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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA

    Vilas do planalto paulista: a criao de municpiosna poro meridional da Amrica Portuguesa

    (sc. XVI-XVIII)

    Fernando V. Aguiar Ribeiro

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Econmica da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo, para

    a obteno do ttulo de Doutor em Cincias

    (rea de Concentrao: Histria Econmica).

    Orientadora: Prof. Dr. Raquel Glezer

    So Paulo

    2015

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    I

    gradecimentos

    Agradeo Universidade de So Paulo pela formao, tanto na graduao

    como no mestrado, e que permitiu, atravs do Programa de Ps-Graduao em

    Histria Econmica, a realizao dessa tese de doutoramento.

    Pesquisa essa que contou com o apoio do Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) para as atividades no Brasil e da

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) para a

    realizao de etapa de doutorado-sanduche em Portugal. Nesse pas, agradeo ao

    Instituto Universitrio de Lisboa (ISCTE-IUL) pela vinculao durante o perodo.

    banca de qualificao, composta por Prof Dr Inez Garbuio Peralta e Prof.

    Dr. Rodrigo M. Ricupero, agradeo a leitura, crticas e encaminhamentos de pesquisa.

    A presente pesquisa somente foi possvel graas ao apoio das instituies,

    principalmente pelos funcionrios cujas atividades so imprescindveis para os

    pesquisadores. Sou grato s bibliotecas da Faculdade de Filosofia, do Instituto de

    Estudos Brasileiros, do Museu Paulista, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e

    Biblioteca Brasiliana Guita e Jos Mindlin, da Universidade de So Paulo.

    Agradeo Ctedra Jaime Corteso, na pessoa da Prof Dr Vera LuciaAmaral Ferlini, a acolhida como pesquisador da instituio.

    Tambm registro o apoio do Arquivo Histrico Municipal Washington Lus e

    da Biblioteca Municipal Mrio de Andrade, na cidade de So Paulo, e Biblioteca

    Nacional do Rio de Janeiro.

    Uma tese que pretende uma anlise internacional da Histria depende da

    consulta a acervos de vrios pases. Agradeo Biblioteca Nacional de Portugal,

    Biblioteca Nacional de Espanha, Institut Geogrfic i Geologic de Catalunya,bibliotecas do ISCTE-IUL e da Universidade de Lisboa, ao Arquivo Histrico

    Ultramarino e ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

    No continente americano, registro o agradecimento Biblioteca Nacional del

    Paraguay, Academia Paraguaya de la Historia, ao Museo Etnogrfico Dr. Andrs

    Barbero, Biblioteca del Congreso de la Nacin Argentina, e Biblioteca Nacional

    de la Repblica Argentina.

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    II

    Agradeo Prof Dr Marcia M. Menendes Motta pelo dilogo privilegiado e

    pela indicao da bolsa-sanduche, fato esse fundamental para os encaminhamentos

    da pesquisa.

    Agradeo ao Prof. Dr. Jos Vicente Serro pela orientao durante a estada em

    Portugal e aos estmulos que influenciaram as reflexes sobre internacionalizao da

    Histria.

    Agradeo aos professores Alberto Luiz Schneider, Alida C. Metcalf, Ana

    Paula Torres Megiani, Beatriz Picollotto Siqueira Bueno, Antnio Manuel Hespanha,

    Carmen M. Oliveira Alveal, Graciela Chamorro Argello, ris Kantor, Joaquim A.

    Romero Magalhes, Julio Cesar Bentivoglio, Laura de Melo e Souza, Marina

    Monteiro Machado, Maximiliano Mac Menz, Miguel Soares Palmeira, Nauk Maria de

    Jesus, Nestor Goulart Reis Filho, Oldimar Pontes Cardoso, Tiago Lus Gil, Rafael

    Chambouleyron, Ricardo Hernn Medrano e Stuart B. Schwarz.

    Agradeo a Adalberto Coutinho, Adalberto Graciano, Adriane Baldin, Amlia

    dos Santos, Arnaldo Marques, Carlos Rovaron, Diogo Leite, Eduardo Carneiro,

    Gisele Almeida, Joo Paulo Streapco, Jos Roberto Baldin, Lorena Leite, Maria

    Angela Raus, Magno Nascimento, Marly Spachachieri, Natalia Salla, Patrcia So

    Miguel, Rebeca Enke, Rosa Udaeta, Sandra Perez, Solange Arago, Tathiane

    Gerbovic, Vernica Aguiar, Viviane Domingos e Zueleide Casagrande.

    Ao Thiago Lima Nicodemo agradeo as conversas sobre historiografia e os

    debates sobre a obra e pensamento de Srgio Buarque de Holanda.

    Agradeo a Adriano Toledo, Alessandra Costa, Dannylo Azevedo, Eduardo

    Ramos, rika Mainart, Fabrcio Rodrigues, Guido Litjens, Idelma Novais, Mara

    Etzel, Mrio Simes, Nao Obata, Natasha Friaa, Roberta Azambuja, Ronaldo

    Pauletto, Sarita Mota, Steffi Gersdorf, Thalita Castro e Thaysa Audujas pelo apoio em

    Portugal.Agradeo a Breno Ferreira, Carlos Surez, Eduardo Peruzzo, Eliel Cardoso,

    Elisangela Silva, Esdras Arraes, Ivana Pansera, Joana Monteleone, Joaquim Xavier

    Jr., Juliana Henrique, Leonardo Rolim, Leonardo Saad, Lucas Jannoni, Luis Otvio

    Tasso, Luiz Alberto Rezende, Marcos Antonio Veiga, Marlia Ariza, Natalia

    Tammone, Pablo Mont Serrathe, Patrcia Machado, Patrcia Valim, Renata Freitas,

    Renato Bastos, Rogrio Beier, Sylvia Brito, Tatiana Bina, Tathianni Silva, Thiago

    Dias, Valter Lenine Fernandes e Victor Hugo Abril.

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    III

    Aos amigos Daniel Gonzales, Heloisa Turek, Juliana Batista, Marianne

    Schaeffer, Paula Coelho e Victor Delboni agradeo o apoio e a compreenso pelas

    constantes ausncias.

    Agradeo Prof Dr Raquel Glezer a orientao, o apoio pesquisa e o

    exemplo de docncia e pesquisador. Poucas linhas seriam injustas para demonstrar a

    gratido pela confiana e suporte por quase uma dcada de convvio.

    Por fim, e no menos importante, agradeo minha famlia, Olga, Jos Carlos,

    Fabola, Carolina e Artur pelo apoio incondicional, condio imprescindvel para

    concluso dessa pesquisa.

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    V

    bstract

    The aim of this thesis is to understand the phenomenon regarding the foundation of

    towns in upland So Paulo between the beginning of colonization and 1765. In thisyear, Morgado de Mateus, governor of the Captaincy, establishes a policy for security

    and economic development through the foundation of villages in the wilderness of

    So Paulo. We mean to analyze how the creation of villages took place in the absence

    of a Crowns Policy or a governors purpose and the role the political elites played in

    this process.

    Adopting an approach that intends to surpass the Empires borders, we seek to

    comprehend the local political elites within a more extended geographical context.

    Keywords:local authorities, municipalities, colonization, urbanization, So Paulo

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    VI

    esumen

    La tesis pretende comprender el fenmeno de la creacin de municipios en la meseta

    de So Paulo entre lo inicio de la colonizacin y 1765. En esa fecha el Morgado de

    Mateus, gobernador de la capitana, emprende una poltica de defensa y el desarrollo

    econmico a travs de la creacin de pueblos en el hinterland .

    Tratamos de analizar como se hizo el desarrollo de los pueblos, en ausencia de una

    poltica de la Corona o del donatario y el papel que tenan las lites polticas en el

    proceso.

    Tambin buscamos, en una perspectiva que intenta traspasar las fronteras de los

    imperios, entender las lites polticas locales en un contexto espacial ms amplio.

    Palabras-clave:autoridades locales, municipios, colonizacin, urbanizacin, So

    Paulo

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    VII

    ndice de lustraes

    Mapa 1 Itinerrio de viagem de Cabeza de Vaca ao Paraguai 52

    Mapa 2 Itinerrio de viagem de Ulrico Schmidl 61Mapa 3 Roteiro da viagem de D. Lus de Cspedes Xeria 79Mapa 4 Mappa da capitania de S. Paulo... 73Mapa 4A Detalhe do Mappa da capitania de S. Paulo 74Mapa 5A new and accurate map of Paraguay 75Mapa 5A Detalhe doA new and accurate map of Paraguay 76Mapa 6 Densidade populacional por comarca Portugal (c. 1527) 191Mapa 7 Densidade populacional por comarca Portugal (c. 1700) 192Mapa 8 Vilas criadas no planalto entre 1560 e 1765 231

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    VIII

    umrio

    Introduo 1

    Parte I Os sertes de So Paulo: a construo do espao 16

    Captulo 1 Sertes de So Paulo como espao fluido 17

    A criao do espao: discusso sobre as espacialidades na Amrica Portuguesa 17

    Historiografia sobre sertes 26

    A fronteira na historiografia sobre a ocupao do planalto 34

    Captulo 2 Caminhos na poro meridional da Amrica 46Viajantes nos sertes americanos 46

    O roteiro da expedio de Cspedes Xeria 65

    Espacializao dos caminhos nos sertes 72

    Captulo 3 Uma histria platina da colonizao americana 82

    Uma histria da Bacia do Prata: problemticas 82

    Histria platina do Vice-reino do Peru (Paraguai e Buenos Aires) 86Histria da capitania de So Vicente 98

    Guair: regio de disputa e integrao 106

    Parte II Poderes locais no Imprio Portugus 115

    Captulo 4 Histria global: uma abordagem para a Amrica Portuguesa 116

    Histria dos Imprios 116Histria global 126

    Amrica Portuguesa atravs de uma abordagem global 135

    Captulo 5 Municpios no Imprio Portugus: discusses historiogrficas 143

    Historiografia sobre poderes locais em Portugal 143

    Historiografia sobre poderes locais no Brasil 156

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    IX

    Captulo 6 Poderes locais no Imprio Portugus 171

    O engrandecimento do poder real 171

    O poder real nas mltiplas geografias do Imprio 184

    Parte III Poderes locais nos sertes de So Paulo 198

    Captulo 7 Circulao de experincias de povoamento no Novo Mundo 199

    Circulao de ideias 199

    Cidades castelhanas na Amrica 203

    Cidades portuguesas na Amrica 210

    Contribuies indgenas 215

    Captulo 8 Fundao de vilas no planalto de So Paulo 230

    Narrativas de fundaes de municpios no planalto 230

    Criadores de municpios 249

    Captulo 9 A construo de um modelo vicentino para criao de municpios 262

    Sociedade mestia 262

    Integrao dos modelos polticos portugus e indgena 274

    Fim do modelo 283

    Consideraes Finais 292

    Referncias bibliogrficas 296

    Apndice Atas da Cmara de So Paulo: relao de cargos ocupados 312

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    1

    ntroduo

    Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava aprocurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as

    para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com pacincia a pergunta

    que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto

    perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrvel comodidade, na cadeira da

    mulher da limpeza, Para ir procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha

    desconhecida, perguntou o rei disfarando o riso, como se tivesse na sua frente um louco

    varrido, dos que tm a mania das navegaes, a quem no seria bom contrariar logo de

    entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, j no h ilhas desconhecidas,

    Quem foi que te disse, rei, que j no h ilhas desconhecidas, Esto todas nos mapas, Nos

    mapas s esto as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida essa de que queres ir

    procura, Se eu to pudesse dizer, ento no seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela,

    perguntou o rei, agora mais srio, A ningum, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela

    existe, Simplesmente porque impossvel que no exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui

    para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem s, para que eu

    to d, E tu quem s, para que no mo ds, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino

    pertencem-me todos, Mais lhes pertencers tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer,

    perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, s nada, e que eles, sem ti, podero sempre

    navegar, s minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, No te peo

    marinheiros nem piloto, s te peo um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares,

    ser para mim, A ti, rei, s te interessam as ilhas conhecidas, Tambm me interessam as

    desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta no se deixe conhecer, Ento no te dou

    o barco, Dars.

