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ISSN: 1517-9257

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UNIVERSIDADE FEDERAL DEMATO GROSSO DO SUL

ReitorManoel Catarino Paes - Peró

Vice-ReitorMauro Polizer

CÂMARA EDITORIALAlda Maria Quadros do CoutoAna Maria Souza Lima Fargoni

Dercir Pedro de OliveiraJosé Batista de Sales

Maria Adélia MenegazzoPaulo Sérgio Nolasco dos SantosRita Maria Baltar Van Der Laan

Ronaldo AssunçãoVânia Maria Lescano Guerra

Ficha Catalográfica preparada pelaCoordenadoria de Biblioteca Central/UFMS

Papéis : rev. Letras / Universidade Federal de MatoGrosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . CampoGrande, MS : A Universidade, 1997- .v. : il. ; 27 cm.

Semestral.ISSN 1517-9257

1. Literatura. Periódicos. I. Universidade Federalde Mato Grosso do Sul.

CDD-805

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APRESENTAÇÃO

O número 5 da Papéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta trabalhos voltadospara os estudos literários e lingüísticos, ressaltando sua relação com as duas áreasdo Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso doSul. Neste sentido, verifica-se uma diversidade de temas que traduz o caráterabrangente da publicação.

No primeiro ensaio, Paulo Sergio Nolasco dos Santos embrenha-se pelas veredasdo cerrado e dá conta de desenhar uma paisagem da região a partir da visão deescritores, historiadores e poetas, numa perspectiva mitopoética que permitecompreender os sentidos de seus nomes, como também suas faces. Lucy MitikoNakamura propõe uma leitura semiótica do conto O enfermeiro, de Machado deAssis, valorizando o modo simbólico como recepção ideal. A literatura brasileira deexpressão latina é apresentada por João Bortolanza, analisando e comparandotextos de Anchieta, Castro Lopes e Vieira, atribuindo aos estudos clássicos ehumanísticos sua real importância e necessidade. Compreendendo o discurso comoprática de certas regras às quais o sujeito deve obedecer, Marlon Leal Rodriguesanalisa, com base em Foucault e Pêcheux, enunciados dos discursos Fundador, daReforma Agrária e dos Movimentos Populares do MST (Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem-Terra) contrapondo-os ao Estatuto da Terra e àConstituição Federal. Ana Maria Souza Lima Fargoni avalia a fusão da fala e daescrita no discurso de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,como um modo talking de narrar, comparando-o ao de Marcel, personagem deÀ la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. O livro de Edgar CezarNolasco, Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura recebe resenha deMárcio Antonio de Souza Maciel, ressaltando o trabalho criterioso e apaixonadodo autor na leitura do texto clariciano.

Temas variados, leituras diversificadas dão o tom deste número.

Maria Adélia Menegazzo

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Publicação da

UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO DO SUL

Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMSFone: (67) 387-1004 - Campo Grande - MS

e-mail:[email protected]

Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica,Impressão e Acabamento

Editora UFMS

RevisãoA revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores

DistribuiçãoLivraria UFMS

Carla de CápuaLicenciada em Artes Plásticas pela FAAP, São Paulo,e Doutora em Antropologia pela Université Paul Valléry,Montpellier III, França – é Professora de História daArte e Escultura no Curso de Artes Visuaisda Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

CARLA DE CÁPUA"Ruínas de um teatro romano"

Pastel seco sobre papel50 x 70 cm

Col. Particular

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SUMÁRIO

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NOMES E FACES DE UMA REGIÃOPaulo Sérgio Nolasco dos Santos

LEITURA E O MODO SIMBÓLICO NO TEXTO LITERÁRIOLucy Mitiko Nakamura

LITERATURA BRASILEIRA DE EXPRESSÃO LATINAJoão Bortolanza

ESTUDO DA IDEOLOGIA QUE SUSTENTA O MSTMarlon Leal Rodrigues

GRANDE SERTÃO: UM MODO "TALKING" DE NARRARAna Maria Souza Lima Fargoni

ResenhaCLARICE LISPECTOR: NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA, de Edgar Cézar NolascoMárcio Antonio de Souza Maciel

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Este artigo propõe uma leitura de textos a partir da interface“literatura versus cultura,” revelando aspectos da região sul-mato-grossense numa perspectiva mitopoética.

Palavras-chave:Literatura Comparada; Crítica

This article proposes a reading text from the interface“literature in contrast with culture”, revealing aspectsof Mato Grosso do Sul state in a mithpoetic perspective.

Keywords:Comparative Literature; Critic

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7Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001

“Quem me fez assim, foi minha gente e minha terra.”

Carlos Drummond de Andrade

O cronista da famosa expedição Langsdorff,Hércules Florence, cruzando o extremo oeste do Bra-sil, em 1827, com o olhar do descobridor europeu,registrou as “maravilhas” de um eldorado que nãoconhecia fronteiras, nem limites, quer sejam dos do-mínios e posses dos largos campos e sertões, querseja na perspectiva do imaginário dos bandeirantesque ocuparam a vasta depressão da planíciepantaneira, constituída pelos amplos horizontes doPlanalto do Brasil Meridional . Em um de seus rela-tos, o cronista assim teria anotado: Havia na pro-víncia de Mato Grosso uma região chamada Fir-me. Essa região foi batizada por Fazenda Firme,que foi habitada pelo pioneiro Nheco, de ondederivou o nome Nhecolândia.

NOMES E FACES DEUMA REGIÃO*

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos**

Assim podia sintetizar-se o relato do nosso cro-nista1 que, entre retratar as “maravilhas” do sertãoisolado da corte por muitas léguas, cujo contato sópodia ser feito pela bacia do prata, ou , apreender,pela tarefa mesma de seu ofício, a arte de cronista, oimpossível traslado da experiência e da força do con-

* Uma primeira versão deste texto, com o título No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano, foi

apresentada na mesa redonda Literatura comparada: os limiares críticos, no colóquio 2000 palavras: o futuro das letras (UFPel, abr.2000). Na versão atual ele foi apresentado na sessão Região e representação literária, no VII Congresso ABRALIC (UFBA, jul.2000).**

Doutor em Letras. Professor de Teoria e Crítica Literárias nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da UFMS.1 O cronista H. Florence dedica nove páginas de seu relato à região da Nhecolândia (Barros, 1998, p.63).

Vinheta do Boletim da Nhecolândia (1934). Os bois caminhandopara leste parecem indicar o sentido da ocupação desses pantanais(BARROS, 1998: 100).

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tato vivenciado naquele outro mun-do, tão distante, tão estranho por-que tão diferente – entre retratar einterpretar os sinais das novas ter-ras conhecidas – impunha-se comoresistência a própria natureza seoferecendo como enigma – postoque desconhecida – que enovelapaisagens variadas, encantatórias,reafirmadoras de sua própriaphysis, na construção de um terri-tório outro, produto de um espa-ço reinventado (SILVA,1998:23-27).

Neste sentido, importante conceituação da pai-sagem como transgressão de limiares foi apresen-tada pela Profª. Maria Luiza Berwanger da Silva,que, seguindo a esteira de Derrida, entre outros,nos fala da composição da paisagem enquanto des-locamento incessante ao horizonte infinito, como le-gítima expressão do processo de criação literária,que se segue pelo duplo ritmo do tecer e do destecer.Assim, os estudos sobre a paisagem, os rumosnorteadores do enfoque da paisagem, consideran-do sua articulação pela representação espacial, tra-tariam de “perceber, na intimidade do artesanatopoético, o fio condutor do espaço cujo traço daoscilação, do espaço que hesita entre o fazer e odesfazer, sulca a paisagem intervalar mas infinita, pai-sagem que concretiza o sonho baudeulairiano do‘vaste’’ (SILVA,1998:27).

Interessa-nos especificamente refletir sobre a idéiade paisagem como sentimento do lugar reinventadono próprio fazer poético, considerando a imagem dohorizonte como tema e elemento estruturador do con-ceito de imagem visada pela busca do horizonte ina-tingível, infinito. Horizonte que o autor de Horizontee Complementaridade assim o conceituou: “Decer-to, o horizonte é o que se encontra sempre à vista denossos olhos, mas nunca ao alcance de nossos pas-sos” (SOUSA, 1975:21).

Retomando então o início dessa exposição, o re-lato do cronista da expedição Langsdorff, HérculesFlorence, queremos considerar a questão da paisa-gem tomando por locus o espaço geofísico do Pan-tanal e o caráter psicossocial da gente pantaneira,por ser o Pantanal uma grande planície, das maioresdo mundo e que decerto é responsável por alguns

traços pessoais de sua gente ou desua maneira particular de ver omundo.

Segundo Barros, num impor-tante volume que constitui valiosomaterial histórico, sociológico, an-tropológico, folclórico, lingüísticoe genealógico (Gente Pantaneira),o meio físico-geográfico deveriainfluir no comportamento huma-no; assim, o homem das monta-nhas, tendendo à introversão, ao

ensimesmamento – constituindo nisso sua paisagem– diferencia-se do da planície, como o pantaneiro,cuja personalidade mostra-se mais aberta, solta etendente à aventura e à mobilidade. Daí resulta que abeleza da paisagem – da planície – acaba imprimin-do uma certa estética da amplidão ligada à aberturae largueza de vista. Refere ainda, Barros, o ritmo dodesacontecimento e outras heranças indígenas quecomporão o variegado perfil e o esgarçado tecidoda representação cultural da gente mato-grossense.Tal ritmo, ou ritual do desacontecimento, assume ocaráter de citação, pois que se refere aos seguintesversos manoelinos: “As coisas que acontecem aqui,acontecem paradas. Ou, melhor dizendo,desacontecem.” (BARROS, 1985:33). Tomando aprópria obra de Manoel de Barros, seguida do joco-so subtítulo/paratexto Roteiro para uma excursãopoética no Pantanal , mais o lendário desinteressede seu autor a tudo o que representa exposiçãomidiática — como legítimo pantaneiro, Manoel temforte pudor da notoriedade —, configura-se um sig-nificativo traço da gente pantaneira, ou como propu-nha discutir o VII Congresso da ABRALIC, da ter-ra & gente pantaneira. Assim, o ritual dodesacontecimento refere-se aqui ao exemplo com oqual o crítico ilustra sua análise psicossocial: certavez, estava ele insatisfeito e ansioso, por assim dizer,com a lentidão das tarefas, quando um velho bugrepantaneiro lhe teria advertido, tocando-lhe com a mãono ombro: “Não fique nervoso, não adianta...o tra-balho não tem fim...”.

Esse descompasso, sentimento de desinteresse,não-atendimento ‘as demandas de última hora, pa-rece, com efeito, ser a marca, o Nome (com maiús-cula), que, impregnando a densa camada constitutiva

Interessa-nosespecificamente refletir

sobre a idéia depaisagem como

sentimento do lugarreinventado no próprio

fazer poético...

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Já o Visconde deTaunay, compondo suas

"visões do sertão",registrara o poder de

rememoração queaquelas planícies

exerciam como se lheficassem estereoti-padas na retina...

da representação cultural, acabaindicando uma faceta da gente eda terra, e de resto da vida sócio-cultural da região dos pantanais.

Continuando a citaçãomanoelina: a historiadora e críticade arte Aline Figueiredo assim ex-pressou a face da nossa identida-de ameríndia:

Fomos desvendados, em termoseuropeus, pela captura do índio,descobertos pelos metais e fixa-dos pelo boi. Pela procura ou pelo encontro dosmetais, prata na Bolívia, ouro em Mato Grosso, fo-mos ocupados entre os séculos XVI e XVII, nocaso do Paraguai e da Bolívia e no século XVIII,no contexto mato-grossense, e, com a sua ausênciaou escassez, fomos despovoados e esquecidos coma mesma rapidez com que fomos ocupados. Du-rante três séculos ruminamos com os nossos bois amesmice e o marasmo do tempo. E com eles, pas-tando soltos pelos campos indivisos, delimitamos asnossas fronteiras. Nesse decorrer vivenciamos asanha das atrocidades como ninguém. Construímosa nossa sociedade mestiça, mesclada de usurpadose usurpadores (FIGUEIREDO, 1988:8).

Sublinha-se aqui o quanto a distância e o isola-mento, inicialmente responsáveis pelas dificuldadesdo nosso desenvolvimento no extremo oeste do Bra-sil, vão configurar, depois, o nosso desprendimento,que é sombra da nossa nostalgia, oriunda de um es-paço de amplos horizontes do planalto, acentuandotambém a nossa vocação de sonhadores incorrigí-veis: com o planalto, herdamos também a vasta de-pressão da planície pantaneira e talvez por isso, con-tinua Aline, sejamos tão ensimesmados.

É ilustrativo o fato referido por Barros que a ex-pansão da Nhecolândia deu-se seguindo a orienta-ção de que a leste as terras do Nheco tinham o limiteda sua ambição; terras sem dono e sem fim (em 1899as terras já legalizadas somavam 380 mil hectares).E continua o autor de Gente Pantaneira: “Eramgrandes extensões de pastagens em terra firme. Fir-me foi o nome dado ao lugar. Fazenda Firme depois,célula inicial de toda a Nhecolândia” (BAR-ROS,1998:80).

Essa região, encravada no coração da América,assim caracterizada, parece ter sido, por força de

um magnetismo próprio – centrogeodésico –, alvo dos afetos dosgrandes escritores que por ali esti-veram e viveram, ou, ainda, porefeito de seus próprios encantosque teriam feito imprimir nas me-lhores páginas da literatura brasi-leira sua natural vocação marcadapor riquezas culturais, ecológicas,turísticas e econômicas que, pormotivações poéticas literárias ain-da mais justificadas, fertilizaram um

dos mais representativos textos do escritor mineiro,Guimarães Rosa, bem como a obra do escritor sul-mato-grossense, Manoel de Barros. Referimo-nosespecificamente ao relato “Entremeio com o vaquei-ro Mariano” e, grosso modo, à obra de Manoel deBarros, problematizando o mesmo universo de re-presentação, sobretudo no seu Livro de Pré-Coi-sas que traz como subtítulo, repetimos, o significati-vo paratexto: Roteiro para uma excursão poéticano Pantanal.

Já o Visconde de Taunay, compondo suas “visõesdo sertão”, registrara o poder de rememoração queaquelas planícies exerciam como se lhe ficassem es-tereotipadas na retina: “ Sobremaneira notáveis to-das as paizagens d’aquelle mal conhecido recanto deMatto-Grosso...” (TAUNAY, 1923:11). Taunayprossegue sua narrativa, relatando que o cenário queos cercava estava continuamente mudando. As ser-ras de Maracaju que tanto o impressionaram, mos-trando suas reentrâncias e saliências e as bandas doaldeamento dos índios terenas da Pirainha causandolegítimo pasmo, com

(...) arcos, arcos naturaes de extraordinaria regula-ridade geometrica, já destacados (...); letras,inscripções, traços, gregas, como que borrados pelamão do homem, algum mysterioso e cyclópeo artis-ta; columnas a meio partidas, porticos inacabadosou então rasgões monumentaes, quer singelos, querornamentados de delicadissimos recortes erendilhados, __ enfim, essas formas tão capricho-sas e variadas, (...) como se por alli houvesse, emtempos fabulosos, perpassado o genio fantasioso,criador, subtil, de algum architecto arabe(TAUNAY,1923:13-14).

A aproximação dos dois artífices da palavra –Rosa e Manoel – toma projeção de um encontro mar-

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cado nas paragens da FazendaFirme, tendo por quadro de fundoa Planície da Nhecolândia: segun-do Manoel de Barros, esse encon-tro se deu em junho de 1953, quan-do Rosa, embevecido pela prosade um vaqueiro – o Mariano – iaconstruindo o seu relato à medidaque cavalgava pelo Pantanal, onde“repetiam-se as paisagens”. Aconversa de Rosa não era só como vaqueiro Mariano, era tambémuma conversa com Manoel que é quem nos fala dosabor e do élan daquelas conversas: “Nossa con-versa era desse feitio. Ele (Rosa) inventava coisas deCordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal”(BARROS, 1990: 338). Pantaneiro e/ou vaqueiro,tanto Rosa quanto Manoel mostram-se exímioscampeadores em sua “tauromaquia” da palavra. Se-guindo a forma de um relato mitopoético, Manoel deBarros evoca o seu primeiro encontro com Rosa:

Por impulso de admiração peguei em Porto Espe-rança o vapor Fernandes Vieira que levaria o escri-tor Guimarães Rosa até Corumbá, pelo rioParaguaio. Era de noite entre árvores. Águas pa-radas no escuro. Calor e mosquitos levaram os pas-sageiros para os camarotes. Manhãzinha, outro dia,um vento macio e alvo soprava. Rosa saíra cedo docamarote. Estava sentado no tombadilho tomandofresca. Do bolso da paisagem borboletas queriamescapar. Rosa abriu a paisagem e as borboletassairam. O corpo do vapor quase tocava nas árvo-res do barranco. Andava essa lancha que nem umcágado travado. Dava pra ver nas lapas abertaslontras dormidas. Dava pra ver rancho amanhe-cendo. Talvez uma chácara amanhecendo. Davapra ver um curral de bezerros, um homem e ummenino pardos. Eu fabricava coragem para puxaruma prosa com aquele João. Nessa hora as mari-posas relavam na água as bundas. Uma anhumarasou por cima de nós, tocando fagote. Eu dissepara o Rosa ouvir: O canto desse pássaro diminui amanhã. Rosa pôs tento. Ele tinha uma sede anor-mal por frases com ave. Me olhou sentado na fra-se e se riu para mim. Gostou que eu estavafraseando no vento. Quer dizer que esse anhumadiminui a manhã? – ele perguntou. Eu disse: umhomem que não tem ensino me ensinou. Ele nãotem informação das coisas, mas adivinha. Rosa dis-

se: Quem acumula muita informa-ção pode perder o Dom de adivi-nhar. São as obscuridades coeren-tes do povo. Vai daí começamos aprosear lourenço (REVISTA CUL-TURAL, 1995: 11).

A expressão ser pantaneiro dechapa e cruz – como se apresen-ta Manoel de Barros –, além doseu significado cultural, aquele quetem a sua ancestralidade autenti-cada, puro de origem, gente sim-

bolicamente brasonada (BARROS, 1998: 34), tam-bém confirma o caráter de genuinidade que atribuí-mos à poética manoelina. A arte de inventar, com-partilhada por Rosa e Manoel de Barros, traduz-sena busca incessante da linguagem poética, que nestecaso transforma o Sertão e o Pantanal, pertencentesà mesma categoria de terra-do-sem-fim, num pre-texto, também pré-texto, para aquilo que Manoelexplica como sendo a loucura do verbo: “Temos queenlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a pontoque esse verbo possa transfigurar a natureza” (BAR-ROS,1990:341), cujo exemplo citado seria o “Como Vaqueiro Mariano”, um livro intenso de poesia etransfigurações.

