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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA
Vilas do planalto paulista: a criao de municpiosna poro meridional da Amrica Portuguesa
(sc. XVI-XVIII)
Fernando V. Aguiar Ribeiro
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria Econmica da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo, para
a obteno do ttulo de Doutor em Cincias
(rea de Concentrao: Histria Econmica).
Orientadora: Prof. Dr. Raquel Glezer
So Paulo
2015
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I
gradecimentos
Agradeo Universidade de So Paulo pela formao, tanto na graduao
como no mestrado, e que permitiu, atravs do Programa de Ps-Graduao em
Histria Econmica, a realizao dessa tese de doutoramento.
Pesquisa essa que contou com o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) para as atividades no Brasil e da
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) para a
realizao de etapa de doutorado-sanduche em Portugal. Nesse pas, agradeo ao
Instituto Universitrio de Lisboa (ISCTE-IUL) pela vinculao durante o perodo.
banca de qualificao, composta por Prof Dr Inez Garbuio Peralta e Prof.
Dr. Rodrigo M. Ricupero, agradeo a leitura, crticas e encaminhamentos de pesquisa.
A presente pesquisa somente foi possvel graas ao apoio das instituies,
principalmente pelos funcionrios cujas atividades so imprescindveis para os
pesquisadores. Sou grato s bibliotecas da Faculdade de Filosofia, do Instituto de
Estudos Brasileiros, do Museu Paulista, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e
Biblioteca Brasiliana Guita e Jos Mindlin, da Universidade de So Paulo.
Agradeo Ctedra Jaime Corteso, na pessoa da Prof Dr Vera LuciaAmaral Ferlini, a acolhida como pesquisador da instituio.
Tambm registro o apoio do Arquivo Histrico Municipal Washington Lus e
da Biblioteca Municipal Mrio de Andrade, na cidade de So Paulo, e Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.
Uma tese que pretende uma anlise internacional da Histria depende da
consulta a acervos de vrios pases. Agradeo Biblioteca Nacional de Portugal,
Biblioteca Nacional de Espanha, Institut Geogrfic i Geologic de Catalunya,bibliotecas do ISCTE-IUL e da Universidade de Lisboa, ao Arquivo Histrico
Ultramarino e ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
No continente americano, registro o agradecimento Biblioteca Nacional del
Paraguay, Academia Paraguaya de la Historia, ao Museo Etnogrfico Dr. Andrs
Barbero, Biblioteca del Congreso de la Nacin Argentina, e Biblioteca Nacional
de la Repblica Argentina.
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II
Agradeo Prof Dr Marcia M. Menendes Motta pelo dilogo privilegiado e
pela indicao da bolsa-sanduche, fato esse fundamental para os encaminhamentos
da pesquisa.
Agradeo ao Prof. Dr. Jos Vicente Serro pela orientao durante a estada em
Portugal e aos estmulos que influenciaram as reflexes sobre internacionalizao da
Histria.
Agradeo aos professores Alberto Luiz Schneider, Alida C. Metcalf, Ana
Paula Torres Megiani, Beatriz Picollotto Siqueira Bueno, Antnio Manuel Hespanha,
Carmen M. Oliveira Alveal, Graciela Chamorro Argello, ris Kantor, Joaquim A.
Romero Magalhes, Julio Cesar Bentivoglio, Laura de Melo e Souza, Marina
Monteiro Machado, Maximiliano Mac Menz, Miguel Soares Palmeira, Nauk Maria de
Jesus, Nestor Goulart Reis Filho, Oldimar Pontes Cardoso, Tiago Lus Gil, Rafael
Chambouleyron, Ricardo Hernn Medrano e Stuart B. Schwarz.
Agradeo a Adalberto Coutinho, Adalberto Graciano, Adriane Baldin, Amlia
dos Santos, Arnaldo Marques, Carlos Rovaron, Diogo Leite, Eduardo Carneiro,
Gisele Almeida, Joo Paulo Streapco, Jos Roberto Baldin, Lorena Leite, Maria
Angela Raus, Magno Nascimento, Marly Spachachieri, Natalia Salla, Patrcia So
Miguel, Rebeca Enke, Rosa Udaeta, Sandra Perez, Solange Arago, Tathiane
Gerbovic, Vernica Aguiar, Viviane Domingos e Zueleide Casagrande.
Ao Thiago Lima Nicodemo agradeo as conversas sobre historiografia e os
debates sobre a obra e pensamento de Srgio Buarque de Holanda.
Agradeo a Adriano Toledo, Alessandra Costa, Dannylo Azevedo, Eduardo
Ramos, rika Mainart, Fabrcio Rodrigues, Guido Litjens, Idelma Novais, Mara
Etzel, Mrio Simes, Nao Obata, Natasha Friaa, Roberta Azambuja, Ronaldo
Pauletto, Sarita Mota, Steffi Gersdorf, Thalita Castro e Thaysa Audujas pelo apoio em
Portugal.Agradeo a Breno Ferreira, Carlos Surez, Eduardo Peruzzo, Eliel Cardoso,
Elisangela Silva, Esdras Arraes, Ivana Pansera, Joana Monteleone, Joaquim Xavier
Jr., Juliana Henrique, Leonardo Rolim, Leonardo Saad, Lucas Jannoni, Luis Otvio
Tasso, Luiz Alberto Rezende, Marcos Antonio Veiga, Marlia Ariza, Natalia
Tammone, Pablo Mont Serrathe, Patrcia Machado, Patrcia Valim, Renata Freitas,
Renato Bastos, Rogrio Beier, Sylvia Brito, Tatiana Bina, Tathianni Silva, Thiago
Dias, Valter Lenine Fernandes e Victor Hugo Abril.
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III
Aos amigos Daniel Gonzales, Heloisa Turek, Juliana Batista, Marianne
Schaeffer, Paula Coelho e Victor Delboni agradeo o apoio e a compreenso pelas
constantes ausncias.
Agradeo Prof Dr Raquel Glezer a orientao, o apoio pesquisa e o
exemplo de docncia e pesquisador. Poucas linhas seriam injustas para demonstrar a
gratido pela confiana e suporte por quase uma dcada de convvio.
Por fim, e no menos importante, agradeo minha famlia, Olga, Jos Carlos,
Fabola, Carolina e Artur pelo apoio incondicional, condio imprescindvel para
concluso dessa pesquisa.
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V
bstract
The aim of this thesis is to understand the phenomenon regarding the foundation of
towns in upland So Paulo between the beginning of colonization and 1765. In thisyear, Morgado de Mateus, governor of the Captaincy, establishes a policy for security
and economic development through the foundation of villages in the wilderness of
So Paulo. We mean to analyze how the creation of villages took place in the absence
of a Crowns Policy or a governors purpose and the role the political elites played in
this process.
Adopting an approach that intends to surpass the Empires borders, we seek to
comprehend the local political elites within a more extended geographical context.
Keywords:local authorities, municipalities, colonization, urbanization, So Paulo
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VI
esumen
La tesis pretende comprender el fenmeno de la creacin de municipios en la meseta
de So Paulo entre lo inicio de la colonizacin y 1765. En esa fecha el Morgado de
Mateus, gobernador de la capitana, emprende una poltica de defensa y el desarrollo
econmico a travs de la creacin de pueblos en el hinterland .
Tratamos de analizar como se hizo el desarrollo de los pueblos, en ausencia de una
poltica de la Corona o del donatario y el papel que tenan las lites polticas en el
proceso.
Tambin buscamos, en una perspectiva que intenta traspasar las fronteras de los
imperios, entender las lites polticas locales en un contexto espacial ms amplio.
Palabras-clave:autoridades locales, municipios, colonizacin, urbanizacin, So
Paulo
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VII
ndice de lustraes
Mapa 1 Itinerrio de viagem de Cabeza de Vaca ao Paraguai 52
Mapa 2 Itinerrio de viagem de Ulrico Schmidl 61Mapa 3 Roteiro da viagem de D. Lus de Cspedes Xeria 79Mapa 4 Mappa da capitania de S. Paulo... 73Mapa 4A Detalhe do Mappa da capitania de S. Paulo 74Mapa 5A new and accurate map of Paraguay 75Mapa 5A Detalhe doA new and accurate map of Paraguay 76Mapa 6 Densidade populacional por comarca Portugal (c. 1527) 191Mapa 7 Densidade populacional por comarca Portugal (c. 1700) 192Mapa 8 Vilas criadas no planalto entre 1560 e 1765 231
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VIII
umrio
Introduo 1
Parte I Os sertes de So Paulo: a construo do espao 16
Captulo 1 Sertes de So Paulo como espao fluido 17
A criao do espao: discusso sobre as espacialidades na Amrica Portuguesa 17
Historiografia sobre sertes 26
A fronteira na historiografia sobre a ocupao do planalto 34
Captulo 2 Caminhos na poro meridional da Amrica 46Viajantes nos sertes americanos 46
O roteiro da expedio de Cspedes Xeria 65
Espacializao dos caminhos nos sertes 72
Captulo 3 Uma histria platina da colonizao americana 82
Uma histria da Bacia do Prata: problemticas 82
Histria platina do Vice-reino do Peru (Paraguai e Buenos Aires) 86Histria da capitania de So Vicente 98
Guair: regio de disputa e integrao 106
Parte II Poderes locais no Imprio Portugus 115
Captulo 4 Histria global: uma abordagem para a Amrica Portuguesa 116
Histria dos Imprios 116Histria global 126
Amrica Portuguesa atravs de uma abordagem global 135
Captulo 5 Municpios no Imprio Portugus: discusses historiogrficas 143
Historiografia sobre poderes locais em Portugal 143
Historiografia sobre poderes locais no Brasil 156
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IX
Captulo 6 Poderes locais no Imprio Portugus 171
O engrandecimento do poder real 171
O poder real nas mltiplas geografias do Imprio 184
Parte III Poderes locais nos sertes de So Paulo 198
Captulo 7 Circulao de experincias de povoamento no Novo Mundo 199
Circulao de ideias 199
Cidades castelhanas na Amrica 203
Cidades portuguesas na Amrica 210
Contribuies indgenas 215
Captulo 8 Fundao de vilas no planalto de So Paulo 230
Narrativas de fundaes de municpios no planalto 230
Criadores de municpios 249
Captulo 9 A construo de um modelo vicentino para criao de municpios 262
Sociedade mestia 262
Integrao dos modelos polticos portugus e indgena 274
Fim do modelo 283
Consideraes Finais 292
Referncias bibliogrficas 296
Apndice Atas da Cmara de So Paulo: relao de cargos ocupados 312
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ntroduo
Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava aprocurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as
para os lados, enquanto o homem que queria um barco esperava com pacincia a pergunta
que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto
perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrvel comodidade, na cadeira da
mulher da limpeza, Para ir procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha
desconhecida, perguntou o rei disfarando o riso, como se tivesse na sua frente um louco
varrido, dos que tm a mania das navegaes, a quem no seria bom contrariar logo de
entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, j no h ilhas desconhecidas,
Quem foi que te disse, rei, que j no h ilhas desconhecidas, Esto todas nos mapas, Nos
mapas s esto as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida essa de que queres ir
procura, Se eu to pudesse dizer, ento no seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela,
perguntou o rei, agora mais srio, A ningum, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela
existe, Simplesmente porque impossvel que no exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui
para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem s, para que eu
to d, E tu quem s, para que no mo ds, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino
pertencem-me todos, Mais lhes pertencers tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer,
perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, s nada, e que eles, sem ti, podero sempre
navegar, s minhas ordens, com os meus pilotos e os meus marinheiros, No te peo
marinheiros nem piloto, s te peo um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares,
ser para mim, A ti, rei, s te interessam as ilhas conhecidas, Tambm me interessam as
desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta no se deixe conhecer, Ento no te dou
o barco, Dars.
