Princesas Africanas

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PRINCESAS AFRICANAS REVISTA DE (IN)FORMAÇÃO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCÍCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | DISTRIBUIÇÃO DIRIGIDA

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livro belíssimo.

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  • PRINCESAS AFRICANAS

    REVISTA DE (IN)FORMAO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | DISTRIBUIO DIRIGIDA

  • PrincesasAfricanas

    LEITURASCOMPARTILHADASREVISTA DE (IN)FORMAO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | DISTRIBUIO DIRIGIDA

    Leituras CompartilhadasMaro/2009

    Diretor Responsvel: Jason Prado

    Editor: Ana Claudia Maia

    Conselho Editorial: Ana Lcia Silva Souza e Sueli de Oliveira Rocha

    Direo de Arte e Produo Grfica: Suzana Lustosa da Fonseca

    Ilustraes: Taisa Borges

    Outras Ilustraes:

    Montagens feitas por Suzana Lustosa da Fonseca a partir de ilustraes

    de Taisa Borges (pgs. 18, 19, 38, 39, 56, 57, 66, 71).

    Banco de Imagens: Fotolia

    Reviso: Sueli de Oliveira Rocha

    Colaborao: Mrcio Von Kriiger

    Tiragem: 10.000 exemplares

    Leituras Compartilhadas uma publicao do Leia Brasil

    distribuda gratuitamente s escolas conveniadas.

    Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descritos.

    Quaisquer reprodues (parciais ou integrais) devero ser autorizadas previamente.

    Os artigos assinados refletem o pensamento de seus autores.

    Leia Brasil e Leituras Compartilhadas so marcas registradas.

    Impresso na Ediouro.

    Visite www.leiabrasil.org.br e veja como utilizar

    esta publicao em atividades de sala de aula.

  • O potencial de sustentabilidadede todo e qualquer empreendimento umdos fatores que confere excelncia inicia-tiva. E, para isso, a gesto participativa processo em que as partes envolvidasexpem suas possibilidades e necessidades fundamental na conquista dos bonsresultados. Assim o Petrobras Programade Leitura Bacia de Campos, iniciativasocial apoiada pelas unidades de Negcioda Bacia de Campos e do Rio de Janeiroem 17 municpios da rea de influncia damaior provncia petrolfera do pas.

    Por seu constante alinhamento sdemandas de seu pblico-alvo, alunos eprofessores da rede pblica de ensino dascidades atendidas, o Petrobras Programa deLeitura Bacia de Campos vem contribuindopara a melhoria dos ndices que mensurama educao. Exemplo disso, a pontuaoque as escolas e municpios atendidos con-quistaram na pesquisa que mediu o ndicede Desenvolvimento da Educao Bsica, oIDEB, em 2007.

    Em Maca, onde o programa desenvol-vido desde 1994, todas as 37 escolas atendi-das pelo caminho-biblioteca atingirampontuao acima da mdia nacional, tendo oColgio Municipal do Sana obtido mdia 6,5,ndice maior que a meta estipulada peloGoverno Federal (6) para o ano de 2021.

    A nova edio do Leituras Compartilhadasmostra o desejo constante do Programa ematender as demandas de nossos maioresparceiros: os mais de nove mil professorese 300 mil alunos que constroem o sucessodesta ao nas 310 escolas onde o PetrobrasPrograma de Leitura Bacia de Campos desenvolvido. As Princesas Africanas condu-ziro um estudo menos superficial da frica,continente que esconde suas riquezas napluralidade de tradies que remontam origem da humanidade.

    A sustentabilidade de nossas aesdepende dessa disposio em aprofundaros conhecimentos, tanto no passado quantonos desafios impostos pelas novas eras queviro. Assim a Petrobras conduz seus inves-timentos empresariais e sociais. Para quechegssemos ao imenso tesouro escondidona camada pr-sal, tivemos que buscar asregies mais distantes, profundas. E paraque exploremos aquela riqueza, necessrioser aprimorar o conhecimento adquiridoat aqui.

    Como o que ora proposto pelo LeiturasCompartilhadas. Como a ostra que guarda otesouro dentro de si, a frica ser aquirevelada pelo que esconde de mais precio-so: sua dignidade, sua nobreza, mergulhoesse conduzido pelo mais rico dos univer-sos, o literrio.

    frica dos meus sonhos

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  • Duas palavras, tantos sentidos.Quando ouvi a sugesto de publicar um

    Caderno de Leituras Compartilhadas comeste tema, no me dei conta dos desvos docaminho.

    Era uma tarde fria de junho e eu estavana Refinaria do Paran, fazendo o terceirode uma srie de encontros sobre a participa-o africana na formao cultural brasileira.

    Foi quando Analu me desafiou: por quevocs no fazem um Caderno sobre as princesasnegras?

    Ana Lcia1 uma dessas pessoas devontade forte, com formao e contedoinvejveis, cheia de f no que diz. , elamesma, a prpria imagem da guerreiraafricana.

    Como se no bastasse, Rogrio AndradeBarbosa tinha passado a manh daquele diafalando de suas viagens pelas naes africa-nas, das culturas exticas, de ritos tribais...

    Nos subsolos da minha mente j se agi-tava a figura emblemtica e saltitante deGrace Jones num filme trash dos anos 802,como a incentivar a empreitada. No pudeevitar as armadilhas de minha prpria ima-ginao: topei o desafio.

    Aos poucos, como os animais que mas-tigam muito depois de engolir, fui medando conta dos contedos ali envolvidos.Logo de cara, uma bifurcao: princesas;portanto, mulheres.

    No apenas mulheres, em suas dimenseshumanas: heronas na luta pelo po-nosso epela sobrevivncia diria, frgeis diante da

    morte, leoas no exerccio da funo mater-na, mulheres com vontades e desejos...

    Para alm disso, mulheres especiais, quese distinguem das outras em sua superiori-dade, seja em graa, beleza ou astcia.Guerreiras, sensveis, capazes de perceber umgro de ervilha sob pilhas de colches de plumas.Ungidas pelos deuses no nascimento edonas do direito divino de povoar as cabe-as dos homens.

    Princesas, qual promessa de flor, tambm espera dos vares que as faro reinar emseus prprios castelos.

    Mas tambm africanas. Em sua maioria,negras, exuberantes e fortes como a guer-reira que projetou a atriz jamaicana deConan, ou como tantas outras que conhe-cemos no dia-a-dia. Vindas para a maioriade ns brasileiros, seus descendentes deum universo desconhecido, povoado comimagens de animais ferozes, de lanas cru-zando os cus e tan-tans em frenesi, de cor-pos esguios e fome. Muita fome somali,etope, biafrense... Africanas, brancas enegras. Submetidas e espoliadas por scu-los, como seu continente, at se perderemde si mesmas.

    Para esta edio de Leituras Compartilhadas em que o eu torna-se ns, no compar-tilhamento das minhas ponderaes com aequipe da ONG Leia Brasil , evolumospara Princesas Africanas, curvando-nos nos grandiosidade do continente mas tam-bm Clepatra, Rainha de Sab e atodas as mulheres que remontam mais

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  • frustra nossas expectativas e subverte a civi-lidade, nos pilhamos dizendo: isso coisade preto?

    Isso posto, toquemos num ponto nevrl-gico: a questo africana.

    Partindo de Lucy, somos todos afro-des-cendentes. Uns mais, outros menos. E oque mais importante ainda, estamos jun-tos na humanidade.

    Por que to difcil que a descendncianegra ganhe cidadania no Brasil, a ponto deser necessria a criao de um movimentopela conscincia negra e a promulgao deuma lei que obrigue as escolas a ensinar aHistria e a Cultura Africana7?

    Mais uma vez, volto a particularizarminha fala e recorro aos significados.Embora no tenha autoridade para falar aesse respeito, vou me permitir ser opiniti-co: no creio que o movimento tenha seconstitudo apenas em decorrncia da dorainda viva de nossos avs amarrados nopelourinho, muito menos pela imoralidadedo trfico, que aniquilou milhes e, pelaescravido, transformou outro tanto emmortos-vivos.

    Embora sejam recentes, esses fatosremontam ao j longnquo sculo XIX. preciso falar deles porque somos um pas

    preconceituoso e o preconceito rasteiro,imprevisvel, dissimulado e elitista. E quan-do falo em elite, caio mais uma vez na pan-tanosa questo das classes sociais, dosdominantes e dominados, dos prncipes emendigos...

    Voltando ao preconceito, o problema que ele di, mas nem crime. Embora amanifestao do preconceito seja crime(tipificado pela Lei n 7.716, de 05/01/89),seu sentimento no pode ser criminalizado.Ningum pode ser punido por associar umnegro, numa rua deserta, noite, a umasituao de iminente perigo. Mas devedoer (e revoltar) a qualquer jovem negroassistir a um estranho desviando de seucaminho.

    Do outro lado desse comportamentoest, por exemplo, a clara leitura quepodemos fazer da misria a que as elitescondenaram os negros no Brasil. Miserveisfamintos como os escravos libertospela Lei urea, sem teto e sem perspectivas so marginais potenciais. Mas essa lgicanunca ocupou espaos na sociedade, que preconceituosa (de certa forma, o senti-mento do preconceito exime e protege deculpa as pessoas). O preconceito s se des-monta com educao, com a lgica. E essadecorre de um pensamento arejado, da

    compreenso de cada componentedo todo.

    Com essas considera-es, retomo o prop-

    sito desta ediode Leituras

    Compartilhadas:criada para ajudar

    os professores a reconhecer e positivar asdiferenas, combater o racismo e o precon-ceito tnico-racial, ela no pode se propor

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    ilustre e desconhecida de todas as prince-sas: Lucy3, a africana que todos temos nosangue.

    Durante os meses necessrios para queos artigos e textos fossem encomendados eescritos, para que essas belssimas ilustra-es fossem produzidas e a edio come-asse a ganhar forma, muitas foram asdvidas que, pouco a pouco, se materializa-ram como bolhas que levantam da fervura.A mais inquietante delas, talvez, seja relati-va questo Princesa. Dvidas no pro-priamente quanto s funes tribais da filhado chefe, mas quanto a esse conceito quepermeia nossa vida e nos faz chamar nossasfilhas de princesas, que permite s mulheresse atriburem esse ttulo, sempre to impreg-nado de bondade.

    No romance Peixe dourado4, um belssi-mo livro sobre princesas africanas, Jean-Marie Clzio (Prmio Nobel de Literaturade 2008) usa o termo princesa centenas devezes, a maior parte delas para se referir smoas de um prostbulo marroquino, bus-cando assim suavizar o carter do ganha-po dessas mulheres.

    Que mgica tem essa palavra? De ondevem sua fora?

    Deixando de lado as razes teosficas(ou o pseudo direito divino de algum sermelhor que os outros e, a partir dessa lgi-ca, praticar todas as vilanias possveis con-tra a humanidade), em que pensamos quan-do empregamos essa palavra?