O referido encontro de Rosa e Manoel de Bar-ros, ganha, no relato da conversa que tiveram, con-forme narra Manoel de Barros, um sabor de coisasinventadas à maneira do próprio vaqueiro Marianoque, sabendo, e por saber a seu modo particular dever e explicar o Pantanal como mundo, recria recor-tes de textos, de enunciados colhidos ao longo dotempo e da vida. Como no caso dos sapos que sãocantores: ao relatar a conversa que teve com Rosa,Manoel diz que perguntara se em Minas tinha sapodemais, ao que Rosa, desafiando, respondeu: “Temquase menos que por aqui, mas os poucos que tempor lá cantam mais bonito.” O teor dessa conversanão se pode atribuir, originariamente, à invenção dosdois (Rosa/Manoel), a menos que se considere o re-lato da conversa a partir do estatuto do sujeito daenunciação. Porque e segundo um outro relato, maisrecente, o das crônicas da gente pantaneira, na reali-dade, a referência aos sapos cantores é atribuída aoinveterado bairrismo dos primeiros livramentanosmigrantes do pantanal: o velho Mané Gregório, pro-

A arte de inventar,compartilhada

por Rosa eManoel de Barros,

traduz-se na buscaincessante da

linguagem poética.

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Se o humor e a ironiasempre destilaram sua

seiva nas melhorespáginas da literatura,

nesses textos emanálise ele encontrasua condensação

genuína.

veniente do Livramento, parente dopai de Manoel de Barros, recém-chegado, à beira do rio Paraguai,exibia as vantagens do Livramen-to mas era obrigado a concordarque sapo, afinal, aqui tinha mais;mas os poucos de lá (do Livramen-to) cantavam mais bonito... Por aíafora o bairrismo de cuiabanos elivramentanos é descrito minucio-samente por Abílio de Barros, che-gando às raias do provincianismoe do isolamento grupal caracterizadores doinsulamento muito próprio da “nossa gente”: “Do Li-vramento e Cuiabá tudo era melhor. Pacu do rioParaguai tinha gosto de lodo, a cana era aguada, aabóbora, sem gosto. Da banana, nem falar, pois a doLivramento, no cortar, escorria mel” (BAR-ROS,1998:56).

Deixemos por hora a interessante querela, tão pró-pria de vaqueiros e prosadores, na sua inveteradavocação de contar estórias – concordando com Rosaque, se verdadeiras, belas são as estórias, se imagi-nadas, ainda mais –, para acompanharmos nossosdois prosadores pelas terras do Nheco. A compara-ção do vaqueiro Mariano com o escritor é lindamen-te declarada por Guimarães Rosa já no enunciadode abertura de seu relato: “Em julho, na Nhecolândia,Pantanal de Mato Grosso, encontrei um vaqueiro quereunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que aliteratura empresta esparso aos vaqueiros principais”(ROSA,1994:775). Logo depois o narrador rosiano,refletindo sobre as lides de um e de outro, da suaassaz solidão, que é também no nível metafísico eexistencial, motivadora de toda a paisagem da deso-lação humana, problematiza o próprio ato de narrarcomo sendo um ato de resistência:

Te aprendo ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro,sob vez de contador. A verdadeira parte, por quan-to tenhas, das tuas passagens, por nenhum modopoderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensi-na ao limoeiro e que um boi não consegue dizer aoutro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, quedá trunfo à tua voz e tento às tuas mãos. Tambémas estórias não se desprendem apenas do narrador,sim o performam; narrar é resistir.(ROSA,1994:779).

Confirma-se nesses fragmen-tos a luminosidade do verbo en-louquecido, freando os excessosde natural como queria Manoelem sua conversa com Rosa, queanos depois lhe oferece umexemplar do seu “Com o Vaquei-ro Mariano”: Olha aí, Manoel,sem folclore nem exotismos –como você queria (BAR-ROS,1990:341). Nem folclore,nem exotismos – disse Rosa. An-

tes a visão de uma paisagem transfigurada pelo po-eta que em silêncio assiste ao pôr-do-sol, tendo-ocomo suporte de uma paisagem mais densa, volátil:o homem, o pantaneiro, o vaqueiro. Se o humor e aironia sempre destilaram sua seiva nas melhores pá-ginas da literatura, nesses textos em análise ele en-contra sua condensação genuína. Quer venha do va-queiro Mariano, ou ainda do Bernardo, essetransfazedor da natureza ( alter ego de Manoel),“ser cuja palavra amplia o silêncio”, a predisposi-ção para o jogo intelectual é uma constante que re-sulta em palavras ácidas, farpas trocadas, entre ri-sos. Com isso o poeta reflete a ânima do pantaneiro,naturalmente afeto ao espírito irônico constitutivodo gracejo, do ato inteligente. O episódio envol-vendo o Neco Caolho – conforme relata Barros –é síntese ilustrativa dessa índole pantaneira: vinha oNeco Caolho pela calçada, quando uma das moçasdo grupo, lança-lhe a pergunta irônica: “Seu Neco,feiúra dói?”. De imediato, veio a resposta ferina:“Acho que não, minha filha, eu nunca vi você ge-mer!”. Essa estória, com os elementos definidoresde um espírito crítico peculiar – ironia, surpresa ecerta dose de agressão – até parece caracterizar oestilo de um embaixador muito conhecido nosso –Roberto Campos – que, por sinal, é de origempapabanana e vem a ser sobrinho-neto daqueleNeco Caolho da ilustrativa estória narrada por Bar-ros.

Quer se chamar a atenção, aqui, para a condi-ção de emaranhamento que perpassa o horizontedo pantaneiro, entrelaçando a paisagem num atoperformativo, onde o ser pantaneiro é serarborizado e é, por extensão, a própria paisagem:o seu isolamento, o seu pequeno mundo de co-

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nhecimento, é sobrepujado pelarecorrência às imagens e brinca-deiras, ou como diz Manoel deBarros: “No uso de cantos erecontos / O pantaneiro encon-tra o seu ser. / Aqui ele alcança aaltura das manhãs / E os cinzen-tos do entardecer.” Esseemaranhamento dos seres com apaisagem e com o infinito acabacompondo o Texto, único, com-plexo, que não indica nenhumpre-texto. “Quisera humanizar de mim as paisa-gens./ (...)/Que eu possa cumprir esta tarefa sem /que o meu texto seja engolido pelocenário.”(BARROS,1999).

Um momento de elevada transfiguração poéticaé o da queimada. No relato de Rosa, a queimada émais do que uma herança cultural, necessidade agro-pastoril; ela metamorfoseia o olhar fascinado do ser-tanejo que aprecia o espetáculo do incêndio. O en-trechoque, o entreofuscamento da queimada, dofogo propriamente dito, com o cair da tarde ou danoite, evoca, para além do relato de Rosa,outrasimagens poéticas como as dos versos de Guilhermede Almeida: “Tarde grande tarde / de verdade/(...)Tarde autêntica em que há / apenas o calor, afumaça pesada / e o estouro oco dos toros verdesna queimada / grande, teatral / como um crepúsculoartificial.” E nestes outros versos de Castro Alves:“O estampido estupendo das queimadas/Se enrolade quebradas em quebradas / Galopando no ar”(WERNECK SOBRÉ,1966:211). Enfim, a paisa-gem, simultaneamente desoladora e encantatória, ar-ranca de sua matriz poética, transfigurada, o grandepoder fátuo que o verso manoelino os arrebóis la-tejam emoldura numa paisagem esteticamente exu-berante: o fogo que corre pelas macegas quer to-mar à noite imensa, com o brilho de sua lua e estre-las, seu poder de velar segredos de beleza... E quan-do ele passa, deixa ver o que repousava no limboda aparência – cinzas, floradas no campo,caramujos, ossos e terras vermelhas, antes vislum-bradas apenas em sua densa poeira(NOLASCO,1999:177).

Não seria desses arrebóis, ou dessa grande tar-de de verdade, que nos fala Manoel de Barros, mais

uma vez, quando procura uma fra-se para encimar as fotografias deseu livro-álbum Para encontraro azul eu uso pássaros?: “Nes-ta hora de escândalo amarelo / ospingos de sol nas folhas / cantamhinos ao esplendor”. Para em se-guida anotar sobre a fotografia deuma palmeira: “Uma palmeira co-berta de abandono / é como umhomem / de escura solidão”.

Mas a gente já está chegandode volta, disse o vaqueiro Mariano, o Firme é ali... Eaponta para Rosa.

Olhei. Vinha uma nuvem, engrossado vulto, rodan-do no ar. Seu revoluteio era muito lento; pareciaabdorme enxame de abelhas. Zumbia, zunia. Oraturbilhonava, sempre à mesma altura. Oscilou, foi,veio.– É um bandão de caturritas... O senhor reparenaquele redondo de espinheiro, mais alto, mais ver-de do que o capim: ali é uma baía seca, que nãorecebeu água este ano... As caturritas comem asfrutinhas do espinheiro, elas vão p’ra lá... O bolonegro balançou-se mais, subiu como um deslastradobalão, pairando, alto, bem por cima do círculo dearbustos. Partiam clingos, pios, do primitivo rondode rio cheio. Algumas caturritas se desprenderame entrevoaram em volta, expeditas, mas tornavamlogo ao bando. A massa boiava no ar e bojava. Porque não desciam?.– É a hora!Do fundo da bola, aves se despegaram, umas. Bai-xavam, colorindo-se de verde: quando iam tocar nosramos, já estavam do tom do espinheiro. E grita-vam, de alegria. Derramaram-se outras, uma por-ção, todas desciam. Era uma chuva, era esplêndi-do: as caturritas se despenhavam, escorriam, caí-am em catarata.Quando o vôo se dissipou, Mariano desmanchou aminha surpresa.– Vou mostrar ao senhor um ninho de tabuiaiá... –disse. E, como quem corrige:– Aquelas voando ali são curicacas... Tem acuricaca-do-brejo e a curicaca-do-seco...Retomamos a andada, repetiam-se as paisagens(ROSA,1994:797).

Enfim,a paisagem,

simultaneamentedesoladora

e encantatória,arranca de

sua matriz poética,transfigurada...

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Concluindo, evoco mais uma vez o encontro mar-cado que tiveram, nas paragens do Firme, Guima-rães Rosa, Manoel de Barros e o vaqueiro Mariano,enaltecendo a simpatia que o vaqueiro pantaneirodespertou em nossos dois escritores. Tanto na en-trevista famosa quanto na carta singular, GuimarãesRosa mostrou o quanto as “veredas” do sertãopantaneiro marcaram sua obra. Na entrevista con-cedida ao seu tradutor alemão, Günter W. Lorenz,ele afirma: “Eu queria que o mundo fosse habitadoapenas por vaqueiros” (LORENZ, 1973:323). E,ao se despedir da viagem que fizera à nossa região,

assim escreveu numa carta para um conterrâneo sul-mato-grossense:

Não esqueço o boi laranja. (...) Sorvi o bafo docampo largo, os berros dos bois, toda a vivência deuma gente sadia e brava, ao longo do tropear dasboiadas, esse mundo autêntico de sentimento, pito-resco, variado e sincero.(...) Apreciei imenso aspassagens no genuíno linguajar nativo _ gostosocomo o tereré, como a guavira. Deu-me vontadede voltar um dia a esse Mato Grosso Meridional,que me deslumbrou tanto: rever Aquidauana, Nioac,Miranda, Dourados, a Fazenda Jardim e o ‘Buracãodo Perdido’ [s.n.t.]

Referências Bibliográficas

1. BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira. (Crônicas de sua História). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998, 251p.

2. BARROS, Manoel de. Conversas por escrito (l970-l989), Entrevistas. In: Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1990, 343p.

3. BARROS, Manoel de. Livro de Pré-Coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. Rio de Janeiro: Philobilion Livros de ArteLtda., 1985, 94p

4. BARROS, Manoel de. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 1ª ed.Campo Grande: Saber Sampaio Barros Editora, 1999.

5. FIGUEIREDO, Aline. Por Uma Identidade Ameríndia . In: CATÁLOGO DO VI SALÃO DE ARTES PLÁSTICAS DE MS: Por UmaIdentidade Ameríndia. Campo Grande: FCMS/SEC, 1987.

6. LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina – Panorama de uma literatura do futuro. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Fredyde Souza Rodrigues. São Paulo: E.P.U., 1973.

7. NOLASCO, Paulo Sérgio. Um outdoor invisível: imagens do pantanal sul-mato-grossense. In: CARVALHAL, T. F. (Org.). Culturas,Contextos e Discursos. Limiares Críticos no Comparatismo.Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.

8. NOLASCO, Paulo Sérgio. No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano. In: COSSON, Rildo. (Org.). OPresente e o Futuro das Letras. Pelotas: Editora da UFPel, 2000.

9. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Manoel de Barros: Datas, encontros, conversas e afinidades literárias.In:NOLASCO, P.S.(Org.).Ciclos de Literatura . Campo Grande: Editora UFMS. 2000.

10. REVISTA CULTURAL. Ano I. n 1, abr./mai. Pedro Juan Caballero/Paraguay: Gráfica Nice,1995.

11. ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: Ficção Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A.,1994.Vol. II, 1190p, p.773-799.

12. SILVA, Maria Luiza Berwanger da. Limiares críticos e paisagens da transgressão. In: Limiares críticos. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.(Col. A teoria na prática ajuda – GT de Literatura Comparada da ANPOLL, 6).

13. SOUSA, Eudoro de. Horizonte e complementaridade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. 145p.

14. TAUNAY, Visconde de. Visões do Sertão. 1ªed. São Paulo: Off. Graph. Monteiro Lobato, 1923. 247p.

15. WERNECK SODRÉ, Nelson. A queimada. In: Tipos e Aspectos do Brasil. 8ª ed., IBGE-Conselho Nacional de Geografia. Rio deJaneiro: 1966, 491p.

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O presente artigo estuda a leitura do texto literário como umaanálise capaz de penetrar no mundo criado pela obra, através deuma educação semiótica que leve à simbologia contida nas pala-vras. Uma leitura semiótica do texto literário que valorize o modosimbólico implica a importância de uma recepção ideal, em que oleitor possua domínio lingüístico, para que seja possível perscru-tar o sentido dos significados. Na leitura do conto O Enfermeiro,de Machado de Assis, faremos algumas considerações baseadasno Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

Palavras-chave:Leitura semiótica. Símbolo.

The present article studies the reading about literary text as ananalyses is able to penetrate in the world created into the work,through the Semiotic education finds the Symbology there is inthe words. A Semiotic reading about literary works has valuedthe Symbolic way because it is important for an ideal receptionand the reader needs to be able to know linguistic theory toinvestigate the sense of meanings. Through the short story OEnfermeiro, written by Machado de Assis, we will consider somesymbols are based on Dictionnaire des Symboles, by JeanChevalier and Alain Gheerbrant.

Keywords:Semiotic reading. Symbol.

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LEITURA E O MODO SIMBÓLICONO TEXTO LITERÁRIO *

Lucy Mitiko Nakamura **

IntroduçãoO objetivo deste estudo é o de analisar a obra lite-

rária, enfatizando a importância da recepção, pois aobra literária é, segundo Jauss, “como uma partituravoltada para a ressonância sempre renovada daleitura” (Jauss, 1994: 25). Sendo assim, o juízo críticoestá suscetível a mudanças porque é possível haver“livros que morrem injustamente e por muito tempo(pois a morte literária é sempre passageira ou pelomenos sujeita a ressurreições periódicas) por faltade uma crítica adequada...” (Lima, 1945:32) con-forme as palavras de Alceu Amoroso de Lima, que nadécada de 40 já preconizava a relevância da recepçãoformulada com suportes teóricos e não com impres-sionismos.

O juízo crítico acerca de um texto literário normal-mente influencia a posição do leitor - é possível quenão se enxergue a ‘qualidade’ de uma obra, quandoesta não consta na lista dos cânones; ao passo que,numa situação oposta, (no caso, na produção literáriajá consagrada pela crítica), de repente o leitor passa aenxergar inúmeros elementos no mesmo texto, casoele assimile um (pré) conceito sobre a ‘qualidade’ daobra e do autor.

* O presente artigo é resultante de um dos trabalhos apresentados na disciplina Teorias da Narrativa e do Gênero Poético ministrada peloprofessor dr. Orlando Antunes Batista, no curso de Mestrado em Estudos Literários pela UFMS / Campus de Três Lagoas.** Mestranda em Estudos Literários (CEUL/UFMS, 2000); Especialista em Língua Portuguesa (CEUL/UFMS, 1998); Graduada emLicenciatura Plena em Letras (CEUL/UFMS, 1997).

A classificação de obras num prisma meramentegenérico também limita a leitura a uma visão estéticado texto literário, incapaz de romper a estrutura su-perficial que ele apresenta. O Ensino Médio, por exem-plo, peca quando tenta transmitir aos alunos uma siste-matização imutável que enquadra os textos literáriosem gêneros, ao longo de um percurso diacrônico deprodução e, o que é mais grave, sem penetrar no textoliterário propriamente dito, ou seja, considerando ape-nas elementos extrínsecos e avais canônicos - tentarseparar cada obra por gênero não é suficiente mesmoporque o Lírico, o Dramático e o Narrativo podem es-tar presentes numa mesma obra literária. Não se podemediar a obra num prisma estritamente estilístico ounum prisma estritamente histórico - uma leitura pro-funda exige muito mais do que apenas um olhar sobreos aspectos formais da obra, preso nos ditames de umespaço cronológico.

Neste estudo, a leitura pressupõe um domíniolingüístico na análise da obra literária, capaz deenxergá-la como ato sêmico, ultrapassando os limitesda massa verbal, embasado em suportes teóricos deuma educação semiótica. Ao mergulharmos na estru-tura profunda do texto, chegaremos à simbologia que

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configura melhor as idéias da obra- quais imagens e tema nela estãocontidos - trata-se de uma visão mi-croscópica e desmetaforizadora dotexto: o importante não é o que otexto diz, mas sim, como ele dizalgo.

Concordamos com a afirmaçãode Todorov de que “Os que sus-tentam a idéia de 'analisar a obrapelo que ela é, não pelo que elaexprime' não encontrarão poiso que desejam através da poéti-ca” (Todorov, 1979:70) e adotamos uma perspectivasemiótica que é incompatível com a interpretaçãobaseada no senso comum, pois o “senso comum sus-tenta que as coisas em geral só têm um significado,e que este é quase sempre óbvio, gravado nas fa-ces dos objetos que encontramos” (Eagleton,1997:148). A recepção adequada é que possibilita des-vendar o que o texto guarda em si, no jogo infinito dasexpressões: valorizar o modo simbólico talvez seja umdos caminhos mais acertados, quando se tem a certe-za de que as palavras são prenhes de significados.

