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REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação

DATA: 31/05/2015

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O apagão das universidades (CAMILA BRANDALISE)

Greve de professores e servidores agrava a crise na educação e mostra o descaso do governo com as instituições de ensino publico do País, já comprometidas pelo corte nos repasses

FALTA luz nas salas de aula. O número de assaltos aumentou porque seguranças foram demitidos. O lixo está entulhado depois do corte nas equipes de limpeza. Reformas estão paralisadas. O pagamento das bolsas está atrasado. Grande parte das 63 universidades federais brasileiras já enfrentou pelo menos um desses problemas algum dia. Muitas delas mantêm grandes estruturas e o dinheiro em caixa nem sempre é suficiente.

Mas em 2015 essas situações não só se tornaram recorrentes como generalizadas. No discurso, a educação é uma prioridade do governo, porém a realidade mostra o contrário. Neste ano, a verba repassada para as instituições de ensino superior que recebem dinheiro do cofre federal sofreu um corte de cerca de 30%. Segundo o Ministério da Educação (MEC), em janeiro e fevereiro foram repassados o equivalente a 1/18 do valor anual, mas a partir de março as transferências teriam sido regularizadas. A informação é negada por universidades consultadas por ISTOÉ, que afirmam estar até agora recebendo repasses reduzidos. Sem dinheiro suficiente, as administrações cortaram serviços básicos e criou-se um ambiente incompatível com o aprendizado.

A crise fica ainda mais pungente com o início da greve de servidores e professores na quinta-feira 28. Entre outras reivindicações relacionadas às suas carreiras, os profissionais exigem

normalização dos repasses do governo. Um dos pontos cruciais para o desenvolvimento do País, a universidade federal se vê hoje imersa em dívidas e chegando ao extremo de suspender aulas e cancelar contratações, comprometendo as pesquisas e uma geração de futuros profissionais. Sem perspectiva de resolução, e com o governo se recusando a assumir a responsabilidade, fica a questão: quem pagará essa conta?

Considerada a maior do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é um dos casos mais emblemáticos – e dramáticos. Com 62.240 alunos, 4.036 docentes e 9,3 mil servidores, a instituição teve de suspender aulas em alguns cursos no começo de maio porque não havia serviços de limpeza e segurança. Funcionários entraram em greve por falta de pagamento e, dias depois, a situação ficou insustentável. Para a professora do Instituto de Química Glória Braz, desde a implementação do programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), a tragédia estava anunciada. ―O número de alunos aumentou, mas a estrutura de apoio não acompanhou‖, diz.

O atraso no pagamento das bolsas-auxílio, de pesquisa, extensão e iniciação científica também deixou os estudantes apreensivos. Na segunda-feira 25 os servidores declararam greve e os alunos decidiram na quinta-feira 28 parar em apoio aos funcionários. Thainá Marinho, 19 anos, está no quinto período de Letras/Latim. ―Este ano a rotina acadêmica mudou bastante. Em relação à estrutura, os banheiros ficaram imundos, com pilhas de lixo e um cheiro forte‖, diz.

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Em relação à estrutura e ao funcionamento das instituições, há situações similares em todo o País. Na Universidade de Brasília (UnB), o repasse mensal, que deveria ser de R$ 11 milhões, caiu para R$ 7 milhões. ―Em janeiro, fevereiro e abril, a gente teria que receber um determinado valor para despesas de custeios que cobrem jardinagem, segurança, papel, luz. Recebemos um terço a menos do que o previsto. Estamos na pior situação‖, afirma César Augusto Tibúrcio, decano de planejamento e orçamento. Contas de água e luz estão atrasadas e há reformas paradas. ―Temos um valor de despesa de custeio em torno de R$ 15 milhões. Parte disso vem do governo e parte de recursos próprios, de imóveis que administramos. Mas ainda assim não é suficiente.‖

A maior crítica feita por Tibúrcio é a falta de informação por parte do governo, que só definiu a programação orçamentária na sexta-feira 22, mas até agora não se pronunciou sobre quanto será repassado às universidades. Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o atraso nos salários causou uma paralisação entre funcionários da vigilância do campus. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os fornecedores também não foram pagos. ―Os repasses do governo são feitos sem uma frequência ou data pré-estabelecida, o que ocasiona um descompasso no fluxo financeiro‖, afirma a instituição em nota.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a reitoria organizou um ato público para informar sobre os problemas gerados pelo contingenciamento de 40% nos repasses e do déficit de R$ 28 milhões referentes a 2014. Pagamentos de contas de energia elétrica e fornecedores estão comprometidos. Foram estipuladas algumas medidas para redução de custos, como corte de até 25% nos contratos de serviços terceirizados, que provoca diminuição das equipes de segurança, portaria e recepção, manutenção e limpeza. A mesma estratégia foi adotada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o diretório central dos estudantes (DCE) tem discutido o corte no orçamento.

―Seguranças foram dispensados e os assaltos aumentaram muito‖, afirma Izabella Lourença, coordenadora geral do DCE. A universidade tem mais de 30 mil alunos e dois campi principais. Outro problema da UFMG é o atraso no pagamento das bolsas-auxílio. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em um comunicado divulgado para os alunos, a entidade explica que o atraso no pagamento das bolsas se devia ao fato de o governo federal ainda não ter efetuado o repasse do orçamento. Em vez de quatro parcelas de R$ 400 por semestre, os alunos receberam só uma, sem garantia das outras três.

Foram os funcionários que puxaram a greve. Servidores de 60 universidades, segundo a Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra), aderiram oficialmente à paralisação que começou na quinta-feira 28. No mesmo dia, docentes de 18 instituições começaram a paralisação em 12 estados. Segundo Rolando Rubens Malvásio Junior, coordenador de administração e finanças da Fasubra, mais docentes devem suspender as aulas nos próximos dias. ―Sem os servidores, tudo pára: biblioteca, restaurante... Hospitais universitários funcionam somente para urgências e tratamentos continuados‖, afirma. Instituições do Mato Grosso, Sergipe, Bahia, entre outros, terão aulas paralisadas por tempo indeterminado. No Rio de Janeiro, professores da Universidade Federal Fluminense (UFF) também param. Na UFRJ, só servidores, como na UFMG, e alunos.

O MEC afirma que a greve só faz sentido quando estiverem esgotados os canais de negociação . ―O Ministério recebeu as entidades representativas de professores e servidores nas últimas semanas, mas desde o início elas já informaram ter data marcada para a greve‖, afirma, em nota. Uma das explicações para a retenção dos repasses é a necessidade de se aguardar a publicação da programação orçamentária de 2015, o que aconteceu somente na sexta-feira 22, com anúncio de corte de R$ 9,42 para a pasta da educação. Não se sabe ao certo quanto essa medida afetará as federais.

Na quarta-feira 27, foram liberados R$ 7,2 bilhões como crédito suplementar a órgãos do poder executivo e às universidades federais. Esse valor, porém, não cobre a diminuição de 30% dos repasses anteriores. Para o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), diminuir gastos com universidades é criar um apagão intelectual. ―É um enorme atraso para um momento em que queremos entrar no mundo da inovação. O futuro está no conhecimento‖, diz. Em um País onde faltam serviços básicos nos mais importantes centros de ensino e pesquisa, pensar no futuro, hoje, causa mais medo do que esperança.

CAMILA BRANDALISE é Jornalista e escreve para esta publicação. Colaborou Helena Borges. Foto: José lucena/Futura Press, LULA MARQUES; Ronildo de Jesus/ Futura Press. Revista ISTO É, Maio de 2015.

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João Angelo Fantini: “Cotas resgatam grupos excluídos historicamente” (LUCAS VASQUES)

João Angelo Fantini analisa causas e efeitos de fenômenos como racismo, xenofobia, sexismo, preconceitos e outras manifestações de intolerância, sob os aspectos das teorias psicanalíticas, com o

objetivo de desvendar quais os mecanismos responsáveis por comportamentos quase irracionais

RACISMO, xenofobia, sexismo, preconceito religioso, social ou político e outras manifestações de intolerância podem ser analisados sob diversos ângulos. Um deles, e talvez o mais fascinante, é o aspecto da Psicanálise. Que mecanismos são responsáveis por comportamentos quase irracionais e pela divulgação de verdadeiros discursos de ódio, em pleno século XXI, era da informação e do conhecimento?

Quem tenta desvendar essas questões é João Angelo Fantini, psicólogo, psicanalista e professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos, com pós-doutorado pela University of London (Birkbeck College). Ele acaba de lançar a coletânea Raízes da Intolerância, pela EdUFSCar, obra na qual psicólogos e psicanalistas brasileiros e ingleses abordam o assunto sob diferentes perspectivas.

Fantini também é professor convidado no curso de Semiótica Psicanalítica da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC), onde edita a revista Leitura Flutuante, sobre a produção de subjetividade e os sintomas na clínica psicanalítica. Suas publicações mais recentes em livro incluem: Raízes da Intolerância (EdUFSCar, 2014), Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura (Iluminuras, 2013), Imagens do Pai no Cinema: Clínica da Cultura Contemporânea (EdUFSCar, 2009), O Feitiço do Cinema

(Editora Arx/Saraiva, 2009); além de artigos em jornais e revistas acadêmicas.

O que a Psicanálise oferece para além das razões históricas para pensar a intolerância em uma fórmula inversa: nosso ódio ao outro não é fruto do fato desse outro ser “menos”, mas – pelo contrário – sustentada pela crença de que esse outro possui algo a mais

De que maneira racismo, xenofobia, sexismo, preconceito religioso, social ou político podem ser explicados sob as teorias psicanalíticas?

