Os Gregos E O Irracional

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OS GREGOS  E O IRRACIONAL I e T r . Dodds

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OS GREGOS E O IRRACIONAL

I e Tr . Dodds

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Oó gregcó e o irracional  foi pu-blicado pela Califórnia Uníversity Press, em 1950 e, a partir daí, setornou um texto heienista clãssi*co de grande importância não sopara. os estudiosos da Grécia

 Antiga, mas também para todoaquele que se interessa pelosmistérios da alma (psique) dohumano.

Os gregos eram realmentetão cegos assim para a importân-cia de fatores não racionais naexperiência e no comportamento

humanos, como admitem nor-malmente tanto seus defensoresquanto seus críticos? Eis aquestão a partir da qual estelivro foi desenvolvido. Aquilo aque se propõe é lançar luz sobreo problema, através de um reexa

me de certos aspectos relevantesda experiência religiosa gregaapresentando os fatos em termosinteligíveis ao não especialista.

No primeiro capítulo discutea interpretação homérica doselementos irracionais presentes

no comportamento humano,entendidos como "Intervençãopsíquica"’ uma interferência na

 vida humana por meio de agentesnão humanos que introduzemalgo no homem e, deste modo,influenciam seu pensamento econduta. Mo segundo, trata dealgumas das novas formasassumidas por essas mesmasidéias homéricas ao longo da eraarcaica, utilizando as expressões“cultura da vergonha" e “culturada culpa” como rótulos paradescrever as duas atitudes em

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OS GREGOSE O IRRACIONALE . R . D o d d s

T r a d u ç ã o   de  

P  a u l o D o m e n e c h O n e t o

escuta

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© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa

Título original: The Greeks and the Irrational

Uni ver si ty of Califó rnia Press

1- edição: junho de 2002

E d i t o r e s  

Manoel Tosta Berlinck 

Maria Cristina Rios M agalhães

C ap a

Daniel Trench e Renato Almeida Prado, a partir de Torse d ’hom me , 440 a.C.

(do acervo do Museu do Louvre)

P r o d u ç ã o E d i t o r i a l  

Araide Sanches

Catalogação na Fonte do Depto. Nacional do Livro

D642g Dodds, E.R.Os gregos e o irracional / E.R. Dodds; tradução de Paulo

Domenech O neto —São Paulo : Escuta, 2002.

336 p. ; 14x21 cm.

ISBN 85-7137-199-7

1. Psicanálise. 2. Gregos. I. Oneto, Paulo Domenech

CDD-150.195

Editora Escuta Ltda.

Rua Dr. Homem de Mello, 35105007-001 São Paulo, SP

Telefax: (11) 3865-8950/ 3675-1190/ 3672-8345e-mail: [email protected] 

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S umá r i o

Prefácio.................................................................................................... 5

I A apologia de Agamenon .............................................................  9

II Da cultura da vergonha à cultura da cu lp a ....................................35

III As bênçãos da lo ucura.....................................................................71

IV Padrão de sonhos e padrão de cu ltu ra ....................................... 107

V Os xamãs gregos e a origem do puritanism o..............................139

VI Racionalismo e reação na Idade Cláss ica............................... 181

VII Platão, a alma irracional e a “herança conglomerada” ........209

VIII O medo da liberd ad e ................................................................... 237

Apêndice I: Menadismo....................................................................... 271

Apêndice II: Teurg ia..................................................................... . 285

índice remissivo.................................................................................3 15

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 P  r e f á c io

Y ™1ste livro é baseado em uma série de conferências que tive ÃJ  j  a honra de proferir em Berkeley, no outono de 1949. Elas

se encontram aqui reproduzidas substancialmente como foram com postas, embora de uma forma ligeiramente mais satisfatória do queaquela na qual foram apresentadas. Meu público original incluía muitos antropólogos e diversos estudiosos que não possuíam

conhecimento especializado a respeito da antiga Grécia, e minha es perança é de que, no formato atual, tais lições possam interessar aum grupo semelhante de leitores. Para tanto, todas as citações gregas foram virtualmente traduzidas, e procurei operar umatransliteração dos mais importantes termos gregos sem equivalentena língua inglesa. Abstive-me ainda, tanto quanto possível, de sobrecarregar o texto com argumentos controversos sobre detalhes, o que

 poderia significar pouco para leitores não familiarizados com os pontos de controvérsia. Também procurei não complicar o tema principalcom uma investigação em torno de questões paralelas, o que pareceser uma tentação para o pesquisador profissional. Uma seleção desses assuntos pode ser encontrada nas notas de pé de página, nas quaisindico, de maneira breve, os fundamentos das idéias que tento pro

 por - sempre que possível através de uma referência a fontes antigas

ou discussões modernas e, quando necessário, por meio de argumentação detalhada.

Ao leitor sem formação clássica, cabe-me advertir para que nãotrate o livro como uma história da religião grega, ou mesmo comouma história de suas idéias e sentimentos religiosos. Caso contrárioele estará cometendo um grave equívoco. A obra é um estudo dassucessivas interpretações que as mentes gregas deram a um tipo par

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6 OS GREGOS E O IRRACIONAL

ticular de experiência humana - uma experiência pela qual o racionalismo do século XIX se interessou pouco, mas cujo significadocultural é em nossos dias amplamente reconhecido. Os fatos aqui tra

zidos à luz ilustram um importante, e de certo modo desconhecido,aspecto do mundo mental da Grécia antiga. Mas um aspecto não deveser confundido com o todo.

Aos meus colegas de profissão eu talvez deva alguma satisfação pelo uso que fiz, em vários momentos, de teorias e trabalhos de

 psicologia e antropologia. Em um mundo de especialistas, sei quetais empréstimos vindos de outras disciplinas são geralmente recebidos com apreensão e desagrado. Sei que os entendidos no assunto

me lembrarão, em primeiro lugar, que “os gregos não eram selvagens”; e em segundo que neste, até certo ponto, novo campo deestudos, as verdades aceitas hoje podem se tornar erros a serem descartados amanhã. Ambas as afirmações são corretas. Porém, emresposta à primeira delas, basta talvez citar a opinião de Lévy-Bruhlde que “em todo espirito humano, qualquer que seja seu desenvolvimento intelectual, subsiste um fundo inextirpável de mentalidade

 primitiva”. Ou ainda, no caso de antropólogos sem formação clássica serem considerados suspeitos, resta a opinião do professor Nilssonde que o termo “mentalidade primitiva é uma fiel descrição do com

 portamento da maior parte da população de hoje em dia, exceto ematividades técnicas e conscientemente intelectuais.” Por que entãodeveríamos atribuir uma espécie de imunidade aos gregos antigos comrelação a tais modos “primitivos” de pensamento?

Quanto ao segundo ponto, cabe dizer que muitas das teorias às

quais me refiro são assumidamente provisórias e incertas. Mas se estamos tentando atingir alguma compreensão das mentes gregas - semnos contentarmos em descrever seu comportamento aparente ou emtraçar uma lista de suas “crenças” - devemos utilizar toda a luz dis

 ponível. E uma luz incerta é melhor do que nenhuma. O animismode Tylor, o “mágico-vegetativo” de Mannhardt, os “espíritos anuais”de Frazer, os “mana” de Codrington, todos serviram em seus dias parailuminar pontos obscuros de teoria. É certo que eles também estimu

laram muitas considerações apressadas. Mas podemos confiar notempo e nos críticos para lidar com tais considerações - a luz permanece. E se vejo aqui uma boa razão para ser cuidadoso ao aplicar aos gregos generalizações baseadas em fatos não gregos, nada vejo

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P r e f á c i o 7

que me leve a isolar o estudo da Grécia do resto. Bem menos passível de justificação é o fato de que alguns estudiosos clássicoscontinuam a trabalhar com conceitos antropológicos obsoletos, ig

norando as direções novas que estes estudos têm tomado nos últimostrinta anos - como, por exemplo, a aliança recente e promissora quese estabeleceu entre antropologia e psicologia social. Se a verdadeestá além de nosso alcance, devemos ainda preferir os erros de amanhã aos erros de ontem. Porque o erro nas ciências é apenas um outronome para a aproximação da verdade.

Resta, enfim, expressar minha gratidão àqueles que ajudaramna confecção deste livro: em primeiro lugar à University of Califór-

nia por ter me levado a escrevê-lo; a Ludwig Edelstein, W. C. Guthrie,I. M. Linforth e A. D. Nock que leram partes ou a íntegra do textodatilografado, dando-me valiosas sugestões; e finalmente a HaroldA. Small, W. H. Alexander e outros na University of Califórnia Press que se deram tanto trabalho na preparação do texto para impressão.Devo também agradecer ao professor Nock e ao Council of the 

 Roman Society pela permissão de reimprimir, sob a forma de apên

dices, dois artigos publicados respectivamente na  H arvard  Theological Review e no  Journal o f Roman Studies, além do Council  of the Hellenic Society pela permissão de reproduzir algumas páginas de um arti go publi cado no  Journal o f Hellenic Studies.

E. R. Dodds

Oxford, Agosto de 1950

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 A  a p o l o g ia   d e  A g a m e n o n  

Os refluxos do sentimento, as m ais obscuras e encobertas cam adas  

do caráter — eis os únicos lugares do mundo em que podemos  

cap tar o fa to real no seu processo de constituição.

William James

Custava eu, há alguns anos, no Museu Britânico, observando

 JLLf  as esculturas do Partenon, quando um jovem se aproximoude mim e disse com ar preocupado: “Sei que é algo horrível de confessar, mas estas coisas gregas não me comovem nem um pouco.”Retruquei que aquilo era mesmo muito interessante - e se afinal decontas ele poderia explicar as razões de sua indiferença. Ele refletiu

 por um ou dois minutos e respondeu: “Bem, não sei se o senhor meentende, mas tudo é tão extremamente racional...”

Creio que o entendia. O que o jovem rapaz estava dizendo eraapenas algo que já havia sido dito antes, de modo mais articulado,

 por Roger Fry‘e outros. Para uma geração cuja sensibilidade haviasido treinada nas artes africana e asteca, e através de obras de homens como M odigliani e Henry Moore, a arte dos gregos - e acultura grega em geral - é mesmo propícia a se mostrar destituídade certa consciência do mistério, e de uma capacidade para pene

trar em níveis mais profundos e inconscientes da experiência humana.O fragmento de conversação acima acabou se fixando em minha mente e me pôs a refletir. Os gregos eram realmente tão cegosassim para a importância de fatores não* racionais na*experiência eno comportamento humanos, como admitem normalmente tanto seusdefensores quanto seus críticos? Eis a questão a partir da qual este

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10 O S  GREGOS E O IRRACIONAL

livro foi desenvolvido. Respondê-la por completo envolveria, evidentemente, um levantamento de todo o empreendimento cultural daantiga Grécia. Mas aquilo a que me proponho é bem mais modesto:

tentarei simplesmente lançar luz sobre o problema, através de umreexame de certos aspectos relevantes da experiência religiosa gre- ga. Espero que o resultado possa ser de algum interesse, não apenas para os estudiosos da Grécia, como também para antropólogos e psicólogos sociais, mas, na verdade, para qualquer pessoa preocupadaem compreender as evoluções do comportamento humano. Tentarei

 portanto, na medida do possível, apresentar os fatos em termos inteligíveis ao não especialista.

Começarei por uma consideração a respeito de um aspecto particular da religião de Homero. Para os estudiosos clássicos, os

 poem as homéricos parecerão um mau lugar para procurar algum tipode experiência religiosa. “A verdade é”, diz por exemplo o professor Mazon, em um livro recente, “que nunca houve um poema menosreligioso do que a  Ilícida."2 Isto pode ser visto como um exagero;mas reflete uma opinião que parece amplamente aceita. O professor Murray pensa, por sua vez. que a chamada religião homériça “não éabsolutamente uma religião”; já que de seu ponto de vista “a verda-deira adoração religiosa grega antes do século IV a.C. quase nuncaesteve ligada àquelas luminosas formas olímpicas .” 3Do mesmomodo, o professor doutor Bowra salienta que “este completo sistema antropomórfico obviamente não possui nenhuma relação comreligião ou moralidade. Semelhantes deuses são uma encantadora ealegre invenção de poetas.” 4

Tudo isso está claro - se a expressão “verdadeira religião” significar esse tipo de coisa que os europeus e americanos esclarecidosde hoje reconhecem como sendo religião. Mas se nós restringirmoso significado da palavra de tal maneira, não corremos o risco de su bestimar, ou mesmo de negligencia r to talm ente, certos tipos deexperiência que nós não mais interpretamos em sentido religioso masquet não.obstante, podem ter estado carregadas de pesada significação religiosa em seu tempo? Meu propósito com este capítulo não é

entrar em querela com os distintos estudiosos citados por mim, mas —dlíim ar a atenção para um tipo determ inado de experiência na obra

de Homero - a qual é  prima facie religiosa - examinando, em seguida, a psicologia por detrás dela.

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A APOLOGIA DE AGAMEN ON

Tomemos, como ponto de partida, a experiência da tentação divina ou louca paixão (ate) que levou Agamenon a compensar a simesmo pela perda de sua concubina, através do roubo da concubina de Aquiles. “Não fui eu”, declarava ele mais adiante, “a causade um tal ato, mas sim Zeus e o quinhão que me cabe, e a Eríniaquecaminha na escuridão: foram eles que em assembléia colocaram umaselvagem ate em meu entendimento, naquele dia em que eu arbitrariamente tomei de Aquiles a sua cativa. Ora, o que eu poderia fazer?A divindade terá sempre seus artifícios .” 5

Por influência de leitores modernos impacientes, essas palavrasde Agamenon foram às vezes desconsideradas, tomadas como uma

mera desculpa esfarrapada ou como uma fuga de responsabilidade.Mas não, no meu modo de ver, para aqueles que lêem a passagemcom cuidado. As palavras em questão não são certamente uma fugade responsabilidade no sentido jurídico, pois ao final de sua falaAgamenon oferece compensação exatamente nessas bases: “Mas umavez que fui cegado pela ate e que Zeus levou para longe meu discernimento, estou disposto a fazer minha paz e conceder abundantecompensação .” 6 Tivesse ele agido por vontade própria, não seria

nada fácil admitir o erro; mas tal como a situação se apresenta, ele pagará por seus atos. Juridicam ente sua posição seria a mesma emambos os casos, pois a justiça grega dos primórdios não se interessava em nada pelas intenções - era o ato que importava. Tampoucoo herói está fabricando de maneira desonesta um álibi moral, postoque a própria vítima de sua ação adota a mesma visão que ele: “Zeus pai, verdadeiramente grandes foram as atai que Vós impusestes aoshomens. Se não fosse assim, o filho de Atreu nunca teria persistido

em despertar o thumos [sopro vital, alma] em meu peito, nem obstinadamente teria ele tomado a jovem contra a minha vontade .” 7

O leitor poderá pensar que Aquiles está aqui aceitando polidamente uma ficção a fim de com isso salvar a imagem do alto rei.Mas não se trata disso. Pois já no livro I, quando Aquiles explica asituação a Tétis, ele fala do comportamento de Agamenon como desua a te f   e no livro VI ele exclama: “Deixe o filho de Atreu seguir rumo à sua sorte sem me perturbar, pois Zeus conselheiro o tirou deseu discernimento!” 9 Trata-se da visão de Aquiles tanto quanto a deAgamenon; e nas palavras célebres que introduzem a história da  Ira- “O plano de Zeus realizado” 10 - temos a forte impressão de queessa é também a visão do poeta.

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Sc o incidente relatado fosse o único interpretado de modo tãoPeculiar pelos personagens de Homero, nós poderíamos hesitar quan-

t(>aos molivos do poeta - poderíamos, por exemplo, supor que eletsejasse impedir que a simpatia dos ouvintes do poema por Aga-

rt1cnon desaparecesse inteiramente, ou que ele estivesse tentando jUnsmitir alguma significação profunda diante da já indigna quere-

entre os dois líderes, como se ela fosse um passo para a realização(>plano divino. Mas tais explicações não se aplicam a outras pas-

Sítgens em que “os deuses”, “algum deus”, ou o próprio Zeus sãoapreseritados como tendo momentaneamente “tomado”, “destruído’enfeitiçado a capacidade de discernim ento do ser humano,

xualquer uma dessas situações poderia, na verdade, ser aplicada aoC£tso de Helena, que acaba uma de suas falas mais comoventes e sin-C|5ras com a afirmação de que Zeus pôs sobre ela e Alexandros umaPredestinação má, “de tal maneira que daqui em diante podemos ser 

tema de canção para os homens do futuro.”" Quando, porém, so-|^os informados de que Zeus “enfeitiçou a mente dos aqueus” de jd foima que eles lutaram mal, nenhuma consideração a propósito

 pessoas está em questão, menos ainda na afirmação geral de que° s deuses podem tornar o inais sensível dos homens em insensível

®trazer o homem de mente fraca de volta ao bom senso .” 12E o que

>zei, por exemplo, de Glauco, cujo discernimento foi retirado por tus de tal maneira que ele fez o que os gregos quase nunca fazemaceitou uma pechincha ruim, arrematando uma armadura de ouro

Por bronze?1’Ou ainda, o que dizer de Automedon, cuja loucura deentai representar os papéis de cocheiro e de lançador levaram um

 j^fnigo a perguntar “qual dos deuses havia introduzido em seu peito

s eu coração) plano tão pouco proveitoso e lhe tomado o excelenter>tendimento?”l4Está claro que esses dois casos não têm nenhumaC(í>nexão com qualquer propósito divino mais profundo; mas eles nem^e quei podem ser encarados, como uma tentativa de reter a simpatia

Ç>s ouvintes do poema, já que neles não há nenhum a implicação^ora l .

A esta altura entretanto, é natural que o leitor possa se pergun-

r se nós estamos lidando com algo mais do que uma simples façon e parle%O poeta pretende mesmo algo mais do que mostrar que

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A APOLOGIA DE AGAMEN ON

foram artigos de primeira necessidade dos antigos poetas cnlinMram-se facilmente a um tipo de degeneração semiológica que ac aba por criar uma certa façon de parler. E podemos observar que nem o

episódio de Glauco nem a fútil aristeia [heroísmo, valentia] de Alitomedon são partes integrantes do centro da trama, mesmoconsiderando uma  Ilíada “expandida”, ou seja, tais episódios podemmuito bem ser adições de última hora.15 Nossa meta, entretanto, écompreender a experiência original que jaz na raiz dessas fórmulasestereotipadas - pois mesmo uma simples façon de parler  deve ter uma origem. Para tanto, pode ser útil aproximarmos um pouco maiso olhar da natureza da ate e de seus poderes, conforme atribuídos

 por Agamenon; e desse modo estender a visão a outros tipos de afii-mação que os poetas épicos fazem sobre o comportamento humano.

Há um certo número de passagens de Homero em que a açãosem sabedoria e justificação é atribuída à ate, ou descrita pelo ver

 bo cognato aasasthai, sem referência explícita a qualquer intervenção divina. Mas em Homero16a ate não é um agente pessoal - asduas passagens que a designam em termos pessoais são claramente

 peças de alegoria. Nem sequer, de qualquer modo que seja, a palavra pode significar, no texto da  Ilíada, um desastre objetivo, 17 comoé hábito nas tragédias. Sempre, ou quase sempre, ate'*é um estadomental —bloqueio temporário ou contusão em nosso estado normalde consciência. Trata-se, de lato, de uma situação de insanidade parcial e temporária; e, como toda insanidade, ela é atribuída não a causas fisiológicas ou psicológicas, mas a uma intervenção exteina e“demoníaca”. Já na Odisséia,'9 é bem verdade, o excessivo consu

mo de vinho é apontado como causa da ate. Fica todavia implícita aidéia dc que ela não pode ser gerada “naturalmente , mas que, aocontrário, há algo de sobrenatural ou de demoníaco no vinho. Excetuando neste caso, os agentes geradores da ate, que quando surgem especificados, sempre se assemelham a seres sobrenaturais.0

Podemos assim, classificar todas as instâncias não alcoólicas da ate em Homero sob um mesmo título, que proponho chamar interven

ção psíquica”.Se procedermos a uma revisão dessas instâncias, observaremos

quc a ate não pode, em hipótese alguma, ser reduzida obrigatoriamente a um sinônimo de perversidade, nem é mesmo o resultado deum ato perverso. A asserção de Lidei 1e Scott de que a ate é “envia

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14 O s GREGOS E O IRRACIONAL

da sobretudo como uma punição por atos irrefletidos e culpados” éum tanto quanto inverídica no caso de Homero. Assim, por exem

 plo, a ate que surpreende Pátroclo depois de atingido por Apoio21(aqui identificada a uma espécie de confusão e embriaguez) poderia ser reivindicada como uma dessas instâncias, pois afirma-se defato que o personagem tinha conseguido aniquilar os troianos irnepo a c a v .22 Mas pouco antes, na mesma cena, o ato intempestivo é atri

 buído à vontade de Zeus e caracterizado pelo verbo a a a 9 i][debilitar ].23 Em outro momento, a ate de alguém como Agástrofo ,24

que se distancia para longe demais de sua carroça e acaba sendo assassinado, não é uma “punição” por atos irrefletidos, pois é a própria

irreflexão que é ate. Ou então ela é o resultado da ate, mas sem envolver nenhuma culpa no sentido moral - trata-se apenas de uminexplicável erro, como a negociação feita por Glauco. Da mesmaforma, Ulisses não foi culpado ou desastrado ao adormecer em momento inoportuno, dando aos seus companheiros a chance de abater os bois sagrados. Tudo não passou daquilo que denominamos acidente. Mas para Homero, e para o pensamento dos primórdios emgeral,25 não existe acidente - Ulisses sabe que seu cochilo foi envia

do pelos deuses etç ccxr|V, “para enganá-lo” .26 Tais passagens dão aentender que a ate não possuía originalmente nenhuma conexão coma idéia de culpa. No sentido de punição, a noção parece ser ou umdesenvolvimento tardio (jônio) ou uma importação de fora da cultura grega. Em Homero, o único lugar onde isto aparece de maneiraexplícita é em uma passagem da  Ilíada21 em que se sugere que a idéia

 pode ser continental, derivada, juntamente com a história de Meléa-

gro, de um épico composto na região da mãe do poeta.Mais algumas palavras sobre o que age pela ate. Agamenonmenciona não apenas um, mas três de seus responsáveis: Zeus, amoira (destino) e a Erínia que caminha na escuridão (ou de acordocom uma outra leitura, possivelmente anterior: “a Erínia que bebesangue”). Destes três, Zeus é o agente mitológico que o poeta concebe no caso como o primeiro motor - “O plano de Zeus realizado” .E talvez bastante significativo o fato de que, a não ser que atribua

mos a ate dc Pátroclo a Apoio, Zeus seja a única das figurasolímpicas à qual se credita a ate ao longo da  Ilíada - ela é alegori-camente descrita como sua irmã mais velha .28 E no que concerne à

 Moira, creio que ela é mencionada porque as pessoas, diante de al

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A APOLOGIA DE AGAMENON 15

gum desastre inexplicável, o tomavam como parte de um “lole" oude um “quinhão” que lhes cabia, sem buscar um significado mais profundo do que o de não poder compreender o que ocorria. Porém,

uma vez que o fato aconteceu, ele evidentemente “tinha que ser”.Muitas pessoas ainda falam dessa maneira, sobretudo em se tratando da morte, para a qual a palavra grega moderna fiipoc se tornousinônimo, como o popoç no grego clássico. Quanto a mim, estoucerto de que é errado escrever Moira com “M” maiúsculo, como sesignificasse alguma deusa que ditaria o destino a Zeus, ou um “Destino Cósmico” como no termo helenístico  Heimarmene. Enquantodeusas, as  Moirai aparecem sempre no plural, tanto em culto quanto na literatura, e com uma duvidosa exceção29elas não comparecemna  Ilíada. O máximo que podemos dizer é que tratando a “porção”que lhe cabc como um agente - por considerá-la como responsável pelo que acontece - Agamenon está dando o primeiro passo na direção de sua personificação.10 E ainda aqui, ao responsabilizar a suamoira pelo que ocorre, Agamenon não se mostra mais sistematicamente determinista do que os gregos modernos que utilizam uma

linguagem semelhante. Perguntar se as pessoas são deterministas oudefendem a liberdade dentro da obra de Homero é, aliás, um fantástico anacronismo - a questão jamais lhe ocorreria, e se lhe fosseapresentada seria muito difícil fazê-lo entender do que se trata .31 Oque se reconhece é a distinção entre ações normais e ações executadas em estado de ate. Com relação às ações deste último tipo,

 pode-se indiferentemente vinculá-las à moira ou à vontade de umdeus, de acordo com o modo pelo qual as olhamos - de um pontode vista subjetivo ou objetivo. Da mesma forma, Pátroclo atribui suamorte diretamente a um agente próximo, Euforbo; e indiretamentea um agente mitológico, Apoio (mas de um ponto de vista subjetivoa uma moira malévola). Como dizem os psicólogos, trata-se de algo“sobredeterminado” .32

Partindo dessa mesma analogia, a Erínia deve ser o agente imediato no caso de Agamenon. Que ela deva figurar em tal contexto

 pode muito bem surpreender aqueles que vêem as Erínias essencialmente como um espírito de vingança, e mais ainda aqueles quecrêem, como Rohde, 33 que elas eram originalmente o próprio mortoem ato de vingança. Mas tal passagem não pode ser tomada isoladamente. Lemos então, na Odisséia,34que existe uma “ate pesada que

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a implacável deusa Erínia pôs no entendimento de Melampo.” Em parte alguma trata-se de vingança ou punição. A explicação se encontra, talvez, no fato de a Erínia ser o agente pessoal que assegura

a realização da moira. Eis por que elas interrompem bruscamente afala dos cavalos de Aquiles, pois, “segundo a moira”, cavalos nãofalam.35 Eis também a razão pela qual elas seriam, de acordo comHeráclito ,36 capazes até mesmo de punir o sol, caso ele “transgredisse as normas” por um exagero na execução de sua tarefa. Creioque provavelmente a função moral das Erínias como ministras davingança derive de sua tarefa inicial, que consistia em reforçar umdestino (moira) - o que era em princípio moralmente neutro, ou me

lhor ainda, que continha tanto a noção de “dever moral” quanto ade “dever ligado à probabilidade”, sem estabelecer entre eles nenhuma distinção ciara (como é, aliás, típico do pensamento antigo).

Assim, em Homero encontramos as Erínias reforçando reivindicações familiares ou sociais, como se elas fossem partes de umamoira pessoal37-u m dos pais,38 o irmão mais velho ,39 ou mesmo ummendigo40podem invocar “sua” Erínia a fim de proteger o que lhe édevido. Elas também são convocadas para prestar juramento - o ju

ramento em si sendo capaz de designar um destino (moira). Aconexão entre Erínia e moira é também atestada por-Esquilo ,41 em bora aí as moirai já tenham se tornado quase pessoais. As Eríniassão ainda, para o mesmo Esquilo, dispensadoras de ate42- apesar de tanto umas quanto a outra terem já sido “moralizadas”. É comose o complexo moiraEvíriidate tivesse profundas raízes e fosse aindaanterior à vinculação da ate a uma intervenção de Zeus .43 Dentro de

toda esta conexão, também vale a pena lembrar que Erínia e aisa (sinônimo de moira) remetem à talvez mais antiga forma de discurso helênico de que temos conhecimento - o dialeto arcado-cipriota.44

Deixemos por um momento de lado, tanto a ate quanto os termos a ela associados, e consideremos brevemente outro tipo de'intervenção psíquica”, não menos freqüente na obra de Homero; a

saber, a que consiste na comunicação de poder de deus ao homem. Na  Ilíada o caso típico ocorre na transmissão de um menos [ardor,

 paixão]45durante a batalha, como quando Atena põe uma tripla porção deste elemento no coração de seu protegido Diomedes, ouquando Apoio o introduz no thumos de Glauco ferido.46 Não se trata de força física; nem mesmo de um órgão (uma faculdade)

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A APOLOGIA DE AGAMENON 7

 permanente de nossa vida mental como o thumos ou o nons |inteligência, entendimento, consciência]. É muito antes um estadomental,47 como a ate. Quando um homem experimenta menos cm

seu peito, ou sente “inflar pungentemente as narinas” ,48ele esta conscio de um misterioso acesso de energia; a vida nele se torna forte, cele pleno de confiança e impetuosidade. A conexão do menos coma esfera do querer (volição) aparece claramente em palavras correlatas como |ievoivav (“estar ansioso”) e ôtiCTiueveç (“desejar doentiamente algo”). É bastante significativo que, freqüentemente,embora nem sempre, o envio de menos surja em resposta a uma prece. Mas trata-se, enfim, de algo muito mais espontâneo e instintivo

do que o que chamamos de “resolução”. Animais podem recebê-lo,49e o termo é empregado, por analogia, para descrever a devastadoraenergia do fogo.511 No homem, ela é a energia vital, a “vivacidade”,que nem sempre vem ao nosso chamado, mas que oscila misteriosa

mente, e caprichosamente (como costumamos dizer) em todos nós.Mas para Homero, não se trata de um capricho, e sim, do ato de um

deus que “aumenta e diminui conforme sua vontade a aretê de um

homem (sua potência de luta)” .51 Na realidade, às vezes o menos podeser despertado por exortação verbal; outras vezes seu desencadear só pode ser explicado pela afirmação de que um deus “soprou dentro do herói”, ou dc que “introduziu algo em seu peito”. Ou ainda,como lemos em uma passagem, que ele foi transmitido por um bastão mágico.52

Creio, enfim, que não devemos descartar essas afirmações estranhas como simples “invenção poética” ou “maquinação divina”. Não há dúvida de que certas instâncias particulares são freqüentemente criadas pelo poeta por uma questão de conveniência em faceda trama elaborada. Certamente também, a intervenção psíquica encontra-se, às vezes, ligada a uma intervenção física ou a uma cena

do Olimpo. Mas podemos estar certos de que a idéia que está subjacente a tudo isso não é uma pura invenção poética, e que ela é mesmoanterior à concepção de deuses antropomórficos, tomando parte nas

 batalhas de modo físico e visível. A possessão temporária de um elevado menos é, como no caso da ate, um estado anormal que exige

 portanto uma explicação também para além do normal. Os homensde Homero podem então reconhecer o momento em que tudo se inicia. marcado por uma certa sensação peculiar nos membros. “Meus

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O S GREGOS E O IRRACIONAL

 pés abaixo e minhas mãos acima sentem um ímpeto (|i ai|K 0(0<jt)?’- afirma um dos recebedores desse poder. Isto porque, como diz o poeta, os deuses o tornaram ágil (e^acppa).53 Esta sensação, que aqui

é compartilhada por um segundo personagem, confirma a origem divina do menos.54 Trata-se de uma experiência fora do normal. E oshomens em condições divinas de menos muito elevado se comportam até certo ponto de maneira anormal. Eles podem realizar os feitosmais difíceis com facilidade (pea ),55 o que é um marca tradicionaldo poder divino .56 Eles podem até mesmo, como Diomedes, lutar impunemente contra os deuses57- uma ação que para homens emestado normal é extremamente perigosa.58 Na verdade, eles estão,

naquele exato instante, sendo um pouco mais, ou talvez um poucomenos, humanos. Assim, os homens que receberam o menos são várias vezes comparados a leões vorazes,59 mas a mais impressionantedescrição de um tal estado encontra-se no livro XV da  Ilíada, quando Heitor fica furioso (jiaiveTai) e espuma pela boca, os olhos

 brilhando .60 Daí para a idéia de uma possessão real (Saipovav) éapenas um passo, mas tratâ-"se~de um passo que Homero não chegaa dar. Ele realmente diz que, depois que Heitor vestiu a armadurade Aquiles, “Ares penetrou nele e seus membros foram enchidos deforça e de coragem ” ;61 mas Ares aqui não é provavelmente mais doque um sinônimo para espírito marcial, e a comunicação de poder é

 produzida finalmente pela vontade de Zeus, auxiliada talvez pelo fatode a armadura ser em si mesma divina. É claro que os deuses, parafins dc disfarce, assumem formas e aparências de seres humanos individuais, mas a questão aí é outra. Os deuses podem aparecer, por 

vezes, sob formas humanas e os homens podem compartilhar, por vezes, o atributo divino do poder, mas nem por isso há em Homeroqualquer confusão quanto à clara linha que separa a humanidade dadivindade.

 Na Odisséia, onde as questões de luta são menos importantes,a comunicação de poder assume outras formas. O poeta da“Telemaquia” imita a Ilíada fazendo Atena pôr um menos sobre Te-lêmaco,62 mas o menos aqui é a coragem moral  que habilitará o

menino a enfrentar a arrogância de outros pretendentes. Trata-se deuma adaptação literária. Mais antiga e autêntica é a repetida afirmação de que os menestréis retiram seu poder criativo de Deus. “Souautodidata” diz Fêmios, “foi um deus que implantou em minha mente

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A APOLOGIA DE ACAMENO N 19

todo tipo de canção”!# Os dois períodos nessa declaração não sãovistos como contraditórios - a meu ver ele apenas quer di/.er qucnão memorizou as canções de outros menestréis, mas que é um poe

ta criativo que se baseia nas frases hexamétricas jorrandoespontaneamente de alguma fonte desconhecida e incontrolável, conforme sua necessidade. Ele canta “a partir dos deuses”, como semprefizeram os melhores menestréis.64 Mas devo ainda retornar a este

 ponto na parte final de meu capítulo III (“As bênçãos da loucura”).Porém, o traço mais característico da Odisséia é o modo pelo

qual seus personagens vinculam toda espécie de fato mental (ou físico) à intervenção de um daemon,65 de um deus (ou de deuses)66

anônimo e indeterminado. Tais seres, concebidos de maneira vaga, podem inspirar coragem diante de uma crise67ou arrancar o homemde sua capacidade de discernimento ,68como os deuses na  Ilíada. Masa eles também é creditado um amplo espectro daquilo que podemosdenominar livremente “advertências” (avisos). Quando um personagem tem uma idéia especialmente brilhante69ou tola;711 quando elese torna capaz de repentinamente reconhecer a identidade de uma

 pessoa,71 ou percebe, num lampejo, o significado de uma profecia;72quando recorda o que seria fácil de esquecer ,73 ou esquece o que deveria lembrar74- é certo que ele ou alguém verá nisso literalmenteuma intervenção psíquica promovida por um desses seres anônimose sobrenaturais.75 Não resta dúvida de que eles nem sempre esperam ser tomados ao pé da letra - Ulisses, por exemplo, não parecefalar sério ao imputar às maquinações de um daemon o falo de ter saído sem seu manto numa noite fria. Mas não estamos lidando aqui

com uma simples “convenção épica”. Afinal de contas, são os personagens do poeta76e não o próprio poeta que falam deste modo.Seu uso do termo é outro - ele trabalha, como no caso da  Ilíada, com deuses antropomórficos claramente esboçados, como Atena ePoseidon, e não com daemons anônimos. Se ele faz seus personagens adotarem outro linguajar é, supostamente, porque as pessoasfalavam daquela maneira. Em suma, Homero está sendo “realista”.

 Na verdade, é assim que devemos esperar que falem as pessoasque acreditam (ou cujos ancestrais acreditavam) em constantes avisos do além. O reconhecimento, a intuição, a memória, a idéia

 perversa ou brilhante, possuem isso em comum: eles chegam repentinamente “à cabeça de um homem”. Freqüentemente ele não tem

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consciência de nenhuma observação ou raciocínio que o tenha levado a tais conclusões. Mas se é esse o caso. como ele pôde designá-lascomo “suas”? Há um instante atrás elas não estavam na sua mente

e agora estão. Alguma coisa as colocou ali. e este algo é diferentede si próprio. Ele nada sabe além disso, e portanto, fala do que ocorrede maneira reservada, como da ação de “deuses” ou da ação de “algum deus”, ou ainda, mais freqüentemente, (sobretudo quandoacontece de seu efeito ser ruim) como da ação de um daemon.11 E,

 por analogia, ele utiliza a mesma explicação para as idéias e açõesde outras pessoas, sempre que as acha difíceis de entender ou forade contexto. Um bom exemplo disso se encontra no discurso de An-

tinous na Odisséia II quando, após elogiar a excepcional inteligênciae retidão de caráter de Penélope, ele prossegue dizendo que a idéiade não casar outra vez é absolutamente imprópria e conclui que “osdeuses a estão introduzindo em seu peito” .78De modo similar, quando Telêmaco extravasa ousadamente, pela primeira vez contra os

 pretendentes, o mesmo Antinous infere, não sem ironia, que “os deuses o estão ensinando a falar grandiosamente” .79 No caso, sua mestraseria Atena, como sabem811 tanto o poeta quanto o leitor. Mas Antinous desconhece o fato, e por isso fala em “deuses”.

Semelhante distinção entre o que sabem os personagens e o poeta também pode ser observada na  Ilíada. Assim, quando a cordado arco de Teucro se rompe, ele grita, com um estremecimento demedo, que um daemon está se opondo a ele, mas foi na realidadeZeus que o causou, como o poeta afirma um pouco antes .81 Tem sesugerido que, nessas passagens, o ponto de vista do poeta se baseia

na idéia de uma maquinação divina, como é típico do período micê-nico, enquanto seus personagens ignoram tal linguagem e utilizamalgo mais vago, a exemplo dos contemporâneos jônios do poeta, que

 já estavam (ao que tudo indica) perdendo sua fé nos velhos deusesantropomórficos.82 A meu ver, como mostraremos em breve, isto équase o reverso exato da verdadeira relação que se estabelece. E ficaclaro que a falta de precisão na iinguagem de Teucro nada tem aver com ceticismo. Ela é o simples resultado da sua própria igno

rância. Ao empregar o termo daemon, ele procura “expressar o fatode que um poder mais elevado fez algo acontecer ” 83- e isto é tudoo que ele sabe. Como observou Ehnmark .84uma linguagem tão vaga

 para designar o sobrenatural foi usada do mesmo modo por gregos

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A APOLOGIA DE AGAMENON 21

de todos os períodos, não em virtude de ceticismo, mas simplesmente porque ele eram incapazes de identificar o deus específico que estava envolvido no acontecimento. Tal linguagem é utilizada do mesmo

modo por povos primitivos, pela mesma razão ou senão pela faltada idéia de deuses personificados.85 Que a utilização pelos gregos é bastante antiga fica claro pela idade do adjetivo em questão(.daemonios). A palavra deve ter significado, na sua origem, “agir sob os auspícios de um daemon”, mas já na  Ilíada o sentido primi

tivo se enfraqueceu a tal ponto que Zeus já pode aplicá-lo à deusaHera.86 Tal expressão verbal bizarra ainda permaneceria válida por um longo período de tempo.

Acabamos de examinar os tipos jn a is comuns de intervenção psíquica na obra de Homero. Podemos resumir nossos resultados dizendo que todas as atitudes normais do comportamento humano,cujas causas não são percebidas de modo imediato87- nem pela pré-

-,pria consciência do sujeito em questão e nem tampouco por outras pessoas - , são imputadas a uma ação sobrenatural, exatamente comono caso, por exemplo, das mudanças climáticas ou dos movimentos

de um arco. Esta descoberta não surpreenderá o antropólogo não iniciado no classicismo - ele imediatamente apresentará inúmerosexemplos paralelos, retirados da cultura de Bornéu ou da África Central. Mas o que certamente causa estranheza é encontrar tais crençase tal sentido de dependência constante e diária face ao sobrenatural,tão firmemente enraizadas em poemas supostamente “irreligiosos”,como a Ilíada e a Odisséia. E podemos ainda nos perguntar por queum povo tão civilizado, esclarecido e racional como os jôniosnão

eliminou de seus épicos nacionais esses vínculos com a cultura deBornéu e o passado primitivo, do mesmo modo como eles eliminaram o medo da morte, o medo de ser conspurcado e outros temores

 primitivos que, originalmente, faziam parte de sua saga. O que duvido é que a literatura antiga de algum outro povo da Europa -mesmo no caso de meus próprios conterrâneos e supersticiosos irlandeses - postule a existência de uma interferência sobrenatural

sobre o comportamento humano com tanta freqüência e alcance .88Creio que foi Nilsson o primeiro estudioso a tentar encontrar seriamente uma explicação para tudo isso em termos psicológicos.Em um trabalho publicado em 1924,89que se tornou um clássico nosnossos dias, ele defendeu que os heróis homéricos são particular

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mente sujeitos a rápidas e violentas mudanças de humor - eles sofrem, enfim, de instabilidade mental. E o autor prossegue observandoque, mesmo hoje, uma pessoa com semelhante temperamento estáapta, ao sofrer uma alteração de humor, a olhar para aquilo que fezcom horror e exclamar “eu não pretendia fazê-lo!” - um pequeno passo para dizer “não fui realmente eu que o fiz” . Como afirma Nilsson, “seu comportamento tornou-se estranho para si mesmo. Ele nãoconsegue entendê-lo. Para ele é alguma coisa que não faz parte deseu ego.” Esta observação é absolutamente verdadeira, e não restadúvida quanto à sua relevância para a análise de alguns dos fenômenos que vimos considerando até aqui. Creio que Nilsson também

está certo ao defender a idéia de que experiências desse tipo desem  penharam -juntam ente com outros elementos, como a proteção dasdeusas da tradição minóica - um papel na formação do mecanismode intervenção fís ica ao qual Homero fará alusão tão constantemente e de maneira tão supérflua. Digo “de maneira supérflua” porqueo mecanismo divino parece muitas vezes não servir para nada maisa não ser duplicar a idéia de uma causação natural e psicológica .90

Mas não devemos talvez dizer que é a maquinação divina que apre

senta a intervenção psíquica sob uma forma pictórica concreta? Issonão seria então supérfluo, pois somente desse modo a imagem poderia se tom ar vivida para os ouvintes do poema.

Os poetas homéricos não possuíam os refinamentos de linguagem que teriam sido necessários para transpor adequadamente a idéiade um milagre puramente psicológico. O que seria então mais natural do que suplementar, e em seguida substituir, uma fórmula gasta

como |i£voç £^i[}ocà,£ 0D|i(ú [a paixão introduzida na alma vitalj, fazendo o deus aparecer como presença física e depois exortando seu protegido com uma palavra?91 Quão mais vivida é a famosa cena da Ilíada I em que Atena puxa Aquiles pelos cabelos e o adverte paranão atacar Agamenon, se comparada a uma simples advertência interior? Mas a deusa só é visível aos olhos de Aquiles - ninguémmais a viu” .92 O que é, enfim, uma clara indicação de que ela é uma

 projeção ou a expressão pictórica de uma advertência interior 93- ad

vertência que Aquiles pode ter descrito de modo impreciso por £V£7W£UG£ <j)p£Gi ôoctpoov [um poder divino soprado em seu discurso]. E sugiro ainda que a advertência interna, assim como oinexplicável e repentino sentimento de potência e perda da capaci

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A APOLOGIA DE A g AMENON 23

dade de julgar é o germe a partir do qual pôde se desenvolver a idéiade uma maquinação divina.

Um resultado da transposição dos acontecimentos do interior 

do sujeito para o mundo externo é que a imprecisão é eliminada - odaemon indeterminado tem que se tornar um dado concreto, comoum deus específico qualquer. Na  Ilíada I, o daemon se transformaem Atena, a deusa do bom conselho. Mas trata-se ali dc uma sim ples questão de escolha por parte do poeta. Através de uma multidãode escolhas como essa, os poetas foram elaborando as personalidades dos deuses, “distinguindo”, como diz Heródoto ,94“suas funçõese habilidades específicas, e fixando suas aparências físicas”. É cla

ro que os poetas não inventaram os deuses (e Heródoto não afirmanada parecido) - Atena, por exemplo, tinha sido, como temos razãode crer, uma deusa do lar de origem minóica. Mas os poetas lhe outorgaram uma personalidade - e desse modo, como diz Nilsson,tornaram impossível para a Grécia penetrar em um tipo de religiãomágica que prevaleceria em seus vizinhos orientais.

Algumas pessoas podem, no entanto, querer desafiar a asserção de Nilsson sobre a qual repousa todo esse raciocínio. Afinal, as

 pessoas são mesmo especialmente instáveis na obra de Homero, secomparadas com os personagens de outros épicos? O argumentoapresentado por Nilsson é, na verdade, bastante sutil. Heróis épicoschegam às vias de fato diante do menor sinal de provocação, masisso também ocorre com heróis nórdicos e irlandeses. Em certa ocasião Heitor é tomado de fúria, mas isso é muito mais freqüente nocaso dos heróis nórdicos. Os homens homéricos choram de modo

mais desinibido do que suecos e ingleses; mas isso também é algocomum entre os povos mediterrâneos nos dias de hoje. Podemos concordar que Agamenon e Aquiles são personagens apaixonados, homens de ânimo exaltado (a história requer que eles sejam assim).Mas Ulisses e Ajax não representam, de seus vários modos, tiposcaracterísticos de firme persistência, assim como Penélope apresenta uma constância feminina? Entretanto, esses personagens estáveisnão são mais isentos do que outros de uma intervenção psíquica. Da

minha parte, e de uma maneira global, eu hesitaria em enfatizar talaspecto. Ao contrário de Nilsson, eu prefiro relacionar a crença dohomem homérico em uma intervenção psíquica a dois outros pontos que pertencem, sem dúvida, a essa mesma cultura descrita por Homero.

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O primeiro ponto é uma peculiaridade negativa: o homem homérico não possui um conceito unificado para aquilo que chamamos“alma” ou “personalidade” (fato cujas implicações foram muito bemressaltadas por Bruno Snell95). Todos sabem que Homero credita uma

 psiquê ao homem apenas após a sua morte, ou, então, quando eleestá desmaiando, morrendo, ou ameaçado de morte - só há registrode relação da  psiquê com o homem vivo quando ela já está paradeixá-lo. Homero não possui sequer outra palavra para designar uma

 personalidade viva. O thumos pode ter sido, em algum momento,um primitivo “sopro” ou “alma vital”, mas em Homero ele não énem uma alma (como em Platão) nem uma parte da alma. Ele pode

ser definido, grosso modo, e em termos genéricos como um órgãode sentimento. Porém ele goza de uma independência que a palavra“órgão” não sugere, influenciado que somos pelos conceitos posteriores de “organismo” e “unidade orgânica”. O thumos dc um homemlhe diz, por exemplo, se ele deve comer, beber ou assassinar um inimigo. Ele o aconselha durante a ação, põe palavras em sua boca -0\)|i.ç avcoyet ou KE^exoa Se (ie [ordenado ou exortado por outro thumos]. O homem pode conversar com ele, com seu “cora

ção” ou “barriga”, quase dc homem para homem. As vezes elerepreende tais entidades à parte (Kpcc5iT|V T|Vi7ta7t£ |au0co [sacudir os mitos com violência]%); norm almente ele aceita seus conselhos,mas pode também rejeitá-los para agir por conta própria, como Zeusage, em uma ocasião, sem o consentimento de seu thumos” .97 Noúltimo caso, nós diríamos, como Platão, que o homem estavaKpetxxoov eccoxou (ele havia controlado a si mesmo). Mas para o

homem homérico, o thumos não tende a ser sentido como uma parte do nosso “eu” - ele aparece, dc hábito, como uma voz interna eindependente. Um homem pode até mesmo ouvir duas dessas vozes, como quando Ulisses “planeja em seu thumos’' matar os Ciclopessem mais delongas, mas é relido por uma segunda voz98 (exepoç0t)(-ioç [outro thumos]). Este costume de (diríamos) “objetivar as forças pulsionais”, tratando-as como um “não-eu”, deve ter abertoamplo caminho para a idéia religiosa de intervenção psíquica, que,

segundo se diz, atua não sobre o homem mas sobre seu thumos"ou sobre o espaço físico que ele ocupa, na altura do peito (coração) oudo ventre. 100 Vemos tal conexão surgir muito claramente na observação dc Diomedes de que Aquiles lutará “quando o thumos em seu

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A APOLOGIA DE A g AMENON 25

 peito o indicar e quando um deus o despertar ” "11 (novamente a questão da sobredeterminação).

Uma segunda peculiaridade que parece estar intimamente re

lacionada à primeira, deve ter funcionado na mesma direção. TraLa-sedo costume de explicar o caráter ou o comportamento em termos deconhecimento.102 O exemplo mais familiar é o muito disseminado

uso do verbo otSoc [represento, imagino] - “eu sei”, com um objetoneutro no plural, a fim de expressar não apenas a possessão de umahabilidade técnica (otSev 7to?i£|ir|ia epya [conhecer o trabalho inimigo]) mas também o que denominaríamos caráter moral ou

sentimentos pessoais - Aquiles “sabe de coisas selvagens, como umleão”, Polifemos “sabe de coisas sem lei”, Nestor e Agamenon “sa bem coisas amigáveis um com re lação ao outro” .103 Isto não ésimplesmente um “idioma” homérico - semelhante transposição desentimento em termos intelectuais está implicada quando nos dizem,

 por exemplo, que Aquiles tem “um impiedoso entendimento (vooç)”ou que os troianos “recordaram a fuga e esqueceram a resistência” .104

Esta abordagem intelectualista para explicar o comportamento im

 primiu uma marca duradoura nas mentes gregas - os chamados paradoxos socráticos de que “virtude é conhecimento”, e de que “ninguém age erradamente de maneira proposital”, não eram novidades,mas uma formulação generalizada e explícita daquilo que por muito tempo havia sido um arraigado hábito de pensamento .105 Tal hábitodeve ter encorajado a crença em uma intervenção psíquica. Se o caráter é uma questão de conhecimento, o que não é conhecimento não

faz parte do caráter, mas vem do exterior até o homem. Assim, quando ele age de modo contrário às suas disposições conscientes (tudoaquilo que nos é dito que ele “sabe”), a ação não é propriamentesua, mas lhe foi ditada de fora. Em outras palavras, impulsos não

sistemáticos e não racionais, assim como os atos resultantes, tendema ser excluídos do “eu” e imputados a uma origem externa.