    Jos Saramago1

    1Jos Saramago. O conto da ilha desconhecida. Lisboa: Caminho, 1999, [1aedio, 1997], p. 3-4.

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    Para povoar o Novo Mundo, a primeira iniciativa da Coroa portuguesa foi

    conceder as novas terras como capitanias. Isso ocorreu, de acordo com Florestan

    Fernandes, por ser a Coroa pobre, mas ambiciosa em seus empreendimentos, [que]

    procura apoio nos vassalos, vinculando-os aos seus objetivos e enquadrando-os s

    malhas das estruturas de poder e burocracia do Estado patrimonial2.

    Com isso, a Coroa delegou aos donatrios extensas faixas do territrio

    americano para que esses ocupassem, povoassem e desenvolvessem as capitanias

    economicamente.

    O modelo no foi extinto com a criao do governo geral em 1548 pois as

    capitanias eram objeto de doao rgia. A incorporao desses territrios Coroa

    somente poderia ser efetivado atravs da compra ou da renncia por parte do

    donatrio3.

    O longo processo de incorporao das capitanias da Amrica portuguesa

    somente seria efetivado em meados do sculo XVIII. A esse respeito, Antnio

    Vasconcelos de Saldanha aponta que

    a administrao do Rei D. Joo V preside, em relao s capitanias,uma s preocupao: a tentativa da sua absoro, atingida em vriospontos com sucesso Sto. Amaro (1709), Pernambuco (1716) eEsprito Santo (1718), todas no Brasil, e em 1736 algumas dascapitanias remanescentes em Cabo Verde so tambmdefinitivamente incorporadas na Coroa e que, acrescentando aoprocesso natural do desinteresse ou falta de sucesso dos capites-donatrios, leva que o nmero dos senhorios ultramarinos vsubstancialmente diminudo4.

    Na capitania de So Vicente, o processo foi distinto das demais. Essa

    capitania, criada em 15315, seria incorporado Coroa em 1709, quando formou,

    juntamente com a de Itanham, a capitania de So Paulo e Minas de Ouro6.

    Em 1765, a capitania de So Paulo seria restaurada e, no contexto da

    necessidade de defesa das minas de ouro, teria um governador nomeado pela Coroa.

    2Florestan Fernandes. Circuito fechado. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 34.3Antnio Vasconcelos de Saldanha.As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinode um fenmeno atlntico. Lisboa: Comisso Nacional para os Descobrimentos Portugueses, 2001, p.387-403.4Antnio Vasconcelos de Saldanha. op. cit., p. 23.5 Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Histria da capitania de So Vicente. So Paulo:

    Melhoramentos, 1954, p. 66.6Manuel Eufrsio de Azevedo Marques.Apontamentos histricos, geogrficos, biolgicos, estatsticose noticiosos da provncia de So Paulo. So Paulo: Martins, 1954, vol. I, p. 167-168.

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    Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro, Morgado de Mateus, durante sua

    gesto entre 1765 e 1775, empreendeu uma poltica de povoamento, defesa e

    desenvolvimento econmico7.

    Como ao fundamental para tais medidas, o governador criou diversas vilas

    ao longo do territrio da capitania, seguindo um projeto econmico8e geopoltico.

    Ou seja, desde o incio da colonizao at 1765 no houve poltica de criao

    de vilas por parte da Coroa ou donatrios. Contudo, nesses mais de dois sculos, onze

    municpios foram criados no planalto9.

    A proposta da tese compreender o processo de criao de municpios no

    planalto da capitania no perodo anterior s polticas de povoamento da Coroa,

    verificando como o fenmeno ocorreu.

    A ideia que a criao de novas vilas, no partindo de uma ao do donatrio

    ou da Coroa, representou a atuao dos agentes polticos locais. Os oficiais da

    Cmara, em uma dinmica regional, fundaram municpios a fim de evitar conflitos

    polticos por conta do controle da administrao municipal.

    O equilbrio na capitania, gestado nas dcadas iniciais da colonizao

    portuguesa na Amrica, deve ser pensando em consonncia com a prtica poltica do

    colono, fruto esse da mistura tnica e cultural de elementos ibricos e indgenas.

    Essa perspectiva leva em conta valores polticos e espaciais hbridos e que, na

    ausncia de uma poltica orientada pela administrao central portuguesa, permitiu a

    construo de uma dinmica de fragmentao poltica tpica das sociedades indgenas

    do planalto vicentino.

    Assim, a criao de vilas no planalto resulta na prtica de elementos de matriz

    indgena, no que se refere fragmentao poltica, e concepo ibrica de

    manuteno de equilbrio entre as elites locais.

    Propomos, portanto, que o fenmeno de criao de vilas no planalto vicentino,desde os primrdios da colonizao at a restaurao da capitania em 1765, foi fruto

    7Heloisa L. Bellotto.Autoridade e conflito no Brasil colonial.So Paulo: Alameda, 2007, p. 39.8Para o projeto econmico do Morgado de Mateus ver Pablo Oller Mont Serrath.Dilemas & conflitosna So Paulo restaurada: formao e consolidao da agricultura exportadora (1765-1802).Dissertao de mestrado (Histria Econmica) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas,Universidade de So Paulo, 2007.9No perodo entre 1532 e 1765, foram estabelecidos no planalto os municpios de So Paulo, Mogi dasCruzes, Santana de Parnaba, Itu, Sorocaba, Jundia, Jacare, Taubat, Guaratinguet,Pindamonhangaba e Curitiba. Para detalhes, Fernando V. Aguiar Ribeiro. Poder local e

    patrimonialismo: A Cmara Municipal e a concesso de terra urbana em So Paulo (1560-1765).Dissertao de mestrado (Histria Econmica) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas,Universidade de So Paulo, 2010, p. 169.

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    de aes polticas geradas na combinao de elementos ibricos e indgenas. Isto ,

    uma prtica poltica hbrida e que propiciou uma especificidade da capitania de So

    Vicente em relao s demais da Amrica portuguesa.

    A criao de municpios consiste em no somente aes de povoamento. Na

    verdade, um municpio corresponde a uma estrutura poltico-administrativa e garante

    ao grupo que ocupe cargos na administrao figurar como elite poltica local.

    Os municpios foram as primeiras estruturas administrativas a serem criadas

    por Portugal no Novo Mundo. Anos aps os primeiros contatos com as novas

    conquistas, Martim Afonso de Sousa funda, em 1532, a vila de So Vicente10. Essa

    foi o primeiro municpio portugus na Amrica e estabeleceu o incio do povoamento

    e consolidao da posse portuguesa atravs da criao de vilas.

    Com esta prtica, a Coroa estendeu Amrica o estabelecimento de vilas, tal

    como havia praticado sculos antes durante a expanso portuguesa contra os mouros.

    Os municpios portugueses, embora tenham origem na instituio romana, ao

    longo dos sculos, apresentam mutaes.

    Quando da sua aplicao no Novo Mundo, no houve tal como na colonizao

    castelhana, a criao de uma legislao especfica para novas conquistas.

    Essa homogeneidade dos municpios no Imprio portugus ocorreu por conta

    das caractersticas jurdico-administrativas de Portugal. Enquanto que Castela criou

    uma legislao especial para seus domnios ultramarinos, asLeyes de Indias, Portugal

    estendeu suas Ordenaesa todo o seu Imprio11.

    Por isso, tal qual os municpios do Reino, as novas instituies coloniais

    foram dotadas das mesmas estruturas, direitos e obrigaes: eleio para compor a

    Cmara, obrigao de proteger a terra s suas custas e a propriedade e jurisdio de

    uma rea de seis lguas ao redor da vila12.

    A cmara municipal, poca colonial, no respondia, como nos dias atuais,apenas s questes administrativas de mbito local. Competia-lhe tambm proteger as

    conquistas do rei, garantir a justia no plano local e arrecadar tributos Coroa13.

    As cmaras, conforme normatiza as Ordenaes, eram compostas de juiz

    ordinrio, vereadores, procurador do Concelho, almotacel e alcaide. Esses tinham,

    respectivamente, as funes de garantir a justia, executar as leis e compor as posturas

    10Manuel Eufrsio de Azevedo Marques. op. cit., vol. II, p. 250.11

    Srgio Buarque de Holanda.Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 96.12Ordenaes Filipinas, liv. I, tt. LXV e LXVI.13Edmundo Zenha. O municpio no Brasil.So Paulo: IPE, 1948, p. 31.

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    municipais, representar o Concelho fora desse, fiscalizar vendas conforme as posturas

    e garantir paz e tranquilidade na vila14.

    Afonso Taunay, ao descrever a composio da cmara, apresenta que a vila de

    So Paulo compreendia um juiz ordinrio, dois vereadores e um procurador do

    concelho, assistidos de almotacel e alcaide15.

    Baseando-se no texto das Ordenaes Filipinas, Taunay estabelece uma

    descrio sucinta das atribuies dos camaristas. Para os juzes ordinrios, afirma que

    competia-lhe superintender a polcia da vila a ele subordinando-se o alcaide e os

    seus homens16, alm de garantir a justia e a paz no mbito local. Tais atribuies

    eram, pois, altamente prestigiosas e prestigiadas as funes de juiz ordinrio17.