Fundamentação TeóricaPorque valorizar o modo simbólico

no texto literárioNossa opção em não subestimar uma obra, numa

postura julgadora, justifica-se pela necessidade de‘aprender a ler’ o texto, analisá-lo, penetrar no imagi-nário que ele cria; até porque

“Fazer progredir o pensamento não significanecessariamente rejeitar o passado: às vezes,significa revisitá-lo, não apenas para entendero que foi dito, mas o que poderia ter sido dito,ou pelo menos, o que se pode dizer atualmente(talvez só atualmente) ao reler tudo o que haviasido dito antes” (Eco, 1991:12).

pois o mundo não permanece estático diante de nos-sos olhos, tudo está em constantes transformações,incluindo a visão de mundo vivenciado por cada gera-ção de escritores, de leitores, da humanidade. Umadas vantagens que o tempo nos lega é a polifonia nesteprocesso de ‘fazer progredir o pensamento’, ou o ‘mitode interesse’ denominado por Frye - enfim, todo o pas-sado acaba encontrando ressonâncias no presente enada disso pode ser ignorado pela recepção atual.

Numa perspectiva do “percursogerativo de sentido”, Fiorin explicitamecanismos para interpretação dotexto literário, em que a ‘leitura’ pas-sa por um “processo que vai domais simples ao mais complexo”(Fiorin,1994:17). No nível discursivo,mais complexo, Fiorin explica que“não é com o significado de umafigura isolada que vamos até otema (...) é preciso analisar comofuncionam as figuras num texto.Para isso, observemos os lexemas,

ou seja, as palavras que se acham no léxico de umalíngua” (Fiorin, 1994:69). Fiorin aponta na isotopia(“recorrência do mesmo traço semântico ao longode um texto”) a justificativa porque o “texto está aber-to para várias leituras”, não significando que ele ad-mita qualquer leitura: “o texto que admite múltiplasinterpretações possui indicadores dessa polissemia”(Fiorin, 1994:81). E este é um dos grandes méritos queprecisam ser conquistados durante a leitura, porque apolissemia vai depender muito do horizonte de expecta-tivas do próprio leitor.

Buscar a simbologia durante a leitura significa pers-crutar o que há por trás das palavras e não é nenhumdevaneio: inúmeros estudos científicos tratam a ques-tão do ‘símbolo’ no texto literário. No capítulo IV daSemiótica e filosofia da linguagem, por exemplo, Ecoexpõe várias definições e abordagens acerca do sím-bolo:

• Northrop Frye: “indica qualquer unidade dequalquer estrutura literária suscetível de análisecrítica” (p.199);

• Raymond Firth: “Na interpretação de um sím-bolo, as condições de sua apresentação são taisque um intérprete usualmente tem muito maior es-paço para exercitar o próprio juízo do que comsinais regulados por um código comum a emissor edestinatário” (p.200);

• Ernst Cassirer: “O símbolo não é um revesti-mento meramente acidental de pensamento, mas oseu órgão necessário e essencial (...) Assim todopensamento verdadeiramente rigoroso e exato en-contra seu ponto firme apenas na simbólica, nasemiótica, sobre a qual se apóia” (p.203-4);

• Tzvetan Todorov: “Há (...) em todo discurso,uma produção indireta de sentido (...) O signo fazsempre conhecer alguma coisa a mais mediante aatividade da interpretação (...) ‘Não procuro defi-nir o que seja símbolo, o que seja uma alegoria,

A recepção adequadaé que possibilita

desvendaro que o textoguarda em si,

no jogo infinito dasexpressões...

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Considerando-se que nãohá uma leitura única

para cada texto literário,a nossa visão acerca

desta obra apenas buscaa apreensão do enigmafigurativo como um doscaminhos possíveis de

interpretação...

nem como encontrar a boa inter-pretação: mas entender e, se pos-sível, manter o que é complexo eplural’” (p.208-9);

• Goethe: “O simbolismo trans-forma a experiência em idéia e aidéia em imagem, de modo que aidéia obtida na imagem permane-ça sempre infinitamente ativa einalcançável, e, embora expres-sa em todas as línguas, perma-neça inexprimível. A alegoriatransforma a experiência numconceito e o conceito numa imagem, mas de modoque na imagem o conceito seja sempre definido,contido e exprimível” (p.215);

• Hegel: “Símbolo em geral é uma existência ex-terna que está imediatamente presente ou dada àintuição, mas que não deve ser tomada com basenela mesma, assim como imediatamente se apresen-ta, mas num sentido mais amplo e mais universal.Por isso, no símbolo se distinguem imediatamentedois lados: o significado e sua expressão” (p.217).

A seguir, serão expostos alguns temas e simbologiasencontrados no conto O enfermeiro, de Machado deAssis. Considerando-se que não há uma leitura únicapara cada texto literário, a nossa visão acerca destaobra apenas busca a apreensão do enigma figurativocomo um dos caminhos possíveis de interpretação, re-forçando a idéia de que a Literatura tem a sua manei-ra própria e especial de narrar o mundo.

Discussão dos DadosA simbologia no conto O enfermeiro,

de Machado de Assis.O conto O enfermeiro é narrado em primeira pes-

soa, como um ato de confissão que o narradorautodiegético realiza por escrito, dias antes de suamorte, sobre o assassinato do coronel Felisberto. Asimbologia da confissão na tradição bíblica implica a“confissão das faltas cometidas, e não a lembran-ça dos atos bons (...) A confissão simboliza aqui avontade de se livrar do mal da falta” (Chevalier,1990:271). A confissão é o ato final de Procópio e é oque o faz distanciar a enunciação do enunciado, já quea fábula vai sendo construída num flashback de lem-branças do narrador/protagonista.

A nossa leitura de O enfermeiro volta os olhos princi-palmente aos textos bíblicos, considerando-os como o mito

de interesse dentro da obra (tudo oque se diz hoje, de certa maneira jáfoi dito anteriormente, ao longo da tra-jetória humana) - é de Frye a afirma-ção de que “Um mito completamentedesenvolvido ou enciclopédico en-cerra todas as coisas de que a suasociedade tem necessidade de sa-ber” (Frye, 1973:35), referindo-se ao“mito de interesse” existente na obrade todo escritor. E para perscrutar ocaráter polissêmico do texto literário,lançaremos mão dos símbolos que

comporão o seu enigma figurativo. No começo do antagonismo com o paciente, o en-

fermeiro “era burro, camelo, pedaço d’asno, idio-ta, moleirão, era tudo” (p.132) - e o asno, como ajumenta, pode ser o símbolo da “paz, de pobreza,de humildade, de paciência e de coragem”(Chevalier, 1990:95). Mas também apresenta o “ca-ráter difícil” (Chevalier, 1990:171), tal como o ca-melo. Procópio tenta relevar as maldades do coronel,passando por provações como Jó (seu nome é “José”,sugestivo à imagem de Jó), até na semelhança de ele-mentos do versículo 3: “E era o seu gado sete milovelhas, e três mil camelos, e quinhentas juntas debois, e quinhentas jumentas”.

Por outro lado, caracterizando a personalidade docoronel, a simbologia da muleta (bengala) “éreveladora de uma fraqueza, mas essa fraquezapode ser autêntica ou simulada (...) Simulada é ados (...) que fingem uma fraqueza exterior paramelhor dissimular sua força maléfica” (Chevalier,1990:623-4) - como é o caso do coronel Felisberto,que sempre provocava o enfermeiro, submetendo-o ahumilhações, golpes de bengala etc. Felisberto possuía“uma espécie de riso maligno” (p.131) e pareciadesejar que o enfermeiro cometesse o crime, talvezconvicto de que somente transgredindo um dos Dezmandamentos, haveria a garantia de que o herdeiropraticaria o sermão da montanha para redimir-se.

No primeiro momento estabelece-se uma relaçãode provação entre o bem e o mal, estando Felisberto eProcópio ligados pelo ofício que intitula o conto, do qualpodemos extrair o primeiro enigma figurativo:

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Na primeira semana de convivên-cia entre Felisberto e Procópio nãoocorre nenhuma estranheza, nenhumantagonismo: “A verdade é que vi-vemos uma lua-de-mel de setedias” (p.131). A simbologia do sete“encerra, entretanto, uma ansie-dade pelo fato de que indica apassagem do conhecido ao des-conhecido: um ciclo concluído,qual será o próximo?” (Chevalier,1990:828). A partir do oitavo dia,Procópio sofre transformações:

• Primeira fase: o lado bom de Procópio (o seu lado Jó).

As relações entre Procópio e Felisberto vão-se tor-nando difíceis, marcadas por antagonismos, em cres-cente tensão. Procópio tenta resistir ao sofrimento, comoJó:“entrei na vida dos meus predecessores, uma vidade cão (...) com um ar de resignação e conformida-de (...) No fim de três meses estava farto de o aturar(...) Eu, com o tempo, fui calejando (...) era burro,camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo(...) Já por esse tempo tinha eu perdido a escassadose de piedade (...) trazia dentro de mim um fer-mento de ódio e aversão.” (p.132-3).

Eis que a tensão entre paciente e enfermeiro chegaao seu limite máximo: “Ele, que parecia delirar, con-tinuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mãoda moringa e arremessá-la contra mim. Não tivetempo de desviar-me; a moringa bateu-me na faceesquerda” (p.134). Procópio, pobre mortal que é, perdea razão ao invés de seguir a lição do sermão da monta-nha - “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe tam-bém a outra” (Lucas 6, 29) - estrangula o enfermo:“e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me aodoente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos e es-ganei-o” (p.134).

• Segunda fase: a transgressão do Mandamento -“Não matarás” (Êxodo 20, 13).

Procópio mata Felisberto e pas-sa a ser perseguido pelo remorso:“Quando percebi que o doenteexpirava, recuei aterrado (...)Parecia-me que as paredes ti-nham vultos; escutava umas vo-zes surdas (...) eu ouvia distin-tamente umas vozes que me bra-davam: assassino! assassino!(...) qualquer cousa que signifi-casse a vida, e me restituísse apaz à consciência (...) arrepen-dia-me de ter vindo. - ‘Maldita a

hora em que aceitei semelhante cousa!’ (...) Sóentão posso dizer que pensei claramente no casti-go. Achei-me com um crime às costas e vi a puni-ção certa. Aqui o temor complicou o remorso (...)mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgiafazer desaparecer os vestígios dele (...) ‘Caim,que fizeste de teu irmão?’ (...) Queria ver norosto dos outros se desconfiavam; mas não ousavafitar ninguém (...) Estava em paz com os homens.Não o estava com a consciência (...) vivi aquiaterrado, embora longe do crime; não ria, falavapouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...”(p.134-136).

• Terceira fase: redimindo o pecado com o sermãoda montanha.

Embora a primeira fase seja de ascensão repre-sentando o bem, e a segunda fase seja de queda, re-presentando o mal, o estilo machadiano não tencionaenquadrar a humanidade distingüindo os bons dos ru-ins, mas nos conduz a um raciocínio realista, em que aprovação trabalha com esses dois pólos do caráterhumano, dialeticamente.

No caso de Procópio, isto fica claro no imprevisívelda terceira fase: Procópio tenta se redimir da culpaatravés de palavras, “fazendo muitos elogios aomorto” (p.136); e também com atos, quando “man-dei dizer uma missa pelo eterno descanso do coro-nel, na igreja do Sacramento” (p.136). Mas na ver-dade, ele tenta convencer a si mesmo de que não eraculpado pela morte do coronel, tentando seguir o texto

...o estilo machadianonão tenciona enquadrar ahumanidade distigüindoos bons dos ruins, mas

nos conduz a umraciocínio realista, em quea provação trabalha comesses dois pólos do caráterhumano, dialeticamente.

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O nosso Procópioencarna a figura doshomens de ferro, nummundo doente, cético,cheio de (des)culpas;ele é o enfermeiro e oenfermo deste círculo

vicioso.

bíblico: “Bendizei os que vos mal-dizem, e orai pelos que vos calu-niam” (Lucas 6, 28), elogiando omorto e mandando rezar a missa emsua memória.

Ao ser designado o herdeiro uni-versal no testamento do coronel,Procópio encontra um meio de seredimir: “receberia a herança edá-la-ia toda, aos bocados e àsescondidas. Não era só escrúpu-lo; era também o modo de resga-tar o crime por um ato de virtu-de; pareceu-me que ficava assim de contas saldas”(p.137). Contudo, com o passar do tempo, Procópiorende-se à ambição, ao apego material, à “tênia mo-ral, que por mais que a arrancasse aos pedaços,recompunha-se e ia ficando” (p.138), sentindo den-tro de si “um prazer, um demônio ruim, que eu sin-ceramente, buscava esganar” (p.138 nota).

O seu lado humano, fraco, pecador, domina o seulado Jó (que Deus descreve como “homem sincero ereto, temente a Deus, e desviando-se do mal” ) -Procópio, “não sendo religioso” (p.136), escreve oseu próprio sermão cético: “Bem-aventurados os quepossuem, porque eles serão consolados” (p.139) e,sendo assim, fica convencido de que o melhor cami-nho era usufruir da herança, ao invés de doar tudo aospobres - “distribuí alguma cousa aos pobres, dei àmatriz da vila uns paramentos novos, fiz uma es-mola à Santa Casa de Misericórdia, etc.: ao todotrinta e dous contos. Mandei também levantar umtúmulo ao coronel, todo de mármore” (p.138). Nasimbologia o túmulo, segundo Jung, “é o lugar dametamorfose do corpo em espírito ou dorenascimento que se esboça; mas é também o abis-mo onde o ser é devorado pelas trevas passagei-ras e fatais.” (Chevalier, 1990:915).

Os trinta e dois contos doados nos levam àsimbologia do número cinco (3+2=5), que “ é o nú-mero da existência material e objetiva (...) OQuinário é o número da criatura e da individuali-dade” (Chevalier, 1990:245). Além disso, o númerocinco também pode ser relacionado à obra Os traba-lhos e os dias, do poeta grego Hesíodo, que afirma tersido a terra habitada por 5 humanidades sucessivas(homens de ouro, de prata, de bronze, os semideuses,até chegar a nossa geração que é a dos homens deferro). A primeira geração “se tornaram guardiãesda terra (...) seus sucessores, os homens de prata,culpados dos mais loucos excessos, foram sepulta-

dos por Zeus (...) transformaram-se naqueles seres que os mortaischamam os Bem-aventurados dosInfernos, gênios inferiores, masque alguma felicidade aindaacompanha (...) Os homens debronze, culpados (...) do excessode sua própria força terrificante,sucumbiram às suas própriasmãos e partiram para o Hades(...) Quanto à raça divina dossemideuses, ela habita, de cora-ção leve e sem cuidados, as Ilhas

dos Bem-Aventurados” (Chevalier, 1990:244-5). Onosso Procópio encarna a figura dos homens de ferro,num mundo doente, cético, cheio de (des)culpas; ele éo enfermeiro e o enfermo deste círculo vicioso.

O mesmo fim de Felisberto acaba tendo Procópio(o seu nome é sintomático: pró/cópia), que adoece edeixa o seu “documento humano” (o narrador diri-ge-se claramente a um destinatário, que supomos serum enfermeiro) confessando seu pecado maior aoseu futuro herdeiro: “leia isto e queira-me bem; per-doe-me o que lhe parecer mau” (p.130). Esta con-fissão escrita será revelada apenas após a morte deProcópio; este segredo é “fonte de angústia peloseu peso interior” (Chevalier, 1990:808). Ao adoe-cer, Procópio aguarda sua própria morte com resig-nação - “pode ser que oito dias, se não for me-nos; estou desenganado (...) Não tarda o sol dooutro dia, um sol dos diabos, impenetrável comoa vida” (p.130).

Na simbologia, o oitavo dia na tradição cristã, se-gundo Santo Agostinho, “assinala a vida dos justose a condenação dos ímpios (...) é o símbolo daressurreição, da transfiguração, anúncio da erafutura eterna.” (Chevalier, 1990:652); e o Sol “imor-tal nasce toda manhã e se põe toda noite no reinodos mortos; portanto, pode levar com ele os ho-mens e, ao se pôr, dar-lhes a morte” (Chevalier,1990:836). O sol pode representar também o olhar di-vino sobre os pecadores terrestres: por mais queProcópio busque justificativas para a morte deFelisberto, no fundo ele sabe que nada escapa aos olhosde Deus.

O conto finaliza parodiando ironicamente o sermãoda montanha: “Bem-aventurados os que possuem,porque eles serão consolados” (p.139) e na leiturados versículos bíblicos (Mateus 5), podemos percebero tom cético que Procópio adota ao formular o seupróprio sermão:

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“3. Bem-aventurados os po-bres de espírito, porque delesé o reino dos céus;4. Bem-aventurados os quechoram, porque eles serãoconsolados;”(Bíblia Sagrada. Mateus 5, 3-11.Ver também Lucas 6, 20-29).

ConsideraçõesFinais

As “isotopias” (Fiorin) verificadas no conto reve-lam uma relação do homem com o divino, coincidindocom o “mito de interesse”(Frye) construído com pas-sagens bíblicas (o sermão da montanha, a ira de Caim,a infração de um dos Dez Mandamentos e o livro deJó). E evidenciando as várias “marcas” (Frye) pre-nhes de significados e desmetaforizados pelo seu ape-lo simbólico (a exemplo da simbologia dos numeraissete, cinco e oito) construímos o tema principal desteconto machadiano, como uma leitura possível e coe-rente, que é a provação humana.

Ao assumir a função de enfermeiro, Procópio tentaexercitar o seu lado Jó de auxiliar o enfermo e rele-var a ignorância, recebendo injúrias e até golpes debengala; passa por períodos de isolamento total comose fosse um monge ou um iniciante ao seminário (“ha-via de acostumar-me à reclusão constante, ao péde um doente bravio”, p.133). Mas o fato principalvai ocorrer na “noite de vinte e quatro de Agosto”e aos quarenta e dois anos do protagonista. Estacoincidência numérica guarda a simbologia do núme-ro Seis (note o jogo de espelho: 2+4 ou 4+2 = 6): “osenário marca essencialmente a oposição da cri-atura ao Criador, em um equilíbrio indefinido.Essa oposição não é necessariamente de contra-dição; pode marcar uma simples distinção, masque virá a ser a origem de todas as ambivalênciasdo seis (...) Pode inclinar-se para o bem, mas tam-bém para o mal; em direção à união com Deus,mas também com a revolta (...) É a perfeição (...)Mas essa perfeição virtual pode abortar e esserisco faz do 6 o número da prova entre o bem e omal” (Chevalier, 1990:809).

No desfecho irônico de Procópio, encontra-se otema filosófico do conto - trata-se de uma visão pes-simista da condição humana na terra, num “documentohumano” (p.130): o poder material é capaz de conso-lar os pecadores; mas somente através do pecado, o

homem tenta redimir-se, dedican-do-se a atos caridosos. Caso nãohouvesse uma transgressão de umdos Dez mandamentos, quais mo-tivos teria o homem em praticarvoluntariamente o sermão da mon-tanha, dividindo seus pertences comatos caridosos?