    Em primeira e ltima instncia, prince-sas so as herdeiras do rei. So elas queviabilizam a constituio de novos reinados(famlias), garantindo a transio entre umantigo e um novo regime. Se verdade queas histrias tecem o terreno por onde cons-trumos nossas noes de mundo, as prin-

    cesas so a matria-prima de nossa organi-zao social.

    Em meados do sculo XVI, surgiu naInglaterra uma expresso que se atribui aum jurista ingls5, e que se tornou a baseda Bill of Rights, expressivo nome de umcaptulo da Constituio norte-americana:a mans home is his castle a casa de umhomem o seu castelo6.

    Tudo bem que essa frase tenha servidopara assegurar a inviolabilidade do lar, masno caberia perguntar: quem mora em cas-telos? E por que pessoas de todas as classessociais inclusive nas sociedades de castas se referem assim s suas herdeiras?

    Ser demais remeter o contedo ideol-gico das princesas (e toda a sua entourage)s questes da famlia, da propriedade e doestado? Ser puro maniquesmo?

    Por outro lado, por que valorizamostanto esse negcio de realeza, nobreza eoutras iniqidades coroadas?

    H 16 anos em 1993, na reta final dosculo XX nosso Congresso promoveu, aum custo financeiro exorbitante, um plebis-cito (referendo popular) sobre a forma degoverno no Brasil. Nada menos que 6,8milhes de brasileiros votaram a favor damonarquia, pensando seriamente em entre-gar a coroa (e ns, as caras) aos portuguesesque exportaram nossas riquezas e importa-ram da frica, como mercadoria, sereshumanos.

    Por que, mesmo sabendo disso (davergonha e sofrimento que nos cau-sam os que se julgam acima do beme do mal; da podrido que alicera aaristocracia), quando algum tem umaatitude digna, elogivel, quase beata, dize-mos que foi um gesto nobre? E por que,no extremo oposto, quando algo inesperado

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  • PrincesasAfricanas

    Uma contribuio para o estudo da cultura afro-brasileira nas escolas pblicas.

    (De acordo com a Lei 10.639/2003)

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    a oferecer respostas, mas a ajudar a instalarperguntas que desconstruam comportamen-tos e pr-julgamentos.

    Sendo assim, com o excepcional contedoque se segue e que oferecido s futurasgeraes de brasileiros, deixo no ar umahomenagem a todas as princesas negras (e africanas) que nunca estiveram em nossoimaginrio e s outras tantas que no pude-ram comparecer a esta edio.

    Notas:

    1 Ana Lcia Silva Souza (Analu) sociloga, dou-toranda em Lingstica Aplicada (Unicamp - Institutode Estudos da Linguagem), mestre em Cincias Sociaispela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Parti-cipa desta edio de Leituras Compartilhadas comoarticulista e conselheira editorial.

    2 Conan, o destruidor, de 1984.

    3 Lucy Dinqines (que significa voc maravilhosa) nome do esqueleto da fmea homindea de 3,2 milhesde anos encontrado na Etipia; a mais antiga ances-tral da humanidade.

    4 Peixe dourado, de Jean-Marie Clzio, Companhiadas Letras, 2001.

    5 Sir Edward Coke, Inglaterra, 1552-1634.

    6 curioso que esse respeito privacidade e essereconhecimento inviolabilidade do lar tenham seconsolidado duzentos anos depois, ao tempo da inde-pendncia americana, que coincide com a RevoluoIndustrial e o fim do Feudalismo, no qual as pessoasserviam nobreza e sequer possuam a roupa do corpo,quanto mais uma casa.

    7 Lei 10.639 / 2003 altera a Lei de Diretrizes eBases da Educao Nacional (LDB) e estabelece a obrigatoriedade do ensino da Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana no Brasil.

    JJaassoonn PPrraaddoo jornalista, criador e DiretorExecutivo da Leia Brasil ONG de promooda leitura.

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  • frica dos meus sonhos - Petrobras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 Princesas africanas - Jason Prado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 O sonho de ser princesa - Andra Bastos Tigre - Rossely Peres . . . . . . . . . . . . . . . .15 As princesas nos contos de fadas - Sonia Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 So outras as nossas princesas - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21 Que fada essa? - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 A donzela, o sapo e o filho do chefe - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . .27 Rainhas negras na frica e no Brasil - Luiz Geraldo Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 As princesas africanas - Braulio Tavares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 O casamento da princesa - Celso Sisto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37 Minha princesa africana - Mrcio Vassalo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41 Uma princesa em So Tom e Prncipe - Ana Lcia Silva Souza . . . . . . . . . . . . . . .43 Princesa de frica, o filme - Uma entrevista com Juan Laguna . . . . . . . . . . . . . . . .47 Iya Ibeji, a me dos gmeos - A leitura dos smbolos nag - Marco Aurlio Luz . . . . . .51 A lenda da princesa negra que incendiou o mar - Geraldo Maia . . . . . . . . . . . . . . .55 Nas malhas das imagens e nas trilhas da resistncia: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    heronas negras de ontem e de hoje - Andria Lisboa de Sousa . . . . . . . . . . . . . . .59 Uma guerreira - Julio Emilio Braz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63 Princesa, no. Mas... - Marina Colasanti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 Os trs cocos - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69 Uma princesa afrodescendente - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73 Princesa descombinada - Janana Michalski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77 Princesas africanas e algumas histrias - Tiely Queen (Atiely Santos) . . . . . . . . . . . .79 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83

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    Taisa Borges tem formao em artes plsticas e estilis-mo. Ilustrou para a Folha de S. Paulo, Vogue, entre outros. autora do livro de imagem O rouxinol e o imperador, ins-pirado no conto de Andersen do mesmo nome, lanadoem 2005, obra selecionada para o PNBE 2005 e para oPNLD SP/2006, merecedor do prmio de o Melhor livro deimagens de 2005 pela Fundao Nacional do Livro Infantile Juvenil (FNLIJ). Em 2006, publicou na mesma coleoJoo e Maria, inspirado em um conto dos irmos Grimm,tambm selecionado para o PNBE 2006 e para o PNLDSP/2007. O livro A bela adormecida, de Charles Perrault,lanado em 2007, fechou seu projeto de homenagens aoscontos de fadas.

  • Pise macio porque voc est pisando nosmeus sonhos.1

    W. B. YeatsQ ue menina no sonhou, um dia,em ser ou vir a ser uma princesa? O apeloda beleza, da riqueza, do fausto das festas epalcios e do viveram felizes para sempretraz a magia da palavra, com seus sons eencantamentos, alimento da imaginaoinfantil.

    A linguagem fantstica - a da poesia, doconto, das fbulas, com seus ritmos e ima-gens - permite criana viver outras vidase, assim, construir um arcabouo imagin-rio necessrio e fundamental para viver aprpria vida. Que lugar tem, na economiapsquica de uma criana, histrias de prn-cipes e princesas?

    As palavras apresentam o mundo, a coisano existe sem elas, elas lhe do existncia.

    ... Digo sol, e a palavra brilha;Digo pomba, e a palavra voa;Digo ma, e a palavra floresce.2

    E podemos acrescentar: Digo princesa, e a vida brilha, a imagi-

    nao voa, a felicidade floresce.So as histrias e os contos que, ao dar

    nome, ao pr em palavras, permitem darcontorno e limite a sentimentos obscuros eangustiantes que assombram crianas medo da vida e da morte, do futuro incertodo quem sou e quem serei, da raiva e da

    impotncia frente aos mais fortes, da solidoe do isolamento, dos segredos e sobressaltosde se ter um corpo. So legados que nosvm de longe, de uma tradio oral que, nocorrer do tempo, vieram a ser escritas, numencontro de papel, pluma e desejo de umautor. Um longo caminho de Era umavez..., Num certo pas..., H muitos emuitos anos atrs..., para tentar responderaos enigmas: que mundo esse? Comoviver nele? Quem sou eu?

    As histrias e os contos tomam a angs-tia do existir a srio, dirigem-se a ela, escura incerteza do que vai acontecer.Endeream-se ao futuro guiando a crianaatravs de caminhos que ela pode aceitar ecompreender princesas, cavaleiros e damas,animais falantes, duendes e anes conduzem-na, pela mo, a seu mundo dos sonhos.

    A fantasia e poesia da linguagem nostransportam para um pas onde tudo podeacontecer. A magia da palavra lida ou ouvi-da faz existir o sonho e, ao afastar-se doreal, permite a margem do mais alm, dooutro, do impossvel, do espelho com suasentradas e sadas secretas. Um texto que recebido no nvel intelectual, mas que tocatambm a sensibilidade, ganhando na escutada palavra significao afetiva e imaginativa.

    O prprio da linguagem potica e fan-tstica ser mltipla em sua essncia. Oconvite a uma viagem ao pas das palavrasabre a porta para a criana usufruir do usoda linguagem e, com ela, brincar, sonhar,rir, acariciar, girar, ir e retornar. L no h

    O sonho de ser princesa...Andra Bastos Tigre - Rossely Peres

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    Princesa Desalento

    Minh'alma a Princesa Desalento, Como um Poeta lhe chamou, um dia.

    revoltada, trgica, sombria, Como galopes infernais de vento!

    frgil como o sonho dum momento, Soturna como preces de agonia,

    Vive do riso duma boca fria! Minh'alma a Princesa Desalento...

    Altas horas da noite ela vagueia... E ao luar suavssimo, que anseia,

    Pe-se a falar de tanta coisa morta!

    O luar ouve a minh'alma, ajoelhado, E vai traar, fantstico e gelado,

    A sombra duma cruz tua porta...

    Florbela Espanca, in "Livro de Sror Saudade"

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  • Nos contos maravilhosos queaparecem na cultura ocidental, as princesascostumam ocupar dois papis: o do prmio,ou, mais raramente, o de heri. So contosde fantasia, freqentemente chamados con-tos de fadas, em geral passados na IdadeMdia europia.

    Autores importantes na nossa culturaleram esses contos com vises diferentesque podem contribuir para que nossa leitu-ra se enriquea na concordncia ou amplia-o de suas opinies.

    Freud entendia o conto de fadas comouma forma atenuada dos mitos e essescomo deformaes das fantasias de desejodas naes, da espcie humana como umtodo. O conto estaria ligado socializao, aquisio pela criana das normas morais,representadas pelo superego.

    Para os freudianos, Bettelheim inclusive,as pulses criam os contos populares portransformaes anlogas s do trabalho dosonho.

    Para Jung e os junguianos, os contos defadas representam, alm do materialinconsciente recalcado que mantm rela-es com os sonhos e as fantasias, fenme-nos arquetpicos e sugerem simbolicamentea necessidade de uma renovao interiorpela integrao do inconsciente pessoal edo inconsciente coletivo personalidade doindivduo.

    De acordo com esse ponto de vista, osarqutipos so dinamismos inconscientesligados a imagens primordiais ou smbolos

    comuns a toda humanidade e fornecem abase das religies, dos mitos e dos contosmaravilhosos.

    Monteiro Lobato, fundador da literaturapara crianas no Brasil, teve em relaoaos contos de fadas, basicamente, trs atitudes estticas em seus livros: a crticaaos contos embolorados da Carochinhaou ao que Emlia classificava como boba-gens do folclore; a admirao produoliterria a partir deles feita pelos irmosGrimm, Perrault, Andersen; e a incorpora-o das princesas ao seu prprio universoficcional.

