Poesia Margnial 70

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REVISTA CHILENA DE LITERATURA Diciembre 2014, Número 88, 9-36 OS SURPREENDENTES CAMINHOS DA ESTÉTICA: A POESIA MARGINAL DOS ANOS 70 * Teresa Cabañas Universidade Federal de Santa Maria [email protected] RESUMEN / RESUMO / ABSTRACT El presente trabajo intenta realizar una revisión de la poesía marginal brasileña surgida en los años setenta. Para eso, se la considera como una manifestación estética desajustada de los patrones poéticos modernos, con lo cual pasa aquí a proponerse la idea de que esta poesía habría modificado algunos de los parámetros tradicionales del quehacer poético, sobre todo a partir de la entrada en escena de nuevos agentes sociales y de sus modos sensibles diferenciados. Al mismo tiempo, se pone en discusión la pertinencia de algunos principios críticos utilizados para su interpretación y valoración por parte de la crítica académica. PALABRAS CLAVE: poesía marginal, inestabilidad estética, reapropiación estética. O texto propõe uma revisão da poesia marginal brasileira, surgida nos anos 70. Considerada uma manifestação estética desajustada dos padrões poéticos modernos, propõe-se aqui a idéia de que esta poesia expressar o que se acredita seja uma modificação dos fundamentos tradicionais do fazer poético, sobretudo a partir da entrada em cena de novos agentes sociais e de seus modos sensíveis diferenciados. Ao mesmo tempo, coloca-se em discussão a pertinência de alguns princípios críticos utilizados para a sua interpretação e avaliação por parte da crítica acadêmica. PALAVRAS-CHAVE: Poesia marginal, instabilidade estética, reapropriação estética. This article sets out to present a review of Brazilian marginal poetry that emerged in the 1970s. To do so, it is considered as a maladjusted aesthetic manifestation of modern poetic patterns, * As idéias que aqui se apresentam estão desenvolvidas no livro Cabañas (2009).

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El presente trabajo intenta realizar una revisión de la poesía marginal brasileña surgida en losaños setenta. Para eso, se la considera como una manifestación estética desajustada de lospatrones poéticos modernos, con lo cual pasa aquí a proponerse la idea de que esta poesía habríamodificado algunos de los parámetros tradicionales del quehacer poético, sobre todo a partirde la entrada en escena de nuevos agentes sociales y de sus modos sensibles diferenciados.Al mismo tiempo, se pone en discusión la pertinencia de algunos principios críticos utilizadospara su interpretación y valoración por parte de la crítica académica

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  • REVISTA CHILENA dE LITERATuRAdiciembre 2014, Nmero 88, 9-36

    OS SuRPREENdENTES CAMINHOS dA ESTTICA: A POESIA MARGINAL dOS ANOS 70*

    Teresa Cabaasuniversidade Federal de Santa Maria

    [email protected]

    RESuMEN / RESUMO / ABSTRACT

    El presente trabajo intenta realizar una revisin de la poesa marginal brasilea surgida en los aos setenta. Para eso, se la considera como una manifestacin esttica desajustada de los patrones poticos modernos, con lo cual pasa aqu a proponerse la idea de que esta poesa habra modificado algunos de los parmetros tradicionales del quehacer potico, sobre todo a partir de la entrada en escena de nuevos agentes sociales y de sus modos sensibles diferenciados. Al mismo tiempo, se pone en discusin la pertinencia de algunos principios crticos utilizados para su interpretacin y valoracin por parte de la crtica acadmica.

    Palabras clave: poesa marginal, inestabilidad esttica, reapropiacin esttica.

    O texto prope uma reviso da poesia marginal brasileira, surgida nos anos 70. Considerada uma manifestao esttica desajustada dos padres poticos modernos, prope-se aqui a idia de que esta poesia expressar o que se acredita seja uma modificao dos fundamentos tradicionais do fazer potico, sobretudo a partir da entrada em cena de novos agentes sociais e de seus modos sensveis diferenciados. Ao mesmo tempo, coloca-se em discusso a pertinncia de alguns princpios crticos utilizados para a sua interpretao e avaliao por parte da crtica acadmica.

    Palavras-chave: Poesia marginal, instabilidade esttica, reapropriao esttica.

    This article sets out to present a review of Brazilian marginal poetry that emerged in the 1970s. To do so, it is considered as a maladjusted aesthetic manifestation of modern poetic patterns,

    * As idias que aqui se apresentam esto desenvolvidas no livro Cabaas (2009).

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    with which the idea is proposed that this poetry may have modified some of the traditional foundations of poetic production, particularly since the emergence of new social actors and their different sensitive ways. At the same time, this article discusses the relevance of certain critical principles that are used by academic criticism for their interpretation and evaluation.

    Keywords: marginal poetry, aesthetic instability, aesthetic re-appropriation.

    A QuESTO TERICA

    No de hoje o debate terico que vem pondo em discusso a convenincia de formalizar bases hermenuticas que permitam uma percepo mais apropriada do sentido tanto esttico como social de certos fenmenos culturais que nas ltimas dcadas nos assombram com seus desdobramentos inusitados. Se a pauta no nova, j que se inicia no alvorecer do espanto crtico ps-moderno, isso no garante que, com o correr do tempo, o assunto tenha sido superado, a ponto de pelo menos permitir-nos trafegar com mais tranqilidade por alguns territrios literrios que ainda hoje se mostram estranhos para certa parcela da crtica literria. No caso do Brasil, a situao aludida aparece em plenitude quando se repara no conjunto de propostas e manifestaes poticas que, arrancando na dcada de 50 com a poesia concreta e se estendendo at os anos setenta com a poesia marginal, dinamizaram a cena literria nacional com uma produo iconoclasta que alterou de raiz, e de modos diversos, a convivncia com os parmetros habituais do fazer potico. Sobre esse episdio, pode-se afirmar que tais experincias constituram o ltimo perodo de experimentao com formas estticas surpreendentes e a ltima atualizao literria de caractersticas grupais.

    Em relao poesia marginal, tema que me proponho abordar nestas pginas, a necessidade de novos paradigmas de interpretao se explicita de maneira cruenta no s pelo desmantelamento de alguns dos princpios bsicos da poesia moderna visvel na proposta, como tambm porque o desatino da rapaziada desvelou o carter conservador e elitista de um importante e representativo setor da crtica acadmica, que de imediato foi-lhe apontando uma natureza comprometida com o rebaixamento da essncia potica e com os imperativos mercadolgicos bestificadores de mentes e espritos. Uma barbrie potica, segundo um conhecido artigo a circular na dcada de oitenta (dantas 42). Na verdade, poucos foram os que poca, e nos anos que se seguiram, atinaram a observar na avalanche de poemas, publicaes e performances do movimento modos estticos que denunciavam

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    a existncia de formas sensveis prprias de uma determinada coletividade social, procedente de um lugar cultural considerado de pouco atrativo e transcendncia: o mbito da vivncia juvenil, da existncia homossexual, da opacidade do mundo cotidiano e domstico1. Formas contraculturais cuja expresso se declarava muito pouco predisposta a se identificar com modelos de escritura acadmicos, mesmo quando forosamente com eles dialogassem para promover em benefcio prprio uma visibilidade social e cultural cujos promotores consideravam pertinente2.

    Assim, revisitar este momento de agitao cultural demandaria ainda hoje um exerccio no apenas historiogrfico, mas de disposio para encarar suas desajustadas formas poticas como maneiras estticas diferenciadas, sem negligenciar, por outro lado, o funcionamento do mecanismo de legitimao crtica que naquele momento se posicionou a respeito da natureza destas expresses. Isso porque so esses contedos os que ainda resultam exemplares para orientar qualquer exerccio crtico que na atualidade se ocupe das formas to diversas do fazer esttico no mundo globalizado. As pginas que seguem se orientam por essa motivao.