Jos Saramago1
1Jos Saramago. O conto da ilha desconhecida. Lisboa: Caminho, 1999, [1aedio, 1997], p. 3-4.
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Para povoar o Novo Mundo, a primeira iniciativa da Coroa portuguesa foi
conceder as novas terras como capitanias. Isso ocorreu, de acordo com Florestan
Fernandes, por ser a Coroa pobre, mas ambiciosa em seus empreendimentos, [que]
procura apoio nos vassalos, vinculando-os aos seus objetivos e enquadrando-os s
malhas das estruturas de poder e burocracia do Estado patrimonial2.
Com isso, a Coroa delegou aos donatrios extensas faixas do territrio
americano para que esses ocupassem, povoassem e desenvolvessem as capitanias
economicamente.
O modelo no foi extinto com a criao do governo geral em 1548 pois as
capitanias eram objeto de doao rgia. A incorporao desses territrios Coroa
somente poderia ser efetivado atravs da compra ou da renncia por parte do
donatrio3.
O longo processo de incorporao das capitanias da Amrica portuguesa
somente seria efetivado em meados do sculo XVIII. A esse respeito, Antnio
Vasconcelos de Saldanha aponta que
a administrao do Rei D. Joo V preside, em relao s capitanias,uma s preocupao: a tentativa da sua absoro, atingida em vriospontos com sucesso Sto. Amaro (1709), Pernambuco (1716) eEsprito Santo (1718), todas no Brasil, e em 1736 algumas dascapitanias remanescentes em Cabo Verde so tambmdefinitivamente incorporadas na Coroa e que, acrescentando aoprocesso natural do desinteresse ou falta de sucesso dos capites-donatrios, leva que o nmero dos senhorios ultramarinos vsubstancialmente diminudo4.
Na capitania de So Vicente, o processo foi distinto das demais. Essa
capitania, criada em 15315, seria incorporado Coroa em 1709, quando formou,
juntamente com a de Itanham, a capitania de So Paulo e Minas de Ouro6.
Em 1765, a capitania de So Paulo seria restaurada e, no contexto da
necessidade de defesa das minas de ouro, teria um governador nomeado pela Coroa.
2Florestan Fernandes. Circuito fechado. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 34.3Antnio Vasconcelos de Saldanha.As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinode um fenmeno atlntico. Lisboa: Comisso Nacional para os Descobrimentos Portugueses, 2001, p.387-403.4Antnio Vasconcelos de Saldanha. op. cit., p. 23.5 Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Histria da capitania de So Vicente. So Paulo:
Melhoramentos, 1954, p. 66.6Manuel Eufrsio de Azevedo Marques.Apontamentos histricos, geogrficos, biolgicos, estatsticose noticiosos da provncia de So Paulo. So Paulo: Martins, 1954, vol. I, p. 167-168.
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Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro, Morgado de Mateus, durante sua
gesto entre 1765 e 1775, empreendeu uma poltica de povoamento, defesa e
desenvolvimento econmico7.
Como ao fundamental para tais medidas, o governador criou diversas vilas
ao longo do territrio da capitania, seguindo um projeto econmico8e geopoltico.
Ou seja, desde o incio da colonizao at 1765 no houve poltica de criao
de vilas por parte da Coroa ou donatrios. Contudo, nesses mais de dois sculos, onze
municpios foram criados no planalto9.
A proposta da tese compreender o processo de criao de municpios no
planalto da capitania no perodo anterior s polticas de povoamento da Coroa,
verificando como o fenmeno ocorreu.
A ideia que a criao de novas vilas, no partindo de uma ao do donatrio
ou da Coroa, representou a atuao dos agentes polticos locais. Os oficiais da
Cmara, em uma dinmica regional, fundaram municpios a fim de evitar conflitos
polticos por conta do controle da administrao municipal.
O equilbrio na capitania, gestado nas dcadas iniciais da colonizao
portuguesa na Amrica, deve ser pensando em consonncia com a prtica poltica do
colono, fruto esse da mistura tnica e cultural de elementos ibricos e indgenas.
Essa perspectiva leva em conta valores polticos e espaciais hbridos e que, na
ausncia de uma poltica orientada pela administrao central portuguesa, permitiu a
construo de uma dinmica de fragmentao poltica tpica das sociedades indgenas
do planalto vicentino.
Assim, a criao de vilas no planalto resulta na prtica de elementos de matriz
indgena, no que se refere fragmentao poltica, e concepo ibrica de
manuteno de equilbrio entre as elites locais.
Propomos, portanto, que o fenmeno de criao de vilas no planalto vicentino,desde os primrdios da colonizao at a restaurao da capitania em 1765, foi fruto
7Heloisa L. Bellotto.Autoridade e conflito no Brasil colonial.So Paulo: Alameda, 2007, p. 39.8Para o projeto econmico do Morgado de Mateus ver Pablo Oller Mont Serrath.Dilemas & conflitosna So Paulo restaurada: formao e consolidao da agricultura exportadora (1765-1802).Dissertao de mestrado (Histria Econmica) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas,Universidade de So Paulo, 2007.9No perodo entre 1532 e 1765, foram estabelecidos no planalto os municpios de So Paulo, Mogi dasCruzes, Santana de Parnaba, Itu, Sorocaba, Jundia, Jacare, Taubat, Guaratinguet,Pindamonhangaba e Curitiba. Para detalhes, Fernando V. Aguiar Ribeiro. Poder local e
patrimonialismo: A Cmara Municipal e a concesso de terra urbana em So Paulo (1560-1765).Dissertao de mestrado (Histria Econmica) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas,Universidade de So Paulo, 2010, p. 169.
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de aes polticas geradas na combinao de elementos ibricos e indgenas. Isto ,
uma prtica poltica hbrida e que propiciou uma especificidade da capitania de So
Vicente em relao s demais da Amrica portuguesa.
A criao de municpios consiste em no somente aes de povoamento. Na
verdade, um municpio corresponde a uma estrutura poltico-administrativa e garante
ao grupo que ocupe cargos na administrao figurar como elite poltica local.
Os municpios foram as primeiras estruturas administrativas a serem criadas
por Portugal no Novo Mundo. Anos aps os primeiros contatos com as novas
conquistas, Martim Afonso de Sousa funda, em 1532, a vila de So Vicente10. Essa
foi o primeiro municpio portugus na Amrica e estabeleceu o incio do povoamento
e consolidao da posse portuguesa atravs da criao de vilas.
Com esta prtica, a Coroa estendeu Amrica o estabelecimento de vilas, tal
como havia praticado sculos antes durante a expanso portuguesa contra os mouros.
Os municpios portugueses, embora tenham origem na instituio romana, ao
longo dos sculos, apresentam mutaes.
Quando da sua aplicao no Novo Mundo, no houve tal como na colonizao
castelhana, a criao de uma legislao especfica para novas conquistas.
Essa homogeneidade dos municpios no Imprio portugus ocorreu por conta
das caractersticas jurdico-administrativas de Portugal. Enquanto que Castela criou
uma legislao especial para seus domnios ultramarinos, asLeyes de Indias, Portugal
estendeu suas Ordenaesa todo o seu Imprio11.
Por isso, tal qual os municpios do Reino, as novas instituies coloniais
foram dotadas das mesmas estruturas, direitos e obrigaes: eleio para compor a
Cmara, obrigao de proteger a terra s suas custas e a propriedade e jurisdio de
uma rea de seis lguas ao redor da vila12.
A cmara municipal, poca colonial, no respondia, como nos dias atuais,apenas s questes administrativas de mbito local. Competia-lhe tambm proteger as
conquistas do rei, garantir a justia no plano local e arrecadar tributos Coroa13.
As cmaras, conforme normatiza as Ordenaes, eram compostas de juiz
ordinrio, vereadores, procurador do Concelho, almotacel e alcaide. Esses tinham,
respectivamente, as funes de garantir a justia, executar as leis e compor as posturas
10Manuel Eufrsio de Azevedo Marques. op. cit., vol. II, p. 250.11
Srgio Buarque de Holanda.Razes do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 96.12Ordenaes Filipinas, liv. I, tt. LXV e LXVI.13Edmundo Zenha. O municpio no Brasil.So Paulo: IPE, 1948, p. 31.
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municipais, representar o Concelho fora desse, fiscalizar vendas conforme as posturas
e garantir paz e tranquilidade na vila14.
Afonso Taunay, ao descrever a composio da cmara, apresenta que a vila de
So Paulo compreendia um juiz ordinrio, dois vereadores e um procurador do
concelho, assistidos de almotacel e alcaide15.
Baseando-se no texto das Ordenaes Filipinas, Taunay estabelece uma
descrio sucinta das atribuies dos camaristas. Para os juzes ordinrios, afirma que
competia-lhe superintender a polcia da vila a ele subordinando-se o alcaide e os
seus homens16, alm de garantir a justia e a paz no mbito local. Tais atribuies
eram, pois, altamente prestigiosas e prestigiadas as funes de juiz ordinrio17.