João Angelo Fantini: Essas formas de intolerância podem ser pensadas como subprodutos de uma reivindicação ontológica: não há sujeito sem o outro, ainda que essa afirmação diga muito sobre a separação. Nossas histórias de vida são fragmentadas pela presença do outro, onde as fronteiras eu-outro são sempre frágeis. Toda forma de exclusão para a Psicanálise (e aqui me refiro a Sigmund Freud e Jacques Lacan, especialmente) pode ser pensada desde os primeiros momentos nos processos psíquicos de separação, que, ao final, resultam naquilo que nos faz diferente do outro, sejam nossos vizinhos ou nossos próprios familiares. Essa lógica que produz a diferença, e não podemos esquecer o quanto essa diferença é importante para todos nós, está na raiz dos processos que produzem a intolerância. Por essa razão, a Psicanálise está sempre atenta, não apenas aos sintomas individuais que aparecem nos consultórios, mas também aos discursos que circulam na sociedade para dar conta desse mal-estar. O que a Psicanálise oferece para além das razões históricas para pensar a intolerância em uma fórmula inversa: nosso ódio ao outro não é fruto do fato desse outro ser ―menos‖, mas – pelo contrário – sustentada pela crença de que esse outro possui algo a mais. Um exemplo triste, que não deveríamos esquecer, é o racismo. Quando se estudam as execuções da Ku Klux Klan, nos Estados Unidos, se descobre que a maioria era justificada como ―crimes de natureza sexual‖, isto é, a crença amplamente compartilhada da suposta ―superpotência sexual‖ dos negros reflexivamente propiciou que os mais íntimos desejos reprimidos, sádicos e masoquistas fossem exteriorizados e projetados sobre o negro na forma de transformá-los numa ameaça sexual (lembrando que os homens eram enforcados e muitas das mulheres estupradas por esse grupo racista).

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A intolerância, de forma geral, deve ser abordada como um simples fenômeno comportamental ou tem raízes mais profundas?

Fantini: Para além do comportamento explícito, e aí me parece estão as formas mais difíceis de detectar o problema, há formas sutis que estão arraigadas de maneira profunda no psiquismo humano e que por isso são de certa forma partilhadas, sejam por grupos ou culturas. Isto é, há uma espécie de modelo de segregar o outro pronto para operar a todo momento, não apenas quanto aos estranhos, mas também aos mais próximos, esperando, apenas, por pequenos sinais que vão construindo uma forma de estranheza dirigida ao outro.

Em que medida a intolerância tem a ver com relação de poder, necessidade de dominação?

Fantini: Veja o caso da sexualidade. Há uma lógica invertida de projeções, onde a sexualidade pode ser exercida como uma forma de poder, como no machismo, por exemplo: o machista pode ser pensado como aquele que teme o avanço do poder feminino na sociedade, pois evoca nele um sentimento de insegurança. Nessa lógica reflexiva ele pode passar ao assédio sexual, passando o exercício da sexualidade a ser submetido ao poder e à dominação. Como vinha dizendo, esse processo de reconhecimento, tão importante para a construção de cada um e da sociedade como um todo, não é produzido sem tensão. Há uma lógica nesse reconhecimento que pode provocar ódio: como posso sentir que sou reconhecido, de fato, se o reconhecimento do outro é igual para todos? Quando falamos do amor romântico normalmente podemos identificar facilmente essa questão, pois para amar romanticamente alguém seria necessário excluir todos os outros, que poderiam não ficar felizes com isso (embora, claro, sempre houve práticas diferentes para contornar a questão). Quando passamos, por exemplo, ao mundo do trabalho, ser reconhecido pode implicar na prática ter uma posição de superioridade sobre os outros (normalmente indicada por dinheiro e posição de comando), que coloca essa pessoa não apenas numa relação privilegiada de poder, mas, também, como possível alvo de ódio, inveja ou mesmo admiração em relação aos demais. Quando vamos ao campo da política, esses elementos estão quase sempre exacerbados e incrementados por demandas pessoais e históricas, que, frequentemente, se confundem, resultando não apenas em dominação pura e simples dos outros, mas, às vezes, no desejo de eliminar aquele que não me reconhece.

Ainda seguindo seu raciocínio, esses processos podem ser ameaçadores em relação ao aspecto social, que é o que determina a civilização. É preciso entender isso para ajudar a evitar ou, pelo menos, minimizar conflitos originados por essas manifestações de intolerância?

Fantini: O desafio a ser enfrentado é que essa necessidade individual que funda a humanidade ganha contornos sociais, ou seja, esse processo de diferenciação pode ser elevado a formas de construção de grupos, sociedades e nações. Quando isso toma essa dimensão, a opacidade do sujeito, em relação às suas demandas narcísicas individuais, tende a ser ofuscada pela participação na massa de pessoas, resultando no processo de tomar um grupo ou sociedade como essencialmente diferente e ameaçador, o que pode implicar em ações violentas justificadas sob a garantia de defender a minha própria extinção ou a do meu grupo.

Há uma lógica invertida de projeções, onde a sexualidade pode ser exercida como uma forma de poder, como no machismo, por exemplo: o machista pode ser pensado como aquele que teme o avanço do poder feminino na

sociedade, pois evoca nele um sentimento de insegurança

Como você analisa as políticas de igualdade, especialmente em relação ao sistema de cotas observado no Brasil? As cotas são um mal necessário?

Fantini: Acredito que são um bem e que resgatam grupos historicamente excluídos, especialmente em relação ao ensino superior, mas não somente lá. O problema, a meu ver, pode aparecer na medida em que não se estabeleça um momento de retirada gradual desse processo. A razão disso não é somente a possibilidade de indignação de outros grupos não contemplados, mas uma possível perpetuação de uma percepção intolerante em relação aos grupos escolhidos para receber essas cotas. Em muitos casos que acompanhei, na minha pesquisa descrita no capítulo que escrevi, essa preocupação existe por parte das agências promotoras, isto é, que, em algum momento, essas ações sejam gradualmente diminuídas até sua extinção. Uma questão é saber se esse tempo será tolerado pelos não incluídos ou se haverá pressão de parte a parte, seja pela diminuição desse tempo ou pela extensão. Essas são questões que estão postas na agenda política, mas que ainda não atraem a maioria da população, embora eu acredite que o farão nos próximos anos. Veja o caso das cotas raciais, por exemplo. Temos um problema inicial, pois, ao contrário dos Estados Unidos e de países anglo-saxônicos de predominância protestante, raça no Brasil refere-se, principalmente, à cor da pele ou à aparência física, com um grau relativamente indeterminado de referência à ancestralidade. Isso gerou uma série de problemas, especialmente nas cotas para o ensino superior.

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Pode explicar por que acha que reservamos as emoções mais violentas e raivosas não a quem é diferente, mas às pessoas que mais nos recordam e nos ameaçam por semelhanças?

Fantini: Partindo da sua teoria do Narcisismo, Freud abordou os mecanismos de segregação existentes na cultura para explicar como humanos, vivendo em sociedades, teriam propensão à agressão uns contra os outros. Para isso, diz ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro, com pequenas diferenças que construiriam o estranhamento desse outro e a segregação nos grupos. Esse ―outro racializado‖ (isto é, estigmatizado pelas suas diferenças) funciona como uma ponte que incorpora algo percebido como ―estranho‖ ao próprio sujeito intolerante. Dito de outro modo, essa opacidade do outro só pode ser percebida como estranha, na medida em que a própria opacidade do sujeito não é colocada em jogo.

Ainda no livro, você af irma que as mais estranhas manifestações de intolerância são guardadas para pessoas estranhas, que tentam agir e fa lar como aqueles que se julgam “cidadãos natos”. Diante desse conceito, o que os casos de intolerância recentes revelam sobre o Brasil?

Fantini: O processo, que muitas vezes é cruel para o alvo da intolerância, é que quanto mais esses ―estranhos‖ tentam emular e imitar, isto é, quanto mais eles tentam ―pertencer‖ ao mundo do intolerante, mais feroz aparece a rejeição. No Brasil, temos uma relação singular em relação aos estrangeiros, não muito comum no mundo, de tentar incorporar o estrangeiro, canibalizá-lo (obrigá-lo a comer nossa comida, frequentar nossa casa etc.), pode-se até arriscar dizer que grande parte dos brasileiros parece padecer de xenofilia (amor ou estima às pessoas e coisas estrangeiras). No entanto, na medida em que o país, nos últimos anos, tem recebido estrangeiros de países mais pobres ou em guerra (penso nos bolivianos e nos haitianos), temos assistido a crescentes manifestações agressivas contra essas pessoas. O que já é mais antigo no país, entretanto, é a discriminação que funciona como uma forma de ―xenofobia interna‖, identificada, especialmente, por uma divisão forçada (porque não necessariamente geográfica) entre Sul e Norte, mais especificamente ainda manifestada contra os nordestinos, que, muitas vezes, são tratados como ―estrangeiros‖, uma forma de segregação imaginária. Esse modelo parece ter sido ampliado nas últimas décadas com a chegada de consumidores das camadas economicamente excluídas da população brasileira às universidades e ao mercado mais amplo de consumo, o que parece ter acentuado a intolerância em relação às diferenças étnicas e sociais.

Partindo da sua teoria do Narcisismo, Freud abordou os mecanismos de segregação existentes na cultura para explicar como humanos, vivendo em sociedades, teriam propensão à agressão uns contra os outros. Para isso, diz

ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro

Do ponto de vista da Psicanálise, como é possível explicar o aumento da intolerância na contemporaneidade, uma vez que nunca houve tanta informação como nos tempos atuais?

Fantini: Uma explicação que se soma às questões psíquicas pode ser encontrada no que antes (especialmente até o fim da Guerra Fria), na relevância que se chamava a ―exploração de classes‖ e que no vocabulário do multiculturalismo se transformou em ―intolerância ao outro‖, de maneira expressiva na Europa e Reino Unido, resultando em políticas públicas ao direito das minorias. O que parecia, à primeira vista, um ato de boa-fé, para muitos estudiosos parece ter sido um progressivo desparecimento da chamada classe trabalhadora (e das suas reivindicações, obviamente) substituídas por um nativismo onde liberais e populistas encontram um campo em comum. Para autores como Slavoj Zizek, essa passagem da culturalização da política para a politização da cultura representaria a derrota das soluções políticas diretas (o Welfare State, os projetos socialistas), uma forma de despolitização que tem propiciado alianças políticas cada vez mais à direita, que dão voz aos processos inconscientes da maneira mais perigosa possível, onde as questões econômicas vão sendo substituídas por questões culturais, enquanto tudo se mantém na mesma ordem política antiga de luta pelo poder. O discurso mais difundido, hoje, é de que a qualidade das relações sociais fica a cargo do sujeito, que seria de responsabilidade dele. Posto isso, qualquer ambiente minimamente persecutório (crises políticas, econômicas etc.) é suficiente para criar um difuso sentimento de ameaça para o sujeito e para o laço social, que mantêm (ao menos tenta) a coesão social. Como Freud sustentava, o mal-estar na cultura pode ser minimizado, mas não extinto definitivamente pela educação, como pensava o Iluminismo. Entender a natureza da complexidade envolvida, quando se trata de questões relativas à intolerância, tem levado muitos pesquisadores a pensar que deveríamos, além de incluir, pensar para além das circunstâncias econômicas, políticas e sociais, que justificam as paixões das nações, grupos étnicos e religiosos, classes sociais e indivíduos, e abarcar a especificidade de cada conflito – incluso –, as fantasias que cada grupo provoca no outro, com os quais tem contato e

As execuções da Ku Klux Klan eram baseadas na crença da

suposta `superpotência sexual’ dos negros, o que propiciou a

exteriorização de desejos sádicos e masoquistas

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disputa espaços políticos, ampliando o debate acerca do tema para um patamar que ultrapasse o senso comum dos posicionamentos dualistas de avaliação das práticas em andamento, para se pensar outras ações possíveis na redução dos problemas.