    O IMPASSE

    A dcada de 50 tornou visvel no Brasil o esgotamento a que chegaram as formas consagradas do fazer potico3; revelou, mais precisamente, as limitaes

    1 Heloisa Buarque de Hollanda talvez o nome mais importante nesse sentido, pela prontido com a qual j na dcada de setenta se posiciona perante a nova poesia atravs de uma reflexo cheia de possibilidades instigantes. Haveria que lembrar tambm a pesquisa que no campo da antropologia cultural desenvolve Carlos A. Messeder Pereira (1981), publicada sob o ttulo de Retrato de poca. No mesmo ano aparecem as interessantes colocaes de Glauco Mattoso no pequeno livro O que poesia marginal?

    2 A denominao de poesia marginal abrange, na verdade, uma faixa bastante ampla e variada de escrituras poticas, que se fizeram acompanhar de uma srie de prticas e aes inditas, como as que incidem no circuito de edio e circulao das obras. Estas eram impressas em mimegrafo, pelo qual o movimento tambm ficou conhecido como gerao mimegrafo, e vendidas pelo prprio poeta em lugares pblicos, como bares, cafs ou nas filas de cinema.

    3 Correndo o risco da generalizao, pode-se dizer que funcionam poca dois registros estabelecidos: o que se gesta sombra das vanguardas de 22 com sua aproximao a temas da vida cotidiana ou da cultura popular e de tonalidade coloquial, e o que, opondo-se

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    desse modelo hora de articular alternativas que possibilitassem a expanso da comunicao potica. Em relao ao assunto, Joo Cabral de Melo Neto foi dos primeiros a apontar a inconveniente situao de incomunicabilidade na qual se debatia a produo potica no contexto nacional. Para ele, um tipo de poesia cujas formas se afastavam das necessidades e interesses do leitor, que para o poeta pernambucano no era outro seno o homem mdio, habitante das cidades.

    A sua conferncia da funo moderna da poesia pronunciada por Cabral (97) no Congresso Internacional de Escritores, realizado em 1954, em So Paulo principalmente um chamado de alerta que toca na ferida aberta pela modernidade no corpo da poesia; ferida impingida numa ao perversa porque ela constitui ao mesmo tempo o salvo-conduto para a permanncia da poesia entre os homens: sua ruptura com a sociedade. Foi assim, pois, que a poesia, enredada nessa situao de dissimulada perverso, produto das condies da existncia moderna, terminou por se distanciar dos homens para refugiar-se apenas, como o prprio Cabral sustentar, num pequeno clube de confrades, cavando assim um fosso abissal entre ela e o leitor este homem comum que sofre das condies limitadoras que a vida social moderna impe para o cultivo das expresses do esprito. Entender esta j clssica circunstncia da poesia moderna seu afastamento do grande pblico como uma incapacidade comunicativa do seu registro permite a Cabral tocar num aspecto que, se indito para o momento, alcanar um desenvolvimento surpreendente nas dcadas seguintes: a utilizao de tcnicas e modos vindos dos meios de comunicao como recursos para alargar o espectro da comunicabilidade das formas poticas.

    a partir dessa ltima circunstncia que no ser mais possvel deixar de notar o tenso dilogo a que a poesia tem-se forado com eventos estruturais determinantes para a definio dos novos modos sensveis no mundo contemporneo. As formas que esse dilogo tem assumido acolhem uma diversidade de experincias emotivo-existenciais, veiculadas atravs de maneiras de expresso de cunho variadssimo. na multiplicidade da sua formalizao que se poder apreciar tambm o tipo de exigncia que sobre a poesia se abate depois da Segunda Guerra, quando, na tentativa de acertar seu passo marcha das vertiginosas mudanas empreendidas pela sociedade

    a este, reintroduz o esteticismo subjetivo, temas elevados e uma prosdia correspondente, cuja referncia principal a chamada Gerao de 45.

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    burguesa, o gnero deslizar para a configurao definitiva de um grave dilema. Aquele que mostrar numa das suas faces a dramtica conscincia que a poesia adquire de se saber enredada nos fios de uma curiosa cilada, vagarosamente articulada pela prpria sociedade na qual ela precisa se manter ativa. Sendo essas formas poticas em boa parte produto e reao constante ameaa de restrio do seu espao ativo nos ltimos tempos, por obra da ecloso e auge de novos padres de sensibilidade vinculados ao desenvolvimento dos meios massivos de comunicao, elas no poderiam deixar de registrar as evolues de um processo que se descobre como a histria da sua rdua luta pela sobrevivncia. Querela com seu tempo histrico que permite ver nas diversas tentativas de novas linguagens a materializao da prpria crise que a perpassa, quando meios, formas e valores em uso resultam insuficientes para representar as maneiras sensveis de um determinado conjunto social.

    Enfim, o espao que acolhe a prtica potica da contemporaneidade se desenha como um territrio submetido a terrveis tenses, as quais terminam por encerrar sua existncia no que parece um beco sem sada: a polarizao disjuntiva entre a recusa do valor comercial da obra que, nas condies de produo impostas, decretaria seu fim e o desejo de atualizao, que, pelas mesmas condies, s parece alcanvel mergulhando efetivamente na forma mentis do seu tempo. E esta ltima, como sabemos, definida cada vez mais pela efemeridade de gostos e sensibilidades, nos devolve rbita das estratgias do consumo, alicerada nas incessantes novidades tcnicas e tecnolgicas que movimentam o mercado. Acredito, ento, que considerar esse conflito como a condio geral da produo potica moderna pode permitir-nos compreender mais ajuizadamente a atuao de manifestaes mais recentes, sobretudo a daquelas que se percebem apanhadas numa realidade modelada pelo avano das tecnologias de reproduo, dos meios de comunicao de massa e da indstria cultural.

    Se esse o contexto no qual se insere a poesia marginal e o mesmo que far palpvel no Brasil a crise dos paradigmas estticos, no sentido dessa inadequao a que antes aludia, querer entender o significado de expresses tais nos obriga a perscrutar o prprio sentido da crise. Embora um primeiro encontro com a poesia marginal possa deixar a impresso de um rebaixamento dos cdigos que tradicionalmente a poesia defendeu, na verdade nos colocamos perante uma tentativa consciente de trazer tona modos e linguagens peculiares a certas vivncias, consideradas pouco representativas do corpus estabelecido pela crtica literria institucional. Nos exemplos que me proponho abordar, o cotidiano e a sua linguagem se encontram exaltados

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    com mxima contundncia, de modo que o cdigo potico se ergue sobre a precariedade de sistemas significativos cujos usos semnticos se caracterizam pela efemeridade, prprios da existncia sensvel de determinados grupos no espao social urbano contemporneo. Sistemas que na poca eram olhados como estreis para o tratamento potico. Algumas destas expresses se aproximam do seu tempo histrico sem o encantamento utpico ou o af restaurador de outrora, para enfrent-lo com grandes doses de ironia e humor e com o propsito deliberado de remeter-nos sem pudor para o mundo fosco do cotidiano urbano, do homem mdio que o habita e da linguagem sem mistrio que por a circula, sem nenhuma aspirao a engrandecer-lhes as feies. No apenas se trata aqui do tratamento temtico do contexto existencial, como de uma tentativa de represent-lo formalmente, que comea pela imposio de uma palavra descaradamente prosaica, com o tom coloquial e o recorte balbuciante do mais trivial da expresso corriqueira. Vale a pena adiantar um exemplo desse iderio com este Coisas assim pardas, de ngela Melin (Cit. em Campedelli 29), um quase manifesto do que se trata:

    Canrio da terra, marreco, chinfrimcoisas assim, nomes Ritacoisas assim pardas, mestiasde pequeno portecoisas de fibraembora com jeitos desvalidoscoisas pardas vivaspulsantesum poema assim.

    destarte, opto por encarar o que encontraremos no poema marginal como um desvio na ordem tradicional do sujeito que representa e que representado, o que envolve tanto produtores como leitores, ambos se distanciando da figurao do padro culto/letrado. damos de cara, pois, com novos personagens entrando em cena4 e trazendo para a plateia do universo literrio nacional discursos que o exerccio hermenutico acadmico custa a assimilar, e que ir recusar por ver na sua constituio formas e jeitos que lhe parecem andrajos aviltantes substituindo as esplendorosas vestes urdidas pela poderosa tradio potica

    4 Tomo de emprstimo a expresso do ttulo do livro do socilogo brasileiro Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena, no qual analisa as experincias e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo no decnio de 1970-1980.