Subentende-se que o coronelquisesse redimir-se de seus peca-dos ( pois “ ele era também mau,deleitava-se com a dor e a humi-lhação dos outros”, p.132) deixan-

do a herança para o pobre enfermeiro; por sua vez,Procópio assassina Felisberto (ferindo um dos Man-damentos) inconsciente de que seria ele o seu herdei-ro universal. Suponhamos que Procópio herdasse afortuna tendo o coronel falecido por causa da doença,será que o herdeiro seria motivado a praticar as liçõesdo sermão da montanha? E Procópio parece percor-rer o mesmo caminho do coronel, supostamente dei-xando a sua herança a um enfermeiro (o narratário aquem se dirige), pedindo-lhe: “pague-me também comum túmulo de mármore” (p.139).

Pôr o ser humano à prova divina é como colocá-lonuma encruzilhada para desvendar o mistério do seuíntimo, de seu caráter. Afinal, se todos resistissembravamente como Jó, o homem seria muito mais pre-visível. E o ser pode ocultar os seus piores pecadosde seus semelhantes, mas não consegue ocultá-losde Deus, porque o sol “impenetrável como a vida”(p.130) nasce todos os dias e é o “olho do Deussupremo” (Chevalier, 1990:836). Pôr o homem àprova, entre o bem e o mal é crucificá-lo: “O sacrifí-cio da cruz era necessário e necessária, em con-seqüência, a morte do Cristo para que o homemfosse libertado dos efeitos do pecado” (Chevalier,1990:312), segundo a teologia da redenção. Na Di-vina Comédia, Dante “mostra a cruz no meio docéu estrelado, cercada de bem-aventurados emadoração. A cruz é, então, o símbolo da glóriaeterna, da glória conquistada pelo sacrifício...”(Chevalier, 1990:312). Portanto, o ponto de tensãomáxima do conto centrado no assassinato do coronelFelisberto, resgata os valores do sermão da monta-nha, numa prática que implica a redenção de um pe-cado na busca pelo perdão. O sacrifício que levaProcópio a tentar escalar a montanha dos Bem-aven-turados.

A provação humana representada na obramachadiana, com o tom irônico e cético, permeada pela

No desfecho irônicode Procópio,

encontra-se o temafilosófico do conto -

trata-se de uma visãopessimista da

condição humana naterra...

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Portanto, o ponto detensão máxima do contocentrado no assassinato

do coronel Felisberto,resgata os valores dosermão da montanha,

numa prática que implicaa redenção de um peca-do na busca pelo perdão.

polifonia dos textos bíblicos e porvozes de outras obras (Hesíodo eDante), nos permite estabelecer si-tuações protagonizadas pelo ho-mem em seu íntimo. Este é um dosgrandes méritos da obra literária: pôra cru as possibilidades infinitas deenxergar o ser do homem, já que amimesis permite ao autor esta rela-ção franca entre criador e criatura.O que nos interessa não é a imita-ção do homem, representá-lo numapretensa cópia de como ele é, masexperimentar todas as possibilidades de como poderiaser - eis aí a poética do texto literário, que eleva o mitoa um nível universal.

O título do conto se justifica pelo círculo viciosoque acaba sendo estabelecido entre o enfermeiro e o

enfermo: Felisberto morre e deixasua herança a Procópio, que tomao lugar do primeiro e no fim da vidarepete o mesmo ciclo, tornando-seenfermo e novamente deixando suaherança ao próximo enfermeiro.Mas o que realmente parece servirde pano de fundo a esse círculo vi-cioso é a enfermidade do mundo,ou seja, aquela tênia moral.

Portanto, todas estas possibilida-des ganham densidade à medida emque o leitor penetra no imaginário

criado pela obra, munido de uma visão semiótica ca-paz de reconhecer a simbologia latente nas palavras e,assim, passar pela insubstituível experiência de vivenciara leitura num horizonte muito mais amplo e profundoque a obra literária sempre nos oferece.

Referências BibliográficasARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 3ed., São Paulo: Ars Poetica, 1993.BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Pesquisas semiológicas. 4ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1976.CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.COSTA LIMA, Luiz (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 3ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 4ed., São Paulo: Contexto, 1994.FRYE, Northrop. O caminho crítico. Um ensaio sobre o contexto social da crítica literária. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates,1973.GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 2ed., São Paulo: Ática, 1985.JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.LIMA, Alceu Amoroso de. O crítico literário. São Paulo: Agir, 1945.PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O enfermeiro. Várias histórias. 2ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília, INL, 1977,vol. 9, pp.130-139.TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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Neste artigo, vou apresentar alguns autores da Literatura Brasi-leira de expressão latina, depois de ter dito do desprezo imperdo-ável dos historiógrafos da Literatura com relação aos autores eobras mais significativas deste veio da Literatura. A exposição édidática, por isso apresento os autores objeto de minhas pesqui-sas por meio de excertos escolhidos entre os mais significativos,que permitirão aos leitores avaliar a importância de Anchieta, Cas-tro Lopes e Vieira como verdadeiros escritores latinos do Brasil.

Palavras-chave:Autores Latinos; Escritores Brasileiros;

Obras Neolatinas.

In this paper i am going to show some brazilian authors whodeal with Latin Literature, after saying about the unforgivablescorn that the searchers of Historical Literature have with theauthors and works more significant of this literary branch. Thisis a didatic exposition, so i present the authors (who were objectof my searches) by parts chosen among the more meanful works,thus the readers are going to be able to evaluate the importanceof Anchieta, Castro Lopes and Vieira as real latin writers inbrazilian context.

Keywords:Latin Authors; Brazilian Authors;

Literary Works

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LITERATURA BRASILEIRADE EXPRESSÃO LATINA

João Bortolanza*

A Literatura Brasileira tem uma faceta importantee pouco conhecida, a vertente clássico-humanista, es-crita em Latim. Anchieta foi o primeiro novilatino sig-nificativo com mais de 10.300 versos latinos, além desua produção em prosa latina. Silva Belchior publicouem plena época de 90 Carmina Drummondiana eCarmina Pessoana, versão de alguns poemas seletosde ambos os poetas da atualidade: um veio rico , por-tanto, que merece maior enfoque.

Estranha-se, ao se abrirem nossos compêndios deLiteratura Brasileira, ver o pouco espaço que é dado aeste veio de nossa Literatura, com um tratamento àsvezes preconceituoso, indigno da probidade científica,como o que é dado a autores como Anchieta e JoséRodrigues de Melo por Sílvio Romero:

Obrigado a tratar somente dos espíritos autonô-micos e investigadores do pensamento nacional,nada tenho a falar sobre alguns enfastiados,que, se diz, escreveram aqui no primeiro séculoalguns versos latinos, ou coisas de laia seme-lhante, que se perderam. São quase todos tiposmortos, estéreis, inúteis. Sufocados peloculteranismo jesuítico, desprendidos da cons-ciência nacional, para cuja determinação nadacontribuíram, passaram a vida a versejar sen-saborias e não têm o direito de figurar na histó-ria. (1943, Vol. II, p 397)

Nada se terá que ver com alguns frades despre-ocupados ou ociosos que mataram o tempo aescrever versos latinos, ou a publicar sensabo-rias em Roma. (1943, Vol. I, p. 58).Enquanto em Portugal os Padres Antônio dos Reis

e Manuel Monteiro de 1745 a 1748 deram à luz 8 volu-mes do Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum quilatine scripserunt; enquanto em Coimbra existe umCentro de Estudos Clássicos e Humanísticos com gran-de produção, aqui no Brasil ainda pouco se pesquisoue divulgou sobre a nossa Literatura de Expressão La-tina. A UNESP de Assis, apenas na década de 70, soba coordenação do Prof. Dr. Enio Aloísio Fonda, criouo Archivum Generale Poetarum Latinorum Brasi-liensium, o primeiro e único a explorar esse tema.

Como pesquisador dessa linha de pesquisa, voudestacar alguns nomes e algumas obras, especialmen-te os que foram e ou estão sendo objeto de minha pes-quisa: Antônio de Castro Lopes, Pe. José de Anchietae Pe. Antônio Vieira.

Edição de 1997, pela Editora da UEPG, de PontaGrossa, veio à luz o resultado de uma longa pesquisa ede um excelente trabalho de Crítica Textual ouEcdótica, com o título Temas Rurais do Brasil, emedição bilíngüe, com introdução, tradução e notas dosprofessores Raul José Sozim e Sérgio Monteiro Zan.Trata-se do poema didático, nos moldes das Geórgicas

* Doutor em Letras pela UNESP Assis (1994) com Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra 1998/1999, Professor de Língua eLiteratura Latinas e Filologia Românica na UFMS./ Campus de Dourados.

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de Virgílio, bem do gosto da nossaescola neoclássica, De RusticisBrasiliae Rebus Carminum Libri IVdo Pe. José Rodrigues de Melo, edi-tado em Roma em 1781, tendo emapêndice o De Sacchari OpificioCarmen do Pe.Prudêncio do Amaral,corrigido e completado pelo Pe.Jerônimo Muniz. Obra calcada emCultura e Opulência do Brasil deAndré João Antonil, pseudônimo deoutro jesuíta, o Pe. João AntônioAndreoni, o De Rusticis BrasiliaeRebus também procura mostrar as riquezas da Colônia.Os primeiros dois livros tratam da cultura e da utilizaçãoda “raiz brasílica”, isto é, a mandioca; o terceiro, da cria-ção do gado; o quarto, do cultivo da erva nicotiniana, otabaco. Em vez da mineração do Ouro, acrescenta emapêndice De Sacchari opificio, sobre o Açúcar.

Surge então outro problema para a Crítica Textual:edita-se em Roma o Brasilienses Aurifodinae, constan-do como autor José Basílio da Gama, ex-membro daCompanhia de Jesus e protegido dos Jesuítas para teracesso à Arcádia Romana. Faziam-lhe poemas latinospara que ele os expusesse nas sessões acadêmicas. Aoque consta, José Basílio da Gama não escreveu um versosequer em Latim – teria ele, tão jovem (nem 25 anos),maturidade e preparo para escrever tão extenso e polê-mico tratado sobre as Minas de Ouro do Brasil? E justa-mente na língua universal que era o Latim? Há até umadissertação de Mestrado recente (1992), de João AntónioLourenço Gonçalves, da Universidade de Coimbra, ori-entado pelo preclaro Professor Américo da CostaRamalho, Contributos para a História Económica eSocial do Brasil. Embora lembre a Resposta

Apologética ao poema o Uruguay,em que o Pe. Kaulen deixa claro queas composições que Termindo Sipílio,pseudônimo de Basílio da Gama, apre-sentava na Arcádia Romana eramfeitas pelos Jesuítas; embora cite aBibliografia Brasileira do PeríodoColonial em que Rubens Borba deMorais referenda as suspeitas do Pe.Kaulen, afirmando que são várias assemelhanças com o De RusticisBrasiliae Rebus do Padre JoséRodrigues de Melo – não seria com

o Antonil? – simplesmente assume como óbvia a autoria.Preciosa é a contribuição do Pe. Serafim Leite, com

seus 10 volumes da História da Companhia de Jesusno Brasil. Ao falar do Padre Francisco da Silveira, jesu-íta nascido em Açores em 1718 e que professou no Bra-sil até a expulsão, transcreve (Vol. IX: 127) Sommervogel:

Poemas das Minas de Oiro : “Ha fatta uma lungadescrizione dello scavo delle miniere dell’oro DelBrasile in versi latini exametri. Ma non l’ha fattafin ora stampare.”Traduzindo: “Fez uma longa descrição das es-cavações das minas de ouro do Brasil em ver-sos latinos hexamétricos. Mas até agora não afez ainda publicar.Muitos outros poetas novilatinos brasileiros foram

objeto de pesquisa, entre eles Manoel Botelho de Oli-veira com sua Música do Parnaso, Dom AquinoCorreia e Pe. Pedro Sarneel, cuja poesia latina foipublicada em 1973 pelo Prof. Dr. Enio Aloisio Fonda.

Atenho-me, enfim, aos 3 poetas novilatinos brasi-leiros que foram e continuam sendo objeto de minhapesquisa.

Castro Lopesdá um tom

classicizante a suatradução livre,

produzindo versosque não raro superam

o próprio originalde Gonzaga.

1. ANTÔNIO DE CASTRO LOPES (Rio de Janeiro, 1827-1901)e sua Musa Latina

Sem dúvida um dos maiores latinistas brasileiros, Castro Lopes foi uma figura polêmica que viveu no séculopassado na cidade do Rio de Janeiro, polígrafo, autor de várias obras nas mais diversas áreas. Sua gramáticalatina, Novo sistema para estudar a língua latina, teve 3 edições (1856, 1859 e 1879). Compôs também 915versos latinos que em nada devem aos versos de Virgílio e Ovídio, como pude comprovar em minha tese dedoutorado, Corpus da poesia latina de Antônio de Castro Lopes (1994). A maior parte de seus poemaslatinos encontram-se em Musa Latina (edições de 1868 e 1887).

Amaryllidos Dircaei aliquot selecta Lyrica in Latinum sermonem translata ad usum scholarumBrasiliensium é o subtítulo de Musa Latina, já que são 25 as Liras Seletas vertidas para o Latim por Castro Lopes,num total de 577 versos latinos. De 1995 a 1998, vim fazendo um paralelo entre ambas as versões e pude compro-var que Castro Lopes dá um tom classicizante a sua tradução livre, produzindo versos que não raro superam opróprio original de Gonzaga. Parte apenas dos resultados veio a público, v.g. a Lira I da 1ª Parte (Vide Clássica):

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Reduzindo à metade os versos, pela exclusão de perífrases e adjetivos internos, além das freqüentesinvocações, tão ao gosto arcádico, Castro Lopes prima pelo verso conciso, dentro dos cânones clássicos.

Comparem-se as versões de Gonzaga e de Castro Lopes da Lira XXX da 1ª Parte:

1. Ad claram mater lympham consedit AmorisFulta manu vultus; advenit ecce sopor.3. Prospicit hanc, illic currit laetusque Cupido;Deceptus specie tum oscula fronte rapit.5. Irata expergiscitur; est mox cognita nato,Qui supplex orat, sic veniamque petit:7.‘‘Te cernens, genetrix, Amaryllida cernere rebar,Namque Amaryllidis est vultus et ipse tuus.

1. Junto de uma clara fonteA mãe de Amor se sentou:Encostou na mão o rosto,No leve sono pegou.

Esta Lira, como o excerto da Lira II infra, ambas de cunho anacreôntico, atêm-se aos cânones arcádicos,compõem-se de redondilhas maiores, dentro da lírica tradicional portuguesa, primando pela linguagem simples esingela, não dispensando, por outro lado, os ornatus da transgressio (inversão) e sobretudo da repetitio, numentrecruzar-se de figuras que revela certo cultismo de Gonzaga.

8. Promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli,9. Phoebei plus quam formosi; horumque colores10. Pulchre miscentur vultus candore micanti.11. Curva supercilia; ei frons est convexa, polita;12. Dulciloquus, caste aspiciens; ei lumina soles;13. Et superat caelum, bini nam fronte refulgent.14. Purpureis commixta rosis sunt lilia vultu;15. Ex ebore et dentes, carbunculus inque labellis.

8. Os seus compridos cabelos,Que sobre as costas ondeiam,São que os de Apolo mais belos;Mas de loura cor não são,Têm a cor da negra noite,E com o branco do rostoFazem, Marília, um compostoDa mais formosa união.

1. Rusticus, o Amaryllis, ego non, sole, geluque2. Torridus, alterius qui servem armenta, bubulcus:3. Fert oleum, fructus, fundus mihi, vina, legumen;4. Lacte ovium vescor, tegit et me lana mearum:5. Me fortunatum! tribuunt cui talia Divi!

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,Que viva de guardar alheio gado,De tosco trato, d’expressões grosseiro,Dos frios gelos e dos sóis queimado.Tenho próprio casal, e nele assisto,Dá-me vinho, legume, fruta, azeite,Das brancas ovelhinhas tiro o leiteE mais as finas lãs de que me visto.

Graças, Marília bela!Graças à minha Estrela!

3. Cupido, que a viu de longe,Contente ao lugar correu;Cuidando que era Marília,Na face um beijo lhe deu.

5. Acorda Vênus irada:Amor a conhece; e entãoDa ousadia, que teve,Assim lhe pede perdão:

7. “Foi fácil, ó Mãe formosa,Foi fácil o engano meu:Que o semblante de MaríliaÉ todo o semblante teu.”

11. Tem redonda e lisa a testa,Arqueadas sobrancelhas;A voz meiga, a vista honesta,E seus olhos são uns sóis.Aqui vence Amor ao Céu,Que no dia luminosoO Céu tem um Sol formoso,E o travesso Amor tem dois.

14. Na sua face mimosa,Marília, estão misturadasPurpúreas folhas de rosa,Brancas folhas de jasmim.Dos rubis mais preciososOs seus beiços são formados;Os seus dentes delicadosSão pedaços de marfim.

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O texto latino, em seu caráter mais classicizante, suprime adjetivos internos: compridos cabelos, negra noite,Sol formoso, travesso Amor, dia luminoso, face mimosa, brancas folhas de jasmim, rubis preciosos, dentesdelicados; exclui perífrases: de loura cor, a cor da negra noite, folhas de rosa, folhas de jasmim; simplificaexpressões: os seus compridos cabelos que sobre as costas ondeiam... mas de loura cor não são, têm a cor danegra noite < promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli; dos rubis mais preciosos os seus beiços sãoformados; os seus dentes delicados são pedaços de marfim < “ex ebore dentes, carbunculus inque labellis”.

Uma tradução mais ou menos literal permitirá estabelecer um paralelo e verificar as muitas mudançasintroduzidas pela tradução livre de Castro Lopes, sobretudo o sintetismo latino, com 8 versos traduzindo 3oitavas portuguesas (24 v > 8 v !):

Longos, não loiros, negrejam-lhe pelos ombros os cabelosQue os de Apolo mais formosos; mesclam-se suas coresMaravilhosamente com o candor luzente de (seu) rosto.Arqueadas as sobrancelhas, é-lhe redonda e lisa a testa;De voz doce, de casto olhar; seus olhos, como sóis,Vencem o Céu, porquanto dois em sua fronte brilham.Lírios misturam-se a purpúreas rosas em seu rosto,Dentes de marfim e rubi nos labiozinhos.

Um dos poemas de Castro Lopes de maior fortuna crítica é o poema deutoglota Ave, Aurora!, feitopara poder mostrar a “consangüinidade” do Latim e do Português (Cf. BORTOLANZA, 1999, Boletim...,p. 91-94):

Salve, aurora ! eia, refulge !Eia, anima valles, montes !Hymnos canta, o Philomela,Hymnos jucundos, insontes !

