SAVIANI - Escola e Democracia I a Teoria Da Curvatura Da Vara

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    Capa Criao e Leiaute

    n'c Bombarrfi

    Impresso e Acabamento GrliCi1 Pym

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    ESCOLA E DEMOCRACIA

    DERMEVAL SAVIANI

    34 EDIO REVISTA

    Co1Eo PoL:MICAS no Nosso TEMPO

    EDITORA~ Ass~'bT2S~~H

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Saviani, Dermeval, Escola e democracia: teorias da educao, curvatura da vara, onze

    teses sobre a educao poltica/ Dermeval 5aviani - 34. ed. revista -Campinas, SP: Autores Associados, 2001 (Coleo Polmicas do Nosso Tempo; vol. 5).

    Bibliografia. ISBN 85-85701-23-4

    1. Auto-determinao (Educao) 2. Educao - Filosofia 3.Ensino 4. Pedagogia S. Poltica e educao 1. Ttulo. 11. Srie.

    95-5065 CDD-370. 1 15

    ndices para catlogo sistemtico:

    1 . Educao e democracia

    I' Edio- setembro 1983 Impresso no Brasil - novembro de 200 1

    Copyright 2001 by Editora Autores Associados

    370.115

    Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n 1.825, de 20 de dezembro de 1907.

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    "Dos crimes contra a propriedade intelectual Violao de direito autoral Art. 184 - Violar direito autoral

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    Pena - recluso de um a quatro anos e multa."

    SUMRIO

    PREFCIO 34 EDIO

    PREFCIO 33 EDIO

    PREFCIO 30" EDIO

    PREFCIO 20 EDIO

    PRESENTAO

    CAPITULO UM As TEORIAS DA EDUCAO E o PROBLEMA DA MARGlNALIDADE

    1 . O problema 2. As teorias no-crticas 3. As teorias crftico-reprodutivistas 4. Para uma teoria crtica da educao 5. Post-scriptum

    CAPITULO Dms EscoIA E DEMOCRACIA I -A TEORIA DA CURVATURA DA V ARA

    1 . O homem livre 2. A mudana de interesses 3. A falsa crena da Escola Nova 4. Ensino no pesquisa 5. A Escola Nova no democrtica 6. Escola Nova: a hegemonia da classe dominante

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    pensao alimentar, compensao sanitria, compensao afetiva, compensao familiar etc. Nesse quadro, constatada a existncia de deficincias especificamente educacionais, cabe-ria falar no em educao compensatria (atribuindo-se edu-cao a responsabilidade de compensar todo tipo de deficin-cia), mas em compensao educacional. E aqui fica, finalmente, evidenciada a no-autonomia terica da "educao compen-satria", urna vez que a exigncia de tratamento diferenciado, de respeito s diferenas individuais e aos diferentes ritmos de. aprendizagem bem como a nfase na diversificao metodo-lgica e tcnica, no sentido de suprir as carncias dos educandos, so preocupaes prprias do tipo de teoria de-nominada neste texto de "pedagogia nova".

    No contexto da Amrica Latina, a tendncia atualmente em curso (freqentemente reforada pelo patrocnio de organis-mos internacionais) de difuso da educao compensatria com a conseqente valorizao da pr-escola, entendida como mecanismo de soluo do problema do fracasso esc'Jlar das crianas das camadas trabalhadoras no ensino de primeiro grau, deve ser submetida crtica. Com efeito, tal tendncia acaba por se configurar numa nova forma de contornar o problema em lugar de atac-lo de frente. Exemplo eloqente desse des-vio o caso da cidade de So Paulo, onde, aps dez anos de merenda escolar, os ndices de fracasso escolar na passagem da primeira para a segunda srie do primeiro grau, em lugar de diminuir. aumentaram 1 em 6%.

    Cumpre no tergiversar. No se trata de negar a impor-tncia dos diferentes programas de ao compensatria. Consider-los, porm, como programas educativos implica um afastamento ainda maior, em lugar da aproximao que se faz necessria em direo compreenso da natureza especfica do fenmeno educativo.

    1 Depoimento da secretria de Educao do municpio de So Paulo em 1983.

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    CAPTULO D O 1 S

    ESCOLA E DEMOCRACIA 1 A TEORIA DA CURVATURA DA VARA

    O tema desta exposio 1 a abordagem poltica do fun-cionamento interno da escola de 1 grau. Parece-me, primeira vista, que poderamos faz-lo de duas maneiras: abordarmos a questo da organizao da escola de 1 grau, e, a ento, colocaramos nfase nas atividades-meio, focalizando o papel do diretor, suas relaes com os tcnicos intermedi-rios, orientadores, supervisores, assim por diante, chegando, em seguida. ao professor e aos alunos. Neste caso, o enfo-que estaria nas atividades-meio, ou seja, na organizao. A outra forma de abordar seria enfatizar as atividades-fim, e nesse sen-tido examinar mais propriamente como se desenvolve o ensi-no, que finalidades ele busca atingir, que procedimentos ele adota para atingir suas finalidades, em que medida existe coe-rncia entre finalidades e procedimentos. Bem, melhor me preocupar com as atividades-fim e deixar margem a questo da organizao da escola de 1 grau. Enfatizarei justamente a problemtica do ensino que se desenvolve no interior da es-

    1 . Exposio oral apresentada no Simpsio ':A.bordagem Poltica do Funcio-namento Interno da Escola de 1 Grau", 1 Conferncia Brasileira de Educao, So Paulo, 31-3-1980.

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    cola de 1 grau, pensando que funes polticas esse ensino desempenha. J que a abordagem poltica, vou logo me co-locar no corao do poltico.