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    moderna. O trao polmico se instala, ento, ao redor de tais expresses, seja porque elas contestam padres de sensibilidade esttica institudos pelo cnone, seja pela rejeio vinda de uma parte expressiva da crtica literria do momento. Como exemplo inicial da singular situao implantada por esta potica, fique o veredito de Alfredo Bosi. Como se ver, a questo dos modelos de interpretao e apreciao esttica se faz aqui presente para desenhar a condio que na hora se colocava no mbito dos estudos literrios, e que ir pr em discusso a pertinncia dos princpios que constituem a vigncia do cnone, na sua dimenso esttica e crtica:

    A gente fica at com um pouco de dificuldade de julgar esta poesia. Por todos nossos critrios, ela est aqum da linguagem potica. Por todos aqueles critrios, segundo os quais a poesia uma representao, uma elaborao do fundo inconsciente ou imediato, esta poesia est apenas como uma, chame-mo-la assim, efuso. (...) Ento, teramos, dentro de uma concepo mais tradicional, at um pouco de escrpulo em considerar isso como poesia (78).

    Assim, o desbotamento que de fato se percebe nessas formas poticas desvalidas, quando no sancionado pela crtica como descuido ou incapacidade que os concretistas, por exemplo, vo chamar de gelia geral, passa a ser visto como puro comodismo, com o qual simplesmente tais expresses se despacham para o universo do sub ou paraliterrio mercadolgico. Tal apreciao d por encerrada a questo, deixando muitas vezes o caminho livre para que se as vincule ao projeto de alienao posto em marcha pelo prprio autoritarismo poltico da poca (Martins) ou a uma viso extremamente conservadora e autofgica, uma espcie de antropofagia banguela (Bonvicino 78) que apenas teria empobrecido as conquistas do Modernismo de 22.

    Irrelevncia, bobagem, esvaziamento so alguns dos (des)qualificativos atravs dos quais Vincius dantas (1986) tambm denuncia a nefasta situao de instabilidade esttica que esses poetas teriam criado ao promover o que ele denomina de uma verdadeira barbrie potica. Na mesma poca, ele assinaria junto a Iumna Simon (1985) um artigo de ttulo assustador, no qual a poesia marginal definida, bem no impulso frankfurtiano, como a manifestao cultural que no Brasil teria promovido a definitiva adscrio futilidade de uma sensibilidade esttica que faria coincidir, at a sua indistino, a banalidade do mundo com a banalidade do poema, num samba do crioulo

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    doido5 em que a poesia de tanto absorver os modos do cotidiano quase teria desaparecido afogada nas suas malhas. de modo que esse pragmatismo comunicativo, como denominam esta prtica potica, teria ocasionado uma radicao natural e pouco exigente da expresso potica no cotidiano da sociedade de consumo.

    de outra parte, muito curioso que a questo da mudana no registro sensvel promovida pela poesia marginal tenha sido vasculhada no por um crtico literrio, mas por um antroplogo. Messeder Pereira (1981), valendo-se dos recursos da antropologia cultural, vai problematizar a tese do vazio cultural, j bastante difundida no contexto intelectual da poca. Assim, passa a entender a produo marginal no como mero fenmeno literrio, mas como um fato cultural de dimenses mais amplas, o que lhe permite iluminar outra dimenso do movimento.

    Se verdade que a fixao de aspectos mais ideolgicos conduz sua leitura a uma interpretao extraliterria daqueles contedos estticos tidos como os mais representativos da poesia marginal, ou seja, seu antitecnicismo e antiintelectualismo, o que no desvenda a questo das formas estticas, o trabalho aporta elementos de grande valia desde que comprova a gestao nesses anos de uma mudana comportamental6 e a formao de um tipo de sensibilidade diferenciada. Segundo postula o autor, diferena da dcada anterior, que teria acolhido a discusso sistematizada de grandes questes sociais no interior das elites culturais e polticas, voltadas como estavam para a construo de uma alternativa de poder, a dcada de setenta registraria a ocorrncia de um processo no sistematizado (em aparncia, meio catico) de fixao de pequenos temas e pequenas coisas como matria do fazer potico. O que vem referendar a ideia de Helosa Buarque de Hollanda (1981), segundo a qual estas poticas estreantes estariam ocasionando um indito processo de deslocamento da crtica social.

    Priorizar tematicamente os assuntos desgastados da vida corriqueira de personagens annimos e apresent-los atravs de uma linguagem radicalmente coloquial e/ou pouco literria so as aes que para Messeder

    5 A expresso alude a tudo aquilo que no tem nexo, mirabolante, desordenado e sem sentido. Tambm o ttulo de uma pardia, bastante crtica, escrita por Stanislaw Ponte Preta, em 1968, para o Teatro de Revista e na qual ironiza a obrigatoriedade imposta s escolas de samba de s tratar temas histricos nos seus enredos.

    6 Tambm mencionado por Mattoso (1981) e Miccolis (1987).

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    Pereira sugerem uma prtica comprometida com uma intensa politizao do cotidiano7. Assim, o que para alguns crticos literrios no passa de infantilizao e desestabilizao da poesia brasileira, para o antroplogo pode ser uma maneira de questionar o rano intelectual que de h muito estaria distanciando a poesia do mundo real isto , dos seus leitores8. de forma tal que se poderia ver nessas expresses uma tentativa de arrancar o processo criativo da esfera exclusiva de grupos elitizados da cultura ilustrada, forando a uma mais larga socializao do fazer literrio.

    Partindo, portanto, destas iniciais consideraes, quero propor um roteiro de caminhos alternativos na inteno de alcanar uma compreenso diferenciada do desbotamento destes cdigos discursivos. Para isso, se faz necessrio indagar os mecanismos textuais, as tticas ou estratgias discursivas presentes em alguns destes poemas e que acredito serem vias para marcar a diferena e afirmar uma prpria imago mundi, o que resulta ento no desvelamento de uma(s) outra(s) sensibilidade(s), outra viso de mundo e outra poesia. Em outras palavras, me parece estar a contida a luta por um espao de expresso sensvel que vem mostrar, por um lado, a procura do reconhecimento social de vivncias socioculturais no integradas aos centros tradicionais do poder cultural, enquanto tambm oferece a oportunidade de observar o comportamento de uma prtica crtica que lhes nega legitimidade esttica.

    7 As caractersticas at agora assinaladas foram interpretadas como prova da alienao e neutralizao ideolgica que o establishment teria incutido no movimento. Nesse sentido a leitura de Messeder Pereira tem o mrito de mostrar como tais prticas veiculam uma maneira indita de politizao, isso no meio do chamado sufoco poltico vivido nesses anos no Brasil pela imposio da ditadura militar. Alis, lembro aqui o caso de um desses poetas, Nicolas Behr, enquadrado no Ato Institucional Nmero 5 (AI5) que estabelecia uma srie de restries e penalidades para aes consideradas subversivas ou inconvenientes pela ditadura. O motivo no caso de Behr foram seus livrinhos mimeografados, acusados de pornogrficos. No que o fossem, mas a vigilncia deve ter percebido, mais do que alguns setores da crtica literria do momento, algo subversivo neles, certamente a insurreio da linguagem e a quebra de antigas sutilezas discursivas.