Quam pura, quam pudibundaEs tu, aurora formosa !Diffunde odores suaves,Divina, purpurea rosa !

Eia, surge, vivificaPendentes ramos, aurora !Aureos fulgores emitte,Pallidas messes colora

Matutina aura, mitigaSolares, nimios ardores;Salve, aurora ! eia, refulge!Eia, anima valles, montes !

Brilhante é também sua versão latina do episódio “Ignez de Castro” de Os Lusíadas de Luís de Camões.Apresento apenas os primeiros 9 dos 72 versos (Cf. BORTOLANZA, 1999, Humanitas, p. 301-316):

1. Agnes interea, blande labentibus annis,Deliciis data, quas reddit fortuna fugaces,Pulchra quiescebat Mondae maerentibus arvis4. Rorati lacrimis, caelatum pectore nomen,Et flores, montesque docens resonare. VicissimFormosae Princeps Agnis reminiscitur absens,

Inspira gratos Favonios,Euros, Zephyros protectores.

Eoa, Tithonia Diva,Fecundos campos decora,Canoras aves excita,O serena, bella aurora !

Protege placidos somnos,Inquietas mentes tempera,Duras procellas dissipa,Terras, flores refrigera.

Extingue umbrosos vapores,O sol, o divina flamma !Lucidas portas expande,Tristes animos inflamma !Hymnos canta, o Philomela,Hymnos jucundos, insontes !

Que a fortuna não deixa durar muito;Nos saudosos campos do Mondego,De teus formosos olhos nunca enxuito,Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas,

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7. Ante oculos defixa semper imagine vultusQuaeque videt, mendacia quaeque insomnia fingunt,Omnia laetitiae vestigia:

1. Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo o doce fruito,Naquele engano da alma ledo e cego,

Para celebrar o grande feito da inauguração, em 1854, do primeiro trecho de estrada de ferro do Brasil,compôs, com todo o preciosismo próprio dos centões poéticos, num apanhado de versos colhidos nos maisrepresentativos poetas latinos, esta outra obra-prima sua: a Descripção de uma Estrada de Ferro. Em minhatese (1994), estabeleci o texto, traduzi-a e ubiquei os versos latinos:

1. Atque hic ingentem comitum affluxisse novorum2. Invenio admirans numerum, matresque, virosque,3. Undique collectam pubem, et miserabile vulgus.4. Haud mora; prosiluere suis jam sedibus omnes;5. Intenti exspectant signum; exit carcere currus.6. Fit sonus; et toti senserunt sibila montes:7. Consonat omne nemus strepitu, collesque resultant:8. Inde fragore gravi strepitus loca proxima terret.9. Advolat ille Noto citius, volucrique sagitta,10. Tenuia vix summo vestigia pulvere signat;11. Quae manet in statione, ea praeter creditur ire.12. Evomit ad caelum picea caligine nubem13. Faucibus ingentem; vacuas it fumus ad auras14. Aestuat in clausis rapidus fornacibus ignis;15. Implentur cuncta et nebula caliginis atrae.16. Inde ruunt alii, magna stipante caterva,17. Uma eademque via, certo neque ab ordine cedunt:18. Rupis in anfractu rupem subiere cavatam.19. Est specus in medio, vastoque immanis hiatu,20. Efficiens humilem lapidum compagibus arcum:21. Tum sonus auditur gravior, fragor intonat ingens,22. Et silvae reboant, furit et mugitibus aether23. Concussus, qualemve sonum, quum Jupiter atras24. Increpuit nubes, extrema tonitrua reddunt.25. Non tam grande sonat motis incudibus Aetna !26. Advolat ille, iterumque volat vapor ater ad auras:27. Portarum vigiles nutu signisque loquuntur:28. Antra subit, tofis laqueataque pumice vivo.29. Progreditur; tenebris nigrescunt omnia circum;30. Delituit caelum, et subito lux candida cessit;31. Itur et obscuras sola sub nocte per umbras;32. Quamquam et dependent lychni laquearibus altis,33. Ut primum umbrosae penitus patuere cavernae,34 . Extemplo tremefacta novus per pectora cunctis35. Insinuat pavor, et tum facta silentia linguis.36. Jam sole infuso, jam rebus luce retectis,37. Tum per aperta volans est fulminis ocior alis,38. Et studet optatam cursu contingere metam.

5. Do teu príncipe ali te respondiamAs lembranças que na alma lhe moravam,Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus formosos se apartavam;De noite em doces sonhos, que mentiam,De dia em pensamentos, que voavam:E quanto enfim cuidava e quanto viaEram tudo memórias de alegria.

1. Eis que encontro admirado enormeacorrência de novos companheiros afluindo detoda parte, homens e mulheres, grupos de jo-vens e a miseranda plebe. Logo em seguida, to-dos se dirigem a seus assentos e esperam aten-tos o sinal; sai o carro da estação.6. Soa o apito; os montes todos ouviram o silvo,toda a floresta ressoa com o ruído que as coli-nas ecoam, enchendo de terror as cercanias comesse fragor colossal. O trem voa mais velozque o vento Noto e que a seta ligeira, maldeixando à superfície leves vestígios do pó.11. O que fica na estação parece estar deslo-cando-se para frente. O trem, de suas fauces,vomita para o alto espessa nuvem escura comoo pez, eleva-se a fumaça pelos ares, e o fogovoraz arde nas suas cerradas fornalhas: tudose cobre com a nuvem de negra fuligem.16. De lá outros surgem desabalados formandouma grande esquadra, avançam impecavelmen-te por um e mesmo caminho sem sair da linha,penetrando pela fenda aberta da rocha. No meiodessa rocha há uma caverna de medonha e enor-me boca, fomando no sopé da montanha um arcode pedras.21. Ouve-se então um som mais forte, retumbaum ingente fragor, reboam as matas e o ar atin-gido se enfurece com esses como que mugidos,ou como o estrondo que repercute dos trovõesmais longínquos com que Júpiter fustiga as ne-gras nuvens. Não ronca tão forte o Etna comsuas bigornas em plena atividade !26. Ele voa, e junto voa o negro vapor pelosares; comunicam-se com acenos e bandeiras osvigias das cancelas. Ei-lo que penetra pelos an-tros forrados de pedras e de rocha viva.Avança. Tudo em volta se cobre de trevas,o céu

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se esconde, e de repente desaparece a clara luz dodia;31. caminha-se na solidão da noite pelas sombrasescuras. Embora dos altos tetos pendam lampiões,tão logo se penetra nas umbrosas cavernas, novopavor logo assalta os já apavorados peitos de to-dos, e então o silêncio impera.36. Eis que o sol aparece, eis que com a luz ascoisas se desvendam, e o trem voa pelos descam-pados mais veloz que as asas do raio, e correndobusca alcançar a desejada meta.

O canarino Anchieta veio ao Brasil em 1553, aos 19 anos de idade, não antes de ter passado 5 anos porintenso tirocínio na Universidade de Coimbra. Lá aprendeu as Humanidades, tornando-se exímio na LínguaLatina, um poeta novilatino. Sua produção poética latina compreende duas grandes obras: De Beata VirgineDei Matre Maria, com quase 5800 versos e De Gestis Mendi de Saa, poema épico com 3135 versos. Alémdestes, De Eucharistia et Aliis Poemata Varia – título dado pelo Pe. Armando Cardoso à coletânea de váriospoemas. Ao todo, foram 10300 versos latinos de qualidade que nos legou, ao lado de vasta produção em LínguaPortuguesa, Tupi e Espanhola, sem contar com a sua prosa latina e a obra dramática.

Primeiro grande épico deste novo País, o missionário Jesuíta Anchieta, de ótima formação humanista, en-controu no herói Mem de Sá as grandes façanhas para sua epopéia: foi o Governador que, em pouco tempo,conseguiu conter os índios, dominá-los, possibilitando com isso a presença do missionário catequizador. Dese-nhava-se o cenário de uma epopéia, com o triunfo da colonização portuguesa sob a égide da Cruz e da Espada,da Ideologia da Fé e Império, a que fará eco o grande poema épico de Camões, 9 anos mais tarde.

Parece contraditório que Anchieta, que tanto amou os índios, a ponto de, no ano da 1ª edição da epopéia(1563), fazer-se espontaneamente refém dos índios na Confederação dos Tamoios, tenha cantado comaltissonância os Feitos de Mem de Sá, o herói que dominou os índios que se opunham à dominação colonizadorado Português. É que, para Anchieta, foi isto que operou o verdadeiro herói, Cristo Rei, no seu plano de salvação:permitiu, através de seu herói terreno, que os bárbaros fossem catequizados e “salvos”, a libertá-los da domi-nação do terrível antagonista infernal. Assim surge De Gestis Mendi de Saa, a primeira epopéia nacional eprimeira epopéia das Américas, até hoje a merecer maior divulgação, pela sua importância histórico-literária deLiteratura Brasileira de expressão latina.

Analisando o texto latino, estabelecido pelo Pe. Armando Cardoso, várias pesquisas vêm sendo desenvolvi-das (por mim e por orientandos), com o projeto O Poema Épico De Gestis Mendi de Saa do Padre Anchieta:Lexicon Concordantiarum e Outros Estudos. A partir do estudo do léxico empregado, duas pesquisas jáforam apresentadas em congressos internacionais: “A Ideologia da Adjetivação Indígena em De Gestis Mendide Saa” e “A Mitologia Pagã em De Gestis Mendi de Saa”.

Nesta, mostro como Anchieta, seguindo os cânones clássicos, serviu-se expressivamente da mitologia pagã.No texto latino, encontram-se mais de 300 alusões diretas a entidades mitológicas. Já, no texto português do Pe.Armando Cardoso, a maioria delas não consta. Isto se deve ao fato de Anchieta normalmente valer-se dametonímia: os epítetos pagãos referem-se a fenômenos da natureza, quando não são cristianizados. Assim, nomais das vezes, Apolo, Netuno, Vulcano, Minerva ou Marte, entre outros, são empregados como sinônimos de,respectivamente, o sol, o mar, o fogo, a arte ou a guerra. Outras vezes, são as figuras infernais ou celestiais quepassam a integrar a dominante mitologia cristã da epopéia: Styx, Cerberus, Dis ou seu epíteto Tyrannus,Acheron, Infernus, Bellua, Chaos empregam-se dentro do contexto infernal e diabólico cristão, enquantoOlympus, Altitonans ou Tonans, Superi, Aether e aethereus, Superus Parens etc passam a referir-se ao Céucristão, a Deus Pai.

2. PADRE JOSÉ DE ANCHIETA (1534-1597)

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O maravilhoso pagão, nesta epopéia, não representa o Fatum, a força suprema a mover o imo dos aconteci-mentos, a operar as Mirabilia ad aeternum memoranda, deixando ao herói humano um papel secundário,como o foi para Camões em Os Lusíadas, que veio à luz 9 anos mais tarde (1572). Em Anchieta, o verdadeiroHerói pertence ao maravilhoso cristão e o heroísmo do herói humano advém de sua consonância com os ditamesdaquele. Aliás, em Camões, o maravilhoso cristão parece às vezes sobrepor-se ao maravilhoso pagão.

Na comunicação “A Ideologia da Adjetivação indígena...”, expus o resultado de um minucioso levantamentodos adjetivos empregados por Anchieta ao se referir aos índios. Referindo-se aos habitantes do Brasil, emprega,entre outros, os seguintes substantivos: gens, natio, tellus, brasillia, brasilles, indus, populus, hostis, catervae,turmae, agmina e turbae. Raramente estes aparecem sem o qualificante, quando não mais de um.

Farta adjetivação com o sema da “crueldade/ferocidade”: os índios brasileiros são vistos como saevi, feri,crudeles, immanes, atri, cruenti, diri, atroces, feroces e sanguinolenti, tendo sido levantadas 162 ocorrên-cias. Cruéis duma ferocidade selvagem, muitas vezes comparada e enfocada como superior à dos lobos, leõese tigres, perigosos sobretudo para o ser humano, uma vez que este instinto sanguinário é apontado como parte docaráter indígena, os índios só poderiam mudar seus costumes se domados. É que, além desse encarniçamento,são bárbaros, hostis, indômitos e soberbos (60), infrenes em seus vícios, ávidos de sangue humano. Entre osadjetivos, cumpre destacar as 25 ocorrências de humanus, à primeira vista sem conotação desabonante, masque, no texto, qualificam normalmente a antropofagia: carne (11), sangue (7), corpo ou membros (4) humanos.

Entre os excertos, vejam-se, por exemplo, estes hexâmetros iniciais a referirem-se ao prius (período anterioraos Feitos de Mem de Sá), omitindo-se os alternados pares que mostram o resultado da ação do herói:

3 Jam fera deposuit tumidos Brasillia fastus5 Quae prius horrendo funesto furore gerebat7 Quae prius umbrosis degebat condita silvis9 Quae rabidis hominum rodebat corpora malis11 Quae saeva humanum sugebat fauce cruorem

À ferocidade e ao orgulho acresça-se o caráter de selvagem arredio a esconder-se nas sombrias florestas.Completa-se este quadro, logo a seguir, quando o Poeta, nesta 1ª descrição do indígena brasileiro – Gens fuitaustralis –, desvenda sua concepção a respeito do habitante desta nova Terra, pertencente ao reino do antago-nista infernal de que só poderá ser tirado com a intervenção sobrenatural: o verdadeiro Herói decide enviar o“semideus” salvador a estas “humano sudantes sanguine terras”, a esses “loca sepulta nocte horrifica”, adizimarem as “Christicolas gentes”:

131 Obtenebrata diu barathri caligine caeci,Gens fuit australis, saevi subjecta tyranniColla jugo, cassum divini luminis aevumTraducens, multisque malis immersa; superba,135 Effrenis, crudelis, atrox, fusoque cruentaSanguine: docta necem rapidis inferre sagittis;Immanesque tigres feritate luposque voracesEt rabidos superare canes saevosque leones,Humanis avidam pascebat carnibus alvum.140 Multa diu scelera intentans, immanibus atriRegnatorem Erebi, (qui mortem primus in orbemInduxit, primus seducens fraude parentes),Sponte sequens factis, multorum corpora saevoDiscerpens leto, crudele superba furore145 Christicolas multo populabat funere gentes;Donec ab aethereis spectans regionibus orasBrasilles Pater omnipotens, loca nocte sepulta

Brasillia / FastusFuroreBrasillia / silvisMalis (queixadas)fauce / cruorem

CaligineGens / Tyranni / Colla

Malis / GensGens / Sanguine/ GensGensTigres / LuposCanes / LeonesCarnibus / AlvumScelera / Factis / Erebi

LetoFurore / GensFunereOras / LocaNocte / Sanguine / Terras

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Horrifica, humano sudantes sanguine terras,Misit ab Arctois ultoris criminis oris,150 Criminis infandi ultorem; qui pelleret irasCrudeles terra; qui funera dira, cruentisPerpetrata modis, compesceret, horrida sedansBella, feros animos mulcens, rabidisque cruorem159 Rictibus humanum pasci non ferret inultus.

Não muito diferente é este outro trecho selecionado, em que se descreve o Tamuya da capitania do EspíritoSanto, a justificar o primeiro grande Feito de Mem de Sá – obrigá-lo a aceitar a presença da colonizaçãoportuguesa – enviando uma expedição sob o comando de seu filho Fernão, posto que o pequeno grupo lusíadaestava prestes a ser dizimado:

199 Terra procul paucis colitur fecunda colonis, (...)204 Spiritus hanc sacro designat nomine Sanctus,205 Lysiadum cultam populis; quos horrida contraBella movens Tamuya ferox, (id nomen avorumHostis habet saevus), damna infert plurima passim,Devastans agros fecundaque fructibus arva;Abducensque homines, it praeda victor abacta,210 Captivoque avidos impinguat sanguine ventres.Jamque omnes variis concurrere partibus hostes,Et saevam glomerare manum, populentur ut omnemChristiadum populum; furit imis ira medullisEt belli vesanus amor carnisque cupido215 Humanae; gliscunt insano corda furore,Et, ni dextra Dei coeptis crudelibus obstet,Auxilium caeleste ferens, gentemque superbamBellorum ardentem furiis avidamque cruorisDisturbet, saevo jam protinus omnia Marte220 Incestent, madidentque piorum sanguine terram. (...)243 “Cernis ut innumero crudeles agmine gentes“Praelia Christiadum populo truculenta minentur245 “Indignamque necem; jamjam et cervicibus instent,“Non secus ac saevae carpturae corpora tigres,“Hausturaeque pium sitienti fauce cruorem.

Observe-se também este Finale:

3048 Et mundi extremos penetravit adusque Japones.Te quoque adorabit caecis erepta tenebris,3050 Divinae exortu lucis radiata micantiNatio, quae humana pascit fera viscera carne,Et subjecta Noto noscet tua nomina tellus;Aureaque australi succedent saecula mundo,Cum tua Brasilles servabunt dogmata gentes.

Pode-se concluir, ante o exposto, que a adjetivação indígena em De Gestis Mendi de Saa, dada a abundân-cia com que é empregada e considerada a sua carga semântica, mostra em Anchieta um lídimo representante daIdeologia da Fé e Império, a que não escapará o próprio Camões em Os Lusíadas, logo depois, em 1572. Comotoda ideologia, peca pela parcialidade: insiste-se naquilo que vem a justificar os fatos — e não se está aqui aduvidar das boas intenções do Venerável Apóstolo do Brasil — deixando-se de destacar o que levou os índios a

CriminisIras / Funera / ModisFunera / BellaAnimos / RictibusCruorem / [Ille]

Colonis / Terra

Terram / BellaTamuyaHostis / DamnaTamuyaTamuya / PraedaSanguine /Ventres

ManumMedullisAmorCarnis / FuroreCoeptisGentemGentem / GentemMarte

Agmine / GentesPraeliaNecemTigresTigres / Cruorem / Fauce

JaponesTenebris / NatioLucis / Natio / ExortuCarne / VisceraTellus / NominaSaecula / MundoDogmata / Gentes

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O Padre Antônio Vieira é, sem dúvida, um dos escritores em Língua Portuguesa que mais despertou ointeresse da crítica. O poeta latino Vieira, no entanto, está a merecer maior destaque: urge uma edição crítica deseus poemas.

Dentro de meu projeto de Pós-Doutorado, “Poesia Novilatina Luso-Brasileira”, pude recolher boa parte dafortuna crítica dos seus poemas latinos. Apresento aqui em parte o poema de maior fortuna: Cortex Eucharisticus,id est, Sacrae Pyxidis ex cortice affabre elaboratae descriptio, conforme o título do códice 166 do FondoGesuitico da Biblioteca Nazionale Centrale de Roma.

