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Boletim Academia Paulista de Psicologia ISSN: 1415-711X [email protected] Academia Paulista de Psicologia Brasil Hideki Shimabucuro, Alessandro A Espiritualidade à Luz da Academia: Ideias e Reflexões Boletim Academia Paulista de Psicologia, vol. 80, núm. 1, enero-junio, 2011, pp. 17-39 Academia Paulista de Psicologia São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=94622747004 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Boletim Academia Paulista de Psicologia

ISSN: 1415-711X

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Academia Paulista de Psicologia

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Hideki Shimabucuro, Alessandro

A Espiritualidade à Luz da Academia: Ideias e Reflexões

Boletim Academia Paulista de Psicologia, vol. 80, núm. 1, enero-junio, 2011, pp. 17-39

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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• A Espiritualidade à Luz da Academia: Ideias e ReflexõesSpirituality in the Light of the Academy: Ideas and Reflections

Alessandro Hideki Shimabucuro1

Universidade de São Paulo

Resumo: Apresentamos, revisada e atualizada, parte de uma investigação que realizamospara a pesquisa de nosso Mestrado em 2010. Dentre outros pontos, há um levantamentode definições, posturas e aplicações que o termo Espiritualidade apresenta à luz dosdebates acadêmicos contemporâneos, sobretudo no contexto brasileiro. Passando pelavisão das principais tradições religiosas, buscando conceitos em cursos da Psicologia,chegamos aos debates atuais. Verificamos que não há um consenso entre os acadêmicose pesquisadores consultados, quanto à definição conceitual para este termo. Existe,entretanto, uma tendência de distanciamento do espiritual em relação às ideias de religiãoe religiosidade, pois a Espiritualidade nem sempre está ligada a uma religião específica,em sentido dogmático. A busca de sentido profundo para a vida foi correlacionada aotermo Espiritualidade, sendo que esta busca pode ou não envolver uma dimensãotranscendente. Verificamos que as áreas de saúde, física e psicológica, são aquelasonde a Espiritualidade encontra ampla aplicação prática, voltada para a Qualidade deVida e Coping (confronto). Longe de apresentar uma categorização definitiva, o presentelevantamento pretende contribuir para o diálogo acadêmico atual referente à Espiritualidade,em um momento onde o quadro geral encontrado é preliminar e tateante, mas tambémotimista e profícuo.

Palavras-chave: espiritualidade, qualidade de vida, saúde mental.

Abstract: We present, revised and updated, part of a study that we conducted for ourresearch of Master’s degree (2010). Among other points, there is a survey of definitions,postures and applications that the term Spirituality presents in the light of the contemporaryacademic debates, particularly in the Brazilian context. By the point of view of the mainreligious traditions, seeking concepts in schools of psychology, we came to the currentdebates. We verified that there is not a consensus between the academics and consultedresearchers, as for the conceptual definition for this term. There is, however, a tendency ofestrangement from the spiritual in relation to the ideas of religion and religiosity, becauseSpirituality is not always linked to a specific religion, in the dogmatic sense. The searchfor deeper meaning to life was correlated to the term Spirituality, and this search may ornot involve a transcendent dimension. We verified that the areas of physical andpsychological Health are those where the spirituality finds wide practical application, focusedon the Quality of Life and Coping. Far from presenting a definitive categorization, thepresent survey aims to contribute to the academic dialogue concerning the current spirituality,in a time where the general picture found is preliminary and groping, but also optimist andproductive.

Keywords: spirituality, quality of life, mental health.

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1 Psicólogo, Doutorando em Psicologia Social (USP), Especialista em Psicologia Transpessoale participante do Inter-Psi. Contato: Rua Nossa Senhora da Saúde, 287, ap. 76, bl.1, Jardim daSaúde, São Paulo, SP – Brasil - CEP 04159-000. Tel.: (11) 9944-8005. E-mail:[email protected]

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1. IntroduçãoNo início de uma investigação acadêmica, quase sempre se busca por

uma definição do conceito ou conjunto de conceitos envolvidos ao tema emestudo. Este procedimento tem a função de lançar uma base a partir da qual sepossa caminhar, mas também, ao lançar seu olhar para o passado, encontra alios elos que conduziram ao estado de arte presente na atualidade. Esta funçãoretrocognitiva da investigação acadêmica, em alguns casos, nos conduz paraesferas e territórios que vão além dos limites da ciência considerada em questão.No caso da espiritualidade vista à luz da Academia, tal investigação remota nosleva, diretamente, à esfera das Religiões, trazendo-nos à memória certaquantidade de faíscas oriundas do embate, por vezes bélico, deste territórioreligioso contra o empreendimento científico (e vice-versa). Apesar de o temaCiência e Religião serem relevantes, dele aqui não falaremos. Mas, buscandopor definições remotas da palavra espiritualidade para então, num segundomomento, enquadrá-la dentro da investigação científica e psicológica aquirevisada, inevitavelmente nos deparamos com as Religiões humanas e, comelas, a presença velada ou explícita da relação do ser humano com algumaentidade transcendental superior.

Nesta busca identificaremos, neste primeiro momento, qual é oentendimento que pode ser retirado a partir de uma consulta a alguns dicionáriose enciclopédias disponíveis ao público em geral. Assim, partiremos de umentendimento mais geral para um foco mais específico, isto é, a investigaçãoacadêmica. Isto pode ser útil para que tenhamos uma ideia do modo pelo qual opúblico não acadêmico representa os sentidos e significados do termoespiritualidade, dado que nem sempre os artigos e as investigações acadêmicasganham visibilidade para além dos muros da Academia.

Espiritualidade, em latim spiritalitas, é traduzida por Imaterialidade (Torrinha,1942). Segundo o mesmo dicionário latino-português, o termo deriva do vocábulospiritus, que significa 1. Sopro; vento; hálito; exalação; respiração. 2. O ar. 3.Aspiração; espírito. 4. Sopro divino; espírito divino; inspiração, o Espírito Santo.5. Espírito, alma; sentimento; ira, cólera; grandeza da alma; coragem (Torrinha,1942, p. 813). Semelhante definição encontramos no Dicionário EtimológicoProsódico da Língua Portuguesa (Bueno, 1965), onde espiritualidade também édefinida como Imaterialidade e espírito como Alma, princípio imortal do serhumano. Lat. Spiritus, propriamente, sopro, hálito. Fig. Pode ser inteligência,temperamento, disposição natural, essência de um sistema e outros (v.3, p.1287).

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Houaiss, 2001) traz definiçõesmais religiosas para os termos espiritualidade e espírito, em comparação com oDicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986). No Houaiss,espiritualidade é entendida como 1. Qualidade do que é espiritual 2. característicaou qualidade do que tem ou revela intensa atividade religiosa ou mística;

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religiosidade, misticismo 3. tudo o que tem por objeto a vida espiritual 4. elevação,transcendência, sublimidade (p.1234) e Espírito como 1. A parte imaterial do serhumano; alma 2. alma, parte imortal 3. para o espiritismo, a alma da pessoa queviveu na Terra ou em outros mundos, fora do seu envoltório material 4. o sersupremo, Deus (p.1233). Mas ambos os dicionários, para o termo espírito,também estabelecem equivalência com pensamento ou inteligência: 8. Faculdadede entender, de conhecer, de aceitar as coisas: homem de espírito aberto(Ferreira, 1986, p. 706). 9. mente, pensamento, cabeça 10. inteligência ou pessoainteligente (Houaiss, 2001, p. 1233).