Para os vereadores,
pertencia ter cargos de todo o regimento da terra (...). Fizessemsesso s quartas e sbados, multados em cem ris os remissosausentes, procurassem ser os informadores dos juzes ordinrios,cuidassem do patrimnio municipal, tomassem contas aosprocuradores e tesoureiros do Concelho, controlassem empreitadase avenas por jornais, tratassem de garantir o suprimento de carne epo, pusessem em praa as rendas do Concelho e lhes fiscalizasse aarrecadao, superintendessem as obras dos caminhos; entradas e
sadas; cuidassem dos aforamentos e fizessem concesses, zelassempelo arquivo e benfeitorias pblicas, provessem quanto s posturas etaxas, aos oficiais mecnicos, jornaleiros, mancebos, moos desoldada, loua e demais cousas que se comprassem e vendessem,segundo a disposio da terra e qualidade do tempo18.
Aos almotacs, fiscais da poca, tocava examinar as questes relativas aos
problemas dirios da existncia, alfaiates, sapateiros e todos os outros oficiais, para
que houvesse mantimentos em abastana, guardando-os as vereaes e posturas do
Concelho19.
As eleies dos almotacs ocorria mensalmente e cabia aos juzes do ano
transato almotaarem no primeiro ms do novo perodo, no segundo os vereadores
14 Antnio Manuel Hespanha. Histria de Portugal moderno. Poltico e institucional. Lisboa:Universidade Aberta, 1995, p. 162-164.15Afonso Taunay. So Paulo nos primeiros anos e So Paulo no sculo XVI. So Paulo: Paz e Terra,2003, p. 32.16Afonso Taunay. op. cit., p. 34.17
Afonso Taunay. op. cit., p. 34.18Afonso Taunay. op. cit., p. 34.19Afonso Taunay. op. cit., p. 35.
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mais antigos, no terceiro um vereador e o procurador. Depois serviam os escolhidos
pela Cmara dentre os homens bons20.
O processo eleitoral dos oficiais da cmara, juiz ordinrio, vereadores e
procurador, seguia s disposies reguladas pelas Ordenaes do Reino. O processo,
seguido de descries dos rituais praticados pode ser consultado na obra de Afonso
Taunay, So Paulo nos primeiros anose nas prprias Ordenaes21. Optamos em no
nos determos descrio do processo justamente por acreditarmos que a composio
da elite poltica local mais relevante que prticas rituais.
A partir da descrio das funes camarrias, observamos que os trs
primeiros cargos (juiz ordinrio, vereadores e procurador do Concelho) no eram
remunerados, ao contrrio dos demais. Eram cargos honorrios, os quais deveriam ser
ocupados pelos mais preeminentes da vida local22.
Por no serem remunerados, e por representarem os elementos mais
destacados da sociedade, no surpresa que considerassem essa situao, somada
natureza do cargo que ocupavam, como privilgios.
Esses privilgios levariam indefinio entre pblico e privado na
administrao municipal. Isto , no havia separao entre a propriedade pessoal dos
oficiais da Cmara e o patrimnio dessa.
Conforme observamos em nossa dissertao de mestrado Poder local e
patrimonialismo: A Cmara Municipal e a concesso de terras urbanas na vila de
So Paulo (1560-1765), as terras urbanas, propriedade pertencente ao municpio e
situada dentro da rea de sua jurisdio, eram, na maioria das vezes, concedidas para
ocupantes de cargos na Cmara23.
Ao analisarmos as concesses de terras urbanas na rea do termo da vila de
So Paulo observamos que 51,44% das solicitaes de terras urbanas foram feitas
por indivduos que ocuparam cargos na administrao municipal e 16,87% dosrequerentes tinham vnculos familiares prximos com grupos polticos locais24.
As caractersticas das concesses e, principalmente, a relao entre as
propriedades e a concepo dos requerentes nos fornecem base para apontarmos seu
carter patrimonialista.
20Afonso Taunay. op. cit., p. 35.21Para a descrio do processo eleitoral dos municpios, ver Ordenaes Filipinas, liv. I, tt. LXVII.22
Antnio Manuel Hespanha.As vsperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p. 164.23Fernando V. Aguiar Ribeiro. op. cit.24Fernando V. Aguiar Ribeiro. op. cit., p. 192.
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Segundo Max Weber, a principal caracterstica da dominao do tipo
patrimonial a ausncia da distino entre a esfera privada e a oficial na atuao
do funcionrio. Afirma que a administrao poltica tratada como assunto
puramente pessoal do senhor, e a propriedade e o exerccio e seu poder poltico, como
parte integrante de seu patrimnio pessoal aproveitvel em forma de tributos e
emolumentos25.
Tal ideia corrobora com a interpretao lanada em nossa dissertao de
mestrado de que a propriedade da vila, isto , as terras urbanas do termo do
municpio, era concebida pelos oficiais da Cmara como propriedade pessoal.
A criao de novos municpios representa no somente o estabelecimento de
novas estruturas poltico-administrativas. Ao dotar um grupo com o mando de uma
Cmara, confere o acesso e, principalmente o controle, s propriedades urbanas.
Cabe destacar que ao seu proprietrio, notadamente no perodo colonial,
confere no somente relevncia econmica, mas principalmente propicia a seu titular
a distino social to relevante para essa sociedade.
Por isso o processo de criao de novos municpios representa mais que a
expanso da rea sob domnio da Coroa portuguesa. Diz despeito a um jogo de
equilbrio entre os diversos grupos polticos locais da capitania.
ovas abordagens para o estudo de municpios
A historiografia tradicional sobre poderes locais, notadamente a que trata da
capitania de So Vicente, apresenta algumas caractersticas que so fundamentais para
nosso debate.
Na obra So Paulo nos primeiros anos, de 1920, Afonso Taunay caracteriza a
vila de So Paulo como uma transplantao de um municpio de Portugal.Afirma, inclusive, que constitua o Cdigo Filipino o livro bsico por onde se
regia a sociedade paulistana quinhentista26. Ou seja, concebe a vida poltica de vila
como totalmente definida pelos textos legais e ignora as prticas e aes que no
correspondiam s leis.
Apesar de conceber as prticas polticas baseadas nas Ordenaes, Taunay
destaca uma suposta independncia das cmaras vicentinas. Apresenta que, por
25
Max Weber. Economia e sociedade. So Paulo; Braslia: Imprensa Oficial; EdUnB, 2003, vol. II, p.253.26Afonso Taunay. op. cit., p. 32.
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vrias vezes notamos a atitude independente das cmaras paulistanas quinhentistas.
Ciosas de seus direitos e prerrogativas, frequentemente, no decorrer do sculo XVI,
fizeram frente prepotncia de capites-mores e ouvidores27.
Essa formulao ignora o papel perifrico da capitania nos momentos iniciais
de colonizao da Amrica e trata a situao de irrelevncia como independncia
regional. Isso ocorre, justamente porque, no incio do sculo XX, autores como
Taunay representaram um esforo de justificar o papel de destaque econmico e
poltico de So Paulo, atravs da construo de uma histria exaltativa28.
Edmundo Zenha, em O municpio no Brasil, de 1948, representa o esforo de
associar o municpio colonial ao congnere no Reino. Para o autor, a vila era a
maneira mais fcil do portugus compreender a colonizao, o que denunciou a
tendncia popular de que sempre esteve imbudo o povo que nos colonizou29.
Como justificativa, aponta que no se criam municpios no Brasil para a
realizao de obras pblicas. Os povos, quando os pedem, querem policiar a terra,
implantar nela um organismo distribuidor de justia, porque a del-rei era distante,
demorada e cara30.
Para a formulao da histria do municpio no Brasil, Zenha recorre s origens
romanas, passando pelo medievo portugus. Essa anlise denota o esforo do autor
em associar o municpio brasileiro tradio romana. , pois, uma forma de ligar
institucionalmente o Brasil a uma tradio clssica e trata-lo como um prolongamento
da Europa no Novo Mundo.
Tais formulaes, conjuntamente com as reflexes de Taunay, foram as bases
de muitos estudos sobre poderes locais.
No entanto, devemos ponderar algumas questes. Alm do que j apontamos,
pautamos o estudo sobre as elites polticas locais nessas bases no nos permite
compreend-las em sua totalidade.Associar o poder local, tanto uma elaborao pautada em uma anlise
legalista como a uma viso europeizante da histria, omite a possibilidade de
contemplarmos a circulao de conhecimentos e prticas no Novo Mundo.
27Afonso Taunay. op. cit., p. 78.28Citamos, para o debate sobre a construo de uma identidade paulista baseada na figura dobandeirante, Katia M. Abud. Sangue intimorato e as nobilssimas tradies: a contribuio de umsmbolo paulista: o bandeirante. So Paulo, 1986. Tese de doutorado (Histria Social) Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo.29Edmundo Zenha. op. cit., p. 23.30Edmundo Zenha. op. cit., p. 31.
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O processo de criao de vilas e de ajustes de prticas polticas j conhecidas
corresponde criao de novas formas de ao poltica condicionada por novos
fatores.
A partir de tal afirmao, pretendemos, ao longo da tese, questionar como as
ideias e experincias circularam na Amrica e como os municpios, mais do que uma
transplantao da instituio portuguesa, foi recriado no Novo Mundo a partir de
novas prticas polticas.
Outra questo formulada a tentativa que esboamos em apresentar o
continente de forma integrada, contemplando suas dinmicas de integrao em seus
mais variados contextos.
Tal abordagem, em um dilogo com a histria global e que trataremos melhor
no Captulo 4 no uma novidade quando tratamos a histria da colonizao
portuguesa na Amrica.
Como trabalho pioneiro, podemos citar a tese de doutoramento de Alice P.
Canabrava, O comrcio portugus no Rio da Prata, de 1942.
Nessa obra, a escolha do recorte temtico tem a ver com a rea de
especializao da autora, a Cadeira de Histria da Civilizao Americana. Na
perspectiva de elaborar tambm reflexes sobre o Brasil, Canabrava justifica que, na
tese, procuramos ventilar principalmente as questes econmicas suscitadas pela
colonizao espanhola na regio platina, e apelamos para a Histria do Brasil apenas
na medida em que poderia nos fornecer subsdios para o melhor esclarecimento
daqueles problemas31.
Assim, a partir dessa escolha, apresenta que nosso trabalho procura mostrar a
expanso comercial luso americana nos territrios espanhis do vice-reino do Peru na
poca da unio das coroas espanhola e portuguesa32.
Em relao ao recorte temporal, Canabrava destaca que a poca queestudamos tem admirvel unidade histrica: 1580 e 1640 enquadram o perodo da
unio das coroas de Portugal e de Castela, que ps sob o mesmo cetro vastos
territrios no novo mundo conquistados pelos povos ibricos33.