    Vladimir Propp definiu como contomaravilhoso ou de magia toda narrativaque, partindo de uma carncia ou dano epassando por um desenvolvimento interme-dirio, termina com casamento, recompen-sa, obteno do objeto procurado, repara-o ou salvamento de uma perseguio(Propp: 85).

    Propp est mais voltado para entendercomo se estruturam os contos de fadas doque para interpret-los. Em Morfologia doconto maravilhoso, descreve como, no decor-rer da narrativa, o heri torna-se o possui-dor de um objeto ou auxiliar mgico que outiliza ou que se serve dele. A magia em sipode estar no auxiliar ou no objeto mgicoque doado ao heri; nas caractersticas doprprio; no antagonista-agressor que podeser um drago, um bruxo, um ogre ououtras criaturas fantsticas na funo deantagonista.

    As princesas nos contos de fadasSonia Rodrigues

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    de sugerir o desconhecido, o imprevisvel,implicando o ouvinte-leitor no trabalho depreencher lacunas, absorver o intudo, asso-ciar som, imagem, textura, ritmo e cor. Se uma trama proposta por um autor-narrador,cabe a cada ouvinte-leitor torn-la sua.

    Longa vida aos contos de prncipes eprincesas!

    Notas:

    1 W. B. Yeats: He wishes for the cloths of heaven inThe Collected Poems. Nova York, Macmillan, 1956.

    2 Alain Bosquet: Quatre testaments et autres pomes.Paris, Gallimard.

    AAnnddrraa BBaassttooss TTiiggrree e RRoosssseellyy PPeerreess sopsicanalistas da Escola Letra Freudiana - RJ.

    uso ridculo ou absurdo da linguagem, odesbloqueio do imaginrio recria a fascina-o da palavra e permite: eu sou princesa.

    A vida no pra de se escrever; e a hist-ria, em sua letra, se conserva atravs dotempo. a permanncia do texto que sus-tenta a imortalidade das obras, e, entre elas,a de princesas que, nrdicas, africanas, asi-ticas ou indgenas permitem criana olharo cotidiano da vida de um jeito diferentequilo que se apresenta como igual, pois aprpria repetio num vir a ser inauguralganha novos sentidos. No sero as lem-branas das histrias que nos permitemuma leitura singular de nosso mundo?

    As palavras de todos os dias quando reu-nidas numa bela histria adquirem o poder

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  • Propp enumera os papis distribudosentre as personagens concretas dos con-tos maravilhosos como: o heri, o antago-nista (ou agressor), o doador, o auxiliar, aprincesa ou seu pai, o mandante e o falsoheri.

    Os contos poderiam ser chamados tam-bm de contos dos sete personagens, ape-sar de nem todos aparecerem em todos oscontos, claro. Porque existem contos maissimples, como o da Menina da CapinhaVermelha, e mais extensos, como o Veadoencantado.

    A trama dos contos de fadas, de umamaneira geral, enxuta, utilizando o mni-mo de idas e vindas, ao contrrio de narra-tivas como a Odissia.

    Os enredos dos contos, ainda segundoPropp, no fogem muito da seguinte dispo-sio dos acontecimentos:

    a. Situao inicial, que define espa-o, tempo, personagens principais(fora o antagonista), seus atributos eantecedentes;

    b. Parte preparatria, onde aparecealgum tipo de proibio e a transgres-so da proibio, o dano ou carncia eo antagonista com seus embustes. EmRapunzel fica muito claro este par deelementos: proibio e transgresso.Em A Moura Torta, o dano ou carnciaest no feitio colocado pela usurpa-dora.

    c. O n da intriga: uma personagemse revela como heri ao reagir aodo antagonista que provocou o dano.

    d. Aparece(m) o(s) auxiliar(es) doheri, com todas as particularidadesdele(s) e do(s) objeto(s) mgico(s),incluindo a as provas necessrias aoheri;

    e. Percurso do heri at sua desti-nao, vitria do heri. Aqui podeocorrer um desdobramento que pro-longue a narrativa: perseguio aoheri, aparecimento do falso heri,retorno do heri;

    f. A seqncia f, lgico, dependedo prolongamento da narrativa. Oheri chega incgnito, encontra aspretenses infundadas do falso heri, submetido a uma tarefa difcil paraser distinguido do falso heri, realiza atarefa, reconhecido e desmascara ooutro, que castigado. O heri casa ou entronizado.

    interessante notar que o estudo dePropp se refere ao heri como aquele querepara o dano. Nos exemplos citados porele, o heri um rapaz de origem simplesou prncipe, e a princesa , quase sempre,prmio. Quando a figura feminina ocupaum papel mais ativo, ela costuma no ser darealeza ou da realeza, mas est disfarada. filha de mercador, em A Bela e a Fera,rf pobre em O Veado Encantado, de ori-gem desconhecida e beleza estonteante emA Moura Torta ou uma princesa em trajespobres, como em A princesa e o gro de ervilha.

    Apesar das crticas da boneca Emlia,nos contos folclricos narrados por TiaNastcia, aparecem vrias princesas empapel de heri ou auxiliar de heri. ocaso do Bicho Manjalu. Aparecem tambmprincesas no papel de adversrio, como noconto A Princesa Ladrona.

    A princesa como adversrio do heritambm aparece em A Pequena Sereia, deAndersen, conto no qual a princesa ausurpadora, inventa que salvou o prncipepara casar com ele e derrota, assim, apequena sereia.

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    Aplicando os conceitos de Propp, consi-dero que um personagem sempre um per-sonagem, mas os papis variam segundo ainterao do personagem com a trama. Umaprincesa pode ser afilhada de fadas, comoem A Bela Adormecida ou Pele de Asno. Opapel a ser desempenhado depender decomo o enredo se articula.

    No conto A Bela Adormecida, a princesase limita a furar o dedo inadvertidamente,estimulada por uma fada rancorosa numaroca. Em seguida, ela dorme graas interveno de uma fada boa junto comtodo o reino, at que um prncipe a salve.

    Em Pele de Asno, a princesa desejadapelo pai enlouquecido, resiste ao incestuosopedido de casamento e, com o auxlio dafada madrinha, foge para uma trajetria deagruras at conquistar o corao de umprncipe.

    No primeiro, o protagonista o prncipee, no segundo, a princesa heri, e o prn-cipe, prmio.

    No conto maravilhoso, nem sempre apa-rece o elemento mgico, mesmo quandoesto articulados princesa, prmio e recom-pensas variadas. o caso de A princesa e ogro de ervilha, no qual no existe magia e,sim, reconhecimento da princesa comoheri de si mesma, porque ela, apesar dosfarrapos, uma princesa real cuja pele seressente de um gro de ervilha sob 12 col-ches.

    A articulao entre os papis de heri eprmio est presente nos contos de fadasem que a princesa faz parte do conjunto depersonagens que assumem o papel derepresentar o Bem. Vale a pena pensar umpouco sobre o significado de Bem, por-que, s vezes, acontece dos contos de fadasserem lidos como histrias de final feliz,

    histrias que defendem a moral e os bonscostumes, histrias nas quais o mal puni-do e o bem triunfa, histrias, enfim, queenganariam seus pequenos leitores levan-do-os a acreditar em um mundo irreal.

    Contos de fadas so contos picos, con-tos que tratam da jornada do heri, na qualeste repara a perda ou dano ocorrido noincio da narrativa. Esta reparao quedistingue o conto de fadas da tragdia, naqual o heri levado, por suas prpriascaractersticas, a cometer uma falha irreme-divel que o faz ultrapassar a medida e serarrastado para uma situao sem sada.

    No conto de fadas, o final feliz porqueaquela ou aquele que est envolvido nareparao da perda (a princesa, em muitosexemplos) se submete, temporariamente, sintempries. Em Os trs ces, ela, por medode morrer, aceita dizer ao rei, seu pai, quefoi o cocheiro desonesto que a salvou dodrago. Aceita ser prometida em casamentoao impostor. O que ela faz estabeleceruma resistncia passiva, pela tristeza, paraadiar o casamento durante trs anos.Tempo suficiente para o verdadeiro salva-dor voltar, com seus ces mgicos, para des-mascarar o falso pretendente. E casar com aprincesa, claro.

    Pelo parentesco com a epopia e nopor moralismo ou irrealidade, o contomaravilhoso termina na reparao da perda,culmina no triunfo do heri. Odissia, deHomero, a matriz ocidental (ou o maisabrangente exemplo da cultura ocidental)desse triunfo. Na Odissia, a princesa (rainha)est no papel de prmio. Penlope faz amesma coisa que a princesa sem nome doconto Os trs ces. Protela a escolha de umpretendente usurpador at o retorno deUlisses.

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  • So lindas, geralmente de pelemuito clara e de cabelos loiros. Algumasainda crianas, outras mal entradas na ado-lescncia. Tm uma vida tranqila e feliz,at que, em determinado momento, passampor provas e provaes, mas so salvas porjovens prncipes, belos, educados e ricos,que por elas arriscam a prpria vida e comos quais elas se casam, sendo, ento, feli-zes para sempre. Pertencem aos contos defadas, so europias e suas histrias aconte-ceram h muito e muitos anos.

    Mas nem todas as princesas so as doscontos de fadas da Europa, a bela, gloriosae deslumbrante irm. A frica, por exemplo,deu ao mundo princesas famosas, comoNefertiti, clebre por sua beleza, e Clepa-tra, imortalizada nas telas do cinema porElizabeth Taylor, dona de lindos e famososolhos de cor azul-violeta.

    Na frica de nosso imaginrio, fundem-se dois mundos. De um lado, a frica dacincia, do nascimento da geometria smargens do Nilo, da biblioteca de Alexan-dria, da opulncia dos tesouros dos faras,da imponncia das pirmides e do exotismodos safris. De outro lado, a frica da mis-ria, do fornecimento de mo-de-obra escra-va, da fome e desnutrio das crianas deBiafra, a frica da dispora, a frica, irmpobre.

    Clepatra e Nefertiti esto longe notempo. Na histria mais recente, para ondeforam e onde esto as princesas africanas?No perodo em que durou o trfico negreiro

    do Atlntico, muitas famlias reais africanasforam escravizadas e enviadas para outroslugares do mundo, em especial para asAmricas. No mapa da dispora africana1,o Brasil figura no primeiro lugar do mundo.Nosso pas tem a maior populao de ori-gem africana fora da frica, ou seja, tem85.783.143 afrodescendentes. Esse nmerorepresenta 44,7%2 da nossa populao. Ouseja, quase metade da populao brasileira formada por descendentes dos negrosafricanos que para c vieram e trabalharamsob pssimas condies, formando a mo-de-obra escrava nos engenhos de acar enas minas de ouro, durante o perodo quefoi de 1530 a 1888. aqui, portanto, emnosso pas, que est a maioria dos descen-dentes das famlias africanas (da realeza ouno) trazidas como escravas na poca doBrasil Colnia. Seus filhos - juntamentecom indgenas, europeus e asiticos - com-pem a populao brasileira e fazem partede diversas estatsticas.