Foi este um poema de ocasião. Vieira se achava em Santarém, para pregar nas exéquias do seu padrinho debatismo, primeiro conde de Unhão, D. Fernão Teles de Meneses, quando, a 06 de maio de 1651, se inauguroucom grande pompa a nova sede, os Paços doados por D. João IV aos Jesuítas (RODRIGUES, 1994, P.14). Foio orador também desta grande solenidade. Encantou-se ele ante a simplicidade da capela improvisada e sobre-tudo do altar e píxide artisticamente elaborados em cortiça pelo Padre Sebastião de Novais. (Seria o mesmoPadre Novais que iria dirigir os trabalhos de construção da nova igreja nos anos posteriores. Seria também umoutro padre jesuíta, Antônio Vieira, dito de Arraiolos, quem iria concluir a obra, nos anos de 1712 a 1716. Op.Cit., p. 15). Isto se atesta na tradição impressa, em que, ao título Pixis, seu Cortex Eucharisticus, se acrescemos seguintes dizeres:

Pyxidem eucharisticam e suberis cortice miro artifício fabrefactam, et sculpturae artis legibusingeniosissime inventam, conditamque a Patre Sebastiano de Novais Societatis Jesu, canebat,modulatissime, merum fundens ab ore melos, P. Antonius Vieira, ut in divinis, sic in humanioribus litterisapprime excultus.

Estava o humanista Vieira diante de motivo ímpar para “reacender os extintos fogos e a chama que arrefececom a idade”, compondo versos em Latim, língua ainda universal nos meios cultos. O “milagre” da cortiçatransformada em “casa” da Divina Presença Eucarística oferecia-lhe um tema predileto para seus malabaris-mos verbais e conceptuais. Apresento apenas os primeiros 26 versos:

CORTEX EUCHARISTICUS, id est, Sacrae Pixidis ex cortice affabre elaboratae descriptio

1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo? Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes,3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam?Corticis est, quae forma senem pulcherrima vatem5. Concipere Aonios effeta mente furores,Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes.Corticis est, non ficta cano: vos lumina testes,9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago.10. Corticis est: o quanta sacer miracula cortexEt tegit, et prodit, certantque patentia tectis!Mysterii jam clara fides: si talia cerno

esta hostilidade, com as várias tentativas de escravização, com a prepotência de alguns colonizadores. Háreferências sim a estas “culpas” dos portugueses, mas estão diluídas, restritas a pequenas alusões. As pistas dotexto, através do caminho da adjetivação, como também poderia ser o dos verbos, evidenciam a ideologia que éa razão de ser deste grande feito poético de Anchieta.

3. PADRE ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697)

1. Para onde me arrebata a Musa, e Apolo, pormuito tempo abandonado? Manda ele reacender osextintos fogos com que nos divertimos na juventude ea chama que arrefece com a idade? 4. É a forma dacortiça que, lindíssima, impeliu o vate já velho a con-ceber na mente exaurida os estros aônios, a retomar alira suspensa e o plectro quebrado e a relembrar numcarme as fontes esquecidas.8. É mesmo de cortiça,não canto ficção: com efeito, vós, olhos, sois testemu-nhas e vós, mãos, apalpastes e a imagem não vosiludiu.10. É de cortiça! Oh! quantos milagres a sagradacortiça a um tempo encobre e manifesta! e comoporfia o manifesto com o oculto! Já se aclara a fémisteriosa: se reconheço que a arte mortal reali-

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13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum estDivinas potuisse manus? De cortice Pyxis,15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsiIngenio Artifici, de cortice fabrica surgit,17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro,Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles.21. Fundamenta locat cortex, de cortice membraAdsurgunt, cortex calicem, cortexque columnas23. Erigit, excelsos cortex sinuatur in arcus;Cortice pyramides crescunt, fastigia cortex25. Culminat, Angelici spirant in cortice vultus;Cortice poma tument, nascuntur cortice flores,27. Pallentes flores omnes; sed forma coloremDistinguit, variatque, ac puro cortice pingit.

Cumpre salientar que a edição crítica está em andamento. Exponho aqui apenas aspectos do que apresenteino XI Simpósio Nacional de Estudos Clássicos.

Para mostrar a maestria do “retórico” Vieira, aponto infra algumas figurae elocutionis da repetitio: obser-ve-se como se distribuem por todo o texto, desde a epímone de CORTEX (destacada em maiúsculas). Abundama anáfora e a epanalepse, o poliptoto e a figura etimológica, epíforas, polissíndetos, a palilogia ou ritornelo,anadiploses, diáforas, homeoteleutos, aliterações e toda uma série de recursos à mão do artista barroco, a incluí-lo entre os melhores cultistas. De fato, mesmo aliadas ao labirinto conceptista em que os conceitos se cruzam eentrecruzam, sempre a gerarem novas seqüências, estas figuras não tolhem ao estilo de Vieira a clareza, a graçae a arte persuasória que o tornam exemplar em tudo o que escreve. Enaltecem-no poeta latino de primeiragrandeza.

1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo?2. Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes,3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam?4. CORTICIS est, quae forma senem pulcherrima vatem5. Concipere Aonios effeta mente furores,6. Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes.8. CORTICIS est, non ficta cano: vos lumina testes,9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago.10. CORTICIS est: o quanta sacer miracula CORTEX11. Et tegit, et prodit, certantque patentia tectis!12. Mysterii jam clara fides: si talia cerno13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est14. Divinas potuisse manus? De CORTICE Pyxis,15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsi16. Ingenio Artifici, de CORTICE fabrica surgit,17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro,18. Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles.19. Fundamenta locat CORTEX, de CORTICE membra20. Adsurgunt, CORTEX calicem, CORTEXque columnas21. Erigit, excelsos CORTEX sinuatur in arcus;22. CORTICE pyramides crescunt, fastigia CORTEX23. Culminat, Angelici spirant in CORTICE vultus;

zou tais prodígios, o que é digno crer possam asmãos divinas fazer?14. Surge da cortiça uma Píxide, obra maior doque o nome e só igual em engenho a tão grandeartista; brota da cortiça um artefato, que Vulcanonão se teria atrevido a extrair do ferro, nem Dédalodo ouro, nem Praxíteles do mármore, nem Apelesdo seu pincel.21. A cortiça estabelece a base, da cortiça se er-guem as partes; a cortiça eleva o cálice; a cortiçaeleva as colunas; a cortiça se recurva em excelsosarcos; da cortiça crescem pirâmides, a cortiça so-breleva a parte superior, em cortiça respiram osvultos angélicos.24. De cortiça tumescem frutos, de cortiça nascemflores, todas de cor pálida, mas a forma, em puracortiça, lhes distingue, varia e pinta a cor.

Figura etimológicaConcinnitasConcinnitasPoliptoto/ Ritornelo: Corticis estConcinnitasAliteraçãoConcinnitasFigura etimológicaMesarquiaEpanalepse poliptóticaEpanalepse poliptótica / Polissíndeto

Isócolo / homeoteleuto

Mesodiplose / isócoloFig. etimológicaComeça longa epímone “CORTEX”Poliptoto / isócolo / anáfora de colosHomeoteleutoEpanalepse poliptótica

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24. CORTICE poma tument, nascuntur CORTICE flores,25. Pallentes flores omnes; sed forma colorem26. Distinguit, variatque, ac puro CORTICE pingit.

Evidentemente, muito pouco foi destacado quanto ao emprego de figurae elocutionis, quase nada quanto àsinversões bem ao gosto clássico, mas o suficiente para se aquilatar do quanto o artista da palavra quis imitar oartista plástico que da cortiça, matéria inerte, extraiu tão preciosa obra. Não poderia a solenidade contar commaior brilho.

Eis, portanto, um excelente subsídio aos humanistas e estudiosos de Latim.Como conclusão, insisto que o Brasil não pode continuar desconhecendo a Literatura Brasileira de expressão latina,

até para preservar a sua própria cultura: somos herdeiros da civilização greco-romana, muito devemos às Humanidades,nelas reconhecemo-nos como in speculo.

Voltar aos estudos clássicos e humanísticos, estudar o Português como parte que é da Latinidade e, portanto, ressus-citar o ensino de Latim talvez seja o viés que nos cabe ousar para fazer frente à crise da Educação Brasileira.

Referências BibliográficasANCHIETA, Pe. José de. De Gestis Mendi de Saa - Poema Épico. São Paulo: Loyola, 1986.BORTOLANZA, João. Corpus da Poesia Latina de Antônio de Castro Lopes. Assis: UNESP, 1994, 4 vol. (Tese de Doutorado em Letras– Latinidade Brasileira)..BORTOLANZA, João. A Ideologia da Adjetivação Indígena em De Gestis Mendi de Saa. Atas do Congresso Internacional Anchieta 400Anos. São Paulo, p.39-49, 1998.BORTOLANZA, João. Marília de Dirceu / Amaryllidos Dircaei. Clássica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos. Belo Horizonte,SBEC/UFMG, v.9/10, p. 224-232, 2000.BORTOLANZA, João. O Poema dutoglota “Ave, Aurora!” de Castro Lopes. Coimbra, Boletim De Estudos Clássicos, v. 31, p. 91-94,1999.BORTOLANZA, João. O Poeta novilatino carioca Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Coimbra, HVMANITAS. Coimbra, v.51, p.301-316, 1999.LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,1949.RODRIGUES, Pe. Francisco. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Porto: Apostolado da Imprensa, 1944, Vol.I, Tomo III.SARNEEL, Pedro. Poesia Novilatina. Enio Aloisio Fonda e Fonda (org.). Assis-SP: FFCL, 1973.SOMMERVOGEL, Karl. Bibliothèque de la Compagnie de Jésus. Bruxelles: Oscar Schepens., 1816.VIEIRA, Pe. Antônio. Obras várias o Padre Antonio Vieira. Lisboa, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, 1857, tomo II.VIEIRA, Pe. Antônio. Obras Escolhidas. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1952, Vol. VII.

MesoteleutoMesarquia

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Se os discursos para inscreverem-se na memória discursivadevem ter uma certa importância, o movimento popular parater importância histórica deve marcar sua posição social,de forma que tanto os discursos, quanto o movimento popu-lar devem ser investidos de algumas marcas ideológicas oude determinados discursos. Este é o caso do MST - Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Palavras-chave:discurso, ideologia, paráfrase, movimento social.

If the discourses for to inscrible in the discoursivememory nud to be important, the popular moviment forto be important and show your historic and socialposition, they nud to invest in the mark ideologicaldiscourses or to build your own discourse; like is thecase of the Landless Rural Workers (Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem-Terra – MST).

Keywords:discourse; ideology; paraphrase; social moviment.

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IntroduçãoEste artigo tem como objetivo analisar os principais

discursos e ideologias – na perspectiva de Foucault ePêcheux (1986 e 1988) -, contidas nos editoriais dosboletins e jornais (1981 até 1999) do MST – Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -, a fim delevantar os discursos que dão sustentação às ativida-des discursivas e pragmáticas que vêm preocupandoos órgãos governamentais do Brasil e a comunidadeinternacional.

Assim, o acontecimento MST coloca em evidên-cia a disputa pela terra como um fato antigo na histó-ria da humanidade e em particular no Brasil, que datadesde o seu “achamento” pelos portugueses. Nos qui-nhentos anos de existência, vários movimentos popu-lares levantaram-se na disputa pela terra como a dosíndios que defendiam seus territórios, passando peloQuilombo dos Palmares, Canudos e inúmeras revol-tas populares que a História Oficial registra com ou-tras versões.

O MST compreende mais um prolongamentoou extensão dessa luta pela terra que é um frutode grandes concentrações seculares nas mãos de

ESTUDO DA IDEOLOGIA QUESUSTENTA O MST *

Marlon Leal Rodrigues**

* Este artigo foi apresentado em forma de comunicação no encontro do GEL em Bauru-SP (1999).** Prof. da UNEMAT, Câmpus de Alto Araguaia-MT, e prof. convidado do curso de Especialização da UFMS, Câmpus de Três Lagoas-MS.

poucos, o que gera, como conseqüência, uma de-sigualdade social, também secular, que cada vezse agrava.

Discurso, sujeitoe ideologia

O discurso, enquanto pré-construído, é um conjun-to de condições pré-existentes, segundo Foucault (1986:124), “um conjunto de enunciados que se apóiam emum mesmo sistema de formação.” Mas o discurso, paraFoucault (1996), é, também, um jogo estratégico deação e de reação, de pergunta e de resposta, de domi-nação e de esquiva, e também de luta, “o espaço emque o saber e o poder se articulam, pois quem fala,fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecidoinstitucionalmente”. O discurso é ainda acontecimen-to. Por possuir uma realidade material como aconteci-mento, o discurso possui uma certa inquietação de sen-tido com duração relativamente curta ou instável.

O discurso é controlado, selecionado, organizado eredistribuído a partir de determinados procedimentosque colocam em jogo seus poderes e perigos. Em ou-tras palavras, existe controle, seleção, organização e

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Quando o sujeitoenunciador parafraseia,

ele coloca em cena aidentidade do sentido apartir de um discurso-fonte que percorre a

instância de todo sentidosemântico em uma

situação-dada onde osentido do texto-fonte é

"sempre re-re-constituição".

distribuição dos discursos porque énecessário eliminar toda e qualquerameaça à permanência do poderinstituído.

O discurso, em última análise, éuma prática (prática regulamenta-da dando conta de um certo núme-ro de enunciados), entendendo-sepor “prática” a existência objetivae material de certas regras às quaiso sujeito tem de obedecer quandoparticipa do “discurso”. As normasdessa prática são “regras” ou “regularidades”.

O sujeito para Foucault (1986) é apenas uma fun-ção fundadora do discurso, espaço de possibilidadesde realização discursiva ou de posição que deve e podeocupar todo indivíduo para ser sujeito de determinadodiscurso. Já Pêcheux, mais comprometido com o ma-terialismo histórico, nega a evidência explícita do su-jeito, pois a evidência é apenas um efeito ideológicoelementar. O sujeito se constitui pela ideologia que ointerpela na medida em que se inscreve em uma for-mação discursiva dada, assim, o sujeito se “liberta” deuma ideologia somente ao passo que é interpelado poroutra.

A Ideologia, segundo Pêcheux (1988), não consti-tui apenas os sujeitos, mas também os sentidos. Ossentidos (assim como os sujeitos) são constituídos his-toricamente, o que equivale a dizer que os sentidosnão existem de per si na língua, não sendo, portanto,literais. Os sentidos advêm das formações discursivas(sempre tomadas como um lugar mais ou menos pro-visório) que os constituem, através de relações demetáfora ou transferência de sentidos, as quais se re-alizam em efeitos de paráfrases, sinonímia, substitui-ções etc..

Eagleton (1997) faz uma síntese histórica do con-ceito de ideologia e a concebe como uma intervençãopolítica no que tem de idéias e atitudes reflexivas vol-tadas para a prática social do sujeito relacionado comas intrincadas redes tecidas com e pelo poder. É noseio deste poder que a ideologia se torna um conjuntode valores e crenças, não em si, mas voltadas para aação, para a prática social.

O processo pelo qual a formação discursiva cons-trói sua memória ou pré-construído, chama-se me-mória discursiva, lugar onde o sujeito “escolhe” e

“colhe” os discursos disponíveis norepertório social, (o eixo vertical),pelo recurso de parafrasagem,substituição, sinonímias etc.. Esseprocesso chama-se memóriadiscursiva, segundo Courtine(1994). Trata-se, como nos alertaCourtine, de um tipo de memóriaque não se confunde com a memó-ria psicológica, de um sujeito emparticular. O sujeito, ao se apropri-ar de um determinado discurso, pré-

construído, faz ocorrer, na linearidade do discurso, noeixo horizontal, o fenômeno de ocultação do eixo ver-tical.

A paráfrase, de acordo com Fuchs (1982: 29), si-tua-se entre a “língua e o discurso”, excede “o campoda lingüística não somente pelo nível do sentido ondese pode estabelecer a relação semântica em jogo, mastambém pela tensão.

Quando o sujeito enunciador parafraseia, ele colo-ca em cena a identidade do sentido a partir de um dis-curso-fonte que percorre a instância de todo sentidosemântico em uma situação-dada onde o sentido dotexto-fonte é “sempre re-re- constituição" (idem, p. 30).Além disso, “o único conhecimento da situaçãodiscursiva permite decidir se se trata ou não de umaidentificação parafrástica” (p. 32), e por conseguinte,o sujeito parafraseador é produtor decodificador dotexto-fonte.

Discurso Institucionalou Fundador

O discurso (1), Institucional ou Fundador, entre ou-tros que compõem o repertório do MST, foi o primeiro ase inscrever ou a “ser invocado”, chamado à cena no“nascedouro” do movimento. Sua configuração, ao con-trário do que tem sido alardeado pelos meios de comu-nicação e grande mídia, não se afigura um discurso“marginal” ou revolucionário naquele instante (1981),como se verá a seguir nos seguintes enunciados:(1) Como agricultor, achamos que temos direito a terum pedacinho de terra (1981); (2) Preço da paz, é jus-tiça e terra para todos (1981); (3) Terra para quemnela trabalha (1981); (4) Os trabalhadores querem terra

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O discurso do MST,Fundador ou Institu-

cional, constitui-se emtrabalho de interdiscur-sividade, em reivindica-

ção que postula o direitoinviolável já asseguradode ter "acesso à terra"para nela trabalhar...

para produzir (1983); (5) Sem re-forma agrária não há democracia(1986); (6) Lutando por um ideal;por uma causa justa: viver como ho-mem (1982); (7) A seguir esclare-cemos as manobras do Incra queresponde aos colonos dizendo quenão há terra para eles no estado.Mas os agricultores sabem que elasexistem e que o Estatuto da terrafala em desapropriação do latifún-dio (1981); (8) Só com muita luta,com muita garra conquistaremos e asseguraremos onosso direito de ter um pedaço de terra para produzir egarantir o sustento de nossa família (1987); (9) Paranós, trabalhadores rurais, a constituinte já está total-mente desmoralizada e não merece mais a confiançade ninguém. Lá só prevalece os interesses dos gruposeconômicos e o carreirismo pessoal, tirando qualqueresperança de nós trabalhadores termos nossas pro-postas garantidas (1987); (10) Reconhecemos justa elegítima a luta dos sem terra. (1982); (10-A) é assegu-rada a todos a oportunidade de acesso à propriedadeda terra, condicionada pela sua função social (1984).

O MST imprimiu nesse discurso a voz da reivindi-cação de um direito prescrito pelo próprio Estado du-rante a ditadura militar (1964 - 1980), conforme a Leisobre o Estatuto da Terra, que estabelece em seu Ar-tigo 2º: “é assegurada a todos a oportunidade de aces-so à propriedade da terra, condicionada pela sua fun-ção social”. Assim, esse discurso do Estado constituia origem de uma relação de interdiscurso (Pêcheux,1988) sobre o qual o MST fundará o argumento quelegitimará sua pragmaticidade e seus discursos.

