode ser praticada com fins educativos, teraputicos ou artsti-cos. Neste caso, pode ser utilizada como auxiliar na formao dedanarinos e atores ou como estilo prprio de criao e apresen-tao artstica. Esse foi caso de Marcela, cujo trabalho com aprofessora Rossela Terranova resultou em performances e inter- venes realizadas em ruas e parques da cidade do Rio de Janei-ro. Assim como Jamil, Marcela tambm conclui o curso tcnicode formao de bailarino dana contempornea na Escola Angel Vianna.

    De que so feitos os danarinos de Aquilo

    A seguir, discuto quatro categorias relacionadas criaocoreogrfica e formao de intrpretes em dana contempor-nea: do corpo treinado ao corpo disponvel; pertencer ou no aomundo da dana; autonomia dos danarinos; impregnar a co-reografia, apropriando-se da obra. Embora apresentadas sepa-radamente, essas categorias so interdependentes. Com elas,espero traar argumentos que sustentem a importncia da par-ticipao em processos de criao coreogrfica para a formaode danarinos. Nesse sentido, minha inteno privilegiar oponto de vista dos intrpretes de Aquilo de que somos feitos .

    Categoria 1: do corpo treinado ao corpo disponvelSe nem todos os intrpretes da Companhia possuem uma

    formao inicial em dana, todos possuem um corpo treinado,exercitado, trabalhado por diferentes tcnicas e sistemas de mo- vimento. Para Lia, a coregrafa, isto fundamental: dever dointrprete manter-se em forma, para que ele esteja disponvelpara a realizao do trabalho coreogrfico. Isso se constitui tam-bm como um princpio para o funcionamento da Companhia,conforme destaca Lia:

    Tem uma coisa muito clara de funcionamento, no sentido de hora de trabalho, de disciplina. A minha formao assim: a gente tem que ter aula de dana. Voc estavano dia em que eu dei uma dura, porque ningum fazia aula? Para mim, isso umaimaturidade muito grande voc v, eu estou pagando para que eles faam aulaacho incrvel que um bailarino no faa aula. (Rodrigues, 2001a, p. 3)

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    Neste episdio referido por Lia, a Companhia retomava osensaios depois de trs semanas de pausa, e eles trabalhavamsobre uma seqncia especfica da coreografia. Lia destacava

    que suas correes referiam-se sempre aos mesmos problemas:falta de preciso e de limpeza na realizao dos movimentos.Mais de uma vez, ela chama a ateno para a necessidade dotreinamento dirio, para que os danarinos pudessem respon-der com acuidade s suas solicitaes:

    Eu tenho a impresso que vocs tm que correr atrs de ficar em forma: isso dana, a gente precisa do corpo. Seno fica difcil pegar o trabalho. Isso uma preocupao de vocs, vocs tm que estar com o corpo pronto para o que a gente vai trabalhar. Tm que estar em forma, no importa a tcnica que vocs queremfazer; sinto vocs pesados; tem que ter um tempo para vocs se treinarem. uma preocupao que deve vir de vocs, no de mim; vocs sabem que teatro, dana,msica tem que ter treinamento. (Rodrigues, apud Dantas, 2001, p. 9)

    No tenho por propsito, neste artigo, discutir a questo es-pecfica do treinamento do danarino contemporneo, mas ne-cessrio especificar que este constitudo de prticas diversas e,dentro de uma mesma companhia, ele no homogneo: os dan-arinos fazem suas escolhas pessoais. Em geral, o treinamentodos danarinos entrevistados passa pela realizao de uma aulade dana aulas de bal so as preferidas, mas h os que elegemas danas moderna e contempornea e pela prtica de tcnicassomticas, alm da participao nos ensaios da Companhia.

    De uma forma bastante rpida, podemos dizer que as aulasde dana tm por objetivo a aprendizagem e o aperfeioamentode coordenaes indispensveis realizao do gesto danado,bem como a manuteno regular do sistema proprioceptivo dodanarino (Coulin-Praud, 2000). J as prticas somticas pro-porcionam um trabalho voltado especificamente para o refina-mento sensorial, incidindo principalmente sobre a propriocepo,permitindo desenvolver novas formas de aprendizagem e assi-milao do movimento (Fortin, 1996; Fortin, Long e Lord, 2002).

    importante ressaltar que, em dana contempornea, nor-malmente os coregrafos no tm a preocupao em estabelecerum sistema prprio de treinamento e em codificar uma tcnicaque servir de base para a criao coreogrfica, como o caso dadana moderna e do bal. O que se espera do danarino, confor-me j ressaltado, uma disponibilidade corporal que lhe permi-ta atuar como colaborador nos processos de criao e interpreta-o coreogrfica. Assim, ele extrapola a funo de reproduode um determinado estilo coreogrfico e pode tornar-se atuantena elaborao de linguagens coreogrficas.