    8 A lembrana das teses apresentadas por Joo Cabral de Melo Neto, na conferncia mencionada, de novo oportuna. H nelas um importante e pioneiro chamado de ateno para a grave problemtica que se desenha entre a poesia e o leitor. Trato disto com mais detalhe em (2003).

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    A PROPOSTA: POTICAS DA INSTABILIDADE

    Como dissera em pginas precedentes, acredito que os modos estticos trazidos pela poesia marginal estariam materializando uma luta pela conquista de espaos de expresso sensvel prprios. ao redor dessa idia que gostaria de organizar, ento, a proposta interpretativa que segue e para isso necessrio que nos localizemos no mbito do possvel imaginrio que d lugar ao tipo de representao simblica que tais formas veiculam. Esse lugar mental de produo de sentido que o imaginrio materializa seu contedo em formas simblicas que constituem diversos processos de representao, mecanismos que medeiam a relao entre a realidade e o seu verdadeiro significado. Este processo de representao est integrado tanto pela observao direta da realidade como pelos contedos imaginrios que so produto dos desejos, expectativas e interesses latentes no plano consciente e inconsciente do sujeito social. Por isso, a representao se constitui como sistema intrincado de formas-contedos, principalmente porque no processo de compreenso da realidade, no qual tambm participa, a representao nos devolve a realidade de forma mediada e no direta. Por isso, a representao criao simblica, o que lhe permite colocar em questo os contedos de verdade estabelecidos por cada poca e contexto social. Referida aos modos poticos, a representao interessa, claro, como estrutura discursiva.

    Como se sabe, um dos contedos codificados pelo discurso potico da modernidade sua nsia de universalidade, que se ancora nesse projeto totalizador que pretendia a unificao das experincias estticas do sujeito ao redor de um conceito particular do belo, o que, como consequncia, supe a existncia de uma nica e centrada identidade para esse sujeito. este imaginrio da totalidade que deu luz a srie de formas simblicas que hoje reconhecemos como caractersticas da representao esttica moderna. Mas sendo o imaginrio uma forma mentis histrica, ele est sujeito a sofrer alteraes, como as que se fazem visveis em muitos poemas marginais, nos quais se aprecia o abandono dos contedos do modelo totalizador (universalidade, eternidade, utopia, verdade, etc.) e sua substituio por um complexo de novos princpios que no apenas substituem aqueles contedos como os questionam.

    Quando Nicolas Behr (25) declara em um dos seus poemas Estou salvo: /a poesia no tudo ou Paulo Leminski (72), em letras garrafais, berra que CHuTES dE POETA /NO LEVAM PERIGO META contradizem um dos fundamentos bsicos da poesia moderna, que se acreditava divina

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    e misteriosa, como pensavam os romnticos, ou capaz de infundir distino matria mais humlima, como defenderam os movimentos modernistas de comeo do sculo XX. A dessacralizao desse conceito de poesia, que se faz ainda mais radical quando a figura do poeta naufraga junto Pobrs/ orgulhosamente apresenta/ um produto/ que vai pro lixo: /os poetas, implica no novo imaginrio a aceitao de uma condio de deterioro e desaparecimento Iogurte com farinha: Leia antes que azede9 que simbolicamente a explicitao de sua no imortalidade, de sua efemeridade e no transcendncia. A renncia grande obra ou, mais exatamente, ao modo como ela foi concebida pelo recorte da modernidade:

    um diaa gente ia ser Homeroa obra nada menos que uma ilada.

    depoisa barra pesandodava pra ser a um rimbaudum ungaretti um fernando pessoa qualquerum lorca um eluard um ginsberg

    por fimacabamos sendo o pequeno poeta de provnciaque sempre fomospor trs de tantas mscarasque o tempo tratou como a flores.

    Este poema de Paulo Leminski (50) pode ser emblemtico da nova situao que se coloca para o poeta, assim como da maneira de a ela responder. O poema, alm de ser uma sntese da evoluo da prpria poesia e da maneira como, atravs da histria, ela foi alterando os seus cdigos, marca posio em relao impossibilidade de seguir, no presente, operando com os mesmos princpios de representatividade que a caracterizaram e que pretenderam atingir uma comunidade universal pela voz de um sujeito antena da raa. O fim das iluses aqui inegvel, o recolhimento do sujeito parcela do local tambm e o reconhecimento disso tudo explcito. Mas junto a isso est a reivindicao pelo particular, dada pelo uso de certas partculas idiomticas

    9 Textos de Behr, o primeiro apresenta o livro Iogurte com farinha. Leia antes que azede.

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    de profunda coloquialidade (a gente ia ser, a barra pesando, dava pra ser a) atravessando o poema rumo a esse anti-intelectualismo mencionado. Contudo, perceba-se que no est ausente do poema o que poderia se chamar de tonalidade, uma atmosfera entre melanclica, derrotada e conformada que contorna a experincia existencial do eu lrico e que, mais do que a explcita declarao, a que impe o efeito reflexivo do poema.

    Nos poucos exemplos at aqui citados j possvel reparar na operao de desarticulao do arcabouo potico tradicional que tanto espantou certos setores da crtica. Nestes textos no se trata apenas de uma vontade declarativa, mas, sobretudo, de uma nfase formal, pois muitos desses poemas se organizam em estruturas rpidas e breves, de leitura (consumo) imediata Olha a passarinhada/ Onde?/ Passou (Charles sp), que apelam para recursos retricos de fcil assimilao, no intuito primeiro de efetivar a comunicao, mas cujos acenos de zombaria, por vezes s engraada e outras profundamente irnica, veiculam a postura crtica. O emaranhado de consequncias que da advm , sem dvida, perturbador, pois envolve uma radical mudana de comportamento perante o fazer potico, que s vezes no hesita em abjurar de conquistas valiosas para a tradio moderna, como essa do poeta trabalhador da palavra e no mais sujeito da inspirao divina, Charles (sp):

    Sou mais chegado ao escracho que ao desempenhomais chegado msica do que a porradamais chegado ao vcio do que a virtudesou pedestre sim senhorsou panfleta de uma sociedade annimareconhecida entre os ares pesados da cidade.

    Por outro lado, a poesia aqui passageira, no mais eternizada pelo imaginrio do poeta, que renega de si como ser escolhido ou superior para se reconhecer como mais um sujeito comum entre tantos Ah! sou um urbanoide circulando pela cidade, dir Adauto num de seus poemas (Cit. em Hollanda 1998, 248). disso procedem, ento, certas apreenses como a de que a banalidade faz aqui sua festa para nivelar o registro potico s mercadorias homogeneizadas e padronizadas pelo consumo (Simon e dantas 49).

    Entretanto, o fato pode ser lido de outra maneira, talvez mais produtiva, que nos leve, por exemplo, a reparar nos intrincados mecanismos que estabelecem as relaes que determinam o campo da produo simblica como um espao de disputa por um locus de expresso. Assim, o reconhecimento

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    de que se partilha da engrenagem do consumo tambm a confirmao do carter histrico da produo cultural e de sua pertena a um contexto social especfico, a sociedade burguesa. Mesmo perante a evidncia inegvel de que a literatura se realiza a pela sua relao com o pblico consumidor, muitas vezes a crtica prefere, numa postura ingnua, desconhecer o fato em nome de uma transcendncia impoluta, que alm de negar as relaes sociais de produo evidencia sua viso idealista e ilustrada, operando com idias de notado fundo substancialista, mesmo quando cr estar pondo em prtica princpios de ordem dialtica.