O enunciado (10-A) do MST: “é assegurada a to-dos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,condicionada pela sua função social” estabelece umarelação de interdiscursividade por pura repetição como discurso do Estado, acabando por tornar-se o “fio dodiscurso” do MST, o seu intradiscurso, com o qual cons-truirá a sua rede discursiva. Essa relação resultará tam-bém em uma condição necessária de reconfiguraçãode sentido e significado, que serão outros, contrapon-do o sentido e significado imprimidos pela ditadura mi-litar, sentido de pró-forma. Assim, o Estatuto da Terra,enquanto discurso do Estado, não implicava uma nova

tomada de postura ou atoperlocucionário, mas sim um ato defala locucionário, um discurso semefeito, somente no nível da referên-cia.

O sentido e o significado dasunidades “assegurada e acesso”,para o MST, distinto do discurso doEstado, no trabalho de interdis-cursividade por pura repetição,reconfiguram com a significação dedireito, que implica garantias

invioláveis, enquanto no discurso do Estado tais unida-des não implicam garantias, direito inviolável. Areconfiguração é verificada, como atividade deinterdiscursividade parafrástica (Fuchs, 1982), nosenunciados: (1) “temos o direito”, (2) “justiça e terra”,(3) “os mesmos direitos”, (5) “terra para produzir”, (6)“democracia”, (6) “viver como homem, (8) “nosso di-reito” e (10) “justa e legítima”. A passagem de “asse-gurada e acesso” para o sentido de “direito” é rele-vante para este discurso do MST, uma vez que consis-tirá em estratégia para burlar os controles de exclusãodo discurso e sua ação.

O enunciado (6), “Sem reforma agrária não há de-mocracia”, articula certos efeitos (Eagleton, 1997) nointerior do discurso. Esses efeitos redimensionam osentido de “democracia”, e determinam também a prá-tica efetiva do movimento, ao fixar-se um novo valor,reforma agrária e suas implicações, assim provocandouma alteração de sentido: a democracia só será con-cebida como legítima se em seu interior estiver asse-gurada, na prática, enquanto direito, a reforma agráriado MST (para diferenciar de outros sentidos de refor-ma agrária), uma vez que a questão do direito éinviolável para a democracia, de acordo com o discur-so do próprio Estado.

O discurso do MST, Fundador ou Institucional,constitui-se em trabalho de interdiscursividade, emreivindicação que postula o direito inviolável já asse-gurado de ter “acesso à terra” para nela trabalhar eas demais prerrogativas advindas deste “direito”, con-siderando que “ter acesso” não equivale a “ter direi-to”, e que o MST redimensiona o “ter acesso” para“direito”. Fica ainda configurado que ter direito nãosignifica poder usufruir, o que implica e justifica aação do MST, a partir do próprio discurso do Estado,

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O trabalho de religare anular sentidos é

uma atividade tensa delinguagem, em queexiste uma relação

interdiscursivacom o discurso do

Senso Comum.

de onde tece seu discurso parasustentação de uma ação pragmá-tica.

Discurso deReforma AgráriaO Discurso de Reforma Agrá-

ria, (2), é o segundo a ser evidenci-ado no “nascedouro” do MST; é arazão pela qual o movimento existee reafirma sua posição social. En-quanto o discurso Institucional ou Fundador afigura-seem um interdiscurso do que prescreve a lei que regesobre a “terra, sua função social e o direito”, o discur-so de Reforma Agrária possibilita a materialização eprática efetiva do discurso Institucional ou Fundador.Assim, seguem os enunciados do Discurso de reformaAgrária:(11) A reforma agrária solucionará os problemas docampo brasileiro (1981); (12) Sem reforma agrária nãohá democracia (1994); (13) Reforma agrária não écrime. A Constituição Federal em seu Capítulo III de-termina: “art. 184. Compete à União desapropriar porinteresse social, para fins de reforma agrária, o imóvelrural que não esteja cumprindo sua função social (1996).

Se, por um lado, o discurso Institucional ou Funda-dor mantém relações interdiscursivas, em seus váriosaspectos, com o discurso do Estado, cujo foco recaisobre o referente “direito” e suas implicações, por ou-tro, o discurso de Reforma Agrária focaliza o referen-te: divisão de terra, função social da terra, distribuiçãode terra para quem nela trabalha, cujo pressuposto é odiscurso Institucional ou Fundador, pois este faculta aodiscurso de Reforma Agrária inscrever-se na ordemdo discurso.

No trabalho de interdiscursividade, com oInstitucional ou Fundador, por pura repetição, a reivin-dicação de reforma agrária vai estender-se a outrossentidos como: (12) “sem reforma agrária não há de-mocracia”, cujo sentido não é mais o de incorporar areforma agrária no bojo da concepção de democraciaou evitar sua exclusão, mas trata-se de uma questãode cidadania, que implica divisão de terra, a partir desua função social, como em (13) “reforma agrária nãoé crime”. A constituição Federal em seu Capítulo III,

Art. 184, determina: “compete àUnião desapropriar por interessesocial, para fins de reforma agrá-ria”. Assim, de certa forma, pode-se afirmar que se trata do mesmodiscurso, porém com sentidos dis-tintos, desta forma constituindo-setambém em um outro discurso.

Assim, (11), “A reforma agrá-ria solucionará os problemas docampo brasileiro”, é enunciado debase do discurso do MST na me-

dida em que faz o discurso progredir, religando senti-dos: a questão da terra no Brasil é histórica, os pro-blemas são graves, existe conflito, enquanto houver“problema” não haverá paz nem justiça no campo.Na mesma proporção, em que se constitui pelo aves-so dos sentidos negativos que circulam no Senso Co-mum, enquanto discurso, segundo o qual “o problemado campo brasileiro não é o latifúndio”, “para quemquer trabalhar existe terra”, “o Brasil sempre foi as-sim”, “pobre - agricultor - não tem vez mesmo”, “essenegócio de reforma agrária é desculpa de agitador”etc..

O trabalho de religar e anular sentidos é uma ati-vidade tensa de linguagem, em que existe uma rela-ção interdiscursiva com o discurso do Senso Comum.Esse relação tem como pressuposto: o problema docampo é um fato concreto; existe terra para efetivara reforma agrária; existe trabalhador rural querendoterra para trabalhar; é possível resolver o problemado campo brasileiro; é possível transformar a reali-dade histórica do campo brasileiro; a reforma agráriaé uma problema social etc. Ao religar alguns senti-dos e anular outros, favorece-se a progressão do dis-curso, na medida em que se envolve a sociedade noproblema da reforma agrária, a partir do próprio dis-curso do Estado.

Discurso de Reforma Agráriae Movimentos Populares

O Discurso de Reforma Agrária e MovimentosPopulares, (3), em certa instância, é uma paráfrase doanterior, somente na proporção em que este concebee preserva certos sentidos de reforma agrária (existe

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O MST, além deincorporar nesse

discurso a posição devanguarda, também

acaba por estabeleceruma conexão primordialentre a luta pela reformaagrária e o interesse dostrabalhadores em geral.

terra para reforma agrária, existetrabalhador sem terra, o agricultortem direito à terra, existe a neces-sidade de uma mudança na concep-ção de propriedade da terra e exis-te o movimento). No entanto, aocompartilhar do mesmo campodiscursivo, incorpora certos elemen-tos pré-construídos (no eixo verti-cal, memória discursiva) dos movi-mentos populares o que, em certosentido, contribui para oredirecionamento do discurso: ser o mesmo discursode reforma agrária, mas também sendo outro, de Re-forma Agrária e Movimentos Populares.

Assim, incorpora, dos movimentos populares al-guns pré-construídos: “o povo unido jamais será ven-cido”; de forma que algumas marcas como “união dopovo” cujo sentido refere-se aos marginalizados e ex-plorados, do operariado, conforme Valentim (1990:45): “defender a CSN [Companhia Siderúrgica naci-onal - Volta Redonda-RJ] é defender a soberanianacional”, a defesa das questões ligadas ao interessedo trabalhador, em oposição à elite e ao capital inter-nacional, diz respeito à “defesa da soberania nacio-nal”.

Segundo Giannotti e Neto (1991: 10), “essa grevemostrou para milhões de operários, funcionários públi-cos, trabalhadores rurais ou de serviços, a urgência deter uma central que unisse suas lutas”. Se, por um lado,a mobilização em torno da “greve” é, para o operaria-do, demonstração de força e organização que apontapara a união das “lutas”, por outro lado, para o MST, amobilização, enquanto fator de força, organização queaponta para a união de “lutas”, está na capacidade derealização de ocupações massivas com o apoio de ou-tros movimentos populares.

Do discurso religioso (Follmann, 1985: 85): “emtudo a gente deve partir sempre de nosso interessede povo pobre” e “participar de todas as ferramentasque vão nos ajudar, associações, partidos e outras quesejam nossas”, assim é possível inferir que o “povopobre” e “todas as ferramentas” dizem respeito àunificação das mobilizações populares daqueles quesão os menos favorecidos socialmente ou deixados àmargem da sociedade enquanto as ferramentas sãoas greves, ocupações, protestos, mobilizações nesta

virada de século quase que exclu-sivamente lideradas pelo MST etc..

Do discurso partidário, confor-me Pedrosa (1980: 60), Partido dosTrabalhadores: “ao anunciar queseu objetivo é organizar politica-mente os trabalhadores urbanos eos trabalhadores rurais, o PT sedeclara aberto à participação detodas as camadas assalariadas dopaís”, o MST incorpora a posiçãode vanguarda: “o objetivo é orga-

nizar politicamente os trabalhadores”, o que outrorafora “objetivo” do Partido dos Trabalhadores e hojenão o é mais. Tal fato foi possível, a posição de van-guarda do MST, em virtude de o Partido dos Traba-lhadores deixar de ocupar um espaço político de lide-rança dos movimentos populares, conforme afirmaCardoso (1999a: 382): “entre o MST e o PT, o pri-meiro está ocupando o lugar do ‘velho’ movimentosindical urbano de onde o saiu o PT”. Assim, o MST,além de incorporar nesse discurso a posição de van-guarda, também acaba por estabelecer uma conexãoprimordial entre a luta pela reforma agrária e o inte-resse dos trabalhadores em geral. Isso é possível cons-tatar de forma clara nos discursos e pronunciamentodo PT e da CUT no uso da unidade “apoiar” que ébem diferente de “assumir”. Em “apoiar” não há com-prometimento ideológico, pode-se conceber que é ape-nas circunstancial, enquanto que “assumir” implicafazer parte de maneira integrante dos movimentospopulares e dos trabalhadores.

Considerando o discurso da ex-tendência internado Partido dos Trabalhadores (Causa Operária, 1988:31), “a ação direta quer dizer que as massas tomamem suas mãos seus problemas e os do país e os resol-vem por sua própria conta, utilizando suas organiza-ções, sua força e seus recursos próprios”, constata-senesse discurso, “ação direta”, “tomam em suas mãosseus problemas e os do país” e “sua força e seus re-cursos próprios” dizem respeito à posição de vanguar-da do MST, pois amplia de forma considerável seucampo discursivo de atuação, uma vez que o problemada reforma agrária está vinculado às questões estrutu-rais mais complexas do que apenas divisão de terra eisto também diz respeito ao conjunto dos trabalhado-res, segundo uma mesma ótica e ação política, uma

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A bandeira de reformaagrária deve ser "uma

luta de todos",considerando que todosos trabalhadores estãosob o mesmo regime degoverno e, portanto, de

exploração social.

vez que as lutas isoladas não resol-vem nem os problemas dos traba-lhadores rurais sem terra nem osproblemas dos movimentos popula-res.

Analisando o discurso do Parti-do da Causa Operária (1999): “só amobilização popular pode acabarcom FHC, o arrocho, o desempre-go e a repressão aos sem-terra”,pode-se afirmar que a questão “sóa mobilização popular” tem sidopara o MST condição sine qua non para as ações domovimento e sua posição de liderança.

A partir das considerações acima, verifica-se queo MST incorpora alguns elementos com os quaisreconfigura o seu discurso, de forma que ReformaAgrária distancia-se e passa a constituir um discursodistinto, o de Reforma Agrária e Movimentos Popula-res. Com o distanciamento, ambos passam a ter re-presentações diferentes, muito embora o discurso deReforma Agrária e Movimentos Populares tenha comopressuposto o anterior. Assim, pode-se considerar quediscurso de Reforma Agrária diz respeito a existênciado MST, enquanto Reforma Agrária e MovimentosPopulares representa a configuração de que os agri-cultores sem terra são uma classe distinta das demaise por isso participam do universo político dos demaismovimentos populares.

O enunciado (14), “reforma agrária: uma luta detodos”, estabelece relações interdiscursivas por alian-ça com os movimentos revolucionários que sugere quesem luta armada não se faz reforma agrária. Por isso,a bandeira de reforma agrária deve ser “uma luta detodos”, considerando que todos os trabalhadores estãosob o mesmo regime de governo e, portanto, de explo-ração social.

Desse forma, na Revolução Russa, conforme Lenin( Apud Gomes,1999: 96): “a ‘chave’ do combate narevolução russa estava na luta contra os latifundiári-os”; na revolução Cubana, de acordo com Sader (1985:33), “a guerra de guerrilhas se apoiaria mais imediata-mente nos camponeses, base social potencialmente maismobilizável para uma luta radical contra o sistema deexploração”.

Pode-se afirmar que a reforma agrária “deseja-da”, bandeira dos que na terra trabalham, em Cuba,

Rússia, México ou China etc., nãofora dada pela deserção da burgue-sia ou dos governos, e sim comoparte de um processo revolucioná-rio em que os movimentos popula-res, operariado e agricultores sem-terra e a população em geral, pe-garam em armas como condiçãoprimordial para a mudança radicalde sistema político. Ainda é possí-vel evidenciar que sem luta arma-da não se faz reforma agrária;

questão que foi condição sine qua non para as trans-formações abruptas quando estavam em pauta a mu-dança de sistema político, capitalismo e a questão daterra.

Em virtude disso, não é difícil evidenciar a rela-ção interdiscursiva por redirecionamento, também,que o MST mantém com os movimentos revolucio-nários quando afirma que “reforma agrária, uma lutade todos”. A relação discursiva e pragmática doMST com os demais movimentos populares faz ecocom análise feita pelo historiador Hobsbawm (1995:347): “entre 1945 e 1950, quase metade da raçahumana se viu vivendo em países que passavam poralgum tipo de reforma agrária - comunista na Euro-pa Oriental e, após 1949, na China”. Ainda, segun-do Hobsbawm, a revolução egípcia de 1952, segui-da pelo Iraque, Síria e Argélia; a revolução bolivia-na de 1952, a mexicana de 1910 e cubana, que to-das há muito defenderiam “o agrarismo”, ou seja,a reforma agrária que somente o MST defende nestavirada de século.

No dizer do autor, “para os modernizadores, a de-fesa da reforma agrária era política (conquistar apoiocamponês para regimes revolucionários ou para os quequeriam adiantar-se à revolução, ou algo parecido),ideológica (‘devolver a terra a quem nela trabalha’)...aos sem-terra ou aos pobres de terra”.

Assim, nesse discurso, Reforma Agrária e Movimen-tos Populares, cujo enunciado de base (14), “reformaagrária, uma luta de todos”, podem ser considerados umtrabalho amplo de paráfrase, intertexto, interdiscursividadeno âmbito do próprio MST e do operariado, com outrosdiscursos e textos na arena do poder, lugar de onde oMST re-elaborou sua posição enunciativa.

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Assim, nesse discurso,Reforma Agrária e

Movimentos Popularespodem ser considerados

um trabalho amplo deparáfrase, intertexto,interdiscursividade noâmbito do próprio MST

e do operariado...

ConsideraçõesOs discursos, uma vez recupe-

rados da memória discursiva, no eixovertical, e inscritos de forma assu-mida pelo sujeito do MST no eixohorizontal, passam a compor em suamaterialidade discursiva um efeitode sentido no cenário das instabili-dades na ordem discurso, assimimplicando em “rituais ideológicos”(Pêcheux, 1990), nos quais todo“discurso marca a possibilidade deuma desestruturação-restruturação (...) todo discursoé índice, potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas e identificação, na medida em que ele cons-titui, ao mesmo tempo, um efeito dessas filiações emtrabalho (...) de deslocamento no seu espaço “(Pêcheux, 1990: 56).

Na virulência da inscrição discursiva do MST na or-dem do discurso, quando o agente do discursivo posiciona-se, impõe o seu discurso e o discurso sendo sempre o

mesmo, já é outro, parafraseado,acrescido de algumas unidades namedida em que perde outras. Assimdivide alguns espaços na medida emque domina e ao mesmo tempo per-de outros. Isso pelo fato de sua exis-tência ser tensa, conflituosa, de “amore ódio”, na arena onde sujeitos e dis-cursos se camuflam, disfarçam, re-conhecem, toleram, assumem, disper-sam, identificam, reencontram, trans-formam etc..

Essa análise desenvolveu algumas consideraçõesrelevantes a respeito dos discursos, seus variados tipos,suas paráfrases, o perfil do MST, sua origem histórica,alguns de seus anseios, razões e motivos de sua consti-tuição político-ideológica em uma “época” de grandesavanços científicos e tecnológicos, que sugere, no sen-so comum, que a humanidade está cada vez mais de-senvolvida e esse desenvolvimento é para todos, pre-missa neoliberal que o discurso do MST constrange.

Referências BibliográficasCARDOSO, Sílvia H. B. Ideologia: um conceito obsoleto? In Gel – Grupo de Estudos Lingüísticos. V. 28, pp. 379-84, 1999.

––––––––. Discurso, ideologia e representação. Três Lagoas, UFMS, 1998. Mimeo.

––––––––. A realidade e os sentidos: de Jeca aos sem-terra. In Abralin, Fortaleza, 2001d.

EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

––––––––. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio . Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.

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Mostra-se o discurso de Riobaldo, personagem-narrador de“Grande sertão: veredas”, como um modo talking de narrar,semelhante ao de Marcel, em “À la recherche du tempsperdu” de Marcel Proust. Como o dele, o discurso é mos-trado como algo que se situa entre o showing e o telling,transgredindo os limites entre o mostrar e o narrar.

Palavras-chave:oralidade, discurso, conversação

Riobaldo is the main character in “Grande sertão: ve-redas” and his speech is a “talking” way of speaking,in the same way as Marcel’s, in “À la recherche du tempsperdu” is. In both cases, the speech is shown as thesomething situated between the showing and the teling,going beyond the limits displaying and narrating.