Tudo isso é evidentemente mais comum quando os atos emquestão são tais, que chegam a causar profunda vergonha em seu

autor. Sabemos bem como, em nossa sociedade, pesados sentimentos de culpa são superados por uma fantasiosa “projeção” sobre osoutros. E podemos supor que a noção de ate desempenhou um pa pel similar para os homens homéricos, tornando-os capazes, com toda boa fé, de projetar sobre um poder externo seus insustentáveis sen-

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26 O s GREGOS E O IRRACIONAL

timentos de vergonha. Falo aqui em “vergonha” e não em “culpa”, já que certos antropólogos norte-americanos nos ensinaram recentemente a distinguir entre “culturas de vergonha” e “culturas de cul

 pa” ,106 e porque a sociedade descrita por Homero entra de modo bastante claro no primeiro grupo. O sumo bem do homem homérico nãoé a fruição de uma consciência tranqüila, mas sim a fruição de time (estima pública): “por que devo lutar’!, pergunta Aquiles, “se o bomlutador não recebe mais xi|ir| do que o mau lutador ?” 107 Além disso, a mais potente força moral que o homem homérico conhece nãoé o medo de um deus,108 mas o respeito à opinião pública, aidos. “caSejiai Tpoaç” [sinto vergonha dos Troianos], diz Heitor duran

te a crise que se abate sobre seu destino, encaminhando-se de olhosabertos para a morte .109 O tipo de situação para a qual a noção deate é uma resposta nasce, portanto, não apenas da impulsividade dohomem homérico, mas também da tensão entre impulsos individuais e pressão de adaptação social, característica de uma cultura

 baseada na vergonha .110 Em uma sociedade como essa, qualquer coisaque exponha o homem ao desprezo ou ao ridículo perante seus com

 panheiros, ou que o leve a “estragar sua imagem”, é experimentadocomo algo insustentável.111 Isso talvez explique como não apenas emcasos de fracasso moral, como quando Agamenon perde o autocontrole, mas também no episódio da má negociação de Glauco, ou aindaquando Automedon desconsidera os preceitos táticos adequados, hajauma “projeção” dos eventos sobre um agente divino. Por outro lado.,foi o crescente sentido de culpabilidade, característico de um perío- ;do posterior, que acabou por transformar a ate em punição, as Erí-

nias em ministro da vingança e Zeus em uma encarnação da justiçadivina.Tratarei dessa evolução no próximo capítulo. Até aqui o que

tentei foi mostrar, pela análise de um tipo especial de experiênciareligiosa, que por detrás do termo “religião homérica” há algo maisdo que uma parafernália artificial de deuses e deusas mais ou menos sérios e cômicos; e que não estaremos sendo justos com eles seos descartarmos como um mero interlúdio de agradável e luminosa

 bufonaria entre a supostamente profunda religião terrestre dos egeus(sobre a qual sabemos pouco) e as profundidades órficas dos pri-mórdios (sobre as quais sabemos ainda menos).

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A APOLOGIA DE AGAMENON 27

N otas  do  capítulo I

1. Roger Fry,  Last Lectures, 182 sg.

2. Mazon,  Introduction à 1’Iliade, 294.3. Murray,  Rise o ftlie Greek Epic*, 265.

4. Bowra, Tradition and Design in the Iliad, 222 (itálicos de minha autoria).

Da mesma forma, Wilhelm Schinid crê que a concepção que Homero se

faz dos deuses “não pode ser chamada de re l ig iosa .” (Gr .

 Literaturgeschichte, 1.1. 112 sg.).

5. Homero,  Ilíada , 19.86 sg.

6. Ibid., 137sg. Cf. 9.119 sg.

7. Ibid., 19.270 sg.8. Ibid., 1.412.

9. Ibid., 9.376.

10. Ibid., 1.5.

11. Ibid., 6.357. E também 3.164, onde Príamo diz que não é Helena, mas sim

os deuses que merecem ser culpados (a r a o i - aitioi) pela guerra. Na Odis-

 sé ia 4.261, também de Homero, a personagem fala explicitamente de suaoar].

12. Ibid., 12.254 sg.; Odisséia, 23.11 sg.13. Ibid., 6.234 sg.

14. Ibid., 17.469 sg.

15. Cf. Wilamowitz,  Die Ilias und Homer, 304 sg., 145.

16. Para esta análise da ax r|, cf. W. Havers,“Zur Semasiologie von griech. axT|,

 Ztschr. F. vgl. Sprachforschung, 43 (1910), 225 sg.

17. A transição para esse novo significado encontra-se na Odisséia, 10.68,

12.372 e 21.302. Outra possibilidade é que se trate de um significado pós-

homérico. Lidell e Scott ainda citam a  Ilíada 24.480, mas penso queerradamente: ver Leaf e Am eis-Hentze ad. loc.

18. O plural parece ter sido utilizado duas vezes para ações que indicam esta

do mental na  Ilíada, 9.115 e (se o ponto de vista adotado na n. 20 for 

correto), na  Il íada 10.391), em uma extensão simples e natural de seu significado original.

19.  Ilíada, 11.61 e 21.297 sg.

20. No caso da exceção mencionada (exemplo do vinho;  Ilíada, 10.391), o sig

nificado pode ainda ser, não que a falta de sabedoria de Heitor ao aconselhar 

Dólon na  Ilíada tenha origem na our), mas que sua própria condição seja

de alguém “divinamente inspirado”. Neste caso, a r a i será ainda utilizado

no sentido de ‘estados m entais” (9.115), ao passo que a interpretação mais

comum postula não apenas a existência de uma psicologia única para os

 personagens da obra, como também um mesmo uso do termo, para de sig

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28 O s GREGOS E O IRRACIONAL

nar os “atos produzidos por louca paixão". Na Odisséia, 10.68 os compa

nheiros de Ulisses são nomeados agentes induzidos por uíivoç e por 

0%etXioç.

21.  Ilíada . 16.805.

22. Ibid., 780.

23. Ibid., 684-691.

24. Ibid., 11.340.

25. Cf. Lévy-Bruhl ,  P rim itive M en ta lity , 43 sg.;  P rim itive s and th e  

Supernatural, 57 sg. (citados da edição em língua inglesa).

26. Odisséia, 12.371 sg. Cf. 10.68.

27.  Ilíada, 9.512. Tti3 a05r|v a p £7i£O0ai i v a pXa<|)0£iç arcoxari.

28. Ibid., 19.91. Em 18.311 é Atena quem, na função de “deusa conselheira”,

 bloqueia nos troianos sua capacidade de disce rnim en to, de tal modo queeles acabam por aprovar a má decisão de Heitor. Mas essa ação ainda não

recebe o nome de axr|. Em contrapartida, na Odisséia, 4.261 Helena atri

 bui a sua a r q à deusa Afrodite .

29. Ibid., 24.49 onde o plural pode se referir apenas a “quinhões” de indiví

duos distintos (Wilamowitz, Glaube, 1.360). Na Odisséia, 7.197 porém, as

“poderosas fiadoras do destino” já aparecem algo personalizadas, de modo

semelhante às Nornas encontradas no mito teutônico (Chadwick. Growth 

o f Literature, 1.646).30. Cf. Nilsson,  History ofG reek Religion, 169. A visão de que tal poipa eqüi

vale a um ordenamento povincial do mundo, e de que a noção de algo que

cabe individualmente a cada um, como um destino, vem depois e não an

tes na ordem de evolução (Cornford,  From Religion to Philosophy, 15 sg.)

 parece-m e dif icilmente acei táve l, e certamente sem fundam ento na obra de

Homero, onde a p o ip a é empregada de modo bastante concreto, por exem

 plo, para designar um a “porção de carne” (Odisséia , 20.260). Também não

estou convencido da idéia de que as |ioipai têm sua origem em símbolos

de certas funções econômicas e sociais de um comunismo primitivo, ou quesurgiram das deusas-mãe do período neolítico (Thomson, The Prehistoric 

 Aegean, 339).

31. Snell , Philol. 85 (1929-1930), 141 sg. e de modo mais elaborado Chr. Voigt,

Üeberlegung und Entscheidung... hei Homer, têm procurado salientar que

Homero não possui nenhuma palavra para designar decisão ou ato de es

colha. Mas a conclusão de que nele o homem ainda não tem consciência

da liberdade individual ou de algo como decisão pessoal me parece equi

vocada (Voigt, op. cit., 103). O que eu diria é que o homem homérico não possui o conceito de arbítrio - “vontade” (que curiosamente se desenvol

veu tarde na Grécia) - e que, portanto, não pode haver tampouco o conceito

de “livre-arbítrio”. O que não impede o poeta de distinguir, na prática, as

ações originadas no ego daquelas às quais ele atribui intervenção psíquica

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A APOLOGIA DE AGAMENON 29

- Agamenon pode até mesm o dizer E7TD 8’o u k am o ç e t|ii aXXa Zeuç. E

 parece um pouco art ific ia l querer negar os trechos da  Ilíada 11.403 sg. ou

da Odisséia 5.355 sg. em que são descritas decisões tomadas após razoá

vel consideração das possibilidades.

32.  Ilíada, 16.849 sg. Cf. 18.119, 19.410, 21.82 sg., 22.297-303. A propósito

da “sobredeterminação” , cap. II.

33.  Rh. Mus. 50 (1895), 6 sg. (=  Kl. Schriften . 11.229). Cf. Nilsson, Gesch. d. 

 gr. Rei. 1.91 sg.; e contra esta opinião, Wilamowitz na introdução de sua

tradução do  Eumênides , e Rose,  Handbook o f Greek Mythology, 84.

34.  Ilíada, 15.233 sg.

35. Ibid., 19.418. Cf. £B ad. loc., smaicoTtoi yap eu n v tojv T tapa (jruoiv.

36. Diels, frag. 94.

37. Em todos os casos, exceto em um (Odisséia, 11.279 seg.), trata-se de pes

soas vivas - o que parece ir pesadamente contra a teoria (criada no apogeu

do animismo) de que epivueç são mortos vingativos. Em primeiro lugar,

Homero nunca pune os crimes; e em segundo, tanto os deuses quanto os

homens têm suas próprias epivusç. As epiv\|/£a de Hera, por exemplo ( Ilía-

da , 21.412), têm as mesmas funções das de Penélope (Odisséia, 2.135) -

 proteger o  stcitus da mãe pela punição do filho indigno. Podemos dizer que

as Erínias são a raiva materna projetada em manifestações pessoais. O Oecov

ep tvuç que nas Tehanas (Kinkel, frag. 2) ouviu a maldição de Édipo (ainda vivo) incorpora a raiva dos deuses sob a forma pessoal - assim a Erínia

e a maldição são igualadas em Ésquilo. Deste ponto de vista, Sófocles não

estava inovando, mas apenas seguindo a tradição, ao fazer Tirésias amea

çar Creonte com Aiôod Kai OecovriE epivuEÇ na  Antígona, 1075. Sua

função é punir a violação da |ioipa por Creonte, pela qual Polinice per

tence ao Hades e Antígona ao avco Geoi (1068-1073). Para |aoipa, como

 status de acordo com o pretensão de Poseidon de ser ioo|iopoç Kai 0 (ir|

7i£TCp(ú(iEVOÇ a ior) com Zeus ,  Ilíada, 15.209. A partir desse texto, encontrei uma íntima conexão de epivuç com poipa também enfatizado por 

George Thomson (The Prehistoric Aegean, 345) e por Eduard Fraenkel em

 Agamenon , 1535 sg.)

38.  Ilíada, 9.454, 571; 21.412; Odisséia, 2.135.

39.  Ilíada, 15.204.

40. Odisséia, 17.475.

41. Ésquilo,  P.V. 516, M oi pa i Tpi(i0 pc|)0 i nviUtoveç i Epivueç e  Eumênides  

333 sg. e 961, M o ip ai |iaTpiKaaiY vriTai. Eurípides, em um a peça perdi

da , faz uma Er ín ia declarar que seus outros nomes são : tdxe,

vep-Epiç, jioipa, avayKTi (frag. 1022). Cf. também Ésquilo, Sept. 975-977.

42. Ésquilo,  Eumênides, 372 sg., etc.43. Sobre o problema da relação entre deuses e (loipa (insolúvel em termos

lógicos), ver especialmente E. Leitzke,  Moira and. Gottheii im alten griech.

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30 O S GREGOS E O IRRACIONAL

 Epos, que analisa todo o material a respeito; E. Ehnmark, The Idea of God  

in Homei; 74 sg.; Nilsson, Gesch. d. gr. Rei 1.338 sg.; W. C. Greene,  M oi-ra, 22 sg.

44. O Epivu ç (Erynus) de Deméter e o verbo EptvuEiv em Arcádia, Paus. 8.25.4

sg. a i a a ) em arcáde, 1G V.2.265, 269; em cipriota, GDI  1.73.45. Cf. E. Ehnmark, The Idea o f God in Homer, 6 sg. E sobre o significado da

 palavra |JEVOÇ, J. Bõhme,  Die Seele u. das Ich im Homerisch en Epos, 11

sg., 84 sg.

46.  Ilíada, 5.125 sg., 136; 16.529.

47. Que os reis foram vistos a um tempo como possuidores de um |i£voç espe

cial que lhes era comunicado para sua tarefa, parece implícito no uso da

expressão lEpov | i£VOÇ (cf. i£pr | iç ) , embora sua aplicação em Homero (para

Alcinous, Od. 7.167 etc., para Antinous, Od. 18.34) seja governada meramente por uma questão de conveniência métrica. Cf. Pfister, P.-W., s.v.

“Kultus”, 2125 sg.; Snell,  Die Entdeckung des Geistes, 35 sg.48. Odisséia, 24.318.

49. Cavalos,  Il íada, 23.468; Pooç |i£VOÇ, Odisséia, 3.450. Em  II. 17.456, os

cavalos de Aquiles recebem uma comunicação de |i£voç.

50.  Ilíada, 6.182 e 17.565. Assim também, por exemplo, médicos como Hipó-

crates falam em sua época do (i evoç   do vinho e da fome para significar o

 poder im anente mostrado por seus efeitos no organismo humano.

51. Ibid., 20.242. E do mesmo modo, o “espírito do Senhor” que torna Sansão

capaz de feitos sobre-humanos (“Juizes”, 14: 6, 15: 14,  A Bíblia Sagrada).

52. Ibid., 13.59 sg. A transmissão física de poder divino é, no entanto, rara em

Homero, assim como na crença grega em geral, em contraste com a impor

tância dada pelo cristianismo e por certas culturas primitivas ao gestosacerdotal de comunicação.

53.  Ilíada, 13.61, 75. yvia 5 £0T|K£v £À.a<|>pa é a fórmula recorrente para des -

creve r a transm issão de pevoç  (5.122, 23.772); cf. também 17.211 sg .

54. Cf. a nota de Leaf 13.73. Na Odisséia, 1.323, Telêmaco reconhece uma comunicação de poder, mas não sabemos exatamente como isso ocorre.

55.  Ilíada, 12.449. Odisséia, 13.387-391.

56.  Il íada, 3.381: p£ia (laX, cúctce 0 e o ç . Ésquilo. Sup. 100: Ttav a n o v o v  

ôaipovico t), etc.

57.  Ilíada, 5.330 sg. 850 sg.

58. Ibid., 6.128 sg.

59. Ibid., 5.136; 10.485; e 15.592.

60. Ibid., 15.605 sg.

61. Ibid., 17.210.

62. Odisséia, 1.89, 320 sg.; Cf. 3.75 sg.; 6.139 sg.

63. Odisséia, 22.347 sg. Cf. Demodoco, 8.44, 498 e Píndaro,  Nem. 3.9, onde

o poeta implora à musa a concessão “de um fluxo abundante de poemas,

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A APOLOGIA DE AOAM ENON 31

 proven iente de meus próprios pensamentos”. Como coloca MacKay: “A

musa é a fonte da originalidade do poeta, e não exatamente sua imagem

convencional” (The Wrath ofHomer, 50). Chadwick, Growth o f Literature 

111.182 cita, de Radloff, um curioso paralelo primitivo, o menestrel Kirghiz

que declarou: “Eu posso cantar uma canção qualquer, pois Deus implantou este dom musical em meu coração. Ele coloca as palavras em minha

 boca sem que eu precise solicitá-las. Eu não aprendi nenhum a de minhas

canções. Todas brotam de meu íntimo” .

64. Odisséia , 17.518 sg. Hesíodo, Teogonia, 94 sg. (= H. Hymn 25.2 sg.). Cf.

cap. III.

65. No uso do termo Sai(i(»v e seu correlato para Oeoç (que não discutire

mos aqui), ver Nilsson em  Arch. f. Rei. 22 (1924) 363 sg., e Gesch. d. gr. 

 Rei. 1.201 sg.; Wilamowitz, Glaube, 1.362 sg.; E. Leitzke, op. cit., 42 sg.Segundo Nilsson o Sai|iO)v era originariamente não apenas indetermina

do, mas também impessoal, uma mera “manifestação de poder” {orendá). 

Mas quanto a isso, estou inclinado a compartilhar as dúvidas de Rose,  Har 

vard Theol. Rev. 28 (1935) 243 sg. Tal evidência, como temos sugerido,

enquanto p.oipa desenvolveu de uma “parcela” impessoal para um destino

 pessoal, Scancov evoluiu em direção oposta, de um pessoal “Apportione r”

(cf. 8ai(ü, Sai|iovr|) para uma impessoal “sorte”. Há um ponto em que os

dois d ese nv olv im en tos se cruzam e as palavras são virtualmente sinônimas.66. Ocasionalmente, também, a uma intervenção de Zeus (Odisséia , 14.273),

que em tais frases é, talvez, não tanto um deus individual quanto represen

tante de um desejo divino generalizado (Nilsson, Greek Piety, 59).

67. Odisséia , 9.381.

68. Ibid., 14.168. Cf. 23.11.

69. Ibid., 19.10. Cf. 138 sg.; 9.339.

70. Ibid., 2.124 sg.; 4.274 sg.; 12.295.

71. Ibid., 19.485. Cf. 23.11 onde um erro de identificação é explicado.

72.  Ibid., 15.172.

73. Ibid., 12.38.

74. Ibid., 14.488.

75. Se a intervenção é nociva, ela é normalmente chamada 6ai(iCüv e não 0eoç.

76. Essa distinção foi primeiro observada por O. Jorgensen,  Hermes 39 (1904)

357 sg. Para as exceções à regra de Jorgensen, ver Calhoun,  AFP  61 (1940)

270 sg.

77. Cf. o 8ai|.ia)v que traz visitas desagradáveis e indesejadas {Odisséia 10.64,

24.149, 4.274 sg., 17.446) denominado kxxkoç nas duas primeiras passagens citadas. Em 5.396 ele aparece como um causador de doenças,

OTuycúpoç Saijicov. Ao menos essas passagens são exceções à generaliza

ção de Ehnmark  (Anthropomorphism and Miracle, 64) de que os Sai|acúveç

são deuses olímpicos não identificados.

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32 O s GREGOS E O IRRACIONAL

78. Ibid., 2.122 sg.

79. Ibid., 1.384 sg.

80. Ibid., 1.320 sg.

81.  Ilíada , 15,461 sg.

82. E. Héden,  Hom eriscl ie Gõtterstudien.83. Nilsson, Arch. F. Rei. 22.379.

84. Ehnmark, The Idea ofG od in Hom er , cap. V. Cf. também Linforth, “Named

and unnamed Gods in Herodotus”, University of Califórnia Publications in Classical. Philolbgy IX.7 (1928).

85. Cf., por exemplo, as passagens citadas por Lévy-Bruhl,  Primitives and the Supernatural , 22 sg.

86.  Il íada, 4.31. Cf. Paul Cauer,  Kunsl derÜ bersetzung, 27.

87. Um bom exemplo, porque particularmente trivial, do significado atribuído

ao inexplicável é o fato de que espirrar é tomado corno um sinal de profecia por muitos povos, incluindo os gregos homéricos (Odisséia , 17.541) e

os da Grécia clássica (Xenofonte,  Anab. 3.3.9) e nos tempos romanos (Plu

tarco,  gen. Soer. 581 s.). Cf. Halliday, Greek Divination, 174 sg.; e Tylor,

 Primitive Culture, 1.97 sg.

88. Alguma coisa análoga à axT| talvez possa ser encontrada no estado mental

que os Celtas chamam fe y (fadado) ou fa ir ys truck  (encantado) que chega

até as pessoas repentinamente e as fazem agir de modo muito diferente do

que de hábito (Kirk, Robert. The Secret Com onwealth).89. “Gõtter und Psychologie bei Homer”,  Arch. F. Rei. 22.363 sg. As conclu

sões foram resumidas no seu livro  History o f Greek Religion, 122 sg.

90. Como ressalta Snell (Die Entdeckung des Geistes), o caráter “supérfluo”

de tantas intervenções divinas mostra que elas não foram inventadas ape

nas com o intuito de tirar o poeta de uma dificuldade (afinal, o curso dos

acontecimentos seria o mesmo sem eles), mas que pertencem a alguma an

tiga crença. Cauer achava, por sua vez (Grundfragen 1.401), que a

“naturalidade” de muitos milagres homéricos era um refinamento incons

ciente datando de uma era em que os poetas já haviam começado a não

mais acreditar em milagres. Mas o milagre desnecessário é, na verdade, ti

 picamente primitivo (Cf. E.E. Evans-Pritchard , Witchcraft, Oracles and  

 Magic among the Azande, 77, 508). Sobre a crítica a Cauer, Ehnmark,

 Anthropom orphism and M iracle , cap. IV.

91.  Ilíada, 16.712 sg. No livro 13.43 sg. as intervenções física (60) e psíquica

encontram-se lado a lado. Não há dúvida de que as epifânias dos deuses

durante a batalha tinham também alguma base na crença popular; a mesma

crença que criou os anjos de Mons, embora, como observa Nilsson, em tem pos tard ios são os heróis, e não os deuses, que aparecem deste modo.

92. Ibid., 1.198.

93. Mais freqüentemente a advertência é feita por um deus “disfarçado” de al-

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P% “ “f w r ^ r d e S é u m fórn» m i  L * m« r f . « * •

X » 2 d o ! ^ . d v e r i S n c i a * - d e u , • » * « • " - * » » « • -

r r r XZX** *«>*»** °•** ,’m"i”vo-**** M . H e r o d o t o j f c . a um tip„ que s r n te t r»

do seu im pu lso es tetic o , pi sem ir contra ela e, aoimediatamente a essência da crença mais cot ente, ^

mesmo » « ■ > » — « * » *  Z Í S t S S S L J v mencobrir o quadro anterior, m a, também uma« que , corsas não vão além, ã nova rm.gem n a d a j» s q

versão individual da norma geral. Mas a s s .m q « • U l

» posição de r e p r e se n r a ç ã o - p a d ^e , . se ^ , st0 „

■ S T S S f S I fornece rnn, » » ,a descrição d„ modo pe.o ,u a ,

concebo o épico grego « c i m d o a ^ ^ ?6 sg.

95.  Snell, Die  Entdeckung des Geis,e ’ J , m „riechisch*nDichtung, 43 sg.e W. Marg, Der Charakter u l Sprache derpu ng i

96. Odisséia, 22.17. ^ « .«altnu Pfister (P.-W. X1 .2U7

•“ 5= = = ~ ; b r = = :and  Nature (Chicago, 1943), 8 s§- .f . à Drimeira voz, mas aceita

98. Odisséia, 9.299 sg. Aqui o ego c í ei semelhante a esta, coma advertência da segunda. Uma plurahda de d e cunos a pas_  

similar alteração de identidade, paiecu es <. persona-, r  1' i  11 A10 (Cf Voi2t, op. cit., ò / Sg.;. u m uuo t

sagem da  Ih ada , 11.403 4 • ■ . esta relação flutuante entregens de Dostoievski, em a o es t , ^ ge um segundo ego es-

eu e não-eu de modo interessai e. p ^ radonaU enq uanto o outro

tivesse jun to dc alguenr, um e um . gem sentid0j às vezes extre-é im pelido a laze r algu ma coisa m c < pitam os ansiosos po r fazer  mam ente engraçada e, de repente, notamos nossaHao divertido, sem saber por que. Isto e, queremos, t ^

vontade, em bõ r, iutemos contra isso com ^

99.  Ilíada, ^ e ^ c o aG a vcn oi P a M o u c i. Por issoavv avrixe; Odisséia, 15. •(Cf.A

0 0U1IOÇ é o órgão da p as tragédias de

10: e Euríp ide s 1073:Esquilo ^8 (0 V ò o 6i)HO çevò H q ev§o0ev

rtpo^tav-iiç e^ noç, e Trag, Adesp., traB. i

 p .a vxevetai) . TOto tiie e o a i laevoç... iikol100. Ibid., 16.805: a r n òpFvaçc.Àe. 5.125. ev yap

A APOLOGIA DE AGAMENON

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34 O s GREGOS E O IRRACIONAI

101.  Ilíada, 9.702. Cf. Odisséia, 8.44: -‘um deus” deu a Demodocus o dom de

cantar quando seu 0v|ioç o impede.102. Cf. Marg, op. cit. 69 sg.; W. Nestle, VomM ythos zum Logos, 33 sg.

103.  Ilíada, 24.41. Odisséia, 9.189 e 3.277.104.  Ilíada, 16.35, 356 sg.105. A mesma consideração foi feita por W. Nestle NFbb 1922, 137sg., que

acha os paradoxos socráticos echt griechisch e observa que eles já estão

implícitos na psicologia ingênua de Homero. Mas devemos tomar cuida

do ao enxergar este “intelectualismo" habitual como uma atitude adotada

conscientemente pelos porta-vozes de um povo “intelectual”. Trata-se, na

verdade, simplesmente de um resultado inevitável da ausência do concei

to de vontade (cf. L. Gernet,  Pensée jurid iq ue et morale, 312).

106. Uma explicação simples desses termos será encontrada na obra de RuthBenedict, The Chrysanthemum and the Sword, 222 sg. Nós próprios so

mos herdeiros de uma poderosa e antiga (apesar de declinante nos dias

de hoje) cultura de culpa, fato que pode explicar, talvez, porque tantos

estudiosos têm dificuldade em reconhecer a religião homérica como sen

do efetivamente uma “religião”.

107.  Ilíada, 9.315 sg. Sobre a importância de Tipri em Homero, ver Jaeger,

W.  Paideia, 1.7 sg.

108. Cf. cap. 11.109.  Il íada, 22.105. Cf. 6.442; 15.561 sg., 17.91 sg.; Odisséia, 16.75, 21.323

sg.; W ilamowitz, Claube, 1.353 sg.; W.J. Verdenius,  Mnem . 12 (1944) 47

sg. A sanção de cu8cüç é vepeoiç, desaprovação pública:  Ilíada, 6.351,

13.121 sg.; e Odisséia, 2.136 sg. A aplicação dos termos Kodov e

aioxpov parece também ser típica de uma cultura da vergonha. Estes ter

mos denotam não que o ato seja em si benéfico ou nocivo para o agente,

certo ou errado aos olhos da divindade, mas que parece “belo” ou “feio”

aos olhos da opinião pública.110. Ao formar raízes a idéia de intervenção psíquica encoraja obviamente.um

comportamento impulsivo. Exatamente como pensam alguns antropólo

gos modernos que, ao contrário de dizerem, como Frazer, que os homens

 primitivos crêem em magia por racioc inar erradamente, preferem dizer queeles raciocinam erradamente porque são socialmente condicionados a acre

ditar em magia. Assim, em vez de repetir o que diz Nilsson dizendo queo homem homérico crê em intervenção psíquica por ser impulsivo, dire

mos talvez que ele dá vazão a seus impulsos por ser socialmente

condicionado a crer em um a intervenção psíquica.111. Sobre a importância do medo do ridículo como m otivo social, ver Paul

Radin,  Primitive Man as Philosophei: 50.

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 D a  c u l t u r a d a v e r g o n h a  A c u l t u r a d a c u lp a

II

 Ê horrenda coisa cair nas mãos do Deus vivo.

Hebreus 10: 31

7 7 ,m meu primeiro capítulo, discuti a interpretação homéri- JLj ca dos elementos irracionais presentes no comportamento

humano, entendidos como “intervenção psíquica” - uma interferência na vida humana através de agentes não humanos que introduzem

algo no homem e, deste modo, influenciam seu pensamento e con

duta. Neste capítulo, tratarei de algumas das novas formas assumidas por essas mesmas idéias homéricas ao longo da era arcaica. Mas se

o que tenho a dizer pretende ser inteligível também ao não especialista, devo começar colocando sobre um mesmo plano, ao menos a

título de esboço, algumas das diferenças que separam a atitude reli

giosa deste período arcaico daquelas pressupostas na obra de Homero.Ao final do meu primeiro capítulo, utilizei as expressões “cultura da

vergonha” e “cultura da culpa” como rótulos para descrever as duas

atitudes em questão. Estou ciente de que tais termos necessitam a ex

 plicação de que eles são provavelmente novos para a maior parte dos

estudiosos do classicismo, e de que se prestam facilmente a equívo

cos. Espero, porém, que aquilo que pretendo com eles se torne claro

■i medida cm que avançamos. Devo esclarecer, desde logo, dois pontos Primeiramente, que os utilizo apenas a título de descrição, semrneampar junto com eles nenhuma teoria sobre mudanças culturais.Tín segundo lugar, que reconheço a relatividade da distinção, pois

muitos modos de comportamentos característicos das “culturas da

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vergonha”, na realidade persistiram através dos períodos arcaico e

clássico. Há uma transição, mas ela é gradual e incompleta.Quando voltamos nossos olhares de Homero para a literatura

fragmentária da Grécia arcaica, e para aqueles escritores do períodoclássico que ainda preservam uma perspectiva arcaica1- como Píndaro, Sófocles, e, em grande parte, Heródoto uma das primeirascoisas que chamam nossa atenção é a percepção aguda da insegurança e do desamparo humanos (a^rixavia2); percepção queencontra seu correlato religioso no sentimento de uma hostilidade divina - não que a divindade seja encarada como algo malévolo, masno sentido de que seu poder e sabedoria superiores sempre impedem

o homem de se superar e de se elevar acima de sua esfera própria. Eesse sentimento que Heródoto exprime ao dizer que a divindade estásempre (j)0ov£pov t£ K a i xapaxcúôeç.3 “Ciumenta e pronta a interferir” , poderíamos traduzir, mas a tradução não é boa - alinal decontas, como tal poder dominante poderia sentir ciúmes de algo tão pobre quanto o homem? Seria melhor dizer que a idéia que está em jogo é a de que os deuses ressentem em nós algum sucesso ou felicidade capaz de elevar nossa mortalidade acima do seu  status normal,

usurpando, dessa maneira, algo que seria prerrogativa das divindades.É claro que tais idéias não eram inteiramente novas. Na  Ilíada 

 XXIV,  por exemplo, Aquiles, finalmente sensibilizado pelo espetáculo de seu inimigo Príamo derrotado, pronuncia a moral trágica detodo o poema: “Pois assim os deuses fiaram o destino da pobre humanidade: a vida do homem deve ser triste, e eles próprios isentosde cuidado.” E o personagem prossegue com a famosa imagem dos

dois potes, dos quais Zeus retira presentes bons e maus. A algunshomens ele concede uma mescla dos dois; para outros, o mal em estado puro, de tal modo que eles vagam atormentados sobre a face daterra, “descuidados de deuses e de homens” .4Quanto ao bem em es

tado puro, ele parece ser uma porção reservada aos deuses.Os potes nada têm a ver com a idéia de justiça. Do contrário, a

moral seria falsa, pois na  Ilíada o heroísmo não traz felicidade. Aúnica e suficiente recompensa para o heroísmo é a fama. No entan

to, os príncipes de Homero atravessam o mundo com ousadia; elestemem os deuses, mas apenas como temem seus líderes. Eles sequer se sentem oprimidos pelo futuro. Nem mesmo quando sabem, como

Aquiles, que estão próximos da perdição.

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D a   c u l t u r a   d a   v e r g o n h a   à   c u l t u r a   d a   c u i ,i’A  M 

O que encontramos até aqui a respeito da era arcaica não é umacrença diferente, mas uma reação emocional diferente em comparação com um período ainda mais antigo. Ouçamos, por exemplo,

Semonides de Amorgos: “Zeus controla a realização de tudo que c,e dispõe disso conforme a sua vontade. Mas a capacidade dc intuir não pertence aos homens - vivemos como bestas, sempre a mercêdaquilo que o dia pode nos trazer, nada sabendo do resultado daquilo que os deuses impuseram sobre os nossos atos” .5 Ou entãoouçamos Teógnis: “Nenhum homem, Cirnos, é responsável por sua própria ruína ou sucesso - as duas coisas são concedidas pelos deu

ses. Nenhum homem pode realizar uma ação e saber se seu resultadoserá bom ou ruim... A humanidade segue seus hábitos fúteis em com p leta cegueira; mas os deuses encam inham tudo para o fim planejado” .6 A doutrina de que somos inevitavelmente dependentesde um poder arbitrário não é nova, mas aqui se ressalta ainda maisseu aspecto inexorável, enfatiza-se de modo novo e mais amargo afutilidade dos objetivos humanos. Estamos mais próximos do mundo do  Édipo Rei do que do mundo da  Ilíada.

Aliás, este é bem o caso da idéia de  phthonos [inveja, ciúme],ou de ciúme divino. Ésquilo estava certo ao chamá-la “veneráveldoutrina proferida há muito tempo atrás” .7 A noção de que oexcessivo sucesso traz consigo um perigo sobrenatural, sobretudo sefazemos alarde sobre tal êxito, surgiu de maneira independente emdiferentes culturas8 (nós próprios o admitimos quando, por exemplo,“batemos na madeira”). A  Ilíada o ignora, como também ignora

outras superstições populares, mas na Odisséia o poeta - sempre maistolerante com modos de pensamento contemporâneos - permite aCalipso exclamar que os deuses são os seres mais ciumentos domundo - eles invejam a felicidade de qualquer um, por mais pequenaque ela seja .9 É evidente porém, a julgar pelo desinibidoexibicionismo que o homem homérico adota, que ele não leva os

 perigos do  phthonos muito a sério - tais escrúpulos são, na verdade,estranhos para uma cultura baseada na vergonha. E apenas no períodoarcaico tardio, e nos primórdios dos tempos clássicos, que a idéia de

 phthonos se torna uma ameaça opressiva, uma fonte - ou umaexpressão - de ansiedade religiosa. Assim é em Sólon, em Esquilo,e sobretudo em Heródoto. Para este últ imo a história ésobredeterminada - enquanto aparece abertamente como resultado de

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 p ropó sito s hum anos, tam bém deixa ao o lhar pene tran te a possibilidade de detectar por toda a parte o dissimulado trabalho do phthonos. Dentro deste mesmo espírito, o Mensageiro, na tragédia

Os persas, atribui a falta de sabedoria tática de Xerxes em Salaminaà astúcia dos gregos que o enganaram, e ao mesmo tempo ao phthonos dos deuses, trabalhando por meio de um alastorw ou deum mau daemon - o acontecimento é, portanto, duplamentedeterminado, sobre um plano natural e sobre outro sobrenatural.

Através dos escritores desse período, o  phthonos divino surgirá, às vezes,11 mas nem sempre, 12 como moralizado - uma nemesis [vingança dos deuses, por oposição ao orgulho dos homens] ou uma

“justa indignação”. Entre o crime primitivo de sucesso demasiado esua punição pela divindade enciumada, introduz-se um liame moral:

diz-se que o sucesso produz koros [saciedade, orgulho] - a complacência do homem que cumpre um feito bem demais, gerando emresposta uma hubris [excesso, insolência, violência divina], palavras,feitos ou pensamentos arrogantes. Assim interpretada, a velha crença parece algo mais racional, mas não deixa de ser, por isso, menosopressiva. Vemos assim, a partir da cena da relva no  Agamenon, de

que maneira toda manifestação dc triunfo termina por despertar sentimentos ansiosos de culpa —a luibris tornou-se o “mal primordial”,o pecado retribuído com morte, que é porém tão universal que chega a ser chamado em um hino homérico de themis [justiça, direito,decreto - antigo com relação à Sncr)] (algo que se estabeleceu comoum costume de toda a humanidade, e que o poeta Arquíloco atribuiaté mesmo aos animais). Os homens sabiam o quão perigoso era ser feliz.13 Mas tal obstáculo tinha também, sem dúvida, um lado salutar. É significativo a esse respeito que quando Eurípedes, dentro deuma nova era de ceticismo, faz o coro de sua tragédia lamentar ofim dos critérios morais, os homens vejam a prova cabal de tal colapso no fato de que “os homens já não visam mais escapar ao

 phthonos dos deuses” .14A moralização do phthonos nos conduz a um segundo traço ca

racterístico do pensam ento religioso arcaico - a tendência a

transformar o sobrenatural em geral, e Zeus em particular, em algocomo um agente da justiça. É quase desnecessário dizer que religiãoe moral não eram interdependentes no início da civilização, gregaou humana em geral. Suas raízes eram separadas. Falando de um

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 passo que, na verdade, são eles que por seus atos vis atraem para si próprios mais problemas do que o necessário ” .21 Tal observação,colocada no início do poema soa, como diriam os alemães,

“programática”, e o programa é levado a cabo. Os^pretendentesatraem destruição por seus atos vis,22 enquanto Ulisses, atento àsadvertências divinas, triunfa contra todas as expectativas - justiçadivina é feita.

Os estágios posteriores da educação moral de Zeus podem ser estudados em Hesíodo, Sólon e Ésquilo, mas não posso aqui seguir esta evolução em detalhe. Devo, porém, mencionar uma complicação de grandes conseqüências históricas. Os gregos não eram tão ir

realistas a ponto de não querer ver o horror que não parava deflorescer. Hesíodo, Sólon e Píndaro são escritores profundamente incomodados com este fato banal, e Teógnis chega a julgar necessárioter uma conversa direta com Zeus a esse respeito.23 Era bastante fácil reclamar a justiça divina em uma obra de ficção como a Odisséia  pois como observou Aristóteles, “os poetas contam tal tipo de histórias para satisfazer os desejos do público”.24Mas as coisas não eramtão fáceis na vida real. No período arcaico os “moinhos de Deus”

trabalhavam tão lentamente que seu movimento era praticamente im perceptível, exceto para aquele de olhar crédulo. Para manter a crençadc que eles realmente se moviam, foi necessário se libertar dos limites temporais fixados pela morte. Enfim, se alguém olhasse para alémdaqueles limites, seria possível afirmar uma (ou ambas) das duas alternativas seguintes: ou o bem-sucedido pecador seria punido na figura de seus descendentes, ou pagaria sua dívida pessoalmente em

outra vida.A segunda dessas soluções acabou emergindo como uma doutrina de aplicação geral, mas apenas ao final do período arcaico. Elaacabou confinada a limites bastante estreitos. Adiarei minhas considerações a seu respeito para um outro capítulo. Quanto à primeirasolução, trata-se da própria doutrina arcaica - os ensinamentos deHesíodo, Sólon, Teógnis, Esquilo e Heródoto. O fato de implicar osofrimento de pessoas moralmente inocentes era algo claro para to

dos. Sólon, por exemplo, fala das vítimas hereditárias da nemesis como de ocvamoi (“não responsáveis”). Teógnis reclama da injustiça de um sistema pelo qual “o criminoso é bem-sucedido, enquantooutra pessoa sofre a punição depois”. Ésquilo, se compreendo bem.

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D a   c u l t u r a   d a   v e r g o n h a   à   c u l t u r a   d a   c u l p a

acabaria por diminuir o aspecto de injustiça admitindo que uma maldição herdada pode ser quebrada.25 Que tais homens aceitassem, apesar de tudo, a idéia de uma culpa herdada e de uma punição adiada,

eis algo que se deve à crença na solidariedade familiar, compartilhada pela Grécia arcaica com outras sociedades dos primórdios,26e tam bém com muitas culturas primitivas de hoje.27 Tudo isso pode parecer injusto, mas estas eram leis da natureza que deveriam ser aceitas. Afinal, a família era uma unidade moral; a vida do filho era um prolongamento da vida do pai,28 e ele herdava a dívida moral dos paisexatamente como herdava suas dívidas comerciais. Cedo ou tarde adívida vinha cobrar seu pagamento. Como dizia Pítia a Creso, o nexocausai entre crime e castigo era a moira - algo que nem mesmo umdeus poderia quebrar (Creso tinha que completar ou realizar -SKTtXeaat - o que havia começado com o crime de um ancestral cinco

gerações antes).29Foi uma infelicidade para os gregos que a idéia de justiça cós

mica que representava um avanço com relação à noção anterior de poderes divinos puramente arbitrários, e que conferiu uma sanção para

a nova moralidade cívica - acabasse sendo associada à concepção primitiva da família, pois isso implicou que o peso do sentimento religioso e da lei decorrente bloqueasse a emergência de uma verdadeiravisão de indivíduo, concebido como uma pessoa com direitos e res

 ponsabilidades próprios. Tal visão individual veio emergir durante alei secular ática. Como mostrou Glotz, na sua grande obra  La 

 solidarité cie lafamille em Grèce,™a liberação do indivíduo, dos ,gri-_ 

Ihões do clã e da família, é uma das maiores realizações doracionalismo grego, e aígo que deve ser creditado à democracia ateniense. Mas as mentes religiosas eram ainda assombradas pelofantasma da velha solidariedade, mesmo bem depois da liberaçãocompleta no campo das leis. Através de Platão, vemos que no século IV a.C. tudo ainda apontava para um homem encoberto pela culpahereditária, devendo ainda pagar uma catharte ipagar uma %a0ccpTr|Ç- obter purificação] para obter uma libertação ritual desse peso .’ 1 O

 próprio Platão, em bora aceitasse a revolução da lei secular, admiteuma herança religiosa de culpa em alguns casos.12 Um século depois,Bion de Borístenes ainda achava necessário observar que, ao punir o filho pelo crime do pai. Deus se comportava como um médico quedeve cuidar da criança a fim de curar o adulto; e o devoto Plutarco,

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que cita o dito espirituoso tenta, apesar de tudo, encontrar uma defesa para a velha doutrina apelando para certos fatos dahereditariedade.33

Voltando à era arcaica, foi também uma infelicidade que as funções atribuídas a esta instância sobrenatural moralizada fossem predominantemente, senão exclusivamente, de ordem penal. Ouvimos muito falar de culpa herdada, mas pouco de inocência herdada;muito sobre os sofrimentos do pecador no Inferno ou no Purgatório,mas relativamente pouco sobre as recompensas tardias concedidas por atos de virtude - a ênfase é dada sempre às sanções. Sem dúvida,isso reflete as idéias jurídicas daquele tempo - a lei criminal prece

dia a lei civil, a função básica do Estado era coercitiva. Além de tudo,a lei divina, a exemplo da lei humana dos primórdios, não leva emconta os motivos da ação, e tampouco considera a fraqueza humana.Ela é destituída daquilo que os gregos chamavam eteieikeicx ou(|)iAav9 pco7u a [medida, indulgência, filantropia], O provérbio popular daquele período, de que “toda virtude é compreendida na justiça ” ,34aplica-se não menos aos deuses do que aos homens - em ambos oscasos havia pouco espaço para a piedade. Não era assim na  Ilíada:

Zeus ali se apieda dos desgraçados Heitor e Sarpédon, e de Aquilesque vela o falecido Pátroclo, e mesmo dos cavalos de Aquiles quevelam seu cocheiro.35 lie^ODGi |iot oÀ-Aajiíevoi 7iep, ele afirma na

 Ilíada  XXI - “eu me preocupo com eles, embora eles acabem perecendo”. Mas, ao tornar-se a encarnação da justiça cósmica, Zeus

 perdeu sua humanidade. Por isso, o “Olimpianismo moralizado” tendeu a tornar-se uma religião do medo, em uma tendência que serefletiu sobre o vocabulário religioso. Não há nenhuma palavra para

“temente a deus” na  Ilíada, mas na Odisséia ser 0eot)8r|ç já constitui uma virtude importante, e a prosa equivalente (Seicn,ôat|i<BV[medo dos deuses]), seria utilizada como um termo elogioso até aépoca de Aristóteles.36 Por outro lado. o amor a deus está ausente dovocabulário grego mais antigo37 - (|)iXo0£OÇ aparece pela primeiravez em Aristóteles. De fato, dos deuses olímpicos maiores, talvez apenas Atena tenha inspirado uma emoção que poderia ser descrita comfacilidade como sendo amor. “Seria esquisito”, diz-se na  Magna  

 Moralia, “alguém clamar seu amor a Zeus” .38Isto me faz retornar ao último aspecto geral que pretendo res

saltar -- o medo universal da “conspurcação” (miasma [|J.iaG|ia -mancha, mácula, nódoa]) e seu correlato, a ânsia também universal

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D a c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a ■3

 por purificação através de rituais (catharsis). Aqui, mais uma ve/„ adiferença entre Homero e o período arcaico é relativa e não absoluta, pois seria um erro negar que há um mínimo de catarse em ambos

os épicos.39 Mas das simples purificações homéricas, praticadas por leigos, até as cathartai do período arcaico, com seus rituais confusos e elaborados, realiza-se um grande passo. E é um passo aindamaior o que vai da tranqüila aceitação de Telêmaco, face a um criminoso confesso, companheiro de embarcação, às suposições que

 permitiriam, já no final do século V a.C., alegar inocência por um talcrime simplesmente porque o navio chegou ao porto são e salvo .40Conseguiremos avaliar melhor a diferença entre as duas atitudes se

compararmos a versão homérica da saga de Édipo com aquela maisconhecida de todos nós, de Sófocles. Nesta última, Édipo se tornaum pária conspurcado por seu crime, encurralado entre o peso da cul pa “que nem a terra, nem a chuva sagrada ou o sol podem aceitar.”Mas já na história conhecida de Homero, ele continua a reinar emTebas mesmo depois de descoberta sua culpa, para, em seguida,morrer durante uma batalha, sendo enterrado com honras reservadasaos reis.41 Aparentemente foi através de um épico continental e pos

terior, as Tebanas, que se criou a imagem sofocleana de um “homemdesgraçado” .42

 Não há em Homero nenhum traço da crença de que essa “cons- purcação” fosse infecciosa ou hereditária. Na visão arcaica, porémela era tanto uma coisa quanto a outra,43 e é nisso que reside seu terror. Afinal de contas, como um homem poderia ter certeza de nãoter contraído o mal por meio de um contato acidental, ou mesmo herdado o mal de um crime esquecido, cometido por algum ancestralremoto? Tais ansiedades eram ainda mais angustiantes por seu caráter completamente vago - a impossibilidade de vinculá-las a umacausa que pudesse ser reconhecida e enfrentada. Enxergar nessascrenças a origem da culpa no sentido arcaico é, provavelmente, umaexagerada simplificação, mas certamente havia algo disso nelas, damesma forma como a culpa em sentido cristão pode encontrar suaexpressão no medo de cair em pecado mortal. A distinção entre as

duas situações é, evidentemente, que o pecado condiciona a vontade, ele é uma doença na íntima consciência do homem, enquanto aconspurcação é a conseqüência automática de uma ação; ela pertence ao mundo exterior dos eventos, e opera com a mesma cruaindiferença aos motivos de um germe tifóide.44 Em um sentido estri

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44 OS GREGOS E O IRRACIONAL

to, a culpa no sentido arcaico, torna-se pecado apenas como resultado daquilo que Kardiner 45chama “internalização” da consciência -um fenômeno que surge tarde e de modo incerto no mundo helêni-

co, e não se torna comum senão após o reconhecimento dos motivos pela lei secular .46 Da mesma maneira, a transferência da noção de pureza, da esfera mágica para a esfera moral, foi um desenvolvimentotardio - até os últimos anos do século V a.C. ainda não encontramosafirmações explícitas de que não basta ter as mão limpas, mas que o

coração também deve estar limpo .47Devemos, porém, desconfiar de linhas cronológicas rígidas. Cer

tas idéias atuam freqüentemente de modo obscuro no comportamento

religioso, muito antes de chegarem a receber uma formulação explícita. Creio que Pfister está provavelmente certo ao observar que asidéias de conspurcação, maldição e pecado já se encontram fundidas desde o início48na antiga palavra grega ayoç (termo que descreveo pior tipo de mias/na). Enquanto no período arcaico a catarse não passava do cumprimento mecânico de um ritual obrigatório, a noçãode uma purificação automática e quase física podia atravessar diversas gradações imperceptíveis até atingir o sentido profundo de

“indenização por pecado cometido” .49 Segundo alguns registros, restam poucas dúvidas de que tal modo de pensar se encontrava ligado, por exemplo , ao extraordin ário caso do tributo lócrida.50 As pessoasque estavam dispostas a compensar os crimes de algum ancestral remoto, através de anos e de séculos, por meio do envio das filhas paraserem mortas ou para tornarem-se escravas em algum país distante -estas pessoas devem ter vivido não apenas sob o medo de uma peri

gosa conspurcação, mas também sób o signo de um horrível pecadoancestral a ser indenizado.Voltarei ao tema da catarse no último capítulo. Agora, porém,

é hora dc retornarmos à noção de intervenção psíquica que já estudamos em Homero e nos perguntarmos que papel ela desempenhounos contextos religiosos completamente distintos da era arcaica. Ocaminho mais simples para responder a isso é através da observaçãode alguns usos pós-homéricos da palavras, ate (ou de seu equivalen

te 0eop ^a|3eta) e daemon. Ao procedermos desse modo veremos queem alguns aspectos a tradição épica aparece reproduzida com impressionante fidelidade.  Ate ainda serve para expressar o irracional,distinto do comportamento cujos fins seriam racionais. Por exemplo,

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D a c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a

ao ouvir que Fedra não comerá nada, o coro pergunta se a atitude sedeve à ate ou a algum propósito suicida ,51 O lugar em que ela se manifesta é ainda o thumos ou  phrenes [(j)p£VT|Ç -■ alma ou razão],5" e

os agentes causadores são os mesmos de Homero - na maior partedas vezes um daemon não identificado, um deus ou deuses, muitoraramente um deus olímpico específico,53 ocasionalmente, como emHomero, uma Erínia54ou moira,55 uma única vez, como na Odisséia, 

o vinho.56Mas há também outros importantes desenvolvimentos a

considerar. Em primeiro lugar, a ate é freqüentemente, embora nemsempre, moralizada, ao ser representada como um castigo. Isto

aparece apenas uma vez em Homero (na  Ihada IX) e posteriormenteem Hesíodo, que faz da ate uma punição da hubris, observando comentusiasmo que “nem mesmo um nobre” pode escapar dela .57 Comooutros castigos sobrenaturais, ela cairá sobre os descendentes dos pecadores se a “dívida má” não for paga durante a vida destes.5KA partir desta concepção da ate como castigo o uso da palavra seexpande. Ela é aplicada não apenas ao estado mental do pecador, mas

também aos desastres ob jetivos que resultam dali - assim por exemplo, os persas cm Salamina experimentam atai marinhas , eas ovelhas abatidas são a ate de Ajax.5' A ate adquire, assim, osentido geral de “ruína”, por contraste com K£p5oç ou GCOTr|pia 

[conservação, saúde],611 ainda que na literatuia o termo mantenhasempre a conotação de ruína determinada de modo sobrenatural. Edentro de um espectro ainda mais amplo, a ate é por vezes aplicadatambém aos instrumentos ou encarnações da ira divina - o Cavalo

de Tróia é uma ate, e Antígona, juntamente com Ismênia, são “um par de atai” para Creonte.61 Tais empregos do termo encontram suaraiz no sentimento e não na lógica; o que eles expiessam é aconsciência de um nexo dinâmico e misterioso - o (J£VOÇ oar iç [umalouca paixão de natureza divina] de Ésquilo - unindo crime e castigo,com todos os elementos da unidade sinistra sendo, em um sentido

geral, vistos como ate.62Diferente deste desenvolvimento um tanto vago, é a interpreta

ção teológica mais precisa que faz da ate não simplesmente uma punição conduzindo a desastres físicos, mas um truque deliberado para induzir a vítima ao erro mais crasso, moral ou intelectual, masatravés do qual ele acaba por precipitar a própria ruína. É a severadoutrina latina que quem deus vult perdere, prius dementai [primei

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ro se enlouquece para então perder a imagem de deus], Há uma alusão a isso na  Ilíada IX na qual Agamenon chama sua ate de “mauengano” (caicari) arranjado por Zeus. mas não há nenhuma afirmação geral da doutrina em Homero ou em Hesíodo. O orador Licurgo

63a atribui a “certos antigos poetas” que não são porém especificados,e cita de um deles uma passagem em versos iâmbicos: “quando oódio dos daemons está ferindo um homem, a primeira coisa que acontece é que ele retira dele a capacidade de bem discernir e o conduzao pior dos juízos, de maneira que ele não consegue mais se conscientizar de seus próprios erros.” De modo similar, Teógnis64declaraque um homem que persegue a “virtude” e o “lucro” está sendo de

liberadamente enganado por um daemon, que provoca sobre ele umaconfusão entre bem e mal, bom (proveitoso, lucrativo) e ruim. Aquia ação do daemon não é de modo algum moralizada - ele parece umsimples espírito mau, tentando o homem à danação.