Portanto, neste breve sobrevoo etimológico, tanto a palavra espiritualidadequanto seu termo de origem, espírito, fazem referência a algo imaterial, aéreo,imortal, um sopro, que podem ser tanto entendidos como transcendentais comotambém relativos à vida mental, do entendimento, da inteligência.

Este sentido transcendental aparece, de forma muito mais contundente,na definição de Espiritualismo, vocábulo mais próximo à espiritualidadeencontrado nas Enciclopédias por nós consultadas (Houaiss, 1990; Garschagen,2005; Nault, 1987). Trazemos abaixo, na íntegra, uma definição desta crençafilosófico-religiosa, por resumir a concepção das outras fontes de nossa consulta.Segundo a Enciclopédia Britânica do Brasil (Houaiss, 1990):

Definição: Denominação genérica de doutrinas filosóficas segundo asquais a realidade é constituída, em sua essência, pelo espírito, seja esteentendido por substância psíquica, pensamento puro, consciênciauniversal, liberdade ou vontade absoluta, ou Deus pessoal. Do ponto devista espiritualista, o espírito é a realidade primordial, o bem supremo,fonte de todos os valores, centro de unificação das consciências finitas etranscendente aos fenômenos físicos da natureza material, que ficareduzida à aparência sensível ou manifestação extensa da substânciaimaterial, infinita. Nesse sentido, podem ser considerados espiritualistaso neoplatônico Plotino e os racionalistas Malebranche, Leibniz etc. (p.4176)

Neste mapeamento preliminar, pautado em conhecimentos não específicos,resulta um paralelo entre a palavra espírito (bem como seus derivados,espiritualidade e espiritualismo) com uma ideia de imaterialidade que reside tantona acepção intelectual como processo mental inteligente, quanto no sentidoreligioso, atrelado a uma causa fundamental transcendental para a existênciado mundo e de seus seres. Mas será que a Academia, amparada em um projetocujo foco privilegia e visa a investigação metodológica científica atestapositivamente este conjunto de afirmações, num primeiro momento, puramentedogmáticas? O que nos dirá a respeito? Ainda sobrevoando territórios adjacentes

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ao núcleo escolhido de nossa problemática, isto é, antes de, realmente, adentrarnos domínios da investigação propriamente científica, resta-nos ainda, por forçade honestidade intelectual, indagar pela resposta da Religião a esta pergunta: oque pode ser entendido por espiritualidade?

1.1 Através dos Territórios da ReligiãoDeixaremos o debate em relação aos significados correntes dos termos

religião e religiosidade para a seção seguinte. Mas, por ora, consideremos religiãocomo um sistema fechado de crenças, dogmas e explicações que ao mesmotempo fornecem sentido para os fatos (tanto dolorosos quanto felizes) da vidade uma pessoa e asseguram, também, um direcionamento teleológico específicopara o fim da vida do indivíduo, geralmente afirmando a existência de um estado-de-ser situado para além dos portões da morte. Tal definição é constatada emdiversos estudos que citaremos logo a seguir (Ancona-Lopez, 1999; Peres, 2004;Paiva, 2005; Safra, 2005; Valle, 2005).

Existem, certamente, importantes e profundas implicações psicossociaisreferentes ao papel da religião na vida psíquica de seus adeptos. Questões comoidentidades sociais, crenças, experiências, valores e atitudes, dinâmica eenquadramento grupal etc. Não nos aprofundaremos aqui a este respeito, masaos interessados por esta perspectiva, indicamos alguns trabalhos que o fizeram(Zangari, 2003; Maraldi, 2008)

Indagando pela espiritualidade junto às religiões, descobrimos que,fundamentalmente, o espiritual cumpre a função de despertar, no ser humano,aquele sentimento que Jung, lembrando Otto (1923/1992), denominou denuminoso: designa o inexprimível, misterioso, tremendo, o “totalmente outro”,propriedades que possibilitam a experiência imediata do divino (Jung, 1961/2001,p.357). Este encontro direto da unidade humana com o Mysterium Tremendume que caracterizaria, na essência, a intenção das religiões é entendida comoexperiência mística por James (1902/1995). Nesse entendimento, admitimos aexistência de uma dimensão transcendental da existência e mais, a possibilidadede o ser humano entrar em contato com ela, através de diversos meios.

Nos exemplos que seguem, consideramos as três grandes religiõesmonoteístas da atualidade, as chamadas religiões abraâmicas (judaísmo,cristianismo e islamismo), o hinduísmo e o budismo do extremo oriente e atradição ancestral brasileira dos Tupi-Guarani. Numa época onde a intolerânciareligiosa ainda vigora como força poderosa de destruição e separação, é nossaopinião que o estudo comparado das diversas religiões pode ajudar a nos revelaro que todas elas possuem em comum, ao mesmo tempo evidenciando a ricadiversidade cultural e histórica da qual derivam.

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Nestes termos, nos pautamos nos estudos da tradição filosófica chamadade perenialista, cujos principais expoentes são René Guénon, Fritjof Schuon eAnanda Coomaraswamy. A proposta, entretanto, é muito mais realizar umafilosofia da religião do que um estudo propriamente religioso.

A perspectiva perenialista defende uma tese que é certamente polêmica: ada identidade transcendente, espiritual, interior, metafísica das diversas tradições,por trás da quase infinita variedade de suas formas, de culto, dogma, moralidadeetc (Azevedo, 2005, p. 63). Em outras palavras, afirma existir uma unidadetranscendental para além da diversidade dogmática das diversas religiões, masao mesmo tempo considera importante que tal diversidade exista, pois cadauma dessas religiões surgiu num contexto histórico-cultural específico e falapara diferentes pessoas situadas em tessituras psíquicas também específicas.

Esta unidade transcendente encontraria expressão, no ser humano, atravésdo sentimento do numinoso citado anteriormente, cuja realização seria entãochamada de experiência mística. Tal experiência figuraria no centro das principaisreligiões organizadas, ainda que, com o tempo, tenha sido substituída por dogmase rituais mecânicos. A espiritualidade seria então equivalente, nas religiões, àexperiência do numinoso bem como às suas consequências no plano da condutaética.

Encontramos então duas correntes importantes em cada uma dasprincipais religiões: uma vertente exotérica, dedicada aos ritos e dogmasmecânicos, geralmente abrangendo um número maior de adeptos e uma outravertente, menos popular e mais recôndita, chamada de esotérica, cujo centrogiraria em torno da experiência do numinoso. Interessante lembrar que estestermos eram utilizados por Aristóteles para designar, no plano exotérico, o públicode maneira geral e no plano esotérico, aqueles já familiarizados com sua filosofiae seus conceitos e que poderiam, então, se aprofundar no ensino para além daslições introdutórias.