    Parece-me, ento, que o gesto marginal em anlise teria desnudado a hipocrisia desse ordenamento cultural que s se concebe ilustrado, e que se auto-proclama representativo da sociedade como um todo, dando-se o direito de banir tudo aquilo que nessa ordem no se adapte a sua viso. A prepotncia de tal comportamento obstaculiza, entre outras coisas, o acesso reflexo de desdobramentos dignos de considerao, como os que acompanham a necessidade implcita desta poesia captar um pblico leitor diferenciado daquele com o qual a viso acadmica letrada se identifica. Por exemplo, no recusar o mercado e interessar-se por um leitor especfico, que a viso elitista define equivocadamente como uma platia de adolescentes, revela alguns destes poetas como promotores de um curioso mecanismo de desmantelo da ideologia produtivista aquele sou mais chegado ao escracho que ao desempenho que a sociedade burguesa incute no ser social como um valor. Vejamos.

    O carter transitrio, a no sublimidade que agora se admitem para a vida e a poesia O transcendental se dissolvendo/no efmero; viver: verbo transitrio e transitivo, transvel conforme for10 permitem em muitos poemas reivindicar com fora o carter ldico com o qual se passa a assumir o fazer potico, ao tempo que substitui a seriedade bem comportada da formulao ilustrada, com um acento maroto e divertido, como neste outro poema de Charles (Cit. em Hollanda 1982, 27):

    bom falar e jogar peladaum exerccio contra a genialidade(espacinho)os mestres da vanguarda vem de complicara gente vem de viver/ brincar e anotar

    10 Versos de Cacaso (60) e Torquato Neto (Cit. em Hollanda 1998, 67), respectivamente.

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    Chamar a ateno para o espao interestrfico usando o prprio termo denotativo ironiza os rigorosos princpios da matemtica formal com a qual a racionalidade do poema concreto pensou a visualidade da poesia e projetou o seu fazer. Opera-se aqui uma dessublimao dos ndices de complicao tradicionalmente ligados ao trabalho de criao potica, que agora passa a propositadamente lhe acentuar sua extrema inutilidade improdutiva, como nestes Um homem sem profisso e Dilema do Ioga, de Cacaso (68 e 69):

    No sei se penso no futuro ou em que dedodo meu p.

    J que estava toa resolvi fazer um poemaAgora fao pra ficar toa.

    O trabalho potico se reveste assim de uma gratuidade e ludicidade limtrofes com a prpria ociosidade, de modo que sua confeco formal, para ser coerente com seus temas e enunciados, deve (a)parecer descuidada na sua cmoda brevidade, reduzida ao mnimo esforo de uma espontnea e nada polida coloquialidade. Tudo sintetizado neste antolgico Leminski (39):

    elas quando vmelas quando voversos que nemversos que nonem quero fazerse fazem por sicomo se em voelas quando voelas quando vmpoesia que simparece que nem

    Aos exemplos anotados se soma o livro que Cacaso publica em 1978. Com o sugestivo ttulo de Na corda bamba, este conjunto de poemas ser paradigmtico em vrios aspectos. Por um lado, o livro parece querer esfregar a gratuidade na cara do leitor e com tanta obstinao que, de repente, sua formalizada indolncia explode como resposta e antdoto contra o clssico imperativo da sociedade burguesa segundo o qual se deve ter uma existncia produtiva. O poema (64) que d ttulo ao livro mostra na sua brevidade e na sua nfase declarativa a prtica abolio do trabalho de fazer poesia, quando quer esta confundida com a prpria vida:

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    Poesia Eu no te escrevo Eu te Vivo E viva ns!

    A declarao se torna radical e escandalosa porque propugna desterrar o mesmo registro utilizado para gravar o enunciado potico: a escrita, que, bem verdade, o arranca do malevel e mutvel espao da oralidade, para resguard-lo da intemprie e do desaparecimento. Mas a escrita, ao mesmo tempo, a protagonista de uma longa histria de imposio de hierarquias, que sempre penalizaram esse outro uso oral, popular e massivo. No paradoxo de no escrever poesia escrevendo-a parece, ento, se manifestar o desejo imperioso de no perenizar a expresso atravs de uma forma que, quando assim a registra, pode petrific-la e enclausur-la nela prpria, limitando, possivelmente, seu poder de penetrao apenas a uns poucos.

    Submergida na existncia, a poesia poderia ganhar a mesma mobilidade desta, seja nos nveis da sua precariedade ou da sua grandeza, supondo-se assim uma vitalidade expressiva de alta rotatividade. Por isso, na extravagncia da declarao, que corre por conta do paradoxo aludido, se potencializa, por um lado, um conceito humanizador, isto , a poesia como um direito de todos e territrio ao qual todos podem concorrer; por outro lado, lateja o sonho de dinamizar a poesia atravs de uma forma proteica, ou seja, capaz de exercer sobre si prpria tamanha capacidade de adaptao, transformao e modificao que no se descarta sua existncia sob invlucros absolutamente inditos e aparentemente imprprios eu no te escrevo, eu te vivo. Poesia na corda bamba, de equilbrio precrio e a ponto de no parecer tal.

    A instabilidade de uma poesia na corda bamba pode-nos servir agora como elemento conceitual para propor um primeiro fechamento interpretativo. Situados como estamos no imaginrio desta poesia, a vimos renunciar ao princpio de totalidade, o que significa, como dito, uma quebra de modelos que estaria sugerindo uma crise de paradigmas, tanto em relao aos padres de escritura como ao conceito de sujeito que a expressa. A instabilidade uma consequncia disso, e ela vai dar feio a esta poesia em vrios sentidos. Por um lado, seus contedos de efemeridade (rapidez, mobilidade, mutabilidade) iluminam a prpria condio do tempo histrico-social no qual atua A vida um adeuzinho, diz o Suspiro de Francisco Alvim, assim como o burburinho desordenado e cambiante do cotidiano das ruas, a transitoriedade dos estados espirituais e psquicos, a brevidade e intensidade das experincias,

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    o instantneo revelado s pressas: Te amo/ 24 horas/ por segundo, nessa Alta rotatividade de Nicolas Behr (74), e que leva a dois desses poetas a propor

    um livro pra ler no nibus, um livro entre dois cigarros, envelope de bilhetes inesperados, cadernos de notas, piadas, surpresas, indicaes: o leitor o recebe como uma cola de colgio. Pode us-lo pra conferir suas prprias respostas, ou rasg-lo, se no estiver interessado na pergunta (Augusto e Vilhena).

    De maneira que a instabilidade se molda como recurso formal extremo para tentar capturar numa representao o alucinante carter mutvel do seu tempo histrico. Neste Compondo de Chacal (sp) se aprecia a excitabilidade do sujeito que expressa sua no fixao, sua celeridade, a mesma que se transmite forma do poema na falta de pontuao e no uso do enjambment que une os curtos versos numa tacada s que quase nos deixa sem flego:

    pego a palavra no arno pulo parovejo aparo burilono papel reparo e sigo compondo o verso.