E, o ano de 1640, que assinala a data da restaurao portuguesa, marcou a
decadncia daquele comrcio na regio platina, manifesta desde o incio do segundo
31Alice P. Canabrava. O comrcio portugus no Rio da Prata: 1580-1640. Belo Horizonte; So Paulo:
Itatiaia; Edusp, 1984, p. 17, [1a
edio, 1942].32Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.33Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.
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quartel do sculo XVII34.
O estudo sobre o comrcio portugus no Rio da Prata foi circunscrito ao
perodo de unio poltica das duas coroas ibricas. Ou seja, embora a obra se destaque
por conta de sua abordagem pioneira ao tratar a bacia do Rio da Prata de forma
integrada, limitou-se s fronteiras dos Imprios como categorias estanques.
Para Canabrava, o contato comercial seria consequncia de uma unidade
poltica e seu fim, motivado pela separao de Portugal do Imprio espanhol.
Em 2004, Janice Theodoro e Rafael Ruiz retomam a abordagem de Alice
Canabrava ao tratarem da posio estratgica de So Paulo no contexto da Unio
Ibrica.
Afirmam que
no caso de So Paulo destaca-se o fato de a cidade seguir uma
lgica em tudo diferente s outras cidades e vilas. Ao contrrio
destas, So Paulo situava-se de costas para o Atlntico, deixando
que a prpria natureza e geografia do terreno cortasse naturalmente
a sua ligao no apenas com Portugal, mas com as cidades e vilas
que iam sendo fundadas. Era uma lgica, portanto, que ligava So
Paulo viso e ao modo de vida indgena, para quem a borda docampo era o limite natural final, constituindo um lugar onde era
inevitvel o contato entre os portugueses e castelhanos.35
Devido a essa posio estratgica de So Paulo na confluncia de caminhos
indgenas e voltada par ao interior, o ncleo urbano seria um ponto de confluncia de
vrias nacionalidades, destacando-se, alm da portuguesa, os castelhanos. Assim
essa multinacionalidade da populao de So Paulo ser umaconstante ao longo dos sculos XVI e XVII, caracterizando, naspalavras de Aracy Amaral36, uma histria comum, diferente dasoutras cidades brasileiras. Essa histria d conta de um estreitorelacionamento, conseguido e realizado nica e exclusivamente em
34Alice P. Canabrava. op. cit., p. 17.35Janice Theodoro e Rafael Ruiz. So Paulo, de Vila a Cidade: a fundao, o poder pblico e a vidapoltica In Paula Porta.Histria da cidade de So Paulo. Volume 1: A cidade colonial. So Paulo: Paze Terra, 2004, p. 77.36Aracy A. Amaral destaca a influncia espanhola na arte e arquitetura de So Paulo colonial. Aponta
que a presena espanhola em So Paulo persistiria at fins do sculo XVII de maneira significativa,permanecendo depois atravs da integrao de diversas famlias e seus descendentes, no planaltopiratiningano. Aracy A. Amaral.A hispanidade em So Paulo. So Paulo: Nobel; Edusp, 1980, p. 1.
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So Paulo, com todo um interior demarcado pelos castelhanos. AVila de Piratininga, desde os seus comeos, era tanto umentroncamento como um ponto de partida e de chegada que unia ascidades espanholas do Guair e, inclusive, as do altiplano boliviano.Uma histria construda pela prpria convenincia natural entre osmesmos, inseridos num bem comum que, no necessariamente,era o mesmo que o pretendido pela Coroa.37(86)
Em pesquisa recente, Jos Carlos Vilardaga retoma o debate ao tratar do papel
da vila de So Paulo no contexto da Unio Ibrica.
Na tese So Paulo na rbita do Imprio dos Felipes: conexes castelhanas de
uma vila da Amrica portuguesa durante a Unio Ibrica (1580-1640), procura
analisar os impactos diretos da realidade poltica peninsular na vila de So Paulo,
bem como os eventuais processos de cunho local e regional dinamizados pela novasituao imposta pela soberania filipina sobre Portugal e suas colnias38.
Apresenta, como explicitado no ttulo da tese, o recorte cronolgico como
limitado ao perodo da Unio Ibrica. A esse respeito, conceitua que a questo
fundamental que perpassa o trabalho o processo poltico vivenciado na Pennsula
Ibrica, que reflete de maneira no linear e automtica em So Paulo como tambm
em outras partes , mas que, de todo modo, informa e demanda os posicionamentos e
as reaes nas mais diversas reas do Imprio39.
Define, como tarefa principal da pesquisa, tentar compreender como um
determinado imprio, o filipino, herdeiro de outro imprio, conservando maior ou
menor autonomia, e se fez sentir nas partes mais distantes, no caso especifico, So
Paulo40.
Essa abordagem, por mais que permita estabelecer relaes entre reas de
colonizao portuguesa e espanhola, por estar circunscrita pelo perodo de unidade
poltica, torna a interpretao de integrao regional restrita.
Ao separar o perodo de unio poltica dos demais momentos histricos, a
viso que se tem da colnia permanece na interpretao consolidada: de uma rea
moldada pelos imprios europeus e como um arquiplago de partes sem conexes
entre si.
37Janice Theodoro e Rafael Ruiz. op. cit., p. 86.38Jos Carlos Vilardaga. So Paulo na rbita do Imprio dos Felipes: conexes castelhanas de umavila da Amrica portuguesa durante a Unio Ibrica (1580-1640). Tese de doutorado (Histria Social)
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2010, p. 14.39Jos Carlos Vilardaga. op. cit., p. 14.40Jos Carlos Vilardaga. op. cit., p. 17.
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A premissa da unidade do Imprio por conta da Unio Ibrica explicita outras
questes que pretendemos abordar na tese. A abordagem imperial, ou seja, a viso da
conquista e colonizao a partir dos centros metropolitanos, gera, muitas vezes,
interpretaes eurocntricas e propiciam, em ltima instncia, a manuteno de
concepo colonialistas.
No artigoMonarquia pluricontinental e repblicas: algumas reflexes sobre a
Amrica lusa nos sculos XVI-XVIII, Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva
desenvolvem algumas reflexes.
A principal discusso a concepo de monarquia pluricontinental, ideia
lanada em texto de Nuno Gonalo Monteiro41. Apresentam que esse conceito
se tratava de uma chave cognitiva capaz de dar conta da dinmicado imprio ultramarino portugus na expresso de Charles Boxer nele incluindo a concepo corporativa (autonomia dos corpossociais), porm tendo clara a sua diferena com o conceito demonarquia compsita de J. H. Elliott aplicado para Espanha dosustrias42.
Define a monarquia pluricontinental como sendo
um s reino o de Portugal , uma s nobreza de solar, mastambm diversas conquistas extra-europeias. Nela h um grandeconjunto de leis, regras e corporaes concelhos, corpos deordenanas, irmandades, posturas, dentre vrios outros elementosconstitutivos que engendram aderncia e significado s diversasreas vinculadas entre si e ao reino no interior dessa monarquia43.
E, outro trao da monarquia pluricontinental, j diversas vezes sublinhado,
que nela a Coroa e a primeira nobreza viviam de recursos oriundos no tanto da
Europa mas do ultramar, das conquistas do reino. Trata-se, portanto, de uma
monarquia e nobreza que tm na periferia a sua centralidade material44.
A concepo tem relao direta com as formulaes de Jack Greene sobre a
41Nuno Gonalo Monteiro. A tragdia dos Tvora. Parentesco, redes de poder e faces polticas namonarquia portuguesa em meados do sculo XVIII. In Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva (org.).
Na trama das redes. Poltica e negcios no Imprio Portugus. Sculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2010.42Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. Monarquia pluricontinental e repblicas: algumas
reflexes sobre a Amrica lusa nos sculos XVI-XVIII. Tempo, n. 27, 2009, p. 38.43Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. op. cit., p. 42.44Joo Fragoso e Maria de Ftima Gouva. op. cit., p. 43.
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Atlantic history..
Jack Greene e Philip Morgan definem que
Atlantic history is an analytic construct and an explicit category ofhistorical analysis that historians have devised to help themorganize the study of some of the most important developments ofthe early modern era: the emergence in the fifteenth century and thesubsequent growth of the Atlantic basin as a site for demographic,economic, social, cultural, and other forms of exchange among andwithin the four continents surrounding the Atlantic Ocean Europe,Africa, South America, and North America and all the islandsadjacent to those continents and in that ocean45.
A principal crtica feita Atlantic history baseia-se no fato dessa ser umdesdobramento da histria imperial. Essa, marcada por autores como Charles Boxer,
tem como objetivo escrever uma histria que valorize os feitos polticos, econmicos
e sociais dos grandes imprios europeus.
Assume, pois, a postura de conceber a colonizao a partir das capitais dos
Imprios e adota uma viso eurocntrica. A Atlantic history, como desdobramento
norte-americano da histria dos imprios, mantm a ideia de centralidade, agora na
poro noroeste do Atlntico e a viso dos Estados Unidos como parmetro principal
de interpretao.
Como ltimas questes a levantar, apontamos a necessidade, como sntese das
demais apresentadas, de compreender o Imprio portugus como dinmico e de forma
a contemplar suas diversas geografias.
A discusso sobre centralizao do Imprio, que se apresenta de forma
contnua desde meados do sculo XX, perpassa essa concepo.
Como trataremos no Captulo 6, devemos conceber o fenmeno do
alargamento do poder levando em considerao as dinmicas regionais das variadas
partes do Imprio.
Um Imprio vasto, e que abrange vrios continentes e que dialoga com
poderes variados, no pode ser concebido como um bloco unitrio e muito menos
como uma atuao direta e centralizada em Lisboa.
A renovao da historiografia sobre o Imprio portugus passa pela
incorporao da ideia de que um imprio composto por mltiplas geografias e essas
45 Jack P. Greene e Philip D. Morgan. Atlantic history. A critical appraisal . Nova York: OxfordUniversity Press, 2009, p. 3.
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correspondem a dinmicas regionais.
A viso de conjunto do Imprio somente ser possvel com o trabalho de
anlises regionais que contemplem a estruturao dos poderes polticos.
A empreitada da Coroa aps 1640 de engrandecer seu poder correspondeu a
uma ao que foi definida pelas estruturas regionais. Onde houve resistncia, o poder
real no avanou e onde essas estruturas eram frgeis e incipientes, a Coroa garantiu
sua maior presena.