Que tais espíritos maus fossem realmente temidos durante o período arcaico também é algo atestado pelas palavras do Mensageiro,em Os persas, já citado em outro contexto - Xerxes foi tentado por um “alastor"  ou “mau daemon"  (demônio). Mas Ésquilo sabe me

lhor do que o personagem - como explica o fantasma de Dario posteriormente, a tentação foi um castigo da hubris,65 O que na visão parcial dos vivos surge como o ato de um demônio, será percebido

na intuição mais vasta dos mortos como uma manifestação de justiça cósmica. No  Agam enon encontramos novamente a mésmainterpretação em dois níveis. Onde o poeta, falando através do coro,é capaz de detectar a vontade dominadora de Zeus (n a v a m o v ,ítavepyexa)66 agindo através de uma inexorável lei moral, seus per

sonagens vêem unicamente um mundo demoníaco, assombrado por forças malignas. Somos aqui lembrados da distinção, já observadanos épicos, entre o ponto de vista do poeta e o de seus personagens.Cassandra vê as Erínias como um bando de demônios embriagadosde sangue humano; para a excitada imaginação de Clitemnestra, nãoapenas as Erínias, mas a própria ate é um demônio pessoal a quemela ofereceu seu marido em sacrifício. Há até mesmo um momento

em que ela sente sua personalidade desaparecida e submersa na deum alastor do qual seria a agente e o instrumento .67 Este último casome parece mais um exemplo do que Lévy-Bruhl chama de “partici pação’ (o sentimento de que, em certas situações, uma pessoa ou

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D a  c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a culpa 47

coisa não é apenas si mesmo mas algo mais) do que exatamente de“possessão” no sentido usual. Eu compararia ainda o “aslulo gregoda tragédia de Esquilo (Os persas) (ele próprio um alastor) a sacer

dotisa Tirno em Heródoto - mulher que tentou Miltíades ao sacrilégioe da qual Apoio declarava não ser a causadora dos eventos, “masque Miltíades estava destinado a ficar doente pois algo lhe surgiu eo conduziu ao mal” .68 Timo teria agido, não como uma pessoa, mascomo uma agente cumpridora de um desígnio sobrenatural.

Esta atmosfera assombrada e opressiva na qual circulam os personagens de Ésquilo nos parece infinitamente mais antiga do que oar claro respirado pelos homens e deuses da  Ilíada. Glotz chamouÉsquilo de “aquele que retoma de Micenas” (apesar de acrescentar que ele também era um homem de seu tempo); eis por que um escritor alemão atual afirma que ele “reavivou o mundo dos daemons, especialmente dos maus daemons”.69 Mas falar desse modo é, a meuver, falhar completamente na compreensão dos objetivos de Ésquiloe do clima religioso de sua época. Ésquilo não precisava reavivar omundo dos daemons; este era o mundo em que ele havia nascido. E

seu objetivo não é conduzir seus companheiros e conterrâneos de volta a um tal mundo, mas ao contrário, guiá-los através e para fora dele.E ele procurou fazê-lo, não como Eurípides, lançando dúvidas sobrea realidade deste mundo através de argumentos intelectuais e morais,mas mostrando que ele poderia ser interpretado de um modo maiselevado e, no  Eumênides, apresentando este mundo, transformado

 pela ação de Atena, em um mundo de justiça racional.

Concebido como algo distinto do divino, o demoníaco desem penhou (e continua a desempenhar) um papel importante em todosos períodos da crença popular grega. Como vemos no livro I da Odis-

 séia , as pessoas atribuem o que ocorre em suas vidas, tanto no planomental como no físico, à ação de daemons anônimos. Ficamos, entretanto, com a impressão de que elas nem sempre falam sério. Porém,no período que se estende entre a Odisséia e a trilogia da Oréstia, os daemons parecem chegar ainda mais perto dos homens: eles setornam mais persistentes, mais insidiosos, mais sinistros. Teógnis eseus contemporâneos levavam a sério o daemon que impulsiona ohomem à ate. como nas passagens que acabei de citar. A crença semanteve na mentalidade popular muito depois de Ésquilo. A ama de

 Médeia sabe que a ate é obra de um daemon irado, e o vincula à

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velha idéia de  phthonos - quanto maior o trabalho doméstico maior a ate\ apenas os que vivem na obscuridade estão livres dela .70E mesmo tão distante no tempo como no ano 330, o orador Esquinessugeria, ainda que de modo cuidadoso (com um “talvez”), que o camarada rude que interrompeu seu discurso pode ter sido levado a umcomportamento tão impróprio por “algo de demoníaco” (ôai|.ioviouxivoç rapayoiaevoD ).71

Intimamente ligado a este agente de ate são os impulsos irracionais que brotam no homem para tentá-lo contra a sua vontade. Assim,quando Teógnis chama a esperança e o medo de “perigososdaemons”, ou quando Sófocles fala de Eros como de um poder que

“trama para seduzir a mente justa, com vistas à sua destruição” ,72 nãodevemos desqualificar as passagens como uma mera “personificação”.Por detrás disso está ainda o velho sentimento homérico de que essas coisas não pertencem realmente ao “eu”, já que elas não estãosob o controle da consciência humana. Elas são dotadas de uma vitalidade e energia próprias, e por isso podem forçar o homem a umaconduta estranha. Veremos nos capítulos finais, que traços marcantes deste tipo de interpretação das paixões sobrevivem mesmo na obra

de autores como Eurípides e Platão.De tipo diferente são os daemons projetados em meio a uma

situação particular. Como disse o professor Frankfort a respeito deoutros povos antigos, “os espíritos maus são, freqüentemente, nadamais do que o mal ele próprio concebido como algo substancial, equi pado com algum poder ” .73 Assim, os gregos falavam de fome e da peste como se fossem “deuses” .74 Desse mesmo modo, o ateniensemoderno acredita que uma fenda na colina das ninfas é habitada por 

três demônios cujos nomes são Cólera, Praga e Catapora. São forças poderosas em cujas garras a humanidade se encontra sem saída, mas para as quais a divindade é poderosa. O persistente poder e pressãode uma conspurcação hereditária pode, assim, tomar forma como oSca|iwv "yEVvriç [produto do daemon [de Ésquilo. Em caso mais es pecífico, a situação de culpa consangüínea é projetada na figura deuma Erínia.75 Como vimos anteriormente, tais seres não são totalmente externos às ações humanas e suas vítimas - Sófocles pode, por exemplo, falar de “uma Erínia no cérebro” .76

 No entanto elas agem objetivamente, pois representam a norma objetiva de que é preciso limpar e reparar o sangue de uma

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D a   c u l t u r a   d a   v e r g o n h a   à   c u l t u r a   d a   c u l p a 49

linhagem. Só mesmo Eurípides e T.S. Eliot* para psicologizá-lascomo pesos da consciência.77

Um terceiro tipo de daemon e que faz sua primeira aparição

no período arcaico - encontra-se ligado a um indivíduo particular,normalmente desde o seu nascimento, determinando total ou parcialmente o seu destino. Encontramos este indivíduo primeiro emHesíodo e Fóclides.78 Ele representa a moira individual ou a “porção” de que fala Homero,79 mas de uma forma pessoal capaz de atrair a imaginação no seu tempo. Freqüentemente ele parece ser nada maisdo que a “sorte” de um homem ,80 mas tal sorte não é concebida comoum acidente sem explicação - ela pertence ao homem tanto quantosua beleza ou seu talento para algo. Teógnis, aliás, lamenta que tudona vida dependa mais do daemon do que de caráter - se o seu daemon é pobre, um bom julgamento de nada serve pois, de qualquer modo,suas ações não serão bem-sucedidas.81 Heráclito protesta em vão que“o caráter é o destino” (r|0oç otvBpconco 8ai(i(tív); mas na verdadeele não consegue vencer a superstição. Na realidade, parece que as

 palavras KCXKOÔat|iC0v e 5\)(i§at|_i<i>v [desgraça, perdição causada por 

um daemon] foram cunhadas no século V a.C. (já euôaiiioov é umtermo tão antigo quanto Hesíodo). Heródoto não vê na fatalidade quese abate sobre grandes reis e generais (como Candaulo e Miltíades)nenhum acidente externo e nem mesmo a conseqüência de um caráter, mas aquilo que “tem que ser” - xp iiv yap kocvSocuàxi yeveaBaiKcctccoç.82 Píndaro reconcilia de maneira piedosa esse fatalismo po

 pular com a vontade de Deus: “é o grande propósito de Zeus que

dirige o daemon dos homens a quem ele ama”.83Enfim há Platão querecolheria e transformaria completamente a idéia, como aliás fariacom muitos outros elementos da crença popular - o daemon torna-se uma espécie dc guia superior do espírito (um superego freudiano84)que no Timeu é identificado como o elemento da pura razão no homem .85 Sob este manto glorioso, tornado respeitável, tanto do pontode vista moral quanto do ponto de vista filosófico, o daemon gozaria de uma renovada imagem nas páginas dos pensadores estóicos e

neoplatônicos, e até mesmo de alguns escritores cristãos medievais .86

* T.S. Eliot, poeta, crítico e dramaturgo britânico de origem norte-americanacujos principais temas são a penitência e a redenção. (N. da T.)

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50 O s GREGOS E O IRRACIONAL

Eis então alguns dos daemons que fizeram parte da herança religiosa do século V a.C. Não procurei traçar aqui um amplo paineldesta herança. Outros aspectos só aparecerão nos capítulos subse

qüentes. Mas não podemos prosseguir sem perguntar algo que já deveter ocorrido ao leitor: como devemos conceber a relação entre a “cultura da culpa” que descrevi acima e a “cultura da vergonha” tratadano primeiro capítulo? Que forças históricas determinam a diferençaentre elas? Tentei indicar que tal contraste é menos absoluto do que

 pensam alguns estudiosos. Seguimos várias linhas de raciocínio levando de Homero até a confusão do período arcaico, e ainda maislonge, até o século V a.C. Não se trata aqui de uma total desconti-

nuidade. Entretanto, uma verdadeira diferença de perspectiva religiosasepara o mundo de Homero, mesmo daquele que encontramos emSófocles, que é chamado de “o mais homérico dos poetas”. Seria possível adivinhar as causas subjacentes de uma tal mudança?

Para esta questão não podemos esperar uma resposta única esimples. Por uma razão: não estamos lidando com uma evolução histórica contínua, pela qual passamos gradualmente de um tipo de

 perspectiva religiosa para outra. Não precisamos, na verdade, adotar 

a posição extrema que vê a religião homérica como nada mais doque uma invenção poética, “distante da realidade e da vida, assimcomo a sua linguagem artificial” .87 Mas há uma boa razão para su por que os poetas épicos ignoravam ou minimizavam muitas crençase práticas que existiam em seus dias, sem no entanto elogiar a si pró prios por isso diante de seus patronos. Por exemplo, a velha magiacatártica do bode expiatório foi praticada na Jônia no século VI a.C.,

tendo sido presumivelmente levada até lá pelos primeiros colonizadores, já que o mesmo ritual foi observado na Ática.88 Os poetas da Ilíada e da Odisséia devem tê-lo visto com freqüência, mas excluíram a prática de seus poemas, como aliás excluíram muitas outrascoisas que lhes pareciam bárbaras, tanto a eles quanto ao público dealta classe. Dão-nos algo que não é completamente dissociado dacrença tradicional, mas que é fruto de uma  seleção de alguns aspectos desta crença - uma seleção que caía bem para uma cultura militar 

aristocrática, do mesmo modo como Hesíodo nos dá uma seleção queera apropriada à cultura camponesa. A não ser que admitamos taisfatos, ficará sempre a exagerada impressão de descontinuidade histórica.

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Da  c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a 51

 No entanto, mesmo quando admitimos tudo isso, resta um im-

 portante resíduo de diferenças que parecem representar não mais seleções de uma cultura comum, mas mudanças culturais genuínas. 

Apesar da escassez de fontes, podemos traçar o desenvolvimento de algumas destas mudanças dentro da era arcaica. Até mesmo Pfister, 

 por exemplo, reconhece “um inegável crescimento nos sentimentos 

de ansiedade e pavor na evolução da religião grega” .89É verdade que 

as noções de conspurcação, de purificação e de phthonos divino po-

dem muito bem ser partes de uma herança original indo-européia. Mas 

é a era arcaica que relança os relatos de Édipo e Orestes como estó-rias de horror sobre culpa consangüínea. Isto fez da idéia dc 

 purificação uma das preocupações centrais da maior instituição religiosa da época (o Oráculo de Delfos) que magnificou a importânciado  phthonos até um ponto em que ele se torna na obra de Heródotoo padrão subjacente dc toda a história.

Este é o tipo de fato que temos que explicar, mas confesso desde já que não possuo uma resposta completa para fornecer. Possoapenas arriscar algumas respostas parciais. Sem dúvida as condições

sociais gerais têm aí um papel de destaque.9" Na Grécia continental(e estamos preocupados aqui exatamente com esta tradição continental) o período arcaico foi uma época de extrema insegurança pessoal.Os pequenos estados superpovoados estavam apenas começando aluta para sair da situação de miséria e pobreza deixada pelas invasões dóricas, quando surgiram novos distúrbios - todas as classessociais foram arruinadas pela grande crise econômica do século VII

a.C., seguida, por sua vez, pelos grandes conflitos políticos do século VI a.C. que traduziram a crise em termos de uma criminosa lutaentre classes. É bem provável que ao tornar proeminentes alguns elementos ocultos da mescla da população, o levante social tenhaencorajado o ressurgimento de velhos padrões de cultura não com pletamente esquecidos do povo.91 Além disso, as condições de vidamarcadas pela insegurança podem, por si próprias, ter favorecido odesenvolvimento da crença nos daemons, com base na idéia de uma

inelutável dependência do homem com relação a um poder caprichoso. Isto pode ainda encorajar um insistente recurso a procedimentosmágicos, se assumirmos a tese de Malinowski de que a função biológica da magia é aliviar-nos de sentimentos frustrados e reprimidos

 para os quais não encontramos uma saída racional.92 É também pos

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sível, como sugeri anteriormente, que para algumas mentes a experiência contínua de injustiça sobre os homens possa ter dado margemà crença compensatória de que deve haver justiça no paraíso. Não é,

sem dúvida, por acaso que Hesíodo é o primeiro grego a pregar uma justiça divina - “o poeta dos helotas” , como o chamava o rei Cleo-m e ne s ,93 homem que havia sofrido por “juízos desonestos”.

Tampouco é por acaso que neste período a figura de ricos e podero

sos sofrendo de perdição se torne um tema tão popular entre os poetas94 - em violento contraste com Homero para quem, como observou o professor Murray,95 os homens ricos são especialmente aptos

à virtude.Estudiosos mais prudentes do que eu ficarão certamente con

tentes com tais conclusões genéricas e seguras. Creio mesmo que elassão válidas com relação ao tratado até aqui. Mas como explicação

 para evoluções mais específicas sofridas pelo sentimento religiosoarcaico - em particular para o crescente sentimento de culpa - estasconclusões não me convencem inteiramente. Eu até arriscaria umasugestão de que elas devem ser suplementadas (mas não substituí

das) por um outro tipo de abordagem, tomando seu ponto de partidanão na sociedade como um todo, mas sim na família. A família era a pedra fundamental da estrutura social arcaica, a primeira unidade organizada, o primeiro domínio da lei. Sua organização, como em todasas sociedades indo-européias, era patriarcal - a lei era  patr ia  

 potestas96 [chefe da casa]. O chefe da casa é seu rei, o i k o i o ocvaÇ[o poder da pátria]; e sua posição é ainda descrita por Aristótelescomo análoga a de um rei.97 Sua autoridade sobre as crianças é ili

mitada nestes tempos primordiais - ele é livre para expô-las durantea infância, e para, na idade adulta, expulsar da comunidade um filhoerrante ou rebelde - como Teseu expulsou Hipólito e Eneu fez comTideu, ou Estrófio com Pilades, ou como o próprio Zeus ao banir Hefaístos do Olimpo por este ter se colocado do lado da mãe .98 Emrelação ao pai, o filho tinha deveres mas não direitos; enquanto o

 pai vivesse ele era um menor perpétuo - um estado de coisas quedurou em Atenas até o século VI a.C., quando Sólon introduziu cer

tas salvaguardas.99 Na verdade, mais de dois séculos depois de Sólon,a tradição da jurisdição familiar ainda era tão forte que mesmo Platão - que certamente não era um admirador da idéia de família - teveque abordar a questão na sua legislação.10"

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D a c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a 53

Enquanto o velho sentido de solidariedade familiar não fosseabalado, presumia-se que o sistema funcionaria. O filho dava ao paia mesma obediência sem questionamentos que ele deveria receber,

 por sua vez, de seus próprios filhos. Mas com o relaxamento dos laços familiares, com a crescente reivindicação de direitos individuaise de responsabilidade da pessoa, desenvolvem-se aquelas tensões internas que viriam caracterizar a vida familiar das sociedadesocidentais. Que elas tivessem de fato começado a aparecer claramenteno século VI a.C., é algo que podemos inferir da intervenção legislativa de Sólon. Mas há também uma grande parte de testemunhoindireto para este tipo de influência velada. O horror característicocom que os gregos viam as ofensas ao pai e as sanções religiosas àsquais acreditava estar se expondo aquele que ofendia, tudo isso sugere um clima de repressões fortes .101 Assim também as muitasestórias nas quais uma maldição paterna produz terríveis conseqüências - estórias como a de Fênix, Hipólito, Pélopes e seus filhos,Édipo e seus filhos; todas seriam resultado de um período relativamente tardio102 em que a posição do pai já não era mais inteiramente

segura. Também sugestiva, em sentido algo distinto, é o bárbaro contode Cronos e Urano que a Grécia arcaica pode ter ido buscar em fontes hititas. Nelas, o projeto mitológico de desejos inconscientes surgede forma muito transparente - como talvez tenha sido sentido por Platão, ao declarar que a estória em questão era feita para ser comunicada unicamente aos poucos que se encontrassem cm estado de puGiripio v [mistério, enigma], e deveria ser mantida longe do alcance dos jovens, a qualquer preço.103 Mas para o olhar do psicólogo,

o fato mais significativo é fornecido por certas passagens de escritores da Idade Clássica. O típico exemplo está nos prazeres da vidailustrados por Aristófanes na “terra dos pássaros das nuvens” - umverdadeiro país dos sonhos no que concerne à realização de nossosdesejos. Ali é dito que se alguém for capaz de sobrepujar o próprio pai, o povo irá admirá-lo - trata-se de KaXov e não de ato%pov [beleza e feiúra],PE quando Platão quer ilustrar o que ocorre quando

controles racionais não funcionam, seu exemplo é o sonho de Édi po. O testemunho é confirmado por Sófocles que faz Jocasta declarar que tais sonhos são comuns; e por Heródoto que cita um destes sonhos."15 Não parece absurdo deduzir uma mesma causa de sintomasidênticos, e nem tampouco concluir que a situação familiar da Gré

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cia antiga, a exemplo da situação familiar nos dias de hoje, tenha leitonascer conflitos infantis cujos ecos deixariam traços no inconscientedas mentes adultas. Com o advento do movimento sofistico, o con

flito tornou-se algo completamente consciente em muitos lares - jovens começaram a reivindicar “um direito natural” de desobedecer os pais.1"6Mas é justo supor que tais conflitos já existiam inconscientemente desde uma data muito anterior; e que, na verdade, elesremetem aos mais primordiais e inconfessos arroubos individualistas de uma sociedade ainda baseada na solidariedade familiar.

Talvez os leitores vejam para onde tudo isso aponta. Psicólogos nos ensinaram como a pressão de desejos não assumidos pode

ser uma poderosa fonte de sentimentos de culpa. Estes desejos aca bam excluídos da consciência, mas não de sonhos e devaneios. Aindaassim eles são capazes de produzir no “eu” um sentido profundo dedesconforto moral. Nos dias de hoje, tal desconforto assume freqüentemente uma forma religiosa, e se o sentimento existisse na Gréciaarcaica, esta seria também a forma que assumiria, pois o pai tinha,

desde tempos primordiais, sua contrapartida celeste: Zeus  pater pertence à herança indo-européia, como indicam seus equivalentes latino

e sânscrito. Como mostrou Calhoun, o  status e a conduta do pai defamília homérico107  ( o i k o i o avaç) estão bem próximos do  status eda conduta de Zeus, que serve aliás de modelo para a primeira. Nomomento do culto, Zeus também aparece como um chefe de famíliasobrenatural - como Patros ele protege a família, como Herqueiosele protege sua moradia, como Ctesios ele protege suas posses. Eranatural projetar sobre o pai celeste os sentimentos mistos e estranhosque se nutria pelo pai humano e que os filhos não ousavam reconhe

cer. Isto poderia explicar muito bem porque na era arcaica Zeus surge, por vezes, como uma fonte imperscrutável de bem e de mal (conce-dendo-os em igual medida); ou como um deus ciumento, capaz deinvejar seus filhos pelo desejo apaixonado1"8 que estes possuem nocoração; e ainda como um horrendo juiz, justo porém severo, punindo de modo inexorável o pecado capital de auto-afirmação (pecadode hubris). Enfim, cabe dizer que a herança cultural que a Grécia

arcaica partilhou com a Itália e a índia ,1"9 por exemplo, incluía umconjunto de idéias sobre rituais impuros que forneceram uma explicação natural para os sentimentos de culpa gerados por repressão dedesejos. Um grego dos tempos arcaicos que sofresse deste tipo de

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sentimento (de culpa) poderia lhe dar uma forma concreta dizendo para si mesmo que ele havia, provavelmente, estado em contato comum miasmci, ou que seu fardo havia sido herdado de alguma ofensa

ancestral. Mais importante do que isso: ele podia conseguir um alívio deste sentimento, bastando submeter-se a um ritual de catarse.

 Não estaríamos aqui diante de uma pista sobre o papel desempenhado pela idéia de catarse na cultura grega? Por um lado, poderíamos

compreender o desenvolvimento gradual das noções de culpa e deexpiação da culpa a partir da catarse; por outro, compreenderíamostambém o desenvolvimento da idéia conforme ela ressurge em Aristóteles - isto é, como uma purgação psicológica que nos alivia desentimentos indesejáveis por meio de uma projeção em obras dearte.11'1

 Não prosseguirei com tais especulações uma vez que elas não podem ser provadas. Quando muito elas podem receber uma confirmação indireta através da psicologia social, caso ela consigaestabelecer analogias com outras culturas mais passíveis de estudodetalhado. Trabalhos deste gênero têm sido realizados, " 1 mas seria

 prematuro generalizar seus resultados. Entrementes, devo dizer quenão seria mau se os estudiosos clássicos se abstivessem de certas observações, e para evitar algum mal-entendido, gostaria de concluir enfatizando dois pontos. Não espero, em primeiro lugar, que uma chave interpretativa abra todas as portas para a compreensão. A evoluçãode uma cultura é por demais complexa para ser explicada sem resíduos por meio de fórmulas, sejam elas econômicas ou psicológicas,

engendradas por Marx ou Freud. Devemos resistir à tentação de sim plificar o que não é simples. Em segundo lugar, cabe dizer queexplicar as origens não é explicar valores ausentes. Devemos, portanto, tomar cuidado para não subestimar a significação religiosa dasidéias aqui discutidas, mesmo no caso da doutrina da tentação divina em que tais idéias nos parecem moralmente repugnantes .112

Tampouco devemos esquecer que desta primeira e arcaica cultura daculpa nasceram algumas das mais profundas poesias trágicas que ohomem produziu. Foi sobretudo Sófocles, último grande expoente deuma visão de mundo arcaica, que expressou a mais ampla significação da tragicidade dos temas religiosos em sua forma mais dura eimoral - a esmagadora impressão de impotência humana diante domistério divino, e diante da ate que se serve de toda realização hu

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mana e que fez desse modo de pensar uma parte da herança cultural do homem ocidental. Terminarei, então, este capítulo com a citaçãode um verso da Antígona, que transmite muito melhor do que eu pude

fazê-lo, a beleza e o terror das antigas crenças : " 3

 Felizes são aqueles cuja vida transcorre isenta de todos os males, 

 pois os mortais que um dia têm os lares desarvorados pelas divindades 

 jamais se livrarão dos infortúnios  por todas as seguidas gerações.

 Da mesma forma a vaga intumescida,  soprada pelo vento impetuoso da Trácia, quando varre o mar profundo revolve em turbilhões a areia negra e a leva às praias onde afaz bramir  entre gemidos, estrondosamente.

Vejo às antigas infelicidades 

da casa dos labdácidas juntaremse as novas desventuras dos defuntos, e as gerações mais novas não resgatam as gerações passadas. Um dos deuses agarrase insaciável a elas todas e as aniquila; não há salvação.O pálido lampejo de esperança que sobre o último rebento de Édipo 

 surgira, esvaise agora na poeira dos deuses infernais, ensangüentada 

 pelo arrebatamento das palavras e por corações cheios de furor.

Que orgulho humano, Zeus, será capaz de opor limites ao poder só teu, que nem o Sono precursor do fim  de todos vence, nem o perpassar  infatigável do tempo divino?Governas o fulgor maravilhoso do Olimpo como soberano único, imune ao tempo que envelhece tudo.

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 E no porvir, tal como no passado a lei para os mortais será mantida: nada haverá de realmente grande 

em suas vidas sem desgraças juntas.

 E um conforto para muitos homensa instável esperança; para outrosé uma ilusão de seus desejos frívolosinsinuandose junto aos ingênuosaté que aos pés lhes chegue o fogo ardente. Pois com sabedoria alguém falou

as célebres palavras: “cedo ou tarde,o mal parecerá um bem àqueleque os deuses resolveram desgraçar".

 E são momentos poucos e fugazes os que ele vive livre de desdita.

 N o t a s   d o   c a p í t u l o I I

1. Normalmente considera-se que a era arcaica termina com as Guerras Persas,e para iins de história política isso é uma linha divisória evidente. Mas do

 ponto de vista da história do pensamento, a verdadeira clivagem se dá pos

teriormente, com a ascensão do movimento sofistico. E mesmo aí, a linha

de demarcação é cronologicamente desigual. Em termos de pensamento, em  bora não no que tange à técn ica literária, Sófocles (exceto talvez em suas

ultimas peças) ainda pertence inteiramente ao período mais antigo, assim

como seu amigo Heródoto (cf. Wilamowitz,  Hermes, 34 [1899]; E. Meyer, Forschungen z. ali. Gesch. 11.252 sg.; F. Jacoby, P.-W., Supp.-Band. 11, 479

sg.). Ésquilo por outro lado, esforçando-se para interpretar e racionalizar olegado da era arcaica, anuncia já um novo período.

2. O sentimento de cqtrix om a é bem ilustrado na antiga poesia lírica, por Snell, Die Entdeckung des Geistes,  68 sg. Devo as páginas seguintes, sobretudo à

 brilhante monografia de Latte “Schuld u. Sünde i. d. gr. Religion” , Arch. f.   Rei. 20 (1920-1921) 254 sg.

3. Todos os homens sábios de Heródoto sabem disto: Sólon, 1.32; Amasis, 3.40;Artabanus, 7.1 Os. Sobre o significado da palavra (|>9ovoç, cf. Snell,  Aischylos

u. das Handeln im Drama, 72, n. 108; Cornford,  Froiti R eligio n to  Philosophy, 118, e para a associação disso com Tapa%r|, Píndaro,  Isthm. 7.39:

o 8 aOavatrav |ir| epaoaexro <)>0ovoç. Tapaaaetv é muito utilizado para

interferência sobrenatural (Ésquilo, Coéforas 289; Platão,  Leis 865E,).

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58 O s GREGOS E O IRRACIONAL

4.  Ilíada , 24.525-533.

5. Semonides de Amorgos, 1. 1 sg. Bergk. Sobre o significado de E(])r|pEpoi

ver H. Frãnkel, TAP A 77 (1946) 131 sg.; sobre xeXoç F. Wehrli, AcxGe

fhcooaç, 8, n. 4.6 . Teógnis, 133-136, 141-142. Para a falta de intuição do homem da sua pró

 pria situação, cf. Heráclito, frag. 78 Diels: kQoç y«P avGpGOTEiov |i£V ouk  EXEi Tvmuaç, Geiov 8e £%£i, e para a falta de controle sobre ele,  H. Apoll. 

192 sg.; Semonides, frag. 61, 62 Bergk; para ambos, Sólon, 13.63 sg. Este é

também o ensinamento de Sófocles para quem todas as gerações de homens

nada representam - ioa Kai xo |jt|5ev Çcoaaç, O.T. 1186, quando vemos a

sua vida como o tempo e os deuses a vêem; assim vistos, os homens nada

mais são do que fantasmas ou sombras (Ajax 125).

7. Ésquilo,  Agam enon 750.8 . A crença sem moral é comum entre os povos primitivos de hoje (Lévy-Bruhl,

 Primitives and the Supernatural, 45). Sob sua forma moralizada ela surge

na China clássica (Tao Te Ching). “Se você for rico e de posição social ele

vada”, diz Tao Te Ching (século 4 a.C.?) “você se torna orgulhoso e,

conseqüentemente, abandona-se numa inevitável ruína. Quando tudo vai bem,

é sensato colocar-se em segundo plano”. Tal crença deixou também sua marca

no Velho Testamento: por exemplo, Isaías 10: 12 sg., “fará justiça [...] pela

sua altivez arrogante, pois disse: ‘Com a força da minha mão fiz tudo isto ecom a minha sagacidade’ [...] Por acaso o machado se vangloriará contra os

que cortam com ele?”. Para a noção de Kopoç cf. Provérbios 30: 8 sg., “Não

me deis nem probreza nem riqueza, mas sustentai-me com a minha ração de

 pão, porque temo que, saciado, eu vos renegue e diga: ‘Quem é o Senhor?’.”

9. Odisséia, 5.118 sg. Cf. 4.181sg.; 8.565 sg.; 13.173 sg.; 23.210 sg. Existe

tudo em discurso. Os exemplos que alguns defendem na  Ilíada, por exem

 plo, 17.71 são de outro tipo, e dificilmente constituem verdadeiros casos de

(|)0OG5OÇ.

10. Ésquilo, Os persas, 353 sg., 362. Em termos estritos não se trata de um novodesenvolvimento. Observamos uma similar “sobredeterminação” em Home

ro (cap. I, p. 15, 24). Eis algo comum entre os povos primitivos de hoje.

Evans-Pritchard, por exemplo, conta-nos que entre os Azande “a crença na

morte por causas naturais e por feitiçaria não são excludentes uma da outra

(Witchcrafts, Oracles and Magic, 73).11. Sólon, frag. 13 Bergk (cf. Wilamowitz, Sappho u. Sim. 257 sg.; Wehrli, op.

cit. 11 sg. e R. Lattimore,  AJP   68 [1947] 161 sg.). Ésquilo,  Agamenon 751

sg., quando isto é contrastado com o ponto de vista comum; Heródoto, 1.34.1.12. Heródoto 7.10. Sófocles não parece moralizar a idéia em nenhuma parte de

sua obra em  El. 1466;  Fil. 776 e é declarado como uma doutrina geral (se

7i a p 7ioXt) y for certo) na  Ant. 613 sg.. E cf. Aristófanes,  Plut. 97-92 ondeargumenta-se que Zeus deve ter uma pendência contra xpiioxoi.

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D a  c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a 59

13. Para a u pp iç como Jípcoxov kxxkov ver Teógnis 151 sg.; para sua universa

lidade.  H. Apoll. 541: vppiç0, r|0epiç eaxi Kaxa0vr|a>v avOpomcov, e

Archilochus, frag. 88: co Zev [...] ctoi 8e 0r)pitov u(5piç xe Kai Siicrj p,£À£i.

Cf. também Heráclito, frag. 43D.: u(3piv %pr| ofSevvuai (iaAAov r)KDpKair|V. Sobre os perigos da felicidade, há a observação de Murray de

que “ser visto como um homem feliz era uma má imagem para qualquer um

na poesia grega.” ( Ésquilo, 193).

14. Eurípides,  Ifigênia em Áulis , 1089-1097.

15.  Ilíada, 9.456 sg., 571 sg.; Odisséia, 2.134 sg.; 11.280. Vale notar que três

dessas passagens ocorrem em narrativas que podemos supor terem sido ex

traídas de épicos continentais, enquanto a quarta pertence a “Telemaquia”.

16.  Il íada , 16.385 sg. Na marca de hesiódica de 387-388, ver Leaf ad loc, mas

não precisamos chamar as linhas uma “interpolação” (Cf. Latte, Arch. f. Rei. 

20.259).

17. Ver Arthur Platt, “H om er’s Similes”, ./.  Phil. 24 (1896) 28 sg.

18. Aqueles que pensam de outro modo parecem confundir punição de perjúrio

como ofensa contra a divina xipr| (4.158 sg.) e punição de ofensas contra a

hospitalidade de Zeus Xeinios (13.623 sg.) com uma preocupação de justiça.

19. Odisséia, 7.164 sg.; 9.270 sg.; 14.283 sg. Contrastar com o destino de Licaon,

cf.  Ilíada, 21.74 sg.

20. Odisséia, 6.207 sg.21. Odisséia, 1.32 sg. Sobre a significação desta passagem muito discutida ver 

mais recentemente K. Deichgrãber, Gõtt. Nachr. 1940, e W. Nestle, Vom 

 Mythos zum Logos, 24. Ainda que o Kai em 1.33 deva ser tratado como “tam

 bém”, não posso concordar com Wilanowitz (Glauhe, 11.118) que “der Dichter 

des a hat nichts neues gesagt.”

22. Odisséia, 23.67: 8i axao0aA .iaç £7i a 0ov KaKOV, a mesma palavra que Zeus

usa em 1.34. É claro que devemos ainda lembrar que a Odisséia, diferente

mente da  Ilíada, possui uma grande dose de conto de fadas, e que o heróiestá fadado a vencer no fim. Mas o poeta que deu à história seu formato

final deve ter tido também a oportunidade de dar ênfase à lição da justiça

divina.

23. Teógnis, 373-380, 733 sg. Cf. Hesíodo,  Erga, 270 sg.; Sólon, 13.25 sg.; Pín

daro, frag. 201 B (213 S.). A autenticidade das passagens de Teógnis tem

sido negada, mas não com bases suficientemente fortes (cf. W.C. Greene,

 Moira, App. 8; Pfeiffer,  Philol. 84 [1929] 149).

24. Aristóteles,  Poética, 1453“34.25. Sólon, 13.31, Teógnis, 731-742. Cf. também Sófocles,  Édipo em Colona, 964

sg. (onde Webster,  Introduction to Sophocles, 31, certamente se equivoca ao

dizer que Édipo rejeita a explicação da culpa herdada). Para a atitude de És

quilo ver mais à frente. Heródoto vê uma tal punição postergada como uma

0eiv peculiar, em contraste com a justiça humana (xo ôiKaiov), 7.137.2.

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60 O s GREGOS E O IRRACIONAL

26. Cf., por exemplo, o caso de Acan (Josué, 7: 14 seg.) no qual todos os habi

tantes da casa, incluindo os animais, são destruídos por motivo de ofensa

religiosa praticada por um de seus membros. Mas tais execuções em massa

foram posteriormente condenadas e a doutrina da culpa herdada é condena

da explicitamente por Jeremias (31: 29 sg.) e por Ezequiel (18: 20, “o filho

não expiará a iniqüidade do pai”, e o capítulo inteiro). Ela aparece, no en

tanto, como uma crença popular em João, 9: 2, onde os discípulos perguntam:

"Quem pecou, ele ou os pais, para que nascesse cego?”

27. Alguns exemplos podem ser encontrados no capítulo II de The “Soul’’ of  

lhe Primitive Man, e em  Primitives and the Supernatural, 212 sg. de Lévy-

Bruhl (edições em inglês).28. Cf. Kaibel,  Epigr. graec. 402. Antifon, Tetral. 11.2.10 e Plutarco,  ser. vind.

16, 559D.29. Heródoto, 1.91. Cf. Gernet,  Recherches su r le développemen t de ia pensée  

 juridique et morale em Grèce, 313, que cunha a palavra “coisismo” para des

crever sua concepção de ajia pT ia.

30. Ver sobretudo as páginas 403 sg. e 604 sg.31. Theaet, 173D,  Rep. 364BC. Cf. também [Lys.] 6.20; Dem. 57.27; e o criti-

cismo indicado em Isócrates,  Busiris 25.32. Platão,  L e is , 856C, no ap o ç oveiSri Kai i ip m p ia ç 7tai8cov | ir i5evi

ouve7ieo0ai. Isto está entretanto sujeito a exceções (856D), e a herança de

culpa religiosa é reconhecida em conexão com o compromisso dos padres(759C) e com o sacrilégio (854B, onde eu tomo a culpa como sendo a dos

Titans, cf. infra, cap. V, n. 133).33. Plutarco, serv. vind. 19,561C sg. Se acreditarmos em Diógenes Laércio (4.46),

Bion tinha toda razão para ser amargo quanto à doutrina da culpa herdada:

ele e toda a sua família foram vendidos como escravos por uma ofensa co

metida por seu pai. Sua reductio ad absurdum da família possui paralelosem práticas atuais (The “Soul" o f the Primitive Man, 87, e em  Primitives 

and the Supernatural, 417 de Lévy-Bruhl).

34. Teógnis, 147; Phocyl. 17. A justiça é a filha de Zeus (Hesíodo,  Erga, 256;Ésquilo, Sept. 662) ou seu raxpeSoç (Píndaro, OI. 8.21; Ésquilo,  Édipo em 

Colona 1382). Cf. a interpretação pré-socrática da lei natural como 5ncr|,

que tem sido estudada por H. Kelsen (Society and Nature, cap. V) e por G.

Vlastos em CP 42 (1947) 156 sg. Esta ênfase na justiça humana, natural ou

sobrenatural, parece ser uma marca distintiva das culturas de culpa. A natu

reza da conexão psicológica em curso foi indicada por Margaret Mead no

Congresso Internacional de Doença Mental de 1948. A lei criminal que re

 parte a dev id a pun iç ão aos crim es com provados é a con trapartidagovernamental do tipo de autoridade paternal que desenvolve uma espécie

de imagem do pai interiorizada conduzente ao sentimento de culpa.

É significativo, provavelmente, que 5iraioç ocorra apenas três vezes na  Ilía-

da e lalvez somente uma com o significado de “justo”.

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35.  Ilíada, 15.12; 16.431 sg.; 19.340 sg.; 17.441 sg.

36. C;f. Rohde,  Kl. Schriften. 11.324; RJ. Koets, Aeiai5crt|iovia, 6 sg. ÀeioiGeoç

ocorre na Attica como um nome próprio do século VI em diante (Kirchner,

 Prosopographia Attica). IIr|iXoxr|£OC> não é atestado antes do século IV

( Hesperia , 9 [1940] 62).

37. Lidell e Scott (e Campbell Bonner,  Harv. Theol. Ver. 30 [1937] 122) estão

errados em atribuir um sentido ativo a 9eo())iX(ioç em Isócrates 4.29. O con

texto mostra que a referência é para o amor de Demétrio por Atena, rcpoç

to-uç Ttpoyovouç t||ícov EDiievcoç ôtaxeG etoriç (28).

38. Cf.  Magna Moralia , 1208h 30: axorcov yapav etri et xiç <|)ocir| ((ti^eiv xov

Ata. A possibilidade de <|>iA,ia entre o homem e Deus foi negada também

 por Aristóteles na sua  Ética a Nicôm aco 1159" 5 sg. Mas é difícil duvidar 

do amor que os atenienses devotavam às suas deusas - Ésquilo,  Eumênides,

999: m pG evou cf)i ocç (jnA.oi e Sólon 4.3 sg. A mesma relação de confiança

absoluta existe na Odisséia entre Atena e Ulisses (ver especialmente Odis-

 séia, 13.287 sg.). Sem dúvida isto deriva, em última instância, de sua função

original de protetora dos reis micênicos (Nilsson,  Religião Minóicamicênica, 

491 sg.).

39. Que Homero soubesse algo sobre mOccpoiç mágica é negado por Stengel

( Herm es , 41.241) e por outros. Mas que as purificações descritas na  Ilíada, 

1.314 e na Odisséia, 22.480 sg. são vistas como catárticas, no sentido mágico do termo, parece bastante claro, em um caso, pela disposição dos /*iv|uaxa,

e, em outro, pela descrição de enxofre como kcckcov cxkoç. Cf. Nilsson, Gesch. 

1.82 sg.

40. Odisséia, 15.256 sg.; Antifon. de cade Herodis 82 sg. Para a atitude mais

antiga, cf. também Hesíodo, frag. 144.

41. Odisséia, 11.275 sg.  Ilíada, 23.679 sg. Cf. Aristarco, EA em  Ilíada 13.426

e 16.822; Hesíodo,  Erga 161 sg.; Robert, Oidipus, 1.115.

42. Cf. Deubner, “Oedipusprobleme”, Abh. Akad. Berl. 1942, n. 4.43. O caráter infeccioso do |ii a o |i a é atestado primeiramente por Hesíodo,  Erga 

240. As leges sacrae de Cirene (Solmsen,  Insci: Gr. dail.4, n. 39) incluem

 prescrições detalhadas sobre sua extensão em casos individuais. Para a lei

ática, cf. Dem. 20.158. Que se trata de algo comumente aceito na Idade Clás

sica é o que aparece em passagens de Ésquilo, Sept. 597 sg.; Sófocles, O.C. 

1482 sg.; Eurípides,  I.T. 1229; Antifon Tetr. 1.1.3 e Lísias 13.79. Eurípides

 protestou contra isso (Hei: 1233 sg.;  Ifigênia em Táuris 380 sg.), mas Pla

tão afastaria de todas as atividades religiosas ou civis os indivíduos quetiveram contato voluntário, ainda que leve, com uma pessoa conspurcada,

até que ela fosse purificada (Leis,  88 IDE).

44. A distinção foi esclarecida pela primeira vez por Rohde,  Psyche, 294 sg. A

natureza mecânica do |i t a a p a é evidente não simplesmente quanto a seu ca

ráter infeccioso, mas também quanto aos artifícios pueris pelos quais ele pode

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62 O s GREGOS E O IRRACIONAL

ser evitado; cf. Sof. Ant. 773 e sg., com a nota de Jebb e com a prática ate

niense de condenar os criminosos à morte autoadministrada, por cicuta.

45. The Psychological F rontiers o f Society, 439.

46. Ver a interessante conferência de F. Zucker, SyneidesisConscientia (Jenaer 

Akademische Reden, Heft 6,1928). A meu ver é significativo lado a lado com

as velhas palavras objetivas de culpa religiosa (ayoç, ptaapa) encontrar

mos no final do século V, um termo para consciência de culpa (como

escrúpulo ou remorso). O termo é ev9u(iiov (ou EvOuiiia, Thuc. 5.16.1),

 palavra há muito tempo em uso para descrever algo “pesando sobre o esp í

rito”, mas utilizada por Heródoto, Tucídides, Antifon. Sófocles e Eurípides

com referência específica ao sentimento de culpa religiosa (Wilamowitz em

 Heracles 722; Hatch,  Harv. Stud. in Class. Phil. 19.172 sg.). Demócrito usa

£YK 0cp8iov no mesmo sentido (frag. 262). O uso específico é praticamenteconfinado a este período em particular. Ele desaparece, segundo Wilamowitz,

com o declínio das antigas crenças, das quais era o correlato psicológico.

47. Eurípides, Oréstia 1602-1604. Aristófanes,  Rãs 355. E a velha conhecida

inscrição epidáurica (início do século IV?) citada por Teofrasto, apud Porfí

rio, abst. 2.19, que define ayveia como BpovEiv ooia. Omito Epicarmo,

frag. 26 Diels, que não acredito ser genuíno. Como Rohde observou ( Psyche, 

ix, n. 80), a mudança de ponto de vista é bem ilustrada por Eurípides,  Hip. 

316-318, onde por p ta o p a (|)pevoç Fedra designa pensamentos impuros, mas

a Am a entende a frase como referência a um ataque mágico ( jn a a p a pode

ser imposto por blasfêmia, p. ex., Solmsen,  Inscr. Gr. Dia l * 6.29). A antíte

se entre mão e coração pode ter envolvido incialmente apenas o contraste

entre órgão físico externo e interno, mas desde que o último era um veículo

de consciência, a sua poluição física tornou-se também uma poluição moral

(Festugière,  La Sainteté, 19 sg.).

48. Art. KaOapoiç, P.-W., Supp.-Band. VI (este artigo fornece a melhor análise

que eu já vi sobre as idéias religiosas associadas à purificação). Sobre a fu

são original entre os aspectos “subjetivo” e “objetivo” e a distinção entre o primeiro e o segundo, ver também Gemet, Pensée ju rid ique et morale, 323 sg.

49. Veja, por exemplo, o sacrifício catártico a Zeus Meilichios na Diásias, que,

nos foi dito, era oferecido p e ta ti v o ç OTvyvoxriTOç (2 Luciano,  Icarom en, 

24) - não exatamente “num espírito de contrição”, mas “numa atmosfera de

luto” criada pelo sentimento de hostilidade divina.

50. Os fatos a respeito do tributo lócrida e referências às suas primeiras discus

sões, podem ser encontrados em Farnell,  Hero Cults, 294 sg. Cf. também

Parke, History o f the Delphic Oracle, 331 sg. A um contexto similar de idéias

 pe rtence a prática de “dedicar” (ôekocte-uetv) pessoas cu lpadas a Apoio. Isto

significava escravizá-las e dominar suas terras; isto foi levado a cabo no caso

de Crisa, no século VI, e ameaçado contra os Medizantes em 479 e contra

Atenas em 404. (cf. Parke,  Hermathena, 72 [1948] 82 sg.).