    Mas, por outra parte, ela intervm tambm no plano temtico para (d)enunciar a presena de um sujeito localizado em outras coordenadas sensveis e em outro lugar social. Assim, um intenso sentimento de finitude se instala na experincia existencial desses sujeitos lricos despojados de uma referncia duradoura na qual afirmar a vida, como nos exemplos a seguir:

    demoliram minha infnciae eu desmoronei. Bagao, Behr

    Parque de diverses... Roda GiganteNaquela cadeirinha vaziaVai a minha infncia. Lyad de Almeida

    sem futuro pela frente ou vivendo um futuro que j chegou:

    vida feita de futurosque no acontecem. Y. P. dos Santos

    no chore meu amor no choreque amanh no ser outro dia. Cacaso

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    Esta precariedade para manter e preservar elementos referenciais estveis resulta tpica da experincia emotiva instalada pelos mecanismos da reprodutibilidade tcnica e tecnolgica na sociedade tardo-moderna. Para o sujeito que se movimenta nessas coordenadas existenciais resulta ento impossvel se autorreconhecer nos princpios basilares que sustentaram o clssico iderio moderno da sociedade burguesa. da ento que o reconhecimento do que se vive em todos os planos existencial, poltico, social seja a condio primeira a que este sujeito se obriga; por isso, muitas vezes a conscincia do eu lrico desvela a inverso dos princpios que comandam a realidade material, como se v nestes dois poemas quase irmos, o primeiro de Leminski (80) e o outro de Roberto Schwarz (sp):

    a vida variao que valia menospassa a valer mais quando desvaria.

    o certo est tortoo torto est certoo claro no boboo bobo no esperto.

    nesse contexto de desabamento que adquire relevncia a declarao do eu lrico deste poema de Behr (71):

    Deus est mortoMarx est mortoeu estou mortovou enterrar os trsdepois de amanh.

    e se entende a atitude de Orlando Tacapau, o debochado e transgressor protagonista de Preo da Passagem11, de Chacal (29), abjurando dos smbolos supremos da educao letrada que a representam:

    11 Conta-se que o livro iria arrecadar fundos para a viagem a Londres que o poeta queria fazer por esses anos. Mimeografado, num formato de envelope, com trinta e uma folhas soltas, se fizeram mil exemplares que venderam pouco.

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    com a loucura no bolso, orlandoentrou na biblioteca estadual.foleou folhas estapafrdias so-bre as idias, a arquitetura, adescompostura dos homens.a achou graa, a ficou srio.a riu. a chorou demais.a comeou a tremer. sentiu obolso furado. sentiu o corpomolhado.beto chegou a tempo de recolhernum copo a poa dgua que corriapro ralo.orlando disse mais tarde:_ no fao isso never more.

    O que importa aqui no a rejeio biblioteca no plano da declarao temtica, mas como essa rejeio se representa atravs de uns modos lingusticos que em si mesmos antagonizam com a norma usual daquele mbito cultural. A coloquialidade ofensiva (foleou, a, pro, never more) do registro oral contraria a reverncia ilustrada e mostra a biblioteca como lugar de saber estagnado, enquanto a vitalidade corre solta no burburinho das ruas. Em outra ocasio e com a mesma linguagem despudorada, Tacapau foge da escola que o imobiliza (sentado e estudantil) e onde s manjava o absurdo e o rabo da professora. Assim, sem pensar duas vezes, nosso personagem saiu de banda (...) pisou na escada e no apareceu mais por ali. pra qu? (26). Prosaico em vrios sentidos, o poema do qual se retiraram estes ltimos versos tem um ttulo para l de sintomtico: No ato nem desato. Desarticulo. de modo que pegando a deixa, sintetizo nisso a viso e atitude desta poesia, que desajusta, desmonta, desmantela, desagrega elementos culturais e sistemas de percepo e sensibilidade tidos como eternos universais de representatividade geral.

    Logicamente, tal desmoronamento de crenas, idias e valores molda a constituio da identidade do sujeito. Como primeiro indcio, em muitos exemplos da poesia marginal evidente a tendncia para a aceitao da insignificncia e diminuio do eu lrico que a se instala. Porm, isso se apresenta mediante a construo de um paradoxal mecanismo discursivo, que vai destacar de forma muito intensa a figura desse eu, a ponto de que a caracterstica j foi vista como puro egotismo e pueril exaltao hedonista (Bonvicino 1984; Simon e Dantas 1985). Contudo, os elementos que

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    gravitam ao redor dessa configurao originam derivaes que complicam a unilateralidade do que se afirma, na medida em que esta poesia de eus ciclpicos, como os chama Silviano Santiago (189), voluntariosa e vitalista, no poucas vezes deixa mostra um tremendo achincalhamento do eu. Esse eu monitora sem constrangimento seu prprio processo desconstrutivo, que tanto se pode expressar de maneira descarnada, cida, irnica ou engraada, mas, em geral, sem grandes dramatismos, como nestes Cogito, de Torquato Neto (Cit. em Hollanda 1998, 64) e Self-portrait, de Salomo (34):

    eu sou como eu soupronomepessoal intransferveldo homem que inicieina medida do impossvel

    eu sou como eu souagorasem grandes segredos dantessem novos segredos dentesnesta horaeu sou como eu soupresentedesferrolhado indecentefeito um pedao de mimeu sou como eu souvidentee vivo tranqilamente todas as horas do fim12.

    Minha lngua mas qual mesmo minha lngua, exal-tada e iludida ou de reexame e corrompida? quer dizer: vou vivendo, bem ou mal, o fimde minhas medidas; quer dizer: minha grandepaixo um assunto sem valor; quer dizer:meu tom de voz no fala mais grosso.

    12 Waly Salomo (1983), nessa escrita gaguejante que a parte final de Na esfera da produo de si-mesmo, misto de monlogo e solilquio, utiliza uma imagem quase idntica de Torquato quando diz: ... esta pessoa que est aqui falando na primeira pessoa eu do singular esta pessoa singular que sou eu pronome pessoal irredutvel enquanto pronome.... Em ambos os casos, o eu se desfaz tematicamente enquanto luta para se afirmar gramaticalmente.

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    O sujeito se encolhe numa partcula gramatical, desmembrado de si mesmo, com uma vidncia reduzida lucidez necessria para aceitar-se e aceitar calmamente sua hora, sem buscar elevar-se em modelo de nada, apenas declarar sua experincia vivencial. Da que o neorromantismo que Dantas (1986) cr ver por trs do que chama de big ego no parea muito pertinente, condio que, na verdade, se desmancha no autorretrato de um sujeito irreconhecvel na expresso embaralhada da repetio aleatria, com os timbres do cacoete da frmula coloquial. No h exaltao heroica (POETA SEM/ LLAAuuRREEAASS. Salomo 41), nem saudade ou melancolia pelo passado, nem mesmo memria para onde se evadir pois, como diz o verso de J. Castaon Guimares, tambm a memria tem seus dias contados, nem projeo de um mundo ideal a ser alcanado no futuro, Deus est morto. A ofuscante constatao do presente o que resta para esses sujeitos, de maneira que eu diria ser essa percepo a que nos coloca na trilha dos seus modos sensveis, a apreenso de um tempo e espao descontnuos que impossibilitam a representao de uma imagem de totalidade e a construo de um eu centrado. Ele se equilibra na corda bamba, consciente de que pode cair a qualquer momento. A instabilidade molda agora a personalidade desse eu, que no raro se materializa na pele de qualquer annimo rebaixado.

    A instabilidade constri, pois, a conflituosa densidade da subjetividade/identidade marginal, que funde vitalidade e voluntarismo (que para alguns crticos apenas puro desabafo), diminuio e rebaixamento. Ou seja, a instabilidade define a maneira como estes indivduos vivem as coordenadas espao-temporais especficas que lhes correspondem, condio irrecusvel que reitera a impossibilidade de continuar atuando com os princpios da modernidade esttica13. Poeta e poesia na corda bamba, poesia do risco, Cacaso (1974 sp):

    Precisoda palavra que me vista noda memria do sustomas da vspera do trapezista.

    13 Para Cacaso (Brito 1982, 18), a identidade est cindida, os valores (inclusive os estticos) carecem de credibilidade, as relaes so fugazes, o amor enganoso, o presente urgente, o futuro sombrio.