    As crianas e adolescentes com ascen-dncia africana - prncipes e princesas ouno - aparecem no Censo Escolar, uma pes-quisa que abrange as diferentes etapas emodalidades da Educao Bsica no Brasil.Realizado anualmente pelo Instituto Nacio-nal de Estudos e Pesquisas EducacionaisAnsio Teixeira (Inep/MEC), o Censo Esco-lar pesquisa escolas pblicas e privadas detodo o pas, trazendo tona alguns dadosinteressantes, merecedores de uma leituramais atenta.

    So outras as nossas princesasSueli de Oliveira Rocha

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    No conheo, no entanto, nenhuma lei-tura criativa mais audaciosa do papel daprincesa nos contos de fadas do que aempreendida pelo autor ingls Neil Gaiman,no seu conto Neve. Neste, Branca de Nevedeixa de ser heri de si mesma, de ser pr-mio do prncipe que, ao final, a resgata.No, a princesa antagonista cruel da me,do pai e da madrasta.

    Seria possvel passar horas e horas aoredor da fogueira, dias e dias numa biblio-teca, muito tempo frente a um computadorouvindo, lendo, pensando e recriando apartir das princesas dos contos de fadas.

    Porque a princesa a jovem mulherconvivendo com o mundo, com o inevitvel,com o transcendente. Lidando, portanto,com a vida e com todos ns.

    Bibliografia:

    BETTELHEIM, Bruno. Psicanlise dos contos defadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

    CHEVALIER, Jean. Dicionrio de smbolos. Rio deJaneiro: Jos Olympio, 1988.

    COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. SoPaulo: tica. Srie Princpios. 1987.

    FRANZ, Marie Louise von. A interpretao dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiam, 1981.

    FREUD, Sigmund. Delrios e sonho na Gradiva deJensen. Rio de Janeiro: Imago (Coleo Standard, v.IV), 1968.

    GAIMAN, Neil. Fumaa e espelhos. So Paulo: Conrad. 2000.

    JUNG, Carl G. et alli. O homem e seus smbolos. Riode Janeiro: Nova Fronteira, s/d.

    LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. So Paulo:Brasiliense, s/d. Histrias de Tia Nastcia.

    PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso.Trad. Jasna Paravich Sarhan. Org. Boris Schnaider-man. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1984.

    SSoonniiaa RRooddrriigguueess, doutora em literatura eautora da Coleo Reconstruir, Formato Edito-rial. Para mais informaes sobre a autora,consulte: www.autoria.com.br

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  • No Brasil: 10.661.197 = 51,2%Na Educao Infantil: 1.900.436 = 49,6%No Ensino Fundamental: 6.108.266 = 50,9%No Ensino Mdio: 1.278.241 = 47,6%Ou seja, no total do ensino regular da

    Educao Bsica Brasileira, a distribuiocor/raa est equilibrada entre a branca,com 46,9%, e a negra/parda, com 51,2%. A maioria dos alunos brasileiros de des-cendncia africana e se declara de cor/raanegra ou parda. Nesse contingente esto asprincesas afrodescendentes que, do Infantilao Ensino Mdio, recebem uma educaobaseada em pressupostos europocntricosque reproduzem relaes sociais marcadaspor uma suposta superioridade branca.

    Entretanto, mesmo com a tradiorepresada, a influncia africana no Brasil sefaz presente na msica (o ritmo), na dana(os movimentos assimtricos), na culinria(o vatap), na medicina popular (as ervas,as simpatias, as benzeduras), na religio(umbanda e candombl), na lngua (angu,batuque, cachaa, fub, mianga, quitute,samba), na formao de populao, apenaspara lembrar alguns exemplos.

    Um caminho para mudar essa escolaque desconsidera a presena africana emnossa cultura dotar os contedos por elaoferecidos de referenciais africanos positi-vos; trabalhar com os alunos a valorizaode protagonistas negros, buscando produzirum efeito positivo na construo da identi-dade desses prncipes e princesas brasilei-ros afrodescendentes. Esse um caminhopara podermos contar outras histrias,essas tambm com final feliz. E delas umdia se poder dizer:

    So lindas, geralmente de pele negra.Algumas ainda crianas, outras mal entradasna adolescncia...

    Notas:

    1 Publicado em 1990, de autoria de Joseph Harris,um historiador norte-americano.

    2 Esse nmero aumenta quando os critrios so aspesquisas genticas, segundo as quais 86% dos brasilei-ros tm algum grau de ascendncia africana. De acordocom esses estudos, os genes africanos variam de 10 a100% de ancestralidade no brasileiro, que pode ou noapresentar traos de fisionomia negra, devido ao altograu de miscigenao ocorrida em nosso pas.

    3 As variveis branca, preta, parda, amarela e indge-na, para aferir o quesito cor/raa, foram definidas peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).As respostas ao questionrio para aferio desse itemso obtidas por documento comprobatrio, por auto-declarao do aluno quando maior de 18 anos, ou por

    declarao do responsvel.

    SSuueellii ddee OOlliivveeiirraa RRoocchhaa coordenadora, naBaixada Santista, do Programa de Leitura daPetrobras-RPBC pela Leia Brasil, ONG de pro-moo da leitura. Foi tambm membro da equi-pe pedaggica do Gruhbas Projetos Educacio-nais e Culturais e do conselho editorial dos jor-nais Bolando Aula, Bolando Aula de Hist-ria e Subsdio.

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    Desde 2005, o Censo Escolar vem incluin-do em seu questionrio o quesito cor/raa3.Em 2007, na modalidade ensino regular, oCenso Escolar revelou os seguintes nme-ros de alunos, para esse quesito:

    Entre as vrias ponderaes que podemser desenvolvidas a partir da anlise dasinformaes produzidas pelo Censo Esco-lar, alguns dados chamam a ateno. Umdeles que, medida que a escolaridadeavana, aumenta o nmero dos que nodesejam declarar sua cor/raa. precisolembrar que durante o perodo da escravi-do, os negros escravizados trabalhavamde sol a sol, recebendo uma alimentaode pssima qualidade, no podiam prati-car a prpria religio nem a prpria ln-gua; suas festas e rituais eram proibidos;

    e, para que fossem impedidos de fugir,eram acorrentados. Nas reminiscnciasdessas humilhaes pode estar embutidoo desconforto do adolescente do EnsinoMdio, que prefere no declarar a prpria

    cor/raa no questionrio do censo Escolar,evitando qualquer possibilidade de discri-minao.

    Outra constatao que, no EnsinoMdio, enquanto a populao brancaaumenta (50,7%), diminui a presenanegra/parda (47,6%). A pergunta que nocala : quantos conseguiro chegar ao Ensi-no Superior?

    Outro fato importante que, somandoos resultados referentes raa/cor preta eparda, indicativa da afrodescendncia,encontramos:

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    NMERO DE ALUNOS DA EDUCAO BSICA NO BRASIL, POR RAA/COR EM 30/5/2007

    ENSINO REGULAR

    Total do Brasil Total da EducaoInfantil

    Total do Ensino Fundamental

    Total do EnsinoMdio

    Total de matrculas 52.179.530 6.417.502 31.733.198 8.264.816

    Raa/cor

    No declarada 8.264.81615,8%2.549.841

    39,7%19.801.732

    62.4%5.583.355

    67,5%

    Declarada 20.773.97684,2%

    3.867.66160,3%

    11.971.46637,6%

    2.681.46132,5%

    Branca 9.761.19046,9%

    1.913.83149,4%

    5.602.23646,7%

    1.360.62050,7%

    Preta 1.244.3195,9%

    200.2475,7%

    688.1295,7%

    153.0315,7%

    Parda 9.416.87845,3%

    1.700.18943,9%

    5.420.13745,2%

    1.125.21041,9%

    Amarela 179.0820,8%

    31.8010,8%

    105.1250,8%

    25.1950,9%

    Indgena 172.5070,8%

    21.5930,5%

    115.8390,9%

    17.4050,6%

    Fonte. http://inep.gov.br. Censo Escolar 2007, tabelas 1.2; 1.7; 1.19; e 1.31.Observao: Para efeito deste texto, apenas o ensino regular foi considerado. Ficaram, pois, fora dele a Educao de

    Jovens e Adultos, a Educao Especial e a Educao Profissionalizante.

  • A costumados imagem europiadas fadas que ilustram os contos desde oincio da literatura infantil, fica difcil nosdescolarmos da figura da fada sempre toloura, to esguia e to doce que nos foiimposta, e conseguirmos contextualiz-lanos contos das diferentes culturas.

    Nas diferentes cidades em que dou ofici-nas de contadores de histrias, costumocontar uma histria escrita por Gail Harley,chamada O Ba das Histrias. Trata-se deuma antiga histria da cultura yorub, quenos conta como Ananse, o homem aranha,conseguiu comprar de Nyame, o Deus doCu, histrias que ficavam encerradas den-tro de um ba, para espalh-las pelo mundo.Para tanto, o Deus lhe imps trs tarefas,entre elas, que ele lhe trouxesse Moatia, afada que nenhum homem viu.

    Aps cont-la, costumo passar o vdeo dahistria. A reao invariavelmente a mesma:como, uma fada negra? Como, uma fadato diferente?...uma fada que se irrita?...que ameaa bater numa boneca de piche?

    Embora eu enfatize a procedncia afri-cana da histria enquanto a narro, emboraa narrativa esteja pontuada por palavrasestranhas e conserve as onomatopiascaractersticas dos contos yorub, a apari-o de Moatia - trajada com uma saia depalha, com um turbante na cabea e desa-fiando uma boneca de piche que no res-ponde suas perguntas - sempre causa estra-nhamento. como que se a imagem deuma fada humanizada, com caractersticas

    de sua raa e capaz de sentimentos menosnobres, fosse uma espcie de traio a umaconcepo h muito enraizada em nossoimaginrio.

    No entanto, as histrias clssicas, osmitos gregos, as lendas dos mais variadospases nos falam o tempo todo das altera-es fsicas e de humor dessa figura atem-poral que habita nossa imaginao.

    No podemos nos esquecer que, no cls-sico A Bela Adormecida, foi uma fada, e nouma bruxa, que lanou sobre uma recm-nascida uma sentena de morte por no tersido convidada para o banquete de seubatizado; que na histria As fadas, recolhidapor Perrault, a mesma fada que deu a umamenina o dom de, ao falar, verter pela bocarosas e prolas, condenou outra a cuspirsapos, escorpies e toda sorte de animaispeonhentos a cada vez que pronunciasseuma palavra. Melusina, que se transformavaem serpente a cada sbado, Morgana, orajovem, ora velha, as Moiras, implacveisdonas do destino temidas at por Zeus, soapenas alguns exemplos das oscilaes dehumor e das transformaes das quais essascriaturas mgicas so capazes.