    Para os vereadores,

    pertencia ter cargos de todo o regimento da terra (...). Fizessemsesso s quartas e sbados, multados em cem ris os remissosausentes, procurassem ser os informadores dos juzes ordinrios,cuidassem do patrimnio municipal, tomassem contas aosprocuradores e tesoureiros do Concelho, controlassem empreitadase avenas por jornais, tratassem de garantir o suprimento de carne epo, pusessem em praa as rendas do Concelho e lhes fiscalizasse aarrecadao, superintendessem as obras dos caminhos; entradas e

    sadas; cuidassem dos aforamentos e fizessem concesses, zelassempelo arquivo e benfeitorias pblicas, provessem quanto s posturas etaxas, aos oficiais mecnicos, jornaleiros, mancebos, moos desoldada, loua e demais cousas que se comprassem e vendessem,segundo a disposio da terra e qualidade do tempo18.

    Aos almotacs, fiscais da poca, tocava examinar as questes relativas aos

    problemas dirios da existncia, alfaiates, sapateiros e todos os outros oficiais, para

    que houvesse mantimentos em abastana, guardando-os as vereaes e posturas do

    Concelho19.

    As eleies dos almotacs ocorria mensalmente e cabia aos juzes do ano

    transato almotaarem no primeiro ms do novo perodo, no segundo os vereadores

    14 Antnio Manuel Hespanha. Histria de Portugal moderno. Poltico e institucional. Lisboa:Universidade Aberta, 1995, p. 162-164.15Afonso Taunay. So Paulo nos primeiros anos e So Paulo no sculo XVI. So Paulo: Paz e Terra,2003, p. 32.16Afonso Taunay. op. cit., p. 34.17

    Afonso Taunay. op. cit., p. 34.18Afonso Taunay. op. cit., p. 34.19Afonso Taunay. op. cit., p. 35.

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    mais antigos, no terceiro um vereador e o procurador. Depois serviam os escolhidos

    pela Cmara dentre os homens bons20.

    O processo eleitoral dos oficiais da cmara, juiz ordinrio, vereadores e

    procurador, seguia s disposies reguladas pelas Ordenaes do Reino. O processo,

    seguido de descries dos rituais praticados pode ser consultado na obra de Afonso

    Taunay, So Paulo nos primeiros anose nas prprias Ordenaes21. Optamos em no

    nos determos descrio do processo justamente por acreditarmos que a composio

    da elite poltica local mais relevante que prticas rituais.

    A partir da descrio das funes camarrias, observamos que os trs

    primeiros cargos (juiz ordinrio, vereadores e procurador do Concelho) no eram

    remunerados, ao contrrio dos demais. Eram cargos honorrios, os quais deveriam ser

    ocupados pelos mais preeminentes da vida local22.

    Por no serem remunerados, e por representarem os elementos mais

    destacados da sociedade, no surpresa que considerassem essa situao, somada

    natureza do cargo que ocupavam, como privilgios.

    Esses privilgios levariam indefinio entre pblico e privado na

    administrao municipal. Isto , no havia separao entre a propriedade pessoal dos

    oficiais da Cmara e o patrimnio dessa.

    Conforme observamos em nossa dissertao de mestrado Poder local e

    patrimonialismo: A Cmara Municipal e a concesso de terras urbanas na vila de

    So Paulo (1560-1765), as terras urbanas, propriedade pertencente ao municpio e

    situada dentro da rea de sua jurisdio, eram, na maioria das vezes, concedidas para

    ocupantes de cargos na Cmara23.

    Ao analisarmos as concesses de terras urbanas na rea do termo da vila de

    So Paulo observamos que 51,44% das solicitaes de terras urbanas foram feitas

    por indivduos que ocuparam cargos na administrao municipal e 16,87% dosrequerentes tinham vnculos familiares prximos com grupos polticos locais24.

    As caractersticas das concesses e, principalmente, a relao entre as

    propriedades e a concepo dos requerentes nos fornecem base para apontarmos seu

    carter patrimonialista.

    20Afonso Taunay. op. cit., p. 35.21Para a descrio do processo eleitoral dos municpios, ver Ordenaes Filipinas, liv. I, tt. LXVII.22

    Antnio Manuel Hespanha.As vsperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p. 164.23Fernando V. Aguiar Ribeiro. op. cit.24Fernando V. Aguiar Ribeiro. op. cit., p. 192.

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    Segundo Max Weber, a principal caracterstica da dominao do tipo

    patrimonial a ausncia da distino entre a esfera privada e a oficial na atuao

    do funcionrio. Afirma que a administrao poltica tratada como assunto

    puramente pessoal do senhor, e a propriedade e o exerccio e seu poder poltico, como

    parte integrante de seu patrimnio pessoal aproveitvel em forma de tributos e

    emolumentos25.

    Tal ideia corrobora com a interpretao lanada em nossa dissertao de

    mestrado de que a propriedade da vila, isto , as terras urbanas do termo do

    municpio, era concebida pelos oficiais da Cmara como propriedade pessoal.

    A criao de novos municpios representa no somente o estabelecimento de

    novas estruturas poltico-administrativas. Ao dotar um grupo com o mando de uma

    Cmara, confere o acesso e, principalmente o controle, s propriedades urbanas.

    Cabe destacar que ao seu proprietrio, notadamente no perodo colonial,

    confere no somente relevncia econmica, mas principalmente propicia a seu titular

    a distino social to relevante para essa sociedade.

    Por isso o processo de criao de novos municpios representa mais que a

    expanso da rea sob domnio da Coroa portuguesa. Diz despeito a um jogo de

    equilbrio entre os diversos grupos polticos locais da capitania.

    ovas abordagens para o estudo de municpios

    A historiografia tradicional sobre poderes locais, notadamente a que trata da

    capitania de So Vicente, apresenta algumas caractersticas que so fundamentais para

    nosso debate.

    Na obra So Paulo nos primeiros anos, de 1920, Afonso Taunay caracteriza a

    vila de So Paulo como uma transplantao de um municpio de Portugal.Afirma, inclusive, que constitua o Cdigo Filipino o livro bsico por onde se

    regia a sociedade paulistana quinhentista26. Ou seja, concebe a vida poltica de vila

    como totalmente definida pelos textos legais e ignora as prticas e aes que no

    correspondiam s leis.

    Apesar de conceber as prticas polticas baseadas nas Ordenaes, Taunay

    destaca uma suposta independncia das cmaras vicentinas. Apresenta que, por

    25

    Max Weber. Economia e sociedade. So Paulo; Braslia: Imprensa Oficial; EdUnB, 2003, vol. II, p.253.26Afonso Taunay. op. cit., p. 32.

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    vrias vezes notamos a atitude independente das cmaras paulistanas quinhentistas.

    Ciosas de seus direitos e prerrogativas, frequentemente, no decorrer do sculo XVI,

    fizeram frente prepotncia de capites-mores e ouvidores27.

    Essa formulao ignora o papel perifrico da capitania nos momentos iniciais

    de colonizao da Amrica e trata a situao de irrelevncia como independncia

    regional. Isso ocorre, justamente porque, no incio do sculo XX, autores como

    Taunay representaram um esforo de justificar o papel de destaque econmico e

    poltico de So Paulo, atravs da construo de uma histria exaltativa28.

    Edmundo Zenha, em O municpio no Brasil, de 1948, representa o esforo de

    associar o municpio colonial ao congnere no Reino. Para o autor, a vila era a

    maneira mais fcil do portugus compreender a colonizao, o que denunciou a

    tendncia popular de que sempre esteve imbudo o povo que nos colonizou29.

    Como justificativa, aponta que no se criam municpios no Brasil para a

    realizao de obras pblicas. Os povos, quando os pedem, querem policiar a terra,

    implantar nela um organismo distribuidor de justia, porque a del-rei era distante,

    demorada e cara30.

    Para a formulao da histria do municpio no Brasil, Zenha recorre s origens

    romanas, passando pelo medievo portugus. Essa anlise denota o esforo do autor

    em associar o municpio brasileiro tradio romana. , pois, uma forma de ligar

    institucionalmente o Brasil a uma tradio clssica e trata-lo como um prolongamento

    da Europa no Novo Mundo.

    Tais formulaes, conjuntamente com as reflexes de Taunay, foram as bases

    de muitos estudos sobre poderes locais.

    No entanto, devemos ponderar algumas questes. Alm do que j apontamos,

    pautamos o estudo sobre as elites polticas locais nessas bases no nos permite

    compreend-las em sua totalidade.Associar o poder local, tanto uma elaborao pautada em uma anlise

    legalista como a uma viso europeizante da histria, omite a possibilidade de

    contemplarmos a circulao de conhecimentos e prticas no Novo Mundo.

    27Afonso Taunay. op. cit., p. 78.28Citamos, para o debate sobre a construo de uma identidade paulista baseada na figura dobandeirante, Katia M. Abud. Sangue intimorato e as nobilssimas tradies: a contribuio de umsmbolo paulista: o bandeirante. So Paulo, 1986. Tese de doutorado (Histria Social) Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo.29Edmundo Zenha. op. cit., p. 23.30Edmundo Zenha. op. cit., p. 31.

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    O processo de criao de vilas e de ajustes de prticas polticas j conhecidas

    corresponde criao de novas formas de ao poltica condicionada por novos

    fatores.

    A partir de tal afirmao, pretendemos, ao longo da tese, questionar como as

    ideias e experincias circularam na Amrica e como os municpios, mais do que uma

    transplantao da instituio portuguesa, foi recriado no Novo Mundo a partir de

    novas prticas polticas.

    Outra questo formulada a tentativa que esboamos em apresentar o

    continente de forma integrada, contemplando suas dinmicas de integrao em seus

    mais variados contextos.

    Tal abordagem, em um dilogo com a histria global e que trataremos melhor

    no Captulo 4 no uma novidade quando tratamos a histria da colonizao

    portuguesa na Amrica.

    Como trabalho pioneiro, podemos citar a tese de doutoramento de Alice P.

    Canabrava, O comrcio portugus no Rio da Prata, de 1942.

    Nessa obra, a escolha do recorte temtico tem a ver com a rea de

    especializao da autora, a Cadeira de Histria da Civilizao Americana. Na

    perspectiva de elaborar tambm reflexes sobre o Brasil, Canabrava justifica que, na

    tese, procuramos ventilar principalmente as questes econmicas suscitadas pela

    colonizao espanhola na regio platina, e apelamos para a Histria do Brasil apenas

    na medida em que poderia nos fornecer subsdios para o melhor esclarecimento

    daqueles problemas31.

    Assim, a partir dessa escolha, apresenta que nosso trabalho procura mostrar a

    expanso comercial luso americana nos territrios espanhis do vice-reino do Peru na

    poca da unio das coroas espanhola e portuguesa32.