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    Parte fundamental dessa identidade esttica em construo constituda pelo registro lingustico de que faz uso. Bastante debatido pela crtica, o aspecto ainda passvel de explorao desde que parece apresentar brechas no muito notadas e atravs das quais podemos enxergar significados decisivos. A insistente coloquialidade de que se utiliza, e que para alguns no apresentaria inovao ou ruptura, pois no Brasil o coloquial j teria se esgotado como conquista do movimento modernista, vai, no entanto, se fazer extrema quando introduz tonalidades prprias da gria. Isso significa a radicao da coloquialidade num setor mais restrito e especfico: o da galera que inventa, usa e decifra seu cdigo. Se Tacapau encarna o debochado transgressor, a gria literalmente taca-pau14 na linguagem estabelecida, agredindo e desarticulando a estabilidade das boas maneiras lingusticas e comportamentais. Behr (14):

    entro na salasem pedir licenasem por favorvou direto ao assuntocomo vai? tudo bem?saio sem fechar a porta

    Se a gria linguagem intimamente vinculada a um determinado grupo social, claro que sua abrangncia no poderia ser universal. Assim, seu alcance limitado pode tornar o poema rasgvel, como concebem Augusto e Vilhena; isto , nem representativo nem de interesse para todos. J a mirada de antroplogo de Messeder Pereira (50) havia enxergado o poema marginal como um conjunto de idias e/ou prticas cotidianas (...) de certo ou certos grupos dentro da sociedade (sublinhado meu), de modo que o uso do palavro deveria ser encarado a partir desse contexto. Tempos antes, outro crtico expressara alarmado sua preocupao pelo perigo de uma tal linguagem ficar reduzida a uma claque prxima, o que poderia estiolar a linguagem literria numa srie de dialetos tribais (Aguiar, sp.). Por sua parte, tambm anos oitenta, Buarque de Hollanda (94) observara como na poesia marginal se privilegiavam formas de resistncias setorizadas que abandonariam o

    14 O uso da expresso taca pau introduz aqui uma dupla infrao: a que aparece na prpria natureza do seu uso coloquial meio tosco, e a que est no seu sentido semntico: bater, golpear.

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    projeto globalizante de tomada de poder. Caracterstica que, lembre-se, tempo depois passar a ser assumida pela critica internacional como um dos gestos associados inclinao desconstrutiva do ps-moderno.

    Circundando assim o aspecto, poderamos perceber agora como o questionamento da linguagem que o uso da gria faz est instalado no mago estrutural do poema, resultando num recurso tcnico para a obteno de determinados efeitos importantes para a viso do grupo, com o que tambm se fragiliza a afirmao segundo a qual s haveria aqui a barbarizao prpria do puro desleixo. Esse recurso tcnico, por comportar neste caso uma viso de mundo, a evidncia de que novos personagens, com suas vises culturais e sensibilidades sociais, abandonam os subterrneos, para onde foram mandados pelo ordenamento cultural hegemnico, e entram em cena para mostrar sua existncia com formas de fazer e dizer diferenciadas.

    O dialeto quebra a prepotncia moderna de uma nica linguagem com poderes absolutos de representatividade universal. de maneira que essa linguagem vira-lata15 (Santiago 1978a), traz consigo a descoberta dos particularismos reprimidos, diversidades culturais que a prtica segregatcia e discriminatria da modernidade tantas vezes negou16. Alm de constituir um dos principais detonadores da marginalidade literria desta poesia, acredito que o dialeto representa o espao que se conquista e impe para a expresso de interesses grupais especficos, sejam de tipo tnico, sexual, religioso, cultural ou esttico. desta perspectiva, o dialeto pode dar passagem insurgncia dos particularismos humilhados (Paz 202) ou apresentar a multiplicao de Weltanschauungen (Vattimo 13). Uma Babel que se rebela autoridade e domesticidade de um s paradigma lingstico. Babel papel, de Chacal (53):

    e lnguas como que babelse rebelarame saram de um bilho de bocas.

    15 Vira lata aplica-se ao cachorro sem pedigree e da rua.16 Fenmeno que guarda interessantes coincidncias com a poesia marginal o caso

    da chamada lumpen poesia, manifestao, em vrios sentidos mais radical, surgida no Uruguai na dcada de oitenta. Trigo (1994).

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    TTICAS dE REAPROPRIAO

    A definio da identidade marginal pode comear agora a ser esclarecida e redirecionada para um sentido conceitual que nos seja de utilidade. Embora o registro esttico do fim das iluses possa mostrar esse eu s vezes desiludido, quase sempre ele se reveste de um esprito de criatividade que pode ser proposto como tentativa de barganhar condies mais propcias para um sujeito em desvantagem. Por exemplo, o aceno pcaro atravs do qual o sujeito enterra Deus, Marx e ele prprio, introduz o aspecto como ressurgimento desse eu do bagao, das sobras da existncia, o que significa perscrutar o lugar social que ele ocupa como indivduo subalterno (marginal). O sujeito desenvolve ento modos peculiares para lidar, em surdina, com sua situao e principalmente enfrentar os mecanismos disciplinadores que lhe caem em cima. da que ele deva incentivar certas caractersticas, que se convertem em capacidades e habilidades, como as que aparecem na ficha de identidade de Orlando Tacapau:

    maleabilidade em relaoaos animais sem horriospara as refeies alegre ardiloso instantneo a-reo pssaro instvel su-jeito integral iluminaesavulsas.

    Flexibilidade e capacidade de adaptao que lhe permite ser isto e aquilo e ao mesmo tempo isto/aquilo: sujeito integral. desta arte, a maleabilidade que lhe permite a Tacapau enfrentar as peripcias de sua viagem lhe impe esse estado areo e instvel, de forma que o jeito ardiloso depende da no fixao, do no centramento desse sujeito em alguma estrutura estvel. A partir dessa instabilidade, dada pelo lugar de subalternidade (existencial e esttica) de onde esse sujeito emerge, parece-me que se articula o que passo a chamar de tticas de reapropriao. Com a nomenclatura busco chamar a ateno para o processo de excluso, material e sensvel, que envia esse sujeito e sua vivncia para as margens da existncia, e ao mesmo tempo destacar a atitude dinmica que ele consegue articular a partir desse lugar. No que segue, passo a ver a instabilidade como a prpria expresso do subalterno.

    A opo de definir como sujeito subalterno o eu presente em muitos dos poemas marginais no se sujeita aqui de maneira estrita procedncia social

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    dos autores reais destes textos. Mesmo que muitos deles se vinculem a uma classe mdia proletarizada, ou que alguns mantenham certo contato com a mdia, o que interessa continuar no espao de figurao do imaginrio, que, como foi definido no comeo, mostra atravs da representao simblica, que reelabora desejos e frustraes, aspectos da realidade no evidentes nem imediatamente perceptveis. A obteno de uma leitura produtiva das questes estticas no se d, pois, pelo estabelecimento de um nexo direto entre condio social real e produo esttica, mas penetrando as mediaes que operam entre ambos os planos. uma regra que nem sempre considerada como se deveria. Falar de sujeito subalterno significa aqui haver topado com indcios estticos que assim permitem defini-lo. Basta lembrar a sua condio existencial diminuda, a sua problemtica relao com os cones da cultura e da esttica ilustradas, as formas lingusticas de que se vale e, no menos importante, a rejeio que provocou entre a crtica literria. O marginal est deslocado do centro, anda pelas beiradas (periferia), pelo subrbio da linguagem e da esttica. A condio marginal e subalterna significa, ento, lidar com uma eterna desvantagem.