    Nesse sentido, farei uma exposio centrada em trs te-ses. Enunciarei para vocs as trs teses, que vou apenas co-mentar rapidamente; em seguida, extrairei delas algumas con-seqncias para a educao brasileira e complementarei com um apndice. Para retirar o suspense sobre a forma da minha exposio, eu j antecipo quais so as teses e tambm qual o apndice. Vejam bem, todas elas so teses polticas; no en-tanto, a primeira, por ser mais geral, eu a considero uma tese filosfico-histrica. Poderamos enunci-la da seguinte manei-ra: do carter revolucionrio da pedagogia da essncia e do carter reacionrio da pedagogia da existncia.

    Uma segunda tese, que se articula com essa, uma tese que eu chamaria pedaggico-metodolgica, e a enuncio assim: do carter cientfico do mtodo tradicional e do carter pseu-docientfico dos mtodos novos.

    Vejam, ento, que estou me colocando diretamente no co-rao do poltico. Estou enunciando teses; isso significa posi-es, e posies polmicas. Dessas duas teses eu obtenho uma terceira, que, portanto, opera como uma concluso das duas primeiras. As duas primeiras funcionam como premissas para extrair uma terceira tese conclusiva especificamente poltica, de poltica educacional. Eu a enuncio da seguinte maneira; de como, quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrtica foi a escola; e de como, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a cons-truo de uma ordem democrtica.

    Bem, essa terceira tese derivada das duas primeiras. Em seguida examinaremos as conseqncias disso na educao brasileira e, por ltimo, farei referncia a um apndice. Nesse apndice farei uma pequena considerao sobre a "teoria da

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    curvatura da vara". Eu no sei se a teoria da curvatura da vara conhecida. Conforme Althusser ( 1977, pp. 136-138), ela foi enunciada por Lnin ao ser criticado por assumir posies ex-tremistas e radicais. Lnin responde o seguinte: "quando a vara est torta, ela fica curva de um lado e se voc quiser endireit-la, no basta coloc-la na posio correta. preciso curv-la para o lado oposto".

    Com essa teoria da curvatura da vara, completarei minha exposio.

    A impossibilidade de desenvolver todas as teses acima co-locadas faz com que eu apenas as enuncie para, em seguida, mencionar algumas conseqncias e, a partir delas, provocar um debate e, mais do que isso, deix-las para serem explora-das mais profundamente em outros trabalhos. Entre parnte-ses, eu acrescentaria apenas que essas teses derivam de uma re-flexo relativamente amadurecida, que venho desenvolvendo h algum tempo. Alguma coisa j expus em textos ou palestras.

    Quanto primeira tese, "do carter revolucionrio da pe-dagogia da essncia e do carter reacionrio da pedagogia da existncia", o que eu quero dizer com isso , basicamente, o seguinte: ns estamos hoje, no mbito da poltica educacional e no mbito do interior da escola, na verdade, nos digladiando com duas posies antitticas que, geralmente, so traduzidas em termos do novo e do velho, da pedagogia nova e da peda-gogia tradicional. Essa pedagogia tradicional uma pedagogia que se funda numa concepo filosfica essencialista, ao passo que a pedagogia nova se funda numa concepo filosfica que privilegia a existncia sobre a essncia. O que isso significa do ponto de vista histrico-filosfico?

    1. o HOMEM LIVRE Se ns voltarmos antigidade grega, vamos verificar que,

    em verdade, a filosofia da essncia no implicava maiores pro-

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    blemas l, e a pedagogia que decorria dessa filosofia, por sua vez, no implicava problemas polticos muito srios, na medi-da em que o homem, o ser humano, era identificado com o homem livre; o escravo no era considerado ser humano, con-seqentemente a essncia humana s era realizada nos homens livres. Ento, o problema do escravismo, sobre o qual se as-sentava a produo da sociedade grega, fica descartado e nem era um problema do ponto de vista filosfico-pedaggico.

    Durante a Idade Mdia, essa concepo essencialista re-cebe uma inovao, que diz respeito justamente articulao da essncia humana com a criao divina; portanto, ao serem criados os homens segundo uma essncia predeterminada, tambm j seus destinos eram definidos previamente; conse-qentemente, a diferenciao da sociedade entre senhores e servos j estava marcada pela prpria concepo que se tinha da essncia humana. Ento, a essncia humana justificava as diferenas.

    Ora., coisa diversa vem a ocorrer na poca moderna, com a ruptura do modo de produo feudal e a gestao do modo de produo capitalista. Nesse momento, a burguesia, classe em ascenso, vai se manifestar como uma classe revolucion-ria, e, enquanto classe revolucionria, vai advogar a filosofia da essncia como um suporte para a defesa da igualdade dos ho-mens como um todo e justamente a partir da que ela aciona as crticas nobreza e ao clero. Em outros termos: a domina-o da nobreza e do clero era uma dominao no-natural, no-essencial, mas social e acidental, portanto, histrica. Ve-jam que toda postura revolucionria uma postura essencial-mente histrica, uma postura que se coloca na direo do desenvolvimento da histria. Naquele momento, a burguesia colocava-se na direo do desenvolvimento da histria e seus interesses coincidiam com os interesses do novo, com os in-teresses da transformao; e nesse sentido que a filosofia da

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    essncia, que vai ter depois como conseqncia a pedagogia da essncia, vai fazer uma defesa intransigente da igualdade es-sencial dos homens. Sobre essa base da igualdade dos homens, de todos os homens, que se funda ento a liberdade, e sobre, justamente, a liberdade que se vai postular a reforma da sociedade. Lembrem-se, de passagem, de Rousseau. O que defendia Rousseau? Que tudo bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo degenera quando passa s mos dos homens. Em outros termos, a natureza justa, boa, e no mbito na-tural a igualdade est preservada. As desigualdades (vejam o Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens) so geradas pela sociedade. Esse raciocnio no significa outra coisa seno colocar diante da nobreza e do clero a idia de que as diferenas, os privilgios de que eles usufruam, no eram naturais e muito menos divinos, mas eram sociais. E enquanto diferenas sociais, configuravam injustia; enquanto injustia, no poderiam continuar existindo. Logo, aquela sociedade funda-da em senhores e servos no poderia persistir. Ela teria que ser substituda por uma sociedade igualitria. nesse sentido, ento, que a burguesia vai reformar a sociedade, substituindo uma sociedade com base num suposto direito natural por uma sociedade contratual.