A mídia tem dado mais espaço ao assunto. Em relação à homossexualidade, realmente há homofobia ou as pessoas estão mais tolerantes no que se refere à opção sexual?

Fantini: A resposta a esta questão é ambígua: sim e não. Explico: sim, pois, historicamente (claro, há exceções em determinadas culturas não hegemônicas), e desde que esse comportamento passou a ser patologizado, isto é, se tornou uma ―doença‖, talvez seja possível afirmar que na história moderna nunca se aceitou tanto a homossexualidade . Há crescente aceitação, não apenas da forma de exercer a sexualidade, mas, também, uma incorporação cultural em sociedades estabelecidas e padronizadas na heterossexualidade, onde a homossexualidade era uma forma de transgressão. Assim, vemos uma progressiva aceitação, por exemplo, do casamento (no modelo tradicional heterossexual, religioso e civil) entre pessoas do mesmo sexo, com todas as implicações legais que estavam reservadas aos casais heterossexuais. O não fica por conta de que essa aproximação, isto é, quando o que antes era ―estranho‖ começa a se tornar parte do ―nós‖, há sempre a ameaça de retrocessos ou explosões de intolerância ou ainda tentativas de colocar essas pessoas numa categoria ―especial‖, mais ou menos como o estrangeiro que consegue a cidadania em um outro país, mas que nunca é considerado ―nativo‖, sofrendo sempre uma discriminação efetiva ou dissimulada. Este me parece ser o desafio a ser enfrentado. Derek Hook, um grande pesquisador dos estudos pós-coloniais, faz uma análise surpreendente no livro que serve de modelo para análises sobre a homofobia, relacionando-a ao racismo e ao machismo, para entender que tipo de fantasias estão envolvidas no homofóbico e como essas fantasias podem se conectar a outros comportamentos intolerantes.

Em sua opinião, a ascensão da nova classe média é um dos fa tores que funcionam como gatilho para um novo tipo de intolerância em relação às diferenças étnicas e sociais. Por que isso acontece?

Fantini: Embora isso também aconteça em outros países (por exemplo, entre os italianos do sul e do norte), no Brasil estamos assistindo a um progressivo aumento das manifestações de intolerância contra as camadas mais pobres da população, na medida em que estas começam a frequentar espaços antes destinados às classes economicamente mais favorecidas, como aeroportos, shopping centers ou mesmo espaços públicos, como parques e ruas. Se pensarmos que um xenófobo é alguém com problemas para aceitar que há algo que ele considera inferior na sua própria origem (e que ele tenta resolver reflexivamente no estrangeiro), junto com o que apontei como uma forma de xenofilia que parece acontecer bastante por aqui, talvez possamos entender a angústia que gera nas altas e médias classes a proximidade com uma parcela crescente da população que não entrava em tela, isto é, que existia, mas não aparecia no cotidiano de muitas pessoas. Essa população que estava excluída é, embora não na sua totalidade, não branca: no Brasil, pessoas que se declaram pardos são 43,1% da população, contra 47,7% brancos e 7,6% de negros (Censo 2010), isto é, se juntarmos pardos e negros, a população brasileira é predominante não branca. No entanto, na prática social isso é algo um tanto indefinido, pois um ―brasileiro branco‖ (mostram muitas pesquisas) é uma pessoa que ―parece branco‖ e é socialmente aceito como ―branco‖, independentemente da ascendência e, especialmente, em razão da sua situação econômica. Quando mestiços ou pardos se tornam mais ricos eles começam a ser percebidos crescentemente como ―brancos‖ por seus pares. No entanto, apenas pardos, quando ficam mais ricos, podem ―tornar-se brancos‖; aqueles com fenótipo de pele escura em relação a outros grupos raciais sempre serão percebidos como negros, não importa o quão rico eles fiquem. Isso significa que há um forte componente econômico na discriminação e até mesmo a própria percepção social de quem é ―negro― e quem não é, como é comum acontecer com jogadores, atores e atrizes famosos no Brasil.

O que já é mais antigo no país, entretanto, é a discriminação que funciona como uma forma de “xenofobia interna”, identificada, especialmente, por uma divisão forçada entre Sul e Norte, mais especificamente ainda manifestada

contra os nordestinos, que, muitas vezes, são tratados como “estrangeiros”, uma forma de segregação imaginária

Durante o último processo sucessório presidencial houve uma verdadeira explosão de intolerância nas ruas e, principalmente, nas redes sociais. Os nordestinos foram o alvo principal. Como explicar que, em

pleno século XXI , ainda exista esse tipo de manifestação?

Fantini: Esse movimento é o que chamo no livro de um processo de racialização, ou seja, características geográficas, costumes regionais ou aparência física, por exemplo, são transformados em características ―naturais‖. Isto é, são usados como justificação para difamar o outro, da forma mais espúria, construindo estereótipos, da mesma forma como encontramos, ao longo da história, a estereotipação de grupos étnicos e como assistimos nas últimas duas eleições presidenciais, especialmente. Isso pode acontecer nos tempos atuais porque nunca deixou de existir. Esse tipo de intolerância aos nordestinos existe há muito tempo no país, desde as formas mais brandas encontradas nos chistes até a discriminação na ascensão social no mundo do trabalho. Não é aceitável que continue assim, mas é um problema que podemos melhorar, não copiando as experiências de outros países onde aconteceram programas de políticas de estado que apostaram no multiculturalismo liberal, por exemplo, mas aprendendo especialmente naquilo que essas estratégias falharam.

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Eventos de massa, do tipo eleições, provocam algum fenômeno psicológico catártico, que fa vorece essas demonstrações de intolerância?

Fantini: Nossa experiência de eleição em dois turnos é um exemplo para vivenciar como progressivamente se forma uma massa amorfa, que pretende um objetivo único e passa por cima das contradições de cada indivíduo. Se atentarmos bem, até o primeiro turno, as discussões entre amigos podiam ser levadas sem muito conflito, na maioria das vezes, e podíamos até expor algo do nosso entendimento individual do que queríamos para o país e das adequações e inadequações dos candidatos a essas expectativas. A partir do segundo turno, o sujeito/eleitor é empurrado para uma fusão com o grupo e uma aniquilação de qualquer traço individual. Acredito mesmo que parte das pessoas que anula o voto ou vota em branco, não necessariamente, o faz por razões políticas, mas, talvez, por sentirem essa aniquilação de qualquer diferença individual algo insuportável. O efeito catártico de imersão no grande grupo é, como apontei, fazer parte de algo maior que a sua própria vida, participar da utopia, mesmo que por um curto período de tempo, ao mesmo tempo em que atendemos nossa necessidade pulsional de nos liberarmos provisoriamente do esforço de manter as fronteiras do que chamamos nosso Eu. Isso é bem mais do que uma característica de poucos indivíduos, como mostram desde sempre as religiões, ou, recentemente, as passeatas de junho de 2013.

As redes sociais, por dar a possibilidade de oferecer certo anonimato, podem ser um fa cilitador para divulgação desses discursos de ódio?

Fantini: Isso podemos responder, com certeza, que sim. Embora esse anonimato, hoje em dia, praticamente não exista (a não ser que você seja um hacker especialista em se esconder), o sentimento imaginário de anonimato certamente existe. Não é incomum que, às vezes, ao procurar algo nas redes nos deparemos com manifestações de intolerância, tais como blogs e páginas que atacam grupos, gêneros e etnias e que vão desde posts chistosos até manifestações abertas de ódio. Neste sentido, as redes funcionam na mesma lógica da experiência dos indivíduos na massa, oferecendo anonimato (mesmo que falso) e possibilidade de imersão e de perda de limites.

O discurso mais difundido, hoje, é de que a qualidade das relações sociais fica a cargo do sujeito, que seria de responsabilidade dele. Posto isso, qualquer ambiente minimamente persecutório é suficiente para criar um difuso

sentimento de ameaça para o sujeito e para o laço social, que mantêm a coesão social

O futebol, um dos fenômenos culturais mais importantes para o povo brasileiro, é, frequentemente, reduto de ações de intolerância, principalmente em relação à etnia e orientação sexual. O futebol é o espelho da sociedade?

Fantini: Os casos de racismo estão acontecendo semanalmente e, aparentemente, as leis não estão surtindo o efeito desejado. O caso de maior repercussão no futebol ocorreu em 2014, em Porto Alegre, e resultou em penas e prisões, ficando estigmatizado na figura de uma torcedora, embora se saiba que não foi a única. Nos estádios, o que se forma é uma multidão transitória (de espectadores), mas que pode incluir, também, grupos fixos (torcidas uniformizadas), que, não raro, promovem atos violentos. O que deixa perplexa grande parte da população é que as autoridades agem como se esses locais fossem ―espaços fora da lei‖, onde se pode manifestar toda sorte de impropérios racistas, homofóbicos, contra minorias sociais etc., sem que nada aconteça. Podemos ver essa intolerância no futebol também na própria forma de estigmatizar a torcida rival. Para usar dois exemplos, os torcedores do Corinthians são descritos pelos rivais como pobres, desonestos, malcheirosos, gambás, adjetivos, historicamente destinados, infelizmente, à população negra. De outro lado, esses mesmos torcedores corintianos descrevem os torcedores do time rival, São Paulo, como delicados, covardes, ―frutinhas‖, adjetivos comuns na estigmatização aos homossexuais. Vemos neste pequeno exemplo como a intolerância que existe fora do estádio vai, progressivamente, passando para dentro da arena. Se quisermos dizer que o que acontece nos estádios, acontece fora, acredito que não. Temos leis que têm funcionado cada vez com maior eficácia, embora não dentro dos estádios. Se quisermos justificar que o que acontece no futebol anda na cabeça das pessoas que não são torcedores, a resposta é sim. O que nunca muda é que, quando agimos em grupo, podemos extravasar nossas ―verdades‖ narcísicas mais íntimas (sou melhor que o outro, tenho origem melhor, sou mais homem etc.) de forma impune.