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    Esses so alguns dos motivos que me levam a acreditar quea participao nos processos de criao coreogrfica um doselementos centrais na formao de danarinos contemporneos.

    Para Coulin-Proud (2000), as prticas de criao em dana pos-sibilitam manter o corpo aberto, permevel e disponvel, pois odeslocamento do danarino de suas funes habituais, essencial-mente tcnicas e performativas, em que a reproduo de pa-dres de movimento a tnica, permite que o imaginrio torne-se o primeiro operador do movimento (p. 150).

    Nesse sentido, os danarinos tambm destacam o trabalhocom a Companhia tanto os processos mais especficos de cria-o quanto os ensaios e as apresentaes como parte impor-tante da sua formao.

    Micheline fala num exerccio constante de descoberta quea experincia na Companhia proporcionou-lhe:

    Quando voc faz um espetculo muito tempo, voc no pode achar que j sabe

    tudo do espetculo, seno uma cilada, ele fica montono, ento voc tem que estar sempre descobrindo coisas novas. No meu solo, eu coloquei uma regra paramim: eu tenho sempre que criar uma parte nova no meu solo, eu tenho sempre que improvisar, eu tenho um tempo certo, eu sei que eu tenho 3 segundos paraimprovisar numa determinada parte. E o espetculo foi se transformando e vai se transformando: voc tem certas coisas determinadas, voc sabe que tem que ir daqui at ali, que voc tem que falar isso, mas o meu motor que eu tenho que estar sempre criando uma coisa nova, o meu trabalho esse, tem que estar sempre descobrindo, e sempre tem coisas para descobrir. E s vezes voc se surpreende, por exemplo, as seqncias j esto inscritas no meu corpo, e ento um dia eu fiz uma cabea diferente e eu mesma notei, na hora, que eu fiz essa cabea diferente e aquilo me tirou do lugar e depois eu voltei e ento tem esse jogo: voc faz umacoisa diferente e voc se d conta: isso novo! Voc vai lidando com isso na cena,o que no pode parar e se voc est no ensaio, voc no pode estabilizar, na suacriao, voc no pode parar. Eu tenho que estar sempre fazendo coisas e criando.E assim em cada ambiente da minha vida, em aula, por exemplo, voc no pode se entediar numa aula de bal clssico, s porque voc j fez 11 anos destatcnica! Voc tem que estar sempre descobrindo: eu posso fazer com uma qualida-de diferente, eu posso agora pensar na mo, no antebrao e agora nos detalhes.Porque assim, minha profisso essa, eu estou sempre atenta e procurando estar viva. (Torres, 2001, p. 20-21)

    Jamil ressalta a importncia do trabalho na Companhia paraa sua formao profissional e pessoal:

    Acho que arte se aprende assim, acho que a gente tem que freqentar escolas, acho que a gente tem que ter formao, mas acho que a arte se aprende fazendo arte e eu acho que a gente aprende com o artista. Ento, eu acho que os profissionais so formados pelos ambientes em que eles trabalham, muito mais do que pelas escolas que eles freqentam. Acho que no trabalho que a gente aprende mesmo.

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    E eu acho que eu estou sendo formado por ela, pela Lia. E acho que eu aprendo at a ser profissional, aprendendo a lidar com dinheiro, aprendendo a lidar como trabalho, aprendendo a lidar com as pessoas, aprendendo a lidar com a Lia,aprendendo a me relacionar. (Cardoso, 2001, p. 20)

    Categoria 2: pertencer ou no pertencerao mundo da dana

    A questo de pertencer ou de no pertencer ao mundo dadana aparece de forma interessante nas entrevistas. Confor-me j ressaltado, as mulheres da Companhia, com exceo deMarcela, possuem uma formao tradicional em dana. Micheline um exemplo de pertencimento ao mundo da dana, com suatrajetria praticamente toda a sua vida dedicada dana,pois, como vimos, comeou as aulas de bal aos quatro anos deidade, nunca parou de danar, d aulas de dana e realiza traba-lhos prprios como coregrafa, independentemente da atuao

    na Companhia. Mas isso no significa que seus interesses res-trinjam-se dana, pois ela estuda filosofia e teatro na Univer-sidade, muito embora consiga fazer convergir as diversas expe-rincias em elementos para sua dana:

    [As experincias] vo-se inscrevendo no meu corpo e ento no tem mais como se desfazer delas, voc vai somando. Como vai somando no corpo, o corpo que eudigo no pensamento todo, no pensamento da ao, porque se eu penso, se eu leio os livros que eu leio, tudo isso faz a minha dana ser diferente, no tem separao.[] preciso afastar essa idia de que movimento e pensamento tm separao,o que voc pensa influi no seu movimento, o que voc move influi no seu pensa-mento [] Eu posso me movimentar, eu tenho uma histria de movimento no meu corpo, mas eu posso transform-la, desenvolver essa histria de movimento e quando eu leio coisas de fsica quntica, que eu estou lendo agora, eu penso muito sobre isso, me abrem novas perspectivas e eu fico transpondo isso para acoreografia e o movimento. (Torres, 2001, p. 14)

    Examinando a trajetria de Amlia, podemos perceb-lacomo algum que sempre desejou danar, que se esforou mui-to para atingir um bom nvel tcnico em bal e dana contem-pornea. Desse modo, ela conseguiu constituir-se e afirmar-secomo profissional de dana j aos 20 anos de idade, tendo mu-dado de cidade de Joo Pessoa para o Rio de Janeiro a fim deter boas oportunidades de aperfeioamento e de trabalho emdana. Marcele tambm ressalta que teve de recuperar o tempoperdido, pois, durante a adolescncia, havia deixado a dana:

    eu tinha aquela defasagem por ter ficado muito tempo parada, a tcnica clssicatinha ficado parada no tempo e eu tinha que fazer aulas at morrer [] fiz

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    muita aula de dana, muita aula de bal. Por outro lado, meu corpo entendeude maneira muito fcil a dana contempornea e em pouco tempo eu j eraassistente da Duda Maia, eu compreendi muito bem o seu trabalho. (Sampaio,2001, p. 3)

    Por outro lado, h os que, como Rodrigo e Marcela, no sepercebem como pertencentes ao mundo da dana. Rodrigorevela que sempre sonhou em trabalhar com dana, mas quenunca imaginou que seria capaz. No entanto, no seu trabalhoem teatro, o que lhe dava mais prazer eram as prticas voltadaspara o corpo e o movimento. Alm disso, Rodrigo tem uma largaexperincia em esportes como a escalada, o surfe, o futebol depraia, o voleibol e em prticas como a capoeira. Do mesmo modo,Marcela no se percebe como danarina; ela diz que a danaentrou na sua vida quase por acaso: [] eu nunca fiz balclssico desde criana, eu sempre fiz alguma coisa mais ligadaao corpo atravs do esporte, eu fiz natao muitos anos, eu fizginstica olmpica quando pequena. (Levi, 2001, p. 1)

    Independentemente de sua formao de origem, todos osintrpretes da Companhia possuem uma experincia significa-tiva da cena, seja em teatro ou em dana. Alm disso, essa cir-culao entre o teatro, a dana e a performance permanentepara alguns membros da Companhia. Jamil, Marcele, Marcela eMicheline participam de outras experincias como performer ededicam-se tambm criao coreogrfica desvinculados daCompanhia, por conta prpria. Jamil bastante preciso sobreo tema:

    [] para mim no tem muita distino, ento eu sou fiel a mim quando falo em construir uma cena de teatro ou uma cena de dana, para mim no temdiferena. [] eu trabalho a cena, no trabalho ou dana ou teatro; eu souintrprete, eu fao cinema tambm, como intrprete, como ator, o que para mimtambm no tem distino. (Cardoso, 2001, p. 2, 6)

    Nesse sentido, importante destacar a noo de tcnicatrazida por Marcela, que comporta conceitos como presena cnicae disponibilidade corporal, reforando esta viso do danarinocontemporneo como algum que conhece, habita e domina acena atravs da ao do corpo em movimento.