    Antero de Quental, em seu poema Asfadas, nos fala sobre elas e nos adverte:

    (...) Quem as ofende...cautela! A mais risonha, a mais bela, Torna-se logo to m, To cruel, to vingativa! inimiga agressiva,

    Que fada essa?Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque

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  • Havia uma vez um chefe africanoque tinha duas mulheres e com cada umadelas tinha uma filha.

    Aconteceu que, um dia, a primeiramulher morreu, e sua filha teve de ir morarcom a segunda mulher, que no gostavanem um pouquinho dela e logo passou amaltrat-la de todas as maneiras.

    Era ela quem cuidava dos animais, tiravagua do poo, cortava lenha, e como setudo isso no bastasse, ainda tinha de moero tuwo1 e o fura2, e dar de comer a toda afamlia. O pior, que depois de todo o tra-balho feito, a madrasta s permitia que elacomesse as raspas queimadas que sobravamno fundo da panela.

    Sem nada poder fazer, a menina sentava-se perto de um poo e comia o que conse-guia. O resto, jogava para os sapos quemoravam dentro dgua.

    E assim aconteceu dia aps dia, at queao lugar chegaram mensageiros de umaaldeia vizinha, anunciando que haveria umagrande festa no dia do Festival da Colheita.

    Nesta tarde, quando ela foi para o poocomer as raspas que a madrasta lhe dera,ela encontrou um enorme sapo, que foilogo dizendo:

    Donzela, amanh o dia do Festival.Venha at aqui assim que o sol raiar e ns aajudaremos.

    Na manh seguinte, porm, quando elaestava indo para o poo, a meia irm lhe disse:

    Volte aqui, sua menina intil! Vocno mexeu o tuwo, nem moeu o fura, nem

    pegou gua no poo, nem lenha na floresta.Ento ela voltou para fazer esses traba-

    lhos e o sapo passou o dia inteiro esperan-do por ela.

    Ao entardecer, assim que acabou todo oservio, ela correu para o poo e l estava ovelho sapo, que foi logo dizendo:

    Tsc, tsc. Esperei por voc desde demanh e voc no veio.

    Velho amigo respondeu a menina -eu sou uma escrava. Minha me morreu eeu me mudei para a cabana da outra mulherde meu pai. Ela me faz trabalhar sem parare s me d restos de comida para comer.

    O sapo, ento, disse: Menina, d-me sua mo.Ela estendeu-lhe a mo e pularam jun-

    tos para dentro dgua.A, ele a levantou, engoliu-a e depois a

    vomitou. Boa gente disse ele para os outros

    sapos - Olhem e digam-me. Ela est reta outorta?

    Os sapos se entreolharam e responde-ram: Ela est torta para a esquerda.

    Ento ele novamente a levantou, engo-liu-a, vomitou-a e novamente perguntouaos outros sapos:

    Boa gente. Olhem e digam-me. Elaest reta ou torta?

    Ela est bem reta agora coaxaram ossapos.

    Ento ele vomitou roupas, pulseiras,anis e um par de sapatos, um de prata eoutro de ouro, e disse:

    A donzela, o sapo e o filho do chefeMaria Clara Cavalcanti de Albuquerque

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    serpente que ali est! E tm vinganas terrveis! Semeiam coisas horrveis, Que nascem logo do cho... Lnguas de fogo que estalam! Sapos com asas, que falam! Um ano preto! Um drago!

    Ou deitam sortes na gente... O nariz faz-se serpente, A dar pulos, a crescer... -se morcego ou veado... E anda-se assim encantado, Enquanto a fada quiser! (...)

    Nesta revista, temos uma excelente opor-tunidade de refletir no s sobre a naturezadas fadas, mas tambm sobre o que faz comque essas histrias se espalhem, quase quepor magia, por todos os cantos do mundo,ganhando em cada canto um novo colorido,uma nova roupagem, um novo cenrio, masfalando sempre, embora com os sotaquesmais variados, das necessidades e sentimen-tos mais bsicos do ser humano.

    MMaarriiaa CCllaarraa CCaavvaallccaannttii ddee AAllbbuuqquueerrqquuee psicloga, especialista em Literatura Infanto-juvenil (UFF) e Leitura (PUC-Rio) e contadorade histrias do Confabulando.

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  • do chefe, diga-lhe: Viver na cabana dochefe muito difcil, porque eles medem omilho com uma concha de Bambara4.

    Um dia, a madrasta foi com a filha visitar amenina e perguntou-lhe como era a sua vida.

    Lembrando-se dos conselhos do sapo,ela respondeu:

    Oh! muito difcil. Eles usam umaconcha de Bambara para medir o milho.Quando as outras mulheres do chefe vmme cumprimentar, eu respondo com umBAH! de desprezo. Se as concubinas vmme cumprimentar, eu cuspo nelas. E quan-do meu marido chega na cabana, eu gritocom ele.

    A madrasta, na mesma hora, colocou aprpria filha na cabana e obrigou a rf avoltar para casa com ela.

    Na manh seguinte quando as mulheresvieram cumpriment-la, a filha da madrastagritou-lhes: BAH!. Quando as concubinasvieram visit-la, ela cuspiu nelas. E quandocaiu a noite e o filho do chefe foi v-la, elagritou com ele.

    O filho do chefe achou aquilo muitoestranho.Saiu dacabana e

    por dois diaspensou noassunto.

    Depois,reuniu suas

    mulheres e concubi-nas e disse para elas:

    Olhem! Chamei vocspara perguntar-lhes: Como minha novaesposa trata vocs?

    Como nos trata?! exclamaram elas. -Cada manh, quando amos cumpriment-la, ela nos dava duas cabaas de nozes e dez

    mil cowries para comprar flores de tabaco.Depois dava a cada uma de ns uma cabaade nozes, cinco mil cowries para comprar flo-res de tabaco, e um saco cheio de milho parafazer tuwo. Agora ela grita Bah! e nos cospe.

    V - disse ele. Antes, quando ia v-la,eu sempre a encontrava ajoelhada e elase deitava comigo na cama de ouro, agoraela grita comigo. Acho que trocaram amenina.

    O filho do chefe, ento, chamou seusguerreiros. Eles entraram na cabana damoa e a cortaram em pedacinhos.

    Depois, foram casa da madrasta e lencontraram a pobre rf deitada nas cin-zas da fogueira. Na mesma hora a levaramde volta para o marido.

    Na manh seguinte, ela contou ao mari-do como o sapo a havia ajudado e pediuque ele mandasse construir um poo prxi-mo sua cabana para que o velho sapo etodos outros sapos, grandes ou pequenos,passassem a morar ali. E assim foi.

    Notas:

    1 Tuwo uma espcie de mingau.

    2 Fura uma espcie de mistura de cereais.

    3 Conchas usadas como dinheiro em vrias tribosafricanas.

    4 Expresso que significa como as pessoas aqui so

    po-duras, h pouco para comer.

    Traduo e adaptao de MMaarriiaa CCllaarraaCCaavvaallccaannttii de The maiden, the frog & thechiefs son, de William Bascom, e que fazparte do livro CINDERELLA, A FolkloreCasebook, de Alan Dundes Garland, da editoraPublishing, Inc. New York & London. 1982p.148. Este conto foi publicado no Journal ofthe Folklore Institute, em 1972.

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    Tome. Vista-se e v ao Festival. Maspreste ateno. Quando a dana estiverquase no fim e os danarinos j estiveremse dispersando, deixe seu sapato de ouro le volte para casa.

    A menina vestiu as lindas roupas, enfei-tou-se com as lindas jias que o sapo lhedera e correu para o Festival.

    Quando o filho do chefe a viu chegando,disse:

    A est uma donzela para mim. Nome interessa de que casa ela vem. Tragam-na aqui!

    Ento os servos levaram a menina atonde ele estava e juntos eles passaram anoite toda conversando. Mas quando os bai-larinos comearam a se dispersar, ela selevantou e, antes que o filho do chefepudesse impedi-la, saiu correndo, deixandoo sapato de ouro para trs.

    Na beira do poo, j esperando por ela,estava o sapo. Mais do que depressa, elespularam dentro dgua, ele a engoliu evomitou-a: e l estava ela, exatamente comoera antes, vestida com andrajos.

    Enquanto isto, o filho do chefe dizia aopai:

    Pai, hoje conheci uma jovem que usavaum par de sapatos, um de ouro e outro deprata. Aqui est o de ouro, ela o esqueceuaqui. Ela a menina com quem eu querome casar. Faa com que se renam todas asjovens, moas ou velhas dessa aldeia e daaldeia vizinha, para descobrir quem tem ode prata.

    O chefe na mesma hora ordenou que sereunissem todas as donzelas e cada umaexperimentou o sapato, mas em nenhumaele serviu. Foi quando algum disse:

    Espere um minuto! Ainda h aquelamoa rf, que mora naquela casa.

    Buscaram ento a moa. Assim que ofilho do rei a viu, correu em direo a ela,calou o sapato de ouro em seu p e levou-a com ele para sua cabana.

    Assim que ela partiu, o sapo chamoutodos os outros sapos, tanto os grandesquanto os pequenos, e lhes disse:

    Minha filha est se casando. Queroque cada um de vocs d a ela um presente.

    E cada um deles vomitou coisas para ela:cobertores coloridos, tapetes, esteiras, teci-dos, vasilhas, e o sapo velho, depois demuito esforo, vomitou uma cama de prata,uma cama de cobre e uma cama de ferro.

    Na manh seguinte, quando a meninaacordou, viu na soleira da porta o velhoamigo e os presentes. Ela ajoelhou-se res-peitosamente e ele lhe disse:

    Isto tudo para voc. Mas preste aten-o. Quando seu corao estiver triste,deite-se na cama de bronze. Quando seucorao estiver tranqilo, deite-sena cama de prata e quando o filhodo chefe vier visit-la, deite-se comele na cama de ouro. Quando asoutras mulheres de seu esposo vieremcumpriment-la, d-lhes duas cabaasde nozes e dez mil conchas de molusco3

    para comprarem flores de tabaco. Quandoas concubinas vierem pegar milho parafazer o tuwo, deixem que se sirvam vonta-de. Mas, se a mulher de seu paivier com sua filha e lhe per-guntar como viver nacabana

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  • A histria africana e a histria doBrasil esto repletas de histrias de rainhasnegras. Talvez a mais clebre delas seja ade Jinga, ou Nzinga, como sepronunciava em mbundu. Nas-cida por volta de 1581, viveunum dos territrios tributriosdo antigo reino do Congo,Ndongo. Sua trajetria sur-preendente e fabulosa. Por voltade 1622, Jinga fora enviada aLuanda, cidade que sediava aadministrao portuguesa emAngola. Ela se apresentou emLuanda como uma espcie deembaixadora de Ndongo, reinopara o qual os portugueses queriamexpandir seu comrcio de escravos.Nessa circunstncia, foi batizada com o nome catlico de Ana.

    Em 1624, o reino de Ndongo viveuuma crise de sucesso. Como nohavia sistemas baseados na primoge-nitura, como na Europa, as regrasde sucesso na frica previam aeleio de um rei entre membrosda nobreza e a conseqente for-mao de partidos. Naquela cir-cunstncia, estavam de lados opostosJinga e Ngola-a-Ari, o qual saiu vito-rioso. Jinga retirou-se com seu povo paraas regies de Matamba, tornando-se rainhadesde ento. Ngola-a-Ari, contudo, morreuenvenenado em 1627, permitindo o regres-so de Jinga, que passou a governar Ndongo.