    Em relao ao recorte temporal, Canabrava destaca que a poca queestudamos tem admirvel unidade histrica: 1580 e 1640 enquadram o perodo da

    unio das coroas de Portugal e de Castela, que ps sob o mesmo cetro vastos

    territrios no novo mundo conquistados pelos povos ibricos33.

    E, o ano de 1640, que assinala a data da restaurao portuguesa, marcou a

    decadncia daquele comrcio na regio platina, manifesta desde o incio do segundo

    31Alice P. Canabrava. O comrcio portugus no Rio da Prata: 1580-1640. Belo Horizonte; So Paulo:

    Itatiaia; Edusp, 1984, p. 17, [1a

    edio, 1942].32Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.33Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.

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    quartel do sculo XVII34.

    O estudo sobre o comrcio portugus no Rio da Prata foi circunscrito ao

    perodo de unio poltica das duas coroas ibricas. Ou seja, embora a obra se destaque

    por conta de sua abordagem pioneira ao tratar a bacia do Rio da Prata de forma

    integrada, limitou-se s fronteiras dos Imprios como categorias estanques.

    Para Canabrava, o contato comercial seria consequncia de uma unidade

    poltica e seu fim, motivado pela separao de Portugal do Imprio espanhol.

    Em 2004, Janice Theodoro e Rafael Ruiz retomam a abordagem de Alice

    Canabrava ao tratarem da posio estratgica de So Paulo no contexto da Unio

    Ibrica.

    Afirmam que

    no caso de So Paulo destaca-se o fato de a cidade seguir uma

    lgica em tudo diferente s outras cidades e vilas. Ao contrrio

    destas, So Paulo situava-se de costas para o Atlntico, deixando

    que a prpria natureza e geografia do terreno cortasse naturalmente

    a sua ligao no apenas com Portugal, mas com as cidades e vilas

    que iam sendo fundadas. Era uma lgica, portanto, que ligava So

    Paulo viso e ao modo de vida indgena, para quem a borda docampo era o limite natural final, constituindo um lugar onde era

    inevitvel o contato entre os portugueses e castelhanos.35

    Devido a essa posio estratgica de So Paulo na confluncia de caminhos

    indgenas e voltada par ao interior, o ncleo urbano seria um ponto de confluncia de

    vrias nacionalidades, destacando-se, alm da portuguesa, os castelhanos. Assim

    essa multinacionalidade da populao de So Paulo ser umaconstante ao longo dos sculos XVI e XVII, caracterizando, naspalavras de Aracy Amaral36, uma histria comum, diferente dasoutras cidades brasileiras. Essa histria d conta de um estreitorelacionamento, conseguido e realizado nica e exclusivamente em

    34Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.35Janice Theodoro e Rafael Ruiz. So Paulo, de Vila a Cidade: a fundao, o poder pblico e a vidapoltica In Paula Porta.Histria da cidade de So Paulo. Volume 1: A cidade colonial. So Paulo: Paze Terra, 2004, p. 77.36Aracy A. Amaral destaca a influncia espanhola na arte e arquitetura de So Paulo colonial. Aponta

    que a presena espanhola em So Paulo persistiria at fins do sculo XVII de maneira significativa,permanecendo depois atravs da integrao de diversas famlias e seus descendentes, no planaltopiratiningano. Aracy A. Amaral.A hispanidade em So Paulo. So Paulo: Nobel; Edusp, 1980, p. 1.

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    So Paulo, com todo um interior demarcado pelos castelhanos. AVila de Piratininga, desde os seus comeos, era tanto umentroncamento como um ponto de partida e de chegada que unia ascidades espanholas do Guair e, inclusive, as do altiplano boliviano.Uma histria construda pela prpria convenincia natural entre osmesmos, inseridos num bem comum que, no necessariamente,era o mesmo que o pretendido pela Coroa.37(86)

    Em pesquisa recente, Jos Carlos Vilardaga retoma o debate ao tratar do papel

    da vila de So Paulo no contexto da Unio Ibrica.

    Na tese So Paulo na rbita do Imprio dos Felipes: conexes castelhanas de

    uma vila da Amrica portuguesa durante a Unio Ibrica (1580-1640), procura

    analisar os impactos diretos da realidade poltica peninsular na vila de So Paulo,

    bem como os eventuais processos de cunho local e regional dinamizados pela novasituao imposta pela soberania filipina sobre Portugal e suas colnias38.

    Apresenta, como explicitado no ttulo da tese, o recorte cronolgico como

    limitado ao perodo da Unio Ibrica. A esse respeito, conceitua que a questo

    fundamental que perpassa o trabalho o processo poltico vivenciado na Pennsula

    Ibrica, que reflete de maneira no linear e automtica em So Paulo como tambm

    em outras partes , mas que, de todo modo, informa e demanda os posicionamentos e

    as reaes nas mais diversas reas do Imprio39.

    Define, como tarefa principal da pesquisa, tentar compreender como um

    determinado imprio, o filipino, herdeiro de outro imprio, conservando maior ou

    menor autonomia, e se fez sentir nas partes mais distantes, no caso especifico, So

    Paulo40.

    Essa abordagem, por mais que permita estabelecer relaes entre reas de

    colonizao portuguesa e espanhola, por estar circunscrita pelo perodo de unidade

    poltica, torna a interpretao de integrao regional restrita.

    Ao separar o perodo de unio poltica dos demais momentos histricos, a

    viso que se tem da colnia permanece na interpretao consolidada: de uma rea

    moldada pelos imprios europeus e como um arquiplago de partes sem conexes

    entre si.

    37Janice Theodoro e Rafael Ruiz. op. cit., p. 86.38Jos Carlos Vilardaga. So Paulo na rbita do Imprio dos Felipes: conexes castelhanas de umavila da Amrica portuguesa durante a Unio Ibrica (1580-1640). Tese de doutorado (Histria Social)

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2010, p. 14.39Jos Carlos Vilardaga. op. cit., p. 14.40Jos Carlos Vilardaga. op. cit., p. 17.

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    A premissa da unidade do Imprio por conta da Unio Ibrica explicita outras

    questes que pretendemos abordar na tese. A abordagem imperial, ou seja, a viso da

    conquista e colonizao a partir dos centros metropolitanos, gera, muitas vezes,

    interpretaes eurocntricas e propiciam, em ltima instncia, a manuteno de

    concepo colonialistas.

    No artigoMonarquia pluricontinental e repblicas: algumas reflexes sobre a

    Amrica lusa nos sculos XVI-XVIII, Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva

    desenvolvem algumas reflexes.

    A principal discusso a concepo de monarquia pluricontinental, ideia

    lanada em texto de Nuno Gonalo Monteiro41. Apresentam que esse conceito

    se tratava de uma chave cognitiva capaz de dar conta da dinmicado imprio ultramarino portugus na expresso de Charles Boxer nele incluindo a concepo corporativa (autonomia dos corpossociais), porm tendo clara a sua diferena com o conceito demonarquia compsita de J. H. Elliott aplicado para Espanha dosustrias42.

    Define a monarquia pluricontinental como sendo

    um s reino o de Portugal , uma s nobreza de solar, mastambm diversas conquistas extra-europeias. Nela h um grandeconjunto de leis, regras e corporaes concelhos, corpos deordenanas, irmandades, posturas, dentre vrios outros elementosconstitutivos que engendram aderncia e significado s diversasreas vinculadas entre si e ao reino no interior dessa monarquia43.

    E, outro trao da monarquia pluricontinental, j diversas vezes sublinhado,

    que nela a Coroa e a primeira nobreza viviam de recursos oriundos no tanto da

    Europa mas do ultramar, das conquistas do reino. Trata-se, portanto, de uma

    monarquia e nobreza que tm na periferia a sua centralidade material44.

    A concepo tem relao direta com as formulaes de Jack Greene sobre a

    41Nuno Gonalo Monteiro. A tragdia dos Tvora. Parentesco, redes de poder e faces polticas namonarquia portuguesa em meados do sculo XVIII. In Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva (org.).

    Na trama das redes. Poltica e negcios no Imprio Portugus. Sculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2010.42Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. Monarquia pluricontinental e repblicas: algumas

    reflexes sobre a Amrica lusa nos sculos XVI-XVIII. Tempo, n. 27, 2009, p. 38.43Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. op. cit., p. 42.44Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. op. cit., p. 43.

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    Atlantic history..

    Jack Greene e Philip Morgan definem que

    Atlantic history is an analytic construct and an explicit category ofhistorical analysis that historians have devised to help themorganize the study of some of the most important developments ofthe early modern era: the emergence in the fifteenth century and thesubsequent growth of the Atlantic basin as a site for demographic,economic, social, cultural, and other forms of exchange among andwithin the four continents surrounding the Atlantic Ocean Europe,Africa, South America, and North America and all the islandsadjacent to those continents and in that ocean45.

    A principal crtica feita Atlantic history baseia-se no fato dessa ser umdesdobramento da histria imperial. Essa, marcada por autores como Charles Boxer,

    tem como objetivo escrever uma histria que valorize os feitos polticos, econmicos

    e sociais dos grandes imprios europeus.

    Assume, pois, a postura de conceber a colonizao a partir das capitais dos

    Imprios e adota uma viso eurocntrica. A Atlantic history, como desdobramento

    norte-americano da histria dos imprios, mantm a ideia de centralidade, agora na

    poro noroeste do Atlntico e a viso dos Estados Unidos como parmetro principal

    de interpretao.

    Como ltimas questes a levantar, apontamos a necessidade, como sntese das

    demais apresentadas, de compreender o Imprio portugus como dinmico e de forma

    a contemplar suas diversas geografias.

    A discusso sobre centralizao do Imprio, que se apresenta de forma

    contnua desde meados do sculo XX, perpassa essa concepo.

    Como trataremos no Captulo 6, devemos conceber o fenmeno do

    alargamento do poder levando em considerao as dinmicas regionais das variadas

    partes do Imprio.

    Um Imprio vasto, e que abrange vrios continentes e que dialoga com

    poderes variados, no pode ser concebido como um bloco unitrio e muito menos

    como uma atuao direta e centralizada em Lisboa.

    A renovao da historiografia sobre o Imprio portugus passa pela

    incorporao da ideia de que um imprio composto por mltiplas geografias e essas

    45 Jack P. Greene e Philip D. Morgan. Atlantic history. A critical appraisal . Nova York: OxfordUniversity Press, 2009, p. 3.

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    correspondem a dinmicas regionais.

    A viso de conjunto do Imprio somente ser possvel com o trabalho de

    anlises regionais que contemplem a estruturao dos poderes polticos.

    A empreitada da Coroa aps 1640 de engrandecer seu poder correspondeu a

    uma ao que foi definida pelas estruturas regionais. Onde houve resistncia, o poder

    real no avanou e onde essas estruturas eram frgeis e incipientes, a Coroa garantiu

    sua maior presena.