    Vejam como que se tece todo o raciocnio. Os homens so essencialmente livres; essa liberdade funda-se na igualda-de natural, ou melhor, essencial dos homens, e se eles so li-vres; ento podem dispor de sua liberdade, e na relao com os outros homens, mediante contrato, fazer ou no conces-ses. sobre essa base da sociedade contratual que as rela-es de produo vo se alterar: do trabalhador servo, vincu-lado terra, para o trabalhador no mais vinculado terra, mas livre para vender a sua fora de trabalho e ele a vende mediante contrato. Ento, quem possui os meios de produo livre para aceitar ou no a oferta de mo-de-obra, e vice-versa, quem

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    possui a fora de trabalho livre para vend-la ou no, para vend-la a este ou aquele, para vender a quem quiser. Esse o fundamento jurdico da sociedade burguesa. Fundamento, como veremos, formalista, de uma igualdade formal. No en-tanto, sobre essa base de igualdade que vai se estruturar a pedagogia da essncia e, assim que a burguesia se torna a classe dominante, ela vai, a partir de meados do sculo XIX, estruturar os sistemas nacionais de ensino e vai advogar a escolarizao para todos. Escolarizar todos os homens era condio para converter os servos em cidados, era condio para que es-ses cidados participassem do processo poltico, e, participan-do do processo poltico, eles consolidariam a ordem demo-crtica, democracia burguesa, bvio, mas o papel poltico da escola estava a muito claro. A escola era proposta como con-dio para a consolidao da ordem democrtica.

    2. A MUDANA DE INTERESSES Ocorre que a histria vai evoluindo, e a participao polti-

    ca das massas entra em contradio com os interesses da pr-pria burguesia. Na medida em que a burguesia, de classe em ascenso, portanto, de classe revolucionria, se transforma em classe consolidada no poder, os interesses dela no caminham mais em direo transformao da sociedade: ao contrrio, os interesses dela coincidem com a perpetuao da socieda-de. nesse sentido que ela j no est mais na linha do desen-volvimento histrico, mas est contra a histria. A histria vol-ta-se contra os interesses da burguesia. Ento, para a burguesia defender seus interesses, ela no tem outra sada seno negar a histria, passando a reagir contra o movimento da histria. nesse momento que a escola tradicional, a pedagogia da es-sncia, j no vai servir e a burguesia vai propor a pedagogia da existncia. Ora, vejam vocs: o que a pedagogia da exis-tncia seno diferentemente da pedagogia da essncia, que

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    uma pedagogia que se fundava no igualitarismo, uma pedago-gia da legitimao das desigualdades? Com base neste tipo de pedagogia, considera-se que os homens no so essencialmen-te iguais: os homens so essencialmente diferentes, e ns te-mos que respeitar as diferenas entre os homens. Ento, h aqueles que tm mais capacidade e aqueles que tm menos capacidade: h aqueles que aprendem mais devagar: h aqueles que se interessam por isso e os que se interessam por aquilo.

    Eis, em sntese, o que eu quis dizer com a minha primeira tese, tese filosfico-histrica, "do carter revolucionrio da pe-dagogia da essncia, e do carter reacionrio da pedagogia da existncia".

    Com efeito, a pedagogia da existncia vai ter esse carter reacionrio, isto , vai contrapor-se ao movimento de liberta-o da humanidade em seu conjunto, vai legitimar as desigual-dades, legitimar a dominao, legitimar a sujeio, legitimar os privilgios. Nesse contexto, a pedagogia da essncia no dei-xa de ter um papel revolucionrio, pois, ao defender a igual-dade essencial entre os homens, continua sendo uma bandei-ra que caminha na direo da eliminao daqueles privilgios que impedem a realizao de parcela considervel dos homens Entretanto, neste momento, no a burguesia que assume o papel revolucionrio, como assumira no incio dos tempos mo-dernos. Nesse momento, a classe revolucionria outra: no mais a burguesia, exatamente aquela classe que a burgue-sia explora.

    3. A FALSA CRENA DA Escou NovA A segunda tese eu enunciei da seguinte forma: "do carter

    cientfico do mtodo tradicional, e do carter pseudocientfico dos mtodos novos''.

    Vejam que no fundo as minhas teses esto indo contra a tendncia corrente, contra a tendncia dominante. E por que