Keywords:orality, discourse, talking

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A possibilidade de simbiose da fala e da escrita com-prova que essas modalidades se separam por limitesmuito tênues, de forma que é mais adequado dispô-lasem um continuum. O discurso de Riobaldo, persona-gem narrador de Grande sertão: veredas é, exata-mente, uma amostra que comprova tal fato; tem, por-tanto, uma natureza ambivalente, pois participa, de al-gum modo, das duas modalidades. Atribuir-lhe caráteranfíbio significa reconhecer-lhe a exuberância. O dis-curso do ex-jagunço, lembra, assim, o discurso do per-sonagem de Marcel Proust, analisado por Genette(1976), a propósito de estudar a narrativa em À larecherche du temps perdu. Ali se retomam os doismodos diferentes de narrar conceituados por Platão, naRepública, com as seguintes explicitações: no primeiro,o poeta1 fala em seu próprio nome, sem procurar fazercrer que é um outro, que não ele quem fala. É a narra-tiva pura, distante e mediata, que Platão chama dediegese. No segundo, o poeta se esforça por dar a ilu-são de que não é ele quem fala, mas uma personagem,se se tratar de falas pronunciadas. É a narrativa próxi-ma e imediata que procura “imitar” a realidade tal comoo fato se passou e, por isso, é “imitação” ou mimese.Para Genette, na verdade, a oposição apontada resu-

GRANDE SERTÃO:UM MODO "TALKING" DE NARRAR

Ana Maria Souza Lima Fargoni*

* Professora de Língua Portuguesa e Lingüística do Departamento de Letras do Câmpus de Aquidauana da UFMS. Doutora em Letras pelaUnesp Araraquara.1 Tem o sentido de criador do texto, ou seja, aquele que opta por uma ou outra maneira de narrar.

me-se à narrativa de falas, pois Platão omite qualquerreferência a narrativas de acontecimentos ou açõesmudas e, vinculando a narrativa apenas aos discursosdireto e indireto, restringe a oposição entre mimese ediegese. Já Aristóteles, segundo Genette (1976:161), viatal oposição de forma mais neutralizada, considerando anarrativa pura e a mimética como duas variedades demimese. Continuando suas reflexões sobre a narrativa,Genette ainda se reporta a Henry James e seus discípu-los que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em fins doséculo XIX e começo do XX, respectivamente, retoma-ram Aristóteles, a partir de Platão, para teorizar o ro-mance. Esses estudiosos neo-aristotélicos propõem, paramimese e diegese, os termos ingleses, showing (mos-trar) e telling (contar).

Para Genette (1976:161), a narrativa romanesca tra-dicional antes de À la recherche du temps perdu eraconstituída quase sempre pela alternância entre “cena”e “sumário”. Segundo Reis e Lopes (1988:233), cenaé compreendida no domínio da velocidade imprimidaao relato e constitui a tentativa mais aproximada deimitação no discurso, da duração da história. Traduz-se nas reproduções das falas das personagens em dis-curso direto, na seqüência em que ocorreram, fato de

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que resulta uma narrativa isocrônicae dramatizada, que se caracteriza peloapagamento parcial ou total donarrador. Já, por sumário, entendemos autores, (1988:293) que designatoda forma de resumo da história, demodo que o tempo no discurso ficareduzido a um espaço bem menor emrelação ao volume das informaçõesali trazidas. A figura do narrador érelevada, sugerindo-lhe um papel decensor que hierarquiza as informa-ções, atribuindo-lhes diferentes valo-res. Implica uma certa desvalorização da matéria nar-rada, que pode vincular-se tanto à economia da história,como aos vetores semânticos que a regem.

A alternância entre cena e sumário de que fala Genetteacaba por opor conteúdos “dramáticos” e “não-dramáti-cos” que coincidem, respectivamente, com os tempos for-tes da ação – momentos mais intensos – e tempos fra-cos, resumidos em traços longos – momentos menos in-tensos. A inovação de Proust consiste, conforme Genette,em constituir-se quase sempre de cena, do princípio aofim – no sentido temporal – com a abstração do sentidoiterativo de algumas. A ausência da alternância cena /sumário faz de a À la Recherche du temps perdu quaseque uma única e grande cena. O showing, de que sefalou há pouco, é a narrativa pormenorizada que se ca-racteriza pelo predomínio da cena. Trata-se de uma nar-rativa mimética e, portanto, bastante informativa. Comoa narrativa mimética é a que contém o máximo de infor-mação e um mínimo de informador, a presença da entida-de narrativa nela se esfumaça, dando a impressão de quea história se conta a si mesma. Já, no telling, ao contrá-rio, informação e informador apresentam-se de modo in-versamente proporcional. Esses diferentes modos de con-tar, conforme explica Genette (1976:165-6), ajuntam obinômio informação / narrador que projeta dois fatoresinversamente proporcionais, com o seguinte desdobra-mento: de um lado, a questão temporal, vinculada à velo-cidade, pois quanto mais informação a narrativa apresen-te, mais tempo demora para processar-se e, portanto, émais lenta; de outro, a questão da voz, vinculada aonarrador, cujo grau de presença afeta a narrativa pelofato de informar mais quanto menos presente estiver. Taisconceitos, apresentados como regra geral, encontram, noentanto, uma exceção, um desmentido, pois a obra deProust é inteiramente rebelde à “norma” mimética por

consistir, quase exclusivamente, decenas (singulativas ou iterativas) quecompõem uma narrativa, ao mesmotempo rica de informação e comforte presença do narrador, que éfonte mantenedora e organizadorada narrativa, seja analisando, seja co-mentando o fato narrado. Assim, aÀ la Recherche du temps perdu,segundo Genette (1976:165), coloca-se no extremo do showing e dotelling “e mesmo um pouco maislonge, nesse discurso tão liberto, por

vezes, de qualquer preocupação de uma história a contar,que talvez conviesse nomeá-lo na mesma língua, talking.”Não se pode dizer que a história se conta sozinha, comopropõe Booth (1961), apud Genette (1976:162) e, muitomenos que o narrador se apague perante ela. “Não édela (história ) que se trata, mas da sua imagem, do seu“rastro” na memória.”

O mesmo se pode dizer de Grande sertão: vere-das, em que Riobaldo, personagem principal, na longaconversação de que já se falou, “mostra” o seu percur-so de jagunço, conferindo ao relato as minúcias damimese (showing) e, ao mesmo tempo, presente deforma intensa e contínua, enquanto narrador (telling).Nesse sentido, o narrador de Grande sertão é singular,pois com sua fala, rompe o convencional, re-criando li-terariamente a conversação, no modo talking de con-tar. Seu interlocutor, forasteiro ocasional, é o ouvinteinteressado na sua vida de jagunço; ele, enquanto locu-tor, a narra, “rastreando a memória” para decifrá-la. Éisso que o tipifica e faz de Grande sertão uma “grandeconversação” em processo.

Essa intersecção de extremidades que se cruzam,vincula-se, muito provavelmente, àquilo a queMaingueneau (1993:113) denominou de perilíngua portangenciar as duas modalidades: no limite inferior, “ahipolíngua que, ambivalente, aproxima corpo e emo-ção, inocência e caos; no superior, a hiperlíngua que,ao contrário, espelha a perfeição luminosa de uma re-presentação ideal do pensamento.” O escritor, segun-do ele, não pode se fixar em nenhum dos extremos,mas deve indiciar seu texto com o fascínio de ambas.Este pode ser o “segredo” do fascinante talking deRiobaldo que faz de Grande sertão, não um corpusescrito, mas algo como que dotado de voz. Dahipolíngua, traz o caos das desarticulações, hesitações,

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... o narradorde "Grande sertão"é singular pois com

sua fala, rompeo convencional,

re-criandoliterariamente a

conversação, no modo"talking" de contar.

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repetições, etc.; da hiperlíngua, a beleza, a originalida-de, a perfeição. Dessa forma, assim, anfíbia, aproximaas duas modalidades de linguagem, num discursoinstigante, envolvente, inovador...

Riobaldo é, portanto, um narrador-talking e, como opersonagem de Proust, situa-se também no limite do

showing e do telling. Assim, realiza o modo talking decontar, explicitado no seu longo discurso que, prolixo, trans-gride os limites entre mostrar e narrar – com alto grau depresença do narrador e o máximo de informação – e,transcrito, subverte os limites entre o escrever e o falar –com uma escrita que produz um efeito de sentido de fala.

Referências BibliográficasFARGONI, A. M. S. L. A magia da fala magicamente escrita: veredas do Grande sertão. Tese de doutorado. Unesp, 2000.GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. (Figures-III) Lisboa: Vega, 1972.MAINGUENEAU, D. Le context de l’ouvre littéraire: énonciation, écrivain, societé. Paris: Dunod, 1993.PROUST, M. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982.REIS, C. e LOPES, A. C. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. Unicamp, 1997.ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. 18ª. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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CLARICE LISPECTORNAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA,

de Edgar Cézar Nolasco

Clarice Lispector (1920-1977) tem despertado in-teresse/curiosidade desde a sua estréia no mundoficcional em 1943, quando da primeira publicação dePerto do Coração Selvagem, na ocasião ainda umajovem aspirante à escritora. Apesar de estreante, aautora fora apontada pelo crítico Antonio Candido comoum dos grandes talentos daquele período. “A intensi-dade com que sabe escrever e a rara capacidadeda vida interior poderão fazer desta jovem escri-tora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, maisoriginais da nossa literatura, porque esta primeiraexperiência (grifo meu) já é uma nobre realização”(CANDIDO,1970:131). Sábio estudioso. Talvez resi-dam já, nesse momento, nas oportunas e contemporâ-neas (uma vez que as escreveu no mesmo ano de pu-blicação do romance, ou seja, 1943; não se sabendomais de Clarice além daquilo que ela apenas rascu-nhava nas letras brasileiras) palavras de Candido duasverdades claricianas: uma de cunho amplo e, hoje emdia, inquestionável; outra, de campo mais específico,porém não menos verdadeira que, estudada e aceitapelos críticos, somente mais tarde pudemos compro-var. A primeira diz respeito à genialidade e permanên-

* Professor Especialista. Departamento de Comunicação.Câmpus de Dourados, UFMS.

Resenha

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Márcio Antonio de Souza Maciel*

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cia da escritora; a segunda, ao seuprocesso de criação que hora estu-damos.

Desde seu ingresso no universoliterário de então, adjetivos como“hermética”, “escritora subjetiva”,“filosófica”, “difícil” e outros quecirculam pelo mesmo campo semân-tico do impenetrável ser-lhe-iamconferidos à sua revelia, ao queClarice, amiúde, rebatia argumen-tando que “na verdade eu escrevomuito simples”. Adjetivos que du-plamente pecavam, ora pelo reducionismo óbvio queparecia não dar conta da grandeza artística da escrito-ra, ora porque a limitavam; antes, tentavam enquadrá-la em alguma espécie de gênero ou cárcere inventivo.Entretanto, uma vez mais, eram refutados por ela mes-ma: “gêneros não me interessam mais. Interessa-me omistério”(apud.GOTLIB, 1995:79) .

Além de romancista (A maçã no escuro, 1961),contista (Laços de família, 1960), tradutora (O Re-trato de Dorian Gray, de Oscar Wilde) e jornalista(colaborou durante alguns para várias publicações,como a revista Manchete); Clarice manteve, comocronista, por sete anos, uma página semanal no Jornaldo Brasil, no Rio de Janeiro. O resultado de parte des-sas crônicas foi compilado em um livro-póstumo,intitulado A Descoberta do Mundo (1984).Concomitantemente a essa nova função de cronistaque vez por outra rejeitava ou mesmo questionava comoem: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônicacoisa nenhuma. Isto é apenas”; (apud. GOTLIB,1995:373) a escritora seguia na criação e feitura deseus livros, fossem eles romances, contos, livros in-fantis, apontamentos ou até mesmo “fundos de gave-tas”. Não raras vezes, percebemos um diálogo cons-tante entre ambas e múltiplas atividades: a idéia- bási-ca-origem aparece primeiramente em uma crônicapara, mais tarde, a vermos diluída em um trecho deromance ou mesmo em um conto com um outro títuloe outra paragrafação. Ou ainda, como em se tratandode Clarice ser o mais provável, o seu reverso: a idéia-embrião aparece por primeira vez em um conto, sendoaproveitada em parte ou no todo em um romance, parasó mais tarde ser lida como crônica. Não poderíamosrejeitar ainda, e por último, a idéia de duplicidade, desimultaneidade, de mão dupla, de que Clarice não es-creve os seus textos, mas sim que esses se escrevem

por si mesmos, servindo-lhe paraquaisquer propósitos, uma vez queo processo clariciano dá-se no ní-vel da experiência, como muito bemnos observou Antonio Candido, jácitado anteriormente. Parece tudoum texto só, mas não o é. A escri-tora se parafraseia, se plagia, tal-vez até faça sua perfeita cópiaquanto ao conteúdo, porém a for-ma é nova, é outra porque Claricejá é outra e nós, igualmente, somoso Outro - outros.

Assim como a escritora em relevo, também eu, àminha maneira, me copio, me plagio, me parafraseio,guardadas as devidas proporções. Algo dessas apai-xonadas palavras se refere a um estudo, em nível degraduação, intitulado de “O germe literário em ClariceLispector ou o ante-texto” no qual me propunha a co-tejar os livros Felicidade Clandestina(1971) e OndeEstivestes de Noite(1974) com o livro de crônicas, jámencionado, A Descoberta do Mundo (1984) quantoao seu processo de (re) e criação literária, quando ain-da contava um pretenso-quartanista-suposto-possível-estudioso-clariciano. Passados alguns anos, já nãoquartanista, mas ainda –e sempre e mais e tanto- apai-xonadamente clariciano, encontro-me com o e/ou en-contro-me em o admirável Clarice Lispector: nasentrelinhas da escritura. Ed. Annablume (2001), deEdgar Cézar Nolasco. Em o presente trabalho acercada mais notável escritora em língua portuguesa, apre-sentado primeiramente como dissertação de mestrado,encontro o livro que quisera ter escrito tal qual imagi-nei há alguns anos, mas não o fiz. Se por imaturidadeintelectual, se pela diferença do corpus, se pela dis-tância de tempo leitural e/outros inúmeros motivos olivro não saiu àquela época, diferentemente do que ocor-re aqui, isso já não nos importa. O que realmente con-ta, primeiramente, é a grata surpresa e o prazer queme proporcionaram as palavras de Nolasco sobre umtema que, segundo muitos, naquela passagem, era “pou-co estudável” e/ou algo “pouco resultável” no que façocoro com o epílogo do autor em que “só mais recente-mente e de forma muito iniciatória, a crítica tem sevoltado para o projeto de criação literária daautora”(NOLASCO, 2001:261); e, secundariamente,o interesse, a sensibilidade e a sintonia em preocupar-se por um mesmo aspecto definido de uma autora tãoestudada. Pois sim, é, como diria Lacan, o tal do “in-

Não poderíamos rejeitarainda, e por último, a

idéia de duplicidade, desimultaneidade, de mão

dupla, de que Claricenão escreve os seustextos, mas sim que

esses se escrevem porsi mesmos...

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Nessa derradeira(des)composição de

significantes, Nolascotece e destece os

fragmentos do livropresentes tanto nascrônicas, como nos

contos e outrosescritos claricianos...

consciente coletivo” de que somosprodutos.

Na primeira parte do livro o au-tor nos esclarece a diferença entreos vários conceitos de texto para,na seqüência, valendo-se da teoriamais próxima da escrita clariciana,adotar uma vertente –mais moder-na- que vislumbra no texto nem ofim, tampouco o começo; nem o an-tes, tampouco o depois do impres-so, mas o “quase”; o “espaço decriação inacabado eterno”, conso-ante os dizeres de Leyla Perrone-Moisés e Barthes(apud.NOLASCO, 2001: 150).

Mais adiante, na segunda parte (cabendo aqui odevido esclarecimento de que essas divisões diferemum pouco das encontradas no sumário do livro e estão,por assim dizer, de modo simplificado, mais para a se-ara do conteúdo que para a da forma) encontramos otexto, agora o do autor-Nolasco, mais voltado para aproblemática do tempo em que se dá a escrituraclariciana. Segundo o estudioso, o tempo de leitura dotexto de Clarice e ainda fazendo menção ao que foradito na primeira parte do trabalho, “está no momentoem que dura a leitura do leitor”. Esse tempo abstrato,porém virtualmente real, assemelha-se, na linguagemda escritora, ao it: “It é cada instante. It é vivo”. Ain-da para corroborar, “o ato de leitura se estrutura atra-vés de um processo que se volta sobre quem o prati-ca” (NOLASCO, 2001:91).

Na terceira e última parte temática do estudo, EdgarCézar Nolasco nos brinda com uma espécie de “guia-para-ler-Clarice Lispector ou um manual- pós-moder-no-para-leituras-afins”, no qual, pela feliz denominaçãode “Desconstrução escritural”, desentranha o processo(re) criativo de Clarice em as feituras das obras UmaAprendizagem ou livro dos prazeres (1969) e ÁguaViva (1973) comparando-as com e/ou encontrando- asnas crônicas de então que escrevia para o jornal, com-

piladas, posteriormente, em A Des-coberta do Mundo (1984). Nessemomento de (re)descoberta quantoao modo particular de escrever, oautor pontua duas singulares distin-ções na escrita de Clarice e, por con-seguinte, entre a feitura dos citadoslivros: a superposição e a justaposi-ção e nos esclarece tais matizes queparecem sem importância. De acor-do com o autor o processo porsuperposição(um sobre/sob o ou-tro), um pouco mais trabalhado, ten-

ta diluir o texto primário de tal modo que esse se encon-tre por completo na segunda escritura, que fique um“chapado” ao outro, segundo suas próprias palavras. Esegue discorrendo, comentando, analisando várias pas-sagens exemplares de tal fenômeno presentes em UmaAprendizagem e nas crônicas. Já o processo porjustaposição(um ao lado do outro), por seu turno, sedistingue sobremaneira da primeira ocorrência, uma vezque se dá às claras, sem escamoteamento, sem muitocuidado; antes, com total escândalo de descuido propo-sital, querido e regozijado. É o que percebemos na leitu-ra-escritura, seja tanto tomando o autor-escritor quantoo receptor-leitor ou vice-versa: autor-leitor e receptor-escritor, de Água Viva que, segundo muitos estudiosos,talvez seja sua maior façanha ante-anti-literária. Nessaderradeira (des)composição de significantes, Nolascotece e destece os fragmentos do livro presentes tantonas crônicas, como nos contos e outros escritosclaricianos, tal qual – para citar o próprio estudioso – aclássica Penélope à espera de um Outro. Quiçá Clarice?Isso é matéria para uma outra pesquisa. Concluo para-fraseando o próprio autor, onde a aprendizagem não estáem descobrir o novo; senão antes, em descobrir de novoo novo ou o que se soube que era novo ou ainda o quese pensou que se soubesse. O axioma é eterno:descubramo-nos de novo em O Novo, em ClariceLispector. Ita est.

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BibliografiaGOTLIB, Nádia Batella. Clarice - Uma vida que se conta. São Paulo. Ed. Ática. 3.ed., 1995.NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo. Annablume, 2001.