Esta vertente esotérica, recôndita e menos popular é expressa, nasdiversas religiões principais, como o caminho dos místicos.

Místico, cuja origem etimológica vem do grego mystikós, significamisterioso, o que está oculto; refere-se, como descreve Elisa Dieste (1998),à experiência espiritual que está presente em todas as religiões, sejamocidentais ou orientais: nos Upanishads dos hindus, no Sufismo islâmico,na Cabala judaica, na forma primitiva do budismo, no taoísmo e nomisticismo cristão (Aufranc, 2004, p.20)

Ainda que a palavra esteja um tanto desgastada no entendimento atual,poderíamos dizer que a espiritualidade, no enquadramento místico das religiões,

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diz respeito à experiência direta do sagrado (Mysterium Tremendum, no dizerde Otto, 1992). Claro, como psicólogos e demais cientistas, é importante mantervivo, no horizonte de nossas análises, o princípio da Falseabilidade de Popper,mas consideramos plausível, num primeiro momento, compreender a proposiçãoreligiosa mística a partir de seu próprio entendimento, para somente então, falseá-la com propriedade. De fato, poderíamos argumentar que nem todas as religiõesexistentes possuem esta vertente mística. Mas, pelo menos naquelas aquiconsideradas, ela existe.

A Cabala, propriamente, expressa a vertente mística do Judaísmo. Emhebraico, qabbalah significa tradição e seu sentido esotérico foi estabelecido noséculo XII na Provença, passando a partir daí a designar de maneira geral asformas místicas dessa religião. O que define esse esoterismo é sua transmissãoa um pequeno número de iniciados e por tratar dos temas mais recônditos eessenciais (Funari, 2009, p.1). Poderíamos aqui indagar: mas quem define aspessoas que são iniciadas? Depende de uma imposição institucional ou seriauma espécie de vocação natural? São perguntas pertinentes, embora não façamparte do escopo deste texto. Scholem (1960/2004), estudioso do misticismojudaico, cita a presença, nesta tradição, do nistar, o “santo oculto”, místico cujasatividades no mundo são realizadas em total anonimato, dado que a exposiçãopública constituiria empecilho às suas obras. Sua definição do místico fazreferência a uma experiência espiritual profunda: Um místico é um homem quefoi favorecido por uma experiência imediata e, para ele, real, do divino, da realidadeúltima, ou que pelo menos se esforça para conseguir uma tal experiência (p.12).

O Cristianismo, com suas dezenas de subdivisões e escolas internas,possui dentre estas uma espiritualidade que pode ser designada como sapiencialou gnóstica. Nesta linhagem, encontramos místicos tais como Mestre Eckhart,Ângelo Silésio e Jacob Boehme. O próprio São Paulo, na Epístola aos Romanos,refere-se à gnose como conhecimento de Deus (gnôsis tou Theou) (Azevedo,2005, p. 140). Um dos fundamentos dessa espécie de espiritualidade é oensinamento de Cristo “O Reino dos Céus está dentro de Vós”, referindo-se àpossibilidade da experiência mística, do contato direto do ser humano com onuminoso. Outro exemplo, mais conhecido, é o da mística espanhola Teresad´Ávila, que elaborou uma série de exercícios espirituais, sob a forma de oraçõesgraduais, até o ponto de culminância onde a alma encontra-se com o “Rei dasMoradas”, na câmara principal e central do “Castelo Interior”. Uma descriçãopormenorizada desses graus de oração pode ser encontrada em Safra (2004).São João da Cruz, São Francisco de Assis, São Bernardo de Claraval, SantoInácio de Loyola e até mesmo Edith Stein (então aluna do fenomenólogo EdmundHusserl) são também exemplos do corpo místico do cristianismo.

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O Islamismo, frequentemente associado ao terrorismo e aos homens-bombas, em seu núcleo espiritual místico, entretanto, não possui tais qualidadesbélicas. O Sufismo, vertente esotérica do islamismo, não constitui atividadeobrigatória e nem vai contra os aspectos exotéricos e institucionais do Islã(Sharî´ah, a Lei Islâmica). Tem como fundamento as tarîqas, confrarias espirituaisdatadas da Idade Média, cuja escola mais conhecida é a dos dervichesrodopiantes, fundada pelo místico e poeta sufi Jalal ad-Din Rumi (1207-1273).Assim, o adepto do sufismo afirma que:

além de realizar o que é obrigatório para todos (jejum, preces diárias eperegrinação, por exemplo) realiza também práticas não obrigatórias, comoo dhikr (invocação do Nome Divino), khalwa (retiro espiritual) e as litaniase danças típicas de algumas turuq (ordens místicas) (Azevedo, 2005,p.153)

No hinduísmo oriental, o praticante espiritual, ou yogue, através de umasérie de exercícios baseados em práticas meditativas, busca atingir a experiênciade Samadhi (êxtase). No Ocidente atual, Yoga é sinônimo de ginástica eelasticidade física. Entretanto, na tradição milenar, o sistema yoguico foidesenvolvido com o intuito de conceder ao ser humano sua liberdade interior(kaivalya), com a consequente aquisição da paz, da felicidade e da bem-aventurança (ananda) (Danucalov & Simões, 2009, p.197). Possui diversasescolas e subdivisões, em sua maioria baseadas nos Vedas, escritos antigoscom cerca de 3.500 a 5.000 anos de existência. Yoga Sutras, de Patânjali, sãoescritos considerados fundamentais para os praticantes do Yoga, sendo queexistem algumas obras dedicadas ao estudo de seus aforismos (Gulmini, 2002;Taimni, 1986/2006). A dimensão do numinoso residiria no contato da almaindividual (atman) com a dimensão absoluta (brahman), ao longo do processode meditação, visando à libertação.

O Budismo, que também nasceu na Índia (cerca de 500 a.C.), apresentadiversas ramificações e escolas, por exemplo, o theravada (ou budismo antigo),e as escolas mahayana (grande veículo). Irradiou-se da Índia para a China, Japão,Tibet, Coreia, Mongólia, Nepal e até mesmo para a Pérsia (Skilton, 1994/2000).Das escolas Mahayana, a mais conhecida no Ocidente é o Zen japonês (emchinês ch´an e em sânscrito, dhyana). Pode ser entendido, simplesmente, comomeditação profunda (que difere de letargia mental). Aliás, sua prática estáconcentrada justamente na atividade da meditação. Visa à libertação, satori,samadhi. Apesar do Budismo possuir certas confabulações metafísicas, não seincentiva esse tipo de debate e nem se fala num deus transcendental. Mas aexperiência de atenção plena proveniente das práticas meditativas é expressa,sobretudo, através de atos e ações éticas e fundamentalmente práticas, focando

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a felicidade de todos os seres, a compaixão mútua e a atenção em todas asatividades realizadas no dia a dia. A prática das seis paramitas (virtudes daqueleque “atingiu a outra margem”) constitui o voto do bodhisattva (o que busca ailuminação própria e alheia) no Mahayana: generosidade, moralidade, paciência,diligência, concentração e sabedoria (Yün, 2002/2005). Buda, em sânscrito epáli, significa “o desperto”.