    A tcnica, eu acho que a capacidade de voc estar presente, de voc se colocar presente artisticamente. Eu no acredito que o intrprete tenha necessidade de estar sentindo o que ele est fazendo, ele tem que ter rigor, ele tem que ter prtica.Tcnica para mim talvez seja uma prtica diria, quer seja clssico, yoga, pouco interessa. Mas um mecanismo para que voc possa se colocar num estado de presena, num estado alerta, num estado de corpo disponvel para o que est acontecendo no momento. Um corpo inteligente, talvez, um corpo que saiba

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    Como para voc poder pensar, tem que estudar, eu acho que voc tem que colocar o seu corpo em movimento diariamente, para ele poder estar acordado, para ele poder responder aos impulsos necessrios do momento. Mas eu acho extrema-mente equivocado um corpo adestrado, tcnica no adestramento para mim. E eu vejo que tem bailarinos que so tcnicos, entre aspas, e que so engaiolados, presos. E tcnica para mim, seria uma liberdade, mas liberdade que no temnada a ver s com intuio: uma coisa extremamente construda, mas umaconstruo consciente. uma capacidade de fazer um corpo inteligente. Eutrabalho com um sistema de treinamento fsico que veio do Grotovsky e que teminfluncia da yoga: tem uma estrutura estabelecida, voc faz a seqncia todos os dias. E com esta estrutura, voc tem a capacidade de desenvolver um corpo animal, um corpo que responde a impulsos, um corpo que elimina o lapso de tempo entre o pensamento e a ao. Assim, voc no premedita uma ao, voc desenvolve a capacidade de agir o mais prximo possvel do pensamento-ao. interessante, porque voc treina para que isso acontea quase que por impulso, mas atravs de uma estrutura extremamente rigorosa. Eu acho que o rigor liberta, porque seno pode ser qualquer coisa. (Levi, 2001, p. 4)

    Essa noo de tcnica encontra apoio nas concepes traba-lhadas por Barba e Savarese (1988), criadores e divulgadores daantropologia teatral. Volli (apud Barba e Savarese, 1988) faz umadistino entre tcnicas corporais cotidianas e extracotidianas.Em geral, as tcnicas extracotidianas produzem um desvio con-sidervel do uso normal do corpo; uma alterao dos ritmos,das posies, da utilizao da energia, da dor e da fadiga. Essasalteraes do uso normal do corpo permitem ao performer umaintensificao da sua presena corporal.

    O treinamento ao qual se refere Marcela tambm foi prati-cado por Rodrigo:

    Eu gostava muito de fazer esse treino durante meia hora, porque ele intenso, extremamente aerbico e voc comea a sentir seu corpo bastante acordado. Eutenho uma sensao muito prxima a essa quando eu escalo, voc fica numestado de viglia muito grande. E essa atividade, este treino, proporciona bastante isso e quando voc entra em cena, voc est com o seu corpo mais aberto, mais acordado. (Maia, 2001, p. 4)

    As metforas do corpo animal e do corpo vivo revelamalgumas qualidades que so fundamentais nos mtodos de cria-o utilizados em dana contempornea. Um desses mtodos a improvisao. A improvisao um jogo cuja regra principal estar sensvel e atento s propostas que esto surgindo. H naimprovisao uma predisposio para atuar de acordo com omomento: o improvisador est pronto para transformar toda cir-cunstncia em ocasio, todo acidente em possibilidade e dis-pe-se a explorar constantemente a memria procura de solu-es inusitadas para as situaes criadas pelo jogo. A improvisa-

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    o lida com o imprevisto: [] a improvisao tem um qu deagressivo que aceita o imprevisto justamente para trabalh-lo, ese abandona s coisas s no intuito de submet-las (Pareyson,

    1983, p. 86). Em dana, o movimento e a capacidade de anteci-pao so os principais motores da improvisao. Por isso, Coulin-Praud (2000) define a improvisao como uma espcie de com-posio instantnea que demanda disponibilidade para a ao.Como veremos na prxima seo, a improvisao como princpiopara investigao e composio coreogrfica um dos principaismtodos utilizados na criao de Aquilo de que somos feitos .

    Categoria 3: autonomia dos danarinosDesde o comeo das minhas observaes junto aos danari-

    nos, notei uma grande autonomia nos seus comportamentos enas suas aes como membros da Companhia, dentre os quaisdestaco estes: realizar o aquecimento e a preparao para a rea-

    lizao da coreografia individualmente, exceo dos dias emque havia aulas de bal; ensinar trechos da coreografia para oscolegas; repassar trechos da coreografia sozinhos; realizar o en-saio completo do espetculo; trabalhar sozinhos ou em gruposas tarefas para o processo de criao; realizar o espetculo, emcaso de necessidade, sem a presena da coregrafa; discutirexaustivamente algumas decises administrativas e, principal-mente, questes relativas ao espetculo.