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    isso? Porque, vejam bem, tanto na primeira tese, como ve-remos agora na segunda, o que em verdade a burguesia faz, ao defender a posio que corresponde aos seus interesses, contrap-la ao momento anterior. Assim, no caso da pe-dagogia da existncia e da essncia, a burguesia constri os argumentos que defendem a pedagogia da existncia contra a pedagogia da essncia, pintando essa ltima como algo ti-picamente medieval. Nesse sentido, ela deixa de assumir a pedagogia da essncia como uma construo dela prpria. Veremos agora, em relao ao mtodo, como essa questo se coloca de modo tambm bastante claro. Eu vou especifi~ car um pouco mais a questo do mtodo, porque diz res-peito justamente ao modo como a gente trabalha no interior da prpria escola, no interior da sala de aula. E aqui ns po-deramos nos lembrar, j diretamente, do movimento da Es-cola Nova, que pintou o mtodo tradicional como um m-todo pr-cientfico, como um mtodo dogmtico e como um mtodo medieval. Basta ns nos lembrarmos, por exemplo, de Kilpatrick, Educao para uma O'v1lizao em Mudana, em que caracteriza a civilizao, que foi se construindo com base no surgimento da cincia moderna a partir do Renascimento, como sendo a civilizao em mudana. Nesse sentido, os mtodos tradicionais so remetidos para a Idade Mdia, e, portanto, para um carter pr-cientfico, e mesmo anticient-fico ou seja, dogmtico. Ora, no entanto, essa crena que a Escola Nova propaga uma crena totalmente falsa. Com efeito, o chamado ensino tradicional no pr-cientfico e muito menos medieval. Esse ensino tradicional, que predo-mina ainda hoje nas escolas, constituiu-se aps a Revoluo Industrial e implantou-se n!JS chamados sistemas nacionais de ensino, configurando amplas redes oficiais, criadas a partir de meados do sculo XIX, no momento em que, consolidado o poder burgus, aciona-se a escola redentora da humani-

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    dade, universal, gratuita e obrigatria como um instrumento de consolidao da ordem democrtica.

    O que estou querendo enfatizar com isto que esse m-todo tradicional foi constitudo aps a Revoluo Industrial, con-trariamente, portanto, ao argumento que os escolanovistas comumente levantam de que a Revoluo Industrial transfor-mou a sociedade, determinou uma sociedade no mais estti-ca, em mudana contnua, que essa Revoluo Industrial, que tem seu fundamento na cincia, no teve sua contrapartida na educao, que continuou sendo pr-cientfica, seguindo lemas medievais. Da il razo do mtodo novo proclamar-se cientfi-co, proclamar-se instrumento de introduo da cincia na ati-vidade educativa e, em conseqncia, colocar a educao altura do sculo, altura da poca. No entanto, esse ensino dito tradicional estruturou-se por meio de um mtodo peda-ggico, que o mtodo expositivo, que todos conhecem, to-dos passaram por ele, e muitos esto passando ainda, cuja matriz terica pode ser identificada hos cinco passos formais de Herbart. Esses passos, que so o passo da preparao, da apresentao, da comparao e assimilao, da generalizao e, por ltimo, da aplicao, correspondem ao esquema do mtodo cientfico indutivo, tal como fora formulado por Bacon, mtodo que podemos esquematizar em trs momentos fun-damentais: a observao, a generalizao e a confirmao. Tra-ta-se, portanto, daquele mesmo mtodo formulado no inte-rior do movimento filosfico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da cincia moderna. Eu acho que esse pon-to precisa ser explicitado um pouco melhor.

    No ensino herbartiano, o passo da preparao significa ba-sicamente a recordao da lio anterior, logo, do j conheci-do; atravs do passo da apresentao, colocado diante do aluno um novo conhecimento que lhe cabe assimilar; a assimi-lao, portanto o terceiro passo, ocorre por comparao, da

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    por que eu o denominei assimilao-comparao - a assimila-o ocorre por comparao do novo com o velho; o novo assimilado, pois, a partir do velho. Esses trs passos correspon-dem, no mtodo cientfico indutivo, ao momento da observa-o. Trata-se de identificar e destacar o diferente entre os ele-mentos j conhecidos. O passo seguinte, o da generalizao, significa que, se o aluno j assimilou o novo conhecimento, ele capaz de identificar todos os fenmenos correspondentes ao conhecimento adquirido. Ora, no mtodo indutivo, o momen-to da generalizao no outra coisa seno a subsuno, sob uma lei extrada dos elementos observados, pertencentes a de-terminada classe de fenmenos, de todos os elementos ( ob-servados ou no), que integram a mesma classe de fenme-nos. O passo da aplicao, que o quinto passo do mtodo herbartiano, coincide, de forma geral, com as "lies para casa". Fazendo os exerccios, o aluno vai demonstrar se ele apren-deu, se assimilou ou no o conhecimento. Trata-se de verifi-car por meio de exemplos novos, no manipulados ainda pelo aluno, se ele efetivamente assimilou o que foi ensinado. Cor-responde, pois, -ao momento da confirmao, no caso do mtodo cientfico, uma vez que, se o aluno aplicou corretamen-te os conhecimentos adquiridos, se ele acertou os exerccios, a assimilao est confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino correspondeu uma aprendizagem. Por isso, a preparao da lio seguinte comea com a recapitulao da anterior, o que feito normalmente mediante a correo da lio de casa. Eis, pois, a estrutura do mtodo tradicional; na lio seguinte co-mea-se corrigindo os exerccios, porque essa correo o passo da preparao. Se os alunos fizeram corretamente os exerccios, eles assimilaram o conhecimento anterior, ento eu posso passar para o novo. Se eles no fizeram corretamente, ento eu preciso dar novos exerccios, preciso que a apren-dizagem se prolongue um pouco mais, que o ensino atente para

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    as razes dessa demora, de tal modo que, finalmente, aquele conhecimento anterior seja de fato assimilado, o que ser a condio para se passar para um novo conhecimento.

    Cabe aqui perguntar: por que o movimento da Escola Nova tendeu a classificar como pr-cientfico, e at mesmo como anticientfico, dogmtico, o mtodo aqui citado? Acredito que demonstrei a sua cientificidade. Mas vamos tentar agora res-ponder a essa pergunta. A Escola Nova deve ter suas razes.