Já na tradição ancestral brasileira, encontramos uma relação direta do serhumano com entidades e deuses encarnados, sobretudo, na natureza, nosanimais, nas plantas. Aquele que será o chefe espiritual da tribo, o pajé, depoisde passar por determinadas experiências, geralmente governadas pelos espíritosancestrais (e sobreviver a elas), retorna à tribo dotado de poderes de cura, visõese capacidade de entrar em contato com o “outro mundo”. Nas tradições Tupi-Guarani, o numinoso é chamado de O Grande Som Primeiro, Tupã Tenondé,expressão desdobrada das palavras tu (“som”), pan (sufixo indicador detotalidade), tenondé (“primeiro, início”) (Werá, 2001, p.33). A música, o som, éimportante para a tradição Tupi-Guarani, sendo que o colibri é seu grande símbolosagrado, aquele que “vê a totalidade a partir dos mundos sutis do espírito” (p.35).Outro termo utilizado para o numinoso é Ñande Ru Tenondé, Nosso Pai Primeiro.Para essa tradição religioso-cultural, a essência de Tupã Tenondé é Ñamandu,o Imanifestado tecido de vazio e silêncio, que são, na visão ancestral, a expressãomáxima do grande Mistério criador das coisas vivas (p.34). Portanto, do silênciosurgiu o som primeiro e com ele, todas as coisas.

Fica evidente que as tradições religiosas, ao menos em seu núcleoespiritual, guardam relação com alguma forma de sentimento do sagrado, donuminoso, sendo que desenvolveram práticas específicas para obter essasexperiências: as práticas místicas. Entretanto, do ponto de vista científico eacadêmico, não podemos partir das suposições religiosas metafísicas paraembasar proposições epistemológicas válidas. Como a Ciência, sem se misturarà Religião, poderia emitir algum juízo a respeito de realidades transcendentais?Afinal, a espiritualidade humana necessita afirmar a existência ontológica de taisdomínios? A seguir, veremos o que a Psicologia tem a nos dizer.

2. Teorias PsicológicasPossuindo como proposta inicial o estudo da consciência humana, a

Psicologia dos antigos experimentalistas alemães do século XIX, juntamentecom o aparecimento, através de Wundt, do primeiro laboratório de Psicologia nomundo, utilizou-se primeiramente de técnicas introspectivas para análise dessaconsciência. Entretanto, devido a questionamentos desse método e às exigênciasde semelhança da Psicologia com o estudo realizado por outras ciências naturais,Watson preferiu deixar de lado esse método de estudo e realizar uma ciência

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sem consciência, ainda que mesmo o Behaviorismo tenha algo a dizer a respeitodo assunto (Engelmann & Ades, 1997).

Se o assunto da consciência é ainda controverso dentro do próprio contextoda Psicologia, o que dizer então de uma espiritualidade que, frequentemente,como atestam as religiões, alude a fatos e finalidades metafísicas? Afinal, o quea Psicologia tem a nos dizer sobre isso?

A este respeito, citaremos aqui algumas escolas psicológicas que tocam,direta ou indiretamente, no tema da espiritualidade. Sobretudo, faremos referênciaà Psicologia Positiva, Psicologia Humanista e Transpessoal e Psicossíntese. Éinteressante ressaltar que o estudo sistemático dessas escolas e movimentosda Psicologia não é realizado, ainda, em grande escala nas Universidadesbrasileiras, a exemplo da Psicanálise ou Análise do Comportamento. Cabe aquiindagar os motivos desse fato, ainda que tal análise fuja de nossa finalidadepara este texto.

É importante mencionar, entretanto, que a Psicologia Analítica de Jungpermite certo diálogo e estudo da espiritualidade humana. No volume 22 (2004),a Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica dedicou o número inteiroao tema da Espiritualidade, reunindo artigos de pesquisadores e professoressobre este tema, pelo viés da Teoria Junguiana. Por exemplo, Aufranc (2004)comenta que a posição de Freud a respeito da religião não era muito positiva. Areligião, para Freud, é a neurose obsessiva da humanidade e as doutrinasreligiosas seriam relíquias neuróticas (p.17). Comenta ainda que, para o pensadorvienense, as religiões seriam estágios a serem ultrapassados na história dacultura. Já para Jung, as religiões expressariam motivos arquetípicos importantes,sendo que o papel da função transcendente (união dos opostos, corpo-espírito)seria fundamental. O Self (o arquétipo central) teria então duas dimensões: umaimanente, que se expressa como imagem arquetípica através de símbolos datotalidade, como a mandala (p.19) e, como essência arquetípica, uma facetatranscendente, relacionada ao campo do indizível, das vivências místicas, dointraduzível, do sagrado, do princípio vivo em todas as religiões, do numinoso(p.20). Para Aufranc (2004), toda religião está originalmente baseada numaprofunda vivência mística que procurou sua tradução por intermédio de dogmase rituais (p.20). A vivência mística, além disso, também poderia abrir caminhopara experiências extrassensoriais:

Podemos entender que essas capacidades extrassensoriais surjamquando a consciência se abre para a vivência do todo, para além daspercepções conscientes sensoriais, uma vez que a separação entre duasentidades no espaço é uma ilusão, bem como a separação entre doisacontecimentos no tempo também é uma ilusão (Aufranc, 2004, p.20).

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Não nos cabe aqui, neste momento, corroborar ou não com a posiçãoderivada dos estudos junguianos a esse respeito. Por ora, é suficiente evidenciarque, a partir da Psicologia Analítica, é possível um debate sobre o tema daespiritualidade.

Também a Psicologia Positiva, que reúne crescente número deinteressados e acadêmicos-pesquisadores (Pérez-Ramos, J., 2006), possibilitaum diálogo com a espiritualidade, mas não referindo-se às supostas dimensõesmetafísicas e sim valorizando e evidenciando a importância, na Psicologia, doestudo dos valores positivos do ser humano, em contraposição ao “modelomédico” que tende a valorizar apenas as patologias e “aquilo que deu errado”.Sua proposta é considerar não apenas as patologias, mas também as virtudeshumanas, traçando assim uma imagem mais equilibrada no estudo do serhumano e sua psicologia. Segundo a Psicologia Positiva,

A Psicologia não se limita apenas ao estudo, interpretação e superaçãodas patologias, deficiências e transtornos comportamentais, mas sim auma fusão desses aspectos com os que caracterizam as virtudes, o vigore as potencialidades. Portanto, a intervenção psicológica não deve limitar-se a “consertar” o que “está errado” no indivíduo, mas também deveestimular e motivar o que é suscetível de ser enriquecido (Pérez-Ramos,J. & Pérez-Ramos, A.M.Q., 2004, p.59)

Dentre as virtudes e valores suscetíveis de serem enriquecidos, encontram-se aqueles referentes à transcendência: gratidão, esperança, humor ereligiosidade (no sentido de valores de significado) (Pérez-Ramos, J. 2006). Nestesentido, podemos situar a espiritualidade humana como promotora desses valorese aqui ela não está atrelada a nenhum sistema religioso específico. Consideramosque a perspectiva da Psicologia Positiva tem muito a acrescentar nas análisespsicológicas correntes, incluindo as análises sociais.