    A prpria Lia reconhece essa caracterstica do grupo e apon-ta-a como uma necessidade para o bom funcionamento da Com-panhia:

    eu acho muito bom ver como eles so independentes para ensaiar, agora, no so? Eles vm, vo fazendo as coisas, a Micheline senta, j vai corrigindo, j sabe o que fazer. Isso eu acho o mais bacana, muito bom. Eu sempre briguei um pouco para ser assim, porque eu tinha um pouco de aflio como eu fao muitacoisa, eu fao a produo da companhia, que um trabalho muito difcil, temque ter tempo, tem que encontrar as pessoas fora daqui e s vezes eu no posso estar presente nos ensaios e me afligia que as pessoas no pudessem trabalhar sozinhas, sem a minha presena. E ento eles foram desenvolvendo um jeito de trabalhar muito interessante. (Rodrigues, 2001, p. 2)

    Penso que podemos perceber melhor essa dinmica exami-nando os processos de criao. Quando solicitados a falar dacriao de Aquilo de que somos feitos , os danarinos destacaram otrabalho coletivo como uma prtica constante na Companhia. Nocaso deste espetculo, partiu-se de algumas questes norteadoras:Como voc se coloca no mundo? Como voc v o Brasil? Como

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    voc se v no Brasil? Voc estrangeiro no seu pas? Quanto vale o trabalho que fazemos? Essas perguntas deveriam ser res-pondidas por meio de depoimentos escritos e propostas de mo-

    vimento.[] a criao do Aquilo aconteceu totalmente em cima das pessoas que o criaram[] A gente partiu de algumas perguntas e fazia improvisaes e todo o material levantado para fazer o trabalho partiu de cada um, das pessoas que estavamfazendo a criao e, no trabalho, tem partes de cada um, por exemplo, o solo que eu fao a minha movimentao, que eu levantei. (Torres, 2001, p. 3)

    Para Micheline, uma das respostas possveis para essas ques-tes estava em Sertozinho, cidade onde moravam seus avs eonde ela ia passar as frias durante sua infncia. Ser brasileira,para ela, passava por rememorar (recordar/reviver) a presenade seus avs, a relao com as pessoas na cidade, os encontrosna praa, danar como sinnimo de brincar: Para mim total-mente presente a minha famlia, meus avs e a cidade chamadaSertozinho, [] e sempre que eu dano eu tenho isto presen-te, porque faz parte de mim e para eu fazer meu solo, por exem-plo, sobre l que eu falo [] isso o meu estofo (Torres,2001, p. 6)

    Utilizando como exemplo a criao do seu solo, Michelineexplica que os movimentos foram inspirados por uma cano deninar que sua av cantava para sua me e que sua me cantavapara ela. Para compor sua seqncia, ela comeou cantando essamsica e realizando movimentos correlatos a esse tema. LiaRodrigues fez vrias intervenes, sugerindo modificaes queforam incorporadas e, algumas vezes, transformadas pela dan-arina. provvel que, na seqncia final, tenha restado umatnue referncia ao seu motivo primeiro. Essa referncia noprecisa ser explcita para o pblico, mas pode servir para o in-trprete tentar recuperar, nesse motivo primeiro, a qualidade deexecuo de determinados momentos da coreografia. Trata-se,como diz Micheline, do motor das suas aes em cena.

    Nem sempre a criao de alguma seqncia ou cena segueesse padro relatado. Rodrigo lembra que numa seqncia oschamados quartetos utilizou-se outro procedimento de com-posio coreogrfica: a partir de uma estrutura de movimentos egestos preexistentes, foram-se acrescentando movimentos cria-dos pelos danarinos. Em outro momento, uma movimentaoutilizada pelos danarinos com o objetivo de aquecimento parao ensaio foi aproveitada pela coregrafa e transformada em umacena importante do espetculo, a cena dos faniquitos ou pei-

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    xes pulando fora dgua, em que os danarinos deitados come-am a tremer e a deslocar-se at formar um amontoado de cor-pos. Assim relata Rodrigo:

    Quando a gente estava se aquecendo para poder trabalhar, a gente foi se esfregan-do com o corpo no cho, de forma cada vez mais rpida; e eu lembro da Lia pedir para a gente tentar fazer uma coisa meio convulsiva e a gente comeou a fazer isso, faniquito, como a gente chama ou tremelique ou peixe pulando fora dgua.(Maia, 2001, p. 11) Ainda na fala de Micheline, podemos perceber que a parti-cipao dos intrpretes na criao no se limita a trazer material que ser trans-formado pela coregrafa, o que configura uma prtica bastante comum emdana contempornea. Mais do que isso, neste caso, os intrpretes opinam e interferem na utilizao desse material, podendo ser os responsveis pelo produ-to final. Do mesmo modo, eles tambm podem influir em cenas das quais no fazem parte, discutindo a adequao ou no de movimentos, posturas, falas, etc.