    4. ENSINO NO PESQUISA Na verdade, o que o movimento da Escola Nova fez foi

    tentar articular o ensino com o processo de desenvolvimento da cincia, ao passo que o chamado mtodo tradicional o arti-culava com o produto da cincia. Em outros termos, a Escola Nova buscou considerar o ensino como um processo de pes-quisa; daf por que ela se assenta no pressuposto de que os assuntos de que tli'\ta o ensino so problemas, isto , so as-suntos desconhecidos no apenas pelo aluno, como tambm pelo professor. Nesse sentido, o ensino seria o desenvolvimen-to de uma espcie de projeto de pesquisa, quer dizer, uma atividade - vamos aos cinco passos do ensino novo que se contrapem simetricamente aos passos do ensino tradicional: ento, o ensino seria uma atividade ( 1 passo) que, suscitando determinado problema (2 passo), provocaria o levantamen-to dos dados (3 passo), a partir dos quais seriam formuladas as hipteses (4 passo) explicativas do problema em questo, empreendendo alunos e professores, conjuntamente, a expe-rimentao (5 passo), que permitiria confirmar ou rejeitar as hipteses formuladas.

    V-se, pois, que o ensino novo basicamente se funda nes-sa estrutura: ele comea por uma atividade; na medida em que a atividade no pode prosseguir por algum obstculo, alguma dificuldade, algum problema que surgiu, preciso resolver esse

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    n . . 46\J ESCOLA E DEMOCRACIA

    problema. Como se vai resolver esse problema? Ento, todos, alunos e professores, saem cata de dados, dados dos mais diferentes tipos, dados documentais, bibliogrficos, dados de campo etc. Esses dados, uma vez levantados, permitiro acio-nar uma ou mais hipteses explicativas do problema. Formu-lada a hiptese, preciso passar experimentao, preciso testar essa hiptese. So esses os cinco passos do mtodo novo. Diferentemente disso, o ensino tradicional propunha-se a transmitir os conhecimentos obtidos pela cincia, portanto, j compendiados, sistematizados e incorporados ao acervo cul-tural da humanidade. Eis por que esse tipo de ensino, o ensi-no tradicional, centra-se no professor, nos contedos e no as-pecto lgico, isto , centra-se no professor, o adulto, que domina os contedos logicamente estruturados, organizados, enquanto os mtodos novos centram-se no aluno (nas crian-

    f as), nos procedimentos e no aspecto psicolgico, isto , centram-se nas motivaes e interesses da criana em desen-volver os procedimentos que a conduzam posse dos conhe-cimentos capazes de responder s suas dvidas e indagaes. Em suma, aqui, nos mtodos novos, privilegiam-se os proces-sos de obteno dos conhecimentos, enquanto l. nos mto-dos tradicionais, privilegiam-se os mtodos de transmisso dos ,conhecimentos j obtidos.

    Bem, acho que, isto posto, um e outro mtodo, uma e outra pedagogia, esto indicadas tambm as razes de cient-ficidade de uma e de outra. Mas que conseqncias isso tem?

    Vejam que com essa maneira de interpretar a educao, a Escola Nova acabou por dissolver a diferena entre pesquisa e ensino, sem se dar conta de que assim fazendo, ao mes-mo tempo que o ensino era empobrecido inviabilizava-se tam-bm a pesquisa. O ensino no um processo de pesquisa. Querer transform-lo num processo de pesquisa artificializ-lo. Da o meu prefixo pseudo ao cientfico dos mtodos no-

    t' ,r

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    vos. Eu vou tentar explicar um pouquinho ainda isso. Por que o ensino era empobrecido e ao mesmo tempo se inviabilizava a pesquisa?

    Vejam bem que, se a pesquisa incurso no desconheci-do, e por isso ela no pode estar atrelada a esquemas rigida-mente lgicos e preconcebidos, tambm verdade que: pri-meiro, o desconhecido s se define por confronto com o conhecido, isto , se no se domina o j conhecido, no possvel detectar o ainda no conhecido, a fim de incorpor-lo, mediante a pesquisa, ao domnio do j conhecido. A, pa-rece-me que esta uma das grandes fraquezas dos mtodos novos. Sem o domnio do conhecido, no possvel incursionar no desconhecido. E a est tambm a grande fora do ensino tradicional: a incurso no desconhecido fazia-se sempre por meio do conhecido, e isso muito simples; qualquer aprendiz de pesquisador passou por isso ou est passando, e qualquer pesquisador sabe muito bem que ningum chega a ser pesqui-sador, a ser cientista, se ele no domina os conhecimentos j existentes na rea em que ele se prope a ser investigador, a ser cientista. Em segundo lugar, o desconhecido no pode ser definido em termos individuais, mas em termos sociais, isto , trata-se daquilo que a sociedade e, no limite, a humanidade em seu conjunto desconhece. S assim seria possvel encontrar-se um critrio aceitvel para distinguir as pesquisas relevantes das que no o so, isto , para se distinguir a pesquisa da pseudopesquisa, da pesquisa de "mentirinha", da pesquisa de brincadeira, que, em boa parte, me parece, constitui o manan-cial dos processos novos de ensino. Em suma, s assim ser possvel encetar investigaes que efetivamente contribuam para o enriquecimento cultural da humanidade. Creio que est demonstrada a minha segunda tese, isto , o carter cientfico do mtodo tradicional e o carter pseudocientfico dos mto-dos novos.

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    5. A EscoLA NovA No DEMOCRTICA Destas duas teses extrai-se a terceira, que a concluso

    segundo a qual quando mais se falou em democracia no inte-rior da escola, menos democrtica foi a escola: e, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articula-da com a construo de uma ordem democrtica.