A Psicologia Humanista surge no início da década de 60, nos EstadosUnidos, tendo como um de seus motivadores o psicólogo Abraham Maslow(Boccalandro, 2006). Existe uma convergência entre a Psicologia Humanista(ou Psicologia do Ser, ou ainda Psicologia dos Potenciais Humanos) e aPsicologia Positiva: uma ênfase no estudo dos aspectos positivos, valores evirtudes humanas, ao lado das considerações patológicas já existentes.Particularmente, Maslow apontava que as duas posições então dominantes naPsicologia (o Behaviorismo e a Psicanálise) não davam conta de esgotar o estudodo fenômeno humano. O Behaviorismo tendia a reduzir o ser humano aos dadosobtidos dos experimentos com animais e a Psicanálise, centrando seus estudosapenas em casos patológicos, derivava suas teorias a partir das análises deindivíduos neuróticos ou psicóticos (Parizi, 2006). Para Maslow, além de

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tendências patológicas, os seres humanos eram também dotados de um conjuntode forças dirigidas à saúde. Estabeleceu uma hierarquia das necessidadeshumanas, partindo daquelas mais básicas (fisiológicas e de segurança, porexemplo) e culminando nas metanecessidades, que seriam as virtudes, taiscomo devoção a ideais, a metas, a comportamentos inspirados por valores enecessidades de crescimento, valores éticos, estéticos, humanitários e altruístas(Saldanha, 2008, p.101). Ainda, a espiritualidade poderia ser compreendida comoum estado íntimo de bem-estar, apreciação estética da vida, em momentossignificativos denominados experiências culminantes, dentro das quais estálocalizada a experiência de êxtase. Nas experiências culminantes, valores comoa verdade, a beleza e a bondade são intensamente vivenciadas pelos indivíduos(Saldanha, 2008).

A Psicologia Transpessoal, que derivou diretamente da PsicologiaHumanista, surge também nos Estados Unidos no ano de 1969, expandindo osconceitos desta última e contando com a participação de diversos pesquisadoresacadêmicos, além de Maslow, como Stanislav Grof, Anthony Sutich, Carl Rogers,James Fadiman e Viktor Frankl (Boccalandro, 2006). Viktor Emil Frankl (1905 –1997), de origem austríaca, foi o fundador da Logoterapia, sistema psicológico eexistencial que abrange, também, o estudo da espiritualidade humana. Franklpassou por uma profunda experiência existencial ao sobreviver a campos deconcentração na época da Segunda Guerra Mundial. Dentre as experiênciasculminantes estudadas por Maslow, particularmente aquelas do tipo extáticasguardavam certa relação com as descrições de estados místicos relatados naliteratura religiosa. Uma das características importantes encontradas nestesrelatos era a alegação, por parte do místico, de uma sensação de unidade coma natureza, o mundo e o universo, por assim dizer uma expansão de suaconsciência individual para além dos limites de seu próprio ego. Ao conjuntodessas experiências, Grof (2000/2007) deu o nome de experiências holotrópicas,do grego holos = totalidade/inteireza e trepein = indo em direção a algo. Estetermo sugere que

no estado de consciência cotidiana, identificamo-nos com apenas umapequena fração de quem realmente somos. Nos estados holotrópicos,podemos transcender as fronteiras restritas do ego corporal e reivindicarnossa identidade total (p.18)

Resgatando a importância dessas vivências em tradições milenares(vivências do numinoso), a Transpessoal propõe então um estudo explícito dosdiversos níveis e estados de consciência disponíveis ao ser humano, além doestado de vigília, relacionando a espiritualidade tanto com experiências profundasjunto ao numinoso quanto com os valores a elas associados. Charles Tart é um

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estudioso e psicólogo transpessoal que, a respeito do estudo dos estadosmodificados de consciência, tem muito a nos dizer. Diversas cartografias daconsciência surgiram, todas elas sugerindo que aquilo que chamamoscomumente de “eu” de modo algum esgota todas as possibilidades humanas.Por exemplo, os modelos de De Ropp, John Lilly e Ken Wilber (Tabone, 1993)trazem mapeamentos da consciência visando a sua totalidade. Wilber,inicialmente ligado ao movimento Transpessoal, com o tempo desligou-se delee hoje proclama uma visão própria, o Modelo Integral.

Mas antes mesmo do surgimento da Psicologia Transpessoal, aPsicossíntese de Roberto Assagioli já postulava a existência, no ser humano, deum Self Transpessoal.

que relacionava o homem com os demais e com todo o universo. Segundoele [Assagioli], temos um corpo físico, um corpo emocional e um corpomental, mas não somos esses corpos. Somos o Self que ele [Assagioli]frequentemente chamava de Eu Superior ou Self Transpessoal(Boccalandro, 2006, p. 77)

A cartografia (mapeamento) da consciência de Assagioli, portanto, admitea identificação com nossos corpos físicos, emocionais e mentais, mas afirmaque tais identificações não são absolutas e que essa consciência individual estáem estreita relação com o Self Transpessoal, total. Nesse sistema, como naTranspessoal, admite-se a existência de uma dimensão espiritual genuína noser humano, não redutível a outros fatores de análise. Segundo Boccalandro(2006), Assagioli postulava que a repressão do “sublime” poderia ser tão prejudicialao desenvolvimento da psique, quanto a repressão do material psicológicoenfatizado por Freud (p.78). Assim, sem negar a importância do trabalho com osconteúdos oriundos do inconsciente pessoal, a Psicossíntese admite (e procuraauxiliar) na possibilidade da exploração de uma região (“morada do Self”) situadapara além das identificações egoicas usuais. E, em harmonia com a PsicologiaPositiva, também destaca a importância do estudo e da valorização das virtudeshumanas, ao lado da análise de suas patologias. Segundo Boccalandro (2006),a Psicossíntese já era uma Psicologia Humanista, Transpessoal e Positiva, antesmesmo da oficialização desses termos no seio da Psicologia científica.

Assim, segundo as teorias psicológicas acima mencionadas, aespiritualidade é compreendida a partir de uma dupla visão: de um lado, parte daconsideração das virtudes e dos valores positivos presentes na vida humana ede outro, admite a possibilidade da existência de certa classe de experiênciasque, no dizer de Jung, são numinosas, ou sagradas. Essas experiências,segundo alguns teóricos, sugerem que a psique humana não está restrita aocomposto consciente-inconsciente pessoal descoberto por Freud, mas que,

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dependendo das circunstâncias, pode avançar para regiões situadas além doego.