    A Lia no chega com uma movimentao, com nada especfico. No mximo elachega com uma pergunta e a gente discute muito, todo mundo opina muito.Para uma coisa chegar em cena, ela j foi muito bombardeada, porque se al-gum acha que no est bom, a gente discute, est bom, no est; tudo passa por um crivo. Se a coisa chegou em cena porque ela passou por um crivo, se a coisaest em cena ela foi vencedora. [] Mas sempre a partir dos intrpretes, do que eles oferecem, do que a gente discute, tudo muito discutido e para acontecer tudo assim: cada um levanta o seu material e discute, e a gente resolve e a Lia dirige e todo mundo opta. (Torres, 201, p. 3)

    certo que essa interferncia dos intrpretes vinculada sua prpria experincia como criadores e familiaridade com omodo de trabalho na Companhia. Jamil, que passou a integrar ogrupo depois da estria do espetculo, fala de uma certa hierar-quia, definida pelo tempo de trabalho na Companhia, pois ne-cessrio tempo para poder compreender a obra coreogrfica, bemcomo a maneira de trabalhar da coregrafa. Nas suas palavras:

    Existe um entendimento do trabalho que o tempo que d e como a Lia uma pessoa hiper-atarefada, ela precisa delegar poderes, ela precisa organizar as coisas.Dessa maneira que se estabelece essa hierarquia, quer dizer, as funes: quemolha o qu, quem organiza o qu e quem d a palavra final, que a Lia. Mas naausncia dela, quem resolve as questes? a Marcela. (Cardoso, 2001, p. 17)

    Assim, Marcela e Micheline eram, na poca do trabalho decampo, as mais antigas na companhia e tambm as que maisinterferiam nos ensaios. Nas palavras de Marcela: [] eu co-nheo a Lia h muito tempo e ao longo desses anos, eu acho quea gente conseguiu estabelecer uma certa parceria, de discutir acriao, de eu poder ter espao de falar e de propor coisas(Sampaio, 2001, p. 2) Quando entrevistei Marcela, esta relatouque sua funo na companhia estava mudando e que faria a

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    experincia de trabalhar como assistente de Lia, pois lhe inte-ressava mais a criao e o trabalho de bastidores, de ensaios ede co-direo colocar o espetculo em cena, nas suas pala-

    vras do que o trabalho de intrprete.Categoria 4: impregnar a coreografia, apropriando-se da obra

    Esta categoria refere-se menos aos processos de criaodo que manuteno da obra coreogrfica. Por manuteno en-tendo os procedimentos de ensaios cotidianos, de ensaios nolocal das apresentaes e das apresentaes propriamente di-tas, que no deixam de ser processos de recriao artstica. Nosensaios cotidianos, a coreografia trabalhada em detalhes; al-guns trechos so examinados minuciosamente; algumasseqncias so refinadas, podendo ser modificadas. Nos ensaiosrealizados nos locais de apresentao, podem ser feitos ajustes

    na coreografia a fim de adapt-la s dimenses espaciais dispo-nveis, tambm se levando em conta outros elementos tcnicos,como os recursos de iluminao e a provvel localizao do p-blico. Nas apresentaes, a presena do pblico pode ser umdos fatores de desestabilizao e transformao da obra. Isso ainda mais presente em Aquilo de que somos feitos , em que boaparte da ao coreogrfica d-se num espao compartilhado pe-los danarinos e pela assistncia. Assim, mesmo depois de aobra coreogrfica j ter sido encenada uma ou vrias vezes, elano est necessariamente pronta ou acabada, pois a cada apre-sentao, preciso refaz-la, recorrendo ao corpo dos intrpre-tes para dar forma dana. Assim afirma Jamil:

    O espetculo no fica pronto, ele construdo todos os dias. No porque a gente repete a mesma seqncia de movimento que ele est pronto, ele no est pronto nunca, porque todo o dia eu preciso acordar e me espreguiar e aquecer meucorpo. E ento eu preciso me lembrar daqueles movimentos todos os dias e namedida em que me lembro deles, eu estou reconstruindo-os e eles j no so os mesmos. (Cardoso, 2001, p. 12)

    Esta a rotina em dana: a cada ensaio e a cada apresenta-o, reviver no corpo a coreografia para poder habit-la. Nessesentido, os depoimentos dos danarinos revelam a necessidadede impregnar a obra com a sua presena e de apropriar-se dacoreografia, tornando-a cada vez mais sua.