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51. Eurípides,  Hipólito, 276.

52. 0u|íoç, Ésquilo, Sept. 686, Sup. Sófocles. Antígona 1097; <|>pr|v, <|>p£V£ç, Ésquilo, Supp, 850, Sófocles,  Antígona 623.

53. Ésquilo, Coéforas 372 sg. (Zeus); Sófocles,  Ajax 363, 979 (a loucura enviada por Atena é chamada out|).

54. Ésquilo, Eumênides 372 sg. Cf. Sófocles, Antígona 603 e Epwueç T|?a0icüvcn

(isto é, qltOuruç 7C0i0U0(Xi), no Attic defixio (Wünsch, Defix. Tab. An. 108).

55. Assim talvez em Sófocles, Trac. 849 sg. E cf. Heródoto de decisões desas

trosas como predeterminadas pelo destino da pessoa que as toma: 9.109.2:

tt| Se kockcdç yap e8e i rcavoiKrq yeveoG at, repoç T a w a em e HepE,r| /TÀ..,1.8.2, 2.161.3, 6.135.3.

56. Panyassis, frag. 13.8 Kinkel.

57. Hesíodo,  Erga 214 sg.58. Teógnis, 205 sg.

59. Ésquilo, Os persas 1037; Sófocles, Ajax 307.

60. Teógnis, 133; Ésquilo, Coéforas 825 sg; Sófocles,  Éclipo em Colona 92 e

 Antígona 185 sg. Na lei dórica, a r q parece ter sido completamente secula-

rizada como um termo para qualquer penalidade legal: leg. Gortyn. 11.34(GDI 4991).

61. Eurípides, Troianas 530 (Cf. Teógnis, 119); Sófocles, Antígona 533 e  Éclipo 

em Colona 532 é diferente; lá Édipo chama suas filhas cttai como sendo osfrutos de seu próprio yapcüv a r a (526).

62. Comparar a extensão do uso pelo qual as palavras aXrrqpioç, jtaA.a|ivatoç,

Tcp0crcp07t0a0ç foram aplicadas não só ao culpado, mas também ao ser so

 brenatural que o pune. (Cf. W.H.P. Hatch,  Harv. Stud. in Class. Phil. 19

[1908] 157 sg.) - pcovoç oa r|ç , Ésquilo, Coéforas 1076.

63. Licurgo, In  Leocratem 92. Cf. o similar anônimo yv(ú(XT| citado por Sófocles, Antígona 620 sg.

64. Teógnis, 402 sg.65. Ésquilo, Os Persas 354. (cf. 472, 724 sg.); contraste 808, 821 sg. A divina

caiaGri é, assim, para Ésquilo 5 i r a i a (frag. 301). Em sua condenação da

queles que fazem dos deuses a causa do mal, Platão incluiu Ésquilo, na

intensidade das palavras de Niobe: Geoç jiev a r a a v (Jwei [SpoTOiç, o ra v

raKCüoai 5co |ia 7tapjtT|8r|v GeÀ-q (frag. 156, apud Platão,  Repúb lica, 380A).

Mas esqueceu-se de citar a proposição 8e, que continha - como sabemos

agora do papiro de Niobe, D.L. Page, Greek Literary Papyri, 1.1, p. 8 - um

aviso à u|3piç, pq ôpacrucra)|iiv. Aqui, como em outras passagens, Ésquilo

reconhece com cuidado a contribuição do homem para o seu próprio destino.

66. Ésquilo,  Agamenon 1486; cf. 160 sg., 1563 sg.

67. Ibid., 1188 sg., 1433, 1497 sg.

68. Heródoto, 6.135.3.

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64 OS GREGOS E O IRRACIONAL

69. Glotz,  La solidarité, 408; K. Deichgráber, Gòtt. Nackr. 1940.

70. Eurípedes,  Medé ia, 122-130. Fedra também atribui seu estado a Sai|iovoç

cm] ( H ipp. 241.). E sabemos através de um tratado do corpus hipocraticum 

(Virg. 1, V1I1.466 L.) que o distúrbio mental freqüentemente surgia em so

nhos ou visões de deuses irados.71. Esquines, in Ctes 117. Esquines sabia estar vivendo uma época estranha e

revolucionária, quando velhos centros de poder cedem espaço aos novos

(ibid., 132), e isto o deixava inclinado a ver a mão de Deus em toda parte,

como Heródoto. Então ele falou de Tebas como xr|v ye OeofSXaPeiav Kat

tt|V a<|)pocnjvr|v ouk avGpcoíttvcoç aXXa ôatpovtcoç Kxr)aa|i£voi (ibid..

133).

72. Teógnis, 637 sg.; Sófocles, Antígona 791 sg. Sobre Eàjuç ver Wehrli. Aoc0e 

 ptcoaaç, 6 sg.73. H. e H.A. Frankfort, The Intellectual Adventure o f Anc ient Man, 17.

74. Semonides de Amorgos, 7.102; Sófocles, O.T. 28. Cf. também cap. III, nota

14, e sobre crenças indianas similares, Keith.  Rei. and Phil. o f Veda and  

Upanishads, 240.

75. Para uma visão dos atenienses modernos ver Lawson, M odem Greek Folklore 

and Ancient Greek Religion, 21 sg. Quanto à culpa de homicida projetada

como uma Erínia cf. Ésquilo, Coéforas 283: 7ipoo(3oA.aç Eptvucúv £K xcov

Ttcapwcüv atjtaxcov XE^o-ujiEvaç, com Verrall ad loc., ibid., 402; e Antifon,

Tetra!. 3.1.4.76. Sófocles,  Antígona 603. Cf. o verbo Satpovov, utilizado tanto para locais

“assombrados” (Coéf 566) quanto para pessoas “possuídas” (Sept. 1001,  Fen. 888 ).

77. Eurípides, Oréstia 395 sg. Se as cartas VII e VIII forem genuínas, até Pla

tão acreditava em seres objetivos que puniam a culpa homicida: VII.336B:

q nov ti ç 8oa|i(üv n xiç aA -m pto ç E|i7t£CTC0v (cf. 326E): VIII.357A: Ç evtm i

epiravEç eKco?a)0av.

78. Hesíodo,  Erga 314: §at|iovt 5 otoç er|cj0a, xo epyaÇeoBat apeivov, e Phocylides, frag. 15.

79. Cf. cap. I,  supra. A noção homérica de uma poipa individual também con

tinuou a exisitir ao lado do 8ai|ifflv mais pessoal, e é bastante comum na

tragédia. Cf. Archilochus, frag. 16: Ttavxa xt)%q Kat (totpa, nepiicA.e£ç,

avôpt SiSaxjitO, Ésquilo,  Agamenon 1025 sg., Coéforas 102 sg. etc.; Sófo

cles, O.T. 376, 713 etc.; Píndaro  Nem. 5.40: 7tox|ioç õe KpiVEt (juyyEVijç

Eoyrov 7t£ot 7tavxcov e Platão, Gorg. 512E: 7ttax£upavxa xatç yuvatÇtv

oxt xr)G5 £ipapp£vr|v ot>8 av etç £K0i)yoi. A frase homérica ©avaxou

(--oio) potpa reaparece em Ésquilo,  Pers. 917,  Agam enon 1462. Algumasvezes poipa e Satpwv estão combinados: Ar. Thesm, 1047: |_ioipaç ax£yi<x£

Saipow (trágica paródia);  Lys. 2.78: o Saiprov o xijv qp.£X£pav potpav

EtÀnxwç.

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D a c u l t u r a   d a   v e r g o n h a   à   c u l t u r a   d a   c u l p a 65

80. Saificov (a interpretação religiosa) e tu%t| (a opinião profana e sem com

 prom etimento) não são vistos como duas tendências mutuamente excludentes

e estão muitas vezes ligados: Aristófanes.  Av. 544: kockx ôai|iova Kai (uva)

auvTDXiav aXa0r|v, Lys. 13.63: tuxt| Kai o Sai|a.cov, [Dem.] 48.24, Es

quines in Ctes. 115, Aristóteles, frag. 44. Eurípides, porém, as distingue comoalternativas .(frag. 901.2). No conceito de Geia ruxn (Sófocles,  Fil., e fre

qüentemente em Platão) o acaso retoma o valor religioso que o pensamento

 primitivo lhe atribuía (cap, 1, n. 25).

81. Teógnis, 161-166.

82. Heródoto 1.8.2. Cf. nota 55 acima.

83. Píndaro,  Píticas 5.122 sg. Mas nem sem pre ele moraliza deste modo a cren

ça popular. Cf. 01. 13.105, em que a “sorte" do yevoç é projetada como

Saip.wv.84. O §at(aoco estóico está ainda mais próximo da concepção freudiana do que

da platônica: ele é, como coloca Bonhõffer  (Epiktet, 84) “o ideal contrastado com a personalidade empírica”; e uma de suas principais funções é punir 

o ego por seus pecados carnais (cf. Heinze,  Xenokrates, 130 sg.; Norden,

VirgiVs Aeneid VI, p. 32 sg.). Apuleio (d. Soer. 16) faz o daemon residir  in 

ipsis penitissimis mentibus vice conscientiae85. Platão,  Fédon, 107D;  República 617DE, 620DE (onde Platão evita o fata

lismo da visão popular, fazendo a alma escolher seu próprio guia); Timeu,90A-C (analisado a seguir no capítulo VII).

86. Cf. M. Ant. 2.13, com a nota de Farquharson; Plutarco,  gen. Soer. 592BC;

Plotino 2.4; Rohde,  Psyche XIV, n. 44; J. Kroll,  Lehren des Herm es 

Trimegistos, 82 sg. Norden, loc. cit., mostra como a idéia foi retomada por escritores cristãos.

87. Fr. Pfister, P.-W., Supp. Band. VI, 159 sg. Cf. seu  Religion d. Griechen u. 

 Rõmer  (Bursian’s Jahresbericht, 229 11930]), 219.

88. A prova acerca dos 0ap|iaKOi é convenientemente reunida em Murray,  Rise 

o f the Greek Epic. Ao encarar o rito como primordialmente catártico eu sigoDeubner,  Altische Feste, 193 sg., e os próprios gregos. Para um resumo de

outras opiniões, ver Nilsson, Gesch., 1. 98 sg.

89. P.-W. Supp.-Band VI, 162.

90. Cf. Nilsson, Geschichte 1.570 sg.; e Diels, “Epimenides von Kreta”,  Berl. 

Sitzb. 1891, 387 sg.

91. Alguns estudiosos atribuiriam as peculiaridades do período arcaico compa

radas à religião homérica a um ressurgimento de idéias “minóicas” pré-gregas.

Isto pode ser verdade em alguns casos. Mas a maior parte dos traços quesalientei neste capítulo indica que ele deve ter raízes indo-européias. Por isso

creio que devemos evitar a invocação de uma “religião minóica” neste contexto.

92. Como coloca Malinowski, quando o homem se sente impotente diante de uma

situação prática, “seja ele selvagem ou civilizado, esteja em posse da magia,

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6 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL.

ou completamente ignorante da sua existência, na indecisão passiva, a úni

ca coisa ditada pela razão é a última com que ele pode concordar. O seu

sistema nervoso e todo o organismo levam-no a uma atividade de substi

tuição [...]. A ação substituta em que a paixão encontra a sua saída e que

se deve à impotência tem subjetivamente toda a virtude de uma ação real ea que a emoção, se não a impedissem, teria naturalmente conduzido” (Ma 

 gic, Science and Religion). Há provas de que o mesmo princípio vale para

as sociedades: Linton (in A. Kardiner, The Individual and His Society. 287

sg.) relata que entre os efeitos produzidos por uma grave crise econômica

entre algumas tribos Tanala, em Madagascar, estava um aumento dos te

mores supersticiosos e da emergência de uma crença em espíritos maus,

de que não havia an teriormente sinais.

93. Plutarco, Apopht. Lac. 223A.94. Hesíodo,  Erga 5 sg.; Arquíloco, frag. 56; Sólon, frag. 8 e 13, 75; Ésquilo,

Sept. 769 sg., eAgain. 462 sg.95. Murray,  Rise o f the Greek Epic., 90; cf.  Ilíada 5.9, 13.664 e Odisséia 18.126

sg. Eis a atitude esperada de uma cultura de culpa; a riqueza traz Tipr| (Odis-

 séia 1.392, 14.205 sg.). Era assim ainda no tempo de Hesíodo e (embora

consciente dos perigos que o esperavam) ele usou o fato para reforçar o

seu evangelho do trabalho: Erga 313: rcXomcü 5 apern kcci ku5oç 07t§ei.

96. Para comprovação, ver Glotz,  La solidarité, 31 sg.

97. Aristóteles,  Política , 1.2, 12521’ 20: raxo a ya p o m a Pa cnA eu etai m otod j tpeafhn aw u . Cf.  E.N. 1161“ 18: (jyocei apxtKOv rcatrip m wv... Kai

fSaoiXeuç |3aoi?ie'uo|.ivcov. Platão emprega termos mais fortes; ele fala do

 status apropriado aos jovens como inferior natpoç Kai (.niipoç Kai

 jipeafSwepwv SouXeiav (Leis, 701B).

98. Eurípides,  Hipólito 971 sg., 1042 sg. (Hipólito prefere a morte do que ser  banido).  Alcmaeonis, frag. 4. Eurípides Kinkel (apud [Apollod.]  Bibl. 1.8.5);

Eur. Oréstia 765 sg.,  Il íada, 1.590 sg. Os mitos sugerem que em tempos

 primordiais o ato de banir era a conseqüência necessária de a7iOKT|pt^iç,uma regra que Platão propunha restaurar (Leis, 928E).

99. Cf. Glotz, op. cit., 350 sg.

100. Platão,  Leis, 878DE, 929A-C.101. Honrar os pais vem em segundo lugar na escala de valores, após a ordem

de temer os deuses: Píndaro,  Pít. 6.23 sg. e Z ad loc.', Eurípides, frag. 853;

Isócrates 1.16 e Xenófanes  Mem. 4.4.19 sg.). Para as sanções sobrenatu

rais ligadas às ofensas contra os pais, ver  Il íada, 9.456 sg.; Esquilo,

 Eum ênides 269 sg.; Eurípides, frag. 82, 852; Xenofonte,  Mem. 4.4.21; Pla

tão, Eutifron, 15D,  Fédon, 114A, República, 615C, e Leis, 872E e sobretudo880E sg. E também Paus. 10.28.4; e Orf. frag, 337 Kern. Para os senti

mentos de parricídio involuntário, cf. a história de Altaimenes, Diod. 5.59

(deve-se notar que, como Édipo, termina eventualmente como herói).

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Da  c u l t u r a d a v e r g o n h a à c u l t u r a d a c u l p a 67

102 A história de Fênix em  Ilíada 9 (432-605), parece refletir condições conti

nentais tardias. Cf. cap. I, supra. As demais histórias são pós-homéricas (amaldição de Édipo nas Tebanas, frag. 2 e 3K; cf. Robert, Oidipus, 1.169

sg.). Platão ainda professa a crença na eficácia da maldição de um pai.  Leis 93IC, E.

103. Platão,  República, 377E-378B. O mito de Cronos possui, como devemos

esperar, paralelos em muitas culturas; mas um paralelo como o épico hurrira-

hitita de Kumarbi é tão próximo e tão detalhado que sugere um empréstimo

(E. Forrer, Mél. Cumont. 690 sg.; R.D. Barnett,  JHS  65 [ 1945] 100 s.; H.G.

Gütterbock,  Kumarbi fZurich, 1946], 100 sg.). Isto não diminui seu signi

ficado; devemos perguntar, neste caso, que sentimentos induziram os gregos

a darem a esta monstruosa fantasia oriental um lugar central em sua mito

logia. Diz-se com freqüência - e talvez com razão - que a “separação” de

Urano e Gaia mitologiza uma separação física imaginada do céu e da terra

(cf. Nilsson,  History o f Greek Religion, 73). Mas o tema da castração do

 pai é dificilm ente um elemento natural, e certamente não uma necessidade

no mito. Creio que é difícil explicar a presença desta história nas teogo-

nias hitita e grega de outro modo a não ser como um reflexo de desejos

humanos inconscientes. Uma confirmação desta visão pode ser encontrada

no nascimento de Afrodite (Hesíodo, Teogonia, 188 sg.) que pode ser in

terpretado como simbolizando a conquista de liberdade sexual pelo filhoatravés da retirada do pais. O certo é que na Idade Clássica as histórias de

Cronos eram freqüentemente referidas como um precedente para compor

tamento não-filial: Ésquilo,  Eumênides 640 sg.; Aristófanes,  Nuv. 904 sg., Av. 755 sg.; Platão,  Eutifron 5E-6A.

104. A tigura da TiaípceXotaç parece ter fascinado a imaginação da Idade Clás

sica. Aristófanes a coloca no palco (Av. 1337 sg., Nuv. 1399 sg.) e mostra-a

a defender o seu caso (Nuv. 1399 sg.). Para Platão ele é o exemplo típico

de perversidade (Górgias, 456D;  Fédon, 113E). É tentador ver nisto algomais do que um reflexo de controvérsias sofísticas, ou um tipo particular 

de “conflito de gerações” específico no século V tardio, embora isto aju

dasse, sem dúvida nenhuma, a lançar a 7iaTpa?tOiaç para a proeminência.

105. Platão,  República, 571C; Sófocles, O.T. 981 s; Heródoto 6.107.1. A desa

gradavelmente detalhada discussão de Artemidoro em torno dos sonhos de

Edipo mostra o quão comuns eles eram na antigüidade tardia. Pode-se pen

sar que isto implica uma repressão menos profunda e rigorosa dos desejos

incestuosos comparando à nossa sociedade. Platão, entretanto, prova nãoapenas o contrário disto como também que muitas pessoas eram completa

mente inconscientes de qualquer impulso do tipo (Leis, 838B). Parece que

devemos dizer antes que o disfarce necessário do impulso proibido era rea

lizado não no interior do sonho, mas no subseqüente processo de

interpretação que lhe conferia um significado simbólico inócuo. Escritores

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6 8 OS GREGOS E O IRRACIONAL

antigos mencionam, entretanto, o que poderíamos chamar sonhos edipia-

nos disfarçados (Hipólito nepi 5icatr|ç 4.90, VI.658 Littré).

106. Cf. S. Luria, “Vater und Sõhne in den neuen literarischen Papyri” , Aegyp tus,

7 (1926) 243 sg., um texto que contém uma interessante coleção de provas

sobre as relações familiares na época clássica, mas que me parece exagerar a importância da influência intelectual e, em particular, a do sofista Antifon.

107. G.M. Calhoun, “Zeus the Father in Homer”, TAPA 66  (1935) 1 sg. Inver

samente, gregos tardios acharam correto tratar o pai de um deles “como

um deus”: Geoç iieyioto ç to iç ^p ov ou oiv oi yoveiç (Dicaegenes, frag. 5

 Nauck); vo|ioç yoveuaiv taoGeouç n p a ç vejaetv (Menander, frag. 805K.).

108. A doutrina do ph thonos divino tem sido freqüentemente encarada como uma

simples projeção do ressentimento experimentado por pessoas sem suces

so diante de cidadãos eminentes da sociedade (cf. o elaborado, mas

monomaníaco, livro dc Ranulf). Não há dúvida quanto a certa dose de verdade na sua teoria. Certamente, o <f>Govoç divino e o humano têm muito

em comum: por exemplo, ambos trabalham por intermédio do Olho do Mal.Mas passagens como a de Hdt 7.46.4: 8  8e Geoç yXvK\|/v  yevaac, xov

auova (|)0ovepoç ev oancü evpiaKerat ecov, indicam, a meu ver, para uma

direção diferente. Lembram a observação de Piaget de que “por vezes as

crianças pensam o oposto do que querem, como se a realidade estivesse

apostada cm não satisfazer os seus desejos” (citado por A.R. Burn, The

World of Hesiod, 93, que confirma esta afirmação pela sua própria expe

riência). Tal estado mental é um típico subproduto de uma cultura da culpaem que a disciplina doméstica é severa e repressiva. Isto pode persisitir na

vida adulta e encontrar expressão em termos quase religiosos.

109. Rohde chamou a atenção para a similaridade entre as idéias gregas a res

 peito da conspurcação e da purificação e as idéias da antiga índia ( Psyche, 

cap. IX, n. 78). Cf. Keilh,  R elig io n and P h il o sophy o f Veda and  

Upanishads, 382 sg., 419 sgs. Sobre a Itália, H.J. Rose,  Primitive Culture 

in Italy, 96 sg., 111 sg. e H. Wagenvoort,  Rom an Dynam ism, cap. V.

110. Sou tentado a sugerir também que a preferência de Aristóteles dentre os

temas trágicos recai sobre façanhas de horror cometidas ev Toaç (|)i?aoaç(Poética, 14531’ 19), e entre estes por histórias em que o ato criminoso é

evitado no último mom ento por uma ava yv cú pia iç (1454" 4) é determina

da inconscientemente pela sua grande eficácia, como uma reação contra

sentimentos de culpa - sobretudo quando a segunda destas preferências per

manece em flagrante contradição com a visão geral da tragédia. Sobre a

catarse como ab-reação, veja capítulo III, infra.

111. Ver especialm ente os livros de Kardiner, The Individual and his Society e

The Psychological Frontiers o f Society; também Clyde Kluckhohn, “Myths

and rituais: a general theory”,  Harvard Theol. Rev. 35 (1942), 74 sg. e S.de Grazia, The Political Community (Chicago, 1948).

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I )A CULTURA DA VERGONHA À CULTURA DA CULPA 69

112. Ver as observações excelentes de Latte.  Arch. f. Rei. 20.275 sg. Como ele

observa, a consciência religiosa não é apenas sujeita a paradoxos morais,

mas freqüentemente percebe neles a revelação mais profunda do sentido

trágico da vida. E podemos recordar que este paradoxo particular desem penhou um papel im portante no Cristianismo: Paulo acreditava que “Ele

endurece aquele que quer” (Rom. 9, 18), e o padre nosso inclui a súplica

“Não nos deixe cair em tentação” (|xr| etoeveyKTiç ii|iaç etç rtetpao|iov)

Cf. a observação de Rudolph Otto sobre a ira de Deus como sua expressão

natural (The Iclea of the Holy, 18). Creio que isto é igualmente verdadeiro

em homens como Sófocles. E a mesma “santidade” pode ser vista na arte

dos deuses arcaicos e da primeira fase da Idade Clássica. Como disse o

Prof. C.M. Robertson numa recente conferência inaugural (Londres, 1949),

“são realmente concebidos com uma força humana, mas a sua divindade é

humanidade com uma terrível diferença. Para estas criaturas sem idade e

mortais, os vulgares humanos são como moscas para jovens travessos e esta

qualidade é transmitida nas suas estátuas, em todo o caso até o século V”.

113. Sófocles,  Antígona 583 sg. A versão que se segue procura reproduzir a co

locação significativa da palavra-chave recorrente, car|, e também alguns

dos efeitos métricos, mas pode reproduzir a magnificência sombria origi

nal.

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 A S   BÊNÇÃOS DA LOUCURA

III

 No estado de cria ção o homem é arrancado para fo ra de si mesm o. 

 Ele se deixa descer até o subconsciente como um balde, e quando é içado 

traz consigo algo que em condições normais estaria além do seu alcance.

E. M. Forster 

í í Â Tossas maiores bênçãos”, diz Sócrates no  F edro ,  “vêm

1 V a nós através da loucura” : toe jiey to ta tcov ayaBcovri|aiv yiyveTai Sia (laviaç.1Eis aí um paradoxo consciente que, semdúvida, surpreendia o ateniense do século IV a.C. tanto quanto nossurpreende hoje, pois sabemos que nos tempos de Platão a maioriadas pessoas via a loucura com descrédito, como uma ovetSoç [injúria].2 Mas o pai do racionalismo ocidental não é representado comoalguém que mantenha a proposição geral de que é melhor ser loucodo que mentalmente são, doente do que sadio. Ele completa seu pa

radoxo com as palavras Beta |_i£Vtot Soaet 8i8o|í£VT|c;, “desde quea loucura seja inculcada por uma dádiva divina”, e prossegue distinguindo quatro tipos de “loucura divina”, que são produzidas,conforme ele diz, “por uma mudança em nossas costumeiras normassociais, forjada de maneira divina” (dtco 0etaç E^aX/Vayqç xcov£ICO0OT(OV VO(ai|i(OV).3

Os quatro tipos são:1) Loucura profética, cujo deus responsável é Apoio.

2) Loucura ritual, cujo deus responsável é Dioniso.3) Loucura poética, inspirada pelas Musas.4) Loucura erótica, inspirada por Alrodite e Eros.4A respeito da última destas loucuras terei algo a dizer em outro

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A s BÊNÇÃOS DA LOUCURA 73

tivos do mundo inteiro, que todos os tipos de distúrbio mental sãocausados por interferência sobrenatural. A universalidade dessa crença não é nada surpreendente. Suponho que ela se originou nas

 próprias declarações dos vitimados por esses distúrbios, e foi mantida por eles. Hoje em dia, entre os sintomas mais comuns deinsanidade ilusória está a crença, por parte do paciente, de que eleestá em contato (ou se identifica) com seres ou forças sobrenaturais.Podemos presumir que não era diferente na antigüidade. Na realidade, um caso como o do médico Menécrates do século IV a.C., que

 pensava ser Zeus, foi registrado em detalhe e é tema de um brilhanteestudo de Otto Weinreich.9 Epilépticos têm também, e muito freqüen

temente, a sensação de estarem sendo batidos com um porrete por algum ser invisível. O fenômeno epiléptico, cm si mesmo surpreendente, de queda repentina seguida de contorções musculares, orangido dc dentes e a projeção da língua para a frente, tudo isso certamente desempenhou um papel na formação da idéia popular de

 possessão.10Não é então de admirar que, para os gregos, a epilepsiafosse a “doença sagrada” par excellence. Ou o que cies chamavam£7iià,t|V|/lç que, a exemplo dc nossas palavras “derrame”, “acesso” e“ataque”, sugere a intervenção de um daemon."  Devo supor, entretanto, que a idéia dc verdadeira possessão, diferentemente da merainterferência psíquica, derivou finalmente dc casos dc personalidadealterada ou duplicada, como a famosa Miss Bcauchamp que MortonPrice estudou,12 porque, nesse caso, uma nova personalidade, normalmente bastante diferente da anterior em caráter, conhecimento, cmesmo na voz c na expressão facial, surge repentinamente para to

mar posse do organismo, falando de si na primeira pessoa, e da outra personalidade na terceira. Tais casos, relativamente raros na Europae nos Estados Unidos, parecem ser mais freqüentes entre povos menos a va nç ad os ,13 e também podem ter sido mais comuns naantigüidade do que são hoje. Retornarei a eles mais adiante. Mas enfim, a partir desse ponto a noção de possessão iria facilmente seestender a epilépticos e paranóicos. Todos os tipos de distúrbio mental, incluindo sonambulismo e delírio dc febre alta,'4 seriam atribuídos

a agentes demoníacos. A crença, uma vez aceita, acabou por criar naturalmente novos fatos que a confirmariam, em uma operação deautosugestão.15

Tem sido observado muitas vezes que a idéia de possessão estáausente dos escritos de Homero, e a inferência que daí se extrai c de

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74 O s GREGOS E O IRRACIONAL

que tal noção era estranha à cultura grega mais antiga. Podemos, entretanto, encontrar na Odisséia traços de uma crença de que a doençamental possui origem sobrenatural. O poeta não faz referência a issoele próprio, mas uma ou duas vezes ele concede aos seus personagens o uso de uma linguagem que trai a existência desta crença.Quando Melanto, em forma de troça, diz a um Ulisses disfarçado queele está SKJie7taxa7]ievoç (“fora do juízo”),16 isto é. louco, ele estáusando uma frase cuja origem provavelmente implicava uma intervenção demoníaca, embora nos seu lábios possa tratar-sesimplesmente daquilo que descrevemos como “um pouco afetado”.Pouco mais adiante, um dos pretendentes aparece zombando dc Ulis

ses, e o chama £7tt|_iaatov aXr|Tr|v. Etuiíccgtoç (de £7tt(iato|iat)não é encontrado em nenhum outro lugar e seu significado é objetode disputa; mas o sentido de “afetado” (isto é, louco) dado por alguns estudiosos antigos é o mais natural e que melhor se adapta aocontexto.17 Aqui, a meu ver e mais uma vez, a idéia dc uma influência sobrenatural está implícita. Finalmente, quando Polifêmos começaa gritar, e os demais Ciclopes - após perguntarem do que se trata -são informados dc que “ninguém está tentando matá-los”, só lhes resta

a observação dc que “a doença do grande Zeus não pode ser impedida”, c a recomendação de uma oração .18 Creio que os Ciclopesconcluíram que Polifêmos é louco. Eis por que eles o abandonam aoseu destino. A luz dessas passagens, parece bastante seguro dizer quea origem sobrenatural da doença mental era um lugar-comum do pensamento popular no tempo de Homero e provavelmente muito antes,embora os poetas épicos não tivessem nenhum interesse especial so bre isso e não quisessem sc comprometer em corrigir tal versão.

Pode-se ainda acrescentar que isso permaneceu um lugar-comum no pensamento popular grego até os nossos dias.19

 Na Idade Clássica os intelectuais podiam limitar o espectro da“loucura divina” a certos tipos específicos. Uns poucos, como o autor do tardio tratado de morbo sacro do século V a.C., podia até chegar ao ponto dc negar que uma doença fosse mais “divina” do quequalquer outra, sustentando que todo distúrbio tem também causasnaturais que a razão humana pode descobrir20 (r ta v ra Be ta K ai

7Tavi;a avBpcontva). Mas não parece que a crença popular fossemuito afetada por tudo isso. pelo menos não fora dos poucos grandescentros culturais de então.21 Mesmo em Atenas, os que sofriam de problemas mentais eram ainda evitados por muita gente, vistos

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A S BÊNÇÃOS DA LOUCURA 75

como pessoas sujeitas à maldição divina, com quem o contatoera perigoso -- era comum atirar pedras nessas pessoas a fim demantê-las afastadas, ou em casos mais brandos, simplesmente cuspir 

nelas.22 No entanto, se os insanos eram mantidos afastados, eles tam bém eram vistos com um respeito que beirava o medo (como aindahoje na Grécia),23 porque, afinal, eles estavam em contato com o mundo sobrenatural e podiam, quando surgisse a ocasião, dispor de

 poderes negados aos homens comuns. Ajax na sua loucura fala umalinguagem sinistra “que nenhum mortal lhe ensinou, mas sim umdaemon”;”24 Édipo, em estado de frenesi, é guiado por um daemon 

ao local em que o cadáver de Jocasta o aguarda.25 Vemos, assim, porque Platão no Timeu menciona o distúrbio como uma das condiçõescapazes de favorecer a emergência de poderes sobrenaturais.26 A linha divisória entre a insanidade comum e a loucura profética é, naverdade, difícil de traçar. E é então a essa loucura profética quc re

tornaremos.Platão (e a tradição grega em geral) faz de Apoio seu patrono;

e dos três exemplos de profecia que ele nos dá, a inspiração de doisdeles (a Pítia e a Sibila) é apolínea27 (a terceira instância ficando acargo das sacerdotisas de Zeus em Dodona). Se porém acreditarmosem Rohde28 quanto a esta questão - e muitos ainda acreditam29Platão estava inteiramente equivocado: a loucura profética era desconhecida na Grécia antes da chegada de Dioniso - era este queimpelia Pítia ao oráculo em Delfos. Até então a religião apolínea,segundo Rohde, havia sido “hostil a qualquer coisa de natureza ex

tática”. Rohde tinha duas razões para rejeitar dessa maneira a tradiçãogrega. Uma delas era a ausência em Homero de qualquer referênciaà profecia de inspiração; a outra, a impressionante antítese que seuamigo Nietzsche havia estabelecido entre a religião “racional” deApoio e a religião “irracional” de Dioniso. Mas creio que nisso Rohde

estava errado.Em primeiro lugar, ele confundiu duas coisas que Platão cui

dadosamente distinguiu - a mediação apolínea que objetiva oconhecimento, seja do futuro ou do passado oculto; e a experiênciadionisíaca que é buscada por si mesma ou como um meio de cura damente - o elemento mediúnico estando no caso ausente ou subordinado a outro elemento.30 A mediunidade é um raro dom de algunsindivíduos escolhidos, ao passo que a experiência dionisíaca é es

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76 O s GREGOS E O IRRACIONAL

sencialmente coletiva ou envolvendo uma congregação - Btaaexiexat\|/"U%0(V - e está tão longe de ser um dom raro, que é até mesmo altamente infecciosa. Seus métodos são tão diferentes quanto seusobjetivos: as duas grandes técnicas dionisíacas (uso do vinho e dadança religiosa) não desempenham nenhum papel na indução do es

tado apolíneo. As duas coisas são tão distintas que uma dificilmenteseria derivada da outra.

Além disso, sabemos que a profecia de caráter extático era praticada desde os primórdios na parte oeste da Ásia. Sua existência naFenícia é atestada por um documento egípcio do século XI, e três séculos depois ainda encontramos o rei hitita Mursili It orando para

que um “homem divino” laça aquilo que era tão freqüentemente solicitado em Delfos - revelar os pecados em virtude dos quais o povohavia sido punido com peste.11 Este último exemplo tornar-se-ia es

 pecialmente significativo se pudéssemos aceitar, como Nilsson estáinclinado a fazer, a suposição de Hrozny de que Apoio, responsável

 pelo envio c pela cura da peste não é nada menos do que o deus hititaApulunas.32 Mas de qualquer modo parece quase certo, a julgar pelas provas da  Ilíada, que Apoio foi originariamente uma divindade

asiática dc algum tipo.31 Na Ásia, não menos do que na Grécia Continental, encontramos profecias extáticas associadas a seu culto.Dizem que seus oráculos em Claros, próximo a Colofon, e em Brân-quida, além dc Mileto, já existiam antes mesmo da colonização daJônia,34 e cm ambos parece que a profecia extática era praticada.35 Éverdade que nossas provas a respeito do último ponto abordado vêmdc autores já lalecidos, mas sabemos por Heródoto que em Patara,na Lícia (que alguns apontam como a terra natal dc Apoio, e que foi

certamente um dos primeiros centros de culto) a profetisa cra enclausurada no templo, à noite, com vistas à união mística com o deus.Aparentemente ela era considerada, ao mesmo tempo, seu mediam esua noiva, como Cassandra deve ter sido, e como a Pítia originalmente segundo as conjecturas de Cook e Latte.36 Isto aponta dc modosimples e direto para a profecia extática de Patara, sendo pouco provável neste caso uma influência délfica.

Concluo então que a loucura profética é, no caso da Grécia, pelomenos tão velha quanto a religião de Apoio. E pode ser que ela sejaainda mais antiga. Se os gregos estavam certos ao conectar |iavuçe (aatvojica [adivinho e louco] - e muitos filólogos crêem que sim37

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AS BÊNÇÃOS DA LOUCURA 77

- é porque a associação entre profecia e loucura pertence já ao estoque de idéias indo-européias. O silêncio de Homero não oferecenenhum argumento concreto contra essa tese. Aliás, vimos anterior

mente que Homero podia muito bem manter-se calado quanto a taisquestões. Podemos ainda reparar que, neste assunto e em outros, o padrão de decoro e de dignidade épica da Odisséia é bastante menor do que o da  Ilíada. A  Ilíada só admite adivinhação na profecia, mas

 já na Odisséia o poeta não pode resistir e introduz algo mais sensacional - como aquilo que os escoceses chamam de segunda visão.3SA visão simbólica do vidente c herdeiro de Apoio, Teoclimenos, nolivro XX, pertence à mesma categoria psicológica das visões simbólicas de Cassandra, no  Agamenon, e da visão da profetisa argiva deApoio que, como narra Plutarco, precipitou-se certa vez pelas ruas,gritando por ter visto a cidade coberta de cadáveres e sangue.39 Eisaí um tipo antigo de loucura profética. Mas não se trata ainda do tipooracular mais comum, uma vez que sua incidência é espontânea cincalculável.40

Em Delfos, e aparentemente cm muitos de seus oráculos, Apo-

lo contava não com visões como as de Teoclimenos, mas com“entusiasmo”, cm sentido literal c original. Pítia tornou-se entlieos, plena deo41- isto é, Apoio a penetrou e usou seus órgãos vocais comose lhe pertencessem, exatamente como o chamado “controle” nos fenômenos mediúnicos modernos. Eis por que as manifestações délficasde Apoio são sempre expressas na primeira pessoa e nunca na terceira. Na verdade, houve aqueles que posteriormente sustentaram qucestava aquém da dignidade de um ser divino penetrar um corpo mor

tal, preferindo acreditar - como m uitos pesquisadores da psiquehumana dc nossos dias - que toda loucura profética se devia a umafaculdade inata da alma, passível de ser exercida em determinadascondições (liberada de interferência corporal e de controle racionaldurante o sono, transe ou ritual religioso). Esta opinião pode ser encontrada em Aristóteles, Cícero e Plutarco,42 e veremos no próximocapítulo que ela foi usada no século V a.C. para explicar sonhos pro

féticos. Como a anterior, ela se presta a abundantes paralelos - podemos chamá-la de “xamanística” cm contraste com a doutrina da possessão.43 Mas como explicação dos poderes da Pítia ela surgecomo uma mera teoria escolástica, produto de reflexões filosóficas eteológicas. Há em todo o caso pouca dúvida de que os dons da Pítiaeram originalmente atribuídos à possessão, e de que tal visão per

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maneceria através da antigüidade - nem mesmo os primeiros pregadores cristãos da patrística o questionariam.44

A possessão profética não esteve sequer confinada aos oráculos oficiais. Não foram apenas figuras legendárias como Cassandra,Báquis e a Sihila que acreditaram ter profetizado em estado de possessão45. Platão também se refere freqüentemente a profetasinspirados, como um tipo familiar nos seus próprios tempos.46 Cabedestacar uma espécie dc ação mcdiúnica privada que era praticadana idade clássica, e mesmo depois, por pessoas conhecidas comobellytalkers, e em seguida como “pítons”.47 Gostaria de saber maissobre estes bellytalkers . um dos quais (um certo Euricles) foi tão

famoso que chega a ser mencionado por Aristófanes e por Platão.48Mas nossa informação mais direta remonta somente a isso: eles possuíam uma segunda voz dentro deles, com a qual se podia manter um diálogo49 e predizer o futuro, que se acreditava pertencer a umdaemon. Eles certamente não eram ventríloquos no sentido moderno do termo, como freqüentemente se sugere.50 Uma referência dePlutarco parece insinuar que a voz do daemon - supostamente umavoz rouca de bellytalker - era ouvida através dos lábios destes. Por 

outro lado, um comentador dc Platão fala da voz como se fosse sim plesm ente uma prem onição in terna.51 Alguns estudiosos têm,entretanto, passado por cima de uma pista importante que não apenas exclui a hipótese de ventriloquismo, como sugere enfaticamenteque o que ocorre é uma situação dc transe. Um estudo de caso feito

 por um médico da tradição de Hipócrates, as  Epideiniae, compara arespiração ruidosa dc um paciente cardíaco a dc “mulheres chamadas bellytalkers". Ora, ventríloquos não respiram estrepitosamente,ao contrário dos “médiuns modernos” que o fazem freqüentemente.52

Mesmo sobre o estado psicológico da Pítia, nossa informaçãoé bastante escassa. Seria bom, cm primeiro lugar, saber como ela eraescolhida e como era preparada para seu alto ofício, mas praticamentenão sabemos de nada além do fato dc que a Pítia dos dias de Plutarco era filha dc um pobre fazendeiro, mulher de educação honesta evida respeitável, mas de pouca educação formal e pouca experiência

do mundo.53 Seria bom, também, saber se ao sair do estado de transeela lembrava do que havia dito; em outras palavras, se sua “possessão" ocorria em situação de sonambulismo ou de lucidez.54 Quantoàs sacerdotisas de Zeus em Dodona, está claramente documentado

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que elas não eram capazes de recordar o que haviam dito, mas nocaso da Pítia não possuímos nenhuma afirmação conclusiva.55 Sabemos entretanto, por Plutarco, que ela nem sempre era afetada da

mesma maneira,56 e que por vezes tudo funcionava errado, comoacontece em algumas sessões mediúnicas modernas. Plutarco relatao caso de uma Pítia que havia entrado em estado de transe após muitarelutância, ficando deprimida com presságios desfavoráveis. Ela falava desde o começo com voz rouca, como se estivesse angustiada e

 parecia tomada por um “espírito mau e estúpido”.57 Finalmente, elase precipitou para a porta gritando e caiu por terra, diante do quêtodos os presentes, e mesmo os  profetas, fugiram em pânico. Quando enfim retornaram para recolhê-la, encontraram seus sentidosrecobrados.58 Mas Pítia morreria dias depois. Não há nenhuma razão para duvidar da verdade da estória, que encontra paralelos emoutras culturas.59 Plutarco provavelmente a havia recebido cm primeira mão do profeta Nicandro, seu amigo pessoal, que havia estado

 presente no momento da horrorosa cena. E importante perceber queo transe era algo genuíno nos dias de Plutarco e que a experiência

 podia ser testemunhada não apenas pelos profetas e por alguns  Hosioi [santos], mas também por inquisidores.60 Em outra passagem, Plu-Larco menciona a mudança dc voz como um traço característico dofenômeno do “entusiasmo”. Isto também é bastante comum em registros tardios dc possessão, e em modernas sessões dc espiritismo.61

Tomo por algo bastante seguro a visão dc que o transe da Pítiaera induzido por auto-sugestão, assim como o transe mediúnico dc

hoje cm dia. Ele era precedido por uma série dc atos rituais: a Pítiaera banhada, provavelmente em Castália; talvez bebesse dc algumafonte sagrada; estabelecia contato com o deus através de uma árvoretambém sagrada (um loureiro), segurando um galho de louro (comoTêmis é retratado em vaso do século V a.C.), ou se incensando comfolhas dc louro queimadas (como narra Plutarco), ou ainda às vezesatravés da mastigação das folhas (como conta Luciano). Enfim, elase sentava no tripé divino, criando desse modo um contato mais ex

tenso com o deus.62 Todas estas práticas são procedimentos comunsde magia e podiam muito bem auxiliar o processo de auto-sugestão,mas nenhuma delas poderia ter qualquer efeito fisiológico sobre a

 pessoa.63 O mesmo se aplica ao que sabemos sobre procedimentosem outros oráculos apolíneol t- beber de uma fonte sagrada em Cia-

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ros e possivelmente em Brânquida, beber o sangue da vítima em Ar-

gos.64 No que concerne aos famosos “vapores” aos quais esteveimputada a inspiração da Pítia, eles são uma invenção helenística,como observou Wilamowitz (a meu ver antes de todos).65 Plutarco,que conhecia os fatos, percebeu as dificuldades da “teoria do vapor"e parece, enfim, tê-la rejeitado por inteiro.; mas a exemplo dos filósofos estóicos, os estudiosos do século XIX aproveitaram para erguer,a partir daí, uma sólida explicação de caráter materialista. Tem se falado menos da teoria, depois que escavações francesas mostraram quenão há tais vapores, e nem tampouco um hiante dc onde eles poderiam b ro tar .66 Exp licações desse tipo são rea lm en te bastan te

desnecessárias - se um ou dois estudiosos vivos ainda as mantêm67é simplesmente porque ignoram certos dados levantados pela antro pologia e pela psicologia.

Estudiosos que atribuíram o transe da Pítia à inalação de gasesmefílicos concluíram naturalmente quc os “delírios” produzidos guardavam pouca relação com a resposta apresentada ao inquisidor. Taisreações devem, portanto, ser produtos dc uma fraude consciente edeliberada, e a reputação do oráculo deve ter se sustentado, em par

te, sobre um excelente “serviço dc inteligência” e, por outro lado,cm uma vasta gama de casos forjados  post eventum. Entretanto, nãohá nenhuma prova que sugira dc modo válido que as respostas dctempos anteriores fossem realmente baseadas nas palavras da Pítia -quando Cleomenes subornou o oráculo para dar-lhe a resposta qucele queria, seu agente aproximou não o profeta ou um  Hosioi , mas a própria Pítia, seguindo-se o resultado desejado (sc pudermos quantoa isso confiar na palavra dc Heródoto68). Assim também, se tempos

depois c como insinua Plutarco, os inquisidores já podiam, ao menos em alguns casos, ouvir as palavras da Pítia cm transe, é que asdeclarações desta já não podiam mais ser falsificadas tão facilmente

 pelo profeta. No entanto, só nos resta concordar com o professor Parke quando ele afirma que “a história de Delfos oferece mostrassuficientes dc uma política consistente para nos convencer de que ainteligência humana podia desempenhar, em algum momento, um pa

 pel decisivo no processo de transe”.69 A necessidade de reduzir as

 palavras da Pítia a uma ordem, ligando-as ao ato de inquisição, e àsvezes (mas nem sempre)70 colocá-las em forma de verso, evidentemente deu uma maior margem de ação à intervenção da inteligênciahumana. Não podemos enxergar dentro das mentes dos sacerdotes

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délficos. mas suspeito que imputar em geral tais manipulações a umafraude cínica e consciente é simplificar por demais o quadro. Qualquer pessoa familiarizada com a história do espiritismo moderno

notará a incrível quantidade de engodo que pode ser realizada emhoa fé por crentes convictos.

Seja como for, os raros casos de claro ceticismo a respeito deDelfos, antes do período romano, são algo muito impressionante.71O prestígio do oráculo deve ter estado firmemente enraizado para ter sobrevivido ao escandaloso comportamento das guerras médicas. Nesta ocasião Apoio não demonstrou nem presciência, nem patriotismo, mas mesmo assim seu povo não lhe virou as costas com desgosto. Ao contrário, suas tentativas desastradas para ocultar seu rastroe ingerir suas palavras parecem ter sido aceitas sem questionamento.72 A meu ver, a explicação para isto deve ser buscada nas condições sociais e religiosas descritas no capítulo precedente. Em umacultura da culpa, a necessidade dc se assegurar pelo sobrenatural, de

■i+ma autoridade transcendente, parece se extremamente forte. Mas aGrécia não possuía nem uma Bíblia, nem uma igreja11 - eis por que

Apoio, vigário do pai celeste sobre a terra,74 surgiu para preencher ovazio. Sem Delfos a sociedade grega mal teria conseguido suportar as tensões às quais estava sujeita a era arcaica. A esmagadora atmosfera dc ignorância c dc insegurança humanas, o horror do  phthonos divino e do miasma - o peso acumulado dc tudo isso teria sido insu

 portável sem a segurança que um conselheiro divino onisciente podia oferecer, segurança de que por detrás do caos aparente havia

conhccimcnto e finalidade. “Sei a conta dos grãos de areia c as medidas do mar”; ou como diria um outro deus a outro povo: “cada ca belo de sua cabeça está numerado”. Do alto dc seu conhecimentodivino, Apoio seria capaz dc dizer o quc fazer quando alguém sesentia ansioso ou temeroso; ele conhecia as regras do jogo com plicado que os deuses jogam com a humanidade; ele era o supremoaÀ.£l;tKaKOÇ (“aquele que adverte sobre o mal”). Os gregos acreditavam no seu oráculo, não por serem tolos supersticiosos, mas

 porque não podiam viver sem acreditar. E suspeito ainda que a ra-7fin prinr ip al dn riprlfnm dfí P elfos. ocorrido no período helenístico,

- nãoJm-um-c&ücismo maior por parle dos homens (como pensa Cícero),75mas sim o surgimento de outras formas de asseguramento religioso.

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Tudo isso vale para a loucura profética. Quanto aos outros ti pos de loucura descritos por Platão, creio poder abordá-los de maneira breve. No que tange àquilo que Platão chama de loucura ritual, uma

grande luz foi lançada a partir de dois textos recentes do professor Linforth.76 Não será necessário repetir aqui o que ele já disse melhor do que eu. Nem sequer repetirei o que eu próprio disse, em artigo

 publicado anteriormente,77 a respeito daquilo que assumo ser o protótipo da loucura ritual - a dionisíaca op ei j3 aa ia, a “dança damontanha”. Gostaria entretanto de fazer algumas observações de caráter mais genérico.

Se minha compreensão do ritual dionisíaco dos primórdios está

correta, a função social deste era essencialmente catártica,78 em sentido psicológico - tratava-se de purgar o indivíduo de impulsosirracionais infecciosos que, uma vez invocados, davam margem, comocm outras culturas, a efusões de dança ininterrupta e a outras manifestações de histeria coletiva. O ritual proporcionava assim umadescarga c um alívio. Se isso é verdade, Dioniso representava umanecessidade social tão grande quanto Apoio para o período arcaico.Cada um dclcs cuidava, a seu modo, das ansiedades características

dc uma cultura baseada na culpa. Apoio prometia segurança: “Entenda sua condição humana, faça como lhe diz o Pai e você estaráseguro no dia de amanhã.” Dioniso oferecia liberdade: “Esqueça adiferença e você encontrará a identidade, una-se ao Ôtaaoç [grupode pessoas alegres, cclebradores do deus Dioniso] e você será felizno dia de hoje,” Este último deus cra essencialmente um deus de alegria, 7toÀ/uyr|0r|ç como Hesíodo o denomina; xcxpjia ppOTotaiv

como diz Homero.74 E sua alegrias eram acessíveis a todos, incluindo escravos e homens livres afastados dos cultos dc pessoas idosas.80Apoio, por sua vez, circulava apenas cm meio à alta sociedade, dosdias em que ele era patrono de Heitor até quando ele passou a canonizar atletas aristocráticos. Mas Dioniso foi por todos os períodosôr||a,OTiKOÇ, isto é, um deus do povo.