    Seu longo reinado durou at 1663, e tantoportugueses como, depois, holandesestiveram que negociar com ela, ou enfrentarsua resistncia penetrao europia em

    alguns territrios de Ndongo. Os por-tugueses, particularmente, reconhe-ciam-lhe a autoridade poltica, poisem outubro de 1641 uma ordem do

    Conselho Ultramarino criticava Fernode Souza, ento governador em Angola,por este ter tirado a realeza de Jinga,reiterando que a ela, e s a ela,

    assistia o direito e a justia emNdongo.

    Ao longo de seu reinado,Jinga enfrentou vrias guerrascontra outros reis africanos ou

    contra autoridades europias.Numa guerra travada em 1629pelo controle de Matamba, suasirms, Kambo e Funji, caramnas mos dos portugueses, aca-

    bando presas em Luanda. Anosdepois, Jinga fez acordos com osholandeses, que ocuparam Luanda em agosto de 1641. Da at 1643 viveuuma guerra dramtica contra os

    Imbagalas de Kassanji, queresistiam presena batava. A

    partir de 1644, os portugueses foramseus principais inimigos em sucessivasbatalhas que duraram at 1648. Em 1651,porm, a rainha Jinga e o governador deAngola, Salvador Correia de S e Benevides que governara o Rio de Janeiro entre

    Rainhas negras na frica e no BrasilLuiz Geraldo Silva

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    Conta a Lenda que Dormia

    Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem s despertaria Um Infante, que viria

    De alm do muro da estrada.

    Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, j libertado,

    Deixasse o caminho errado Por o que Princesa vem.

    A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida,

    E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.

    Longe o Infante, esforado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado.

    Ele dela ignorado. Ela para ele ningum.

    Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino

    Pelo processo divino Que faz existir a estrada.

    E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro,

    E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera,

    A cabea, em maresia, Ergue a mo, e encontra hera,

    E v que ele mesmo era A Princesa que dormia.

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    Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

  • R ainhas e princesas da frica souma fonte de mitos e de fantasias para a culturaocidental. Elas renem poder e exotismo, atra-o sexual e mistrio histrico.

    A Rainha de SabTalvez a soberana africana cuja lenda a

    mais remota seja a Rainha de Sab. Suavisita ao rei Salomo descrita no I Livrodos Reis, no Antigo Testamento. Alm debela e riqussima, era uma mulher de gran-de sabedoria. A Bblia no indica que tenhaocorrido nenhum caso amoroso entre osdois, mas d a entender que eles travaramum desafio de inteligncia e de adivinha-es. Propor enigmas durante festas era umcostume em Israel (veja-se o enigma pro-posto por Sanso aos filisteus, em Juzes,14: 14: Do comedor saiu comida, e do forte saiudoura).

    E at a rainha de Sab, ouvida afama de Salomo no nome do Senhor, veio fazer experincia nele por enigmas.E tendo entrado em Jerusalm com gran-de comitiva, e rica equipagem, comcamelos que traziam aromas, e infinitaquantidade de ouro, e pedras preciosas,se apresentou diante do rei Salomo, elhe descobriu tudo quanto trazia no seupeito. E Salomo a instruiu em todas ascoisas, que ela lhe tinha proposto: nohouve nenhuma que o rei ignorasse, esobre a qual ele no lhe respondesse. (I Reis, 10: 1-3)

    Reza a lenda, no entanto, que os doisforam amantes. A rainha teria pedido aorei, quando este a hospedou no palcio,que no a possusse sem o seu consenti-mento. Salomo acedeu, pedindo apenasque ela no se apoderasse, sem o consenti-mento dele, de nenhuma riqueza que visse sua volta. Tendo assim combinado, osdois foram jantar e o rei deu instruesveladas aos criados para que servissemcomida com muito sal e tempero. Durante a noite, a rainha acordou com sede e levan-tou-se para beber gua. Salomo surgiudiante dela e disse que a maior riqueza dopovo de Israel era a gua; se ela quebrasse a palavra dada, ele se sentiria no direito defazer o mesmo. E (diz a lenda) ambos acha-ram mais sensato liberar-se mutuamentedas promessas feitas e aproveitar a compa-nhia um do outro.

    A Rainha de Sab foi tema de dezenasde livros, poemas, filmes (foi interpretadano cinema, entre outras atrizes, por GinaLollobrigida em 1959 e Halle Berry em1994). William Butler Yeats dedicou a ela eSalomo um poema famoso, em que o Reidiz: No h homem ou mulher nascidossob o cu cujo saber se compare ao nosso, e durante este dia inteiro descobrimos queno h nada como o amor para fazer o restodo mundo parecer um curral estreito. Oromancista H. Rider Haggard, em As Minasde Salomo, criou a famosa imagem dosSeios da Rainha de Sab, dois montesgmeos que, num mapa do tesouro, indicam

    As princesas africanasBraulio Tavares

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    1637 e 1642 firmaram a paz, bem comoacordos comerciais. Naquela ocasio,Salvador de S afirmara a Jinga que eramaior honra poder cooperar pelo aumen-to de sua grandeza, que ser servido portodos os escravos no da Matamba, mas detoda a frica. Em 1656, aos 75 anos deidade, Jinga permitiu a entrada de capu-chinhos em seu territrio, casou-se peloritual catlico e manifestou clara vontadede praticar o catolicismo. Tudo isso faziaparte da poltica de alianas com os portu-gueses. Esses, graas a ela e aos acordoscomerciais antes firmados, incrementaramo trfico de escravos a partir da fricaCentro-Ocidental, o qual atingiu volumesem precedente. Em troca, Jinga controla-va na dcada de 1660 o mais importanteespao econmico da frica Central Oci-dental alguma vez submetido a uma sautoridade, como afirma o africanistaportugus Adriano Parreira.

    Foi graas a rainhas como Jinga que ocomerciante francs Louis-Franois deTollenare conheceu, em dezembro de1816, outra rainha, chamada Tereza, umaescrava do engenho Sibir, provncia dePernambuco. Era uma bela mulher, de 27a 28 anos, muito alegre e faladeira, escre-veu. Tereza fora rainha em Cabinda, naregio de Loango, tambm situada na fri-ca Centro-Ocidental. Pega em adultrio,acabou convertida ao cativeiro. Ao chegarao Brasil, trazia aneles de cobre douradonas pernas e nos braos, e era altiva, recu-sando-se a trabalhar. Por volta de 1814,uma negra da moenda adoeceu. Tereza asubstituiu. Pouco afeita quele trabalho,teve uma das mos presa ao cilindro queesmagava cana de acar. Tentou livrar-secom a outra mo, mas esta tambm ficou

    presa. Tereza perdera, assim, dois antebra-os, amputados antes que gangrena a con-sumisse. Vi a pobre Tereza neste lament-vel estado, diz Tollenare em dezembro de1816. Hoje no pode mais trabalhar,continua o francs; empregaram-na,porm, utilmente para vigiar as compa-nheiras, e sabe fazer-se temer e obedecer.Uma vez rainha, sempre rainha.

    Jinga e Tereza no apenas foram rai-nhas. Tambm possuem destinos entrela-ados. Uma favoreceu enormemente o tr-fico de escravos, o que permitiu a outra tervindo parar deste lado do Atlntico, e nocativeiro. Uma realizou um governo longoe bem sucedido, marcado por guerras ecrises, mas tambm por acordos de paz. Aoutra tambm guerreou a princpio contraseu senhor, mas acabou se submetendo aele, ao mesmo tempo em que viu seupoder reconhecido no engenho onde vivia.So histrias de mulheres que ligam africa e o Brasil. Mulheres rainhas que,mesmo em desgraa, jamais perderam arealeza.

    Bibliografia recomendada:

    PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade emAngola na poca da rainha Jinga, sculo XVII. Lisboa:Editorial Estampa, 1990.

    THORNTON, John. A frica e os africanos na for-mao do mundo atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro:Editora Campus, 2004.

    FAGE, J. D. Histria da frica. Lisboa: Edies 70,1997.

    LLuuiizz GGeerraallddoo SSiillvvaa - Professor do Departa-mento de Histria da Universidade Federal doParan (UFPR); Bolsista-Pesquisador do Con-selho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico (CNPq).

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  • mais equilibrado da rainha, mostrando quesua fora no residia apenas na beleza:

    Sua formosura, assim nos disseram,no era de modo algum incomparvel,nem de molde a impressionar os que aviam. Mas sua conversao tinha umencanto irresistvel, e sua presena, combi-nada com o tom persuasivo de sua fala, ea personalidade que se imprimia em seurelacionamento com os demais, tinha algode estimulante. Tambm havia uma dou-ra no seu tom de voz, e sua lngua, comoum instrumento com muitas cordas, seamoldava a qualquer idioma da formaque melhor lhe convinha.

    Clepatra tinha cerca de vinte anos quan-do conheceu Jlio Csar, que tinha mais decinqenta. Era provavelmente de pequenaestatura, a julgar pelo episdio de seu pri-meiro encontro com Csar, em que ela se fez

    enrolar num tapete e entrou assim no pal-cio, surgindo aos ps de Csar quando otapete foi desenrolado diante do seu trono.

    AyeshaNa literatura, h uma princesa africana

    que rene em si toda a mstica de Clepatrae da Rainha de Sab, numa obra-primaobscura escrita pelo mesmo autor de Asminas de Salomo, H. Rider Haggard: Ela(Editora Record), um romance de 1887 emque um grupo de exploradores encontranum recanto perdido da frica um reinonegro governado por uma rainha brancaque se diz ter mil anos de idade. Sua beleza tal que ela precisa aparecer velada diantedos seus sditos, para que no enlouque-am de paixo. Seu nome Ayesha; seupovo a chama Aquela-que-deve-ser-obede-cida. Ayesha julga reencontrar no explora-dor ingls a reencarnao do seu amor per-dido, que ela esperava h sculos.

    A princesa africana um desses mitosnecessrios, que parecem preencher umanecessidade coletiva de acreditar na possi-bilidade de existncia de mulheres belas,irresistivelmente sedutoras, poderosas,capazes de mudar o curso da Histria comseus caprichos.

    BBrruulliioo TTaavvaarreess escritor, compositor, estu-dou cinema na Escola Superior de Cinema daUniversidade Catlica de Minas Gerais. Tam-bm pesquisador de literatura fantstica,compilou a primeira bibliografia do gnero naliteratura brasileira, o Fantastic, Fantasy andScience Fiction Literature Catalog (FundaoBiblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou Amquina voadora, A espinha dorsal damemria e Os martelos de Trupizupe, entreoutros.

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    a direo das famosas minas e do tesourofabuloso que l se oculta.