    [No trabalho como intrprete], eu sei que tem coisas que eu tenho que cumprir,mas como cumprir essas coisas o espao, a fresta, onde eu me encontro, onde se misturam o trabalho da coregrafa com o meu: de que maneira eu vou

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    conseguir estar servio do espetculo e como eu coloco o espetculo a meu servio tambm, porque desse modo ele acontece todo impregnado de mim. Todas as apresentaes tiveram grandes diferenas para mim, todas elas foram muito diferentes, com algumas coisas muito novas e com muitas outras a serem traba-lhadas, porque no param de surgir coisas novas e tem coisas que so recorrentes,mas que retornam de maneiras diferentes. Ento h mudana a cada apresen-tao. Mas a grande diferena que eu sinto essa: talvez eu me sinta mais confortvel dentro do trabalho, neste momento, talvez eu me sinta mais dono do trabalho agora, e talvez por isso eu consiga perceber que ele feito a cada dia.(Cardoso, 2001, p. 13-14)

    Assim, impregnar a obra refere-se ao modo nico como cadadanarino coloca-se em cena, realiza os movimentos, fala, can-ta, dana, enfim, como cada um deixa sua marca e imprime suapresena na coreografia.

    Concretamente, interessante examinar como ocorrem cer-tas trocas de funes dentro da coreografia. Desde que Aquilo de que somos feitos estreou, em junho de 2000, at a realizao dasentrevistas, em outubro e novembro de 2001, houve modifica-es no elenco. Micheline relata que a entrada de um novo in-trprete reestrutura a obra, no sendo uma simples questo desubstituio de papis. Cada vez que algum passa a executaruma parte da coreografia que era realizada por outra pessoa,deve-se fazer um trabalho de recriao e no de reproduo dosmovimentos existentes.

    Aprende-se o universo [o contexto] do vocabulrio gestual, da movimentao,mas cada um vai transformando-o. A partir do momento em que uma pessoaentra para danar algo novo, isto torna-se dela, voc tem que se apropriar, voc no vai danar nada de ningum, voc se apropria da coisa, voc coloca suaforma de fazer. Mas ao mesmo tempo, o trabalho, a obra existe, se algum sair, elavai continuar existindo. (Torres, 2001, p. 12)

    Desse modo, a autoria do movimento, ou seja, a questo dequem cria ou de quem inventa as seqncias de movimento di-lui-se nessa prtica de impregnar a obra e de apropriar-se dacoreografia. Assim relata Micheline:

    E ento cada intrprete e at a Lia fala: mas eu nem sei mais quem fez aquele movimento, se fui eu ou se foi voc. Na verdade foram as duas pessoas juntas, porque o meu corpo faz diferente, a gente no trabalha com espelho, ento a gente tem que saber se observar, olhar para si e para os outros. (Torres, 2001, p. 10)

    A coregrafa apresenta uma posio semelhante sobre otema. Em um debate sobre sua obra, quando questionada sobrea criao dos movimentos, Lia respondeu o seguinte:

    Se voc considera que o pensamento tambm faz parte do corpo, sim, eu participo da criao dos movimentos, tanto quanto os bailarinos. Fao coisas com o meu

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    corpo. O que eu fao eu no vejo, mas isso visto pelo outro. O outro imita ou no,eu no sei se o que o outro est fazendo aquilo que eu fiz, tudo hbrido,misturado. Tem um impulso gerador, o que eu fao dar o impulso primeiro paramover o corpo. No fundo no tem muita importncia [quem o autor da coreo-grafia]: colaborador, criador, tento achar um jeito mais apropriado de dizer isto.(Rodrigues, 2001a, p. 8)

    Por outro lado, tanto Lia quanto os intrpretes reconhecemque existe uma assinatura, que as sua obras apresentam traosindicadores de que so concebidas por ela. Os danarinos reco-nhecem o importante papel da coregrafa e o quanto Lia ca-paz, junto com eles, de fazer emergir um material de qualidadee de compor com esse material. Assim afirma Jamil:

    O trabalho dela [Lia] e por mais que seja uma colaborao e isso muito vivido mesmo, uma franca colaborao em tudo, somos intrpretes-criadores mas dela e isso tambm muito claro; e isso muito bom, eu acho muito bomv-la pensando e poder participar, e estar recebendo e aprendendo (Cardoso,2001, p. 19)

    Consideraes finais

    Um dos aspectos que me parecem mais significativos paracompreender como a participao em processos de criao coreo-grfica pode tornar-se um dos elementos centrais na formao deintrpretes em dana contempornea diz respeito ao fato de quea criao coreogrfica um fenmeno altamente complexo, emque planejamento, investigao, organizao, reflexo, mas tam-bm uma boa dose de imaginao, fantasia, permeabilidade edisponibilidade para aceitar as intervenes do acaso esto pre-sentes. Como diz Pareyson (1993), a criao artstica pressupeuma atividade formativa, em que a elaborao da forma dependeda inveno, pelo menos parcial, do prprio modo de fazer.