As alegrias de Dioniso eram de espectro extremamente variado: dos prazeres simples do homem rústico no campo, dançando sua

 jiga com peles de bode ensebadas, ao co|_tO(payoç xotpiç [charme an-tropofágico] do êxtase bacanal. Nos dois níveis, bem como nos níveisintermediários, Dioniso é Lusios, “o libertador” - deus que, por meiosmais ou menos simples, confere ao homem o poder de deixar de ser-

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 pte-mí^aaqxHLum curto período de tempo, tornando-o assim livre.Este foi, na minha opinião, o principal segredo de seu poder de sedução na era arcaica; não apenas porque a vida neste período era

freqüentemente algo do que os homens queriam se livrar, mas demodo mais específico, porque o indivíduo, tal qual o mundo moderno conhece hoje, já começava a emergir pela primeira vez nessaépoca, a partir do ideal de solidariedade familiar,81 encontrando no

 peso da responsabilidade individual algo difícil de suportar. Dioniso podia retirar tal peso por ser afinal de contas o mestre das ilusõesmágicas, capaz dc fazer a vinha nascer da prancha de uma embarca

ção, e de fazer seus devotos enxergarem o mundo como ele não é.82Como os cítios afirmam na obra de Heródoto, “Dioniso leva as pessoas a se comportarem loucamente” - o que pode significar desde“deixar-se levar” até “ser possuído”.83 O objetivo do culto ao deusera o êxtase - que ainda aqui poderia significar desde “sair de si”até uma alteração mais profunda da personalidade.84 Enfim, sua função psicológica era satisfazer e aliviar o impulso de rejeição da

 personalidade, impulso que existe em todos nós e que pode se tor

nar, sob certas condições sociais, um desejo dc força irresistível.Podemos enxergar o protótipo mítico desta espécie dc cura homeo

 pática na estória de Melampo. que cura a loucura de uma mulher argiva “com o auxílio de gritos rituais e uma dança de possessão.”85

Com a incorporação do culto dionisíaco à religião civil grega,a função supracitada seria gradualmente recoberta por outras.86 A tradição catártica parece ter sido continuada, dentro de certos limites,

 por associações dionisíacas particulares,87 mas, no essencial, a curados atormentados passa na Idade Clássica para outras formas de culto. Há duas listas de poderes que o pensamento popular do final doséculo V a.C. vincula a distúrbios mentais e psicofísicos, e é bastante significativo que Dioniso não figure em nenhuma delas. Uma delasaparece no  Hipólito , a outra no de morbo sacro.88 Ambas as listasincluem Hécate e a “mãe dos deuses” ou “mãe da montanha” (Cibele). Eurípides acrescenta o deus Pan89 e os coribantes; Hipócrates

inclui Poseidon, Apoio, Nômios e Ares, assim como os “heróis” quesão simplesmente os mortos indômitos ligados à figura de Hécate.Todos são mencionados como divindades que causam problemasmentais. Supunha-se que todos podiam curar o que haviam causado,se sua ira fosse convenientemente apaziguada. Mas em torno do sé

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culo V a.C. os coribantes haviam desenvolvido, a seu modo, um ritual especial para o tratamento da loucura. Parece que a “mãe dosdeuses” havia agido da mesma maneira (se é verdade que seu culto

era na época distinto do culto dos coribantes),911e talvez Hécate tam bém.91 Porém, a respeito destes cultos não possuím os nenhumainformação detalhada. Do tratamento coribântico sabemos algumacoisa. Como a análise paciente de Linforth veio dissipar muito danévoa que encobria o assunto, contentar-me-ei em salientar alguns poucos pontos que ajudarão a responder certas perguntas que tenho

em mente.1) Podemos notar inicialmente uma semelhança essencial entre

a cura coribântica e a cura dionisíaca. Ambas afirmam operar umacatarse por meio de uma dança “orgiástica” infecciosa, acompanhada por música do mesmo gênero - melodias à maneira frigia, tocadascom flauta e tambor especial.92 Parece correta a inferência dc quc osdois cultos atraíam tipos psicológicos semelhantes, e produziam reações psicológicas também similares. Destas reações não possuímosinfelizmente nenhuma descrição precisa, mas elas são certamente sur preendentes. Segundo o testem unho de Platão, os sintomas dc otKOptipavTicovxeç [transporte coribântico] incluíam ainda acessos dechoro e violenta taquicardia,93 esta acompanhada de distúrbios mentais. Os dançarinos ficavam “fora dc si” a exemplo dos dançarinosde Dioniso, e aparentemente entravam numa espécie dc transe.94 Aquidevemos lembrar a observação de Teofrasto de quc a audição é o maisemotivo (TtaBextKCOXCXTriv) dc todos os sentidos, e também os efeitos morais singulares quc Platão atribui à música.95

2) Diz Platão quc a doença quc os coribantos afirmavam seremcapazes dc curar consistia cm “fobias e sentimentos de ansiedade(8 et|iaxa) brotando de condições mentais dc tipo mórbido”.96 A descrição é bastante vaga e Linforth está, sem dúvida, certo ao dizer quca antigüidade não conhecia nenhuma doença específica ligada ao“Coribantismo”.97 Se pudermos confiar no que diz Aristides Quinti-liano, ou em sua fonte peripatética, veremos que os sintomas queencontraram relevância dentro do ritual dionisíaco eram de mesma

natureza.98 É bem verdade que certas pessoas tentaram distinguir entre diferentes tipos de “possessão”, através de suas manifestações deextravaso, como em uma passagem do de morbo s a c r o Mas o teste real parece ter sido a resposta do paciente a uma forma particular 

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de ritual: se os ritos de um deus X eram capazes de estimulá-lo e produzir catarse, isso deixava claro que seu problema era devido aomesmo X;100 se por outro lado ele não reagia, a cura devia estar em

outro lugar. Como os velhos senhores da paródia de Aristófanes, se0 homem não respondesse a Coribantes, podcr-se-ia tentar Hécate ouretornar ao clínico geral Asclépios.101 Platão nos conta no  Ion que01 KopnPavTtcovxeç “têm o ouvido apurado para apenas um tipo demelodia, exatamente aquele tipo que pertence ao deus através do qual

eles são possuídos, e a esta melodia eles reagem livremente por meiode gestos e dc falas, ignorando todas as outras melodias”. Não tenhocerteza se oi KOpDpavxictívteç está sendo usado aqui sem rigor, comoum termo geral para designar “pessoas em estado de ansiedade” quetentam um ritual atrás do outro, ou se a expressão significa “aquelesque tomam parte no ritual coribântico”. No segundo caso, o desem penho coribântico deve ter incluído tipos diferentes de músicareligiosa, introduzidos com objetivos dc fornecer um diagnóstico.102Mas de qualquer maneira a passagem mostra que o diagnóstico era baseado na resposta do paciente à música. E o diagnóstico era o pro

 blema essencial, como cm todos os casos de “possessão” - uma vezque o paciente soubesse que deus eslava lhe causando incômodo, eleestaria apto a apaziguá-lo através dos sacrifícios apropriados.103

3) O procedimento completo, e os pressupostos sobre os quaisele se baseava, são altamente primitivos. Mas não podemos descartá-los (este é o último ponto que eu gostaria dc ressaltar) nem comouma banal forma dc atavismo nem como um capricho mórbido dealguns neuróticos. Uma frase fortuita de Platão104 parece, por exem plo, sugerir que Sócrates havia tomado parte em ritos coribânticos.Isto mostra com certeza, e como observou Linforth, que jovens inteligentes e dc boa família podiam perfeitamente participar de tais ritos.Se o próprio Platão aceitava todas as implicações religiosas do ritualé uma questão aberta a ser considerada mais adiante,105 mas tanto elequanto Aristóteles a encaravam pelo menos como um instrumentoútil de higiene social - eles acreditavam que a prática funcionava, e

funcionava para o bem dos que participavam.106 Na verdade, métodos análogos parecem ter sido utilizados por leigos, na épocahelenística e romana, para o tratamento de certos distúrbios mentais.Algumas formas de catarse musical haviam sido praticadas por pita-góricos no século IV a.C. e talvez antes mesmo,107 mas a escola

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 peripatética parece ter sido a primeira a estudá-la à luz da fisioiogiae de uma psicologia das em oções.1011Como Platão, Teofrasto acreditava que a música era boa para estados de ansiedade.1119No século I a.C.

encontramos Asclepiades, médico romano da moda, tratando doentes mentais por meio de “sinlonia ; e já na era dos Antoninos, Soranomenciona a música de flauta entre os métodos utilizados em seus dias para o tratamento de depressão ou daquilo que chamaríamos hoje dehisteria."" Assim, a velha catarse mágico-religiosa foi afinal destacada de seu contexto religioso e aplicada ao campo da psiquiatrialaica a fim de suplementar o tratamento puramente físico que os mé

dicos hipocráticos usavam.

Resta o terceiro tipo de loucura “divina” mencionado por Platão, que ele define como “possessão (KaTOKíüxn) através das musas”,e declara ser indispensável para a produção do melhor gênero de poesia. Quão antiga é esta noção, e qual a conexão original entre os

 poetas e as musas?Uma das conexões remete, como sabemos, de volta à tradição

épica. Foi uma musa que tomou de Demodocus sua visão coipoial,dando-lhe em troca por amor, algo melhor - o dom da canção.1" Etambém pela graça das musas, como diz Hesíodo, que alguns homenssão poetas; assim como é pela graça de Zeus que outros são reis .11-Podemos garantir que isto não traduz ainda uma linguagem oca, servindo apenas de cumprimento formal aos poetas, como será o caso

 posteriormente, mas que se trata de uma linguagem com conotaçõesreligiosas. Até certo ponto o significado disso é bastante simples:como todas as realizações que não dependem totalmente da vontade

humana, a criação poética contém um elemento que não é “escolhido”, mas sim “concedido”."3Para o grego antigo, dizer que a piedadeé “concedida” quer dizer que ela é “divinamente concedida” ."4 Nãofica muito claro em que consiste este elemento “concedido”, mas seconsiderarmos as ocasiões em que o poeta da llíada apela às musas para obter ajuda, veremos que o elemento em questão concerne aoconteúdo e não à forma. O poeta sempre pergunta às musas o queele deve dizer, nunca como deve dizê-lo e as questões são sempre

de fato. Inúmeras vezes ele pede informação sobre batalhas impoi-ta n te s.115 Nu m a delas ele invoc a as musas de modo bastanteelaborado, suplicando por inspiração a respeito de uma lista para aformação do exército - “porque vocês são deusas, assistindo a todas

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as coisas, sabendo todas as coisas, enquanto sabemos apenas por ouvir 

falar, sem verdadeiro conhecimento de causa”.116 Estas palavras ávidas por ajuda possuem o halo da sinceridade; o primeiro homem a

usá-las sabia da falibilidade da tradição e se sentia incomodado por isso. Ele queria provas diretas das verdades transmitidas. Mas numa

época sem documentos escritos, onde encontrar tais provas diretas?

Assim como a verdade sobre o futuro só seria atingida se o homem

entrasse em contato com um conhecimento mais amplo, a verdadesobre o passado também só poderia ser preservada em condições similares. Os repositórios humanos de tais verdades (os poetas)

 possuíam (a exemplo dos videntes) recursos técnicos próprios, certotreinamento profissional. Mas a visão do passado, como a intuição

quanto ao futuro, permanecia uma faculdade misteriosa, apenas parcialmente sob seu controle, dependente, em última instância, da graça

divina. Através dessa graça, poeta e vidente podiam ambos usufruir 

de um conhecimento117que era vedado a outros homens. E m jío m e-ro as duas profissões são bastante distintas, mas temos boas razões para crer que certa vez elas haviam estado unidas,níi pois a analogia

entre as duas profissões continuava ainda a ser sentida.

Portanto, o dom das musas (ou um dos seus dons) é o poder 

da fala verdadeira. E exatamente o que elas diziam a Hesíodo quando este ouvia suas vozes no Helicon, embora elas admitissem poder contar também uma série de mentiras imitando a verdade,]19confor

me a ocasião. Não sabemos que mentiras específicas as musas tinhamcm mente, mas elas talvez quisessem insinuar que a verdadeira ins

 piração da saga estava fadada ao fracasso como uma mera invenção- o tipo de invenção que podemos ver nos trechos mais recentes da

Odisséia. Seja como for, era uma verdade detalhada e factual que

Hesíodo buscava; fatos de tipo novo, que lhe permitiriam reunir asdiversas tradições sobre os deuses e preencher a história com os nomes e relações necessárias. Hesíodo tinha paixão por nomes, e quando

 pensava em um novo, não o encarava como algo inventado, mas como

algo que a musa havia lhe concedido. Ele sabia ou esperava que aquilo fosse “verdadeiro”. Na realidade ele interpretava um sentimento partilhado por muitos outros escritores120(o sentimento de que a criatividade não é um trabalho emanando do ego) em termos de ummodelo tradicional de crença.

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8 8 O s GREGOS E O IRRACIONAL

Também Píndaro pedia à musa: “Dê-me um oráculo e eu sereiseu porta-voz (írpocfiateDaco)”.121 Aqui, as palavras utilizadas são termos técnicos de Delfos. Nelas está implícita a velha analogia entre

 poesia e adivinhação. Mas é preciso observar que é a musa e não o poeta que desempenha o papel de Pítia. O poeta não pede para ser “possuído” mas apenas para agir como intérprete da m usa122 encantada. Isto parece refletir uma relação original. A tradição épicarepresentava o poeta como capaz de retirar das musas um conhecimento acima do normal, porém não como alguém em estado de êxtaseou mesmo possuído pelas musas.

 Não há indícios da noção de poeta “enlouquecido”, compondo

em estado de êxtase, antes do século V a.C. E claro que ela pode ser até mesmo anterior, já que Platão, por exemplo, chama-a de uma velha estória, r ta ^ a to ç iíuGoc,.123 Da minha parte eu diria que se tratade um subproduto do movimento dionisíaco, enfatizando, por sua vez,a importância de estados mentais anormais, que não seriam meroscaminhos para o conhecimento, mas sim algo válido por si mesmo.124Mas o primeiro escritor de quem temos conhecimento a falar sobreêxtase poético é Demócrito, que defendia a tese dc que os melhores

 poem as eram com postos jjlet’ e v 0 o \)a ta a |io t)ç K ai te p o vTtveujJOCTOÇ - isto é, “por inspiração e num sagrado murmúrio” -,negando ainda que alguém pudesse ser grande poeta  sine furore.125Como enfatizaram alguns estudos mais recentes,126 é mais a Demócrito do que a Platão que devemos atribuir o crédito duvidoso de ter introduzido na teoria literária esta concepção do poeta como um homem à parte da hum anidade,127devido a uma experiência interior 

anormal, e esta outra concepção, da poesia como revelação para aléme acima da razão. A atitude de Platão diante de tais afirmações foi,na verdade, bastante crítica - mas isso é assunto para outro capítulo.

N otas  do   capítulo III

1. Platão, Fedro, 244A.2. Ibid., 244B: xcov rcaArncov oi t a ovaram 'uBepevot o u k oicxpov iiyouvxo odSe oveiSoç pccvtav, implicando que, atualmente, o povo o con-sidera caoxpov. Hipócrates, morb. saci:  12, fala da aiaxuvq

3. Ibid.. 265A.

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AS BÊNÇÃOS DA LOUCURA 89

4. Ibid.. 265B. Cf. A descr ição completa dos três primeiros tipos, 244A-245A.5. Cf. cap. VII adiante.

6. Heródoto 6.84 (cf. 6.75.3).

7. Ibid., 3.33. Cf. também Xenolonte,  Mem. 3.12.6.

8. Caelius Aurelianus, de morbis chronicis 1.5 = Diles, Vorsokr. 31A 98. Cf.

A. Delatte,  Les conceptio ns de l ’enth ousia sm e cliez le s phil osophes  

 présocratiques, 21 sg. Mas é impossível ter certeza de que a doutrina remeta ao próprio Empédocles.

9. O. Weinreich,  Menekrates Zeus und Salm oneus (Tübinger Beitráge zur Altertumswissenschali, 18).

10. Sobre a confusão entre epilepsia e possessão no pensamento popular, em di

versos períodos, ver a monografia história extensiva de O. Temkin, The 

 Falling Sickness (Baltimore, 1945), 15 sg„ 84 sg., 138 sg. Muitas descrições medievais e renascentistas altamente vividas dos “demônios” são repletas

de sintomas característicos de epilepsia, por exemplo, a língua projetada

“como uma tromba de elefante”, “prodigiosamente grande, longa e pendura- jü-Q

da para fora da boca"; o corpo “totalmente tenso e rígido, com seu pé próximo ii j

à cabeça”, “inclinado para trás como um arco” ; e uma involuntária liberação

de urina ao final (T.K. Oesterreich,  Possession, Dem oniacal and Other. Tra- — 

dução inglesa, 1930, p. 18, 22, 179, 181, 183). Tudo isso era conhecido dos

médicos racionalistas gregos como sintomas de epilepsia: ver Aretaeus, de causis et signis acutorum morborum, 1 sg. Kühn (que também menciona o b —-sentimento de ser sovado). '

11. Heródoto 4.79.4: iipeaç o 0eoç ÀajifiavEx e os adjetivos tDDp^o^ri^oç, ç h !  0EOÀ,r|jt;xoç. Cumont,  LÉgypte des astrologues, 169, n. 2. Mas E7uXr|TCioç

 já era conhecido no de morbo sacro sem qualquer implicação religiosa,

Aretaeus, op. cit., 73 K, dá quatro razões do porquê da epilepsia ser chama-  Ll j  

da i£ p a vo oo ç: a) Sokeex A.ap xotcu eç xrjv geX tivtiv aX ix p o io i^ ^-

a<j)iKVEi00ai r| voucoç (uma teoria helenística, cf. Temkin, op. cit., 9 sg.^Z?

90 sg.); b) r\ |a£y£0oç xou kcckou i£pov yap xo p£ya; c) ri tr|Gioç oukçJav0pcú7avr|Ç aXXa 0£ir|ç (cf. morb. sacr. I, VI.352.8 Littré); d) r| Sai^Ttvofet

Sof riç eç xov av0pco7tov eooSou. A última era, povavelmente, a razão o rF ^

ginal, porém o pensamento popular sobre tais assuntos tem sido sempre vago

e confuso. Platão, que não acreditava no caráter sobrenatural da epilepsia,

defendeu porém o termo i£pa voooç por ela afetar a cabeça que é a parte

“sagrada” do homem {Timeu, 85AB). Ela também é chamada “heiliges Weh”na Alsácia.

12. Morton Price, The Dissociation of a Personality. Cf. também P. Janet,Uautomatisme psychologique\ A. Binet,  Les altérations de la personalité',Sidis e Goodhart,  Multiple Personality, EW.H. Myers,  Human Personality, 

cap. II. A significação destes casos para a compreensão das idéias antigas

de possessão foi enfatizado por E. Bevan, Sybils and Seers, 135 sg., e era

também apreciada por E. Rohde ( Psyche, App. VIII).

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13. Cf. Seligman,  JRAI  54 (1924) 261: “entre os povos mais primitivos de que

tenho conhecimento pessoal ... observei mais ou menos por toda a parte a

tendência a uma pronta dissociação da personalidade”.

14. O de morbo sacro se refere a sonambulismo (c. 1, VI.354.7 Littré) e diz-se

que é causado, na opinião de curandeiros mágicos, por Hécate e pelos mor

tos (ibid., 362.3). Os fantasmas tomam possessão do corpo vivo que seu

ocupante deixa vago durante o sono. Cf. trag. adesp. 375: evtmvov (j)av-

TaCTfxa cf>o(3ri /G ov ia ç 0 E m xriç kco|íov eôe co. Sobre a origem sobrenatural

da febre, cf. as divindades da febre H7ttaA.r|ç, Ti<t>t>ç, Evoraxç (Didymus apud  

Z Ar. Vesp. 1037); o Templo da Febre em Roma, Cic.  N.D. 3.63, Plinio,  N.H. 

2.15 e supra, cap. 11, nota 74.

15. Cf. Osterreich, op. cit., 124 sg.

16. Odisséia, 18.327. Na  Ilíada, por outro lado, tais expressões como ek 8e oitivio^oç 7iÀ.T|Yr| <|)p£vaç (13.394) não implicam nada de sobrenatural: a con

dição temporária de condutor do terror estupefato tem uma causa normal.

 Na  Ilíada, 6. 200 sg., Belerofonte é visto como mentalmente atingido pelos

deuses, mas a linguagem em pregada é vaga.

17. Odisséia, 20.377. Apoll. Soph,  Lex. Hom. 73.30 Bekker explica E7t:i|iaoTOç

como E7ti7tÀriKTOç, Hesychius como £7tiXri7iTOÇ. Cf. W. Havers,  Indogerm. 

 Forschungen, 25 (1909) 377 sg.

18. Odisséia, 9.41 Osg. Cf. 5.396: aruycúpoç 8e oi E/paE Sai^oav; aí, contudo,a doença parece ser física.

19. Ver B. Schmidt, Volksleben der Neugriechen, 97 sg.

20. Hip.,  De morbo sacro 18 (VI.394. 9 sg. Littré). Cf. aer. aq. loc. 22 (11. 76.

16 sg/ L.), que talvez seja um trabalho do mesmo autor (Wilamowitz, Berl.

Sitzb. 1901, 8, 16),  z fla t. 14 (VI. 110L.). Mas mesmo as opiniões médicas

não eram unânimes sobre este problema. O autor do hipocrático  Prognostikon 

 parece crer que certas doenças têm “algo de divino” (c. 1, II. 112.5 L.). Ape

sar do que afirma Nestle, Griech. Studien, 522 sg. isto parece ser uma visão

diferente com relação ao de morbo sacro', doenças “divinas” são um grupo

especial que é importante que os médicos detectem (pois são incuráveis por 

meios humanos). E o tratamento mágico da epilepsia nunca desapareceu de

fato. Na antigüidade tardia, Alexandre de Trales conta que am uletos e recei

tas mágicas são utilizadas por “alguns”, sem sucesso, no tratamento desta

doença (1.557 Puschmann).

21. Sobre a questão do escravo Aristófanes, Vespas 8.- aXX r| 7tapot(|)ov£iç exeov

r| Kopupavnaç; talvez implique a distinção entre loucura “natural” e “divi

na”. Mas a diferença entre napa<j)pov£tv e KopuPocvTiov pode ser apenas degrau, sendo a perturbação mental mais leve atribuída aos Coribantes (infra).

22. Aristófanes,  Aves 524 sg. (cf. Plauto,  Poenulus 527); Teofrasto, Caráteres 

16 (28 J.) 14; Plínio,  N.H. 28.4.35 “despuimus comitiales morbos, hoc est,

contagia regerimus” e Plauto, Captivi 550 sg.

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A s BÊNÇÃOS DA LOUCURA 91

23. “A perturbação mental, que me parece ser excessivamente comum entre os

camponeses gregos, coloca o paciente não apenas à parte dos seus semelhan

tes, mas, em certo sentido, acima deles. As suas afirmações são recebidas

com um certo temor e, mal são compreendidas, são tomadas como profe

cias” (Lawson,  M odem Greek Folkore and Ancient Religion, 299), Sobreos dons proféticos atribuídos aos epilépticos, verTemkin, op. cit., 149 sg.

24. Sófocles,  Ajax 243 sg. É uma crença difundida entre povos primitivos que

 pessoas em estados mentais alterados falam de um a linguagem “divina” es

 pecial; cf. O esterre ich, op. cit., 232, 272; N.K. Chadwick,  Poetry and  

 Prophecy, 18 sg., 37 sg. Comparar também com as pseudo-línguas faladas

 por certos automatistas e entusiastas de religião, dos quais diz-se freqüente

mente que, como Ajax, eles aprenderam “dos espíritos” (E. Lombard,  De la 

 glossolalie chez les prem iers chrétiens et les phénom ènes similaires, 25 sg.).25. Sófocles,  Édipo em Colona 1258: A.-uoocovxi S ouxco Satpovrav SeiKVuai

xiç O mensageiro prossegue e diz que Edipo foi “levado” ao lugar certo

(1260, coç u(|>r|Yr|TOTj xtvoç). Em outras palavras, ele recebe o crédito por 

uma clarividência temporária de origem sobrenatural.

26. Platão, Timeu, 71 E. A ristó tele s, div. p. somn. 46 4a 24: ev io u ç xcov

eKxncraKCúv íipoopan.

27. Heráclito, frag. 92 D: ZipuAÀa 5e naivoevco aTopaxi aye?iacyxa Kat

aKcdXamiaxa tcai aiiuptaxa (j)0e7yo(X8vri xilicov excúv e^ncveixat xr|

<j)covri 8ia xov 0eov. O contexto do fragmento de Plutarco ( Pít. or. 6, 397A)deixa praticamente certo que as palavras 8ia xov 0eov são parte da citação

e que o deus em questão é Apoio (cf. Delatte, Conceptions de Venthousiasme,

6, n. 1).

28. Rohde,  Psyche. 260, 289 sg.29. A visão de Rohde é assumida, por exemplo, por Hopfner em P.-W. s.v.

 pavxiKTy, E. Fascher, 11 po<|)r|XT|ç, 66; W. Nestle, \o m Mythos zum Logos, 

50; Oesterreich,  Possession, 311. Contra: Farnell, Cults, IV, 190 sg.;

Wilamowitz, Glaube der Hellenen, 11.30; Nilsson, Geschichte, 1.515 sg.;Latte, “The Corning of Pythia”, Harv. Tlieol. Rev. 33 (1940) 9 sg. O profes

sor Parke (History of the Delphic Oracle, 14) se inclina para a opinião de

que Apoio assumiu o controle da Pítia em Delfos em virtude de seu sexo

(esperaríamos que Apoio tivesse um sacerdote), mas creio que este argumento

é adequadamente revisto por Latte.

30. Eurípides faz Tirésias afirmar que Dioniso é, entre outras coisas, o deus da

 profecia ex tática (Bacantes, 298 sg.) e por Heródoto 7.111 sabemos que o

transe mediúnico da fêmea foi realmente praticado no oráculo trácio, em

Satrae (cf. Eurípides,  Hec. 7267, onde ele é chamado 8 Opi^t pavxiç). Masna Grécia ele encontrou um deus mântico já em possessão e parece, assim,

ter-se demitido desta função ou, de qualquer forma, permitiu-lhe que ficasse

em segundo plano. Na era romana havia um oráculo extático com sacerdote

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9 2 O s GREGOS E O IRRACIONAL

masculino em Fócis (Pausânias 10.33.11,  IG IX.1.218) e o culto apresenta

traços orientais (Latte, loc. cit., 11).

31. Phoenicia: Gressmann , Altorien ta lische Texte u. Bilder zum A. T, 1.225 sg.

Hitlites: A. Gõtze,  Kleinasiatische Forschungen, 1.219; O.R. Gurney, “Hittite

Prayers of Mursili II”,  Liverpool Annals, XXVII, Cf. C.J. Gadd,  Ideas o f  

üivine Ride in the Ancient Easl  (Sehweich Lectures, 1945), 20 sg. Há ainda

uma série de oráculos assírios, datando do reinado de Esarhaddon nos quais

a deusa Ishtar fala através da boca de uma sacerdotisa (em transe?) cujo nome

é dado; ver Guillaume,  Prophecy and Divina tion among the Hebrews and  

Other Semites, 42 sg. Como o Geojiavxeiç em Platão, Apol. 22C, diz-se que

tais profetas “produzem aquilo que não sabem” (A. Haldar,  Associations o f  

Cult Prophets among the Ancient Semites, 25). Gadd crê que a profecia ex

tática é em geral mais antiga do que a adivinhação como arte (“os oráculose a profecia tendem a solidificar-se com práticas de adivinhação formal”); e

Halliday é da mesma opinião (Greek Divination, 55 sg.).

32. Nilsson, Greek Popu lar Religion, 79, seguindo B. Hrozny, Ach Or.8 (1936)

171 sg. Infelizmente a leitura de “Apulunas” que Hrozny afirma ter decifra

do de uma inscrição hieroglífica hitita é contradita por outros estudiosos

competentes: ver R.D. Barnett,  JHS 70 (1950) 104.

33. Cf. Wilamowitz, “Apollon”,  Hermes 38 (1903) 575 sg.; Glaube, I. 324 sg. e

(para os que não lêem alemão), sua versão inglesa de Apoio (1908), traduzida por Murray.

34. Claros, Paus. 7.3.1; Branchidae (Didyma), ibid., 7.2.4. Cf. C. Picard,  Ephèse 

et Claros, 109 sg.

35. Cf. a discussão de Farnell Cults, IV. 224. A antiga evidência é coletada ibid.,

403 sg.

36. Heródoto 1.182. Cf. A.B. Cook,  Zeus, II. 207 sg. e Latte, loc. cit.

37. Assim Curtius, Meillet, Boisacq, Hofmann. Cf. Platão,  Feclro, 244C.. Eurí

 pides,  Bacan tes 299.

38. Odisséia, 20.351. Não posso concordar com Nilsson, Gesch. I. 154 e com o

que ele afirma da cena (“dichterisches Schauen, nicht das sogenannte zweite

Gersicht”). O paralelo com o simbolismo da visão céltica, referido por Monro

ad loc., parece muito provavelmente acidental. Cf. também Ésquilo,  Eumê 

nides 378 sg.: xoiov em, icvetfiaç avôpi puaouç-Tcercoxaxai, Kai 8tt>o(|)spav

xiv ocxXvv K axa Scüpaxoç au Saxax» TtoÀ/ooxovoç ((laxiç e para simbólica

visão de sangue, Heródoto 7. 140.3 e a passagem de Plutarco mencionada

na próxima nota, bem como  Njals Saga, c. 126.

39. Plutarco,  Pirr. 31: ev xr| 7toAei xcov Apyeuov r| xou AuKeiou 7tpo(|>T|xiçAttoAAcovoç e^eôpajae pocoaa veKpmv opav Kai (^ovou KaxaítíVeco xr]v

7xoA.iv.

40. Isto poderia estar disponível tanto em horas de poente simplesmente pelo

uso de mecanismos análogos ao da “bola de cristal” medieval. Isto foi feito.

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A S BÊNÇÃOS DA LOUCURA 93

talvez, no oráculo apolíneo menor de Kuocveat em Lycia, onde Pausânias

diz que era possível eoco eviôovra Tiva eç tr|v rcr|A,Tiv op-oicoç Ttavta

orcoa a GeÀet 0 e a a a a 0 a i (7.21.13).

41. £ V 0 e o ç nunca significa que a alma tenha deixado o corpo e esteja “com Deus”

como sugere Rohde, mas que o corpo tem um deus dentro de si, como£|!V]n>xoç significa que isso tem dentro dele (ver Pfister in  Pisc iculi

 F.J. Doelger dargeboten [Münster, 1939], 183). Não posso também aceitar 

a visão de que a Pítia se tomou ev0£OÇ apenas no sentido de “um estado de

graça resultante do cumprimento de ritos” e que seu “êxtase inspirado" é uma

invenção de Platão, como P. Amandry sustentou recentemente em um estu

do cuidadoso e erudito que infelizmente não recebi em tempo para utilizar 

na preparação deste capítulo,  La mantique apollin ienne à Delphes (Paris,

1950), 234 sg. Nele o autor claramente rejeita a “frenética” Pítia de Lucano

e da tradição vulgar, mas seu argumento é viciado pela hipótese, comum en

tre aqueles que nunca viram um “médium” em transe de que a “possessão”

é necessariamente um estado de excitação histérica. Ele também parece com

 preender mal o  Fedro, 244B que certamente não significa que a Pítia também

concedia oráculos em estado normal (ac o^povow a) , mas apenas que à parte

sua mediunidade ela não possuía dons particulares (cf. n. 53 abaixo).

42.  Apud  Sexto Empírico, adv. dogm. 3.20 sg. = fr. 10 Rose. Cf. Jaeger.  Aris tó -

teles; Problemática 30, 954“ 34 sg.; R. Walser. “Un frammento nuovo di

Aristotele”, Stud. Ital. Fil. Cias. N.S. 14 (1937) 125 sg.; Cic. de divin. 1.18,64, 70, 113; Plutarco. def. orac. 39 sg., 43IEsg. Cf. Rohde,  Psyche, 312 sg.

43. Alguns escritores como Farnell (Greece and Babylon , 303) utilizam os ter

mos “xam anismo” e “possessão” comc sinônimos. Mas o traço característico

do xamanismo não é a entrada de um espírito alienígena no xamã, mas a

liberação do espírito xamanístico que deixa seu corpo e parte em uma jorna

da mântica ou “excursão psíquica”. Seres sobrenaturais podem auxiliá-lo,

 porém sua própria personalidade é o elem ento decisivo. Cf. Oesterreich , op.

cit., 305 sg., e Meuli,  Hermes 70 (1935) 144. Os profetas gregos do tipo

xamanístico são discutidos abaixo. Cf. cap. V, infra.

44. Cf. Minuc. Felix, Oct. 26 sg. E as passagens coligidas por Tambornino, de 

antiquorum daemonismo (RGVV VII, 3).

45. “Deus inclusus corpore humano iam, non Cassandra, loquitur", disse Cícero

(de divinatione, 1. 67) com referência a uma velha tragédia latina, provavel

mente o Alexandre, de Ennius. Ésquilo apresenta Cassandra como clarividente

mais do que uma médium, mas há uma aproximação da idéia de possessão

em  Agam enon 1269 sg., onde ela, repentinamente, vê sua própria ação de

desvendar símbolos (1266 s.) como uma ação de Apoio. Para a possessãode Sibyl por Apoio, e de Báquis pelas Ninfas, ver Rohde,  Psyche, ix, n. 63.

(Duvido que Rohde tivesse razão ao supor que Báquis era originalmente um

título genérico descritivo, como üifh)AAa, ibid., nota 58. Quando Aristóte

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94 O s GREGOS E O IRRACIONAL

les fala de SifkiiUoa Kai Pa.Kiôeç Kai oi evOeoi navreç [Probl. 954a 36],

e Plutarco de £ifh)/VXai auxai Kai BaKiSeç [Pyth. or. 10, 399A], queriam

 provavelmente dizer “pessoas como a Sibila e Báquis” . O termo EupuKÀeiç

era usado de maneira semelhante [Plut, def. orac. 9, 414E;  Z  Platão, Sof.

252C], mas Eurycles era certamente uma personagem histórica. E quando

Philetas, apud £  Ar. Pax 1071, distingue três BaKiõeç diferentes, está ape

nas usando um expediente comum aos estudiosos alexandrinos para

reconciliar afirmações inconsistentes sobre a mesma personagem. Em qual

quer outro lugar, Báquis surge como um profeta individual).

46. Platão os denomina OepavTeiç e xpr|C|J(úôoi ( Apologia de Sócrates, 22C,

 Mênon, 99C), ou ainda xpilCJ|iCúSoi e pavxeiç Geioi (Ion, 534C). Caem no

ev O ou oiaa nô oç e dizem (em estado de transe?) verdades sobre as quais nada

sabem, e então são claramente distintos tanto dos p a im ç que “confiam nos pássaros” (Pliil. 67B), como dos xpi^opoÀoyoi que apenas citam ou comen

tam oráculos antigos. Platão nada diz que indique que eles possuem  status  

oficial. Ver Fascher, npo<|)r|Tr|ç, 66 sg.

47. Plutarco, def. orac. 9, 414E, to u ç eyyaoTpi|ii)0ouç, Eu pu K teaç t iakai, vuvi

riuBa ivaç Jip ooayop eD nevouç Hesych., s.v. eyyaGTpi|au0oç to u to v Titüeç

eXtaxcrcpipavTiv, oi Se aTepvo|iavTiv /Veyowi... todtov niieiç rh>0cova

vuv Ka>tO\)|iev. O mais nobre termo axepvo|.tavxiç vem do AixiiaAomSeç

de Sófocles, frag. 59P. Sobre a mcdiunidade privada na antigüidade tardia,cf. Apêndice 11, infra.

48. Aristófanes, Vesp. 1019; Platão, Sofista, 252C.

49. evxoç \jTto<|)9eyyo(.tevov, Platão, loc. cit. L.-S. toma imo^Oeyyoiaevov para

significar “falar a meia voz”, mas o sentido adotado por Cornford é muito

mais adequado ao contexto.

50. Como Starkie salienta ad loc., Ar. Vesp. 1019 não precisa implicar o ventri

loquismo com o mesmo sentido que a palavra possui para nós, enquanto

algumas outras observações o excluem definitivamente. Cf. Pearson on Sófocles, frag. 59.

51. Plutarco, def. orac. loc. cit. onde seu estado de possessão é comparado àquele

normalmente atribuído à Pítia, embora não esteja claro até onde a compara

ção se estende. Schol. Platão, loc. cit., ô a ip o v a ... tov eyKeÀeDopevov amco

rcepi twv |í£ÀA.ovt(úv À,eyeiv. A afirmação de Suidas de que se convocava a

alma dos mortos não deve merecer crédito: tirou-a de I Sam. 28 (a bruxa de

Endor) e não, como afirma Halliday, de Filócoro.

52. Hip.,  Epid. 5.63 (= 7.28), avercveev coç £K tou (3ePa7mo9at avanveovoi,

Kai £K tou 0tt|0£oç imev|/o<|>e£v, mojtep ai eyyaaTpi(.ti)0oi Àeyo|aevai. Arespeito do transe de uma famosa médium Mrs. Piper, afirma que, no transe

completo, “a respiração é mais lenta do que a normal e com muito estertor”

e continua sugerindo que “esta variação profunda da respiração, com a di

minuição da oxigenação do sangue [...] é provavelmente a potência por meio

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AS BÊNÇÃOS DA LOUCURA 95

da qual é impedido o funcionamento da consciência normal” (Amy Tanner.

Studies in Spiritualism, 14. 18).

53. Plutarco,  Pyth. orac. 22, 405C. Aelius Aristides, orat. 45.11 Dind., diz que

as Pítias não têm, na sua condição normal, nenhum conhecimento específi

co £7uaxri |ir | , e quando em transe não fazem nenhum uso de talconhecimento. Tácito afirma que o profeta inspirado em Claros era ignarus 

 plerumque litterarum et carminum (Anais 2.54).

54. Ambos os tipos ocorriam em casos de possessão teúrgica (cf. Apêndice II,

infra). Ambos eram conhecidos por João Cassiano no século IV: “Alguns

demônios”, observa, “estão tão excitados que não tomam conta do dizer ou

fazer, mas òutros o sabem e o recordam mais tarde” (Collationes patru m , 

7.12). Ambos apareciam em possessões selvagens e em casos de mediunida-de espírita.

55. Sobre as sacerdotisas de Dodona, o testemunho de Aelius Aristides é bastante claro e sem ambigüidades: tiotepov ouSev cov eucov ícaciv (orat. 

45.11). O que ele diz sobre a Pítia é menos explícito: ele fala referindo a

elas xiva £7U0xavxat 8r| n o v x£xvr|v xote   (sc. £7t£iôav EKaxcoaiRí

eocuxwra), a i  ye o\>x oiai xe eicn <jn>Aaxxeiv ouSe H£|ac5ria0ai; (45.10).

Estritamente falando, isto não precisa implicar mais do que eles não se lem

 brarem  porque disseram o que fizeram. A linguagem usada por outros

escritores sobre as Pítias é muito vaga para retirar qualquer inferência segura.

56. Plutarco, def. orac. 51, 438C: ouxe yap rcavxaç ouxe xouç aupouç a£i5tax i0r|oiv coaa m w ç r| to u tivetjucxxoç S w a |ii ç (a afirmação é geral, mas

deve incluir a Pítia, como mostra o contexto).

57. Ibid., 438B: akoXov* Kai KaKot) 7tV£U|aaxoç o w a 7tÀ.r|pr|c;. “Dumb” espí

ritos são aqueles que recusam chamar seus nomes (Lagrange on Mark 9:17;

Campbell Bonner, “The technique of exorcism” , Harv. Theol. Rev. 36 [1943]

43 sg.). “Uma exalação muda” (Flacelière) é sentida com dificuldade.

58. avEiÀovxo ... E|i(j>pova. Esta é a leitura de todos os manuscritos existentes

e tem um sentido razoável. Ao citar formalmente a passagem (Greek Poetry 

and Life: Essays Presented to Gilbert Murray, 377), fui descuidado a pontode aceitar EK<|)pova de Wyttenbach.

59. Eu próprio vi um médium amador entrar em transe de modo similar, embora

sem os mesmos resultados fatais. Para casos de possessão resultando em mor

te, ver Oesterreich, op. cit., 93, 118 sg., 222 sg., 238. É desnecessário

concordar com Flacelière que a morte das Pítias deve ter ocorrido por inala

ção de vapores mefíticos (que provavelmente matariam imediatamente se

realmente matassem, e deviam ter afetado, em qualquer caso, as outras pes

soas presentes). O quadro imaginário de Lucano da morte de uma Pítia maisantiga ( Phars. 5. 161 sg.) talvez fosse sugerido pelo incidente que Plutarco

recorda, que pode ser datado dos anos 57-62 d.C. (J. Bayet,  Mélanges Grat, 

I. 53 sg.).

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96O s GREGOS E O IRRACIONAL

60. Pode ser dito estritamente que o texto apenas prova que os sacerdotes e in

quisidores estavam fora de si mesmos (R. Flacelière, “Le Fonctionnement

de POracle de Delphes au temps de Plutarque”,  Annales de l ’École des  

 Hautes Etudes à Gcind [ Études d ’archéologie grecque], 2 [1938] 69 sg.). Mas

não apresenta nenhum suporte positivo à opinião de Flacelière de que a Pítia estava separada deles por uma porta ou cortina. E a expressão 5ikt|v vecdç

£netyonevr|ç sugere uma impressão visual; ela estremecia como um barco

numa tempestade. Sobre o procedimento em Delfos em épocas mais antigas

não chego a uma opinião concreta: a prova literária é tão desesperadoramente

vaga como impossível de reconciliar com os achados arqueológicos. Em Cla

ros, lacitus sugere (Ann. 2.54) e Iâmblico definitivamente afirma (de myst.

3. 11) que o profeta inspirado não era visível. Mas no oráculo de Apoio de

Ptoan, na Beócia, os próprios indagadores ouvem o Ttpopavxtç inpirado falar e apontam as suas palavras (Hdt. 8. 135).

61. Plutarco,  L. Conv. 1.5.2, 623B: |aaÀiaxoc Se o e vO ou ata cruo ç £Í;ujxr|CR Kat

vapaT£7tei xo xe ocofra Kai xr|v (|xüvr|v xou cruvr|0oi)ç Kai Ka0eaxr)Koxoç.

O tom da voz com que o possuído’ falava era um dos sintomas a partir dos

quais os ra<j>ocpxai tiravam conclusões acerca do espírito possuidor (Hipó-

crates, morb. saci: 1. VI. 360. 15 L.). No mundo todo os “possuídos” são

descritos como falando numa voz diferente: ver Oesterreich, op. cit. 10, 19-

21, 133, 137, 208, 247 sg., 252, 254, 277. Também a famosa Mrs. Piper,

quando possuída por um “controle” masculino, falaria “com uma voz mas

culina inconfundível, mas apagada” ( Proc. Society fo r Psycliical Research8. 127).

62. Cf. Parke,  History o f the Delphic Oracle, 24 sg. e Amandry, op. cit., cap.

xi-xiii onde a questão é discutida. O contato com a árvore sagrada dc um

deus como forma de obter a sua epifânia pode recuar até aos tempos minói-

cos (B. Al,  Mnemosyne, Ser. III, 12 [1944] 215). Sobre as técnicas usadas para induzir o transe na antigüidade tardia, ver apêndice II.

63. O professor Osterreich certa vez mastigou uma grande quantidade de folhasde louro com objetivos científicos, e ficou bastante desapontado ao notar que

não ficou mais inspirado do que de hábito (Osterreich, op. cit., 319, n. 3).

64. Sobre Claros ver Maximus Tyrius, 8.1C, Tácito,  Anais, 2.54, Plinio, N.H.

2.232. A observação de Plínio de que beber água encurtava a vida do bcbe-

dor é provavelmente uma mera racionalização da crença bastante difundida

de que pessoas em contato com o sobrenatural morrem jovens. O procedi

mento nas Brânquida é incerto, mas a existência de fontes possuindo

 propriedades proféticas é confirmada por uma inscrição (Wicgand, Abh. Berl   Akad. 1924), 1, p. 22). A respeito de outras fontes capazes de causar insani

dade ct. Halliday, Greek Divination, 124 sg. A respeito do procedimento

altamente primitivo de Argos ver Paus, 2.24.1; há paralelos selvagens(Oesterreich, op. cit., 137, 143 sg.; Frazer,  Magic Art, 1.383).

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A S BÊNÇÃOS DA LOUCURA 97

65. Wilamowitz,  Hermes, 38 (1904) 579; A.P. Oppé, “The Chasm at Delphi”,

.///.V 24.0904) 214 sg.

66. Oppé, loc. cit. Courby,  Fouilles de Depllies, 11.59 sg. Mas suspeito que a

crença na existência de algum tipo de cratera sob o templo é muito mais an

tiga do que a teoria dos vapores, e provavelmente sugerida a racionalistas

em busca de explicação. Coéforas, 953, Aeschylus’ Chorus endereça Apoio

como |ieyav £%a)v puxov xBovoç, e a frase correspondente a 807, © (aeya

vaicov axopiov pode também, a meu ver, se referir a Apoio, isto parece uma

forma pouco natural de falar, se o poeta apenas tem em mente a garganta de

Plistos; o templo não está na garganta, mas sobre ela. Parece a fraseologia

tradicional até à época do Oráculo-Terra: sobre as suas implicações cf. Hes.,

Theog. 119: Taprapot  x r|EpO£VTtx |a\)%co xQovoç: Aesch.  P.V. 433: AiSoç

... |it>xoçyaç, Pind.,  Pyth. 4.44: %0ovtov AtSa oiopa. O GT0 |! t0V que maistarde foi interpretado como um canal para vapores (Strabo, 9.3.5, p. 419:

U 7 t£ p K £ lG 0 a i ÔE TOU GT O piO D TptTCOÔOC \)\ |/ r |X0V, £ ( J ) OV TT)V H d Oi CÍV 

a v a ( 3 a i v o u o a v S £ x o | i E v r | v t o T W E u p a a n o O E o r a Ç E iv ) o r ig i n a lm e n t e t i

n h a s id o c o n c e b i d o , a c r e d i to , c o m o u m a a v e n id a p a ra o s s on h o s.

67. Leicester B. Holland, “The Mantic Mechanism of Delphi",  AJA 1933, 201

sg.; R. Flacelière,  Annales de 1’Ecole des Hcmtes Etudes à Cand  2 (1938)

105 sg. Ver, contra, E. Will,  Buli. Corr. Hell. 66-67 (1942-1943) 161 sg. e

agora Amandry, op. cit., cap. xix.

68. Heródoto 6.66. Cf. Pausânias 3.4.3. Dc modo similar, foi a Pítia que

Pleistoanax foi acusado de subornar (Tucídides 5.16.2). Tucídides pode es

tar falando de maneira livre, mas Heródoto não. No entanto, fica aberta ao

cético a possibilidade de dizer que ele está apenas reproduzindo uma versão

délfica “censurada” do quc ocorreu. (Amandry negligencia esta passagem e

faz de Pítia um mero acessório. Op. cit., 120 sg.).

69. Parke, op. cit., 37. Faschcr, contrastando a profecia grega com a judia, duvi

da “que a profecia fosse possível dentro do quadro de uma instituição” (op.

cit., 59), e com relação a respostas sobre preocupações públicas a dúvida parece proceder. As respostas a indagadores privados - que devem ter sido

a maioria em todas as épocas, embora muito poucos exemplos genuínos te

nham sido preservados - devem ter sido menos influenciados pela política

institucional.

70. A resposta em forma de verso, que havia sido abandonada nos tempos de

Plutarco, era quase certamente a mais antiga. Alguns até mesmo sustenta

ram que o hexâmetro foi inventado em Delfos (Plutarco,  Pytli. orac. 17,

402D; Plínio,  N.H. 7.205 etc.). Strabo afirma que a própria Pítia falava

£|4. t£Tpa (9.3.5, p. 419) e Tácito diz o mesmo do profeta inspirado em Claros (Anais 2.54). Tais afirmações têm sido postas em dúvida (mais

recentemente por Amandry, op. cit., 168), mas não são absolutamente incrí

veis. Lawson sabia de um profeta grego moderno “louco sem dúvida”, que

»

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98 O S GREGOS E O IRRACIONAL

 possuía “um extraordinário poder para guiar sua conversação pela forma mé

trica e mesmo altamente poética” (op. cit . , 300). E o missionário

norte-am ericano Nevius ouviu uma mulher “possuída na China dizei ver

sos durante uma hora: “Tudo o que ela dizia estava em versos medidos e era

recitado num tom invariável [...]. As expressões rápidas, perfeitamente uni

formes e longas pareciam-nos tais que possivelmente não podiam ser 

falsificadas ou premeditadas” (J.L. Nevius,  Dem on Possession and Allied  

Themes, 37 sg.). Entre os antigos povos semíticos “a recitação de versos e

de versos irregulares era a marca de alguém que conversara com espíritos

(A. Guillaume,  Prophecy and Divination am ong the Hehrews and Other  

Semites, 245). De fato, a fala automática ou de inspiração tende em toda a

 parte a recair sob a forma métrica (E. Lombard,  De la glossolalie, 207 sg.).