Freud abordou os mecanismos de segregação existentes para explicar

como humanos, vivendo em sociedades, teriam propensão à agressão uns contra

os outros

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Como funciona a psique de militantes fanáticos, como integrantes de facções como o Estado Islâmico, que provocam mortes brutais em nome de uma ideia religiosa ou política?

Fantini: Funciona da mesma maneira que a nossa. Vamos olhar para outras religiões, como o catolicismo ou o judaísmo, pois ambas insistem que são privilegiadas na sua conexão com Deus: os judeus aceitam a ―humanidade‖ de outras pessoas, embora eles (não judeus) cultuem falsos deuses, enquanto o catolicismo sempre pretendeu à universalidade (somos todos Irmãos!), menos os não católicos estariam à margem da humanidade... Se hoje as coisas andam menos tensas nessas religiões, há um passado bélico onde não faltou todo tipo de violência, do expurgo à condenação, até as guerras. O terrível atentado ocorrido na França é um exemplo de como a intolerância na religião é praticada a partir da crença de que um povo possui uma ―verdade‖ diretamente obtida de um ser supremo. Deus está sempre do ―nosso lado‖, do lado da verdade, é o que acreditam um lado e o outro dos conflitos. Como disse no início, uma forma mais revolucionária, a meu ver, de pensar a intolerância para além das razões históricas teria uma fórmula inversa do alvo da intolerância. Veja o exemplo do islamismo: é quase intolerável para um cidadão ocidental entender como alguém poderia dar a própria vida por uma causa política ou religiosa. Isso seria considerado uma forma de loucura no mundo ocidental, já que, normalmente, mantemos uma relação de cinismo com a política e a religião. Isso poderia explicar, também, por que muitos jovens ocidentais estão sendo atraídos pelo Estado Islâmico, pelo que parece ser uma forma de viver ―de verdade‖ e não cinicamente, uma busca pelo real. Do lado dos militantes poderíamos questionar: se eles têm uma crença tão inabalável, por que uma simples charge no Charlie Hebdo pôde ter tanto poder? Bem, talvez eles também (imaginariamente) acreditem que os cínicos ocidentais já têm algo que eles precisam morrer para alcançar.

Não é incomum que, às vezes, ao procurar algo nas redes sociais nos deparemos com manifestações de intolerância, tais como blogs e páginas que atacam grupos, gêneros e etnias e que vão desde posts chistosos até

manifestações abertas de ódio. Nesse sentido, as redes funcionam na mesma lógica da experiência dos indivíduos na massa

Com os eventos recentes que marcaram o maior campo de concentração alemão, surge uma questão: a humanidade não aprendeu nada sobre intolerância com os efeitos da guerra e do Holocausto?

Fantini: O Holocausto deveria ser e se esperava que fosse uma lição definitiva, mas apesar de todo o esforço de recordação desse evento, por meio da literatura, filmes etc., aparentemente não foi (como aponta o crescente número de grupos antissemitas na Europa). Em Raízes da Intolerância este é um dos pontos mais discutidos, isto é, como – a despeito do que sabemos sobre os efeitos da intolerância – podemos continuar a praticá-la e aceitar os riscos disso? Partindo de várias perspectivas, que vão da relação maternal às questões coloniais, dos processos grupais e às questões específicas do Brasil, tentamos atacar o problema, como diz o título, em sua raiz, ou seja, quais são os mecanismos psíquicos específicos que produzem a intolerância em situações diversas e onde podemos identificá- los nos outros, mas, especialmente, em nós mesmos. A intolerância deveria ser pensada como uma reação ao gozo do outro, que é percebido como intrusivo, excessivo, como algo que está afetando o gozo do intolerante. Na Alemanha, antes da Segunda Guerra, aos judeus era creditado todo o problema econômico do país, pois se o país não tinha dinheiro quem poderia estar com ele, gozando em excesso? Claro. A resposta óbvia, os judeus (sovinas, dados à usura, dissimulados e mais toda sorte de estigmatizações históricas destinadas a eles). O sujeito intolerado é alguém que – normalmente de forma imaginária – está invadindo meu espaço. Como esse ―limite‖ nunca pode ser efetivamente delimitado (minha rua, meu estado, meu país, minhas preferências sexuais etc.), o sujeito que se acha tolerante estabelece um ―limite‖ ao outro, no sentido de que tolera o estranho ―até certo limite‖. Um problema para o tolerante é que ele tem que se convencer de que é superior ao intolerado, para mantê- lo a distância. Qualquer aproximação real ou imaginária deste outro rompe o equilíbrio e reencena o processo de identificação inicial: quem sou eu? quem é o outro? Desse modo, eu diria que a questão ética não é que deveríamos ser mais tolerantes com o estranho, mas que deveríamos lidar profundamente e sem cinismo com o fato de que somos todos (pelos processos inescapáveis de diferenciação eu/não eu) intolerantes. Esse reconhecimento da limitação imposta a todos deveria abrir um espaço de sociabilidade, uma forma de solidariedade na vulnerabilidade, uma saída ética e, acredito, uma utopia a ser perseguida.

LUCAS VASQUES é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista PSIQUE, Maio de 2015.

Acolher as mães e seus filhos (ROSELY SAYÃO)

SER MÃE na atualidade não é fácil. Eu, que tive filhos nos anos 70, imaginava que, no futuro, seria mais fácil e simples o cotidiano com as crianças. Qual o quê! Cada vez há mais questões com os filhos, que exigem muito das mães - é internet, são as baladinhas e a erotização precoces, os aparelhos eletrônicos, os passeios em shoppings sem adultos etc. Tudo isso exige bastante dos pais também, mas hoje quero chamar a atenção para alguns aspectos do papel de mãe.

Muitas mulheres precisam trabalhar não apenas pela questão econômica: é também vontade de desenvolver um trabalho que, além de remuneração, ofereça a possibilidade de intervenção social com o consequente reconhecimento, é vontade de desenvolvimento intelectual ou profissional, e o desejo de autonomia em vários sentidos.

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Mesmo com tantos avanços em relação à desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, testemunhamos um retrocesso. Notícias apontam que, em 2003, a diferença de remuneração era de 6,85%, favorável ao homem; em março deste ano, a diferença saltou para 14,38%. Em síntese: a mulher precisa trabalhar mais para receber menos.

Como se não bastassem as inúmeras adversidades que a mulher encontra em seu trabalho remunerado, há mais: agora, muitas empresas preferem contratar mulheres que não tenham filhos. A restrição é tão forte que algumas já colocam em lugar de destaque em seu currículo a seguinte informação: "sem filhos".

Além disso, são raríssimas as organizações que têm um local para filhos de funcionárias ficarem em caso de emergência, ou fixo, no caso da primeira infância. Aliás, muitas empresas até proíbem que funcionárias entrem com crianças em seu espaço. É por isso que algumas poucas mulheres, que podem realizar seu trabalho remunerado fora da instituição, têm procurado "espaços de coworking": neles, elas encontram um ambiente em que é possível conciliar o exercício profissional com a maternidade.

A vida não está amigável para mães e crianças. Nem sempre foi assim: encontrar filhos, de vez em quando, em empresas já foi comum. Nem mesmo as escolas, que têm em seu quadro de funcionários um número majoritário de mulheres e têm como missão o trabalho com os mais novos, contemplam essa questão. E, por falar em escola, até em faculdades alunas que têm filhos podem sofrer por causa disso. Recentemente, uma aluna que está prestes a terminar seu curso de gestão ambiental na USP quase foi impedida de realizar uma das provas finais porque tinha tirado licença-maternidade, o que é um direito garantido por lei, por sinal.

Cada um de nós é responsável por todos os mais novos. São eles o nosso futuro, sendo ou não nossos filhos. Precisamos honrar esse nosso compromisso realizando ações que colaborem com mães e crianças. Por que não pressionamos as empresas para que tenham um local adequado para acolher crianças maiores esporadicamente, e também um ambiente para crianças pequenas, para que as mães possam vê-las com frequência? O custo desse tipo de ambiente é baixo: um adulto responsável, estante de livros, jogos, local para estudar etc. Basta isso.

Responsabilidade social está em alta nas empresas: pois acolher as mães que têm filhos nada mais é do que praticá-la. Vamos aderir a essa questão? Em tempo: essa não é uma luta restrita às mulheres!

ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.

Cartolagem bandida (AMAURI SEGALLA e ELIANE LOBATO)

Investigação do FBI escancara os esquemas de corrupção da Fifa e mostra como executivos da entidade e seus

parceiros comerciais embolsaram milhões de dólares ilícitos. Agora, o futebol tem uma oportunidade única para virar esse jogo

O empresário J. Hawilla, dono da Traffic Group, é um dos réus que se declarou culpado nos escândalos da Fifa. A colunista Gisele Vitória conseguiu, por telefone, uma entrevista exclusiva. Entenda o caso:

JOSÉ MARIA Marin, um senhor de 83 anos fanático por tintura de cabelo, colaborou com a ditadura brasileira, surrupiou uma medalha de um garoto, foi acusado de roubar energia elétrica do vizinho e mandou pendurar na fachada do prédio da CBF no Rio uma placa com o seu nome. Chuck Blazer é um nova-iorquino fanfarrão de 70 anos que conseguiu a façanha de gastar US$ 26 milhões do cartão de crédito corporativo, investindo em festas, prostitutas e artefatos decorativos africanos. José Hawilla, 71 anos, misterioso, recluso e sorumbático empresário do meio esportivo, tem medo da cor preta e não faz negócios em meses múltiplos de quatro (abril, agosto e dezembro), porque acha que eles dão azar.