    Outra lenda sobre a rainha conta que,passeando por Jerusalm, ela teria se recu-sado um dia a atravessar uma ponte demadeira, sem dizer no entanto a razo. Alenda explica dizendo que ela percebeu,com sua clarividncia, que da madeiradaquela ponte seria feita a cruz em queJesus Cristo viria a ser crucificado.

    ClepatraClepatra a rainha africana mais famo-

    sa. Sendo uma governante poderosa, e quese envolveu numa relao poltica e amoro-sa com dois generais romanos, ela passoupara a Histria como uma tpica mulherfatal, aquela pela qual os homens esto dis-postos a sacrificar um imprio inteiro.Olavo Bilac, num soneto famoso, disse que

    ela se suicidou porque temeu ser levadacomo prisioneira para Roma: matou-a omedo de ser feia. O carnavalesco JoosinhoTrinta costumava afirmar que Hollywooddistorceu a verdade histrica ao escalar abranqussima (e de olhos violeta) ElizabethTaylor para o papel da rainha egpcia, pois,segundo ele, ela era uma neguinha, comoa maioria dos egpcios de sua poca.

    Na verdade Clepatra pertencia ao ramomacednio (descendente de Alexandre, oGrande) que governou o Egito por vriasdinastias e, se no era alva como Liz Taylor,tambm no seria propriamente uma nbia.Celebrada pela literatura, pela poesia, pelocinema e teatro e, principalmente, pela tra-dio oral, Clepatra entrou para a culturade massas como a mulher mais bela domundo em sua poca. Plutarco, em sua bio-grafia de Marco Antnio, nos d um retrato

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  • A beleza andava de mos dadascom a princesa Abena, pois tinha reunidonuma s pessoa um harmonioso pescooalongado, um rosto arredondado e seiosgrandes.

    O rei, seu pai, sorria para si e para omundo, cada vez que constatava, com osprprios olhos, a formosura da filha. E porisso acreditava que seria fcil cas-la, quan-do chegasse a hora.

    A sucesso dos anos s aumentava aperfeio dos traos de Abena. Alm detudo, ela tinha ainda a ajuda dos magnfi-cos trajes que usava: sempre envolta nosmais belos tecidos e vestimentas; sempreadornada com os mais fulgurantes colarese brincos; sempre emergindo do coloridodas roupas, como a mais nobre viso dabeleza.

    A notcia da suprema graa de Abenacirculou pelas tribos, atravessou os mares,subiu aos cus, correu por toda a fricatropical. Mas foi s quando os habitantesdos mais distantes povoados comearam achegar para ver com seus prprios olhos aprincesa mais linda do mundo, que che-garam tambm os pedidos de casamento.

    Os primeiros pretendentes mo daprincesa foram o Fogo e a Chuva.

    A Chuva surgiu de repente, meio sescondidas, usando um kente2 nico, feitoda mais pura seda, especialmente paraaquela ocasio. Pedir a mo daquela prince-sa exigia roupa adequada e padronagemnunca antes vista!

    Nem preciso dizer que Abena encan-tou-se logo com os modos de seu primeiropretendente. O olhar molhado, o corpoluzidio, as palavras que rolavam feito guacantante, ficaram ainda mais bonitas nosversos que ele chuviscou nos seus ouvidos:

    - O olhar do amor fez passear o passari-nho que assim baixinho, trouxe gua do seubico at seu ninho...

    E o pretendente ofereceu ainda mais:- Linda Abena, olhe para adiante, olhe.

    Daqui at as savanas de Burkina Fasso, atas areias do Golfo da Guin, at as planta-es do Togo, at as florestas da Costa doMarfim, voc no encontrar ningum queseja mais poderoso que a Chuva. Com umsimples aceno das mos, fao crescer asplantaes e multiplico as colheitas e aservas para os rebanhos. Graas a mim, tere-mos sempre gua pura para beber e rios elagos cristalinos, cheinhos de peixes, ondese pode nadar e pescar.

    E as palavras da Chuva soaram to musi-cais aos ouvidos de Abena, e seu coraosolitrio ficou to refrescado, que ela aca-bou prometendo-lhe casamento. E pediu-lhe que voltasse no outro dia para acertaros detalhes com o Rei.

    Acontece que enquanto Abena secomprometia com a Chuva, o Rei, namesma hora, logo ali, em outro aposento,firmava acordo com o Fogo. Este segundopretendente tinha tambm ido pedir amo da princesa. E da mesma forma que aChuva, mostrou-se em trajes suntuosos e,

    O casamento da princesa1Celso Sisto

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    faziam vibrar a pele do antlope negro querecobria cada tambor, os chifres e as trom-betas espalhavam no ar seus sons, ora esti-mulando as torcidas, ora impulsionando os

    concorrentes. Tudo ao redorparecia cantar:

    Quero ouvir os tam-bores a tocar.

    Quero sentir os psdos que danam.Quero sentir os tambo-

    res a tocar.Quero ouvir os ps dos

    que danam...O Fogo estava ganhando. Havia no

    ar um vento que o ajudava a multipli-car as chamas e a alastrar-se rapida-mente. Por mais esforo que fizesse aChuva, suas gotas eram insuficientespara coloc-la na frente. Ao contr-rio, quanto mais vertia gua, maispesada ficava, e mais terreno perdia!

    O Fogo foi avanando, deixandopara trs apenas as cinzas do que

    tocava com todo o seu calor e potncia. Jera quase o vencedor...

    Mas no momento da chegada, ali onde jevoluam as mscaras rituais e o povo seaglomerava, eis que o Cu lanou um imen-so rugido. Um trovo, que foi ouvido desdeas guas do golfo at as paredes das monta-nhas, ecoou no ar. E foi o suficiente para,em seguida, desabar o maior aguaceiro deque j se teve notcia. Uma cortina dechuva despencou com a fora de uma imen-sa manada de elefantes correndo pelassavanas, impedindo qualquer um de ver umpalmo diante do nariz. Chuva da espessurado mundo, rpida, brilhante, quebrando-senas folhas, fustigando as pedras, martelan-do o cho.

    O Fogo que avanava destemido apagou-se a poucos metros da linha de chegada. Ea Chuva enfim foi declarada vencedora!

    A princesa Abena, mais feliz do quenunca, atirou-se de braos abertos sob agua celeste e bailou como nunca ningumvira. Seu corpo inteiro comemorava a vit-ria da Chuva, inclusive seus olhos. O ritmodos tants, que ento batiam mais forte,obrigou todos que ali estavam a entrar nadana, que se estendeu por incontveisnoites.

    Daquele dia em diante, o Fogo e aChuva tornaram-se inimigos mortais. Suma coisa no teve mais jeito: toda vez quechove forte, as pessoas param o que estofazendo e pem-se a bailar debaixo da guaque cai do Cu, tudo, tudo ainda paracomemorar o casamento da princesa.

    Notas:

    1 Conto popular de Gana e pases da frica Oci-dental, recontado pelo autor.

    2 Traje tpico do povo ashanti.

    CCeellssoo SSiissttoo escritor, ilustrador, contadorde histrias do grupo Morandubet (RJ), ator,arte-educador, especialista em literaturainfantil e juvenil, pela UFRJ, Mestre em Lite-ratura Brasileira pela UFSC, Doutorando emTeoria da Literatura pela PUC-RS e respons-vel pela formao de inmeros grupos de con-tadores de histrias espalhados pelo pas. Tem36 livros publicados para crianas e jovens erecebeu os prmios de autor revelao do anode 1994 (com o livro Ver-de-ver-meu-pai,Editora Nova Fronteira) e ilustrador revelaodo ano de 1999 (com o livro Francisco Gabi-roba Tabajara Tup, da editora EDC) pelaFNLIJ.

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    com finssimos modos, apregoou seupoder:

    - Meu Rei, veja por si mesmo. Daqui atas savanas de Burkina Fasso, at as areiasdo Golfo da Guin, at as plantaes doTogo, at as florestas da Costa do Marfim,no haver ningum com maior vigor que oFogo. Minhas chamas mantm os animaisperigosos ao longe, cozinham a comida dia-riamente, iluminam as interminveis noitesescuras e aquecem o corpo durante a rigo-rosa estao do frio. Que mais algumpoderia oferecer sua bela filha? Consintaque eu me case com ela!

    O Rei ficou to impressionado com talpretendente, e casar a filha durante acolheita do cacau era deciso to antiga,que acabou por aceitar a proposta! Disseque ia comunicar o trato princesa e man-dou que o Fogo voltasse no dia seguinte,para acertarem os detalhes.

    Mais tarde o Rei chamou a filha e comu-nicou-lhe a deciso que havia tomado:

    - Encontrei teu futuro marido!- Como assim, meu pai?- Prometi ao Fogo que te casars com ele!- Com o Fogo? Mas eu prometi Chuva

    que me casaria com ela!Estava armada a confuso! O Rei, preo-

    cupado, ps-se a pensar numa soluo parano ter que faltar com sua palavra. A prince-sa, por sua vez, no queria trair seu corao.

    - No podemos quebrar nossas promes-sas! Sempre foi assim com nosso povo! Eassim ser! sentenciou o Rei.

    Na manh seguinte, mal a claridade dodia luziu no horizonte, l estavam o Fogo ea Chuva nas terras do Rei. Vinham certosde que em breve tambm fariam partedaquilo tudo ali, casando-se com a princesaAbena. Mas um no sabia ainda do outro.

    O Rei veio receb-los, e, sem rodeios,disse que j havia decidido a data para ocasamento com sua filha.

    - O meu casamento com ela? pergun-taram o Fogo e a Chuva ao mesmo tempo!

    S ento se deram conta de que algumacoisa estava errada. Mas o Rei apressou-seem dizer:

    - A princesa Abena se casarcom o vencedor da corrida queorganizei para o dia do casamento!

    A notcia espalhou-secomo chuva mida. A notciacorreu como um rastro de fogo.Em toda a frica Ocidental nose falava em outra coisa a no ser na tal disputa pela mo da princesa! Havia osque apostavam noFogo. Era grande onmero dos quetorciam pela Chuva.

    S a princesaAbena conhecia de antemo o resultado, poisdizia para si mesma que fossequem fosse o ganhador da corrida,ela s se casaria com a Chuva. Assimela havia prometido desde o incio,assim queria o seu enredado corao.Mas esse segredo, que no podia sercompartilhado com ningum, fazia-asofrer, deixava-a triste, murchava suabeleza. Afinal, como ir contra a deci-so soberana do prprio pai?

    Chegou finalmente o dia marcado.Era dia de festa e toda a aldeia estavaenfeitada para a corrida e para a ceri-mnia do casamento. Todos esperavamo resultado final.

    O rei deu a partida e a Chuva e oFogo comearam a correr. Os tants

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  • Onome dela era Marinela. Ningum acreditava que eu namorava

    uma princesa africana. Algumas pessoas nem sabiam que existia

    princesa na frica.Mas a minha era de l mesmo, de Luanda.A Marinela era branquela e tinha mais

    sardas do que o cu de Angola. Quando elapegava sol, era o sol que pegava a Marinela.E a princesa ficava com a pele vermelhaque nem a areia do deserto de Kalahari.

    Na realidade, a gente s tinha se vistouma vez na vida e todos os dias esperavapelo dia de se ver de novo.