Mas normalmente as falas da Pítia tinham de ser versificadas por outros.Strabo (op. cit.) fala de poetas mantidos com este propósito e Plutarco (Pyth. 

orac. 25, 407B) menciona a suspeita de que em tempos mais antigos eles

talvez fizessem até mais do que sua obrigação. Em Brânquida, a existência,

no século II a.C. de um xpT|<j|iopa<|>iov (ofício de redigir, ou registrar, res

 postas?) é atestada em inscrições (Rev. de Phil. 44 [1920] 249, 251); e, em

Claros, as funções de rcpO(|)r|Tr|Ç (médium?) e Oegiucoôcov (versificador?)

eram distintas, pelo menos na época romana (Dittenberger, O G I II, n. 530).

Uma interessante discussão em torno do problema pode ser encontrada emEwyn Bevan (Dublin Review, 1931).

71. Os gregos eram bastante sensíveis para a possibilidade de fraude em instân

cias particulares. Os instrumentos dos deuses eram passíveis de falha, mas

isto não abalava sua fé na inspiração divina. Até mesmo Heráclito a aceita

va (frag. 93), embora desprezando os elementos de superstição na religião

contemporânea. E Sócrates é apresentado como um crente profundamente

sincero. Sobre a atitude de Platão, ver abaixo (cap. VII, infra). Aristóteles e

sua escola rejeitavam a adivinhação por indução, mas sustentavam o

ev 0o \)oia c|ioç , a exemplo dos estóicos; a teoria que isso era e ^ d to ç , ou

 provocado por vapores, não invalida seu caráter divino.

72. Foi assim desde o início; prometia-se uma parte das multas pagas por cola

 boradores a Delfos (Heródoto 7.132.2), que também recebia um dízim o do

saque de Plataea (ibid., 9.81.1); os fornos poluídos pela presença de um in

vasor eram reavivados sob o comando do oráculo pelo próprio Apoio

(Plutarco,  Aristides 20).73. Vale notar que a abordagem mais próxima de uma organização eclesiástica

transcendendo a cidade-estado individual era o sistema de eÇriyriTca7TU0oxpncn:oi que expunha a lei sagrada apolínea (Nilsson, Gesch, 1.603 sg.).

74. Ésquilo, Eumênides616 sg.; owtawtoT eikov navTiKOunv ev 0povoiç ... 8

|ít| KE^EUoai Zetjç OA-tijiTtiMV Ttcarip.75. Cícero, de divinatione 2.117: “quando ista vis autem evanuit? an postquam

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As BÊNÇÃOS DA LOUCURA 99

homines minus creduli esse coeperunt”. Sobre a base social das mudanças

nas cienças religiosas, ver Kardiner,  Psychological Frontiers o f Society, 426

sg. E significativo que o crescimento das tensões sociais e o aumento das

ansiedades neuróticas no império tardio tenham sido acompanhadas por um

novo interesse em oráculos: ver Eitrem, Orakel und Mysterien am Ausgang  der Antike.

76. Ivan M. Linforth, “The Corybantic Rites in Plato”, University o f Califórnia 

 Pub. in Class, Philology , Vol. 13 (1946), n. 5; “Telestic Madness in Plato,Phaedro 244DE”, ibid., n. 6.

77. “Menadismo nas Bacantes”, Harv. Tlieol. Rev. 33 (1940) 155 sg. (ver Apêndice I).

78. Cf. Eurípides,  Bacantes 77 e Varro, apud Serv. ad Virg. Georg. 1.166: “Liberi

 patris sacra ad purgationem animae pertinebant” . Devemos talvez ligar istocom o culto do Aiovucoç tccipoç que diz ter sido recomendado aos atenienses por Delfos (Athen. 22E, cf. 36B).

79. Hesíodo,  Erga 614; Teogonia 941; Homero,  Ilíada, 14.325. Cf. também Pín-

daro, frag. 9.4 Bowra (29S.): rav Aicúvwot) TtoA.nyaOea xi|jav, e a

definição das funções de Dioniso em Eur. Bac. 379 sg., qiaoEDEiv T£ opoiç(is ra t cxdXo-u ye À aa ai a T to ra u aa t te |nept|avaç, ktA..

80. Eurípides,  Bacan tes 421 sg. e a minha nota ad. loc. Daí o apoio que o culto

de Dioniso recebeu de Periandro e dos Pisistrátidas; daí, talvez, o pouco in

teresse que Homero tem por ele (embora estivesse familiarizado commênades,  II. 22.460) e o desprezo com que Heráclito o viu (frag. 14 torna a

sua atitude suficientemente clara, qualquer que seja o sentido do frag. 15).

81. Cf. cap. II,  supra, e para A w io ç , Ap. 1. A relação da histeria “dionisíaca”

de massas com as condições sociais intoleráveis é bem ilustrada no artigo

de E.H. Norman, “Mass hysteria in Japan”,  Far Eastern Survey, 14 (1945),65 sg.

82. Cf.  H. Him. 7.34 sg. A meu ver loi como mestre das ilusões que Dioniso

veio a sei o patrono de uma nova arte, a arte do teatro. Vestir a máscara é o

caminho mais fácil para deixar de ser si mesmo (cf. Lévy-Bruhl,  Primitives  and the Supernatural, 123 sg.). O uso teatral da máscara presumidamente

 brotou de seu uso mágico. Dioniso se tornou no século VI a.C. o deus do

teatro, pois ele havia sido por muito tempo o deus das máscaras.

83. Heródoto, 4.79.3. Para o significado de |ic av ea0 at, cf. Linforth, “CorybanticRites”, 127 sg.

84. Plister apresentou bases para pensar que ekgtoígiç, e^icraaca não envol

viam (confoime supunha Rohde) a idéia de abandono do corpo pela alma.

Os teimos são bastante usados pelos autores clássicos para uma mudança

abrupta do espírito ou do temperamento (“Ekstasis”, Pisciculi F. ./.  Doelger  dargeboten , 178 sg.). o a w o ç ei|it Kat ouk e ^ io x aii ai , disse Péricles para

os atenienses (Yhuc. 2.61.2); r a pr|5 e 7tp0GÔ0KCü]aev eKGTaoiv cjiepei. dis

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100 OS GREGOS E O IRRACIONAL

se Menander (frag. 149); e na época de Plutarco, urna pessoa podia se tratar 

como 8KCTTCCTIKC00 exwv, indicando apenas que se sentiu, como nós dize

mos, “fora de si” 011 “não ela mesma” (Plut.,  gen. Soer. 588A). Cf. também

Jeanne Croissant, Aristote et les mystères, 41 sg.

85. [Apollod.]  Bibl. 2.2.2. Cf. Rohde,  Psyche. 287; Boyancé,  Le culte cies M uses 

cliez les ph&osophes grees, 64 sg. Tem sido opinião vulgar entre os estudio

sos, desde Rohde, que no  Fedro 244DE Platão tem a história de Melampo

em mente, mas ver, contra, Linforth, “Telestic. Madness”, 169.

86. Boyancé, op. cit., 66 sg., tenta achar sobreviventes da função catártica origi

nal dos deuses (cuja importância ele corretamente salienta), mesmo nos seus

festivais áticos. Mas seus argumentos são altamente especulativos.

87. Platão,  Leis, 815CD, onde ele descreve e rejeita como “não-civilizadas” (ou

tcoXitkov), certas danças báquicas e miméticas, imitando Ninfas, Pans,Silenos e Sátiros, que foram realizadas TtEpi KaBappouç Te Kai TeXeTaç

Tivaç. Cf. também Aristides Quintiliano, de musica 3.25, p. 93 Jahn: paç

BaKxiKaç xe^ETaç Kai oo ai T ainaiç napaJiXriGioi ^oyou tidoç £XEG0ai

<|)aaiv OTtfflç av t| tcov  apa0£GT£GK>v tttouioiç  81a (iiov r| ruxriv unotcúv £v T am aiç peÀroSicov te Kai 0pxi1OE0)v a p a TtaiSiaiç EKKaOaipnTai

(citado por Jeanne Croissant,  Aristote et les mystères, 121). Em outras pas

sagens, quc são por vezes citadas a este propósito, 0 termo paKXEia pode

ser usado metaforicamente para qualquer estado de excitação: por exemplo

Platão,  Leis 790E (cf. Linforth, “Corybantic Rites”. 132); Ésquilo, C.ho. 698,

que acredito se referir ao Kcopoç do EpivuEÇ (Agam., 1186 sg., cf.  Eumêni  

des 500).88. Eurípides,  Hipólito. 141 sg.; Hip. cie morbo sacro 1, VI. 360. 13 sg. L.

89. Acreditava-se que Pan causava não somente pânico (FlaviKOV ÔEipa), mas

também desmaios e colapsos (Eurípides,  Medéia 1171 e 2). E uma razoável

suposição pensar que pastores arcádios atribuíam doenças causadas pelo sol

ao deus pastor; e que ele causava pânico infectando os rebanhos (Tamborino,

op. cit., 66 sg.). Cf. a definição da Suda do pânico como ocorrendo r|V iraai(|)vi8i 0v 01 te 1717101 Kai 01 avOpamoi £KTapax©ff>Gi, e a observação de

Philodemus, 7t. 0ECOV, col. 13 (Scott,  Fragm. Herc. 26), de que os animais

estão sujeitos a Tapaxai piores do que os homens. A associação de Apoio

 N opio ç com |ia v ia pode ter um a origem similar.

90. Eurípides,  Hipólito 143 sg. fala como se os dois fossem distintos, como faz

Dion. Hal.,  Demosth. 22. Mas os Coribantes foram originariamente 0 séqui

to de Cibele; ela, tal como eles, tinha uma função curativa (Pind.,  Pit. 3. 137

sg.; Diog. trag. 1.5, p. 776 N.2; Diodoro, 3.58.2); e esta função incluía a

cura da | iavia (o próprio Dioniso é “purgado” de sua loucura por Rhea-

Cybele, [Apollod.]  Bibl. 3.5.1). E acredito que é razoável imaginar que, na

época de Píndaro, os ritos eram semelhantes, senão idênticos, uma vez que

Píndaro escreveu Ev^poviopoi (Suidas, s.v. Flivôapoç), que é natural rela-

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A.S BÊNÇÃOS DA LOUCURA 101

cioriar, por um lado, com o rito coribântico do Spovcoaiç ou 0poviG|ioç,

descrito por Platão,  Euthyd. 277D, e Dion Cris. Or. 12.33, 387 R., e, por 

outro, com o culto da mãe, que o próprio Píndaro estabeleceu (Z Pind.  Pyth.

3. 137; Paus. 9.25.3). Sendo assim, podemos supor que o rito coribântico é

um renovar do culto de Cibele, que ultrapassou a função curativa da deusa e

desenvolveu gradualmente uma existência independente (cf. Linforth,

“Corybantic Rites”, 157).

91. A teA,ett| anual de Hccate em Aegina, embora atestada apenas por escrito

res tardios (testemunhos em Farnell, Cults, 11.597, n. 7) é sem dúvida bastante

antiga: reclama ter sido fundada por Orfeu (Paus. 2.30.2). As suas funções

foram presumivelmente catárticas e apotropaicas (Dion Cris. Or. 4. 90). Mas

a opinião de que estavam especificamente dirigidas para a cura da ^tavia

 parece se encontrar apenas na interpre tação de Lobeck de Ar. Vesp. 122SietcAewev  eiç Aiyivav, como se se referisse a esta teàetti  (Aglaophamus, 242), o que seria pouco mais do que um palpite plausível.

92. Aristófanes, Vespas, 119; Plutarco,  Amat. 16, 758F; Longinus, Subi. 39.2 Cf.

Croissant, op. cit., 59 sg.; Linforth, “Corybantic Rites”, 125 sg.; e Apêndice

1. A similaridade essencial dos dois ritos explica como Platão pôde usar 

GDyKOcruPavTiav e 0\)|i,paKj(EU£TV como sinônimos (Symp. 228B, 234D),

e falar de a t tcov £K(|)povcov Pa.KXEicov taao tç referindo-se ao que ele jus

tamente descreveu como  xa  tcov  KoTtuPavtcov ia|iocTa (Leis, 790DE).

93. Platão,  Banquete, 215E: 7to?a) |iox (iaXXov r) tcov  Kopi)PavTicúVTü)V t| T£KCtpSia 7iii§a Kai SaKpua £K%EtTai. Concordo com Linforth que a refe

rência ocorre por efeitos dos ritos, apesar de efeitos similares serem obtidos

em possessões espontâneas (cf. Menandro, Theophoroumene 16-28 K.).94. Platão, lon, 553E: oi KopvPavTicovTEÇ ouk E(.t(|)povEÇ ovteç opxouvTai;

Plínio,  N.H. 11.147: “Quin et patentibus dormiunt (oculis) lepores multique

hominun, Bdog KopDpavTiav Graeci dicunt”. A última passagem dificil

mente pode se referir ao sono vulgar, como Linforth supõe (“Corybantic

Rites”, 128 sg.), porque: a) a afirmação pode ser falsa, como Plinio deve ter 

sabido; b) é difícil ver por que o hábito de dormir com os olhos abertos seria tomado como prova de possessão. Concordo com Rohde ( Psyche, ix, n.

18) que o que Plinio quer dizer é “a relativa condição para a hipnose”; a

dança ritual estática pode muito bem induzir tal estado nos susceptíveis.

Lucian,  Fup. Trag. 30, menciona Kivr||ja KOpi)PavTCO§EÇ entre sintomas do

incipiente transe mântico. Para efeito de comparação do ritual dionisíaco, ver Plut.  M ui Virt. 13, 249E (Apêndice I).

95. Teofrasto, frag. 91 W; Platão,  República, 398C-401A. Cf. Croissant, op. cit.cap. 111; Boyancé, op. cit. I, cap. VI. O significado emocional da música de

flauta é ilustrado de forma bizarra por dois casos curiosamente patológicosque chegaram até nós. Em um deles, relatado por Galeno (VII.60 sg. Ktihn),

um paciente são era assombrado por flautistas alucinatórios (cf. Aelius,

l a T p i K a 6.8, e Platão, Crito 54D). Em outro, relatado por Hipócrates ( Epid .

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102 O S GREGOS E O IRRACIONAL

5.81, V.250 L), o paciente era dominado por pânico sempre que ouvia uma

flauta durante uma festa.96. Platão, Leis , 790E: S e ip m a 5i £^iv (])oa)?ir|v xr|ç \|/v)criç xtva . Cf.  H. Orph. 

39.1 sg., em que o coribânticodaemon é

chamado <|)o(3cov aTtO7tOO)GXO0a

Seivcov.

97. “Corybantic Rites” , 148 sg.

98. Ver a no ta 87 acim a. A ristide s diz-n os em algum lug ar que os

ev O cu m aap o i, em geral, estão aptos, por falta de tratamento apropriado,

a produzir Seioi5ai|aoviaç xe Kai aXoyovç (^oPotiç (de musica, p. 42

Jahn). Mlle. Croissant mostrou ter razão em pensar que estas afirmações

vieram de uma boa fonte peripatética, provavelmente Teofrasto (op. cit.,

117 sg.). Pode-se observar que esta “ansiedade” (c|)povi:tç;) é reconhecida

como um tipo especial do estado patológico no tratado hipocrático demorbis (2.72, VII. 108 sg. L.); e as ansiedades religiosas, especialmente o

receio de 8a i|iov eç , encontra-se em descrições clinicas, por exemplo, Hip.

virg. 1 (VIII. 466 L.) e [Galeno] XIX. 702. Também se conheceram fanta

sias de responsabilidade exagerada; por exemplo, Galeno (VIII. 190) cita

melancólicos que se identificaram com Atlas e Alexandre de Trales des

creve uma sua paciente que receava que o mundo sucumbisse se ela

dobrasse o dedo médio (1. 605 Puschmann). Há aqui um interessante cam

 po de estudos para o psicólogo ou ps icoterapeuta com conhecimento domundo antigo e compreensão das implicações sociais do tema.

99.  Loc. cit. supra, nota 88.100. Como ressalta Linforth (op. cit., 152), em lugar nenhum é afirmado ex

 pre ssam ente que a perturbação que os Coribantes curavam havia sido

causada por eles mesmos. Mas é um princípio geral da medicina, na Gré

cia e outros lugares, que som ente aquele que causa uma doença sabe como

curá-la (o xocoaaç Kat taaexoa); portanto a importância atribuída para des

cobrir a identidade do poder possessor. Para o efeito catártico, cf.

interessante relato de Aretaeus sobre evBeoç |jatnia (morb. chron. 1.6 fin.)no qual os pacientes mutilavam os próprios membros, Beotç tSiotç cdç

anaixo-uoi xaptÇo|ievot euaePet (t>avxaair|. Após esta experiência eles

são £D0u|ioi, aicr|5eeç, coç xe?iea8evxeç xco 0eco.

101. Aristófanes, Vespas 118 sg. Veja nota 91.

102. Platão, lon, 536C. Das duas visões apresentadas no texto, a primeira cor

responde amplam ente à de Linforth (op. cit. 139 sg.), apesar de ele poder 

não aceitar o termo “estado de ansiedade”, enquanto a segunda remete a

Jahn (NJbb. Supp.-Band. X [1844], 231). É, como disse Linforth, “difícilaceitar a noção de uma lealdade dividida em uma simples cerimônia reli

giosa”. A teoria de Jahn ainda é mantida, não apenas pelo uso de

Kopu(3avTiav em outro lugar em Platão, mas, também, eu acho, pelas  Leis 

791 A, onde, numa aparente referência a xa tcov  KopuPavxoyv ia| iaxa

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A s BÊNÇÃOS DA LOUCURA 103

(790D), Platão fala dos pacientes curados como opxoufievouç te Kai

auTioufiEvoouç (.texa 9e(oro oiç av KaAAiepouvxeç eKaaxoi 9'ucoai.

Linforth argumenta que há aqui uma transição “do particular para o geral,

do rito coribântico ao começo, a toda classe de ritos que envolve a loucu

ra” (op. cit., 133). Mas a interpretação mais natural das duas passagens,

tomadas em conjunto, é a de que o rito coribântico inclui: 1) um diagnós

tico musical; 2) o sacrifício de cada paciente ao deus a cuja música ele havia

respondido e uma observação dos prodígios; 3) uma dança daqueles cujos

sacrifícios eram aceitos, na qual se acreditava que tomavam parte as divindades apaziguadas (talvez personificadas pelos sacerdotes?). Tal

interpretação daria um sentido mais preciso à curiosa frase usada no Simp. 

215C, em que nos é dito que as cantigas atribuídas a Olimpo ou Mársias“estão aptas por si próprias [ou seja, sem o acompanhamento de uma dan

ça, cf. Linforth, op. cit., 1420J a causar a possessão e a revelar aqueles que

 precisam dos deuses e dos ritos (xouç xcov 0£(üv xe Kai xe^exov

Seopevouç, aparentemente as mesmas pessoas que são referidas como tcov

KopufSavxuovxcúv em 215E)”. Na opinião sugerida, este seria o tipo de pessoas que são chamadas oi KOpupavxicúvxeç em lon 536C, e a referên

cia nos dois lugares seria ao primeiro ou o estádio diagnóstico do ritocoribântico.

103. Nos tempos helcnístico e cristão, a diagnose (forçando o espírito intruso arevelar a sua identidade) era um pré-requisito similar para o exorcismo bem-

sucedido. Ver Bonner,  Harv. Theol. Rev. 36 (1943) 44 sg. Para sacrifícios

de cura de doença, cf. Plaut.  Men. 288 sg., e Varro,  R.R. 2.4.26.104. Platão,  Eutidemo, 277D: Kai A.ap ekbi %opeia ti g eoxi Kai na iS ia , ei

a p a Kai xsxeXeoai (discutido por Linfoth, op. cit., 124 sg.). Para mim,

isto parece que o apelo para a experiência do xexeXeap£05oç é dificilmente natural, a não ser nos lábios daquele que é o próprio xex eleüp svo ç.

105. Cf. cap. VII, infra.

106. Platão,  Leis, 791 A. Aristóteles,  Política, 1342a 7 sg. Cf. Croissant, op. cit.106 s. Linforth, op. cit., 162.

107. Aris toxeno, frag. 26 Wehrli. Cf. Boyancé, op. cit., 103 sg.

108. Teofrasto, frag. 88 Wimmer (= Aristoxeno, frag. 6), parece descrever uma

cura por música (flauta) feita por Aristoxeno, embora o sentido seja obs-

curecido devido à corrupção do texto. Cf. também Aristoxeno, frag. 117, e

Martianus Capella, 9, p. 493 Dick: “ad affectiones animi tibias Theophrastus

adhibebat... Xenocrates organicis modulis lymphaticos liberabat.”

109. Teofrasto, loc. cit. Ele também afirmava que a música era boa para desmaios, perda prolongada da razão, ciática (!) e epilepsia.

110. Censorinus, de die natali 12 (cf. Celsus, III. 18); Caelius Aurelianus (i.e.,Soranus), de morbis chronicis 1.5. As antigas teorias médicas sobre insa

nidade e o modo de tratá-la são resumidas de modo útil por Heiberg, Geistes krankheiten im klass, Altertum.

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104 O s GREGOS F. O IRRACIONAL

111. Odisséia, 8.63. As musas são tornadas incapazes por Tamiris ( Ilíada , 2.594sg.). O perigo de um encontro com elas é compreensível se os estudiosos

estiverem corretos em conectar a |iOuaa com mons, encarando-as origi

nalmente como ninfas das montanhas, pois sempre foi perigoso o encontro

com ninfas.

112. Hesíodo, Teogonia, 94 sg.

1i 3.  Ilíada, 3.65 s.: ou toi o:|J.op?i.r|i; egoti 0ewv spucuSea Soopa / o o a a kev 

ototoi Stoaiv ekcúv S ouk  av t t ç eAoito.114. Cf. W. Marg.  Der Charcater in der Sprache derfrühgríechischen Dichtung, 

60 sg.

115.  Ilíada, 11.218; 16.112; 14.508. A última dessas passagens tem sido vista

como um complemento tardio, tanto por críticos alexandrinos quanto pe

los modernos; e todos eles empregam uma fórmula convencional. Masmesmo se o apelo é convencional, a sua colocação fica como uma pista

significante sobre o sentido original de “inspiração”. De modo similar, Fê-

mios afirmava ter recebido dos deuses não simplesmente seu talento poético,

mas também suas histórias (Odisséia, 22. 347; cf. cap. I,  supra). Como Marg

corretamente disse (op. cit.. 63), “dic Gabe der Gottheit bleibt noch auf das

Geleistete, das dinghafte Epyov ausgeriehtet.” Isto corresponde ao que Ber-

nard Berenscon chamou “o elemento grafômetro na caneta, que muitas vezes

sabe mais e melhor do que a pessoa que a usa”.

116.  Ilíada, 2.484 sg. As musas eram as filhas da Memória, e em alguns luga

res eram chamadas Mveiou (Plutarco,  L. Conv. 743D). Mas entendo que o

que o poeta defende aqui não é apenas uma memória acurada - porque isso,

apesar de muito necessário, seria apenas a memória de um KÀ£OÇ imper

feito -, mas uma visão atual do passado para suprimir  k Aeoç. Tais visões,

vindo das profundezas desconhecidas da mente, devem ter sido sentidas

outrora como imediatamente “concedidas” c, devido a seu caráter imedia

to, mais confiáveis do que a tradição oral. Assim, quando Ulisses observa

que Demodocus pode cantar sobre a Guerra de Tróia “como se estivesseestado lá ou ouvido de uma testemunha”, ele conclui que a musa ou Apoio

devem ter “ensinado” isto a ele (Odisséia, 8.487 sg.).

Havia também um kàeoç nesse assunto (8.74), mas isso não era, evidente

mente, suficiente para explicar o perfeito domínio do detalhe de Demodocus.

Cf. Latte, “Hesiods Dichterweihe”, Antike u. A bendland  11 (1946), 159. So

 bre a inspiração dos poetas em outras culturas, N.K. Chadw ick,  Poetry and  

 Prophecy, 41 sg.

117. Conhecimento especial não menos do que habilidade técnica é a marca dis

tintiva do poeta para Homero. Trata-se de um homem que “canta pela graça

dos deuses, sabendo deleitar com contos épicos” (Odisséia, 17.518 sg.).Cf. a descrição do poeta feita por Sólon, frag. 13, 51 sg B., como i|i£pTr|ç

00(f)lllÇ CTO(f(lllÇpETpOV E7UGTO|i£VOÇ.

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A s BÊNÇÃOS DA LOUCURA 105

118. Várias línguas indo-européias possuem um termo c om um para '‘poeta e

vidente” (vates em latim, fili em irlandês e thulr islandês). “É evidente que,

através das antigas línguas da Europa do Norte, as idéias de poesia, elo

qüência, informação (principalmente estudo do passado) e profecia estãointimamente relacionadas” (H.M. e N.K. Chadwick, The Growth of  

 Literature, I. 637). Hesíodo parece preservar um traço desta unidade origi

nal quando atribui às musas o conhecimento de “coisas presentes, passadas

e futuras” que Homero atribui a Calcas (lííacla, 1.70); a fórmula é sem du

vida, como Chadwich diz (op. cit., 625), “uma descrição estética de um

vidente”.119. Hesíodo, Teogonia 22 sg. Cf. cap. IV, infra. E a monografia interessante

de Latte referida acima (n. 116).

120. “As canções me fizeram e não eu a elas”, afirmou Goethe. “Não sou euque penso, mas minhas idéias que pensam por mim”, disse Lamartine. “A

mente criadora”, disse Shelley, “é um carvão incandescente que uma in

fluência invisível qualquer, como o vento inconstante, desperta para um

 brilho transitório.”121. Píndaro, frag. 150 (137B): (t avre uso , M oia a , 7tpo<|>ax£uaco 8 e\(/ü). Cf.

 Paean 6.6 (frag. 40B), onde ele próprio chama aoi8ipov flispiScov

7ipo(|)axav, e Fascher, npo^xriç, 12. Sobre a visão dc Píndaro de verda

de ver Norwood,  Pindar., 166. Uma concepção semelhante da musa comoreveladora da verdade escondida está implícita na prece de Empédocles de

que ela lhe comunica cov 0£|iiç ecmv E^peptooiv cxKOimv (frag. 4; cf.

Pindar,  Paean 6.51 sg.). Virgílio é fiel a esta tradição quando pede às mu

sas que lhe revelem os segredos da natureza, Geo. 2.475 sg.

122. A mesma relação está implícita nas  Pítias 4.279: cruÇexai Kai M oto a Si

ay/eXiaç op0aç: o poeta é o “mensageiro” das musas (cf. Teógnis, 769).

 Não confundam os is to com a concep ção p la tô n ic a de poetas

evGouoiaÇovxeç oxmep oi 0EO|aavxsiç Kai oi xpiia|ico8oi (Apol. 22C).

Para Platão, a musa está dentro do poeta: Crátilo, 428C: aXXr| tiç M o w anaka\. os e v o w o a eXe^riOei.

123. Platão,  Leis, 719C.124. A teoria poética de inspiração está diretamente ligada a Dioniso e à tradi

cional visão de que os melhores poetas buscavam e encontravam inspiração

na bebida. A clássica declaração disto é atribuída a Cratinus: oiEBoç xoi

Xapievxi neXei xaxuç, rrcrcoç aoi8co, n8cop Se tcivcdv  odSev  av xekoi ao<j)OV (fragmento 199K). Ela reaparece em H orácio (Epist. 1.19.1 sg.) que

a tornou um lugar comum na tradição literária.

125. Demócrito , frag, 17 e 18. Ele parece citar Homero em uma instância (frag. 21).

126. Ver o cuidadoso estudo de Delatte,  Les conceptions de Venthousiasme, 28

sg., que faz uma engenhosa tentativa de relacionar as visões de Demócrito

sobre a inspiração com o restante de sua psicologia. F. Wehrli, "Der 

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106 O s GREGOS E O IRRACIONAL

erhabene und der schlichte Stil in der poetisch-rhetorischen Theorie der 

Antike”, Phyllobolia fi ir Peter von der Mühl, 9 sg.

127. A respeito dos ares que os poetas se dão, ver Horácio,  Ars Poética, 195sg. A visão de que excentricidade poética é uma qualidade mais importante do que a competência técnica é, obviamente, uma distorção da teoria de

Demócrito (cf. Wehrli, op. cit., 23), mas fatalmente fácil de ser feita.

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 P  a d r ã o   d e  s o n h o s    e   p a d r ão   d e   cu l t u r a

IV 

Se fos se dado aos nossos olhos carnais a capacidade  

de ver dentro da consciência de outrem,  ju lgaríamos um liomem com muito mais certeza 

a partir do que ele sonha do que a  part ir do que ele pensa.

Victor Hugo

Oser humano divide com alguns outros poucos mamíferoso privilégio de possuir cidadania em dois mundos

distintos. Ele goza, em diária alternância, de dois tipos deexperiência - tm ap e ovap [“visão da realidade” e “sonho”], comoos gregos as chamavam cada qual com sua lógica e limitaçõe s

 próprias. Não há obviamente nenhum a razão para achar que umadelas é mais significativa do que a outra. Se o mundo da vigília temas vantagens de solidez e de continuidade, suas oportunidades sociaissão, por outro lado, terrivelmente restritas. Dentro dele só podemos,via de regra, encontrar nossos vizinhos; ao passo que o mundo dossonhos oferece a possibilidade de um relacionamento, ainda quefugidio, com amigos distantes, com mortos e deuses. Para homensnormais é a única experiência pela qual eles podem escapar dos

ofensivos e incompreensíveis grilhões do tempo e do espaço. Não é portanto de surpreender a lentidão do homem em confinar a realidadea apenas um desses dois mundos, descartando o outro como purailusão. Tal estágio foi atingido nos tempos antigos apenas por umreduzido número de intelectuais; e há, ainda hoje, muitos povos

 primitivos que conferem igual valor a alguns tipos de experiência

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108 O s GREGOS E O IRRACIONAL

onírica e à vida desperta, apesar da distinção clara entre elas.1Umatal simplicidade provocava sorrisos piedosos por parte dosmissionários do século XIX. mas em nossos tempos foi descoberto

que os primitivos estavam em princípio mais próximos da verdadedo que os missionários. Afinal de contas, como vemos agora, ossonhos são altamente signilicativos. A arte antiga de oneirocritice continua a gerar homens engenhosos, de grande vivacidade, e os maiseruditos de nossos contemporâneos se apressam a relatar seus sonhosa um especialista, dc modo tão sério e ansioso quanto o homemsupersticioso dc Teofrasto.2

Contra este pano de fundo histórico, parece-me válido tentar um novo exame da atitude dos gregos face à experiência do sonho.E a este assunto que proponho dedicar o presente capítulo. Há doismodos de ver a experiência de sonho de uma cultura passada: podemos, tentar enxergá-la através dos olhos dos próprios sonhadores eassim reconstruir, tanto quanto possível, o que ela significava parasua consciência desperta; ou podemos tentar, aplicando princípiosderivados da análise moderna dos sonhos, ir dc seu conteúdo mani-

íesto ao seu conteúdo latente. Este últ imo procedimento éfrancamente aleatório - ele consiste em uma suposição (destituídade provas) a respeito da universalidade de símbolos oníricos; sím

 bolos que não podem ser controlados por meio de associações. Deminha parte, estou disposto a acreditar que as associações podemrender resultados interessantes em mãos cuidadosas e criteriosas, masnão devo me enganar tentando cu próprio fazê-lo. Minha preocupação principal não é com a experiência de sonho dos gregos, mas com

a atitude grega diante dessa experiência.Ao definir assim o nosso tema, devemos ainda ter em mente a

idéia de que as diferenças entre o homem grego e a atitude moderna talvez reflitam, não apenas modos diferentes de interpretar omesmo tipo de experiência, mas variações no próprio caráter da ex

 periê ncia . Análises recentes a propósito dos sonhos de povos primitivos contemporâneos sugerem que, lado a lado com sonhos co

muns de ansiedade e de realização de desejos, há outros cujosconteúdos manifestos são determinados pelo padrão de cultura local.' Com isso não quero apenas dizer que, por exemplo, umamericano dc hoje sonhe com uma viagem de avião, enquanto o primitivo sonhará com um vôo dc águia conduzindo ao paraíso; mas

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I *AI >RÂO DE SONHOS E PADRÃO DE CULTURA 109

i|uc cm muitas sociedades primitivas há estruturas de sonho que de pendem de um tipo de crença que é socialmente4 transmitido, e quecias já não ocorrem quando a crença pára de ser alimentada. Não é

apenas a escolha deste ou daquele símbolo, mas a própria naturezado sonho que parece conformar-se com um padrão rígido imposto pela tradição. É evidente que tais sonhos estão intimamente relacionados ao mito, do qual se tem falado, com razão, tratar-se do pensamento onírico de um povo, assim como o sonho seria o mito

do indivíduo.5Tendo isso em mente, tratemos de considerar que espécie de

sonhos são descritos por Homero, e como o poeta os apresenta. O professor H.J. Rose em seu excelente, mas pequeno livro  Primitive Culture in Greece, distingue três maneiras pré-científicas de encarar o sonho, a saber: 1) “tomar a visão do sonho como um fatoobjetivo”; 2) “supor que se trata de uma visão da alma, ou de umavisão de uma de nossas almas, quando temporariamente fora do cor

 po —um acontecimento cuja cena seria o mundo do espírito ou algosemelhante”; 3) “interpretá-lo como uma forma mais ou menos com

 plicada de simbolismo”/1O professor Rose considera que estes sãoos “três estágios sucessivos dc um progresso”, e não resta dúvidaquanto a isso. Porém, em tais assuntos, o desenvolvimento de nossas idéias raramente segue um caminho lógico. Sc olharmos paraHomero, veremos que o primeiro e o terceiro “estágios” do professor Rose coexistem cm ambos os poemas, sem nenhuma consciênciaaparente de alguma incongruência. Quanto ao segundo “estágio”, eleestá inteiramente ausente (e continuará ausente da literatura grega

até o século V a.C. quando surge, de maneira sensacional e pela primeira vez, em um conhecido fragmento dc Píndaro).7

 Na maior parte de suas descrições dc sonhos, os poetas homé-ricos tratam o que é visto como se fosse “fato objetivo” .8 O sonhonormalmente é apresentado como uma visita feita por uma figuraonírica a um homem ou mulher adormecido - a própria palavra

oneiros em Homero quase sempre significa figura onírica e não ex periência onírica.9 Esta figura onírica pode ser um deus, um fantasma,

um mensageiro de sonhos preexistente, ou ainda uma “imagem’(eidolon) criada especialmente para a ocasião.10 Porém, o que quer que seja, ela existe de maneira objetiva no espaço, independentemente do sonhador. Ela encontra passagem pelo buraco da fechadura

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110 O s GREGOS E O IRRACIONAL

(uma vez que os quartos, em Homero, não possuem nem janelas nemchaminés); se coloca à cabeceira da cama para transmitir sua mensagem, e enfim, quando o trabalho está feito, se afasta pelo mesmo

caminho." Enquanto isso, o sonhador permanece quase completamente passivo: ele vê uma figura, ouve uma voz e ponto final. É

 bem verdade que às vezes ele responde em sonho, e que uma vezele estica os braços para abraçar a figura em questão .12 Mas estesatos são físicos, trata-se apenas daquilo que observamos nos homensdurante o sono. O sonhador não crê estar em outro lugar, a não ser a sua própria cama; e na verdade sabe que está adormecido, pois a

ligura onírica se esforça para lhe indicar isso: “você está adormecido, Aquiles”, diz o fantasma de Pátroclo; “você está adormecidaPenélope”, diz a imagem de sombras na Odisséia

Tudo isso guarda pouca semelhança com nossa própria experiência de sonhos, e por isso muitos estudiosos têm estado inclinadosa descartá-lo - juntamente com muitas outras coisas na obra de Homero, tomando-o como “convenção poética” ou “parafernáliaépica .11 De qualquer maneira, trata-se de algo altamente estilizado,

como vemos pelas fórmulas recorrentes. Voltarei em breve a este ponto. Mas, por enquanto, podemos notar que a linguagem utilizada pelos gregos, em todos os períodos, para descrever todos os tiposdc sonho, parece ter sido sugerida por um tipo específico de sonhono qual o sonhador é o passivo receptáculo de uma visão objetiva.Os gregos nunca falavam, como nós, de ter  um sonho, mas sempredc ver  um sonho - ovocp tôetv, evwivtov iSetv. A frase é apropriada apenas para sonhos do tipo passivo, mas a encontramos mesmoquando o sonhador é, ele mesmo, a figura central da ação do sonho.1" Diz-se aqui novamente que o sonho não é apenas uma “visita”ao sonhador (<])otxav, emaK onetv, 7tpoaeX0£tv etc .)16mas tambémque ele “o vigia” (eracTr|vai). Este último uso do termo é especialmente comum em Heródoto, tomado por uma lembrança do g t o   ô’a p ’ tm ep K£(pavr|ç (“ele permaneceu à sua cabeceira”)17 homéri-co. Mas sua ocorrência nos registros de templo lídio e epidáurico e

em inúmeros autores tardios, de Isócrates aos apóstolos,18dificilmente poderia ser explicada deste mesmo modo. É como se o sonhovisionário e objetivo tivesse firmado raízes profundas, não apenasna tradição literária como também na imaginação popular. Essa conclusão é fortalecida, até certo ponto, pelo retorno do mesmo termo

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P a d r ã o   d e   s o n h o s   e   p a d r ã o   d e   c u l t u r a 111

no mito e na santa lenda, como capazes de  provar  sua objetividade por meio de um sinal material deixado - o que nossos espíritas gostam de chamar “aporte”, sendo o exemplo mais conhecido o sonho

incubado de Belerofonte em Píndaro, onde o “aporte” é um arreiode ouro .19

Mas retornemos a Homero. Os sonhos objetivos e estilizados que

estive descrevendo não são apenas aqueles sonhos com os quais os poetas épicos estavam familiarizados. Que o sonho de ansiedade fosse tão familiar ao autor da  Ilíada quanto para nós, sabemos por umdito metafórico famoso: “como em sonho ele foge, e é inútil persegui-lo - ele não consegue se mexer para escapar, mas os outros tampouco conseguem persegui-lo - assim Aquiles não podia ultrapassar Heitor na corrida, nem sequer Heitor podia escapar dele” .20 O poeta não atribui tais pesadelos aos seus heróis mas sabe como são, c fazum uso brilhante da experiência onírica, no intuito de expressar suafrustração. Ainda no sonho de Penélope sobre a águia e os gansos,na Odisséia XIX, temos um simples sonho dc realização de desejorepleto de simbolismo, e o que Freud chama “condensação” c “des

locam ento”: Penélope está chorando a morte de seus belos gansos21quando uma águia, repentinamente, fala com voz humana, explicandoser Ulisses. Trata-se do único sonho homérico interpretado simbolicamente. Devemos crer que estamos aqui diante da obra dc um poeta tardio que efetuou um salto do estágio primitivo, descrito pelo professor Rose, para o sofisticado terceiro estágio dc interpretação?Creio que não. Qualquer teoria razoável sobre a composição da Odis-

 séia dificilmente permitiria supor ser o livro XIX muito posterior ao

livro IV onde encontramos um sonho do tipo primitivo (“objetivo”).Além disso, a prática de interpretação simbólica dos sonhos era conhecida do autor da  Ilíada V, e é geralmente vista como uma das

 partes mais antigas do poema - lemos ali que um oneiropolos [intérprete dos sonhos] falhou ao tentar interpretar os sonhos de seusfilhos quando eles partiram para a guerra de Tróia.22

Sugiro, enfim, que a verdadeira explicação não reside em nenhuma justaposição de tipos de atitude, “primordial” e “tardia”,

diante da experiência do sonho, mas sim numa distinção entre diferentes tipos de experiência. Para os gregos, como para outros povosantigos,23 a distinção fundamental se estabelecia entre sonhos significativos e não-significativos. Isto aparece em Homero, na passagem

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sobre os portões de marfim e madeira, e será mantido através da antigüidade.2'1Mas dentro da classe dos sonhos significativos, váriostipos distintos também eram reconhecidos. Segundo uma classificação transmitida por Artemidoro, Macróbio e outros escritores tardios(mas ctija origem pode datar de muito antes), distinguem-se três ti

 pos de experiência.2'’ Uma é a do sonho simbólico, que “se disfarçasob metáforas, como um conjunto de enigmas, com um significadoque não pode ser entendido sem o exercício da interpretação.” Umsegundo tipo é o horama ou “visão” que é uma antecipação diretade um evento futuro, como os sonhos descritos no livro do enge

nhoso J.W. Dunne. O terceiro tipo é chamado chrematismos ou“oráculo” e é reconhecido “quando, durante o sono, o pai do sonhador ou algum outro impressionante e respeitado personagem, talvezum padre ou mesmo um deus, revela, sem simbolismo, o que acontecerá ou não acontecerá, ou ainda o que deve ou não ser feito.”

Este ultimo tipo não é, creio eu, nada comum em nossa experiência onírica. Mas há provas consideráveis de que sonhos destetipo eram comuns na antigüidade. Eles figuram em outras antigasclassificações. Calcídio, que segue um esquema diferente com rela-çao a outros sistematizadores,26 chama esse sonho de “admonitio”(“quando somos guiados e admoestados por conselhos de deusas angelicais”) e cita como exemplos os sonhos de Sócrates no Crítias eno  Fédon.11 O velho escritor médico Herófilos (início do século IIIa.C.) tinha provavelmente este mesmo tipo cm mente, ao distinguir sonhos “enviados por deus”, de sonhos que devem sua origem a uma

clarividência “natural” da mente, ao acaso ou à realização de um desejo.28 A literatura antiga está cheia destes sonhos “enviados por deuses”, nos quais uma única figura onírica se apresenta, como emHomero, ao sonhador e lhe passa uma profecia, um conselho ou umaviso. Assim, um oneiros “velava” por Creso e o avisou de desastres vindouros; Hiparco viu “um alto e belo homem” que lhetransmitiu um verso de oráculo, assim como a “bela e justa mulher”que revelou a Sócrates o dia de sua morte, através de citação de Ho

mero. Alexandre, o Grande, viu “um homem cinzento e de aspectovenerável” que também citava Homero, e que segundo o imperador era, na verdade, o próprio Homero em pessoa.2g

 Não dependemos todavia deste gênero de prova literária, cujaimpressionante uniformidade pode, aliás, ser facilmente atribuída ao

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conservadorismo da tradição literária grega. Um tipo comum de sonho "enviado por deuses’, tanto na Grécia como em outras regiões,é o sonho que prescreve a oferenda ou algum outro ato capaz de

manifestar religiosidade.30 A prova concreta de que isto ocorria estáem numerosas inscrições afirmando que a oferenda se faz “de acordo com um sonho” ou “após uma visão onírica”.11 Raramente sãolornecidos detalhes sobre o que se passa, mas há uma inscrição emque se diz a um padre (cm sonho contado por Sarapis) que ele deveconstruir uma casa, pois a divindade está cansada de viver cm alo

 jamentos temporários. E há um outro sonho, do qual se conta ter sido enviado por Zeus,32 dando instruções detalhadas sobre como

deve funcionar a casa de um devoto. Quase todas as provas encontradas nas inscrições datam dos períodos helenístico ou romano, masisto se deve provavelmente ao acaso, já que Platão fala nas  Leis deatos dc oferendas por força de sonhos ou visões, “sobretudo por partede mulheres de todos os tipos, e por homens doentes, em situaçãode perigo ou dificuldade, ou ainda que tiveram algum golpe de sorte na vida”. Conta-se ainda na Epinomis que “muitos cultos de muitosdeuses foram fundados e continuarão a ser fundados graças a en

contros oníricos com seres sobrenaturais, adivinhos, oráculos c visõesdo leito dc morte”.33O testemunho dc Platão sobre a freqüência detais ocorrências é ainda mais convincente se considerarmos que ele

 próprio tinha pouca fé no caráter sobrenatural dos eventos.A luz destes fatos, creio que devemos reconhecer que a cstili-

zação do “sonho divino” ou chrematismos não é puramente literária.Trata-se de um sonho pertencente a um “padrão cultural”, no sentido definido no início deste capítulo, pertencendo então à experiência

religiosa do povo, apesar de poetas como Homero e os que o seguiram terem-no adaptado a seus propósitos, utilizando-o como motivoliterário. Estes sonhos desempenharam um papel importante na vidade outros povos antigos, assim como na vida de muitas raças de hojeem dia. A maior parte dos sonhos registrados pela literatura assíria,hitita e do antigo Egito é composta de “sonhos divinos” nos quaisum deus aparece deixando àquele que dorme uma mensagem que

 pode ser uma predição de futuro ou uma exigência de culto.34 Comoé de se esperar de sociedades monárquicas, os sonhadores privilegiados são normalmente reis (idéia que também comparece na Ilíada35);

 plebeus deviam se contentar com sonhos simbólicos de tipo comum,que eram interpretados com o auxílio de livros de sonhos.36 Algo

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correspondente ao chrematismos grego aparece, igualmente, em sonhos de primitivos contemporâneos, mas normalmente eles nãoconferem nenhuma importância especial a isto. Se a figura onírica éidentificada a um deus ou a um ancestral é algo que depende do padrão de cultura local. Às vezes trata-se apenas de uma voz, comoquando o Senhor fala a Samuel, às vezes é um “homem de grandeestatura” e anônimo, conforme vemos nos sonhos gregos.37 Em algumas sociedades a figura é reconhecida como sendo o pai falecidodo próprio sonhador,38 e em outros casos o psicólogo pode estar inclinado a ver nele um substituto do pai, dispensando as funções

 paternas de admoestação e orientação.3y Se tal visão está correta, talvez possamos encontrar um significado especial para o dito deMacróbio, “um  pai ou outro personagem capaz de impressionar eimpor respeito”. Podemos ainda supor que, enquanto persistisse avelha solidariedade familiar, a manutenção de um contato oníricocom a imagem do pai teria uma significação emocional mais profunda do que aquela de uma sociedade individualizada como a nossa- a autoridade paterna permanecendo ali inquestionada.

 No entanto, parece que o personagem “divino” de um sonhogrego não depende inteiramente de sua identidade com a figura onírica. O aspecto evidente e direto (enargeia) de sua mensagem eraigualmente importante. Em vários sonhos homéricos o deus oueidolon surge diante do sonhador sob o disfarce de um amigo vivo.40E possível que na vida real os sonhos com pessoas conhecidas fossem interpretados desse modo. Assim, quando Aelius Aristides

 procurava tratamento no templo de Asclépios em Pérgamo, seu camareiro sonhou com outro paciente (o cônsul Salvius), que no sonhofalava das obras literárias de seu patrão. Isto foi bom o bastante paraAristides ter certeza de que a figura onírica era o próprio deus, “disfarçado de Salvius”.41 E claro que fez diferença o fato de ter sido osonho “procurado”, mesmo se a pessoa a quem ele apareceu não eraaquela mesma que o procurava. Em todo caso acreditava-se que qualquer sonho experimentado no templo de Asclépios deveria vir do

deus em questão.Técnicas para provocar o tão desejado sonho “divino” foram,e ainda são, adotadas em muitas sociedades. Elas incluem o isolamento, a oração, o jejum, a automutilação, dormir sobre a pele dealgum animal sacrificado ou próximo um objeto sagrado e, finalmen

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te, a incubação (isto é, dormir em local sagrado), ou ainda uma com binação disso tudo. O mundo antigo contava principalmente com aincubação, como os camponeses gregos de hoje ainda fazem, masnão faltam traços de outras práticas. Assim, por exemplo, o jejumera exigido em certos oráculos como a “caverna de Charon” na Ásiamenor e o santuário de Anfiaraos em Oropus.42 Neste último localera também comum dormir sobre a pele de um carneiro.43 O hábitode se retirar para uma caverna sagrada em busca de sabedoria visionária figura em lendas contadas po r Epimênides e Pitág ora s.44Mesmo a prática do índio americano, de cortar a junta do dedo no

intuito de provocar sonhos, nos fornece um paralelo estranho e parcial face a isto.45 Na antigüidade tardia existiam ainda meios menosdolorosos de se chegar a um sonho oracular - os livros de sonhosrecomendavam dormir com um ramo de louro sob o travesseiro; os papiros mágicos estão cheios de fórmulas encantadas e mencionamrituais privados com o mesmo propósito; e em Roma havia judeusque vendiam qualquer sonho que se poderia imaginar, em troca dealgumas poucas moedas.46

 Nenhuma destas técnicas é mencionada por Homero. Nem mesmo a incubaç ão ap arece m enc ion ad a.47 Porém, com o vim os,argumentos extraídos do silêncio do autor são especialmente perigosos. A incubação havia sido praticada no Egito desde pelo menoso século V a.C. e duvido que os minóicos o ignorassem.48 Quando avemos surgir na Grécia, ela parece normalmente associada aos cultos da Terra e dos mortos, cultos que possuem um ar pré-helênico.A tradição diz, provavelmente de maneira acertada, que o oráculo

original da Terra em Delfos havia sido um oráculo onírico.49 Em tem pos históricos a incubação era praticada nos santuários de heróis -fossem eles homens mortos ou demônios ctônicos- e em certos abismos tidos como entradas para o mundo dos mortos (necyomanteia).Os olímpicos não tinham o hábito de freqüentá-los (o que pode perfeitamente explicar o silêncio de Homero): Atena, na estória deBelofonte, é uma exceção,50 mas nela pode estar um vestígio de seu

 passado pré-olímpico.