Joseph Blatter, um francês baixinho e gorducho de 79 anos, foi presidente de uma certa Sociedade Mundial de Amigos da Cinta-Liga e tem o hábito de conversar com a finada mãe, que mais de uma vez lhe pediu para fazer companhia no além. Os cavalheiros citados acima parecem ter em comum, além das estranhas manias, a mesma obsessão: amealhar a maior quantidade possível de dinheiro, mesmo que, para isso, tenham que cometer uma série de crimes. Todos estão intimamente ligados à Fifa, a entidade que rege o futebol mundial.Segundo investigação do FBI, a polícia federal americana, a Fifa não só serviu de escada profissional como forneceu os elementos para que alguns deles pudessem subornar, corromper, extorquir e lavar dinheiro. Marin foi preso. Chuck e Hawilla estão livres apenas porque, na condição de informantes, revelaram como se deu a rapinagem. Blatter não foi pego – ainda.

Na quarta-feira da semana passada, o hotel Baur au Lac, em Zurique, na Suíça, onde já se hospedaram Nelson Mandela e ―pelo menos uma dezena de prêmios Nobel‖, segundo o texto da propaganda, foi palco de uma ação policial extraordinária. Doze agentes do FBI chegaram à recepção às 6h, mostraram suas credenciais para o concierge e exigiram as chaves, parecidas com cartões eletrônicos, dos quartos de sete executivos que participavam do Congresso anual da Fifa. O elegante funcionário telefonou para cada um dos aposentos e deu rápidas instruções aos hóspedes. Eles deveriam abrir a porta ao toque da campainha ou a entrada seria arrombada. Tiveram apenas o tempo de se aprontar e separar documentos. Um a um os profissionais do futebol foram escoltados até uma saída lateral, sem algemas e com uma bagagem de mão.

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A notícia das prisões se espalhou pelos corredores, ultrapassou paredes e chegou aos 120 quartos lotados pela tropa da Fifa. Um sujeito desceu as escadas até a recepção, ainda de chinelos. Queria saber se estava na lista. As mulheres dos presos exigiam informações. Um assessor sentiu-se na obrigação de reunir o grupo, mas não havia muito o que dizer. Sabia apenas que as prisões haviam sido feitas pelo FBI, e que elas se deviam a denúncias de corrupção. Uma senhora caiu no choro. Outra tentava, desesperada, fazer contato por celular.

Iniciadas há 4 anos, as investigações do FBI concluíram que os presos receberam fortunas em propinas na venda de direitos de transmissão de jogos pela tevê, nos contratos de marketing para as Copas do Mundo de 2010 e 2014 e nos acordos de patrocínio para a seleção brasileira. No mesmo dia em que as prisões foram realizadas, Loretta Lynch, secretária de Justiça dos Estados Unidos, deu uma entrevista em Nova York ao lado de diretores do FBI e da Receita Federal americana. Segundo Loretta, as autoridades da Fifa embolsaram cerca de US$ 150 milhões ilegais como parte de uma complexa rede de subornos.

―O esquema é generalizado e está profundamente enraizado numa organização que gera receitas bilionárias‖, disse Loretta. De acordo com o FBI, a corrupção se prolongou por mais de 20 anos e envolve diretores da Fifa, empresários de marketing e intermediários que se aproveitam da popularidade do futebol para enriquecer de maneira ilícita. Os agentes afirmaram que as investigações partiram de seu país porque os conspiradores recorreram ―pesadamente‖ ao sistema financeiro dos Estados Unidos para movimentar cifras astronômicas. O dinheiro do suborno teria sido depositado em contas dos bancos J.P. Morgan, Chase & Co. e Citibank, em Nova York. A incomum entrevista dos agentes americanos foi concluída com uma ameaça aos conspiradores. ―Estamos só no começo‖, afirmou Loretta.

O Brasil é o coração, o cérebro e a espinha dorsal do sistema de corrupção da entidade máxima do futebol. Se fosse preciso reconstituir a árvore genealógica das atividades ilegais, o carioca João Havelange, presidente da Fifa entre 1974 e 1998, seria o ancestral comum de todos. Ele se perenizou no poder oferecendo cargos e mimos a dirigentes de confederações. Segundo o jornalista escocês Andrew Jennings, autor de vários livros sobre os bastidores da Fifa, entre eles o best seller ―Jogo Sujo‖, Havelange articulou uma rede de corruptores que, de forma conjunta, embolsou centenas de milhões de dólares em subornos. Antes dele, a Fifa era uma entidade que apenas e tão somente organizava campeonatos de futebol.

Depois de Havelange, se tornou uma corporação multinacional que busca o lucro a qualquer preço, mesmo que sustentado por operações sorrateiras. Um caso específico foi comprovado por investigação interna feita pelo Comitê de Ética da Fifa. Havelange e seu parceiro de negócios, Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e genro do então presidente da Fifa, afanaram US$ 100 milhões em propinas. Segundo a investigação, o suborno foi pago pela empresa de marketing esportivo ISL, que promovia campeonatos de futebol na América do Sul. Quando o episódio se tornou público, Havelange afastou-se do conselho da Fifa e Teixeira abriu mão da CBF, para se exilar em Miami, nos Estados Unidos.

Ricardo Teixeira, um sujeito que chegou a declarar que não gostava de futebol, embora fosse presidente da Confederação que comanda esse esporte no Brasil, encontrou uma alma gêmea nos negócios. Trata-se de José Hawilla, que abandonou o pré-nome assim que ficou famoso (hoje em dia ele assina J. Hawilla) e dono da trajetória mais fulminante da história esportiva empresarial brasileira. Em apenas uma década, ele deixou de ser um jornalista remunerado da TV Globo, onde dirigia a área de esportes em São Paulo, para se tornar um homem rico. Hawilla agora é o principal informante do FBI para negócios relativos à roubalheira no futebol. Na semana passada, a imprensa internacional revelou que boa parte das denúncias contra a Fifa está ancorada em declarações, documentos e dados fornecidos por este paulista de 71 anos.

Hawilla, dono do Traffic Group, maior agência de marketing esportivo da América Latina, teria confessado, de acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que é culpado de extorsão e lavagem de dinheiro. Foi ele quem forneceu o fio da meada para que as investigações seguissem adiante. Segundo o FBI, o empresário relatou um primeiro episódio de corrupção no início da década de 1990.

Ele queria comprar os direitos da Copa América de seleções, mas ouviu de Nicolás Leoz, presidente da Conmebol, entidade que regula o futebol no continente sul-americano, que o negócio só seria fechado mediante o pagamento de propina. Hawilla topou e abriu as portas para os subterrâneos do futebol. A partir daí, habituou-se a pagar suborno para comprar direitos comerciais de torneios e viu suas atividades prosperarem na mesma proporção em que pagava propinas cada vez mais volumosas. Entre outros negócios, a empresa de Hawilla intermediou o contrato de US$ 160 milhões celebrado em 1996 entre a Nike a CBF para o patrocínio da seleção brasileira. Segundo a investigação conduzida pela polícia americana, a parceria rendeu, pelo menos, US$ 15 milhões em propina ao ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira. O empresário paulista, enfim, enriqueceu e ajudou outros a prosperarem nas franjas da Justiça.

Com o cerco do FBI, Hawilla resolveu falar o que sabe. Detalhou os mecanismos da corrupção, revelou os nomes dos envolvidos e expôs detalhes dos negócios assinados com a Fifa. Réu confesso, comprometeu-se a devolver US$ 151 milhões ao governo americano, dos quais US$ 25 milhões já foram ressarcidos. Na manhã da quinta-feira da semana passada, a jornalista da ISTOÉ Gisele Vitória rompeu o muro de proteção construído em torno do empresário. Numa conversa por telefone, Hawilla, direto de Miami, disse que o dinheiro entregue por ele à Justiça americana não tem a ver com seus negócios no Brasil e recusou-se a comentar a prisão de alguns de seus parceiros comerciais, como o ex-presidente da CBF José Maria Marin. ―Não existe delação‖, disse Hawilla. ―Isso é lenda da imprensa. O que houve foi uma investigação.‖

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Ao ser abordado por um agente do FBI no hotel de Zurique, José Maria Marin teve uma reação covarde. ―Mas sou apenas eu?‖, perguntou ao seu algoz. ―Cadê os outros?‖ Marin está apavorado com a possibilidade de ser extraditado da Suíça para os Estados Unidos. Se isso acontecer, corre o risco, diante do rigor da Justiça americana, de passar o resto de seus dias em uma cela. Marin, afinal, é um idoso de 83 anos. Pela legislação americana, seus crimes estão sujeitos a pena de 20 anos de reclusão. Os indícios não são nada favoráveis a ele. Segundo o FBI, o ex-presidente da CBF, que deixou o cargo em 2014, dividiu propinas recebidas pela exploração comercial da Copa do Brasil, um torneio de clubes do futebol brasileiro, com Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero, atual presidente da CBF.

As investigações da agência americana descobriram que, em uma reunião em abril, em Miami, Marin pediu à Traffic que a propina que vinha sendo compartilha com seu antecessor, Ricardo Teixeira, deveria agora ser paga a ele e a Del Nero. ―Em determinado momento, quando o coconspirador 2 perguntou se era realmente necessário continuar pagando propinas para seu antecessor na presidência da CBF, Marin afirmou: ‗Está na hora de vir na nossa direção. Verdade ou não?‘‖ diz o trecho do inquérito. O documento prossegue. ―O coconspirador 2 concordou dizendo: ‗Claro, claro, claro. Esse dinheiro tinha que ser dado a você.‘‖ Segundo os documentos do governo americano, o coconspirador 2 é J. Hawilla. Del Nero, que estava

no hotel de Zurique para participar do Congresso da Fifa, desistiu do encontro e voltou às pressas para o Brasil. Na sexta-feira 29, em entrevista no Rio, disse que não tinha conhecimento sobre a corrupção e que não irá renunciar à presidência da CBF. ―Não sou conspirador‖, afirmou.

O futebol mundial é comandado por gente extravagante. O Brasil é exemplo disso. Em 2012, Marin, achando que as tevês não iriam flagrá-lo, enfiou no bolso uma medalha que deveria ser dada, durante a cerimônia de premiação, a um jogador do Corinthians campeão da Copa São Paulo de futebol júnior. Um ano depois, um vizinho do apartamento onde morava, na capital paulista, contou que Marin fez uma ligação irregular na rede elétrica, de modo que o seu consumo de energia fosse atribuído para o sujeito do apartamento ao lado. Detalhe: Marin já era rico, não precisava de pequenos golpes na conta de luz para economizar uns trocados.