    Em dana e, mais especificamente, na dana apresentadapelos intrpretes de Aquilo de que somos feitos , o processo de cria-o da obra interroga os danarinos, invocando seus pensamen-tos, suas aes, suas lembranas e sua corporeidade seu modode ser corpo e movimento. Nesse processo, os danarinos desco-brem outras maneiras de trabalhar o corpo em movimento.

    Como explicam Fortin, Long e Lord (2002), no ensino tradi-cional da dana seja no ensino de tcnicas de bal ou de danamoderna enfatiza-se o modelo visual apresentado pelo profes-sor, sendo que o objetivo do aluno reproduzir os movimentosdo professor com a maior preciso possvel. Neste e em outros

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    artigos (Fortin, 1996; Fortin e Long, s.d.) os autores apresen-tam, como alternativa a esse modelo, propostas de ensino domovimento baseadas na nfase do sentido cinestsico como in-

    formao sensorial fundamental para aprendizagem em dana,o que se concretiza em propostas pedaggicas que incorporamprticas de educao somtica ao ensino da dana. Penso que aparticipao na criao de coreografias pode ser vista de formaanloga a essas propostas pedaggicas, pois proporciona umaexperincia do corpo em movimento que no depende de mode-los ou padres construdos. Ao contrrio, busca-se na investiga-o coreogrfica, novas maneiras de mostrar o corpo e realizar osmovimentos. Acredito que, dessa maneira, a criao coreogrfi-ca tambm uma ao pedaggica, que transforma as pessoasque dela participam. Como destacam os entrevistados, a atuaono espetculo transformou sua maneira de danar e compreendera dana, bem como sua maneira de estar presente no mundo.

    Of what the dancers of aquilo are madechoreographic creation and interpreters training incontemporary danceAbstract: This manuscript intends to discuss theinterpreters training in contemporary dance, with thepurpose of understanding how their participation in thecreation of choreographic works can constitute one of thecrucial elements in that dancers training. For this, apredominantly ethnographic study was conducted, having,as the crucial element of data collection, semistructuredinterviews with dancers of the Lia Rodrigues DanceCompany, during the realization of the show Aquilo de que

    somos feitos (What we are made of). From the data analysis,

    the following categories have emerged: from a trained bodyto an available body; pertaining or not to the world ofdance; the dancers autonomy; pervading the choreographyand assuming the work. This study suggests that thedancers participation in the creation of the choreographiesproportionates a moving body experience which defies thepatterns established by the traditional teaching of dance,thus constituting an important pedagogic action for thoseprofessionals training.Keywords: Training of dancers, Choreographic Creation,Contemporary Dance.

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    De que son hechos los danzarines de aquilocreacin coreogrfica y formacin de intrpretesen danza contemporneaResumen: este artculo se propone a discutir laformacin del intrprete en danza contempornea, conel objetivo de comprender cmo su participacin en lacreacin de obras coreogrficas puede constituirse unode los elementos centrales en la formacin de esedanzarn. Para tanto, se a realizado un estudio predomi-nantemente etnogrfico, tenindose como elementocentral de colecta de informaciones entrevistassemiestructuradas con danzarines de la Lia RodriguesCompaa de Danzas, cuando de la realizacin del es-pectculo Aquilo de que somos feitos (Aquello de quesomos hechos). Del anlisis de datos, emergieron lassiguientes categoras: del cuerpo entrenado al cuerpodisponible; pertenecer o no al mundo de la danza;autonoma de los danzarines; impregnar la coreografa,apropindose de la obra. Este estudio sugiere que laparticipacin de los danzarines en la creacin decoreografas proporciona una experiencia del cuerpo enmovimiento la cual desafa los patrones establecidospor el enseo tradicional de la danza, constituyndoseuna importante accin pedaggica para la formacin deesos profesionales.Palabras-clave: Formacin de danzarines, Creacincoreogrfica, Danza Contempornea.

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    Recebido em: 24/02/2005Aprovado em:17/03/2005

    Mnica DantasEscola de Educao Fsica

    Rua Felizardo, n 750Porto Alegre Rio Grande do Sul

    CEP.: 90690-200e-mail:

    [email protected]