Soma-se a isso os fatores de interesse econmico e geopoltico. A Coroa, com
recursos financeiros limitados, privilegiaria regies estratgicas no Imprio. Assim
ocorreu na ndia no sculo XVI e justificou a virada atlntica no sculo XVIII com a
descoberta das minas de ouro no Brasil.
* * *
O trabalho de pesquisa teve incio na problemtica da criao de vilas no
planalto e a relao dessas com a manuteno de um equilbrio poltico na capitania.
A partir dessa formulao, partimos para reflexes sobre a construo do poder
poltico em Portugal, a circulao de ideias e prticas no contexto americano e a
contribuio de elementos indgenas no processo de fragmentao das elites locais.
Com isso, a pesquisa partiu de um problema particular para um geral, indo da
criao das vilas para um contexto europeu e sul-americano.
Na confeco do texto, por questes de organizao lgica, partimos do
contexto geral, isto , a construo do espao no Novo Mundo e seus caminhos, para
o especfico, atravs da proposta de um modelo vicentino para a criao de
municpios.
Ao longo do texto optamos em manter a grafia original e no modernizar ascitaes dos autores. E, com o intuito de facilitar a leitura das referncias de rodap,
optamos em recomear a contagem das notas a cada parte do trabalho.
A tese se divide em trs partes. Na primeira, intitulada Os sertes de So
Paulo: a construo do espao buscamos refletir sobre a elaborao das
espacialidades no planalto.
Para tanto, abordamos o debate sobre a fronteira e sertes na historiografia
brasileira, descrevemos os caminhos que, ao cruzarem o territrio, contribuiriam parasua construo e, nas relaes polticas e sociais com as diversas partes da bacia do
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rio da Prata, verificarmos as integraes e contatos entre os territrios americanos.
Na segunda parte, Poderes locais no Imprio Portugus, damos continuidade
primeira ao tratarmos do fenmeno poltico dos municpios nessa espacialidade
construda.
Inicialmente desenvolveremos o debate sobre novas espacialidades atravs da
conceituao da histria global e a sua precursora histria dos imprios. Com a
abordagem do planalto em uma perspectiva global, discutimos os municpios, tanto
em sua formulao terica quanto em sua aplicao no contexto frente ao poder da
Coroa.
Na terceira e ltima parte, Poderes locais nos sertes de So Paulobuscamos
aplicar as formulaes tericas apresentadas anteriormente.
Iniciamos essa com a concepo de que as ideias e experincias polticas
circulam alm das fronteiras e, para o perodo inicial da conquista e colonizao da
Amrica, a troca de conhecimentos aparece como elemento fundamental para a
fixao e sobrevivncia dos assentamentos europeus no Novo Mundo.
Prosseguimos com a narrativa das fundaes dos municpios no planalto e
com a relao dessas novas estruturas poltico-administrativas com a terra urbana e
com o esgotamento de seu acesso.
Por fim, no ltimo captulo, discutimos a construo de um modelo vicentino
para a criao de municpios atravs da mestiagem, tanto tnica quanto cultural, que
criou no planalto vicentino uma sociedade hbrida, com elementos europeus e
indgenas, e que a chave para compreender a sociedade colonial paulistanos seus
primrdios.
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Parte I
Os sertes de So Paulo a construo do espao
Una maana, despus de casi dos aos de travesa, fueron los primeros mortales que vieron
la vertiente occidental de la sierra. Desde la cumbre nublada contemplaron la inmensa
llanura acutica de la cinaga grande, explayada hasta el otro lado del mundo. Pero nunca
encontraron el mar. Una noche, despus de varios meses de andar perdida por entre los
pantanos, lejos ya de los ltimos indgenas que encontraron en el camino, acamparon a la
orilla de un ro pedregoso cuyas aguas parecan un torrente de vidrio helado. Aos despus,
durante la segunda guerra civil, el coronel Aureliano Buenda trat de hacer aquella mismaruta para tomarse a Riohacha por sorpresa, ya los seis das de viaje comprendi que era una
locura. Sin embrago, la noche que acamparon junto al ro, las huestes de su padre tenan un
aspecto de nufragos sin escapatoria, pero su nmero haba aumentado durante la travesa y
todos estaban dispuestos (y lo consiguieron) a morirse de viejos. Jos Arcadio Buenda so
esa noche que en aquel lugar se levantaba una ciudad ruidosa con casas de paredes de
espejo. Pregunt qu ciudad era aquella, y le contestaron con un nombre que nunca haba
odo, que no tena significado alguno, pero que tuvo en el sueo una resonancia
sobrenatural: Macondo. Al da siguiente convenci a sus hombres de que nunca encontraranel mar. Les orden derribar los rboles para hacer un claro junto al ro, en el lugar ms
fresco de la orilla, y all fundaron la aldea.
Gabriel Garca Mrquez46
46Gabriel Garca Marques. Cien aos de soledad. Madrid: Debolsillo, 2013, p. 35-36.
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Captulo
Sertes de So Paulo como espao f luido
A proposta desse captulo discutir as espacialidades da capitania de So
Vicente a partir da ideia de que o espao uma construo social e no um dado posto
pela natureza. Com isso, abordaremos a discusso sobre a definio e caracterizao
do serto como espao fluido e dinmico. Por fim, a partir dessa caracterizao de
serto, iremos tratar do debate sobre fronteira na poro sul da Amrica Portuguesa.
A criao do espao: discusso sobre as espacialidades na Amrica
Portuguesa
Para iniciarmos a discusso sobre os sertes da Amrica portuguesa
necessrio que tratemos, mesmo que brevemente, do espao geogrfico enquanto
construo social.
Milton Santos, emA construo do espao. Tcnica e tempo. Razo e emoo,
apresenta a ideia de que o espao no um dado natural, mas socialmente construdo.
Afirma que paisagem e espao no so sinnimos. A paisagem o conjunto de
formas que, num dado momento, exprimem as heranas que representam as
sucessivas relaes localizadas entre homem e natureza. O espao so essas formas
mais a vida que as anima47.
Assim, para Milton Santos, o espao sempre um presente, uma construo
horizontal, uma situao nica48. Enquanto que cada paisagem se caracteriza por
uma dada distribuio de formas-objeto, providas de um contedo tcnico especfico.
J o espao resulta da intruso da sociedade nessas formas-objetos49.
Dessa forma, o espao no pode ser estudado como se os objetos materiais que
formam a paisagem tivessem uma vida prpria, podendo assim explicar-se por si
mesmos. Sem dvida, as formas so importantes. Essa materialidade sobrevive aos
modos de produo que lhe deram origem ou aos momentos desses modos de
47Milton Santos. A construo do espao. Tcnica e tempo. Razo e emoo. So Paulo: Edusp, 2002,
p. 103.48Milton Santos. op. cit., p. 103.49Milton Santos. op. cit., p. 103.
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produo50.
A partir dessa interpretao, Milton Santos define que no existe dialtica
possvel entre formas enquanto formas. Nem, a rigor, entre paisagem e sociedade. A
sociedade se geografiza atravs dessas formas, atribuindo-lhes uma funo que, ao
longo da histria, vai mudando51.
Conclui que o espao a sntese, sempre provisria, entre o contedo social e
as formas espaciais52. Contudo, a contradio principal entre a sociedade e
espao, entre um presente invasor e ubquo, que nunca se realiza completamente, e
um presente localizado, que tambm passado objetivado nas formas sociais e nas
formas geogrficas encontradas53.
Como exerccio de compreenso do espao como realidade socialmente
construda, Milton Santos defende a necessidade da compreenso das espacialidades
atravs de redes54. Destaca que a despeito da materialidade com que se impe aos
nossos sentido, a rede , na verdade uma mera abstrao55, um recurso interpretativo
do espao.
Com isso,
uma viso atual das redes envolve o conhecimento das idades dos
objetos (considerada aqui a idade mundial da respectiva tcnica) ede sua longevidade (a idade local do respectivo objeto), e, tambm,da quantidade e da distribuio desses objetos, do uso que lhes dado, nas relaes que tais objetos mantm com outros fora da reaconsiderada, das modalidades de controle e regulao do seufuncionamento56.
Afirma Milton Santos que a existncia das redes inseparvel da questo do
poder57. Apresenta, portanto, que a compreenso das espacialidades passa pela
interpretao das redes, pois como construo social, seus elementos de interao so
50Milton Santos. op. cit., p. 105.51Milton Santos. op. cit., p. 109.52Milton Santos. op. cit., p. 109.53Milton Santos. op. cit., p. 109.54A interpretao do espao urbano atravs do recurso de redes teve como obra inicial o estudo Comose constituiu no Brasil a rede de cidades, de Pierre Deffontaines, publicado em 1944. A obra de 1968de Nestor Goulart Reis Filho, Contribuio ao estudo da evoluo urbana no Brasil (1500-1720)apresenta uma conceituao e aplicao problemtica da urbanizao brasileira de maneira maisdesenvolvida.55
Milton Santos. op. cit., p. 262.56Milton Santos. op. cit., p. 263.57Milton Santos. op. cit., p. 270.
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fundamentais para seu entendimento.
E, para sua compreenso enquanto fenmeno social, devemos considerar que
as redes so, pois, ao mesmo tempo, concentradoras e dispersoras,condutoras de foras centrpetas e de formas centrfugas. comum,alis, que a mesma matriz funcione em duplo sentido. Os vetores queasseguram distncia a presena de uma grande empresa so, paraesta, centrpetos, e, para muitas atividades preexistentes no lugar deseu impacto, agem como foras centrfugas58.
Assim, mediante as redes, h uma criao paralela e eficaz da ordem e da
desordem no territrio, j que as redes integram e desintegram, destroem velhos
recortes espaciais e criam outros59. Compreende-se, portanto, o fato de que a rede
global e local, una e mltipla, estvel e dinmica, [e isso] faz com que a sua realidade,
vista num movimento de conjunto, revele a superposio de vrios sistemas lgicos, a
mistura de vrias racionalidades cujo ajustamento, alis, presidido pelo mercado e
pelo poder pblico, mas sobretudo pela prpria estrutura socioespacial60.
EmA construo do espao, Sonia Barros apresenta o espao como resultado
de transformaes sociais, o que inclui fatores polticos, econmicos e culturais.
Assim, o espao socialmente transformado pelas prticas econmicas, apropriados
pelas prticas polticas e constitudos em significaes pelas prticas cultural-
ideolgicas61.