Outro personagem fundamental do escândalo da Fifa é Chuck Blazer, ex-diretor da Concacaf, a Confederação que reúne países da América Central e do Norte. Chuck foi flagrado sonegando impostos e embolsando propinas em contratos da Fifa com sua Confederação. Para não ser preso, concordou em levar um gravador para várias reuniões do comitê da entidade. Essas gravações ajudaram a revelar as fraudes cometidas pelos dirigentes da Fifa. Antes disso, era conhecido como um maluco que gastava US$ 1 milhão para levar prostitutas para passeios de barco no Caribe.

As denúncias investigadas pelo FBI devem desencadear mudanças na forma de gerir o futebol. Não faz sentido o esporte mais popular do planeta ser administrado por uma entidade que não se submete a regulações internacionais, avessa a balanços financeiros e que é comandada por executivos, pelo menos alguns deles, simpáticos à corrupção. Na semana passada, a eleição para a presidência da Fifa foi o retrato acabado de uma organização que precisa se reconstruir. A vitória do atual chefe da entidade, Joseph Blatter, era dada como certa até poucos dias antes, mas o cenário virou do avesso após as prisões feitas pelo FBI.

Na tarde da sexta-feira 29, Blatter foi reeleito, mas, diante da avalanche de denúncias, é impossível cravar se o resultado terá validade. Seja qual for o desfecho, não há mais clima para que os corruptos continuem agindo à sombra da lei. ―Estou com nojo de tudo isso‖, disse o ex-jogador Michel Platini, atual presidente da Uefa, que reúne as confederações dos países europeus. Platini está em campanha para levar adiante as acusações contra Blatter. ―Agora o Blatter é o principal alvo das investigações do FBI‖, diz o jornalista Andrew Jennings, o primeiro a fazer denúncias consistentes contra a Fifa. ―Há muito por vir.‖

Não é apenas a reputação da Fifa que está em jogo. Tudo indica que ela sofrerá perdas financeiras. Desde a final da Copa do Mundo do Brasil, cinco de seus principais patrocinadores (Sony, Emirates, Castrol, Continental e Johnson & Johnson) romperam seus contratos. Os que ficaram estão receosos. ―Nosso desapontamento e nossa preocupação são profundos‖, disse a Visa em comunicado. ―Esperamos que a Fifa tome decisões imediatas. Caso isso não aconteça, nós informamos a entidade que vamos reavaliar o patrocínio.‖

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No Brasil, o episódio também deve provocar desdobramentos. Na quinta-feira da semana passada, o senador Romário (PSB-RJ), um crítico contumaz da CBF, protocolou um requerimento para a abertura da CPI do futebol. ―Vamos repaginar tudo, prender os ladrões, acabar com a corrupção e fazer um esporte limpo e honesto.‖ Em entrevista à ISTOÉ, Romário disse que está ―aliviado por ver essa gente do mal sendo presa.‖ Sua batalha, agora, é para ser escolhido relator da CPI. O craque da Copa de 1994 garante que uma varredura será feita. ―Serão investigados os contratos de patrocínio da CBF, os jogos organizados para a Seleção Brasileira, os contratos da Copa das Confederações, da Copa do Mundo e dos torneios nacionais.‖ E explicou a pressa. ―O Marin está preso e este é o momento oportuno para fazermos uma verdadeira devassa na CBF.‖

O FBI promete não dar folga. Para os corruptores, a má notícia é que a agência costuma ser implacável. Os americanos estão verdadeiramente interessados nas coisas do futebol. O campeonato nacional tem médias de público muito superiores à brasileira e compatíveis com a de algumas ligas europeias. Parece que, agora, eles querem mesmo entrar no jogo. Um episódio demonstra como o assunto se tornou importante. Em dezembro de 2010, os Estados Unidos perderam para o Catar o direito de organizar a Copa do Mundo de 2022. Bill Clinton, então presidente de honra da candidatura dos Estados Unidos, chegou ao hotel pouco depois da votação. Estava vermelho e furioso. No quarto, pegou um vaso e o arremessou contra um espelho. Cacos de vidro se espalharam pelo aposento. Agora, mais de 4 anos depois, aqueles estilhaços atingem em cheio a Fifa. “Houve uma investigação. Mas não houve delação” - J. Hawilla diz à ISTOÉ que o dinheiro devolvido por ele à Justiça americana nada tem a ver com seus negócios no Brasil, não quis comentar a prisão de Marin e afirma que está recuperado de um câncer na garganta (GISELE VITÓRIA)

Na manhã de quinta-feira 28, um dia após vir à público o escândalo da Fifa e a prisão de seus dirigentes, o empresário J.Hawilla, dono da Traffic, atendeu no celular uma ligação de IstoÉ. O empresário justificou que não poderia dar declarações, mas acabou respondendo a algumas perguntas antes de desligar o telefone. Hawilla vive hoje em Miami. Ele confirmou que teve câncer na garganta, e está se recuperando. Este seria o motivo que o levou a mudar para os Estados Unidos, deixando as operações no Brasil a cargo dos filhos. No mercado do marketing esportivo, o que se diz é que as operações da Traffic no Brasil na área de eventos foram reduzidas nos últimos anos, e que a empresa se dedicava às transações para transmissão de jogos e campeonatos de futebol.

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IstoÉ – Me responda apenas uma pergunta. Por que você resolveu fazer a delação premiada e se declarar culpado na investigação que culminou com a prisão de dirigentes da Fifa, entre eles o ex-presidente da CBF, José Maria Marin?

J. Hawilla – Não existe delação. Isso é lenda da imprensa, porque simplesmente não houve isso. Desculpe, eu não posso falar.

IstoÉ – O que então aconteceu?

Hawilla – Aí você já está entrando numa outra pergunta. Falou que ia fazer uma só. Só posso te garantir que não houve delação nenhuma.

IstoÉ – O que houve então?

Hawilla – Eu não posso dizer... Não posso dizer. Houve uma investigação. Mas delação não houve.

IstoÉ – Mas você já devolveu quanto de dinheiro?

Hawilla – Mas isso é relacionado com os Estados Unidos. É uma empresa nossa nos Estados Unidos. Não tem nada a ver com o Brasil.

IstoÉ – Por que não tem nada a ver com o Brasil? As investigações não ligam o esquema ao Brasil, à Copa do Mundo?

Hawilla – Não. Imagina...

IstoÉ – Como viu a prisão de José Maria Marin?

Hawilla – Desculpa querida, não posso falar mais nada. Vou cortar a ligação.

IstoÉ – Há uma informação de que você está doente. É verdade?

Hawilla – Já estou me recuperando.

IstoÉ – O que você tem?

Hawilla – Não tenho mais. Eu tinha.

IstoÉ – Você teve câncer?

Hawilla – Tive. Agora não tenho mais.

IstoÉ – Onde?

Hawilla – Na garganta.

IstoÉ – Continua o tratamento?

Hawilla – Já estou recuperado. Desculpe, querida, eu vou cortar a ligação.

Com reportagem de Alan Rodrigues, Helena Borges e Mariana Barboza. Fotos: Tasso Marcelo/Estadão Conteúdo; Rob Harris/AP Photo; Wilfredo Lee/AP Photo, Michel Filho/Agência o Globo; Alex Carvalho/AGIF/Estadão Conteúdo, Don Emmert/AFP; Photoshot/Nurphoto,Fabrice Coffrini/AFP; FIFA/Getty Images; Danilo Verpa/Folhapress; Khalil Mazraavi/AFP

AMAURI SEGALLA, ELIANE LOBATO e GISELE VITÓRIA são Jornalistas e escrevem para esta publicação. Revista ISTO É, Maio de 2015.

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Que tal ganhar R$ 2,5 mil para largar o cigarro? (CRISTIANE SEGATTO)

Por que uma rede de farmácias decidiu dar prêmios em dinheiro aos funcionários que pararem de fumar

(Foto: creativauy/SXC)

NÃO CONHEÇO outro produto capaz de matar metade de seus consumidores habituais e, ainda assim, continuar no mercado sem desencadear uma onda de protestos. Essa é uma proeza exclusiva do cigarro. Apesar de provocar seis milhões de óbitos anualmente no mundo, nada tira do tabaco o posto de inequívoco sucesso comercial. Quem paga a conta do vício (além do próprio consumidor) são os governos, os empregadores e os planos de saúde. Diante do aumento dos custos do tratamento de doenças relacionadas ao fumo, resta a eles investir em estratégias criativas.

A mais recente é oferecer incentivos financeiros para quem consegue largar o cigarro. A ideia parece boa, mas epidemiologistas e empresas querem saber se o investimento compensa. O maior estudo já realizado sobre o tema, publicado há duas semanas pela revista científica The New England Journal of Medicine, trouxe algumas respostas. Pesquisadores da Universidade da Pensilvânia testaram o método em 2,5 mil voluntários nos Estados Unidos. Eles eram funcionários da rede de farmácias CVS ou familiares e amigos deles. Todos tinham mais de 18 anos e fumavam pelo menos cinco cigarros ao dia.

Um dos grupos aceitou o desafio de abandonar o vício em troca de um prêmio de US$ 800. Parte dos voluntários foi convidada a tirar dinheiro do próprio bolso. Cada um faria um depósito de US$ 150 numa conta do programa. Depois de seis meses, o dinheiro seria devolvido aos que tivessem conseguido parar de fumar – junto com um prêmio de mais US$ 650. Além dessas duas estratégias, todos os participantes foram incluídos num programa tradicional para abandono do fumo – baseado em palestras e recursos paliativos como os adesivos de nicotina.

O resultado surpreendeu a equipe. O risco de perder dinheiro mostrou-se mais estimulante que o dinheiro caído do céu. O índice de abstinência após seis meses entre os que receberam o prêmio foi de apenas 17%. Bem inferior a dos que correram o risco de perder dinheiro (50%). Nesse último grupo, a chance de se manter longe do vício foi cinco vezes mais elevada do que entre os voluntários submetidos apenas ao aconselhamento tradicional. Pesquisas como essa são importantes tanto para os governos como para as empresas. Um funcionário fumante custa ao empregador US$ 5,8 mil a mais por ano do que um não-fumante, segundo um estudo da Universidade do Estado de Ohio.