    Parece-me que, como diziam os escolsticos, conclusio patet, isto , essa tese evidente depois do que foi explicitado em relao s duas primeiras, porque, obviamente, ns sabe-mos que, em relao pedagogia nova, um elemento que est muito presente nela a proclamao democrtica, a procla-mao da democracia. Alis, inclusive, o prprio tratamento diferencial, portanto, o abandono da busca de igualdade jus-tificado em nome da democracia e nesse sentido tambm que se introduzem no interior da escola procedimentos ditos de-mocrticos. E hoje ns sabemos. com certa tranqilidade, j, a quem serviu esse. democracia e quem se beneficiou dela, quem vivenciou esses procedimentos democrticos no interior das escolas novas. No foi o povo, no foram os operrios, no foi o proletariado. Essas experincias ficaram restritas a pequenos grupos, e nesse sentido ela!. se constituram, em geral, em privilgios para os j privilegiados, legitimando as di-ferenas. Em contrapartida, os homens do povo (o povo, como se costuma dizer) continuaram a ser educados basica-mente segundo o mtodo tradicional, e, mais que isso, no s continuaram a ser educados, revelia dos mtodos novos, como tambm jamais reivindicaram tais procedimentos. Os pais d_as crianas pobres tm uma G:onscincia muito clara de que a aprendizagem implica a aquisio de contedos mais ricos, tm uma conscincia muito clara de que a aquisio desses conte-dos no se d sem esforo, no se d de modo espontneo; conseqentemente, tm uma conscincia muito clara de que para se aprender preciso disciplina e, em funo disso, eles

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    exigem mesmo dos professores a disciplina. comum a gente encontrar esta reao nos pais das crianas das classes traba-lhadoras: se o meu filho no quer aprender, vocs tm que fazer com que ele queira. E o papel do professor o de ga-rantir que o conhecimento seja adquirido, s vezes mesmo con-tra a vontade imediata da criana, que espontaneamente no tem condies de enveredar para a realizao dos esforos ne-cessrios aquisio dos contedos mais ricos e sem os quais ela no ter vez, no ter chance de participar da sociedade.

    nesse sentido que digo que quando mais se falou em de-mocracia no interior da escola menos democrtica ela foi, e

    , quando menos se falou em democracia, mais ela esteve arti-culada com a construo de uma ordem democrtica. Ora, na explicao da minha primeira tese, eu tinha indicado que a bur-guesia, ao formular a pedagogia da essncia, ao criar os siste-mas nacionais de ensino, colocou a escolarizao como uma das condies para a consolidao da ordem democrtica. Conseqentemente, a prpria montagem do aparelho esco-lar estava a a servio da participao democrtica, embora no interior da escola no se falasse muito em democracia, embo-ra no interior da e>~cola ns tivssemos aqueles professores que assumiam, no abdicavam, no abriam mo da sua autorida-de, e usavam essa autoridade para fazer com que os alunos as-cendessem a um nvel elevado de assimilao da cultura da humanidade.

    6. ESCOLA NOVA: A HEGEMONIA DA CLASSE DOMINANTE

    Passemos, enfim, s conseqncias para a situao educa-cional brasileira. Vou tomar dois momentos para ilustrar: o primeiro momento seria em torno da dcada de 1930 e o segundo seria na dcada de 1970, mais exatamente uma refe-rncia reforma do ensino instituda pela Lei n. 5.692 para ve-

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    rificar como ela se enquadra nesse esquema mais amplo de compreenso e como ela interferiu no interior da escola do ponto de vista poltico, determinando que, interiormente, as escolas cumprissem certas funes polticas.

    Em relao ao momento de 1930, eu o tomo justamente porque o movimento da Escola Nova toma fora no Brasil exa-tamente a partir da. A Associao Brasileira de Educao, ABE, foi fundada em 1924 e, num certo sentido, aglutinou os edu-cadores novos, os pioneiros da educao nova, que vo de-pois lanar seu manifesto, em 1932, e vo travar em seguida uma polmica com os catlicos em torno do captulo da edu-cao da Constituio de 1934. Esse momento, 1924, com a criao da ABE, 1927, com a 1 Conferncia Nacional de Edu-cao, 1932, com o lanamento do Manifesto dos Pioneiros, marco da ascendncia escolanovista no Brasil, movimento este que atingiu o seu auge por volta de 1960, quando, em seguida, entra em refluxo, em funo de uma n.ova tendncia da poltica educacional, que a gente poderia chamar de "os meios de comunicao de massa" e "as tecnologias de ensino". Eu no vou poder entrar nesse detalhe. J tratei disso em al-gumas palestras que esto publicadas no livro Educao do senso comum conscincia filosfica.

    O que queria destacar em relao ao momento de 1930 , basicamente, o seguinte: o contraste entre o "entusiasmo pela educao" e "otimismo pedaggico". J. Nagle analisa isso com razovel detalhe na sua tese de livre-docncia que ver-sou sobre a dcada de 1 920, e foi publicada sob o ttulo Edu-cao e Sociedade na /Repblica. Ali, Nagle faz referncia a duas categorias: uma que ele chama "o entusiasmo pela edu-cao", marca caracterstica do incio do sculo e tambm da dcada de 1920 que, no entanto, entra em refluxo no final dessa dcada, cedendo lugar quilo que ele chama "otimismo pedaggico" que uma caracterstica do escolanovismo. Ora,