    Soma-se a isso os fatores de interesse econmico e geopoltico. A Coroa, com

    recursos financeiros limitados, privilegiaria regies estratgicas no Imprio. Assim

    ocorreu na ndia no sculo XVI e justificou a virada atlntica no sculo XVIII com a

    descoberta das minas de ouro no Brasil.

    * * *

    O trabalho de pesquisa teve incio na problemtica da criao de vilas no

    planalto e a relao dessas com a manuteno de um equilbrio poltico na capitania.

    A partir dessa formulao, partimos para reflexes sobre a construo do poder

    poltico em Portugal, a circulao de ideias e prticas no contexto americano e a

    contribuio de elementos indgenas no processo de fragmentao das elites locais.

    Com isso, a pesquisa partiu de um problema particular para um geral, indo da

    criao das vilas para um contexto europeu e sul-americano.

    Na confeco do texto, por questes de organizao lgica, partimos do

    contexto geral, isto , a construo do espao no Novo Mundo e seus caminhos, para

    o especfico, atravs da proposta de um modelo vicentino para a criao de

    municpios.

    Ao longo do texto optamos em manter a grafia original e no modernizar ascitaes dos autores. E, com o intuito de facilitar a leitura das referncias de rodap,

    optamos em recomear a contagem das notas a cada parte do trabalho.

    A tese se divide em trs partes. Na primeira, intitulada Os sertes de So

    Paulo: a construo do espao buscamos refletir sobre a elaborao das

    espacialidades no planalto.

    Para tanto, abordamos o debate sobre a fronteira e sertes na historiografia

    brasileira, descrevemos os caminhos que, ao cruzarem o territrio, contribuiriam parasua construo e, nas relaes polticas e sociais com as diversas partes da bacia do

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    rio da Prata, verificarmos as integraes e contatos entre os territrios americanos.

    Na segunda parte, Poderes locais no Imprio Portugus, damos continuidade

    primeira ao tratarmos do fenmeno poltico dos municpios nessa espacialidade

    construda.

    Inicialmente desenvolveremos o debate sobre novas espacialidades atravs da

    conceituao da histria global e a sua precursora histria dos imprios. Com a

    abordagem do planalto em uma perspectiva global, discutimos os municpios, tanto

    em sua formulao terica quanto em sua aplicao no contexto frente ao poder da

    Coroa.

    Na terceira e ltima parte, Poderes locais nos sertes de So Paulobuscamos

    aplicar as formulaes tericas apresentadas anteriormente.

    Iniciamos essa com a concepo de que as ideias e experincias polticas

    circulam alm das fronteiras e, para o perodo inicial da conquista e colonizao da

    Amrica, a troca de conhecimentos aparece como elemento fundamental para a

    fixao e sobrevivncia dos assentamentos europeus no Novo Mundo.

    Prosseguimos com a narrativa das fundaes dos municpios no planalto e

    com a relao dessas novas estruturas poltico-administrativas com a terra urbana e

    com o esgotamento de seu acesso.

    Por fim, no ltimo captulo, discutimos a construo de um modelo vicentino

    para a criao de municpios atravs da mestiagem, tanto tnica quanto cultural, que

    criou no planalto vicentino uma sociedade hbrida, com elementos europeus e

    indgenas, e que a chave para compreender a sociedade colonial paulistanos seus

    primrdios.

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    Parte I

    Os sertes de So Paulo a construo do espao

    Una maana, despus de casi dos aos de travesa, fueron los primeros mortales que vieron

    la vertiente occidental de la sierra. Desde la cumbre nublada contemplaron la inmensa

    llanura acutica de la cinaga grande, explayada hasta el otro lado del mundo. Pero nunca

    encontraron el mar. Una noche, despus de varios meses de andar perdida por entre los

    pantanos, lejos ya de los ltimos indgenas que encontraron en el camino, acamparon a la

    orilla de un ro pedregoso cuyas aguas parecan un torrente de vidrio helado. Aos despus,

    durante la segunda guerra civil, el coronel Aureliano Buenda trat de hacer aquella mismaruta para tomarse a Riohacha por sorpresa, ya los seis das de viaje comprendi que era una

    locura. Sin embrago, la noche que acamparon junto al ro, las huestes de su padre tenan un

    aspecto de nufragos sin escapatoria, pero su nmero haba aumentado durante la travesa y

    todos estaban dispuestos (y lo consiguieron) a morirse de viejos. Jos Arcadio Buenda so

    esa noche que en aquel lugar se levantaba una ciudad ruidosa con casas de paredes de

    espejo. Pregunt qu ciudad era aquella, y le contestaron con un nombre que nunca haba

    odo, que no tena significado alguno, pero que tuvo en el sueo una resonancia

    sobrenatural: Macondo. Al da siguiente convenci a sus hombres de que nunca encontraranel mar. Les orden derribar los rboles para hacer un claro junto al ro, en el lugar ms

    fresco de la orilla, y all fundaron la aldea.

    Gabriel Garca Mrquez46

    46Gabriel Garca Marques. Cien aos de soledad. Madrid: Debolsillo, 2013, p. 35-36.

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    Captulo

    Sertes de So Paulo como espao f luido

    A proposta desse captulo discutir as espacialidades da capitania de So

    Vicente a partir da ideia de que o espao uma construo social e no um dado posto

    pela natureza. Com isso, abordaremos a discusso sobre a definio e caracterizao

    do serto como espao fluido e dinmico. Por fim, a partir dessa caracterizao de

    serto, iremos tratar do debate sobre fronteira na poro sul da Amrica Portuguesa.

    A criao do espao: discusso sobre as espacialidades na Amrica

    Portuguesa

    Para iniciarmos a discusso sobre os sertes da Amrica portuguesa

    necessrio que tratemos, mesmo que brevemente, do espao geogrfico enquanto

    construo social.

    Milton Santos, emA construo do espao. Tcnica e tempo. Razo e emoo,

    apresenta a ideia de que o espao no um dado natural, mas socialmente construdo.

    Afirma que paisagem e espao no so sinnimos. A paisagem o conjunto de

    formas que, num dado momento, exprimem as heranas que representam as

    sucessivas relaes localizadas entre homem e natureza. O espao so essas formas

    mais a vida que as anima47.

    Assim, para Milton Santos, o espao sempre um presente, uma construo

    horizontal, uma situao nica48. Enquanto que cada paisagem se caracteriza por

    uma dada distribuio de formas-objeto, providas de um contedo tcnico especfico.

    J o espao resulta da intruso da sociedade nessas formas-objetos49.

    Dessa forma, o espao no pode ser estudado como se os objetos materiais que

    formam a paisagem tivessem uma vida prpria, podendo assim explicar-se por si

    mesmos. Sem dvida, as formas so importantes. Essa materialidade sobrevive aos

    modos de produo que lhe deram origem ou aos momentos desses modos de

    47Milton Santos. A construo do espao. Tcnica e tempo. Razo e emoo. So Paulo: Edusp, 2002,

    p. 103.48Milton Santos. op. cit., p. 103.49Milton Santos. op. cit., p. 103.

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    produo50.

    A partir dessa interpretao, Milton Santos define que no existe dialtica

    possvel entre formas enquanto formas. Nem, a rigor, entre paisagem e sociedade. A

    sociedade se geografiza atravs dessas formas, atribuindo-lhes uma funo que, ao

    longo da histria, vai mudando51.

    Conclui que o espao a sntese, sempre provisria, entre o contedo social e

    as formas espaciais52. Contudo, a contradio principal entre a sociedade e

    espao, entre um presente invasor e ubquo, que nunca se realiza completamente, e

    um presente localizado, que tambm passado objetivado nas formas sociais e nas

    formas geogrficas encontradas53.

    Como exerccio de compreenso do espao como realidade socialmente

    construda, Milton Santos defende a necessidade da compreenso das espacialidades

    atravs de redes54. Destaca que a despeito da materialidade com que se impe aos

    nossos sentido, a rede , na verdade uma mera abstrao55, um recurso interpretativo

    do espao.

    Com isso,

    uma viso atual das redes envolve o conhecimento das idades dos

    objetos (considerada aqui a idade mundial da respectiva tcnica) ede sua longevidade (a idade local do respectivo objeto), e, tambm,da quantidade e da distribuio desses objetos, do uso que lhes dado, nas relaes que tais objetos mantm com outros fora da reaconsiderada, das modalidades de controle e regulao do seufuncionamento56.

    Afirma Milton Santos que a existncia das redes inseparvel da questo do

    poder57. Apresenta, portanto, que a compreenso das espacialidades passa pela

    interpretao das redes, pois como construo social, seus elementos de interao so

    50Milton Santos. op. cit., p. 105.51Milton Santos. op. cit., p. 109.52Milton Santos. op. cit., p. 109.53Milton Santos. op. cit., p. 109.54A interpretao do espao urbano atravs do recurso de redes teve como obra inicial o estudo Comose constituiu no Brasil a rede de cidades, de Pierre Deffontaines, publicado em 1944. A obra de 1968de Nestor Goulart Reis Filho, Contribuio ao estudo da evoluo urbana no Brasil (1500-1720)apresenta uma conceituao e aplicao problemtica da urbanizao brasileira de maneira maisdesenvolvida.55

    Milton Santos. op. cit., p. 262.56Milton Santos. op. cit., p. 263.57Milton Santos. op. cit., p. 270.

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    fundamentais para seu entendimento.

    E, para sua compreenso enquanto fenmeno social, devemos considerar que

    as redes so, pois, ao mesmo tempo, concentradoras e dispersoras,condutoras de foras centrpetas e de formas centrfugas. comum,alis, que a mesma matriz funcione em duplo sentido. Os vetores queasseguram distncia a presena de uma grande empresa so, paraesta, centrpetos, e, para muitas atividades preexistentes no lugar deseu impacto, agem como foras centrfugas58.

    Assim, mediante as redes, h uma criao paralela e eficaz da ordem e da

    desordem no territrio, j que as redes integram e desintegram, destroem velhos

    recortes espaciais e criam outros59. Compreende-se, portanto, o fato de que a rede

    global e local, una e mltipla, estvel e dinmica, [e isso] faz com que a sua realidade,

    vista num movimento de conjunto, revele a superposio de vrios sistemas lgicos, a

    mistura de vrias racionalidades cujo ajustamento, alis, presidido pelo mercado e

    pelo poder pblico, mas sobretudo pela prpria estrutura socioespacial60.

    EmA construo do espao, Sonia Barros apresenta o espao como resultado

    de transformaes sociais, o que inclui fatores polticos, econmicos e culturais.