Segundo os pesquisadores, pagar um incentivo de US$ 800 por funcionário abstinente sairia mais barato para as empresas do que arcar com os custos provocados pelas doenças dos fumantes. A rede de farmácias CVS, que emprega 200 mil pessoas, se convenceu. Ela pretende lançar um programa de incentivos financeiros antifumo em junho. Nada garante que o incentivo seja capaz de garantir o abandono definitivo do vício. Metade dos fumantes que estavam livres do cigarro seis meses depois do inicio do estudo não conseguiu comprovar essa condição um ano depois.

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Quem já tentou parar de fumar sabe o tamanho do esforço necessário para vencer uma das mais poderosas formas de dependência química. Um terço das pessoas que experimentam nicotina se torna dependente. Isso ocorre com apenas um quarto dos que têm contato com a heroína.

O fumante chega a consumir cigarros em intervalos de 15 minutos durante o dia e à noite. Nem o crack produz tal comportamento. O sucesso do estímulo financeiro depende de características individuais. O que é estimulante para uns pode não ter o mesmo poder para outros, como 14 personalidades revelaram nesta reportagem de ÉPOCA sobre estratégias de quem conseguiu parar de fumar (http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2011/12/como-parei-de-fumar.html). E você? Trocaria o cigarro por R$ 2,5 mil? Não há notícia de iniciativa semelhante no Brasil, mas pode ser questão de tempo.

CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Maio de

2015.

Mundo gourmet (LUIZ FELIPE PONDÉ)

SE VOCÊ perguntar para uma menina ou menino de classe social de média para baixo, de uns 20 anos, mais ou menos, o que ela ou ele deseja na vida, é provável que ouça algo como "comprar uma casa", "ajudar minha mãe", "fazer um curso para ganhar mais", "ter um carro", "casar e ter filhos".

Claro, exceções existem, mas apenas confirmam a regra. Refiro-me ao tipo de expectativa deles. As expectativas desses jovens parecem ser bem "comuns" e sem muita elaboração utópica (prefiro a expressão "gourmet" a "utópica"). Tomam o mundo como ele é, sem reclamar das regras. E também chamam as coisas por seus nomes, em vez de inventar "nomes sociais" para as coisas. Não são mimados pelos "professores de humanas" em suas escolas. Voltaremos aos mimados na sequência; por enquanto, vamos nos manter no plano da realidade dos que não são jovens gourmets.

Normalmente, esses jovens precisam arrumar seus quartos; pegam transporte coletivo por horas num mesmo dia (em vez de parar a cidade pedindo coisas impossíveis); se não arrumarem um "trampo" não fazem faculdade; não têm muito programa de final de semana; enfim, a vida cobra a conta diariamente. O papo é mais reto e o nível de imaginação é mais colado ao chão.

Por isso mesmo, acabam tendo uma noção maior de quantos paus são necessários para se fazer uma canoa. Não conhecem muito a experiência de ter alguém por perto deles que ache tudo o que eles fazem "lindo" ou "criativo". À noite, caem na cama cansados e devem acordar muito cedo no dia seguinte porque moram longe. A alimentação não segue a última moda: zero glúten. Mas, talvez por isso mesmo, acabam tendo mais fibra para enfrentar o escândalo que é a vida real (e que sempre foi e sempre será). Não enxergam a barbárie, nadam nela.

Quando você ouve um jovem falar que a "barbárie da vida é fruto da mercadoria", é provável que esteja diante de alguém que costuma viajar para Nova York com os pais nas férias (ou para a Chapada, o que não é tão barato assim, e neste caso, sem os pais). Ou algum destino semelhante. Esses jovens revoltados com a injustiça social (por isso fazem cursos em Cuba) frequentam o JK Iguatemi, ainda que envergonhados. Na maioria dos casos, se preocupam muito com a alimentação e sempre ouviram adultos por perto (pagos ou não) dizendo que o que faziam era "lindo" ou "criativo".

Quando pensam no mundo ou na vida, comparam os dois com algo (que quase nunca existiu na face da Terra) que o "professor de humanas" falou na escola cara em que estudaram. Apresentam, com frequência, dificuldades para chamar as coisas pelos seus nomes e preferem "nomes sociais". Exemplo: bandidos não são bandidos, drogados não são drogados, vagabundo não é vagabundo, gente ruim não é gente ruim, mãe irresponsável não é mãe irresponsável, egoísmo não é egoísmo, enfim, dinheiro não é grana, mas sim "O Capital". Só gente que tem dinheiro chama "grana" de "O Capital".

Interessante observar como jovens com melhores condições de vida têm uma concepção de mundo gourmet. Imaginam que as pessoas de fato passam suas vidas "alienadas" e que, se o mundo fosse outro, não seriam "alienadas". Sofrem de uma espécie de platonismo tardio. Imaginam um mundo em que as relações de trabalho seriam definidas pela beleza de seus olhos e não pela regra básica que rege tudo: quando se quer uma coisa que todo mundo quer, ela é rara e custa caro. Se ninguém quer, sobra e custa barato.

Normalmente, por terem muito tempo livre para pensar em si, desenvolveram uma dificuldade específica para lidar com coisas muito concretas, como a sujeira do banheiro. Revoltam-se contra a "exploração", mas frequentam o litoral norte de São Paulo. Para eles, sexo é "uma questão".

Sei que algumas pessoas julgam necessário que jovens tenham algum espaço para imaginar um mundo que não existe. Eu discordo. Esse hábito se desenvolveu junto com o luxo material. Não creio que jovens tenham que sonhar com um mundo que não existe. Achar isso é típico do mundo gourmet no qual o limão só vale se for da Sicília.

LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de

vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.

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Empresas não votam (BERNARDO SORJ)

DESDE o final do ano passado, pelo menos, o vice-presidente da República, Michel Temer, defende a tese de que empresas privadas deveriam fazer doações para campanhas eleitorais desde que escolhessem um só partido. Isso, supostamente, levaria a uma maior "moralização" da vida pública. A posição não se sustenta nem do ponto de vista dos princípios da vida democrática nem do de suas consequências práticas.

Se empresas podem fazer doações, então, por que não podem simpatizar com mais de um partido, como ocorre com muitos eleitores? O que fazer quando a empresa tem dois ou mais proprietários que têm diferentes orientações partidárias? As empresas cotadas na Bolsa devem levar em consideração as opções de todos acionistas ou devem decidir em assembleia a quem doar?

Do ponto de vista prático, a proposta igualmente não faz sentido: concentrar as doações em um só partido não significa que as empresas não venham a usar seus aportes para, posteriormente, influenciar parlamentares ou membros do Executivo. Aliás, se for para doar para um partido só, o mais obvio é que o façam para o PMDB, que estará na base de qualquer governo.

Não há nenhuma razão para que empresas façam doações para candidatos, partidos e campanhas eleitorais. Empresas não são cidadãos nem possuem título eleitoral. Seus objetivos são econômicos: produzir lucro para os proprietários, gerar emprego e crescimento. A definição do projeto de lei do novo Código Comercial diz: "A empresa cumpre sua função econômica e social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico da comunidade em que atua".

Quando doa para uma campanha uma empresa destrói o princípio da representação, pois o candidato eleito, no lugar de responder ao conjunto de seu eleitorado, é capturado e privatizado pelos seus financiadores. Por isso doações de empresas foram banidas na maioria dos países democráticos. O empresário, enquanto cidadão, tem direito a fazer doações, mas não deveria haver a possibilidade de dedução do Imposto de Renda, já que parte dos recursos doados estariam sendo financiados pelo resto da população. E, é claro, essas doações teriam um teto, que não permitisse a transferência da desigualdade econômica para a política.

O argumento a favor de doações de campanha, que não pode ser ignorado, é que elas representam o único caminho para obter recursos por aqueles que não fazem parte do governo, o qual utiliza sua máquina para transferir verbas orçamentarias para se autopromover e apoiar os partidos e políticos da situação. É um argumento com sólido fundamento na nossa realidade. Os governos utilizam o orçamento de comunicação para contratar serviços de empresas de publicidade que fizeram suas campanhas. Mobilizam de forma descarada recursos públicos para divulgar obras governamentais e financiar meios de comunicação, impressos ou audiovisuais.

Uma legislação que proíba doações de empresas, portanto, deve incluir a proibição do uso de recursos públicos para publicidade. Idealmente, os governos só poderiam fazer campanhas de interesse público - divulgação de programas de vacinação, por exemplo -, sem uso de slogans que as identificassem com a gestão. O uso de recursos públicos para apoiar meios de comunicação deveria ser feito somente mediante regras de transparência e de universalidade.

BERNARDO SORJ, 66, é professor titular aposentado de Sociologia da UFRJ e professor visitante do Instituto de Estudos

Avançados da USP. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.

O ASSUNTO É ESTADO ISLÂMICO

É jornalismo reproduzir vídeos de execuções? (RICARDO CARVALHO)

VOCÊ JÁ prestou atenção, caro leitor, nos cenários, no figurino, na postura ultradisciplinada do pessoal do Estado Islâmico nos vídeos de execuções que eles distribuem? Ao fundo fica o deserto, os condenados vestem laranja, cor que se destaca ao contrastar com o traje negro dos militantes de cabeças cobertas. Toda essa mise-en-scène ajuda a aumentar o mistério.

Os condenados ajoelhados, o semblante mais sério impossível, enquanto um dos carrascos faz um discurso qualquer sobre a sentença que será aplicada dali a momentos. A sentença é, então, aplicada com os rigores do sadismo e crueldade raramente captados por uma câmera, vamos dizer, jornalística, que registra a realidade. Mas, no caso dessas execuções, há uma realidade certinha demais para ser jornalismo - e ficam os telejornais do mundo inteiro esperando o próximo capítulo.

Há uma comoção e a condenação planetária com todas essas crueldades praticadas por esses bárbaros enlouquecidos pelo fanatismo. Cabe a nós, jornalistas, fazer uma pergunta: e se os telejornais do mundo inteiro se recusassem a mostrar o que a "emissora" do Estado Islâmico produz com tanto esmero e sofisticação? Sem público para repercutir, será que continuariam com as matanças?