É evidente que muitas dessas afirmações e reflexões (e aqui trouxemosapenas uma pequena amostra delas) não gozam de consenso no cenárioacadêmico psicológico atual. Aliás, consenso absoluto parece não existir emnenhuma esfera do saber humano (o que é saudável, do contrário seriadogmatismo e não investigação científica). É nossa sugestão que os debatessobre a questão da consciência humana, suas limitações, suas origens edesenvolvimento levem em consideração, também, as ideias dessas escolasda Psicologia, sobretudo quando o assunto em pauta for a espiritualidade, jáque, ao menos no caso da Psicologia Transpessoal e da Psicossíntese, o assuntoé explicitamente mencionado como objeto de estudo. É possível que existamoutros movimentos e escolas da Psicologia que mencionem explicitamente oestudo da espiritualidade humana. Mas neste texto citamos apenas aqueles casosde nosso conhecimento. Uma revisão e ampliação são sempre necessárias,dado que o conhecimento humano está sempre em expansão.

Passemos agora à exposição do debate acadêmico por nós revisado paraShimabucuro (2010), que enfocou também a busca pelo significado do termoespiritualidade.

3. Um recorte acadêmicoConsiderando agora não escolas específicas da Psicologia e sim as

reflexões de diversos acadêmicos brasileiros (psicólogos, psicólogos da religiãoe psiquiatras), ainda que não tenhamos encontrado consenso em relação a umadefinição para o termo espiritualidade, por outro lado foi possível notar ummovimento de diferenciação referente aos conceitos de religião e religiosidade.

Aliás, mesmo para estes últimos, não parece existir uma definição única econsensual. Lotufo-Neto (1997), por exemplo, arrola muitas definições e sutilezaspara o entendimento da religião, segundo diversas abordagens.

Entretanto, de um modo sintético, poderíamos dizer que a religião estárelacionada aos dogmas, ritos e mitologias específicas fornecedoras designificados para o indivíduo, cumprindo muito mais uma função de formataçãopsicossocial e institucional do que permitindo uma liberdade de pensamento ebusca pessoal, por parte de seus adeptos e fiéis. Peres (2004), adotando adefinição de Koenig, entende a religião como um sistema organizado de crenças,práticas, rituais e símbolos projetados para auxiliar a proximidade do indivíduocom o sagrado e/ou transcendente (p.136). De maneira semelhante, Safra (2005)afirma que a religião seria o sistema representacional de crenças e dogmasconscientes, por meio do qual uma pessoa procura modelar sua vida e conduta,de maneira espiritual ou de modo antiespiritual (p.210). No caso, o antiespiritual

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seria representado pelo fundamentalismo gerador de terror, mortes e destruiçõesfatais. Ainda nesta linha de argumentação, tal definição pode ser correlacionadaà religião extrínseca segundo Allport, como assevera Ancona-Lopez (1999): Areligião extrínseca desempenha funções específicas na relação do sujeito como meio. Ela relaciona-se ao modo de o sujeito pertencer a uma comunidade e aopapel que desempenha nela (p.74). Em certo sentido, a religiosidade é entendidacomo os modos e procedimentos através dos quais uma pessoa sente-se partede uma determinada religião, de uma comunidade religiosa específica. Assim,religião e religiosidade guardam estreita relação mútua. A principal diferenciaçãoparece ocorrer a partir do termo espiritualidade.

“Religião” e “religiosidade” são dois conceitos antigos em psicologia dareligião. O mesmo já não se pode dizer do termo “espiritualidade” que é bastanterecente na psicologia científica (Valle, 2005, p.90-91). A dificuldade de definireste último, segundo Giovanetti (2005) ocorre porque o vocábulo tem no Ocidenteuma grande carga da tradição, isto é, ele vem contaminado e entrelaçado com osignificado de religiosidade (p.136). E ainda segundo Peres (2004), a diversidadede conceitos acerca da espiritualidade foi observada como um aspecto crucialda dificuldade para abordar o tema na psicoterapia (p.145).

Mediante tais impasses, verificamos certas tendências e movimentos nosentido de definir o termo espiritualidade. Um desses pontos já foi mencionado:seu distanciamento em relação às ideias de religião e religiosidade, sobretudoreferentes à consecução dogmática e automática de rituais e demais obrigaçõestradicionais exigidas pelas instituições religiosas. Neste sentido, a espiritualidadevai para além do que está nos dogmas das religiões tradicionais (Kovács, 2008,p.145). Tal distanciamento pode até mesmo se tornar uma ruptura: Aespiritualidade é independente do cultivo da religiosidade (Giovanetti, 2005, p.138).Assim, distanciando-se do enquadre religioso tradicional, sob que formas essaespiritualidade se expressaria no ser humano?

Basicamente, a formulação corrente para a definição do termo gira emtorno da busca de um sentido para a existência. Tal busca, entretanto, semanifestaria de duas formas distintas: num eixo horizontal-imanente (sem anecessidade de envolver dimensões transcendentais) ou num eixo vertical-transcendente (onde a busca de sentido seria também a busca do sagrado comabertura para a transcendência). O eixo horizontal-imanente constituiria, porexemplo, um tipo de espiritualidade ateia (Safra, 2005; Valle, 2005). Neste sentido,a busca de significado para a vida teria proporções existenciais: Daí se poderfalar em experiência espiritual enquanto movimento e busca do sentido radicalque habita a realidade (Teixeira, 2005, p.15). Sem a necessidade de “apelar”para o metafísico. A espiritualidade é algo encarnado no contexto real da vida decada pessoa e de cada época. Ela expressa o sentido profundo do que se é e sevive de fato. (Valle, 2005, p. 101). A formulação de Allport em relação à religião

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intrínseca alude a este sentido, pois ela diz respeito ao modo como o sujeitorelaciona-se com ele mesmo: como vive as crenças das quais se apropriou,como lida com as questões existenciais, valores e significados de sua vida.(Ancona-Lopez, 1999, p. 74). Batson & Ventis (1987) ampliaram a formulaçãode Allport e propuseram a definição da religião nos seguintes termos:

A religião busca uma abordagem que envolve o enfrentar das questõesexistenciais em toda a sua complexidade, resistindo às respostas simplese concretas. A religião busca, segundo Batson & Ventis (1982) seria umtipo de religião mais madura, cética em relação às crenças ortodoxastradicionais e suas respostas, é aberta à sensação de incompletude e anovas tentativas (Lotufo-Neto, 1997, p.20)

Ainda que os autores acima citados usem o termo religião, é claro que nãose referem aos sistemas de crenças tradicionais das religiões. Tal buscahorizontal-imanente, entretanto, em alguns casos pode também se manifestarcomo uma abertura/busca horizontal para o transcendente. Assim, segundo Peres(2004), a espiritualidade é vista como uma busca pessoal de respostas sobre osignificado da vida e o relacionamento com o sagrado e/ou transcendente.Igualmente, Kovács (2008) inclui essa dimensão na espiritualidade. Para a autora,ela também envolve a tentativa de compreensão de uma força superior relacionadaà possibilidade de o ser humano viver um sentido de transcendência que estarialigada a uma compreensão do sentido da vida (p.145). Também para Safra (2005)a transcendência, movimento espiritual no homem, às vezes resolve-se pormeio de um fim concebido sem religião (...) Denomino espiritualidade o sair desi em direção a um sentido último e o sustentar a transcendência ontológica doindivíduo (p.210). O psicólogo da religião Pargament (citado por Valle, 2005)também se pronuncia a respeito:

Defino espiritualidade como uma busca (“quest”) do sagrado. São doisos termos aqui usados: sagrado e busca. O sagrado se refere não sóaos conceitos de Deus, poderes superiores e seres transcendentes, mastambém a outros aspectos da vida que assumem uma característica esignificado divinos devido à sua associação com ou representação dosanto (“holy”). Qualquer dimensão pode virtualmente ser percebida comosanta, digna de veneração ou reverência (p.148).