    Como assegurar ndices de sobrevivncia em tal situao? Com tticas de reapropriao da subjetividade que se mostram como os modos ardilosos e sonsos de quem agem na moita. Tticas que so engenhosidades do fraco para tirar partido do forte (de Certeau 45), como ilustra a situao do eu lrico feminino deste poema de Leila Miccolis (Campedelli 70):

    Vivemos como casalvoc trabalha demais,me sustenta,probe isso e aquiloexige a casa arrumada,quer almoo uma hora,o jantar s sete e meia,sobremesas variadas...com teus caprichos concordo,e por vingana, te engordo

    A forma de tentar essa reapropriao no o tradicional confronto direto dos fatores que motivam a represso. Pelo contrrio. O eu agarra-se deles, para, na aparente concordncia, criar um ardiloso mecanismo de revanche, que no d nas vistas e passa despercebido. Numa outra verso, Carlos Saldanha/ Zuca Sardan (12) tambm preferir a sada tangencial a apostar

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    numa rebeldia contraproducente: uma opinio/ apoiada em baionetas/degenera em bobagem/ se a gente deixar/a barriga na frente; Leminski (77) reverter os empecilhos da vida se apropriando deles: no discuto/ com o destino/ o que pintar/ eu assino repare-se na letra cursiva como signo de personalizao e Cacaso (84), finalmente, descortina o modo malicioso de este agir: eu sou manhoso eu sou brasileiro/ finjo que vou mas no vou. Tais modos se aproximam muito da pura descontrao ou do simples gracejo sem transcendncia, mas, so tambm as mil maneiras de caa no autorizada (de Certeau 38) mediante as quais os seres annimos inventam o cotidiano e fogem dos sistemas de vigilncia.

    a arte do fraco que, apoiada no agir ttico, abre mo das estratgias17, pois, como vimos, no mais se atrela a projetos totalizantes de longo alcance. A ttica maleabilidade pura, e deve-se aproveitar das ocasies para lhes tirar algum proveito. Por isso necessariamente instvel, demanda sucessivas reacomodaes, o que impe ao sujeito um tipo de aprendizado que abertura mental para a criatividade: se proibido pisar na grama/ o jeito deitar e rolar (Chacal 90), e quem teve a mo decepada/ levante o dedo (Behr 50). No h, ento, nestas expresses aceitao conformista da experincia diria, como alguns crticos entenderam, mas um jeito enviesado, tangencial, no frontal de driblar as agruras do cotidiano e que se justifica pela posio de desvantagem que se ocupa dentro do sistema. No plano do discurso, a sada vai recorrer muitas vezes ironia, ao humor, declarao ingnua, enquanto a composio estrutural do poema admite a pardia e o pastiche.

    Sem espao para detalhar estes ltimos aspectos, que encaro como recursos condizentes com o universo sensvel e com as condies existenciais especficas do sujeito que nestes poemas se constri, recordemos que a eles se adjudicou a responsabilidade pela desqualificao potica e a indigncia do registro subjetivo, tal como Simon e dantas (60) o apreciaram. Tendo olhado a manifestao a partir de outra perspectiva, parece-me, pelo contrrio, que tais aspectos nos colocam de cara com esse tipo de criatividade dispersa, ttica, bricoladora que De Certeau (41) identifica nas formas sub-reptcias assumidas pelos grupos ou indivduos presos nas redes da vigilncia. Tretas e artimanhas discursivas que permitiram poesia marginal emergir dos cafunds para colocar-se no espao pblico da prtica esttica e fugir do poder centralizado e centralizador.

    17 Para uma detalhada diferenciao entre os dois termos, de Certeau (1994).

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    A perspectiva crtica que at aqui se esboou advm do dilogo com a desarticulao conceitual de certos paradigmas que a hermenutica, enfrentada s alteraes do tempo contemporneo, vem realizando. A despeito do intenso e s vezes bizarro debate que a chamada ps-modernidade tem suscitado, e mesmo sem ter explicitado aqui suas questes mais pontuais, parece-me que esta condio sociocultural e esttica funciona como espao de existncia cultural e como mbito de elaborao ou retificao de recursos interpretativos a partir do qual inquirir a poesia marginal. medida em que a situao tardo-moderna descobre a contradio bsica da modernidade e enfraquece a supremacia dos conceitos absolutos, com todas as consequncias que isso acarreta, nos oferece a condio inicial para reavaliar a prtica esttica de sujeitos culturais com interesses e modos de atuao diversos dos que a experincia moderna aceitou como modelares.

    Assim nos ser possvel ver no descompromisso com a racionalidade do discurso letrado no a barbarizao da esttica, mas uma forma de mostrar como esse discurso impositivo. Na sua ludicidade, gratuidade, zombaria e brincadeira no a desqualificao da capacidade crtica da poesia, mas recursos que lhe permitem implementar a arte da dissimulao, maneiras ardilosas de enfrentar o poder hegemnico arbitrrio e discriminador e se reapropriar de certos ndices de autonomia18. No uso da gria, no comodismo e desleixo, seno a diversidade lingustica, a convocao da pluralidade que desarticula o discurso homogeneizador e mostra a existncia do outro nas suas diferenas e particularidades. Na pardia e no pastiche, no a canibalizao dos estilos, mas a no-dissoluo das diferenas, o no-apagamento das oposies, o direito do outro se expressar por si.

    deve-se aceitar que a vocao esttica da poesia marginal se realiza luz de outra sensibilidade, que instaura uma illusio19 que se revela como construo de um espao esttico-existencial diferenciado e inevitavelmente caracterizado como temporrio e efmero. A poesia marginal se materializa como experincia da diferena, e como tal desbarata a pretenso de constituir o belo absoluto, desmontando com seus modos peculiares as bases ideolgicas do consenso esttico da comunidade universal. Assim, ela estaria indo ao

    18 Segundo Marilena Chau, o desejo de prticas autnomas e diferenciadas, sem a tutelagem de organismos partidrios, estatais ou empresariais trao indito dos movimentos sociais surgidos nesses anos.

    19 Bourdieu (1990; 1996).

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    encontro desse momento heterotpico que Vattimo (80) define como a tomada de palavra por parte de mltiplos sistemas de reconhecimento comunitrio, de mltiplas comunidades que se manifestam, se exprimem e se reconhecem em modelos formais e mitos diferentes.

    A possibilidade de ainda contar com horizontes vitais para a realizao existencial, nas constritoras condies tardo-modernas da periferia subdesenvolvida, s parece vivel como experincia de pluralidade e conscincia da existncia de mundos plurais. A permanncia da arte nessas condies coloca-se, ento, como um rduo convvio com a instabilidade, como camalenica capacidade para a transfigurao. Talvez por a possamos reorientar o significado do desaparecimento da tendncia como prtica grupal e a dispora de seus protagonistas, encaminhados s vezes para outros rumos, no como a inevitvel consequncia da ineficcia de seus mtodos, da superficialidade de seus objetivos ou da irrelevncia de suas formas estticas, mas como encerramento de uma trajetria que tem muito de aprendizado, de um oportunismo ttico que reconhece a necessidade da constante mobilidade, que pode considerar, se necessrio, o prprio desaparecimento.

    Por outro lado, aproximar-nos de manifestaes como a poesia marginal enquanto membros da comunidade acadmica que avalia e sanciona o universo da arte, supe um inevitvel dilogo com prticas que formalizam um conceito esttico reticente s clssicas formulaes do paradigma moderno. Por isso, desde que no procedamos a um confronto com nossos tradicionais canais de compreenso e avaliao, o entendimento das questes levantadas por movimentos como o aqui analisado continuar obscurecido pela pura negao discriminatria. Assim, ento, o problema de epistemolgico deriva numa questo tica, que nos exige um aprendizado que constante e delicado exerccio de aceitao e respeito pela diferena. E de reconhecimento de que nossas elaboraes conceituais no so formalizaes neutras, mas sim estruturas perpassadas pelos contedos ideolgicos que, como sujeitos sociais, cada um de ns defende e representa.

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