Tenha ou não sido mais amplamente praticada na Grécia, a incubação parece utilizada sobretudo com dois objetivos: ou para obter sonhos mânticos dos mortos ou para fins médicos. O exemplo maisconhecido do primeiro caso é a consulta que Periandro faz a sua es

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hoje. Nas três maiores contribuições feitas pela atual geração (as deWeinreich, Herzog e Edelstein57) podemos observar uma crescenteênfase no caráter genuinamente religioso da experiência. Eis uma

visão que me parece inteiramente justificada. Mas há ainda diferenças de opinião quanto à origem dos registros. Herzog crê que elesse baseiam, de um lado, em placas comemorativas genuínas, dedicadas a parentes e contendo votos religiosos - tais placas poderiamentretanto ser elaboradas e expandidas durante o processo de incor poração. Por outro lado, eles se fundariam na tradição do templo,tendo absorvido para si estórias de milagre de diversas fontes. Em

contrapartida, Edelstein aceita as inscrições como uma fiel reprodução da experiência dos pacientes.

É difícil de atingir qualquer certeza quanto ao assunto. Mas oconceito de sonho ou visão pertencente a um padrão de cultura talvez possa nos aproximar de uma compreensão da gênese dedocumentos como os registros de Epidauro. Experiências deste tiporefletem um padrão dc crença que é aceito, não apenas pelo sonhador, mas normalmente por todos à sua volta; sua forma é determinada

 pela crença as quais reciprocamente vêm confirmá-la. Elas se tornam por conseguinte cada vez mais estilizadas. Como salientou Tylor há muito tempo, “trata-se de um círculo vicioso: aquilo em que osonhador crê cie acaba por ver, e ele acredita no que vê”.58 Mas oque acontece caso ele não consiga ver? Eis aliás algo que deve ter acontecido com freqüência em Epidauro - como dizia Diógenes das

 placas dc voto religioso dc uma outra divindade: “haveria muito maisdelas se aqueles que não foram resgatados também tivessem feito

dedicatórias” .59 Mas os casos fracassados não importavam, a não ser  para o indivíduo, pois a vontade de um deus era inescrutável - “Eletem misericórdia daqueles sobre quem Ele será misericordioso”. Ouainda: “estou determinado a deixar o templo imediatamente”, diz ofofoqueiro doente de Plauto, “pois observo a decisão de Asclépios- ele nem cuida de mim nem quer me sa lv ar” .60Muitos homensdoentes devem tê-lo dito. Mas o verdadeiro crente era sem dúvidade uma paciência infinita: sabemos quão pacientemente os primiti

vos esperam por uma visão plena de significado;61 e como as pessoascontinuam a visitar Lourdes, por exemplo. Freqüentemente o sofredor tinha de se contentar com uma revelação indireta, para dizer omínimo. Vimos, assim, como o sonho de uma pessoa estranha sobre

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um cônsul podia ser útil se necessário. Mas Aristides havia tambémexperimentado, segundo sua própria crença, a presença de um deus

 pessoal e a descreveu em termos que vale a pena citar:62 “Era como

se fosse possível tocá-lo”, diz ele, “a noção de que ele está ali em pessoa. Queremos abrir os olhos, ali mesmo, entre sono e vigília, eno entanto, tememos que ele se afaste rápido; escutamos e ouvimos

coisas, às vezes como num sonho, outras vezes como se estivésse

mos acordados; nosso cabelo se levanta ao final; gritamos esentimo-nos felizes; o coração se incha mas sem se vangloriar.61 Ora,

que ser humano seria capaz de pôr esta experiência em palavras?

Mas qualquer pessoa que tenha passado por isso dividirá comigo oconhecimento e reconhecerá o estado mental em questão”. O que

aqui é descrito é a condição de transe auto-induzido, dentro da qualo paciente adquire um forte sentido interno da presença divina, ouvindo ao final a voz divina, externada apenas pela metade. É possívelque muitas prescrições divinas mais cheias de detalhes fossem rece

 bidas por pacientes cm estado semelhante a este, e não propriamente

em sonhos.

A experiência de Aristides é simples e subjetiva, mas ocasionalmente um fator objetivo pode entrar em jogo. Lemos nos registrosde Epidauro que um homem adormeceu durante o dia fora do tem plo, quando uma das cobras domesticadas do deus se aproximou elambeu seu dedo dolorido. O homem acordou “curado”, e disse ter sonhado que um belo jovem pôs uma atadura em seu dedo. Isto lem

 bra a cena do  Plutus de Aristófanes em que as cobras ministram

tratamento curativo após uma visão do deus. Também lemos a res

 peito de curas praticadas por cães que se aproximam e lambem a parte afetada do paciente quando este se encontra completamenteacordado.64 Não há nada de incrível aqui - basta não insistirmos na

 permanência da idéia de “c u ra ’. A constituição lísica do cão e asvirtudes terapêuticas da saliva são bem conhecidas de todos. Tanto

cães quanto cobras eram, no caso, bastante reais. Uma inscrição ateniense do século IV ordena, por exemplo, uma oferenda de bolos a

cães considerados sagrados e temos ainda a estória de Plutarco a res peito do esperto cão do templo, que descobriu um ladrão roubandoos votos religiosos, sendo premiado com jantares bancados pela po pulação, para o resto de sua vida.65 Por sua vez, a cobra do templo

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figura no espetáculo de pantomima de Herodes: senhoras lembramde derramar um pouco de mingau no seu casulo.66

De manhã cedo, aqueles que tinham sido brindados com a visita noturna do deus contavam suas experiências. Aqui devemostomar generosamente em consideração o que Freud chamou de “ela

 boração secundária”, algo cujo efeito é “que o sonho perde aaparência absurda e incoerente ganhando a forma de uma experiência inteligível”.67 Neste caso a elaboração secundária terá agido, semengano da consciência, para trazer o sonho ou visão para mais perto de uma conformidade com o padrão de cultura tradicional. Por 

exemplo, no sonho do homem com o dedo dolorido, a belezadeiforme da figura onírica é o tipo de traço tradicional68 que poderiaser facilmente acrescentado ao estágio inconsciente. Mais ainda: creioque devemos considerar como certo, em muitos casos, uma elaboração terciária69 - contribuição dos sacerdotes, ou talvez com aindamais freqüência, de pessoas próximas dos pacientes. Todo rumor arespeito de uma cura que trouxesse (como de fato trazia) esperançaaos desesperados seria apropriada e magnificente na esperançosa co

munidade dos sofredores, que foi unificada, segundo Aristides,graças a um sentido cada vez mais forte de camaradagem.70 Aristófanes capta de maneira correta a psicologia do momento ao descrever os pacientes excitados demais para dormir e se aglomerando em tomode Plutus para parabenizá-lo por recuperar sua visão.71 Para com

 preender esta espécie de meio, devemos remeter aos elementosfolclóricos dos registros dc Epidauro, e também às estórias de ope

rações cirúrgicas praticadas pelo deus sobre pacientes adormecidos.E significativo que Aristides não saiba de nenhuma cura por meiode cirurgia em sua própria época, mas acredite que tais curas eram

freqüentes “no tempo dos avós dos atuais sacerdotes”.72 Mesmo emEpidauro ou Pérgamo era necessário dar tempo ao tempo para queuma estória como essa pudesse florescer.

Finalmente cabe uma palavra a respeito do aspecto médico detodas estas atividades. Nos registros, as curas são representadas so

 bretudo como instantâneas.73 Algumas talvez o fossem. É porémirrelevante perguntar pela duração da melhora do paciente. Basta que“ele parta de lá curado” ("uyniç auri^Ge). Não há necessidade quetais curas tenham sido numerosas - como vimos no caso de Lour-des. um santuário pode manter esta reputação mesmo a partir de uma

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 baixa taxa de sucesso, desde que alguns casos de cura tenham sidosensacionais. No que concerne às prescrições de sonho, sua qualidade variava naturalmente não apenas de acordo com o conhecimento

médico do sonhador, mas com sua atitude inconsciente diante dadoença.74 Há uns poucos exemplos em que as prescrições parecem

 bastante racionais, em bora não propriamente originais, como quando a sabedoria divina prescreve gargarcjo para garganta inflamadae vegetais para casos de constipação. “Pleno de gratidão”, diz o receptáculo da revelação, “parti curado”.75 Na maior parte dos casosa farmacopéia divina é puramente mágica. O deus faz seus pacientes engolirem veneno de cobra ou cinzas do altar, ou então manchar 

seus olhos com sangue de galo branco.76 Edelstein ressaltou, corretamente, que estes remédios ainda desempenhavam um grande papeltambém na medicina profana.77 Porém, permanece a importante diferença de que nas escolas médicas eles estavam sujeitos, pelo menosem princípio, a receberem críticas racionais, ao passo que cm sonhos o elemento do juízo (to £7UKpivov) está ausente, como afirmou

Aristóteles.78A influência da atitude inconsciente do sonhador pode ser vis

ta nas prescrições de sonhos de Aristides, muitas das quais ele procurou registrar. Como ele afirma: “Elas são o exato oposto doque poderíamos esperar; são, na verdade, o tipo de coisas que naturalmente procuramos evitar.” Sua característica comum é a extremasimplicidade, variando dos vômitos com fins medicinais, banho derio durante o inverno e hábito de correr sobre o gelo até o naufrágiovoluntário e o sacrifício de um dos dedos79 - símbolo cujo significado seria explicado por Freud. Estes sonhos parecem ser a expressãode um desejo bem assentado de autopunição. Aristides sempre foiobediente a eles (apesar de que, com relação aos dedos, seu inconsciente cedeu a ponto de deixá-lo dedicar um anel como substitutono sacrifício em questão). Entretanto, de algum modo ele soube so

 breviver aos efeitos de suas próprias prescrições. Como disse o professor Campbell Bonner, Aristides provavelmente tinha a constituição férrea de um inválido crônico.80 Na verdade, a obediência aestes sonhos pode também ter proporcionado uma redução de seussintomas neuróticos. Mas de modo bem simples e geral, há pouco adizer sobre um sistema que colocava o paciente à mercê de seus pró

 prios impulsos inconscientes, disfarçados de advertências divinas.

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Podemos também aceitar o frio juízo de Cícero, para quem “poucos pacientes devem suas vidas a Asclépios mais do que a Hipócrates” ;81e não devemos permitir que a moderna reação ao racionalismo oculte

a real dívida que a humanidade tem para com os médicos gregosdos primórdios, que apostavam nos princípios da terapia racionalcontra superstições da idade de ouro, como esta que estivemos considerando até aqui.

Já que mencionei as visões auto-induzidas em conexão com oculto a Asclépios, posso acrescentar mais algumas observações ge

rais a propósito das visões em estado dc vigília e das alucinações. E provável que estas experiências fossem mais comuns em tempos antigos do que são hoje em dia, pois parecem relativamente freqüentesentre povos primitivos. Mesmo entre nós elas são menos raras doque freqüentemente se supõe.82 Em geral elas têm a mesma origeme estrutura psicológica dos sonhos, e como sonhos, tendem a refletir padrões de cultura tradicionais. Entre os gregos, o tipo maiscomum é a aparição de um deus ou a escuta dc uma voz divina queordena ou proíbe a execução de certos atos. Este tipo figura, sob o

nome de “spectaculum” na classificação que Calcídio faz dos sonhos e visões. Seu exemplo é o daemonium de Sócrates.83 Quandotivermos assumido toda a influência que a tradição literária tem nacriação de formas estereotipadas, poderemos concluir que experiências deste tipo foram bastante freqüentes na época, e que continuarama ocorrer mesmo posteriormente.84

Concordo com o professor Latte,85 que quando Hesíodo nosconta sobre a musa e como ela lhe falou no Helicon,86 não se tratade alegoria nem de ornamento poético, mas dc uma tentativa dc ex pressar uma experiência real cm termos literários. Também podemosaceitar como razoável a visão que Filípides tem do deus Pan, diante

de Maratona, como sendo histórica, resultando, enfim, no estabelecimento de um culto a Pan em Atenas.87 Aceitamos ainda a visãoque Píndaro tem da mãe dos deuses, sob a forma de uma estátua de pedra, que também teria levado ao estabelecimento de um culto, em

 bora aqui a autoridade não seja contemporânea ao fato.88 Estas trêsexperiências têm um interessante ponto em comum: todas ocorreram em lugares solitários e montanhosos - a de Hesíodo no Helicon,a dc Filípides na passagem selvagem do monte Parthenion, a de Píndaro durante uma tempestade nas montanhas. Isto provavelmente não

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é acidental. Exploradores, montanhistas e aviadores têm às vezes ex periências estranhas mesmo nos dias de hoje - um exemplo bastanteconhecido é a presença de algo que teria assustado Shackleton e seus

companheiros na Antártida.89 Um dos médicos gregos mais velhosde fato descreve um estado patológico, no interior do qual um homem pode vir a cair “se estiver viajando numa estrada solitária e oterror o apanhar”.90 Precisamos lembrar aqui que a maior parte daGrécia era, e ainda é, um país de pequenas colônias espalhadas, se

 paradas por vastas extensões de montanhas solitárias e desoladas,que reduzem à insignificância as poucas lazendas —Epycxotv0pcoji(úv. A influência psicológica da solidão não deve ser subes

timada.Resta ainda traçar brevemente os passos através dos quais um

 punhado de intelectuais gregos conseguiram atingir uma atitude maisracional face à experiência onírica. Até aqui, e seguindo nosso conhecimento fragmentário, o primeiro homem que explicitamente pôso sonho em seu devido lugar foi Heráclito, com a observação de quedurante o sono cada um de nós se retira para um mundo próprio.Isto não apenas exclui a idéia de sonho “objetivo”, como parece im

 plicar uma negação da validade da experiência onírica em geral, jáque a regra de Heráclito é “seguir o que temos de comum . E tudoindica que Xenófanes também negaria tal validade, já que dele sediz ter rejeitado todas as formas dc adivinhação, incluindo provavelm ente o sonho verídico.93 Mas estes prim eiros céticos não se propunham explicar, ao que nos consta, como ou por que os sonhosocorriam. Sua visão das coisas necessitava de tempo para ganhar aceitação. Dois exemplos servirão para mostrar como certos velhos

modos de pensamento ou de expressão persistiram ao linal do século V a.C. O cético Artabanus, na obra de Heródoto, observa a Xerxesque a maior parte dos sonhos são sugeridos por preocupações da vidadesperta, apesar de ainda falar delas de modo “objetivo”, como “vagando entre os homens”.94 E a teoria atomística de Demócrito arespeito dos sonhos considerados como eidola, que emanam continuamente de pessoas e objetos, e afetam a consciência do sonhador 

 penetrando os poros do corpo, não passa de uma tentativa de forne

cer uma base mecanicista para a idéia de sonho objetivo. Ela preservamesmo a palavra de Homero de uma imagem onírica objetiva.95 Estateoria assegura explicitamente a existência dc sonhos telepáticos.

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declarando que os eidola carregam representações (ep^aaeic;) deatividades mentais de seres dos quais eles se originam.96

Deveríamos esperar, entretanto, que ao final do século V a.C.

o tipo tradicional de “sonho divino”, não mais nutrido por uma féviva nos deuses tradicionais,97 declinasse em freqüência e importância - o culto popular a Asclépios constituindo por bons motivos umaexceção. Há, de fato, indicações de que outros modos de encarar ossonhos estavam ficando mais em voga nesta época. As mentes religiosas estavam agora inclinadas a ver no sonho uma prova dos

 poderes inatos da alma, passíveis de ser exercidos quando liberadosdos vulgares incômodos do corpo através do sono. Tal desenvolvi

mento pertence ao contexto de idéias chamadas “órficas”, comoanalisarei no próximo capítulo.98

Ao mesmo tempo, há provas de um vivido interesse naoneirocritice - arte de interpretar o sonho privado de modo simbólico. Assim, em Aristófanes, um escravo fala da contratação de um

 praticante desta arte, trabalhando mediante o pagamento dc pequenas quantias; conta-se também que um neto de Aristides, o Justo,

teria vivido disso, ajudado por uma tábua de correspondências99(juvockiov). Foi a partir destes nivaKta que se desenvolveu o primeiro livro de sonhos grego, o mais antigo devendo datar do finaldo século V a.C.100

O tratado hipocrático On Regimen (nept ôioaxqç) que Jaeger datou de meados do século IV a.C.1'" contém uma interessante tentativa dc racionalizar a oneirocritice estabelecendo uma relação entregrandes classes de sonhos e o estado fisiológico do sonhador, tra-

tando-os como sintomas importantes para o médico.1"2 Este autor admite sonhos “divinos” pré-cognilivos e da mesma maneira, reconhece, são realizações de desejo sem qualquer disfarce.103 Mas ossonhos que interessam a ele enquanto médico são os que expressamestados fisiológicos mórbidos, de forma simbólica. Ele os atribui aclarividência médica da alma quando durante o sono ela se “tornamestre de si mesma” e capaz de examinar a morada corporal semdistração"14(aqui a influência da visão “órfica” é evidente). A partir deste ponto de vista, ele procede a uma justificativa das várias interpretações tradicionais de analogias mais ou menos imagináriasentre o mundo externo e o corpo humano, macrocosmo e microcosmo. Assim, por exemplo, a terra faz as vezes da carne, o rio eqüivale

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124 O s GREGOS E O IRRACIONAL

ao sangue, uma árvore pelo sistema reprodutivo; sonhar com um terremoto é um sintoma de mudança fisiológica, enquanto sonhos sobreos mortos de referem à comida que se ingeriu, “pois dos mortos vêm

a nutrição, o crescimento e a semente”.105Ele antecipa assim o princípio freudiano de que o sonho é sempre egocêntrico,106 embora suaaplicação fique restrita demasiadamente ao plano fisiológico. Ele nãoreivindica nenhuma originalidade para a sua interpretação, alguns

de seus aspectos sendo sabidamente bem antigos;107 mas afirma quefaltava uma base racional aos intérpretes anteriores que não prescreviam tratamento aos pacientes, com exceção de rezas, o que, na

sua opinião, não é o bastante.108

 No Timeu, Platão oferece uma curiosa explicação sobre os sonhos mânticos: eles se originariam de uma intuição da alma racional,mas seriam percebidos pela alma irracional como imagens refletidas na superfície suave do fígado —daí seu caráter obscuro esimbólico que torna necessária a interpre tação.109 Assim ele permiteestabelecer uma relação indireta entre a experiência onírica e a realidade, ainda que aparentemente não a tenha em alta conta. Umacontribuição muito mais importante foi feita por Aristóteles em seus

dois curtos ensaios Sobre os sonhos e Sobre a adivinhação nos so-nhos. Sua abordagem do problema é friamente racional, sem ser superficial, e ele nos exibe, por vezes, uma brilhante intuição, comoao reconhecer uma origem comum para os sonhos, as alucinaçõesdos doentes e as ilusões do homem sadio (por exemplo, quando tomamos um estranho pela pessoa que queríamos ver)."0 Ele nega quealguns sonhos sejam enviados por deuses (08OTte|iTXta) - se os deuses desejassem transmitir algum conhecimento aos homens, eles o

fariam durante o dia, e escolheriam os receptáculos de modo maiscuidadoso.111 No entanto, mesmo não sendo divinos, os sonhos podem ser chamados daemonicos, “pois a natureza é daemonica” - umaobservação que, como dizia Freud, contém um profundo significado se corretam ente in terp reta da .112 Com resp eito aos sonhosverídicos, Aristóteles adota nos ensaios, e a exemplo de Freud, umaatitude não comprometedora. Ele já não fala dos poderes inatos deadivinhação da alma como em sua romântica juventude,11’ e rejeitaa teoria dos eidola atômicos de Demócrito.114 Ele aceita dois tiposde sonhos como inteligivelmente pré-cognitivos: sonhos conduzindo a um conhecimento prévio do estado de saúde do sonhador,

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P a d r ã o   d e   s o n h o s   e   p a d r ã o   d e   c u l t u r a 125

razoavelmente explicados pela penetração na consciência de sintomas ignorados durante as horas de vigília; e aqueles que se realizam

 pela sugestão de uma trajetória de ação para o sonhador.115 Para ele,

se alguns sonhos não incluídos nessas classes se mostrarem verídicos, deve ser coincidência (<xo|Jmco|a.aJ! Ele sugere ainda, comoalternativa, uma teoria de estímulos por onda, em analogia com distúrbio s p ropa ga do s na água e no ar.11” Sua ab o rd ag em écompletamente científica, não religiosa, e é duvidoso que a ciênciamoderna tenha avançado muito quanto a esta questão.

A antigüidade tardia certamente não avançou com relação aAristóteles. A visão religiosa dos sonhos foi revivida pelos estóicos,

e ainda aceita até mesmo por peripatéticos, como um amigo de Cícero, Crá tipo ."7 Na opinião avalizada de Cícero, os filósofos desta“clientela de sonhos” haviam feito muitos esforços para manter vivauma superstição cujo único efeito era aumentar o peso dos medos eansiedades hum anas.118Mas seu protesto não recebeu a devida atenção - os livros de sonhos continuaram a se multiplicar; o imperador Marco Aurélio agradecia aos deuses pelo conselho médico que lheera outorgado durante o sono; Plutarco se absteve dc comer ovos

devido a certos sonhos; Dio Cássio foi inspirado por um sonho aescrever livros de história; e mesmo um cirurgião, tão iluminadoquanto Galeno, estava sempre prestes a executar uma operação instado por um sonho.119Fosse por causa de uma intuitiva noção de queos sonhos estão afinal relacionados à vida humana na sua intimidade, ou por razões mais simples, como as que mencionei no iníciodeste capítulo, o fato é que a antigüidade não se contentava com oPortão de Marfim, insistindo que deveria haver, por vezes e de al

gum modo, um Portão de Ferro.

 N o t a s   d o   c a p í t u l o   IV

1. Sobre a atitude dos povos primitivos diante da experiência onírica ver L.

Lévy-Bruhl,  Primitive Mentality, cap. III, e Lexpérie nce M ystique , cap. III.

2. Teofrasto, Caráteres 16 (28 J.).3. Ver Malinowski, Sex and Repression in Savage Society, 92 sg. e especial

mente J,S. Lincoln, The Dream in Primitive Cultures (Londres, 1935). Cf.

também Geórgia Felchner,  Dreams in O ld Norse Literatu re and th eir  

 Affin ities in Folklore (Cambridge, 1935), 75 sg.

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126 OS GREGOS E O IRRACIONAL

4. C.G. Jung veria tais sonhos como baseados em “imagens arquetípicas” trans

mitidas por uma suposta m emória racial. Mas, como observou Lincoln (op.

cit., 24), seu desaparecimento durante o colapso de uma cultura indica que

as imagens são transmitidas culturalmente. O próprio Jung (Psychology and  

 Religion, 20) relata o reconhecim ento sintomático de umcurandeiro que“confessou que não tinha mais sonhos, pois haviaem seulugar o com issá

rio do distrito. ‘Desde que os ingleses aqui chegaram não temos mais

sonh os’, ele disse. ‘O comissário do distrito conhece tudo a respeito de guer

ras e doenças, e sobre onde devemos morar’.’'

5. Jane Harrison,  Epilegomena to the Study o f Greek Religion, 32. Sobre a

relação entre sonho e mito, ver também W.H.R. Rivers, “Dreams and

Primitive Culture”, Bulletin o fJ ohn Rylands Library, 1918, 26; Lévy-Bruhl,

 L ’expérien ce mystique', Clyde Kluckhohn, “Myths and Rituais: A GeneralTheory”, Harvard Theo logical Review 35 (1942) 45 sg.

6 .  Primitive Culture in Greece, 151.

7. Píndaro, frag. 116B (131 S.). Cf. cap. V, infra.

8 . O mais recente e meticuloso estudo dos sonhos em H omero é o de Joa-

chim Hundt,  Der Tra umglaube bei Homer  (Greifswald, 1935) de onde

aprendi bastante. Sonhos “objetivos” são, segundo sua terminologia =

“Aussentráume” , em contraste com “Innentráume” que são encarados como

experiências puramente mentais, ainda que possam ser provocados por cau

sas externas.

9. ov eip oç como “experiência de sonho” parece ocorre r em Homero apenas

na frase ev oveípco ( Ilíada, 22.199; Odisséia, 19.541, 581 = 21.79).

10.  Ilíada, 23.65 sg. Odisséia, 6.20 sg, em que Zeus envia o oveipoç como

antes havia enviado Isis; eiScoÀov criado ad hoc, Odisséia 4.795 sg. Na

 Ilíada, e nos dois sonhos da Odisséia, a figura onírica é disfarçada de pes

soa viva; mas não vejo razão para supor, como Hundt, que é realmente o

“Bildseele” ou a sombra da alma que está de visita ao “Bildseele” do so

nhador (cf. a crítica de Bõhme, Gnomon, 11 [1935]).11. Entrada e saída por um buraco da fechadura, Odisséia, 4.802, 838; atr) 8

a p unep Ke<|)aÀ,r|Ç,  Ilíada 2.20, 23.68, Odisséia 4.803, 6.21. Cf. também

 Il íada, 10.496 onde um sonho atual está certamente em jogo.

12.  Ilíada, 23.99.

13. I l íada , 2.23, 23.69. Odisséia, 4.804. Cf. Píndaro, Ol. 13.67: euôeiç,

AioÀiSa pSocaiA.eu; Ésquilo,  Eumênides, 94: euSou av.

14. Cf. Hundt, op. cit. 42 sg., e G. Bjõrck, "ovap iSeiv: de la perception de la

rêve chez les anciens”, Eranos 44 (1946) 309.

15. Heródoto 6.107.1 e outros exemplos citados por Bjõrck, loc. cit., 311.

16. (j)OiTOtv, Safo,  P. Oxy. 1787; Ésquilo  P. V., 657 (?); Eurípides, Alc. 355; He

ródoto 7.16(3; Platão,  Fédon 60E; Parrhasios apud Atena, 543F. e7U0 KO7ieiv.

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P a d r ã o   d e   s o n h o s   e   p a d r ã o   d e   c u l t u r a 127

Ésquilo,  Agamenon 13; 7tcoÀEtü0cxi, Ésquilo  P.V. 645; JipoüEÀ0£iv, Pla

tão, Crítias 44A.

17. Heródoto, 1.34.1; 2.139.1, 141.3; 5.56; 7.12; cf. Hundt, op. cit., 42 sg.

18. ia |io a a , 4, 7 (veja n. 55);  Lindian Chronicle, ed. Blinkenberg, D 14,

68, 98; Isócrates, 10.65; Acts 23; 11. Muitos outros exemplos deste usoaparecem em L. Deubner, de incubatione, p. 11 e 71.

19. Píndaro, 01. 23.65 sg. Cf. também Paus. 10.38.13, onde a figura onírica

de Asclépios deixa uma carta. A incubação dos sonhos nórdicos procede

de modo similar, cf. Kelchner, op. cit. 138. As operações de sonhos

epidáuricas (n. 72 ) são uma variação do mesmo tema. Sobre “aportes” na

teurgia, ver Apêndice II, nota 126.

20.  Il íada , 22.199 sg. Aristarco parece ter rejeitado essas linhas; mas os argu

mentos dados nos escólios - que são “banais em estilo e pensam ento” eque “desfazem a imagem veloz de Aquiles” - são tolos, e mesmo as obje-

ções de comentaristas modernos não são melhores. Leaf, que acha o verso

200 “tautológico e esquisito”, errou ao observar o valor expressivo das re

 petições como significando frustração . Cf. H. Frankel,  Die homer isch en  

Gleichnisse, 78 e Hundt, op. cit. 81 sg. Wilamowitz encontrou uma metá

fora admirável, mas unertraglich no presente contexto (Die llias u. Homer,

100); a sua análise parece-me hipercrítica.

21. Odisséia, 19.541 sg. Estudiosos viram um defeito neste sonho no fato de

Penélope lamentar a morte dos gansos ao passo que acordada ela não la

menta a morte dos pretendentes que os animais simbolizam. Mas tal

“inversão do afeto” é comum em sonhos reais (Freud,  A interpretação dos 

 sonhos).

22. Ilíada, 5.148 sg. O ovEipono^oç pode ser apenas um intérprete (EKpivax

ovEiponç). Mas somente em outra passagem homérica que a palavra apa

rece,  Ilíada 1.63, pode significar um  so nhador  especialmente favorecido

(cf. Hundt, op. cit., 102 sg.), o que atesta a antigüidade, na Grécia, do so

nho “de busca”.23. Cf. Sirach 31 (34); 1 sg.; Laxdaela Saga, 31.15. Como Bjõrck observa (loc. 

cit. 307), sem a distinção entre sonhos significativos e não-significativos,

a arte de interpretação não poderia jamais ter se mantido. Se houve um pe

ríodo, antes de Freud, em que os homens acharam que todos os sonhos

 possuíam algum significado, ele reside há muito tempo. “Os homens pri

mitivos não crêem em todos os sonhos, de modo indiscriminado. Alguns

sonhos merecem crédito, outros não.” (Lévy-Bruhl,  Primitive Menta lity,

101).24. Odisséia, 19.560 sg.; cf. Heródoto 7.16; Galeno, Ttepo rr|ç e£, EVUTmcov

SiaYVtóOECOÇ (VI. 832 sg. R.). A distinção é sugerida em Ésquilo, Coéforas 

534, onde, acredito, deveríamos pontuar, com Verrall, odtoi i^axouov

avôpoç o\|/avov TtEXet.: “Isto não é um mero pesadelo; é uma visão  sim -

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128 O S  GREGOS E O IRRACIONAL.

bólica do homem”. Artemidoro e Macróbio reconhecem o evtmviov

acrr||iavxov e também outro tipo de sonho não significativo, chamado fa n -

tasma, que inclui, de acordo com Macróbio: a) o pesadelo (EcjnaXxriç), e

 b) a hipnopômpica visão que acontece para algumas pessoas entre a vigília

e o sono e foi primeiramente descrita por Aristóteles (Jnsamn. 462a 11).

25. Artemidoro 1.2, p. 5 Hercher; Macróbio, in Sonin. Scip. 1.3.2; [Aug.] de 

 spir itu et anim a, 25 (P.L. XL.798); Joann. Saresb.  Polycra t. 2.15 (P.L. 

CXCIX.429A); Nicephoros Gregoras, in Synesium de insomn. ( P.G. 

CXLIX.608A). As passagens foram coligidas e o seu relacionamento dis

cutido, por Deubner, de incubadone, 1 sg. As definições do texto são de

Macróbio.

26. Isto foi visto por J. H. Waszink,  Mnemosine, 9 (1941) 65 sg. A classifica

ção de Calcídio combina idéias platônicas e judaicas; Waszink levanta ahipótese de que ele pode tê-lo feito a partir de Numenius por meio de Por

fírio. Conversa direta com algum deus aparece também na classificação de

Posidônio (Cícero, div. 1.64).27. Calcídio, in Tim. 256, citando o Crítias 44B e o  Fédon 60E.

28. Aetius,  Placita 5.2.3: HpotJnAoç xcov ovetpcov xouç (iev GeoTtEiiJtxo-uç m xavayKqv ytveoBat xovç §e <|)uoikouç aveiôcoA-orcoiouiievriç \(ft>JCTlç xo

oun<|>epov oruxri Kat xo tovxcoç eao|ievov xovc, §e auYKpapaxtKouç ek 

xo v a in o p a x o u Kax eiSeoXcov TipoaTtxcoaiv ... ox av a |3ouÀo|.i£0a pXerttopev, coç em xcov xaç epcopevaç opcovxcov ev UTtvco ytv exat. A úl

tima parte desta declaração deu muito trabalho (ver Diels ad loc., Dox Gr. 

416). Creio que sonhos “mesclados” (avyKpaiiaxiKOUç) são sonhos de

monstros (t)>avxaapaxa) que, na teoria de Demócrito, brotam de uma for

tuita conjunção de etScoÀa, ubi equi atque hominis casu convenit imago 

(Lucrécio 5.741). Mas um sonho com a pessoa amada não cabe neste tipo

de sonho. Galeno tem auyKpipaxiKOTjç, que Wellmann explica como “or

gânico” (Ardi. f. Gesch.d.Med. 16 [1925] 70 sg.). Mas isto não se ajustacom m x ei5coÀcov 7t poo 7ticoGiv. Sugiro que ox av a [3ou ^ope 0a kxA. ilus

tra um quarto tipo, o sonho crescendo de e7u.eu|iia (cf. Hipócrates,

7t£pt 5tatxr|ç, 4.93), cuja menção caiu um desuso.

29. Heródoto 1.34.1., 5.56; cf. Platão, Crítias, 44A; Plutarco,  Alex. 26 (sobre a

autoridade dos Heraclidas). A uniformidade da tradição literária foi notada

 por Deubner  (de incubadone 13) que cila muitos outros exemplos. O tipo

é tão comum na literatura cristã dos primórdios quanto na literatura pagã

(Festugière,  L'Astro logie et les sciences occultes, 51).30. Paus. 3.14.4, a mulher de um rei espartano dos primórdios constrói um tem

 plo de Tétis devido a um sonho (K axa oi|/iv oveip axoç). Sobre sonhos

envolvendo estátuas de culto, ibid., 3.16.1, 7.20.4, 8,42.7; Parrasios apud  

Athen. 543F. Sófocles dedica um santuário como resultado do sonho, Vit. 

Sph. 12, Cícero, div. 1.54.

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3 I. Dittenberger. Sylloge3 oferece diferentes traduções: rax ovap, 1147, 1148,

1149; Korta ovsipov, 1150;kcx9 utivouç, 1151; o\|/iv tôouaa apt'xr|v xr|ç

Geou (Atena), 1152. Provavelmente 1128 koíG opa(ia e 1153 rax £7tixayriv

também se refere ao sonho; 557, £7u<j)av£ia de Artemis, talvez uma visão

em vigília. Cf. também Edelstein,  Asclépio, 1, test. 432, 439-442, e sobreos cultos originados por visões em vigília. Chron. Lind. A 3: xo tepo]v

xaç AGamaç xaç AivStaç . . . noXXoiq k[ou KaXotç aü5a0e|aaoi e£,

apx atox jaxc úv xpovcov K£K 0ü| i r |xa i ô ta xav xaç Geou eui^aveiav.32. Ibid., 663; 985. Cí. também P. Cair. Zenon 1.59034, e os sonhos de Zoilos

(que teria sido um empreiteiro de construções e tinha, assim, todos os mo

tivos para sonhar que Sarapis requerera um novo templo). Muitos dos

sonhos de Aristides prescrevem sacrifícios e outros atos de culto.33. Platão,  Leis, 990E-910A,  Epin. 985C. As inscrições tendem a confirmar o

 ju lgamento de Platão sobre o tipo de pessoa que fez uma ded icatória sob o

impulso de um sonho. A maioria inclui dedicatórias a mulheres ou a divindades curadoras (Asclépios, Higieia, Sarapis).

34. Gadd,  Ideas ofD iv in e Rule, 24 sg.

35.  Ilíada, 2.80 sg. parece sugerir que a experiência onírica de um grande rei é

mais confiável do que a do homem comum (cf. Hundt, op. cit., 55 sg.). A

última concepção grega era que GJCOuSaiOÇ era privilegiada para receber 

apenas sonhos significantes (Artemidoro, 4  p ra e f ; cf. Plutarco,  gen. Soer.20, 589B), o que corresponde ao estatuto especial de sonhador concedido

 pelos primitivos ao feiticeiro e que pode se basear em idéias pitagóricas(cf. Cic. div. 2.119).

36. Gadd, op. cit., 73 sg.

37. Lincoln, op. cit., 198, cf. 1 Samuel 3: 4 sg.; Lincoln, op. cit., 24, cf. Deubner,

op. cit., 12. Alguns dos pacientes de Jung também relataram sonhos nos

quais uma voz oracular era ouvida, desencarnada ou procedendo “de uma

figura de autoridade”; ele o chama de “fenômeno rel igioso básico”(. Psychology and Relig ion, 45 sg.).

38. Cf. Seligman,  JRAI 54 (1924) 35 sg., Lincoln, op. cit., 94.39. Lincoln, op. cit., 96 sg.

40.  Ilíada, 2.20 sg. (Nestor, o substituto ideal do pai). Odisséia, 4.796 sg., 6.22

sg. (mas dificilmente substitutos da figura materna, porque estão 0 |ur|A.iK£çcom o sonhador).

41. Aristides, orai. 48.9 (11.396.24 Keil); Cf. Deubner, op. cit., 9, e os exem

 plos cristãos, ib id ., 73 , 84. Alguns prim it iv os ficam menos fa cilm entesatisfeitos. Ver, por exemplo , Lincoln, op. cit., 255 sg., 271 sg.

42. Strabo, 14.1.44. Filostrato, vit. Apoll. 2.37. Outros exemplos em Deubner,op. cit., 14 sg.

43. Paus. 1.34-5. Outros exemplos em Deubner, op. cit., 27 sg. Cf. também Hal-

liday, Greek Divination, 131 sg. que cita o curioso rito gaélico de incubação(“Taghairm”), em que o indagador era enrolado numa pele de touro.

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130 O s GREGOS E O IRRACIONAL

44. Cf. cap. V, infra.

45. Ver nota 79.46. Ramo de loureiro, Fulgentius,  Mythologiae, 1.14. (sobre a autoridade de

Anrifon e outros). Spells, Artemidoro, 4.2, pp. 205 sg. H. Venda de so

nhos, Juv. 6.546 sg. Sobre a ovetpanrira nos papiros, ver Deubner, op.

cit., 30 sg.47. Tem-se dito que a incubação era praticada em Dodona ( Il ía da , 16.233 sg.),

mas será que Homero sabia disso?48. Cf. Gadd, op. cit. 26 (a incubação no templo de Amenófis II e Tutmés IV

 para obter a ap rovação dos deuses pela ocupação do trono). A respeito dos

minóicos não possuímos nenhuma prova direta, mas as terracotas encon

tradas em Petsofa (Creta [B5/4 9.356 sg.]) representando membros humanos

 perfurados para serem suspensos, parecem votos ded icados a curas. Paraum provável caso de incubação na Mesopotâmia, ver  Ztschr. f. Assyr. 29

(1915) 158 sg. e 30 (1916) 101 sg.

49. Eurípides,  Ifigênia em Táuris, 1259 sg. (cf.  Hec. 70 sg.: ff> TtOTVlOl X0CDV,

lieÀavonTep-oycov (irixep ovevpcov). A autoridade da tradição tem sido posta

em dúvida, mas algum outro método oracular não está sujeito à dúvida?

 Nem a profecia insp irada e nem sequer a adivinhação são apropriadas, até

onde sabemos, para o oráculo da terra. O autor da Odisséia, por seu turno,

(24.12) parece encara r os sonhos comoctônicos (cf. Hundt, op. cit., 74 sg.).

50. Píndaro, Olímpicas, 13.75 sg. Cf. uma inscrição na acrópole, Syll.3 1151:

A0r|vaa . . . ovj/iv iSouoa aperqv TT|Ç 0eou e a epifânia de Atena em seu

sonho (provavelmente fictício), Blinkenberg, Lindische Tempelchronik, 34 sg.

51. Heródoto 5.92ri. Melissa era uma fhoaoOavaoç que pode ter tornado seu

eiScoXov mais acessível para consultas. Sua queixa pode ser comparada à

dos nórdicos em que um homem aparece durante um sonho para reclamar 

de pés frios, uma vez que os dedos dos pés do cadáver foram deixados des

cobertos (Kelchner, op. cit., 70).

52. O sonho (não procurado) de Pelia em que a alma de Frixos pede para ser levada para casa (Píndaro,  Píticas, 4.159 sg.) provavelmente reflete a

ansidedade do final da era arcaica face à tradução de relíquias, e pode ser,

 portan to, classificado como um sonho de “padrão de cultura”. Outros so

nhos nos quais os mortos aparecem ilustram sobretudo os casos especiais

do Morto Vingativo (o sonho das Erínias no  Eumên ides 94 sg., de Esqui

lo, ou o de Pausânias (Plutarco, Cimon 6 , Paus. 3.17.8 sg.) ou ainda o morto

agradecido no sonho de Semonides (Cícero, div. 1.56). Aparições em so

nhos de mortos recentes são ocasionalmente registradas em seus epitáfioscomo prova de sua existência (ver Rohde,  Psyche, 576 sg.; Cumont,  A fter  

 Life in Roman Paganism , 61 sg.). Tais sonhos são obviamente naturais em

todas as sociedades, mas com exceção do sonho de Aquiles na obra de Ho

mero, os exemplos dados são principalmente pós período clássico.

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53. Alexandre Polistor apud  Diógenes Laércio, 8.32 (= Diels, Vorsokr.5, 58 B

la); Posidônio apud Cícero, div. 1.64. O relato de Alexandre foi analisado

 por Wellman (Hermes 54 [1919] 225 sg.) como remetendo a uma fonte do

século IV que refletia visões pós-pitagóricas, mas Festugière mostra que

as fontes datam do século III e relata o documento pertencendo às visõesda velha academia e a Diocles de Caristus (REG 58 [1945]).

54. Cf. cap. VI, infra.

55. ia | i a ia to u AtcoàAcovoç Kai pou A aKÀ ajuou,  IG IV2, i.121-124.

Edelstein,  Asclepius, I, test. 423, Há uma edição separada de R. Herzog,

 Die Wunderheilungen von Epidaurus (Pliilol. Supl. III), e as partes menos

mutiladas são reproduzidas e traduzidas por Edelstein, Asclepius, I, text. 423.

56. A cena do  Pluto, de Aristófanes, tem sido citada como argumento para a

segunda visão. Duvido porém que o poeta pretendesse sugerir que o sacer

dote fosse idêntico ao “deus" que aparece posteriormente. A narrativa deCário parece representar não o que Aristófanes pensava ter realmente ocor

rido, mas, antes, o habitual quadro imaginário do paciente do que aconteceuenquanto dormia.

57. O. Weinreich,  Antike Heilungswunder   (RGVV VIII), 1909; R. Herzog, op.

cit., 1931. E.J. e L. Edelstein,  Asclepius: A Collection and In terpretation  

o f theTestimonies (2 vols., 1945). E o livro dc Mary Hamilton,  Incubadon  

(1906) fornece um bom material para o não especialista.

58. E.B. Tylor,  Primitive Cidture , II, 49. Cf. G.W. Morgan, “Navaho Dreams”,

 American Anthropologist, 34 (1932), 400: “Os mitos influenciam os sonhose estes, por sua vez, ajudam a manter a eficácia das cerimônias.”

59. Diógenes Laércio, 6.59.

60. Plauto, Curculio, 216 sg. (= test. 430 Edelstein). Posteriormente, a visão

 pia vai representar um fracasso que é um sina l da desaprovação moral do

deus, como nos casos de Alexandre Severo (Dio Cass. 78.15.6 sg. = test.

395) e da bebedeira dos jovens em F ilostrato (vit. Apollod. 1.9 = test. 397).

Mas existiram também outras lendas de templos para encorajar o desapon

tado (t a |i a x a 25). Ed elstein (op. cit., 11.163) crê que estes devem ser 

exceções, mas a história de Lourdes e de outros santuários de cura suge

rem que não. “Se nada acontecer”, diz Lawson, falando da incubação nas

igrejas atuais gregas, “regressam à casa com a esperança diminuída, mas a

crença firme” (Lawson,  M odem Greek Folklore and Ancient Greek Relig ion, 302).

61. Cf. Lincoln, op. cit., 271 sg. e sobre as estadas em Epidauro, Herzog, op.

cit., 67. Em algum as na rrativa s de incu ba çã o medieval o paciente espera

um ano (Deubner, op. cit., 84), e Lawson fala de camponeses que, hoje,

esperam semanas e meses.62. Aristides, orat. 48.31 sg. (= test. 417). Máximo de Tiro afirma ter tido uma

visão de Asclépios quando acordado (9.7: eiSov tov Actkà.iituov, aXX  oul;i

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132 OS GREGOS E O IRRACIONAL

ovap). E Iâmblico {mysi. 3.2, p. 104 P.) enca ra o estado entre sono e a

vigília como particularmente favorável a visões divinas.

63. Àvcopriç oXkoç av£7tax0r|ç. oyKoç era normalmente um sinal de orgulho

e, portanto, ofensivo (£jtax0r|ç) aos deuses.

64. la p a r a 17; Ar.  Plut. 733 sg., lapaxa 20, 26. Sobre as virtudes das lam bidas caninas, ver H. Scholz,  Der H und in der gr.rom. Magie und Religion,

13. Um relevo do século IV, no Museu Nacional de Atenas, n. 3369, foi

interpretado por Herzog (op. cit. 88 sg.) como um paralelo do ta p a m 17.

Dedicado por um incubante agradecido ao herói curador Anfiarau, mostra,

lado a lado: a) a cura de um ombro ferido por Anfiarau em pessoa (o so

nho?); b) uma cobra lambendo-o (o acontecimento objetivo?).

65.  IG II2, 4962 (= test. 515); Plutarco,  soll. anim. 13, 969E; Aeliano,  N.A.. 

7.13 (= test. 731 A, 731). Sobre a oferenda a cães e aos seus possu idores(KwnYETOiç) verFarnell,  Hero Cults. 261 sg.; Scholz, op. cit. 49; Edelstein,

op. cit., 11.186, n. 9. O cômico Platão adapta a frase a um double entendre 

indecente (frag. 174. 16 K.), que indica, possivelmente, que alguns atenien

ses consideravam a oferta tão estranha como nós. Serão os “possuidores”

ou “chefes dos cães”, espíritos que guiam o cão ao respectivo paciente?

De qualquer modo não são, acredito, “caçadores” humanos ou divinos: Xen.

Cynerg. 1.2 não é prova de que Asclépio era caçador.

66 . Herodes, 4.90 sg. (= test. 482). Ele é certamente uma serpente viva e não

uma serpente de bronze. Serpentes de bronze não ficam em buracos, nem

o termo TpcoY?ir| significa boca (como Edelstein, loc. cit. e 11.188, ao repro

duzir um engano de Knox); e nem a interpretação do termo como caixa con

tendo dinheiro parece servir TpcoyÀr] (Herzog,  Arch. f . Rei 10 [19071 205

sg.). A interpretação natural é confirmada por Paus. 2.11.8 (= test. 700a).

67. Freud,  A interpretação dos sonhos, 391.

68. Cf. l a p a r a , 31, e os muitos exemplos em Deubner, op. cit., 12.

69. l a p a t a é um claro exemplo disto, como mostrou Herzog. Cf. também

G.Vlastos, “Religion and Medicine in the Cult of Asclepius”,  Review o f   Religion, 1949, 278 sg.

70. Aristides, orat. 23.16 (= test. 402): orne xopo^ ovXXoyoq repaypa

TOOOt)TOC5 OUTE Tl\OV  KOIVCÜVIOC OUTE SlSaOKaXtÚV TCOV aUTGJV TUXEIV,

oaov xpr ipa Kai KEpSoç e iç AaKXri7uou te aup<t)OiTriaa i Kai

T£?i£(T9r|vai i a npoyta tcüv lepcora.

71. Ar.  Plut. 742 sg.

72. Aristides, orat. 50.64 (= test. 412). Operações cirúrgicas em pacientes

adormecidos aparecem também em um fragmento do registro de um tem plo de Asclépio a L ebena em Creta (lnscr. Cret. I.XVII.9 = test. 426), sendo

atribuídos a São Cosme e São Damião (Deubner. op. cit., 74). Para uma

velha operação nórdica do tipo, ver Kelchner, op. cit., 1 1 0 .

73. Curas instantâneas aparecem também na incubação cristã (Deubner, op. cit.,

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P a d r ã o   d e s o n h o s e p a d r ã o d e c u l t u r a 1 3 3

72, 82) e são características de medicinas primitivas (Lévy-Bruhl,  Primitve  Mentality, 419 sg.).

74. Edelstein salienta corretamente o primeiro ponto (op. cit., 11.167); "nos so

nhos os homens fazem com que os deuses confiem naquilo em que eles

 próprios confiaram ), mas passa pelo segundo sem notá-lo. A visão antiga

que atribui as curas à habilidade médica dos sacerdotes, tentando ainda ra

cionalizar os Asclepiea como sanatórios (cf. Farnell,  Hero Cults, 273 sg.

e Herzog, op. cit., 154 sg.) é abandonada com razão por Edelstein. Como

ele observa, não há muita prova de que em Epidauro e em outras localida

des, médicos e sacerdotes treinados atuassem nos templos (op. cit., 11.158).

O Asclepieum de Cos tem sido apresentado como exceção, mas os instru

mentos médicos ali encontrados podem ser votos dedicados a médicos (ver 

Aristides, orai. 49.21 sg., onde Aristides sonha com um ungüento e o

vecoKopoç o proporciona; e uma inscrição no  JHS  15 [1895], 121, em que

o paciente agradece ao seu médico tanto como ao deus).

75.  IG IV-.1.126 (= test. 432). Cf. Aristides, orat. 49.30 (= test. 410): p a |jev

(tcov (JjapucxKcov) au ro ç g uv tiO eiç , p a 5e tcov ev neaco Kai koivcúv

eôiSou (o 0£oç), e o estudo de Zingerle sobre as prescrições dadas a Grânio

Rufo (Comment. Vind. 3 [1937] 85 ff.).