Paiva (2005), psicólogo da religião, tece interessantes reflexões sobre osurgimento de uma psicologia da espiritualidade, distinta da própria Psicologiada Religião. Afirma o pesquisador:

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parece-me legítimo concluir, em primeiro lugar, que a espiritualidade, nosentido de busca de autonomia, de construção pessoal da relação com atotalidade, de respeito à singularidade do indivíduo, de abertura e deexperimentação do novo, de recusa da rigidez, do autoritarismo e daalienação, é um bem desejável e condizente com o aprimoramentohumano. Como tal, a espiritualidade é objeto da psicologia, e pode-sefalar de psicologia da espiritualidade (p.43).

Entretanto, deixa claro que a Psicologia da Religião não deve perder osseus limites, em face dos estudos relacionados à psicologia da espiritualidade.Defendo, pois, que se mantenham em separado, do ponto de vista da definiçãoe, por consequência, do ponto de vista da prática profissional, essas duaslegítimas e necessárias psicologias. (Paiva, 2005, p. 44).

Antes de fechar e sintetizar o nosso texto resta-nos descrever, brevemente,algumas aplicações práticas oriundas das reflexões sobre a espiritualidade, agorasituada na esfera da saúde mental, mas também física, sobretudo relacionada àQualidade de Vida e Coping.

4. Saúde Mental: Qualidade de Vida e Coping

A propagação do termo e do conceito no campo da saúde, que é o campode eleição de sua utilização, chegou a ponto de o Manual diagnóstico eestatístico das desordens mentais (DSM), da edição de 1994, aceitar aexistência de problemas religiosos ou espirituais (Paiva, 2005, p.34)

Paiva refere-se ao conceito de espiritualidade. Embora não exista consensoquanto a uma definição, a aplicação da espiritualidade surge de forma maiscontundente nas áreas de saúde, sobretudo relacionada à Qualidade de Vida(QV) e Coping (confronto). O termo Saúde Mental possui definições negativas epositivas (Lotufo-Neto, 1997). Dentre as negativas, figuram: ausência de doenças(definição mais comum na esfera médico-psiquiátrica), ausência decomportamento social inadequado (correntes comportamentais) e ausência deconflitos psicológicos, ansiedade e culpa (visão psicanalítica). Dentre definiçõespositivas, encontram-se: controle, unificação e organização, mente aberta eflexibilidade, autoaceitação e autorrealização.

As definições positivas de saúde mental relacionam-se ao conceito dequalidade de vida. Paiva (2004) afirma que qualidade de vida diz respeito a umnível integrado de satisfação e bem-estar, embora seja necessário determinar ograu de satisfação e o bem-estar adequados a uma vida de qualidade (p.119).Para Panzini, Rocha, Bandeira & Fleck (2007), QV é a percepção do indivíduode sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais

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vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações(p.105-115). A relação entre espiritualidade e QV, entretanto, diz mais respeito àreligiosidade, dado que alguns estudos (citados por Paiva, 2004) apontamcorrelação positiva entre frequência semanal em cultos religiosos e menorincidência de arteriosclerose, enfisema pulmonar, cirrose hepática, tuberculose,tricomoníase, câncer cervical e bronquite crônica em relação aos não assíduos.Rocha & Fleck (2004), revisando estudos epidemiológicos, conclui que estarevisão demonstrou que frequentar cultos religiosos é um fator protetor parauma vasta gama de desfechos clínicos (p.167), incluindo hipertensão,tuberculose, suicídio, enfisema e níveis de dor relacionados ao câncer. A fé podedesencadear efeitos fortalecedores no sistema psiconeuroimunológico (Roberto,2004) e gerar bem-estar psicológico, como satisfação com a vida, felicidade,afeto positivo e moral mais elevados (Guimarães & Avezum, 2007), ainda que,em alguns casos, esteja também relacionada a efeitos negativos, tais comomedo de ir “para o inferno” e sofrer “punições divinas”.

Ainda a esse respeito, é interessante mencionar a existência doinstrumento WHOQOL-SRPB (World Health Organization Quality of Life –Spirituality, Religiosity and Personal Beliefs) elaborado pela OMS (OrganizaçãoMundial de Saúde), cujo objetivo é investigar a Qualidade de Vida através decrenças e valores relacionados à espiritualidade e religiosidade. Fleck &Skevington (2007) asseveram que

Um princípio que fundamenta o desenvolvimento do WHOQOL-SRPB é ode que, partindo da perspectiva de avaliação da QV, ter uma crençaprofunda – religiosa ou não – poderia dar um significado transcendentalà vida e às atividades do dia-a-dia, funcionando como uma estratégiapara conseguir lidar com o sofrimento humano e os dilemas existenciais(p.146-149).

O apoio da espiritualidade e da religiosidade para lidar com o sofrimentohumano e os dilemas existenciais expressa justamente o papel do copingreligioso-espiritual. Peres, Moreira-Almeida, Nasello & Koenig (2007) evidenciamque o coping religioso é de grande auxílio no combate e prevenção do Transtornodo Estresse Pós-Traumático (TEPT). O TEPT tem como origem um eventotraumático vivenciado pela pessoa em algum momento de seu passadoautobiográfico (estupro, assalto, violência, perda repentina de pessoas etc) eque pode gerar, no presente, sintomas como depressão, agorafobia, transtornosde comportamento, pânico, ansiedade extrema, automutilação, comportamentosde risco e até mesmo suicídio. Para os autores Peres e outros (2007), Moreira-Almeida, Nasello & Koenig, (2007, p.346),

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Pessoas que passaram por algum trauma forte com frequência procurampor um novo sentido, significado e propósito em suas vidas. Crenças epráticas religiosas ou espirituais são componentes importantes de quasetodas as culturas (...) O enquadramento e as práticas religiosas possuemuma forte influência no modo como as pessoas interpretam e enfrentamseus eventos traumáticos (p.4)

Como instrumento de resiliência, a espiritualidade e a religiosidade auxiliamno enfrentamento de condições dolorosas e difíceis. Aqui, a religião écompreendida como sistema organizado que fornece para seus adeptossignificados e finalidades existenciais através dos quais situam suas dificuldades,inserindo-as numa rede de significações geralmente positivas. Panzini &Bandeira (2007) apontam para resultados semelhantes nos casos dehomossexuais HIV-soropositivos, idosos hospitalizados, transplantados de rime população clínica de maneira geral.