    Enquanto esse dia no chegava, a Mari-nela me telefonava todas as noites e nsconversvamos at ela dormir.

    Botar uma princesa para dormir, pelotelefone, e escutar a voz dela se desmachan-do, no meio do escuro, me tirava o sono.

    Com o seu sotaque portugus, a prince-sa me dizia que s conseguia dormir depoisde me ouvir. Ou ser que era eu que sconseguia dormir depois de falar no ouvidodela?

    Sem nem saber dessa dvida, no finaldo ms, a rainha e o rei ficavam desespera-dos com a paixo da filha e suas intermin-veis contas de telefone, mais altas que astorres do castelo, mais esticadas que beijo adistncia. Todos os dias eu escrevia cartasde amor para a Marinela.

    As minhas cartas eram ainda mais com-pridas do que as horas que a gente passavase ouvindo. E as horas que a gente passava

    se ouvindo eram maiores que todas as sel-vas da frica.

    Eu passava o dia escrevendo para ela,mesmo quando nem me sentava para escre-ver, mesmo quando escrevia s na minhaidia, sem passar para o papel.

    E quando eu entrava na agncia dos cor-reios, perto da minha casa, as moas dobalco ficavam de riso exibido para mim.

    Afinal, tinha tardes que eu chegava lcom mais que um bocado de envelopes decartas, todos endereados para a mesmadona.

    E se me desse naquela hora uma vonta-de de dizer para a Marinela a mesma coisaque eu dizia sempre, mas de uma formadiferente, eu escrevia telegramas que noacabavam nunca, sem nenhuma abreviaturae cheios de repeties.

    Porque tem sentimento que no d paraabreviar e quem ama repetitivo mesmo.

    Muitas cartas e muitos telefonemasdepois, para amansar o corao da filha epassear de carruagem nova, a rainha e o reisaram do castelo com ela, l do outro ladoda lonjura, e chegaram minha cidade.

    Ento, a Marinela e eu nos reencontra-mos.

    A primeira vez que a gente se viu denovo foi no calado de Ipanema.

    Foi um susto ver que a minha princesaafricana existia mesmo.

    E foi uma delcia ver que ela tambmno acreditava que eu existia.

    Depois, a gente continuou a se olhar

    Minha princesa africanaMrcio Vassallo

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    Versos de Orgulho

    O mundo quer-me mal porque ningum Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdm!

    Porque o meu Reino fica para Alm! Porque trago no olhar os vastos cus, E os oiros e os clares so todos meus!

    Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Algum!

    O mundo! O que o mundo, meu amor?! O jardim dos meus versos todo em flor,

    A seara dos teus beijos, po bendito,

    Meus xtases, meus sonhos, meus cansaos... So os teus braos dentro dos meus braos:

    Via Lctea fechando o Infinito!...

    Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

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  • E ra uma vez... assim que comeam as histrias de princesas!

    Era comeo de noite em So Tome Prncipe, um dos muitos pases doimenso continente africano. Inde-pendente de Portugal desde 1975, formado por duas ilhas, tempouco mais de 200 mil habitantese apresenta expectativa de vidaque se aproxima dos 70 anos de idade.L, o cotidiano comea seu agito porvolta de cinco horas da manh. Chamaa ateno a grande quantidadede crianas e adolescentesque se deslocam na ida evinda para a escola e asmulheres, muitas emuitas, com suas crian-as junto ao corpo, euma altivez admirvel.

    Na sala do hotel,aguardvamos a horade jantar. O dia detrabalho1 tinha sidointenso, juntando como calor, o barulho domar, a nossa alegria deestarmos em frica.Acreditem, isso cansa.Agora descanso! Umajovem nos atende, arrumaa mesa para ns e, aomesmo tempo, vai apresen-tando com simpatia o qued pra fazer na cozinha.

    Sorri, oferece pratos e sucos, opina sobreos sabores, vai e volta, com agilidade.

    perspicaz, tem voz melodiosa, gestos deli-cados e uma postura esguia, que sustentao corpo de uma linda mulher. Essa

    Iraiurdes! A televiso est ligada, olhos na

    tela e no que podemos jantar embreve - hora do noticirio e muito

    nos interessa saber dos assuntos polticose econmicos, assuntos que colam nocotidiano do pas. Intervalo na programa-

    o. Uma jovem aparece na TV,dizendo: Proteja-se contra a

    SIDA. A voz melodiosa,os gestos so delicados e apostura esguia sustenta ocorpo de uma inteligentemulher. Gente, parece aIraiurdes!!!

    Tiramos os olhos datela, nos entreolhamos e,juntos, colocamos osolhos em Iraiurdes, a dasala de jantar, e queparecia a moa da impor-tante campanha publici-tria contra a SIDA, aAIDS, doena cujos sinto-mas por vezes sorrateirosaparecem j em fase adian-

    tada da contaminao e que,na invisibilidade, afeta gran-

    de parte da populao africa-na, incluindo as crianas.

    Uma princesa em So Tom e PrncipeAna Lcia Silva Souza

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    com olho de primeira vez, durante umasemana.

    , a gente foi mesmo feliz para sempre,durante os sete dias que passou junto.

    Mas a princesa teve que voltar paraAngola.

    Assim, depois que ns nos despedimos,eu escrevi para ela mais cartas do que todosos homens j escreveram antes e ela meligou mais vezes do que todas as pessoas domundo j ligaram para algum na vida.

    Bem, um dia, a Marinela me telefonou,mas no foi para falar de amor, no.

    Ela me ligou para me dizer que precis-vamos terminar de namorar, porque havialonjura demais entre ns, para sustentartanto sentimento.

    A gente no sabia que a lonjura era jus-tamente o que sempre tinha sustentadoaquela paixo toda.

    - Sei que eu devo estar fazendo a maiorbobagem da minha vida - ela me disse, cho-rando sem parar. E comeou a me falar deoutras coisas que atravessavam a p o seucorao. S que eu nem escutava mais oque a princesa me dizia, porque s pensavana frase em que ela falava sobre a tal da suamaior bobagem. Depois dessa frase, sprestei ateno na msica daquela voz, semouvir mais tanto a letra.

    Ai que cena bonita, ela me dizendo issocom esse sotaque, eu pensava na hora, dechoro preso, me fazendo de forte.

    No mesmo dia, de choro corrido comum riso no meio, contei para o meu maisvelho amigo o quanto eu tinha achado belaaquela cena. E ele me disse que eu estavamais doido do que nunca e que eu nopodia achar beleza no meio de tanta tristeza.

    - Isso ainda mais estranho do quevoc ter namorado uma princesa africana,

    durante tanto tempo, assim, por carta etelefone o meu amigo concluiu.

    Esta carta, que tu ests lendo agora, aque eu nunca mandei para a princesa, eque ela provavelmente nunca ler. Ou serque ler? Ah, s de imaginar... Ela, casadacom um homem que preste mais atenona letra do que na msica, me de ummenino, morando em alguma outra lonjurapor a, com aqueles olhos, lendo a minhaltima carta, e comentando a estranhezacom uma velha amiga, nem to velha, nemto amiga. E tudo isso com aquele sotaque.Ai que cena bonita, ai que cena bonita!

    MMrrcciioo VVaassssaalllloo nasceu no Rio de Janeiro,em 1967. Jornalista e escritor, h mais de dezanos realiza palestras e oficinas sobre a impor-tncia do encantamento na vida da gente.Escreveu textos para O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal doBrasil. autor da biografia Mario Quinta-na (Moderna), do livro de entrevistas Mes: oque elas tm a dizer sobre educao (Guarda-chuva), e dos ttulos A princesa Tiana e o SapoGaz, O prncipe sem sonhos (Brinque-Book);alm de A fada afilhada, O menino dachuva no cabelo, e Valentina (Global). Todosesses ttulos foram selecionados pela FundaoNacional do Livro Infantil e Juvenil, para oCatlogo de Autores Brasileiros da Feira doLivro de Bolonha, na Itlia. O Menino dachuva no cabelo tambm foi selecionado para ocatlogo The White Ravens 2006, da BibliotecaInternacional de Munique, na Alemanha.

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  • sente que Iraiurdes sente: que tenha podere fora essa campanha na TV, com a possibi-lidade de que os movimentos aconteam emfuno de sua palavra, dita, eivada de sensa-es e vivncias, tornada coisa viva, germi-nando dentro de toda pessoa que a ouvir.

    Notas:

    1 Na ocasio, 2008, integrei a equipe de especialis-tas da Associao Alfabetizao Solidria (Alfasol), noprojeto de cooperao tcnica Alfabetizao Solidriaem So Tom e Prncipe, produto de uma parceriaentre o governo desse pas e o Ministrio das RelaesExteriores do Brasil, por meio da Agncia Brasileira deCooperao (ABC). Desenvolvido desde 2001, o projeto

    realiza diversas aes na rea da alfabetizao dejovens e adultos e no planejamento, implementao e gesto da oferta de educao continuada.

    AAnnaa LLcciiaa SSiillvvaa SSoouuzzaa sociloga, douto-randa em Lingstica Aplicada - Unicamp -Instituto de Estudos da Linguagem, mestre emCincias Sociais pela Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo. Em seus estudos, buscaestabelecer interfaces entre letramento, relaesraciais e prticas juvenis de uso social da lingua-gem. Investiga prticas de letramento no movi-mento cultural hip-hop. Integra a AssociaoBrasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN.

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    Perguntamos a ela: - Ei, voc mesma? - Sim, eu mesma, responde ela. E ns: - Noooooossa! Que legal e interessante! Elasorri e diz que gosta muito de fazer essetrabalho, sente que contribui com umacausa importante; diz que j trabalhou emrdio, angolana, tem uma filha, gosta de...E isso..., isso... e mais aquilo. horrio dojantar, no d pra continuar. - Depois vocconta sua histria pra gente? E ela nos dizque sim, podamos voltar no final do expe-diente que ela contaria mais coisas. E nsvoltamos com sede por ouvir um poucomais de toda aquela histria, a de Iraiurdesda sala de jantar e da tela da televiso. Avoz melodiosa, os gestos so delicados, apostura esguia sustenta o corpo deuma guerreira mulher, Iraiurdes.

    Era uma vez uma menina quemorava em Luanda, Angola, emtempos de uma guerra que durouanos e envolveu todas as etnias dopas. Mais uma das guerras prepara-das pelo colonizador europeu. Certo dia, amenina Iraiurdes estava com sua me na igreja.Rezavam pelas vidas em tempos de conflitos.Havia o desejo de paz. O coro em orao subi-tamente interrompido por barulhos, barulho degritos, barulho de tiros, barulho de medos,barulho de gente correndo.

    Na sala de jantar do hotel em So Tome Prncipe, a menina, agora mulher, fechaos olhos, coloca a mo em concha no ouvi-do e, sacudindo memrias, balana a cabeapara um lado e outro - gesto semntico queimita sua vida -, num movimento que evocaa lembrana que vem e vai. Desse jeito,continua a falar de seu lugar de origem,Luanda, do momento em que correu e seperdeu