    Assim, o espao socialmente transformado pelas prticas econmicas, apropriados

    pelas prticas polticas e constitudos em significaes pelas prticas cultural-

    ideolgicas61.

    Para Sonia Barros,

    o espao constitudo ao mesmo tempo um fato fsico e um fatosocial, em seus atributos de propriedade, valor e smbolo.Entretanto, uma concepo estreita e de grande eficcia ideolgicatem-se mostrado inclinada a identificar ambas as condies em

    algumas de suas implicaes. No campo da prefigurao doespao, as prticas fundadas nos critrios antes mencionados seorientaram para o tratamento tcnico deste ltimo, considerandoque a modificao de certas caractersticas do meio natural trazconsigo a soluo de toda uma srie de problemas sociais62.

    58Milton Santos. op. cit., p. 278.59Milton Santos. op. cit., p. 279.60Milton Santos. op. cit., p. 279.61

    Sonia Barros. A produo do espao In Maria Adlia de Souza e Milton Santos (orgs). Aconstruo do espao. So Paulo: Nobel, 1986, p. 19.62Sonia Barros. op. cit., p. 20.

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    No entanto,

    cumpre acentuar que o espao como manifestao social, ou seja,como forma de objetividade das relaes que se estabeleceram

    entre os homens, constitui uma das mltiplas determinaes queoperam no interior da totalidade social, desempenhando o papel deseu reprodutor material. Em compensao, como elemento fsico,ele condiciona as aes sociais, impondo restries suarealizao63.

    Bernard Lepetit, em sua Por uma nova histria urbana, aborda a construo

    do espao a partir de uma abordagem interdisciplinar. Aponta, para tanto, que a

    interdisciplinaridade inscreve-se num processo de evoluo contnua do campo das

    cincias sociais. Esse processo complexo na medida em que remete a lgicas e

    temporalidades que absolutamente no coincidem64.

    Define que

    toda pesquisa histrica nasce no fim provisrio de uma srie depesquisas sucessivas: definem-se suas caractersticas e aprecia-sena sua pertinncia tambm de acordo com as proposies dasprecedentes. Na diacronia, ela se inscreve, assim, numa tradio

    cuja origem se desloca com a evoluo da disciplina. Na sincronia,todo livro de histria toma lugar na organizao atual dasconstelaes disciplinares por ele, ao mesmo tempo, em sua escala,contribui para definir e modificar65.

    Dessa forma, isso significa que ela depende tambm dos contedos prprios

    de cada uma das outras cincias humanas, que, como a histria, mas em ritmos e

    segundo orientaes no necessariamente semelhantes, esto em constante

    evoluo66.

    Para a discusso a respeito das espacialidades, alm da interdisciplinaridade,

    Lepetit destaca a importncia das escalas. Afirma que no s sensato escolher uma

    escala, como tambm impossvel apreender o real sem essa escolha67.

    Para tanto, a totalidade social constitua a finalidade ltima da pesquisa. Uma

    conduta analtica francamente cartesiana dava acesso a ela, empenhando-se em dividir

    63Sonia Barros. op. cit., p. 20.64Bernard Lepetit. Por uma nova histria urbana. So Paulo: Edusp, 2001, p. 33.65

    Bernard Lepetit. op. cit., p. 33.66Bernard Lepetit. op. cit., p. 35.67Bernard Lepetit. op. cit., p. 214.

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    cada objeto complexo em conjuntos de dimenso intermediria, para poder depois

    praticar a quantificao68.

    Apresenta a escala essencialmente como relacionada com o objeto, mas

    adverte que a variao da escala no o apangio do pesquisador nem sobretudo o

    produto do processo de construo da pesquisa69. A escala tem, portanto, a funo

    de identificar os sistemas de contextos em que se inscrevem os jogos sociais. A

    ambio dessa cartografia dinmica reconhecer e desenhar, em sua variedade, um

    conjunto de mapas que correspondem a igual nmero de territrios sociais70.

    Para Lepetit, comumente, em geografia ou em arquitetura, uma escala uma

    linha dividida em partes iguais e colocada ao p de um mapa, de um desenho ou de

    um projeto, para servir de medida comum a todas as partes de um edifcio ou ento a

    todas as distncias e a todos os lugares de um mapa71.

    Assim, desenhar um projeto construir um modelo reduzido da realidade

    depois de haver selecionado uma dimenso dela (no caso, sua disposio no solo) e de

    haver renunciado s outras. Poderamos destacar a perda (de detalhes, de

    complexidade, de informao) que tal operao envolve72. Refora, portanto, que

    mais justo destacar a escolha e a inteno que ela [a escala] supe, pois a opinio

    precedente repousa na ideia preguiosa de que o real se desvenda espontaneamente,

    em sua riqueza, antes de qualquer atividade de anlise (necessariamente em dficit,

    por sua vez)73.

    No entanto, ressalta que as concluses que resultam de uma anlise

    conduzida numa escala particular no podem ser opostas s concluses obtidas numa

    outra escala. Elas so cumulveis apenas com a condio de que se levem em conta os

    nveis diversos em que foram estabelecidas74. Define, pois, que escrever um livro

    de sntese, por exemplo, sempre, em relao aos estudos particulares que existem,

    mudar de escala, portanto, de objeto e de problemtica75.Conclui Lepetit a reflexo do uso de escalas na interpretao das

    espacialidades com a seguinte metfora: uma cidade, uma campina, de longe so

    uma cidade e uma campina; mas medida que nos aproximamos, so casas, rvores,

    68Bernard Lepetit. op. cit., p. 197.69Bernard Lepetit. op. cit., p. 206.70Bernard Lepetit. op. cit., p. 207.71Bernard Lepetit. op. cit., p. 208.72Bernard Lepetit. op. cit.,p. 213.73

    Bernard Lepetit. op. cit.,p. 207-214.74Bernard Lepetit. op. cit., p. 225.75Bernard Lepetit. op. cit., p. 225.

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    telhas, grama, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se reveste com o

    nome de campo76.

    John B. Harley, emLa nueva naturaleza de los mapas, apresenta, como forma

    de compreenso das espacialidades, o mapa como seu mais importante suporte.

    Afirma que, entre numerosos tipos de documentos sobre o espao que por lo general

    utilizan los historiadores, los mapas son muy conocidos; sin embargo, no son tan bien

    comprendidos77.

    Comumente, la percepcin comn de la naturaleza de los mapas es que son

    una imagen, una representacin grfica de algn aspecto del mundo real78. Com isso,

    el resultado es que cuando los historiadores hacen una valoracin de los mapas, sus

    estrategias interpretativas son determinadas por esta idea de lo que se dice que son los

    mapas79.

    A partir dessa situao, Harley reflete que sin embargo, hay una respuesta

    alternativa a la pregunta de qu es un mapa. Para los historiadores, una definicin

    igualmente adecuada de un mapa es: una construccin social del mundo expresada a

    travs del medio de la cartografa80.

    Essa representao do espao no se d somente pela escala, discusso

    abordada por Bernard Lepetit, mas tambm pelo uso de signos para representar o

    mundo nos mapas, em um processo semelhante a dos textos. Assim, cuando stos

    son fijos en un gnero de mapas, los definimos como signos convencionales. Los

    mapas no tienen una gramtica como el lenguaje escrito, pero igualmente son textos

    diseados de manera deliberada y creados bajo la aplicacin de principios y tcnicas,

    y desarrollados como sistemas formales de comunicacin81.

    Por conta da semelhana dos mapas com demais documentos textuais, Harley

    lembra que la regla bsica del mtodo histrico es que slo se pueden interpretar los

    documentos en su contexto82. E, esta norma se aplica igualmente a los mapas, quedeben llevarse de regreso al pasado y situarse estrictamente en su proprio periodo y

    lugar83.

    Define como elemento central da interpretao da documentao cartogrfica

    76Bernard Lepetit. op. cit., p. 236.77J. B. Harley.La nueva naturaleza de los mapas. Mxico: FCE, 2005, p. 59.78J. B. Harley. op. cit.,p. 60.79J. B. Harley. op. cit.,p. 60.80J. B. Harley. op. cit.,p. 61.81

    J. B. Harley. op. cit., p. 62.82J. B. Harley. op. cit., p. 63.83J. B. Harley. op. cit., p. 63-64.

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    o papel dos interesses polticos e econmicos envolvidos no processo de confeco

    dos mapas. Refora que

    la intencin cartogrfica casi nunca fue cuestin de capacitacin,habilidad o disponibilidad de instrumentos de un individuo, o delmomento y el dinero necesario para completar un trabajoadecuadamente. Los cartgrafos casi nunca podan tomar decisionesde manera independiente, ni estaban libres de limitacionesfinancieras, militares o polticas84.

    Portanto, por encima del taller siempre hay una persona que encarga el mapa y,

    como consecuencia, el mapa est imbuido en dimensiones sociales adems de

    tcnicas85.

    Como importante contribuio ao estudo da cartografia, Harley destaca o

    papel da toponmia86 para a compreenso das relaes do espao. Ressalta que al

    igual que los contornos, los nombres de lugares ofrecen una forma de construir

    genealogas y perfiles de origen para mapas que antes se encontraban dispersos87.

    O estudo da toponmia nos leva a refletir sobre as trocas culturais entre

    europeus e as populaes indgenas no processo de conquista e compreenso do

    espao americano. A esse respeito Harley aponta que

    en los periodos iniciales de la exploracin, los europeos de distintasnacionalidades seguramente escuchaban nombres de boca dehablantes nativos norteamericanos de una variedad de lenguas y,tambin deben de haber tratado de registrarlos de acuerdo con suproprio sistema de sonidos, adems de una ortografa estandarizada.Incluso en los casos en que se aplicaron nombres europeos a lageografa norteamericana el proceso de traducirlos y editarlos estuvoviciado, resulta entonces que los nombres son producto de descuido,

    de una mala lectura o de un mal entendimiento de generacionessucesivas de cartgrafos que no tenan conocimiento de primeramano de los logares o las lenguas en cuestin88.

    84J. B. Harley. op. cit., p. 66.85J. B. Harley. op. cit., p. 67.86Para uma discusso sobre os usos da toponmia ver Teodoro Sampaio. O tupi na geografia nacional.So Paulo: O Pensamento, 1914 e Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick. A toponmia como meiode investigao lingustica e antropocultural. In: Aparecida Negri Isquerdo (org.). Estudosgeolingusticos e dialetais sobre o portugus: Brasil Portugal . Campo Grande: EdUFMS, 2008, p.

    215-231.87J. B. Harley. op. cit.,p. 70.88J. B. Harley. op. cit., p. 70-71.