E se continuassem, mesmo sem TV como palco, será que conseguiriam ser tão famosos a ponto de recrutar jovens de diferentes países e culturas? É lógico que, para esse recrutamento, a internet dá conta do recado. Mas é - ou costuma ser - pela televisão e pelos jornais que o fato vira, vamos dizer, notícia. Seriam acusados de autocensura os jornalistas de emissoras ocidentais que se recusassem a veicular essas imagens? Não são respostas fáceis, pois o fato jornalístico está lá.

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Voltemos à TV, já que é ela que está, de alguma forma, na berlinda. Por fora, corre a pergunta: será que o telejornalismo tem algum poder de influenciar ou, mesmo, de mudar comportamentos? Ou será que, para o distinto público, jornalismo e ficção se confundem na telinha? Na minha curta trajetória de repórter da TV Globo, em 1980, cobri as manifestações de rua que já vinham pipocando no centro de São Paulo. Nada me irritava mais do que perceber que algumas dessas passeatas só começavam a se movimentar quando a nossa equipe chegava para a cobertura.

Por causa da minha militância no Sindicato dos Jornalistas, conhecia quase todos que estavam lá, mas nem por isso ficava menos indignado. Mesmo por uma causa tão nobre tenho hoje a impressão de que era "usado" pelos manifestantes. Em anos anteriores, como repórter da Folha, eu não me sentia assim, já que as passeatas definitivamente não começavam quando um repórter sem câmera e sem microfone chegava para a cobertura.

Talvez não custe aos profissionais de televisão redobrar a atenção para o que é e o que não é jornalismo. Com as redes sociais e os celulares, cada um se sente no direito de veicular a sua própria notícia, como é o caso dos terroristas do Estado Islâmico. Ou os conceitos do que é jornalismo e do que é notícia na TV precisariam ser revistos?

RICARDO CARVALHO, 66, jornalista, foi repórter da TV Globo e da Folha, diretor de jornalismo da TV Cultura e editor-chefe do

"Globo Repórter". Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.

O ASSUNTO É ESTADO ISLÂMICO

Os aprendizes de feiticeiro (SALEM H. NASSER)

O ORIENTE Médio é um eterno desafio à nossa capacidade de compreensão. Talvez nunca o tenha sido como agora. As conflagrações são tantas, os atores, os interesses, as chaves de leitura, que mentirá quem disser que pode tudo explicar. A não ser que, por querer ou sem querer, minta na explicação.

Um dos elementos incontornáveis desse complexo emaranhado é o chamado Estado Islâmico (EI). Esse grupo, e com ele os seus vários similares, aliados ou concorrentes, aparece como espectro a assombrar desde a Nigéria até o Iraque, passando pela Líbia e o restante do norte da África, pelo Levante Árabe e pelo Golfo, incluído aí o Iêmen, hoje sob ataque saudita.

Em todos os lugares se multiplicam os relatos de sua extraordinária violência e causam impressão os seus números, a sua força e a sua capacidade de ação. Esse perigo gigantesco, que não pode ter sido fruto de geração instantânea, parece ter surgido no nosso radar de repente e apenas muito recentemente. É verdade que antes disso, sob o nome genérico de Al Qaeda, e no contexto da chamada guerra contra o terror, muito se falava dos portadores da mesma visão torta do islã e da violência por eles perpetrada.

Mas aquilo que era uma rede difusa de células voltadas a ações pontuais transformou-se em legiões de homens bem treinados, bem armados, com acesso a abundantes recursos materiais. E, por alguma razão, aqui no Ocidente se decidiu, por um bom tempo, que não era o caso de prestar muita atenção. A metamorfose se deu originalmente no Iraque e na Síria e o seu momento mais relevante foi a entrada do EI e outros grupos similares, como a Jabhat Al Nusra, no combate ao governo sírio.

Essa questão temporal serve de pista para explicar, ao menos em parte, tanto o nosso silêncio quanto o fenomenal crescimento em força desses exércitos de ocasião. Calou-se sobre aquilo que se estava alimentando, direta ou indiretamente, na esperança de mudar a balança de poder na região, derrubando o regime sírio e enfraquecendo os seus aliados mais evidentes, o Irã e o Hizbollah libanês. O Estado Islâmico e seus similares aparecem assim como instrumentos, tão perigosos para quem os manuseia quanto para suas vítimas imediatas, no jogo que opõe esses atores a que me referi às potências ocidentais e seus clientes regionais, incluídos aí os países do Golfo e também Israel.

Mas, mesmo enquanto ainda não escapam totalmente ao controle de quem os apoia, esses grupos são como aqueles parceiros com quem se tem vergonha de aparecer em público. Por isso ninguém confessa as ligações perigosas que mantém. Somos, portanto, convidados a ultrapassar os discursos e observar o comportamento dos vários atores. Mesmo após o avanço do Estado Islâmico sobre o Curdistão iraquiano e a difusão de imagens de vítimas ocidentais executadas, ou seja, depois de violada a linha do que era permitido e a opinião pública ocidental ter sido de tal modo provocada, a resposta veio tímida.

Não há qualquer avanço relevante contra o EI no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta das ações da coalizão montada pelos Estados Unidos, ações que de resto aparecem ao observador como meramente cosméticas. Tampouco há qualquer ação visível por parte dos parceiros e clientes dos Estados Unidos voltada a efetivamente estancar as fontes de financiamento, fechar os campos de treinamento, impedir a chegada dos combatentes etc.

Do mesmo modo, a mesma Arábia Saudita que hoje bombardeia o Iêmen, em violação flagrante do direito internacional, sob o pretexto de proteger a legalidade institucional do avanço dos houtis, não pensou ser necessária qualquer ação contra a Al Qaeda e seus filhotes naquele país. Os aprendizes de feiticeiros continuam a brincar com fogo.

SALEM H. NASSER, 47, é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações

Internacionais - GR-RI. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.

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Ter mais e ter menos (CONTARDO CALLIGARIS)

VÁRIOS leitores me escreveram para acusar os "tempos modernos", em que "ter" é mais importante do que "ser". Hoje, o que temos nos define, à condição, claro, de ostentá-lo o suficiente para que os outros saibam: constatando nossos "bens", eles reconheceriam nosso valor social. Essa seria a razão da cobiça de todos e, em última instância, da facilidade com a qual todos nos tornamos criminosos.

A partir dessa constatação, alguns de meus correspondentes tentam explicar uma diferença entre ricos e pobres em matéria de crime. O argumento básico funciona mais ou menos assim: 1) para ser alguém, na nossa sociedade, é preciso ter e ostentar bens, 2) quem vale menos na consideração social (o desfavorecido, o excluído, o miserável) teria um anseio maior de conquistar aqueles bens que aumentariam seu valor aos olhos dos outros.

Em suma, precisamos ter para ser - e, se formos pouco relevantes ou invisíveis socialmente, só poderemos querer ter mais e com mais urgência. À primeira vista, faz sentido. Mas, antes de desenvolver o raciocínio, uma palavra em defesa da modernidade. Tudo bem, uma sociedade em que as diferenças são decididas pelo "ter" (vale mais quem tem mais) pode parecer um pouco sórdida. Acharíamos mais digna uma sociedade na qual valeria mais quem "é" melhor, não quem acumulou mais riquezas.

O problema é que, em nosso passado recente, as sociedades organizadas pelo "ser" já existiram, e não foram exatamente sociedades para onde a gente voltaria alegremente - eu, ao menos, não gostaria de voltar para lá. Geralmente, uma sociedade organizada pelo "ser" é uma sociedade imóvel. Por exemplo, no antigo regime, você podia nascer nobre, perder todos os bens de sua família, inclusive a honra, e continuaria nobre, porque você já era nobre.

Inversamente, você podia nascer numa sarjeta urbana e enriquecer pelo seu trabalho ou pela sua sabedoria, e nem por isso você se tornaria nobre, porque você não o era. Ou seja, em matéria de mobilidade social, as sociedades nas quais o que importa é o "ser" são sociedades lentas, se não paradas, e as sociedades nas quais o que importa é o "ter" são sociedades nas quais a mudança é possível, se não encorajada.

É bom lembrar disso quando criticamos nossa "idolatria" consumista ou nossa vaidade. Podemos sonhar com uma sociedade organizada pelas qualidades supostamente intrínsecas a cada um (haveria os sábios, os generosos, os fortes etc.), mas a alternativa real a uma sociedade do "ter" são sociedades em que castas e dinastias exercem uma autoridade contra a qual o indivíduo não pode quase nada.

Voltemos agora à observação de que, numa sociedade do "ter" como a nossa, os que tem menos seriam, por assim dizer, famintos - e, portanto, propensos a querer a qualquer custo. Eles recorreriam ao crime porque sua dignidade social depende desse "ter" - para eles, ter (como navegar) é preciso. Agora, o combustível de uma sociedade do "ter" é uma mistura de cobiça com vaidade. Por cobiça, preferimos os bens materiais a nossas eventuais virtudes, mas essa cobiça está a serviço da vaidade.

A riqueza que acumulamos não vale "em si", ela vale para ser vista e reconhecida pelos outros: é a inveja deles que afirma nossa desejada "superioridade". Em outras palavras, os bens que desejamos são indiferentes; o que importa é o reconhecimento que esperamos receber graças a eles. Por consequência, nenhum bem pode nos satisfazer, e a insatisfação é parte integrante de nosso modelo cultural.

Não é que estejamos insatisfeitos porque nos falta alguma coisa (aí seria fácil, bastaria encontrá-la). Somos (e não estamos) insatisfeitos porque o reconhecimento dos outros é imaterial, difícil de ser medido e nunca suficiente. A procura por bens é infinita ou, no mínimo, indefinida, como é indefinida a procura pelo reconhecimento dos outros.

Os bens que conquistamos (roubando ou não, tanto faz) não estabelecem nenhum "ser", apenas alimentam, por um instante, um olhar que gratificaria nossa vaidade. Não existe uma acumulação a partir da qual nós nos sentiríamos ao menos parcialmente acalmados em nossa busca por esse reconhecimento.

Ao contrário, é provável que a cobiça e a vaidade cresçam com o "ter". Ou seja, é bem possível que a tentação do crime seja maior para quem tem mais do que para quem tem menos.

CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY

e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2015.