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    o importante do ponto de vista poltico a salientar aqui que nessa fase do entusiasmo pela educao se pensava a escola como instrumento de participao poltica, isto , pensava-se a escola com uma funo explicitamente poltica; a primeira dcada desse sculo, a segunda, a dcada de 191 O, e a tercei-ra, a dcada de 1920, foram muito ricas em movimentos po-pulares que reivindicavam uma participao maior na socieda-de, e faziam reivindicaes tambm do ponto de vista escolar. Ns sabemos que a dcada de 1920 foi uma dcada de gran-de tenso, de grande agitao, de crise de hegemonia das oligarquias at ento dominantes. Essa crise de hegemonia foi de certo modo aguada pela organizao dos trabalhadores; vrias greves operrias surgiram nesse perodo e vrios movi-mentos organizacionais tambm se deram. Com o escolano-vismo, o que ocorreu foi que a preocupao poltica em rela-o escola refluiu. De uma preocupao em articular a escola como um instrumento de participao poltica, de participao democrtica, passou-se para o plano tcnico-pedaggico. Da essa expresso de Jorge Nagle: "otimismo pedaggico". Pas-sou-se do "entusiasmo pela educao", quando se acreditava que a educao poderia ser um instrumento de participao das massas no processo poltico, para o "otimismo pedaggi-co", em que se acredita que as coisas vo bem e resolvem-se nesse plano interno das tcnicas pedaggicas. Num outro tex-to, fao referncia Escola Nova como desempenhando a fun-o de recompor os mecanismos de hegemonia da classe do-minante. Com efeito, se na fase do "entusiasmo pela educao" o lema era "escola para todos", essa era a bandeira de luta, ago-ra a Escola Nova vem transferir a preocupao dos objetivos e dos contedos para os mtodos e da quantidade para a qua-lidade. Ora, vocs no sabem o que existe de significado pol-tico por detrs dessa metamorfose! Em verdade, o significado poltico, basicamente, o seguinte: que quando a burguesia

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    acenava com a escola para todos (por isso era instrumento de hegemonia), ela estava num perodo capaz de expressar os seus interesses abarcando tambm os interesses das demais classes. Nesse sentido, advogar escola para todos correspondia ao in-teresse da burguesia, porque era importante uma ordem de-mocrtica consolidada e correspondia tambm ao interesse do operariado, do proletariado, porque para ele era importante participar do processo poltico, participar das decises.

    Ocorre que, na medida em que tem incio essa participa-o, as contradies de interesses que estavam submersas sob aquele objetivo comum vm tona e fazem submergir o co-mum; o que sobressai, agora, a contradio de interesses, ou seja, o proletariado, o operariado, as camadas dominadas, na medida em que participavam das eleies, no votavam bem, segundo a perspectiva das camadas dominantes, quer dizer; no escolhiam os melhores; a burguesia acreditava que o rovo instrudo iria escolher os melhores governantes. Mas o povo instrudo no estava escolhendo os melhores. Obser-ve-se que no escolhiam os melhores do ponto de vista do-minante. Ocorre que os melhores do ponto de vista dominante no eram os melhores do ponto de vista dominado. Na ver-dade, o povo escolhia os menos piores, porque " claro que os melhores ele no podia escolher, uma vez que o esquema partidrio no permitia que seus representantes autnticos se candidatassem. Ento ele tinha que escolher, entre as faces em luta no prprio campo burgus, as opes menos piores; s que as menos piores, do ponto de vista dos interesses dos dominados, eram as piores do ponto de vista dominante. "Ora, ento essa escola no est funcionando bem", foi o raciocnio das elites, das camadas dominantes: e se essa escola no est funcionando bem, preciso reformar a escola. No basta a quantidade, no adianta dar a escola para todo mundo desse jeito. E surgiu a Escola Nova que tornou possvel, ao mesmo

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    tempo, o aprimoramento do ensino destinado s elites e o re-baixamento do nvel de ensino destinado s camadas popula-res. nesse sentido que a hegemonia pde ser recomposta. Sobre isso haveria coisas interessantssimas para a gente discu-tir em relao ao que est ocorrendo no Brasil, hoje: a contra-dio da poltica educacional atual, em que a proposta de base, referente ao ensino fundamental, , no meu modo de ver, populista, e a proposta de cpula, em relao ps-gradua-o, elitista.

    Em suma, o movimento de 1930, no Brasil, devido as-censo do escolanovismo, .correspondeu a um refluxo e at a um desaparecimento daqueles movimentos populares que ad-vogavam uma escola mais adequada aos seus interesses. E por que isso? A partir de 1930, ser progressista passou a significar ser escolanovista. E aqueles movimentos sociais, de origem, por exemplo, anarquista, socialista, marxista, que conclama-vam o povo a se organizar e reivindicar a criao de escolas para os trabalhadores, perderam a vez, e todos os progres-sistas em educao tenderam a endossar o credo escolano-vista. Bem, eu poderia me estender, puxar o fio da histria, de 1930 at agora, mas vamos fazer um corte, e vou tomar a reforma de 1971 como uma outra indicao prtica da tese que enunciei.

    O que fez a Lei n. 5.692? Tomemos, por exemplo, o prin-cpio de flexibilidade, que a chave da lei, que a grande des-coberta dessa lei, a sua grande inovao. Ela to flexvel que pode at no ser implantada. E mais ainda: to flexvel que pode at ser revogada sem ser revogada; e eu no estou in-ventando, no. Peguem o Parecer n. 45(72, da profissionaliza-o, em confronto com o Parecer n. 76(75, tambm da pro-fissionalizao. O primeiro parecer regulamentou o artigo 5 da lei; o segundo revogou o primeiro e, com ele, revogou tam-bm o artigo 5; s que, mediante o princpio da flexibilidade,

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    ele no revogou, mas o reinterpretou, e o artigo 5 permane-ce nela.

    Devido a essa flexibilidade, instituiu-se, por exemplo, aquela diferenciao entre terminalidade real e terminalidade legal ou ideal. Ora, o que a terminalidade real seno admitir que quem tem pouco continua tendo menos ainda? s vezes eu digo, brin-cando, que nesse sentido o capitalismo bem evanglico. Ele aplica ao p da letra a mxima evanglica enunciada na par-bola dos talentos: "ao que tem se lhe dar; e ao que no tem, at o pouco que tem lhe ser tirado".