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    Conclui Harley que

    los mapas nunca son imgenes carentes de valor; excepto en elsentido euclidiano ms estricto; por s mismos no son ciertos o

    falsos. Tanto en la selectividad de su contenido como en sus signos yestilos de representacin, los mapas son una manera de concebir,articular el mundo humano que se inclina hacia, es promovido por yejerce una influencia sobre grupos particulares de relacionessociales89.

    Com isso, la cartografa puede ser una forma de conocimiento y de poder90.

    Isso porque la historia de los mapas se encuentra inextricablemente vinculada

    al surgimiento del Estado-nacin en el mundo moderno91. Assim, a compreenso das

    espacialidades, nas interpretaes de Harley passa, necessariamente, pela relao

    entre espao e poder e concebe a representao espacial como uma linguagem,

    passvel de anlises e leituras.

    Afirma, portanto, que as como el reloj como smbolo grfico de la autoridad

    poltica centralizada, trajo consigo la disciplina del tiempo al ritmo de los

    trabajadores industriales, las lneas de los mapas, dictadoras de una nueva topografa

    agraria, introdujeron una dimensin de disciplina del espacio92.

    Fania Fridman, na Apresentao de Cidades do Novo Mundo. Ensaios de

    urbanizao e histria retoma as consideraes tecidas por Bernard Lepetit. Atenta

    que, relembrando o autor francs, o territrio origina-se do conjunto das

    configuraes, presentificando os passados, e as formas, por sua vez, registram

    antigas relaes sociais e hbitos de grupos sociais enraizados em territrios93.

    Thomas Calvo, no captulo Cidades e povoados de ndios (sculos XVI-XVII)

    da obra organizada por Fania Fridman, aborda os modelos de urbanizao hispnicos

    para as Amricas. Apresenta que as regras e os modelos impostos pelos dominadoresvo ser determinantes com o passar do tempo, mas de forma variada, conforme os

    preceitos, os espaos, os tempos94.

    89J. B. Harley. op. cit., p. 80.90J. B. Harley. op. cit., p. 82.91J. B. Harley. op. cit., p. 87.92J. B. Harley. op. cit., p. 90-91.93 Fania Fridman. Apresentao. In: Fania Fridman (org.). Cidades do Novo Mundo. Ensaios deurbanizao e histria. Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2013, p. 12.94

    Thomas Calvo. Cidades e povoados de ndios (sculos XVI-XVII) In Fania Fridman (org.).Cidades do Novo Mundo. Ensaios de urbanizao e histria. Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2013,p. 22.

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    O modelo de urbanizao espanhol no vai se aplicar por completo pelo fato

    da Amrica no ser um espao vazio, desabitado. Para Calvo,

    existe um claro contraste entre o traado espanhol, em boa parterealizado a compasso, e a falta de ordenamento dos bairrosindgenas circundante. Se isso acontece na capital, no se deveesperar algo melhor nas regies afastadas, como revela o mapa deSan Lus de Potos de 1594, a mina real do norte da Nova Espanha.Este simples esboo ope o assentamento hispnico, reticular, aocasario dos indgenas ao redor95.

    Assim, a integrao em um espao remodelado e mudado sob normas

    hispnicas no era o essencial. Constituir-se numa verdadeira repblica de ndios

    impunha outras exigncias 96 . O que leva ao seguinte posicionamento: como

    combinar as heranas locais com as exigncias procedentes dos conquistadores97.

    Uma possvel resposta questo de Thomas Calvo, nas linhas de Harley e

    Lepetit, seja a compreenso do processo de conquista e apreenso da espacialidade

    americana. No podemos conceber os sertes americanos como territrio vazio, sem

    populao e sem um cultura poltica e relaes espaciais j estabelecidas pelos

    indgenas.

    A esse respeito, John Short em Geographic encounters: indigenous people

    and the exploration of the New World, destaca que, na imagem consolidada pela

    historiografia sobre espacialidades, there is the empty space that awaits the full

    unfolding of the colonial/imperial project. Even when the narratives contain

    descriptions of the indigenous people, the land is conceptualized as a blank page for

    colonial/imperial expansion98.

    Defende, portanto, que os conhecimentos indgenas sobre a natureza e suas

    concepes de espacialidades foram fundamentais no processo de conquista ecolonizao do Novo Mundo. A partir da fuso de culturas indgenas e europeias,

    criou-se um pensamento prprio, com caractersticas americanas.

    Para Short, apenas das vises dos sertes como espao vazio, there is the

    occupied space of an inhabited land with a due recognition of a humanized landscape

    95Thomas Calvo. op. cit., p. 27.96Thomas Calvo. op. cit., p. 28.97

    Thomas Calvo. op. cit., p. 28.98John Short. Geographic encounters: indigenous people and the exploration of the New World.Londres: Reaktion, 2009, p. 18.

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    full of people. The consequences and implications of a still settled space and its

    tensions with an empty space involve many responses from the geopolitical to the

    moral99.

    istoriografia sobre sertes

    Serto definido por Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez e

    latino..., como regia, apartada do mar, & por todas as partes, metida entre

    terras100. A proposta desse captulo, mais que definir serto, problematizar o

    espao que compreende o interior da Amrica portuguesa como um territrio do

    desconhecido no qual os mitos europeus, em consonncia com mitos das populaes

    indgenas, impulsionaram a penetrao dos europeus.

    Na historiografia sobre a ocupao do sertes da capitania de S. Vicente, a

    concepo de interior era de um territrio vazio no qual a civilizao deveria

    dominar. Afonso Taunay, em So Paulo nos primeiros anosde 1920, consolida essa

    imagem. Afirma que

    alguns quilmetros do arraial paulistano comeava o tenebroso

    serto, mais ignoto e ameaador do que a selva mato-grossense dehoje entre Madeira-Araguaia. Povoam-no monstros e abantesmas;fenmenos e prodgios: os corriqueamas com quinze ps de alto e osguaiazis, minsculos, mas ferozes e inumerveis; os matuius,homens de ps para trs e corredores agilssimos; e os giboiuus,serpentes cujas carnes, putrefatas, durante as interminveis epenosssimas digestes, refaziam-se constantemente; toda esta faunateratolgica que to pitorescamente nos descreve o velho cronistaSimo de Vasconcelos e porfia referem os copiadores uns aps osoutros, dando-se ares de contar coisas originais101.

    Define, como caracterstica principal da vila de So Paulo no sculo XVI, o

    fato de estar inserida em meio ao serto e, para tanto, urgia manter rigorosa

    disciplina naquele posto avanado da civilizao, perdido entre as selvas, que era So

    Paulo e essa disciplina, entendia-o a Cmara, precisava basear-se sobretudo no

    99John Short. op. cit.,p. 18.100Serto. Rapahel Bluteau.Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes, 1712, v.

    7, p. 613.101Afonso Taunay. So Paulo nos primeiros anos e So Paulo no sculo XVI. So Paulo: Paz e Terra,2003, p. 20.

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    respeito autoridade102.

    Na Histria geral das bandeiras paulistas, obra monumental de Afonso

    Taunay publicada entre 1924 e 1950, apresenta o serto como um territrio

    desconhecido, no delimitado. Aponta que

    esta terra da Coroa de Portugal e do Senhor Conde de Monsantoaffirmavam os bandeirantes de Antonio Raposo Tavares emunssono com a homeinada [sic] seu cabo de tropa. Assim noscontam varios depoimentos jesuticos hespanhoes ao se refirem resposta dada pelos paulistas aos ignacianos que lhe verberavamassolar terras e povos sujeitos Coroa de Hespanha. E realmentecomo que havia entre os sertanistas a percepo confusa de que alinha demarcadora das terras das duas coroas devia passar mais a

    oeste do que pretendiam os hespanhoes, a saber, entrando no Brasilem Cananea, seno mesmo em S. Vicente. No nos esqueamosainda quanto lhes era tal doutrina favorvel s pretenses103.

    A essa delimitao no precisa entre os domnios das duas Coroas na Amrica

    soma-se o fato que, durante 80 anos, Portugal e Espanha estavam unidos sob o

    mesmo monarca. A esse respeito, Taunay destaca que em 1580 reuniram-se sobre a

    mesma cabea as coroas de Portugal e Hespanha, o que na Amrica s devia trazer

    vantagens. Desde ento os dois povos, alheios a quaisquer rivalidades coloniaes,puderam dedicar-se s tarefas que lhes pareceram mais urgente e proveitosa

    soluo104, como, por exemplo, devassar os sertes em busca de metais preciosos e,

    por outro lado, defender o litoral de incurses de franceses e holandeses.

    Washington Lus, na obra Na capitania de So Vicentede 1956, corrobora as

    interpretaes de Afonso Taunay sobre os sertes e a dificuldade no processo de

    conquista e colonizao. Aponta que, nos anos subsequentes conquista da Amrica

    portuguesa s o oriente interessava, ento, mas com a declinao do seu comrcio, asituao econmica e financeira do reino tambm declinava assustadoramente105.

    A soluo para essa situao seria a busca por metais preciosos no continente

    americano. Vale ressaltar que a riqueza das civilizaes asteca e inca e a descoberta

    das minas de prata de Potos direcionam a ambio europeia da sia para o Novo

    102Afonso Taunay. op. cit., p. 121.103Afonso Taunay.Histria geral das bandeiras paulistas. So Paulo: H. I. Canton, 1928, v. 4, p. 130.104

    Afonso Taunay. op. cit., p. 121, v. 4, p. 134.105Washington Lus Pereira de Sousa.Na capitania de So Vicente. Braslia: Senado Federal, 2004, p.46.

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    Mundo.

    Contudo, delicada era, pois, a situao de Portugal, e dificlima, pois, a

    colonizao do Brasil. Mas, segundo Frei Lus de Sousa, nos seus Anais, o Brasil, que

    ainda nada tinha dado e estava em bruto, prometia grandes maravilhas106.

    Assim, as lendas sobre riqussimas minas de ouro alucinavam os europeus

    vidos em toda a parte da velha Europa. Ningum podia distinguir o que de real

    haveria nas fices criadas e amplificadas por imaginaes desvairadas107.

    Destaca Washington Lus a posio estratgica da vila de So Paulo em

    relao rede de caminhos terrestres e fluviais que cruzavam o serto. Dessa forma,

    So Paulo, com a fora de um destino, transformou os vicentinos e

    os forasteiros em paulistas e o nome de S. Paulo, numa igrejinha empequenssimo povoado, passou para a vila, passou depois paracidade, passou para a capitania e mais tarde para todo o territriosertanejo, desde as altas e recnditas cabeceiras dos regatos, queafluem para o Paraguai e para o Paran at formar o rio da Prata,como passou at para o norte, at as que constituem a bacia sul doAmazonas e para a bacia do So Francisco, no serto108.