Para Sonia Barros,
o espao constitudo ao mesmo tempo um fato fsico e um fatosocial, em seus atributos de propriedade, valor e smbolo.Entretanto, uma concepo estreita e de grande eficcia ideolgicatem-se mostrado inclinada a identificar ambas as condies em
algumas de suas implicaes. No campo da prefigurao doespao, as prticas fundadas nos critrios antes mencionados seorientaram para o tratamento tcnico deste ltimo, considerandoque a modificao de certas caractersticas do meio natural trazconsigo a soluo de toda uma srie de problemas sociais62.
58Milton Santos. op. cit., p. 278.59Milton Santos. op. cit., p. 279.60Milton Santos. op. cit., p. 279.61
Sonia Barros. A produo do espao In Maria Adlia de Souza e Milton Santos (orgs). Aconstruo do espao. So Paulo: Nobel, 1986, p. 19.62Sonia Barros. op. cit., p. 20.
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No entanto,
cumpre acentuar que o espao como manifestao social, ou seja,como forma de objetividade das relaes que se estabeleceram
entre os homens, constitui uma das mltiplas determinaes queoperam no interior da totalidade social, desempenhando o papel deseu reprodutor material. Em compensao, como elemento fsico,ele condiciona as aes sociais, impondo restries suarealizao63.
Bernard Lepetit, em sua Por uma nova histria urbana, aborda a construo
do espao a partir de uma abordagem interdisciplinar. Aponta, para tanto, que a
interdisciplinaridade inscreve-se num processo de evoluo contnua do campo das
cincias sociais. Esse processo complexo na medida em que remete a lgicas e
temporalidades que absolutamente no coincidem64.
Define que
toda pesquisa histrica nasce no fim provisrio de uma srie depesquisas sucessivas: definem-se suas caractersticas e aprecia-sena sua pertinncia tambm de acordo com as proposies dasprecedentes. Na diacronia, ela se inscreve, assim, numa tradio
cuja origem se desloca com a evoluo da disciplina. Na sincronia,todo livro de histria toma lugar na organizao atual dasconstelaes disciplinares por ele, ao mesmo tempo, em sua escala,contribui para definir e modificar65.
Dessa forma, isso significa que ela depende tambm dos contedos prprios
de cada uma das outras cincias humanas, que, como a histria, mas em ritmos e
segundo orientaes no necessariamente semelhantes, esto em constante
evoluo66.
Para a discusso a respeito das espacialidades, alm da interdisciplinaridade,
Lepetit destaca a importncia das escalas. Afirma que no s sensato escolher uma
escala, como tambm impossvel apreender o real sem essa escolha67.
Para tanto, a totalidade social constitua a finalidade ltima da pesquisa. Uma
conduta analtica francamente cartesiana dava acesso a ela, empenhando-se em dividir
63Sonia Barros. op. cit., p. 20.64Bernard Lepetit. Por uma nova histria urbana. So Paulo: Edusp, 2001, p. 33.65
Bernard Lepetit. op. cit., p. 33.66Bernard Lepetit. op. cit., p. 35.67Bernard Lepetit. op. cit., p. 214.
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cada objeto complexo em conjuntos de dimenso intermediria, para poder depois
praticar a quantificao68.
Apresenta a escala essencialmente como relacionada com o objeto, mas
adverte que a variao da escala no o apangio do pesquisador nem sobretudo o
produto do processo de construo da pesquisa69. A escala tem, portanto, a funo
de identificar os sistemas de contextos em que se inscrevem os jogos sociais. A
ambio dessa cartografia dinmica reconhecer e desenhar, em sua variedade, um
conjunto de mapas que correspondem a igual nmero de territrios sociais70.
Para Lepetit, comumente, em geografia ou em arquitetura, uma escala uma
linha dividida em partes iguais e colocada ao p de um mapa, de um desenho ou de
um projeto, para servir de medida comum a todas as partes de um edifcio ou ento a
todas as distncias e a todos os lugares de um mapa71.
Assim, desenhar um projeto construir um modelo reduzido da realidade
depois de haver selecionado uma dimenso dela (no caso, sua disposio no solo) e de
haver renunciado s outras. Poderamos destacar a perda (de detalhes, de
complexidade, de informao) que tal operao envolve72. Refora, portanto, que
mais justo destacar a escolha e a inteno que ela [a escala] supe, pois a opinio
precedente repousa na ideia preguiosa de que o real se desvenda espontaneamente,
em sua riqueza, antes de qualquer atividade de anlise (necessariamente em dficit,
por sua vez)73.
No entanto, ressalta que as concluses que resultam de uma anlise
conduzida numa escala particular no podem ser opostas s concluses obtidas numa
outra escala. Elas so cumulveis apenas com a condio de que se levem em conta os
nveis diversos em que foram estabelecidas74. Define, pois, que escrever um livro
de sntese, por exemplo, sempre, em relao aos estudos particulares que existem,
mudar de escala, portanto, de objeto e de problemtica75.Conclui Lepetit a reflexo do uso de escalas na interpretao das
espacialidades com a seguinte metfora: uma cidade, uma campina, de longe so
uma cidade e uma campina; mas medida que nos aproximamos, so casas, rvores,
68Bernard Lepetit. op. cit., p. 197.69Bernard Lepetit. op. cit., p. 206.70Bernard Lepetit. op. cit., p. 207.71Bernard Lepetit. op. cit., p. 208.72Bernard Lepetit. op. cit.,p. 213.73
Bernard Lepetit. op. cit.,p. 207-214.74Bernard Lepetit. op. cit., p. 225.75Bernard Lepetit. op. cit., p. 225.
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telhas, grama, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se reveste com o
nome de campo76.
John B. Harley, emLa nueva naturaleza de los mapas, apresenta, como forma
de compreenso das espacialidades, o mapa como seu mais importante suporte.
Afirma que, entre numerosos tipos de documentos sobre o espao que por lo general
utilizan los historiadores, los mapas son muy conocidos; sin embargo, no son tan bien
comprendidos77.
Comumente, la percepcin comn de la naturaleza de los mapas es que son
una imagen, una representacin grfica de algn aspecto del mundo real78. Com isso,
el resultado es que cuando los historiadores hacen una valoracin de los mapas, sus
estrategias interpretativas son determinadas por esta idea de lo que se dice que son los
mapas79.
A partir dessa situao, Harley reflete que sin embargo, hay una respuesta
alternativa a la pregunta de qu es un mapa. Para los historiadores, una definicin
igualmente adecuada de un mapa es: una construccin social del mundo expresada a
travs del medio de la cartografa80.
Essa representao do espao no se d somente pela escala, discusso
abordada por Bernard Lepetit, mas tambm pelo uso de signos para representar o
mundo nos mapas, em um processo semelhante a dos textos. Assim, cuando stos
son fijos en un gnero de mapas, los definimos como signos convencionales. Los
mapas no tienen una gramtica como el lenguaje escrito, pero igualmente son textos
diseados de manera deliberada y creados bajo la aplicacin de principios y tcnicas,
y desarrollados como sistemas formales de comunicacin81.
Por conta da semelhana dos mapas com demais documentos textuais, Harley
lembra que la regla bsica del mtodo histrico es que slo se pueden interpretar los
documentos en su contexto82. E, esta norma se aplica igualmente a los mapas, quedeben llevarse de regreso al pasado y situarse estrictamente en su proprio periodo y
lugar83.
Define como elemento central da interpretao da documentao cartogrfica
76Bernard Lepetit. op. cit., p. 236.77J. B. Harley.La nueva naturaleza de los mapas. Mxico: FCE, 2005, p. 59.78J. B. Harley. op. cit.,p. 60.79J. B. Harley. op. cit.,p. 60.80J. B. Harley. op. cit.,p. 61.81
J. B. Harley. op. cit., p. 62.82J. B. Harley. op. cit., p. 63.83J. B. Harley. op. cit., p. 63-64.
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o papel dos interesses polticos e econmicos envolvidos no processo de confeco
dos mapas. Refora que
la intencin cartogrfica casi nunca fue cuestin de capacitacin,habilidad o disponibilidad de instrumentos de un individuo, o delmomento y el dinero necesario para completar un trabajoadecuadamente. Los cartgrafos casi nunca podan tomar decisionesde manera independiente, ni estaban libres de limitacionesfinancieras, militares o polticas84.
Portanto, por encima del taller siempre hay una persona que encarga el mapa y,
como consecuencia, el mapa est imbuido en dimensiones sociales adems de
tcnicas85.
Como importante contribuio ao estudo da cartografia, Harley destaca o
papel da toponmia86 para a compreenso das relaes do espao. Ressalta que al
igual que los contornos, los nombres de lugares ofrecen una forma de construir
genealogas y perfiles de origen para mapas que antes se encontraban dispersos87.
O estudo da toponmia nos leva a refletir sobre as trocas culturais entre
europeus e as populaes indgenas no processo de conquista e compreenso do
espao americano. A esse respeito Harley aponta que
en los periodos iniciales de la exploracin, los europeos de distintasnacionalidades seguramente escuchaban nombres de boca dehablantes nativos norteamericanos de una variedad de lenguas y,tambin deben de haber tratado de registrarlos de acuerdo con suproprio sistema de sonidos, adems de una ortografa estandarizada.Incluso en los casos en que se aplicaron nombres europeos a lageografa norteamericana el proceso de traducirlos y editarlos estuvoviciado, resulta entonces que los nombres son producto de descuido,
de una mala lectura o de un mal entendimiento de generacionessucesivas de cartgrafos que no tenan conocimiento de primeramano de los logares o las lenguas en cuestin88.
84J. B. Harley. op. cit., p. 66.85J. B. Harley. op. cit., p. 67.86Para uma discusso sobre os usos da toponmia ver Teodoro Sampaio. O tupi na geografia nacional.So Paulo: O Pensamento, 1914 e Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick. A toponmia como meiode investigao lingustica e antropocultural. In: Aparecida Negri Isquerdo (org.). Estudosgeolingusticos e dialetais sobre o portugus: Brasil Portugal . Campo Grande: EdUFMS, 2008, p.
215-231.87J. B. Harley. op. cit.,p. 70.88J. B. Harley. op. cit., p. 70-71.
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Conclui Harley que
los mapas nunca son imgenes carentes de valor; excepto en elsentido euclidiano ms estricto; por s mismos no son ciertos o
falsos. Tanto en la selectividad de su contenido como en sus signos yestilos de representacin, los mapas son una manera de concebir,articular el mundo humano que se inclina hacia, es promovido por yejerce una influencia sobre grupos particulares de relacionessociales89.