    Em relao a essa diferenciao entre terminalidade ideal e terminalidade real, diz-se comumente o seguinte: todo o con-tedo de aprendizagem do 1 grau ser dado em oito anos; eis o legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles lugares em que no h condies de se ter escola de oito anos, ento que se or-ganize esse contedo para seis anos, em outros, para quatro ou para dois, e assim por diante; e, numa mesma regio, a escola que no tem condio de dar oito, que d seis, e assim por diante; e, numa mesma classe, para aqueles alunos que no tm condies de chegar l no oitavo, voc d uma formao geral em quatro anos, que quase s o que eles vo ter mes-mo; em seguida, sondagem de aptido, e encaminha-se para o mercado de trabalho. Ora, vejam vocs como est aqui de modo bem caracterizado aquilo que eu chamo o aligeiramento do ensino destinado s camadas populares. Dessa maneira, o ensino das camadas populares pode ser aligeirado at o nada, at se desfazer em mera formalidade.

    Outro ponto apenas, e eu j passo para a teoria da curva-tura da vara, porque acho que esto todos curiosos em rela-o a ela. Ento, uma observao s, sobre a reformulao curricular. Outra "descoberta" da Lei n. 5.692 foi a reformula-o curricular por meio de atividades, reas de estudos edis-ciplinas, determinando que o ensino, nas primeiras oito sries,

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    se desenvolvesse predominantemente sob a forma de ativida-des e reas de estudo. Ora, essas atividades e reas de estu-dos so outra maneira de diluir o contedo da aprendizagem das camadas populares; e todos sabem que isso efetivamente ocorreu e vem ocorrendo.

    Vou dispensar outras ilustraes vinculadas Lei n. 5.692; apenas gostaria de enfatizar isso: que, contra essa tendncia de aligeiramento do ensino destinado s camadas populares, ns precisaramos defender o aprimoramento exatamente do en-sino destinado s camadas populares. Essa defesa implica a prioridade de. contedo. Os contedos so fundamentais e sem contedos relevantes, contedos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transfor-ma-se numa farsa. Parece-me, pois, fundamental que se en-tenda isso e que, no interior da escola, ns atuemos segundo essa mxima: a prioridade de contedos, que a nica forma de lutar contra a farsa do ensino. Por que esses contedos so prioritrios? justamente porque o domnio da cultura constitui instrumento indispensvel para a participao poltica das mas-sas. Se os membros das camadas populares no dominam os contedos culturais, eles no podem fazer valer os seus inte-resses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses contedos culturais para legiti-mar e consolidar a sua dominao. Eu costumo, s vezes, enun-ciar isso da seguinte forma: o dominado no se liberta se ele no vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. En-to, dominar o que os dominantes dominam condio de li-bertao.

    Nesse sentido, eu posso ser profundamente poltico na mi-nha ao pedaggica, mesmo sem falar diretamente de polti-ca, porque, mesmo veiculando a prpria cultura burguesa, e instrumentalizando os elementos das camadas populares no sentido da assimilao desses contedos, eles ganham condi-

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    es de fazer valer os seus interesses, e nesse sentido, en-to, que se fortalecem politicamente. No adianta nada eu fi-car sempre repetindo o refro de que a sociedade dividida em duas classes fundamentais, burguesia e proletariado, que a burguesia explora o proletariado e que quem proletrio est sendo explorado, se o que est sendo explorado no assimila os instrumentos pelos quais ele possa se organizar para se li-bertar dessa explorao. Associada a essa prioridade de con-tedo, que eu j antecipei, parece-me fundamental que se esteja atento para a importncia da disciplina, quer dizer; sem disciplina esses contedos relevantes no so assimilados. En-to, eu acho que ns conseguiramos fazer uma profunda re-forma na escola, a partir de seu interior, se passssemos a atuar segundo esses pressupostos e mantivssemos uma preocupa-o constante com o contedo e desenvolvssemos aquelas frmulas disciplinares, aqueles procedimentos que garantissem que esses contedos fossem realmente assimilados. Por exem-plo, o problema dos alunos das camadas populares nas salas de aula implica redobrados esforos por parte dos respons-veis pelo ensino, por parte dos professores, mais diretamen-te. O que ocorre, geralmente, que, as condies de traba-lho, o prprio modelo que impregna a atividade de ensino, as exigncias e expectativas a que so submetidos professores e alunos, tudo isso faz com que o prprio professor tenda a cuidar mais daqueles que tm mais facilidade, deixando margem aqueles que tm mais dificuldade. E assim que ns acabamos, como professores, no interior da sala de aula, reforando adis-criminao e sendo politicamente reacionrios.

    Quanto ao apndice, relativo "teoria da curvatura da vara", fao apenas um comentrio rpido e encerro. Na verdade, in-troduzi esse apndice simplesmente pelo seguinte: a nfase que dei, invertendo a tendncia corrente, decorre da considerao de que, na tendncia corrente, a vara est torta: est torta para

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    o lado da pedagogia da existncia, para o lado dos movimen-tos da Escola Nova. E nesse sentido que o raciocnio habi-tual tende a ser o seguinte: as pedagogias novas so portado-ras de todas as virtudes, enquanto a pedagogia tradicional portadora de todos os defeitos e de nenhuma virtude. O que se evidencia pelas minhas teses justamente o inverso.

    Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o outro lado. A minha expectativa justamente que com essa inflexo a vara atinja o seu ponto correto, o qual no est tambm na peda-gogia tradicional, mas na valorizao dos contedos que apon-tam para uma pedagogia revolucionria. Esta identifica as pro-postas burguesas como elementos de recomposio de mecanismos hegemnicos e dispe-se a lutar concretamente contra a recomposio desses mecanismos de hegemonia, no sentido de abrir espao para as foras emergentes da socieda-de, para as foras populares, para que a escola se insira no pro-cesso mais amplo de construo de uma nova sociedade.