Como acréscimo oportuno ao papel da espiritualidade na área de saúde, éinteressante citarmos um levantamento realizado por Sá & Pereira (2008) juntoà Escola de Enfermagem da USP. Os autores revisaram artigos publicados entre1950 e 1999 que faziam referência à espiritualidade e compuseram novecategorias relacionando a prática da enfermagem à espiritualidade. Em umadessas categorias, a espiritualidade aparece como parte do caráter e da moraldo indivíduo que escolhe fazer enfermagem. Em um dos artigos, o surgimentoda Escola de Enfermagem do Hospital São Paulo está relacionado a uma “missãoevangélica, cristã”, sendo que seus enfermeiros eram identificados como“apóstolos da caridade”. Um trecho extraído dessa revisão afirma que a enfermeiranão responde somente pelo que é material em sua atenção com o paciente,mas por um ser que tem vida e que sofre no seu todo: corpo, mente e espírito (p.183). Nesse contexto, a espiritualidade é sinônimo de espírito de servir. Noenquadre médico-hospitalar, outra área que guarda relação com a espiritualidadereside nos cuidados da equipe médica junto aos chamados “pacientes terminais”,ainda que este termo possa soar desumano e um tanto cruel aos ouvidos dopaciente. Kovács (2003, p.107) tece interessantes reflexões a esse respeito,sugerindo cuidado com o uso desse termo.

Os cuidados paliativos (pallium: cobrir, aliviar) possuem como intençãoprincipal oferecer conforto, calor e proteção, favorecendo uma sensação desegurança (Kovács, 2003, p.127). Aplicados naqueles pacientes onde a reversãoda doença é tida como impossível pela comunidade médica tradicional, figuraentre os cuidados paliativos a escuta dos conteúdos psicológicos e humanosque o paciente emite nesses momentos. Dentre esses assuntos, existe umapreocupação com o espiritual. Revisando estudos nessa área, Kovács (2008)relata que

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80% dos pacientes na fase terminal da vida querem conversar com o seumédico sobre temas ligados à dimensão espiritual. Esta necessidade estáprofundamente relacionada à dignidade no processo de morrer, à buscada existência plena e não apenas da sobrevivência (p. 153).

A humanização da morte é caracterizada, dentre outros fatores, pelaconsideração do fator humano nos momentos finais de existência, para alémdos túbulos, aparelhos e demais aparatos frios que geralmente cercam a pessoano leito do hospital. A escuta de suas preocupações, a proximidade da família edo calor das pessoas queridas é muito importante nesses momentos, também.E, junto com a conscientização da proximidade de sua finitude existencial, porvezes questões espirituais surgem no horizonte de reflexões dessas pessoas.Nesses termos, a humanização da morte entra no debate sobre Qualidade deVida.

5. Considerações GeraisNeste texto, não tivemos a intenção de pormenorizar cada uma das

sessões e assuntos expostos, mas realizar um levantamento incipiente, porémorganizado, das perspectivas e debates existentes que cercam o termoespiritualidade, visando ao clareamento das tendências observadas. A literaturaacadêmica consultada evidenciou que existe interesse no estudo deste tema,cujo delineamento é realizado a partir de diversas contribuições, não apenasoriundas da Psicologia, mas também de outras áreas do saber humano,constituindo um estudo interdisciplinar.

Nas quatro perspectivas abordadas (religiões tradicionais, teoriaspsicológicas, debates acadêmicos interdisciplinares e aplicações na área daSaúde), observamos a presença de dois núcleos vitais, cujas relações variaramsegundo o grau e a natureza: de um lado, a questão da existência de uma supostadimensão transcendental acessível ao ser humano e de outro, um conjunto devalores, virtudes e significados diretamente aplicáveis à vida diária. Portanto,um eixo horizontal-imanente e outro vertical-transcendente.

As religiões tradicionais, com exceção do Budismo Zen, enquadram aespiritualidade situando o ser humano mediante uma busca cujo fim visa aodesvelamento do Absoluto. A visão perenialista afirma que a experiência místicaconstitui o núcleo comum transcendental dessas tradições religiosas, sendoque seus ritos, dogmas e obrigações milenares, ainda que importantes, derivamde formatações históricas e culturais específicas. O Budismo Zen situa aespiritualidade no cultivo diário de virtudes que possam levar à felicidade eharmonia entre todos os seres.

Nas teorias psicológicas consultadas, a valorização das virtudes humanascomo complemento à visão das análises patológicas correntes constitui eixo

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fundamental da Psicologia Positiva, sendo que a espiritualidade é situada emtermos de valores como gratidão, esperança e humor. A Psicossíntese admite aexistência, no ser humano, de um Self Transpessoal, para além de nossaidentificação com o corpo, mente e sentimentos, sendo a espiritualidadevivenciada experiencialmente através da posse de valores éticos, estéticos,altruístas, humanitários. Os valores positivos aparecem, também, nasexperiências de pico consideradas pela Psicologia Humanista, sendo que, emalguns casos, podem atingir a transcendência do ego e ganhar um sentidonuminoso, sagrado. Estas experiências são objetos de estudo da PsicologiaTranspessoal.

No debate interdisciplinar, o distanciamento da espiritualidade em relaçãoaos conceitos de religião e religiosidade incluíram a busca por significado profundona vida como um valor importante neste contexto. A relação com uma dimensãotranscendente, segundo alguns autores, está presente e de acordo com outros,não é sequer necessária (“espiritualidade ateia”).

Na área da Saúde, novamente os valores e virtudes foram relacionados aotermo espiritualidade. A Qualidade de Vida e o Coping foram positivamentecorrelacionados com práticas religiosas regulares ou mesmo com a crença emalguma força superior. Fatores como cuidado, atenção às necessidadeshumanas do paciente foram valorizados no contexto médico-hospitalar eespecificamente em relação aos chamados “pacientes terminais”, a humanizaçãoda morte envolve o acolhimento de preocupações espirituais dos pacientes.

Portanto, ainda que não exista consenso quanto a uma definição para otermo espiritualidade, este levantamento identificou a presença de dois eixos naliteratura acadêmica consultada: um eixo horizontal-imanente dos valores, dasvirtudes e condutas éticas humanas e um eixo vertical-transcendente referenteao contato com alguma dimensão transcendental da existência. A presença doeixo vertical da transcendência implica na realização horizontal dos valores edas virtudes, mas o eixo horizontal não necessariamente implica o desvelamentode alguma dimensão transcendental. É este sentido, entretanto, que parececonfigurar uma boa base para uma definição de espiritualidade, teórica epraticamente considerada.

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