Com isso, la cartografa puede ser una forma de conocimiento y de poder90.
Isso porque la historia de los mapas se encuentra inextricablemente vinculada
al surgimiento del Estado-nacin en el mundo moderno91. Assim, a compreenso das
espacialidades, nas interpretaes de Harley passa, necessariamente, pela relao
entre espao e poder e concebe a representao espacial como uma linguagem,
passvel de anlises e leituras.
Afirma, portanto, que as como el reloj como smbolo grfico de la autoridad
poltica centralizada, trajo consigo la disciplina del tiempo al ritmo de los
trabajadores industriales, las lneas de los mapas, dictadoras de una nueva topografa
agraria, introdujeron una dimensin de disciplina del espacio92.
Fania Fridman, na Apresentao de Cidades do Novo Mundo. Ensaios de
urbanizao e histria retoma as consideraes tecidas por Bernard Lepetit. Atenta
que, relembrando o autor francs, o territrio origina-se do conjunto das
configuraes, presentificando os passados, e as formas, por sua vez, registram
antigas relaes sociais e hbitos de grupos sociais enraizados em territrios93.
Thomas Calvo, no captulo Cidades e povoados de ndios (sculos XVI-XVII)
da obra organizada por Fania Fridman, aborda os modelos de urbanizao hispnicos
para as Amricas. Apresenta que as regras e os modelos impostos pelos dominadoresvo ser determinantes com o passar do tempo, mas de forma variada, conforme os
preceitos, os espaos, os tempos94.
89J. B. Harley. op. cit., p. 80.90J. B. Harley. op. cit., p. 82.91J. B. Harley. op. cit., p. 87.92J. B. Harley. op. cit., p. 90-91.93 Fania Fridman. Apresentao. In: Fania Fridman (org.). Cidades do Novo Mundo. Ensaios deurbanizao e histria. Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2013, p. 12.94
Thomas Calvo. Cidades e povoados de ndios (sculos XVI-XVII) In Fania Fridman (org.).Cidades do Novo Mundo. Ensaios de urbanizao e histria. Rio de Janeiro: Garamond; Faperj, 2013,p. 22.
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O modelo de urbanizao espanhol no vai se aplicar por completo pelo fato
da Amrica no ser um espao vazio, desabitado. Para Calvo,
existe um claro contraste entre o traado espanhol, em boa parterealizado a compasso, e a falta de ordenamento dos bairrosindgenas circundante. Se isso acontece na capital, no se deveesperar algo melhor nas regies afastadas, como revela o mapa deSan Lus de Potos de 1594, a mina real do norte da Nova Espanha.Este simples esboo ope o assentamento hispnico, reticular, aocasario dos indgenas ao redor95.
Assim, a integrao em um espao remodelado e mudado sob normas
hispnicas no era o essencial. Constituir-se numa verdadeira repblica de ndios
impunha outras exigncias 96 . O que leva ao seguinte posicionamento: como
combinar as heranas locais com as exigncias procedentes dos conquistadores97.
Uma possvel resposta questo de Thomas Calvo, nas linhas de Harley e
Lepetit, seja a compreenso do processo de conquista e apreenso da espacialidade
americana. No podemos conceber os sertes americanos como territrio vazio, sem
populao e sem um cultura poltica e relaes espaciais j estabelecidas pelos
indgenas.
A esse respeito, John Short em Geographic encounters: indigenous people
and the exploration of the New World, destaca que, na imagem consolidada pela
historiografia sobre espacialidades, there is the empty space that awaits the full
unfolding of the colonial/imperial project. Even when the narratives contain
descriptions of the indigenous people, the land is conceptualized as a blank page for
colonial/imperial expansion98.
Defende, portanto, que os conhecimentos indgenas sobre a natureza e suas
concepes de espacialidades foram fundamentais no processo de conquista ecolonizao do Novo Mundo. A partir da fuso de culturas indgenas e europeias,
criou-se um pensamento prprio, com caractersticas americanas.
Para Short, apenas das vises dos sertes como espao vazio, there is the
occupied space of an inhabited land with a due recognition of a humanized landscape
95Thomas Calvo. op. cit., p. 27.96Thomas Calvo. op. cit., p. 28.97
Thomas Calvo. op. cit., p. 28.98John Short. Geographic encounters: indigenous people and the exploration of the New World.Londres: Reaktion, 2009, p. 18.
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full of people. The consequences and implications of a still settled space and its
tensions with an empty space involve many responses from the geopolitical to the
moral99.
istoriografia sobre sertes
Serto definido por Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez e
latino..., como regia, apartada do mar, & por todas as partes, metida entre
terras100. A proposta desse captulo, mais que definir serto, problematizar o
espao que compreende o interior da Amrica portuguesa como um territrio do
desconhecido no qual os mitos europeus, em consonncia com mitos das populaes
indgenas, impulsionaram a penetrao dos europeus.
Na historiografia sobre a ocupao do sertes da capitania de S. Vicente, a
concepo de interior era de um territrio vazio no qual a civilizao deveria
dominar. Afonso Taunay, em So Paulo nos primeiros anosde 1920, consolida essa
imagem. Afirma que
alguns quilmetros do arraial paulistano comeava o tenebroso
serto, mais ignoto e ameaador do que a selva mato-grossense dehoje entre Madeira-Araguaia. Povoam-no monstros e abantesmas;fenmenos e prodgios: os corriqueamas com quinze ps de alto e osguaiazis, minsculos, mas ferozes e inumerveis; os matuius,homens de ps para trs e corredores agilssimos; e os giboiuus,serpentes cujas carnes, putrefatas, durante as interminveis epenosssimas digestes, refaziam-se constantemente; toda esta faunateratolgica que to pitorescamente nos descreve o velho cronistaSimo de Vasconcelos e porfia referem os copiadores uns aps osoutros, dando-se ares de contar coisas originais101.
Define, como caracterstica principal da vila de So Paulo no sculo XVI, o
fato de estar inserida em meio ao serto e, para tanto, urgia manter rigorosa
disciplina naquele posto avanado da civilizao, perdido entre as selvas, que era So
Paulo e essa disciplina, entendia-o a Cmara, precisava basear-se sobretudo no
99John Short. op. cit.,p. 18.100Serto. Rapahel Bluteau.Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes, 1712, v.
7, p. 613.101Afonso Taunay. So Paulo nos primeiros anos e So Paulo no sculo XVI. So Paulo: Paz e Terra,2003, p. 20.
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respeito autoridade102.
Na Histria geral das bandeiras paulistas, obra monumental de Afonso
Taunay publicada entre 1924 e 1950, apresenta o serto como um territrio
desconhecido, no delimitado. Aponta que
esta terra da Coroa de Portugal e do Senhor Conde de Monsantoaffirmavam os bandeirantes de Antonio Raposo Tavares emunssono com a homeinada [sic] seu cabo de tropa. Assim noscontam varios depoimentos jesuticos hespanhoes ao se refirem resposta dada pelos paulistas aos ignacianos que lhe verberavamassolar terras e povos sujeitos Coroa de Hespanha. E realmentecomo que havia entre os sertanistas a percepo confusa de que alinha demarcadora das terras das duas coroas devia passar mais a
oeste do que pretendiam os hespanhoes, a saber, entrando no Brasilem Cananea, seno mesmo em S. Vicente. No nos esqueamosainda quanto lhes era tal doutrina favorvel s pretenses103.
A essa delimitao no precisa entre os domnios das duas Coroas na Amrica
soma-se o fato que, durante 80 anos, Portugal e Espanha estavam unidos sob o
mesmo monarca. A esse respeito, Taunay destaca que em 1580 reuniram-se sobre a
mesma cabea as coroas de Portugal e Hespanha, o que na Amrica s devia trazer
vantagens. Desde ento os dois povos, alheios a quaisquer rivalidades coloniaes,puderam dedicar-se s tarefas que lhes pareceram mais urgente e proveitosa
soluo104, como, por exemplo, devassar os sertes em busca de metais preciosos e,
por outro lado, defender o litoral de incurses de franceses e holandeses.
Washington Lus, na obra Na capitania de So Vicentede 1956, corrobora as
interpretaes de Afonso Taunay sobre os sertes e a dificuldade no processo de
conquista e colonizao. Aponta que, nos anos subsequentes conquista da Amrica
portuguesa s o oriente interessava, ento, mas com a declinao do seu comrcio, asituao econmica e financeira do reino tambm declinava assustadoramente105.
A soluo para essa situao seria a busca por metais preciosos no continente
americano. Vale ressaltar que a riqueza das civilizaes asteca e inca e a descoberta
das minas de prata de Potos direcionam a ambio europeia da sia para o Novo
102Afonso Taunay. op. cit., p. 121.103Afonso Taunay.Histria geral das bandeiras paulistas. So Paulo: H. I. Canton, 1928, v. 4, p. 130.104
Afonso Taunay. op. cit., p. 121, v. 4, p. 134.105Washington Lus Pereira de Sousa.Na capitania de So Vicente. Braslia: Senado Federal, 2004, p.46.
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Mundo.
Contudo, delicada era, pois, a situao de Portugal, e dificlima, pois, a
colonizao do Brasil. Mas, segundo Frei Lus de Sousa, nos seus Anais, o Brasil, que
ainda nada tinha dado e estava em bruto, prometia grandes maravilhas106.
Assim, as lendas sobre riqussimas minas de ouro alucinavam os europeus
vidos em toda a parte da velha Europa. Ningum podia distinguir o que de real
haveria nas fices criadas e amplificadas por imaginaes desvairadas107.
Destaca Washington Lus a posio estratgica da vila de So Paulo em
relao rede de caminhos terrestres e fluviais que cruzavam o serto. Dessa forma,
So Paulo, com a fora de um destino, transformou os vicentinos e
os forasteiros em paulistas e o nome de S. Paulo, numa igrejinha empequenssimo povoado, passou para a vila, passou depois paracidade, passou para a capitania e mais tarde para todo o territriosertanejo, desde as altas e recnditas cabeceiras dos regatos, queafluem para o Paraguai e para o Paran at formar o rio da Prata,como passou at para o norte, at as que constituem a bacia sul doAmazonas e para a bacia do So Francisco, no serto108.