    A essa posio estratgica soma-se ao impulso gerado pelos mitos e promessas

    de riquezas. A essa respeito, Washington Lus afirma que

    mais que a curiosidade aventureira e vida, a necessidadeimprescindvel de, pela ocupao efetiva, pela posse, assegurar osdescobrimentos feitos, iriam impulsionar com ardor insacivel asexpedies audacssimas atravs dos desertos selvagens ou inimigos.Os navegadores temerrios e tenazes seriam substitudos pelossertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na ateno daHistria o lugar das frotas. Era natural, lgico, fatal, pois, oesquadrinhamento do interior dessas terras, e as entradas ao sertoteriam que aparecer. O ciclo das navegaes seria substitudo pelociclo das bandeiras em Portugal109.

    Em Caminhos e fronteiras, Srgio Buarque de Holanda em 1957 apresenta o

    processo de penetrao e conquista do interior do Brasil. Define que durante os

    primeiros tempos da colonizao do Brasil, os stios povoados, conquistados mata e

    106Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 48.107

    Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 48.108Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 140.109Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 223.

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    ao ndio, no passam, geralmente, de manchas dispersas ao longo do litoral, mal

    plantadas na terra e quase independentes dela. Acomodando-se arribada de navios

    mais do que ao acesso do interior, esses ncleos voltam-se inteiramente para o outro

    lado do oceano110.

    Srgio Buarque evidencia a importncia da posio geogrfica de So Paulo e

    das redes de caminhos no serto. Afirma que

    alguns mapas e textos do sculo XVII apresentam-nos a vila de SoPaulo como centro de amplo sistema de estradas expandindo-serumo ao serto e costa. Os toscos desenhos e os nomes estropiadosdesorientam, no raro, quem pretenda servir-se desses documentospara a elucidao de algum ponto obscuro de nossa geografia

    histrica. Recordam-nos, entretanto, a singular importncia dessasestradas para a regio de Piratininga, cujos destinos aparecem assimrepresentados como em um panorama simblico111.

    A compreenso da realidade americana pelo europeu se deu, de acordo com

    Srgio Buarque, pela assimilao dos conhecimentos e prticas dos indgenas. Assim,

    neste caso, como em quase tudo, os adventcios deveram habituar-se s solues e

    muitas vezes aos recursos materiais dos primitivos moradores da terra112.

    Isso porque eram os paulistas donos de uma capacidade de orientao nas

    brenhas selvagens, em que to bem se revelam suas afinidades com o gentio, mestre e

    colaborador inigualvel nas entradas, sabiam os paulistas como transpor pelas

    passagens mais convenientes as matas espessas ou as montanhas aprumadas, e como

    escolher stio para fazer pouso e plantar mantimentos113.

    A importncia do serto para a compreenso do Brasil reforada na tese de

    ctedra Viso do paraso. Os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do

    Brasil, defendida e publicada em 1958. Ao destacar as motivaes mticas para a

    penetrao do interior, Srgio Buarque altera a concepo do serto, de vazio passa a

    ponto de atrao por sua lendas e possibilidades de riquezas.

    Mitos carregados de sentido religioso, localizava em local incerto o den, o

    paraso terrestre. Buarque de Holanda aponta que

    a ideia de que existiu na Terra, com efeito, algum stio de bem-110Srgio Buarque de Holanda. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957, p. 5.111

    Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.112Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.113Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.

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    aventurana, s acessvel aos moradores atravs de mil perigos epenas, manifestos, ora sob a aparncia de uma regio tenebrosa, orade colunas gneas que nos impedem de alcana-lo, ou ento dedemnios ou pavorosos monstros, pode prevalecer, porm,independentemente das tradies clssicas ou das escolsticas

    sutis114.

    Essa concepo de recompensa aps toda sorte de desafios encontrou terreno

    frtil na Amrica. As matas desconhecidas, a geografia fantstica e os riscos das

    exploraes corroboram com a ideia crist de gratificao aps sacrifcios.

    Dessa forma, era de esperar, depois das desvairadas especulaes de

    Colombo e outros navegantes, que tambm a fonte de Juventa, constante apndice do

    Paraso Terreal, achasse algum meio de introduzir-se na geografia visionria do Novo

    Mundo115.

    A busca pelo paraso foi substitudo pelos mitos de reinos abundantes em ouro

    e prata. Nas palavras de Buarque de Holanda, imagem ou no do Dourado

    propriamente dito o dos Omguas e de Manoa e tambm do Dourado de Meta, isto

    , dos Chilocha, foram reportados aqui e ali muitos outros reinos ureos ou argnteos,

    no menos lisonjeiros para a desordenada cobia dos soldados116.

    Esses mitos de ouro e prata encontraram importante reforo quando do contato

    e conquista das civilizaes asteca e inca. As minas de prata do Alto Peru,

    notadamente o mtico Potos, tiveram destacado papel de motivar a cobia de

    portugueses e direcionar a penetrao nos sertes a oeste. Isso porque,

    fosse qual fosse o verdadeiro quinho de Portugal no Novo Mundo,um fato se impunha aqui fora de toda dvida, e era a perfeitacontinuidade, de todos reconhecida, entre o Brasil lusitano e aspartes de melhor proveito nas ndias de Castela, que com ele

    confinavam pelo poente. Esta ltima considerao no era de poucamonta, sempre que se tratasse de decidir sobre a primazia emmatria de riquezas de toda sorte, e no apenas minerais, pois queuma opinio acreditada na poca s poderia contribuir neste casopara dar-se a palma ao Brasil. Propnquo ao opulento Peru e sob asmesmas latitudes, porm a leste, nele seriam encontrados, por fora,os mesmos produtos que se davam naquela provncia castelhana, edo mesmo e melhor toque117.

    114Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 59.115

    Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 60.116Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 79.117 Srgio Buarque de Holanda. Viso do paraso. Os motivos ednicos no descobrimento e

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    Ao concluir a reflexo sobre o papel dos mitos no processo de colonizao e

    construo do Brasil, Srgio Buarque afirma que possvel, desta excurso j

    demorada volta dos mitos geogrficos j difundidos na era dos grandes

    descobrimentos martimos, tirarem-se concluses vlidas para um relance sobre a

    formao brasileira, especialmente durante o perodo colonial?118.

    Assim, como resposta a esse questionamento, tentou-se mostrar, ao longo

    destas pginas, como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes

    vm buscar, e no raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do Mar Oceano,

    uma espcie de cenrio, ideal, feito de suas experincias, metodologias ou nostalgias

    ancestrais119.

    Corroborando com a interpretao tradicional de serto como espao vazio,

    Alida C. Metcalf, em Vila, reino e serto no So Paulo colonial, de 1996, apresenta-o

    como desconhecido, a imensa vastido120.

    Para a autora, nos mapas, o serto especificava o interior do Brasil, os

    territrios sob controle dos ndios e a floresta virgem que poderia ainda existir em

    torno dos povoamentos portugueses e entre eles121.

    Apresenta uma oposio entre serto e reino ao afirmar que se o reino

    representava um polo de um continuum que se estendia do Velho Mundo, o serto

    sintetizava o oposto: a Amrica em seu estado natural122. A partir dessa concepo,

    para os portugueses, o serto pedia para ser colonizado, explorado e

    transformado123.

    Portanto, o processo de colonizao da Amrica portuguesa vista como

    uma evoluo gradativa das caractersticas do serto para as do reino124.

    Em 1999, A. J. R. Russel-Wood, em Fronteiras no Brasil colonial, publicado

    na Revista Oceanos, aborda o serto da Amrica portuguesa como espao de interaoentre as culturas europeias e indgenas. Afirma que este ensaio adopta, relativamente

    colonizao do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 153.118Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 443.119Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 443.120Alida C. Metcalf. Vila, reino e serto no So Paulo colonial In Francisca L. Nogueira de Azevedoe John Manuel Monteiro (orgs.). Razes da Amrica Latina. Rio de Janeiro: Expresso Cultural; SoPaulo: Edusp, 1996, p. 420.121Alida C. Metcalf.op. cit., p. 420.122

    Alida C. Metcalf. op. cit., p. 420.123Alida C. Metcalf.op. cit., p. 421.124Alida C. Metcalf.op. cit., p. 421.

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    fronteira, uma abordagem diferente: considera a fronteira como uma metfora,

    vendo no termo fronteira uma rea de interao entre diferentes culturas125.

    O serto, rea de fugitivos da justia ou para aventureiros, visto por Russell-

    Wood, como uma zona de fronteira. E, assim, a palavra fronteira entendida no

    contexto de um limite entre culturas126e esta abordagem mais reveladora, e mais

    conforme com a mistura nica de culturas, parte inerente do desenvolvimento

    histrico no perodo colonial, sendo um fenmeno em curso e no menos evidente no

    perodo de hoje127.

    Glria Kok, em O serto itinerante, expedies da capitania de So Paulo no

    sculo XVIII, de 2004, desenvolve as concepes da Amrica como local do

    imaginrio e dos mitos. Aponta que no novidade afirmar que muitos europeus

    fomentaram vises idlicas do serto da Amrica portuguesa128.

    Esse espao do desconhecido, territrio composto de lendas e mitos

    controlado quando a conquista e colonizao se efetiva. De acordo com Glria Kok,

    medida que se fazia a conquista de novos espaos na Amrica portuguesa, as terras

    mticas nublavam-se diante de uma outra noo de geografia, cuja concepo de

    espao controlado, ordenado, limitado e mapeado , punha-se definitivamente a

    servio da Coroa para garantir o domnio de terras e gentes129.

    John R. Gillis, em Islands of the mind. How the human imagination created

    the Atlantic world, de 2004, apresenta as ilhas como locais privilegiados para a

    geografia mtica. Aponta que mythical geographies always exist beyond the edge of

    everyday existence. They are frequently located in remote and isolated places about

    which we have little practical information. In the Western world, the sea has been a

    favored location because Europeans were late in mastering130.

    Apesar dos mitos no serem criao da poca moderna, com as navegaes

    e o contato com as Amricas que encontram um territrio frtil para seudesenvolvimento. Segundo Gillins, in the fifteenth and sixteenth centuries discovery

    still meant to uncover, disclose, or reveal what today we would call recovery.

    125A. J. R. Russell-Wood. Fronteiras no Brasil colonial. Revista Oceanos. Lisboa: ComissoNacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, n. 40, p. 9.126A. J. R. Russell-Wood. op. cit., p. 20.127A. J. R. Russell-Wood. op. cit., p. 20.128Glria Kok. O serto itinerante, expedies da capitania de So Paulo no sculo XVIII. So Paulo:Hucitec, 2004, p. 18.129

    Glria Kok. op. cit., p. 26.130 John R. Gillis. Islands of the mind. How the human imagination created the Atlantic world. NewYork: Palgrave Macmillan, 2004, p. 6.

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    Exploration did not involve looking for