A essa posio estratgica soma-se ao impulso gerado pelos mitos e promessas
de riquezas. A essa respeito, Washington Lus afirma que
mais que a curiosidade aventureira e vida, a necessidadeimprescindvel de, pela ocupao efetiva, pela posse, assegurar osdescobrimentos feitos, iriam impulsionar com ardor insacivel asexpedies audacssimas atravs dos desertos selvagens ou inimigos.Os navegadores temerrios e tenazes seriam substitudos pelossertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na ateno daHistria o lugar das frotas. Era natural, lgico, fatal, pois, oesquadrinhamento do interior dessas terras, e as entradas ao sertoteriam que aparecer. O ciclo das navegaes seria substitudo pelociclo das bandeiras em Portugal109.
Em Caminhos e fronteiras, Srgio Buarque de Holanda em 1957 apresenta o
processo de penetrao e conquista do interior do Brasil. Define que durante os
primeiros tempos da colonizao do Brasil, os stios povoados, conquistados mata e
106Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 48.107
Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 48.108Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 140.109Washington Lus Pereira de Sousa. op. cit., p. 223.
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ao ndio, no passam, geralmente, de manchas dispersas ao longo do litoral, mal
plantadas na terra e quase independentes dela. Acomodando-se arribada de navios
mais do que ao acesso do interior, esses ncleos voltam-se inteiramente para o outro
lado do oceano110.
Srgio Buarque evidencia a importncia da posio geogrfica de So Paulo e
das redes de caminhos no serto. Afirma que
alguns mapas e textos do sculo XVII apresentam-nos a vila de SoPaulo como centro de amplo sistema de estradas expandindo-serumo ao serto e costa. Os toscos desenhos e os nomes estropiadosdesorientam, no raro, quem pretenda servir-se desses documentospara a elucidao de algum ponto obscuro de nossa geografia
histrica. Recordam-nos, entretanto, a singular importncia dessasestradas para a regio de Piratininga, cujos destinos aparecem assimrepresentados como em um panorama simblico111.
A compreenso da realidade americana pelo europeu se deu, de acordo com
Srgio Buarque, pela assimilao dos conhecimentos e prticas dos indgenas. Assim,
neste caso, como em quase tudo, os adventcios deveram habituar-se s solues e
muitas vezes aos recursos materiais dos primitivos moradores da terra112.
Isso porque eram os paulistas donos de uma capacidade de orientao nas
brenhas selvagens, em que to bem se revelam suas afinidades com o gentio, mestre e
colaborador inigualvel nas entradas, sabiam os paulistas como transpor pelas
passagens mais convenientes as matas espessas ou as montanhas aprumadas, e como
escolher stio para fazer pouso e plantar mantimentos113.
A importncia do serto para a compreenso do Brasil reforada na tese de
ctedra Viso do paraso. Os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do
Brasil, defendida e publicada em 1958. Ao destacar as motivaes mticas para a
penetrao do interior, Srgio Buarque altera a concepo do serto, de vazio passa a
ponto de atrao por sua lendas e possibilidades de riquezas.
Mitos carregados de sentido religioso, localizava em local incerto o den, o
paraso terrestre. Buarque de Holanda aponta que
a ideia de que existiu na Terra, com efeito, algum stio de bem-110Srgio Buarque de Holanda. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957, p. 5.111
Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.112Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.113Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 15.
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aventurana, s acessvel aos moradores atravs de mil perigos epenas, manifestos, ora sob a aparncia de uma regio tenebrosa, orade colunas gneas que nos impedem de alcana-lo, ou ento dedemnios ou pavorosos monstros, pode prevalecer, porm,independentemente das tradies clssicas ou das escolsticas
sutis114.
Essa concepo de recompensa aps toda sorte de desafios encontrou terreno
frtil na Amrica. As matas desconhecidas, a geografia fantstica e os riscos das
exploraes corroboram com a ideia crist de gratificao aps sacrifcios.
Dessa forma, era de esperar, depois das desvairadas especulaes de
Colombo e outros navegantes, que tambm a fonte de Juventa, constante apndice do
Paraso Terreal, achasse algum meio de introduzir-se na geografia visionria do Novo
Mundo115.
A busca pelo paraso foi substitudo pelos mitos de reinos abundantes em ouro
e prata. Nas palavras de Buarque de Holanda, imagem ou no do Dourado
propriamente dito o dos Omguas e de Manoa e tambm do Dourado de Meta, isto
, dos Chilocha, foram reportados aqui e ali muitos outros reinos ureos ou argnteos,
no menos lisonjeiros para a desordenada cobia dos soldados116.
Esses mitos de ouro e prata encontraram importante reforo quando do contato
e conquista das civilizaes asteca e inca. As minas de prata do Alto Peru,
notadamente o mtico Potos, tiveram destacado papel de motivar a cobia de
portugueses e direcionar a penetrao nos sertes a oeste. Isso porque,
fosse qual fosse o verdadeiro quinho de Portugal no Novo Mundo,um fato se impunha aqui fora de toda dvida, e era a perfeitacontinuidade, de todos reconhecida, entre o Brasil lusitano e aspartes de melhor proveito nas ndias de Castela, que com ele
confinavam pelo poente. Esta ltima considerao no era de poucamonta, sempre que se tratasse de decidir sobre a primazia emmatria de riquezas de toda sorte, e no apenas minerais, pois queuma opinio acreditada na poca s poderia contribuir neste casopara dar-se a palma ao Brasil. Propnquo ao opulento Peru e sob asmesmas latitudes, porm a leste, nele seriam encontrados, por fora,os mesmos produtos que se davam naquela provncia castelhana, edo mesmo e melhor toque117.
114Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 59.115
Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 60.116Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 79.117 Srgio Buarque de Holanda. Viso do paraso. Os motivos ednicos no descobrimento e
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Ao concluir a reflexo sobre o papel dos mitos no processo de colonizao e
construo do Brasil, Srgio Buarque afirma que possvel, desta excurso j
demorada volta dos mitos geogrficos j difundidos na era dos grandes
descobrimentos martimos, tirarem-se concluses vlidas para um relance sobre a
formao brasileira, especialmente durante o perodo colonial?118.
Assim, como resposta a esse questionamento, tentou-se mostrar, ao longo
destas pginas, como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes
vm buscar, e no raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do Mar Oceano,
uma espcie de cenrio, ideal, feito de suas experincias, metodologias ou nostalgias
ancestrais119.
Corroborando com a interpretao tradicional de serto como espao vazio,
Alida C. Metcalf, em Vila, reino e serto no So Paulo colonial, de 1996, apresenta-o
como desconhecido, a imensa vastido120.
Para a autora, nos mapas, o serto especificava o interior do Brasil, os
territrios sob controle dos ndios e a floresta virgem que poderia ainda existir em
torno dos povoamentos portugueses e entre eles121.
Apresenta uma oposio entre serto e reino ao afirmar que se o reino
representava um polo de um continuum que se estendia do Velho Mundo, o serto
sintetizava o oposto: a Amrica em seu estado natural122. A partir dessa concepo,
para os portugueses, o serto pedia para ser colonizado, explorado e
transformado123.
Portanto, o processo de colonizao da Amrica portuguesa vista como
uma evoluo gradativa das caractersticas do serto para as do reino124.
Em 1999, A. J. R. Russel-Wood, em Fronteiras no Brasil colonial, publicado
na Revista Oceanos, aborda o serto da Amrica portuguesa como espao de interaoentre as culturas europeias e indgenas. Afirma que este ensaio adopta, relativamente
colonizao do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 153.118Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 443.119Srgio Buarque de Holanda. op. cit., p. 443.120Alida C. Metcalf. Vila, reino e serto no So Paulo colonial In Francisca L. Nogueira de Azevedoe John Manuel Monteiro (orgs.). Razes da Amrica Latina. Rio de Janeiro: Expresso Cultural; SoPaulo: Edusp, 1996, p. 420.121Alida C. Metcalf.op. cit., p. 420.122
Alida C. Metcalf. op. cit., p. 420.123Alida C. Metcalf.op. cit., p. 421.124Alida C. Metcalf.op. cit., p. 421.
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fronteira, uma abordagem diferente: considera a fronteira como uma metfora,
vendo no termo fronteira uma rea de interao entre diferentes culturas125.
O serto, rea de fugitivos da justia ou para aventureiros, visto por Russell-
Wood, como uma zona de fronteira. E, assim, a palavra fronteira entendida no
contexto de um limite entre culturas126e esta abordagem mais reveladora, e mais
conforme com a mistura nica de culturas, parte inerente do desenvolvimento
histrico no perodo colonial, sendo um fenmeno em curso e no menos evidente no
perodo de hoje127.
Glria Kok, em O serto itinerante, expedies da capitania de So Paulo no
sculo XVIII, de 2004, desenvolve as concepes da Amrica como local do
imaginrio e dos mitos. Aponta que no novidade afirmar que muitos europeus
fomentaram vises idlicas do serto da Amrica portuguesa128.
Esse espao do desconhecido, territrio composto de lendas e mitos
controlado quando a conquista e colonizao se efetiva. De acordo com Glria Kok,
medida que se fazia a conquista de novos espaos na Amrica portuguesa, as terras
mticas nublavam-se diante de uma outra noo de geografia, cuja concepo de
espao controlado, ordenado, limitado e mapeado , punha-se definitivamente a
servio da Coroa para garantir o domnio de terras e gentes129.
John R. Gillis, em Islands of the mind. How the human imagination created
the Atlantic world, de 2004, apresenta as ilhas como locais privilegiados para a
geografia mtica. Aponta que mythical geographies always exist beyond the edge of
everyday existence. They are frequently located in remote and isolated places about
which we have little practical information. In the Western world, the sea has been a
favored location because Europeans were late in mastering130.
Apesar dos mitos no serem criao da poca moderna, com as navegaes
e o contato com as Amricas que encontram um territrio frtil para seudesenvolvimento. Segundo Gillins, in the fifteenth and sixteenth centuries discovery
still meant to uncover, disclose, or reveal what today we would call recovery.
125A. J. R. Russell-Wood. Fronteiras no Brasil colonial. Revista Oceanos. Lisboa: ComissoNacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, n. 40, p. 9.126A. J. R. Russell-Wood. op. cit., p. 20.127A. J. R. Russell-Wood. op. cit., p. 20.128Glria Kok. O serto itinerante, expedies da capitania de So Paulo no sculo XVIII. So Paulo:Hucitec, 2004, p. 18.129
Glria Kok. op. cit., p. 26.130 John R. Gillis. Islands of the mind. How the human imagination created the Atlantic world. NewYork: Palgrave Macmillan, 2004, p. 6.
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7/25/2019 RIBEIRO Vilas do planalto paulista.pdf
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