76. Veneno de cobra. Galeno, Subfig. Emp. 10, p. 78. Deichgraber (= test. 436);

cinzas,  Inscr. Cret. I.XVII.17 (= test. 439); galo,  IG XIV. 966 (= test. 438).Cf. Deubner, op. cit., 44 sg.

77. Cf. Edelstein, op. cit., 11.171 sg. E contra sua opinião, Vlastos, loc. cit., 

282 sg. Em sua admiração pelos  prin cíp io s racionais da medicina grega,

historiadores e filósofos estiveram inclinados a ignorar ou fazer vista gros

sa para o caráter irracional de muitos remédios empregados por seus médicos

(e por médicos atuando até nossos tempos). Sobre a dificuldade de testar 

drogas antes do desenvolvimento da análise química, ver Temkin, The 

 Falling Sickness, 23 sg. Entretanto, devemos concordar com Vlastos quanto

ao fato de a medicina hipocrática e as curas de Asclépios representarem,em princípio, extremos opostos.”

78. Aristóteles,  Insomn. 461b 6.

79. Aristides, orat. 36.124; 47.46-50, 65; 48.18 sg., 27, 74 sg. O obsessivo sen

timento de culpa de Aristides se trai ainda em duas outras passagens (orat. 

48.44 e 51.25) onde ele vê a morte de um amigo como uma preparação

 para a sua própria morte; tais pensamentos são sintom áticos não tanto de

um egoísmo insensível, mas de uma forte neurose. Para o sonho do dedo

sacrilicado (orat. 48.27 = test. 504) ver Artemidoro, 1.42. O sacrifício do

dedo é praticado por primitivos com vários propósitos (Frazer sobre Paus.

8.34.2). Um objetivo é provocar sonhos ou visões significativos: ver Lin

coln, op. cit. 147, 156, em que a prática é explicada como uma diminuição

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134 OS GREGOS E O IRRACIONAL

da importância da figura paterna, cuja aparição é desejada como símbolo

de autocastração.80. Campbell Bonner, “Some Phases of Religious Feeling in Later Paganism”,

 Harvard Theol. Ver. 30 (1937) 126.

81. Cícero,  N.D. 3.91 (= test. 416a). Cf. Cícero, div. 2.123 (= test. 416). Parao mal causado por confiança em sonhos médicos, cf. o pedido de Soranus

de que a enfermeira não seja supersticiosa “para que sonhos, presságios ou

fé nos rituais tradicionais não levem-na a negligenciar o tratamento ade

quado” (1.2.4.4., Corp. Med. Graec. IV.5.28).

82. Um “censo de alucinações” dirigido pela Sociedade Inglesa de Pesquisa

Psíquica ( Proc. S.P R. 10 [1894] 25 sg.) pareceu indicar que mais ou me

nos uma pessoa em dez experimenta, em algum mom ento de sua vida, uma

alucinação que não se deve a doença mental ou física. Uma investigaçãomais recente confirmou isto ( Journ . S.PR. 34 [1948] 187 sg.).

83. Calcídio,  In Tim. 256: spectaculum, ut cum vigilantibus offert se videndam

caelestis potestas clare iubens aliquid aut prohibens forma et voce mirabili.

A questão sobre se tais epifânias realmente ocorreram foi objeto de caloro

sas controvérsias nos tempos helênicos (Dion. Hal.  Ant. Rom. 2.68). Para

uma análise detalhada de uma experiência em que um deus foi percebido

ao mesmo tempo por uma pessoa no sonho e outra em vigília, ver  P. Oxy. 

X I.1381.91 sg.

84. Cf. Wilamowitz, Glaube 1.23; Pfister in P.-W., Supp. IV, s.v. “Epiphanie”,

3.41. Como afirma Pfister, não podemos duvidar de que a massa de histó

rias de epifânias antigas corresponda a algo na experiência religiosa antiga,

mesmo que estejamos raramente, ou nunca, certos quanto a uma história

 particular.

85. K. Latte, “Hesiods Dichterweihe”, Antike u. Aben dland, II (1946) 154 sg.

86. Hesíodo, Teogonia, 22 sg. (cf. cap, III). Hesíodo não afirma ter visto as

musas, mas apenas ter ouvido suas vozes; elas eram presumivelmente

K£Ka?a)|-i|J£vai riepi txoààti (Teog. 9). Alguns MSS e citações, ao lerem§pe\|/aaai no verso 31, fazem com que as musas tirem um ramo de lourei

ro e o dêem, o que faz com que coloquemos a visão na classe das histórias

de apport  (acima, nota 19). Porém deveríamos, provavelmente, preferir a

leitura menos óbvia de §p£\|/cxcn:0ai, “permitem-me que arranque por mim

 próprio” um ramo da árvore sagrada - o ato simbó lico expressa a ace ita

ção da “chamada”.

87. Heródoto, 6.105. Aqui também a experiência pode ter sido puramente au

ditiva, embora <|)avr|vai seja usada em c. 106.88 . Aristodemus, A pud  Schol. Pind,  Píticas. 3.79 (137); cf. Paus. 9.25.3, e cap.

III, nota 90.

89. Sir Ernest Shackleton, South, 209.

90. Hipócrates,  Int. 48 (VII.286 L.): onrcr| n vouaoç jipoo 7tut:T£i |ia?aGTa

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P a d r ã o   d e   s o n h o s   e   p a d r ã o   d e   c u l t u r a 135

ev <xUoôr||iir|, Kai kou epr|nr|v oSov (3a5iÇii kcci o <|)o(3oç av x ov Xapq

eK (|>ao)iaToç Xa(i(3amei 8e Kai ai^Acoç. A influência do meio selvagem

nas idéias religiosas gregas tem sido ressaltada com eloqüência por 

Wilamowitz (Glaube 1.155, 177 sg.), mas esta passagem parece ter passado desapercebida,

91. Heráclito, frag. 89D; cf. frag. 73 e Sext. Empírico, adv. dogm. 1.129 sg.

(= Heráclito , A 16). O fragmento 26 também parece se referir a uma expe

riência onírica, mas está corrompido e obscuro demais para servir de base

 para qualquer afirmação (cf. O Gigon, Untersuchungen zu Heraklit, 95

sg.). Também não posso confiar muito na afirmação de Calcídio sobre a

visão de “Heráclito e dos estóicos” sobre profecia (in Tim. 251 = Heráclito, A 20).

92. Ibid., frag. 2.

93. Cícero, div. 1.5; Aetius, 5.1.1. (= Xenophanes, A 52).

94. Heródoto 7.16(3, evuTtv ta i a eç avOpcüftouç ítemlavriiieva. Cf. Lucré-

cio 5.724. “rerum simulacra vagari” (de Demócrito?). Para sonhos

refletindo pensamento diurnos, cf. Empédocles, frag. 108.

95. Esta observação foi feita por Bjõrck ( Eranos, 44 [1946] 313) que vê na

teoria de Demócrito um exemplo da sistematização das idéias populares

 por intelectuais. Mas trata-se também de uma tentativa de natura lizar o

sonho “sobrenatural” dando-lhe uma explicação mecanicista (Vlastos, op.cit. 284).

96. Fragmento 166. Plutarco,  L. Conv. 8.10.2, 734 F (= Demócrito, A 77).

Ct. Delatte,  Enthousiasm e, 46 sg., e minha monografia no livro Greek  

 Poetry and Life: Essays Presented lo Gilbert Murray, 369 sg.

97. Com o uso popular, termos como 0eOKe|i3XTOÇ foram bastante esvaziados

de seu conteúdo religioso. Artemidoro diz que em seus dias nada de ines

 perado era co loquia lm ente chamado de 0eo7tE(a7tTOV ( 1 .6).

98. Cf. cap. V, infra.99. Aristófanes, Vespas, 52 sg. Demétrio de Falero apud Plutarco,  Aristides

27. Cf. também Xen.  Anab. 7.8.1. onde a leitura xa evujivia ev AuKeitú

yeypa())OTOÇ é provavelmente razoável (Wilamowitz, Hermes, 54 [191]

65 sg.) . oveipo^tavreiç foram referidos pelo antigo poeta cínico

Magnes (frag. 4 K) e parecem ter sido satirizados nas Telméssias, de Aris

tófanes. S. Luria (“Studien zur Geschichte der antiken Traumdeutung”,

 Buli. Acad. des Sciences de I URSS  1927, 1041 sg.) está provavelmente

certo em distinguir duas escolas de interpretação dos sonhos na Idade Clássica, uma conservadora e religiosa e outra pseudocientífica, embora não

 possam os acom panhá-lo em suas conclusões . A fé na arte não esteve con-

t inada às massas ; tan to Ésqui lo quanto Sófocles reconhecem a

interpretação de sonhos como um importante ramo da navnicri (PA. 485sg.; Electra, 497 sg.).

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1 3 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL

100. Presume-se que Antifon o XEpaxoüKortoç seja o autor de um livro de so

nhos citado por Cícero e Artemidoro (cf. Hermógenes, cies icleis, 2.11.7

= Vorsokr. 87 A 2, o K ai XEpax0C5K07i0ç Kai ovsipoK pm iç À,eyo|i£voç

y£VG0ai), e contemporâneo de Sócrates (Dióg. Laérc. 2.46 Aristóteles,

frag. 75 R = Vorsokr. 87 A 5). É freqüentemente identificado por Hermógenes, loc. cit., e pela Suidas com o sofista Antifon, mas não é fá

cil aceitar isto. a) E difícil atribuir um respeito profundo aos sonhos e

 presság ios ao autor de rcepi aA.r|0£iaç, pois ele não acreditava na provi

dência (Vorsokr. 87 B 12; cf. Nestle, Votn Mythos zuni Logos, 389); b)

Artemidoro e Suidas chamam o autor de o ateniense ( Vorsokr. 80 B 78,

A 1), enquanto Sócrates usa rcap rjp.iv na obra de Xenofonte (Mem.

1.6.13) parece, a meu ver, falar do sofista como de um estrangeiro (o que

também proibiria a identificação do sofista com o orador).101. Jaeger,  Paideia, 111.33 sg. Estudiosos anteriores atribuíram artepi 8iaixr |ç

ao final do século V.

102. Que os sonhos podem ser sintomas significativos de doença é algo reco

nhecido cm outro texto do corpus hipocrático (EpidemA .10, 11.670 L.;

 H um A, V.480;  Hebd. 45, IX.460). Em particular, os sonhos de ansiedade

são considerados sintomas importantes de perturbação mental,  Morb. 2

72, VII. 110;  Int. 48, VII. 286. Aristóteles afirma que os médicos mais

 perfeitos acreditavam em levar os sonhos a sério, div. p. somn. 463" 4 .

Mas o autor de 7i£pi 8iaixr|Ç leva este princípio essencialmente correto aalturas fantásticas.

103. rcepi 8iaix r|ç, 4.87 (VI.640 L.): OKOoa |íev o uv tüjv evujivicov 0Eia ectxi

Kat 7ipocrri|iaivEi xiva au^priaoiiEva ... Eiaiv oi K0ivor>ai heoi xtov

xoiouxcüv aKpi(3r| XE^vriv exovxeç, e ibid., 93; 0K0aa 8e Sokeei o

avOpamoç 0E(op£Eiv xcov auvr|0cov, yuxriç Eiu0\)|.iir|v oiipaiva.

104. Ibid., 86 : OKOxav Se xo o m ^ a r|cn )xa Çri> r| ii/uxri Kiv£U|i£vr| Kai

ETO^Epitouaa xa |j£r|v xou am|aaxoç Sioikeei xov £C0t>xr|ç oikov kxL

Cf. cap. V, p. 143 e a observação de Galeno de que no “sono a alma parece mergulhar nas profundezas do corpo, afastando-se dos objetos

sensíveis externos e, assim, torna-se ciente da condição corpórea” (TXEpi

xqç e£, evdtcvicov SiayvroaEcoç, VI. 834 Kiihn). A influência de idéias

“órficas” na obra em questão foi observada por A. Palm, Studien zur   Hippocratischen Schr ift n. Siaixr|ç, 62 sg.

105. Ibid., 90. 92. Para uma detalhada correspondência entre macro e microcosmo, cf.  Hebd.  6 (IX.436 L,).

106. Freud,  A interpretação dos sonhos: “todo sonho se refere à própria pes

soa que sonha”.107. Sobre a árvore como símbolo de reprodução, ver Heródo to 1.108 e Sófo

cles,  Electra , 419 sg. Simbolismo semelhante é encontrado em alguns

velhos sonhos nórdicos (Kelchner, op. cit., 56). Similaridades com livros

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de sonhos indianos levaram a sugerir uma influência oriental sobre o mé

dico grego, ou do livro de sonhos utilizado por ele (Palm, Studien zur  

 Hipp. Schrifn .  8iatTT)Ç, 83 sg., seguido por Jaeger,  Paideia, 111.39). Ou

tros postularam um livro de sonhos grego como fonte comum paraArtemidoro e para a obra de Hipócrates (C. Freidrich,  Hippocratische 

Untersuchungen, 213 sg.). Mas tais inferências são frágeis. A arte da

ovapOKpiTiKii era (e é) uma arte de ver analogias (Arist., div. p. somn.

4641’ 5) e as analogias mais óbvias dificilmente deixam de ser notadas. O

 professor Roses observou similaridades detalhadas entre Artemidoro e uma

moda atual na África central (Man 26 (1926] 211 sg.). Cf. também Latte,

Gnomon, 5.159.

108. Ibid., 87; cf. Palm., op. cit., 75 sg. O supersticioso homem Teofrasto chamao oveipoKpiTcci sem pre que tem um sonho t iv i Beco i] 0 e a

7ipoa£-ux£a0a i 8a (Char. 16).

109. Platão, Timeu. 7IA-E.

110. Aristóteles,  Insomn., 4581’ 25 sg., 460b 3 sg.

111. Aristóteles,  Div. p. somn. 4631’ 15 sa., 464" 20 sg. O. Ljl

112. Ibid., 4631’ 14; cf. Freud,  A interpretação dos sonlios. Não posso concor

dar com B oyancé [Culte des Muses, 192) dizendo que quando Aristóteles

chama os sonhos de Sca|iOVia ele está pensando emtermos da doutrina — * pitagórica (pós-aristo té lica?) na qual os sonhos eram causados por 

8ca | i0V£ç no ar (ver nota 53). E Boyancé está com certeza errado ao cha

mar Aristóteles de crente desqualificado com relação ao sonho mântico.

113. Ttepi i|)iAoao(|)iaç, frag. 10. Cf. Jaeger, Aristóteles, 162 sg., 333 sg. ^

114.  Div. p. somn. 464“5.

115. Ibid., 463a 4 sg., 37 sg.

I ' a d r ã o d e   s o n h o s f. p a d r ã o d e   c u l t u r a   1 3 7

<X rv

 € >

O116. Ibid., 464a 6 sg. Aristóteles sugere ainda que a mente responde melhor a

cada ínfimo estímulo quando vazia e passiva, como em certos tipos de $•insanidade (464a 22 sg.), devendo haver um fator de seleção atuando, já Ç x

que sonhos verídicos normalmente concernem amigos e não estranhos(464a 27 sg.).

117. Cf. Cícero, div., 1.70 sg. Cícero atribui a visão religiosa ao pupilo de Aris

tóteles, Dicaerco (ibid., 1.113, 2,100), mas isto não é facilmente conciliável

com outras opiniões deste e pode ser apenas o resultado de uma má

apreensão dos fatos (F. Wehrli,  Dikaiarchos , 46).

118. Cícero, div., 2.150. O racionalismo civilizado do de divinatione, Livro 2,na última de suas passagens, não tem sido suficientemente apreciado.

119. Cf. a formidável lista de autoridades sobre ovapoKpiTiKri agora perdida

(Bouché-Leclercq, Histoire de Ia Divination, 1.277). Livros de sonhos são

ainda muito estudados na Grécia (Lawson, op. cit., 300 sg.). A enumera

ção de dívidas pessoais para com a providência, de Marco Aurélio, inclui

questões de sonhos po 8t ovEipaxcov PoiiOinaotra SoOrivat aXXa te  kcu

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OS GREGOS E O IRRACIONAL

coç |ir| ítTusiv aijja Kai jj.ti lÀiyyiav (1.17.9), Cf. também Fronto,  Epist.  

3.9.1 sg. Sobre a confiança de Plutarco com relação aos sonhos, ver  Q. 

Conv. 2.3.1, 635E. Para a confiança de Galeno, ver seu comentário na

obra de Hipócrates Jiepi %ti(iü)v 2.2 (XVI.219 sg. K.). Dio Cassius é ins

truído por seu §ai|jovov em sonho a escrever história, 72.23.

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 V 

O S XAMÃS GREGOS E  /I ORIGEM DO PURITANISMO

Um tal homem seria um crivo para almas imortais!

Herman Melvillc

capítulo precedente vimos que, ao lado da velha crença1 \ em mensageiros divinos que se comunicam com os ho

mens através de sonhos e visões, surge também, em alguns escritoresdo período clássico, uma nova crença, relacionada a experiências deum poder humano, oculto e inato. “Cada corpo humano”, afirma Píndaro, “segue o chamado da dominadora morte; mas ainda permaneceacesa uma imagem de vida (atwvoç eiScúA.0), e é apenas isto quenos vem dos deuses. Esta imagem adormece quando nossos mem bros estão ativos, mas quando é o homem quc dorme, ela lhe indicaem sonho quc algo alegre ou adverso está a caminho”.1Xenofonteapresenta esta mesma doutrina em prosa simples, e nos fornece osliames lógicos que a poesia tem o direito de omitir: “É durante osono que a alma ( psyche) exibe melhor sua natureza divina. É durante o sono que ela atinge uma certa intuição do futuro, e isto porqueé no sonho que ela se encontra aparentemente mais livre.” Então

 prossegue argumentando que na morte podemos esperar uma psyche ainda mais livre, pois o sono é o que há de mais próximo da morte

durante a vida.2 Afirmações deste tipo aparecem em Platão, e tam bém em um fragmento de uma das primeiras obras de Aristóteles.3Opiniões do gênero têm sido apontadas como indícios de um

novo padrão de cultura, como expressões de um novo modo de ver a natureza e o destino da humanidade, bastante distinto da visão quetinham os escritores gregos dos primórdios. Um debate sobre a ori-

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gem e a história deste novo padrão e de sua influência sobre a cultura antiga poderia facilmente ser objeto de um ciclo inteiro de

 palestras, ou encher um único livro. Mas o que posso fazer aqui é

tão-somente considerar, dc maneira breve, alguns aspectos da questão - aqueles que afetaram de forma marcante a interpretação gregasobre fatores não racionais da experiência humana. Mas mesmo issoexigirá atravessar um terreno que, pisoteado por muitos estudiosos,se tornou bastante pantanoso e escorregadio. Trata-se ainda de umterreno que os mais apressados estão sujeitos a atravessar esbarrando nos destroços dc teorias ultrapassadas. Mas seremos bastante

ajuizados aqui, deslocando-nos lentamente, dando passos cuidadosos em meio a toda esta confusão.Comecemos pela pergunta sobre o que aconteceu exatamente

de novo no já novo padrão de crenças gregas. Certamente não foi aidcia de sobrevivência. Na Grécia, como na maior parte das culturas,4 tal idéia é, na verdade, bem antiga. Se podemos julgar peloaspecto de seus túmulos, está claro que os habitantes da região doEgcu sentiram, desde os tempos neolíticos, que nossa necessidade

dc comida, bebida c vestuário, bem como nosso desejo por serviçose diversão, não acabava com a morte.5Digo “sentiram e não acreditaram”, pois tais atos dc alimentação dos mortos parecem mesmouma resposta direta a pulsõcs que não eram necessariamente mediadas por nenhuma teoria. Assumo que o homem alimenta seus mortos pela mesma razão que uma criança alimenta sua boneca. Ele se abs-tém dc matar sua fantasia por meio da aplicação dc um certo critériodc realidade. Quando o grego arcaico derramava líquidos por umtubo nas mandíbulas lívidas dc cadáveres decrépitos, o que podemos dizer c que ele se abstinha, por boas razões, dc saber exatamenteo porquê de tal ação. Dito dc maneira mais abstrata: ele ignorava adistinção entre cadáver c espírito, vendo-os como consubstanciais.6

Ter formulado tal distinção com precisão e clareza, ter desfeito o emaranhado entre cadáver e espírito —eis a realização dos poetashoméricos. Em ambos os poemas há passagens que sugerem que eles

tinham orgulho do resultado atingido, e que estavam completamente conscientes de sua novidade e importância.7 Na verdade elestinham direito de ser orgulhosos, pois afinal não há nenhum domínio cm que o pensamento encontre resistência inconsciente mais fortedo que quando procuramos pensar na morte. Não devemos, contu

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do, achar que uma vez estabelecida a distinção, ela foi universalmente aceita. Como nos mostram indícios arqueológicos, os cuidadoscom os mortos - implicando uma identidade entre cadáver e espíri

to - prosseguiram calmamente, pelo menos na Grécia continental.Eles persistiram através (e alguns diriam apesar) da moda passageira da cremação dos corpos.s Na Atica isso tornou-se tão extravagante,que uma legislação para controlar o hábito foi introduzida primeiro por Sólon, e depois por Demétrio de Falero.9

 Não se tratou, portanto, de “estabelecer” uma idéia de sobrevivência, pois ela estava implícita no antigo costume por aquilo que

 jazia na tumba como cadáver e espírito; e explícito, em Homero, por uma sombra no Hades que é unicamente espírito. Em segundo lugar, nem mesmo a idéia dc recompensas e punições após a morteera algo novo. No meu modo de ver, a punição  postmortem por certos crimes contra os deuses, recebe alusão na  Ilíada,1,1 e é descritade modo evidente na Odisséia - enquanto Elêusis prometia aos seusiniciados, desde o início, um tratamento especial após a vida (tantoquanto podemos retraçar seus ensinamentos, isto é, no século VII

a.C.11). Suponho quc ninguém atualmente acredite que os “grandes pecadores” da Odisséia sejam uma “interpolação órfica” ,12 ou queas promessas de Elêusis sejam o resultado dc uma “reforma órfica”.Em Ésquilo mais uma vez, a punição  postmortem para certos criminosos está tão intimamente l igada às leis tradicionais“não-escritas” e às funções tradicionais da Erínia e do Alastor, quehesito bastante em esmiuçar sua estrutura e nomear um dc seus ele

mentos como sendo “órfico” .13 São casos especiais, mas a idéia jáestá ali presente. Tudo se passa como se o novo movimento apenasa generalizasse, e dentro de uma nova formulação, podemos por vezes vislumbrar ecos dc coisas muito mais velhas. Por exemplo,quando Píndaro consola um homem de luto com uma descrição dcvida feliz após a morte, ele o assegura de que haverá cavalos ou tá buas para desenho no paraíso.14Não se trata dc uma promessa nova:havia cavalos na pira funeral de Pátroclo e tábuas para desenho nas

tumbas dos reis micênicos. A mobília do paraíso mudou pouco aolongo dos séculos - ela continua uma réplica idealizada do únicomundo quc conhecemos.

Enfim, a contribuição do novo movimento nem sequer consistiu em uma equalização da  psyche (ou alma) com a personalidade.

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Isto acabaria sendo feito, aparentemente pela primeira vez, na Jô-nia. Na verdade Homero não atribui nenhuma função à  psyche, exceto a função de abandonar o homem em vida - seu “esse” pare

ce ser um “super-esse” [“ser” e “acima do ser” ] e nada além disso.Mas Anacreonte pode, por sua vez, dizer a seu amado: “Você é omestre de minha  p s y c h e Semonides pode falar em “agradar a sua

 psyche”', um epitáfio do século VI a.C. na Erétria pode reclamar queo chamado de um marujo “proporciona pouca satisfação à psyche”.'5Aqui a psyche é vista como um eu vivo, e mais especificamente comoo eu apetitivo - ela assumiu as funções do thumos homérico mas

não as do nous homérico. Entre a psyche compreendida neste sentido e o  soma (corpo) não há qualquer antagonismo fundamental; a psyche é apenas o correlato mental do  soma. No grego ático, ambosos termos podem significar “vida”: os atenienses diziam de maneiraindiferente aXcovt^eaBai rcepi xco aco(xaxoç. E segundo a conveniência do contexto, cada um dos termos pode também significar “pessoa” '6- assim Sófocles pode fazer Édipo se referir a si mesmo,em certa passagem, como “minha  psyche”, e em outra, como “meu

 soma”. Em ambos os lugares ele poderia ter dito “eu”.17 Até mesmoa distinção homérica entre cadáver c fantasma tende a se anular -não apenas há uma inscrição ática dos primórdios, que fala de uma

 psyche à morte, corno Píndaro, dc modo ainda mais surpreendente,fala de Hades, que com seu cetro conduz à “cidade cavernosa” os

 somata dos que vão morrer. Aqui, cadáver e fantasma foram revertidos à sua antiga consubstancialidade.18 Creio ainda que devemos

admitir que o vocabulário psicológico do homem comum se encontrava no século V a.C. em situação dc grande confusão, como decostume.

Mas dessa confusão vocabular emerge um fato importante paranossa investigação. Trata-se de algo já demonstrado por Burnet emsua famosa conferência sobre "A doutrina socrática da alma”,19e que

 por isso não necessita que nos detenhamos por muito tempo. Em escritores áticos do século V a.C., assim como em seus predecessores

 jônios, o “eu” designado pela palavra  psyche é normalmente maisemocional do que racional. Fala-se dela como da sede da coragem,da paixão, da piedade, da ansiedade, do apetite animal. Mas antesde Platão, raramente, ou quase nunca, ela é citada como sede da razão - sua extensão sendo tão ampla quanto a do thumos homérico.

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Quando Sófocles fala de testar i|n)%r|V xe Kai (ppovr||ia KaiYvcofiev,20 ele está classificando os elementos de caráter segundo umaescala que vai do emocional ( psyche) ao intelectual (gnome) atra

vés de um meio termo,  phronema, que envolve os dois extremos. Aquestão levantada por Burnet de que a psyche “permanece algo misterioso e estranho, bem à parte de nossa consciência normal” é, comogeneralização, bem mais aberta à discussão. Podemos notar, entretanto, que a  psyche aparece ali como o órgão da consciência,

sendo-lhe ainda creditada uma espécie de intuição não-racional.21Uma criança pode absorver algo em sua  psyche sem conhecê-lo in

telectualmente.2" Heleno possui uma “ psyche divina” não por ser mais esperto ou mais virtuoso do que outros homens, mas por ser um vidente.23 A  psyche é imaginada como habitando algum lugar 

nas profundezas do organismo,24 e saindo dessas profundezas ela pode í alar com o possuidor com voz própria.25Com respeito à maio

ria desses casos ela surge ainda uma vez como uma sucessora dothumos homérico.

Seja ou não verdade o lato do termo  psyche causar um senti

mento tênue de estranheza para o cidadão ateniense do século V a.C.,uma coisa é certa: a palavra não possuía nenhum sabor de puritanismo, e nem sequer gozava dc qualquer  status metafísico.26 A

alma não era nenhuma prisioneira relutante do corpo, mas sim avida ou o espírito do corpo,27 sentindo-se perfeitamente à vontadeali. Foi nesse momento que o novo padrão religioso fez sua fatídicacontribuição —ao creditar ao homem um “eu” oculto, de origem di

vina, e por conseguinte colocar em desacordo corpo e alma, este padrão introduziu em meio à cultura européia uma nova interpretaçãoda existência humana. Trata-se da interpretação que chamamos de

 puritana. De onde veio tal noção? Desde que Rohde a chamou “umagola de sangue estranho nas veias dos gregos”,28estudiosos têm realizado suas pesquisas em busca desta gota. A maior parte deles têmolhado na direção leste, para a Ásia menor ou mais longe ainda.2SEu pessoalmente estaria inclinado a procurar em outros recantos.

As passagens de Píndaro e de Xenofonte, pelas quais iniciamos nossa argumentação, sugerem que uma fonte da antítese puritana

 pode ser a observação de que a atividade “psíquica” e corporal variam de forma inversa: a  psyche é mais ativa quando o corpo estáadormecido ou, como acrescenta Aristóteles, quando ele se encon

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tra prestes a morrer. Eis o que quero dizer ao chamá-la de “eu oculto”. Uma crença deste tipo constitui um elemento essencial da culturaxamânica que ainda existe na Sibéria por exemplo, e que deixou tra

ços de existência passada sobre uma vasta área, estendendo-se doimenso arco da Escandinávia e atravessando a Eurásia, até a Indonésia.30 A extensão de sua difusão é prova de antigüidade.

Um xamã pode ser descrito como uma pessoa psiquicamenteinstável quc recebeu um chamado para a vida religiosa. Como resultado disso ele sc submete a um período dc rigoroso treinamento,quc normalmente envolve solidão e jejum, podendo também envolver uma mudança psicológica do sexo. A partir deste “recuo

religioso, ele ressurge com o poder, real ou assumido,3' de passar de acordo com a sua vontade a um estado de dissociação mental.Sob tais condições ele não é mais visto, como a Pítia ou o médiummoderno, como alguém possuído por um espírito. E sua própria almaque é encarada como tendo deixado o corpo e viajado para locaisdistantes, mais freqüentemente para o mundo do espírito. Dc lato,um xamã pode ser visto em diferentes lugares simultaneamente. Eletem o poder da ubiqüidade. A partir destas experiências, narradas por ele através de canções extemporâneas, ele vai extraindo a habilidade para a adivinhação, para a poesia religiosa e para a medicinamágica que acaba por torná-lo socialmente importante. Ele se tornao repositório da sabedoria sobrenatural.

 Na Cítia, c provavelm ente na Trácia também, os gregos haviam entrado cm contato com povos que, como mostrou o estudiososuíço Meuli, estiveram sob influência da cultura xamânica. Quanto

a esta questão, bastará uma referência ao seu artigo publicado na Hermes cm 1935. Meuli sugere que os frutos deste contato devemser vistos através do surgimento, no final da era arcaica, de uma série dc iaTpo|icxvT£iç [médicos mágicos], videntes, curandeiros, e professores religiosos; alguns deles ligados dentro da tradição grega ao norte, e todos exibindo traços xamanísticos.32 Do norte veioAbáris, cavalgando, segundo se diz, sobre uma flecha33 —como ainda ocorre com algumas almas, na Sibéria34 por exemplo. Abáris havia

feito tanto progresso na arte de jejuar que passava muito tempo com pletam ente sem com ida.35 Foi capaz dc banir pestes, prever terremotos, compor poemas religiosos, e ensinou a louvar o deus donorte, que os gregos chamavam de “Apoio Hiperbóreo”.3í Um grego do mar de Marmora, de nome Aristeas. rumou para o norte, a

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convite do mesmo deus Apoio, retornando para contar suas estranhasexperiências num poema que teve possivelmente como modelo asexcursões psíquicas dos xamãs da região. Se a viagem de Aristeas

foi realizada de corpo ou de espírito não está claro, mas de um modoou de outro, como mostrou Alfõldi, criações de sua autoria, como oente de um só olho (Arimáspios) e os grifos vigias do tesouro setornariam peças genuínas do folclore da Ásia central.37 Uma tradição posterior credita-lhe poderes xamanísticos de transe e deubiqüidade. Sua alma, cuja forma era como a de um pássaro,38 tinhaa capacidade dc deixar o corpo por um ato de vontade. Enfim, ele

acabaria morrendo e caindo em transe em sua própria terra, emboratenha sido visto em Cisico. Muitos anos depois ele surgiria novamente no Metaponto, no extremo ocidente. O mesmo dom apareceem outro grego asiático, Hermótimo de Clazomenes, cuja alma via

 java muito e para muito longe, observando acontecim entos emlugares distantes, enquanto seu corpo permanecia inanimado. Taiscontos a propósito da aparição e desaparição dos xamãs eram bastante familiares em Atenas, a ponto de Sófocles referir-se a eles na

 Electra sem precisar sequer citar nomes.39A respeito destes homens não restaram senão lendas, mas a for

ma que estas lendas assumem pode ser de bastante significado. Aforma aparece repetida em alguns dos contos sobre Epimênides, vidente dc Creta que purificou Atenas da perigosa mácula causada pelaviolação do santuário. Mas desde a datação efetuada por Diels40 eas cinco páginas de fragmentos fornecidas por este mesmo pesquisador, Epimênides ganhou o aspecto dc uma pessoa de carne e osso-- ainda que todos os seus fragmentos tenham sido compostos, segundo Diels, por outras pessoas - incluindo aquele citado na epístolaa Tito. Epimênides veio de Cnossos, c em razão disto pode ter conquistado um grande prestígio. Um homem que havia crescido àsombra do palácio do rei Minos pode muito bem atingir uma sabedoria mais antiga, sobretudo depois de ter permanecido dormindo por cinqüenta e sete anos na caverna do deus misterioso de Creta.41

Entretanto, a tradição o assimilou ao típico xamã do norte. Aiinal,ele também era um especialista cm excursões psíquicas; e como Abá-ris foi um grande jejuador, vivendo principalmente de um preparadode vegetais cujo segredo havia aprendido das ninfas, e que soubeguardar por razões próprias dentro do casco de um boi.42 Um a outra

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característica singular desta lenda é que, após a morte, seu corpo foicoberto de tatuagens.43 Trata-se de algo singular pois os gregos usavam a agulha de tatuar apenas para marcar escravos. Isto pode ter 

sido o sinal de uma dedicação ao  servus dei, mas de qualquer modo, para um grego arcaico, poderia também indicar a Trácia onde todaa nata da população era tatuada, particularmente os xamãs.44 Quanto ao período de “longo sono”, trata-se evidentemente de um contofolclórico45 que foi amplam ente difundido - pois Rip Van Winkle,

 por exemplo, não era nenhum xarnã. Mas o lugar deste episódio do

início da saga de Epimênides sugere que os gregos haviam ouvidofalar do grande “recuo” que constituía a iniciação do xamã, algo que

às vezes era vivido em condições de sono ou transe.46Disso tudo parece razoável concluir que a abertura do Mar Ne

gro para o comércio e a colonização gregas durante o século VII a.C.- responsável pelo primeiro contato47 do povo grego com o xama-nismo - acabou por enrique cer com novos traços a imagemtradicional grega do “homem de deus” (0sioç avr|p). Creio que estes novos elementos eram dignos de aceitação para a mentalidade

grega por responderem as necessidades da época, assim como a religião dionisíaca havia feito anteriormente. A experiência de tipoxamanístico é individual e não coletiva e precisou do individualismo crescente de uma era para a qual os êxtases coletivos de Dioniso

 já não bastavam completamente. E razoável supor que estes novostraços exerceram alguma influência na também nova e revolucionária concepção sobre a relação entre corpo e alma que surgirá ao finaldo período arcaico.4* Lembremos que o diálogo intitulado Sobre o 

 sono, de autoria de Clearco, e capaz de convencer Aristóteles de que“a alma é separável do corpo”, foi precisamente o resultado de umaexperiência de excursão psíquica.49 Tratava-se, no entanto, de umaobra de ficção, e relativamente tardia neste gênero de considerações.Temos motivos para duvidar de que qualquer dos “homens de deus”mencionados acima fosse capaz de chegar a tais conclusões teóricas e gerais a partir de experiências pessoais. Aristóteles via razões

 para crer que Hermótimo havia antecipado a doutrina do nous deseu famoso conterrâneo Anaxágoras. Isto porém pode apenas significar, como sugeriu Diels, que Anaxágoras se baseou nasexperiências de um velho xamã local para erigir sua teoria a respeito da separabilidade do nous.5a Conta-se ainda, a propósito de

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Epimênides, que ele afirmava ser a reencarnação de Eacus, tendovivido muitas vezes aqui, sobre a terra51- o que explicaria a declaração de Aristóteles de que as adivinhações deste diziam respeito a

um passado desconhecido e não ao futuro.52 Diels acreditava que estatradição deve provir de uma fonte órfica. Ele a atribui a um poemaórfico falsificado, como sendo de autoria de Epimênides, mas escrito por Onomácrito ou por um de seus amigos.53 Por uma razão queapresentarei agora, não estou tão convencido disto quanto Diels, masqualquer que seja o ponto de vista adotado, não seria aconselhávelconstruir uma teoria sobre isso.

Há entretanto um outro xamã mais conhecido que sem dúvidasoube retirar conseqüências teóricas de suas experiências pessoais,acreditando inclusive na possibilidade de voltar à vida. Refiro-me aPitágoras. Não é necessário supor que ele tenha reivindicado a sériede reencarnações a ele atribuída por Heráclides Ponticus.54 Mas nãohá por que questionar as afirmações dos especialistas de que Pitágoras é o mesmo homem a quem Empédocles atribuiu a sabedoriade dez ou vinte vidas humanas, e de quem Xenófanes zombava por 

acreditar que a alma humana pode habitar o corpo de um cão.55 ComoPitágoras chegou a formar estas opiniões? A resposta mais comumé: “ele a extraiu dos ensinamentos órficos”. Ora, se esta resposta for verdadeira, ela apenas nos faz retornar um passo atrás. Mas é possível também que, quanto a este ponto capital, ele não estivesse diretamente ligado a nenhuma fonte “órfica”, e que tanto ele quantoEpimênides antes dele, tivessem ouvido falar da crença setentrionalde que a “alma” ou o “espírito” de um xamã morto podem penetrar 

um xamã vivo para reforçar seu poder e conhecim ento.56 Nada disso envolve qualquer doutrina  geral  a respeito da transmigração dasalmas, e vale a pena observar que não creditamos normalmente nenhuma doutrina geral deste tipo a Epimênides. Ele reivindicava ter vivido uma outra vida antes, identificando-se a Eacus, um antigoHomem de Deus.57 De modo similar, Pitágoras é representado comoreivindicando para si uma identidade com o antigo xamã citado, Her-mótim o.58 Mas ao que tudo indica, Pitágoras estendeu a doutrinamuito além dos limites estreitos estabelecidos. Talvez tenha sido umacontribuição puramente pessoal, já que seu enorme prestígio nos obriga a vê-lo com certo poder criativo para tanto.

Sabemos de todo modo que Pitágoras fundou uma espécie deordem religiosa, uma comunidade formada por homens e mulheres,59

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cuja regra àp vida era determinada pela expectativa das vidas posteriores. Houve, provavelmente, precedentes mesmo para este caso. podem os, por exemplo, lembrar do trácio Zalmoxis na obra de He-

ródoto, que reunia "os melhores cidadãos” para anunciar que a almahumana não era imortal, mas que ele e seus descendentes iriam viver para sempre - aparentemente eles seriam pessoas escolhidas, umaespécie de elite espiritual.60 Que existia alguma analogia entre Zalmoxis e Pitágoras, é algo que deve ter ocorrido aos colonizadoresgregos da Trácia, de quem Heródoto ouviu a estória, tanto assim quefizeram de Zalmoxis um escravo de Pitágoras. Isto é um absurdo,

como percebeu Heródoto, pois o verdadeiro Zalmoxis era umdaemon , talvez um xamã do passado transformado em heiói. Masa analogia não era assim de todo absurda: atinai de contas, Pitágoras não havia prometido aos seus seguidores que eles viveriamnovamente, tornando-se finalmente daemons ou mesmo deuses?6- Atradição posterior aproximou Pitágoras do outro homem setentrional mencionado, Abáris, atribuindo-lhe os poderes xamanísticoshabituais, como o dom da profecia, da ubiqüidade e da cura mági

ca, além dc narrar seu processo dc iniciação em Piéria, sua visita aomundo do espírito c sua identidade misteriosa com o “Apoio Hiper- bóreo” .63 Parte disso pode ter ocorrido tardiamente, mas o início dalenda pitagórica data de muito antes, do século V a.C. pelo menos.64Estou disposto, aliás, a acreditar que o próprio Pitágoras fez estor-

ços para manter a lenda.Estou ainda mais disposto a acreditar nessa hipótese pelo tato

dc que podemos ver tudo isso acontecendo em Empédocles. A lenda se compõe ali de bordados reivindicando a autoria dos poemas.Pouco mais de um século após sua morte, circulavam estórias sobrecomo ele havia escorado os ventos por meio de mágica, sobre comoele havia dado vida a uma mulher que já não conseguia respirar, esobre como ele desapareceu do mundo mortal tornando-se um deus.65Por sorte conhecemos a última fonte destas estórias: temos as palavras do próprio Empédocles afirmando que ele pode ensinar seus

 pupilos a deter os ventos e fazer reviver os mortos, e ainda que eleé um deus encarnado (pelo menos é o que se crê que ele seja) - ey®8’univ 0£oç apppoTOÇ. ornem e v ^ o ç .66 Empédocles é assim, emcerto sentido, criador de sua própria lenda; e se podemos confiar nadescrição que ele faz das massas em busca de conhecimento do oeul-

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to e de cura mágica, os começos desta devem datar da época em queainda era vivo.67 Diante disso, parece-me precipitado sustentar queas lendas de Pitágoras e de Epimênides não estão enraizadas na tra

dição genuína, tendo sido inventadas de ponta a ponta por romancistas de épocas posteriores.

Seja como for, os fragmentos de Empédocles são uma das fontes diretas dc que ainda dispomos para termos uma noção de comorealmente era o xamã grego. Trata-se de um exemplo tardio e derradeiro dc uma espécie que se extinguiria do mundo grego com a suamorte, embora ainda continue a florescer em outros lugares. Os es

tudiosos têm se admirado de que um homem capaz de agudo sensode observação e dc pensamento elaborado, como o Empédocles do poema Sobre a natureza, tenha escrito também um texto como  Pu-rificações, representando a si mesmo como um mago divino. Algunsestudiosos tentaram explicá-lo dizendo que os dois poemas pertencem a diferentes períodos da vida dc Empédocles: ou ele começoucomo um mago, perdeu seu ímpeto e tomou o caminho da ciêncianatural; ou como sustentam outros, começou como cientista e se con

verteu posteriormente ao “Orfismo” ou ao “Pitagorismo”, e no seusolitário exílio dos anos de decadência, confortou-se com ilusões degrandeza - cie seria finalmente um deus e retornaria um dia, não aAcragas, mas ao paraíso.68 O problema com estas explicações é queelas, na realidade, não funcionam. O fragmento no qual Empédocles reivindica o poder dc deter os ventos, provocar ou impedir achuva c ressuscitar os mortos parece pertencer não às  Purificações 

mas ao poema Sobre a natureza. Assim também o fragmento 23, noqual o poeta convida seu pupilo a escutar “a palavra dc um deus”(acho difícil acreditar que a passagem se refira apenas à convencio

nal inspiração da musa).69 Assim ainda, o fragmento 15 que parececontrastar “o que as pessoas chamam vida” com uma existência maisverdadeira, de antes do nascimento c de depois da morte.70 Tudo issodesencoraja qualquer tentativa de explicar as inconsistências de Em- pédoclcs em termos “genéticos” . Também não é fácil aceitar a

descrição recente de Jaeger segundo a qual Empédocles seria “umnovo tipo sintetizador de personalidade filosófica”,71 pois o que lhefalta precisamente é a tentativa de sintetizar suas opiniões científicas e religiosas. Se estou certo, Empédocles representa não um novo,mas um tipo de personalidade mais velho - o xamã que combina as

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funções ainda indistintas do mago e do naturalista, do poeta e dofilósofo, pregador, curador e conselheiro.72 Depois dele estas funções

sofreram uma desintegração; dali em diante os filósofos não mais

seriam nem poetas nem magos. Na verdade, um homem como Empé-docles já era um anacronismo mesmo no século V a.C. Mas homens,com o Epimênides e Pitágoras,73 também podem ter exercido as funções que acabei de nomear. Enfim, não se tratava de uma questãode “sintetizar” os domínios de conhecimento prático e teórico, poisna qualidade de homens de deus, eles agiam com confiança em todos os domínios - a “síntese” era, portanto, pessoal e não lógica.

O que sugeri até aqui é a existência de uma linha de descendência espiritual que vai da Cítia até a Grécia asiática, atravessandoo Helesponto. Tal linha se encontra articulada com alguns resíduosde tradição minóica sobrevivendo em Creta. Ela emigra com Pitágoras c tem seu último representante no siciliano Empédocles. Esteshomens difundiram a crença de uma alma ou “eu” passível de ser separada do corpo ainda cm vida, através de técnicas adequadas. Este“eu” seria mais velho do que o corpo e sobreviveria a ele. Mas a

esta altura uma questão inevitável se coloca: como um lal desenvolvimento se encontra relacionado à pessoa mitológica de Orfeu e àteologia conhecida como órfica? Devo tentar aqui uma resposta curta.

Com respeito ao próprio Orfeu posso dar um palpite, arriscando-me a ser chamado de panxamanista. Seu lar fica na Trácia, onde

ele é o adorador e companheiro dc um deus que os gregos identificavam a Apoio .74 Ele com bina as profissões dc poeta, mago, professor dc religião e visionário. Como certos xamãs lendários daSibéria,75 ele consegue reunir pássaros e outros animais para escutarem sua música. Como xamãs de toda e qualquer parte, elefreqüenta o submundo por um motivo muito comum entre xamãs76- recuperar uma alma capturada. Enfim, seu “eu” mágico vive àscustas do canto de uma cabcça solta, que continuará a fazer previsões muito depois de sua morte.77 Isto remete à Europa setentrionalmais uma vez, pois tais cabeças mânticas aparecem na mitologia nór-

dica e na tradição irlandesa.78 Concluo, então, que Orfeu é uma figuratrácia de tipo muito similar a Zalmoxis —um xamã mítico, ou um

 protótipo dos xamãs.Orfeu entretanto é uma coisa, o Orfismo é outra bem diferen

te. Mas devo logo confessar que sei, na verdade, muito pouco sobre

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O S XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 151

o Orfismo dos primórdios. Quanto mais leio a respeito, mais meuconhecimento diminui. Há vinte anos atrás eu poderia dizer bastante sobre o assunto (todos aliás poderíamos). Desde então perdi um

tanto de meu conhecimento, e devo esta perda a Wilamowitz, Festugière, Thomas e não menos ao distinto membro da University of  Califórnia, professor Linforth.79 Deixem-me ilustrar minha ignorân

cia atual por meio de uma lista do que eu outrora soube.Houve um tempo em que eu sabia:

. Que havia uma seita ou comunidade órfica na Idade Clássica.80

. Que Empédocles81 e Eurípides82 leram a “teogonia” órfica e que

esta acabou parodiada por Aristófanes nos  Pássaros.*3. Que o poema do qual encontramos fragmentos em placas de ouro

de localidades como Thurii se refere a um apocalipse órfico.84. Que Platão pegou os detalhes dos mitos que cita deste mesmo apo

calipse órfico.85. Que o Hipólito de Eurípides é uma figura órfica.86. Que acopa-ar|(ia (“o corpo é igual a uma tumba”) é uma doutri

na órfica.87

Quando digo que não mais possuo este itens de informação não pretendo afirmar que tudo o que mencionei acima seja falso. Os doisúltimos itens são certamente falsos - realmente não devemos transformar um caçador manchado de sangue em figura órfica, e nemtampouco chamar de “órfica” uma doutrina que o próprio Platão negaque tenha esta origem. Mas algumas outras podem muito bem ser verdadeiras. O que quero dizer é que já não posso, atualmente, estar plenamente convencido da veracidade'das afirmações acima; eque enquanto eu não puder, o edifício erguido por algum engenhoso estudioso do assunto sobre tais fundações permanecerá para mimuma casa dos sonhos. Estou tentado inclusive a chamá-lo dc projeção inconsciente de certos desejos religiosos insatisfeitos, típicos dofinal do século passado e do início deste século, sobre a an tigüidade.88

Assim, se eu decidir dispensar estas pedras do caminho paraseguir cuidadosamente as regras de arquitetura enunciadas por Fes

tugière e Linforth,89 quanto da estrutura restará ainda? Temo que nãoreste muita coisa, a não ser que eu esteja preparado para remendar o edifício com material derivado das fantásticas teogonias lidas por Proclus e Damascius, a um tempo em que Pitágoras já estava mortohá quase um milênio. Isto eu não ousarei fazer, exceto nos casos ra

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Os XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANiSMO 1 5 3

Vimos - pelo menos espero que tenhamos visto - como o contato com crenças e práticas xamanísticas podiam sugerir a um povosensato como o grego, alguns rudimentos de psicologia puritana;

como a noção de excursão psíquica durante o sono, ou transe, podia aguçar ainda mais a antítese corpo-alma; como o “recuo” xama-nístico podia fornecer um modelo para uma deliberada askesis - otreinamento consciente dos poderes psíquicos através de abstinên-cias e exercícios espirituais; como contos sobre a aparição e desa- parição dos xamãs podiam encorajar a crença no “eu” indestrutível,mágico ou demoníaco; e enfim, como a migração do poder mágicodo espírito de xamãs mortos para xamãs vivos podia ser generaliza

da como uma doutrina sobre a reencarnação.97 Mas devo enfatizar que estas são apenas possibilidades, lógicas ou psicológicas. Se elasforam atualizadas por certos gregos, deve ser porque, segundoRohde, elas “correspondiam às necessidades espirituais gregas”.98 Scconsiderarmos a situação ao final da era arcaica, conforme descreviem meu segundo capítulo, creio que veremos que elas realmente corresponderam a certas necessidades lógicas, morais e psicológicas.

O professor Nilsson crê que a doutrina sobre a possibilidadede renascer é um produto de “lógica pura”, e que os gregos a inventaram por serem “lógicos por natureza”.99 Podemos concordar comele que, uma vez aceita a idéia dc que o homem possui uma “alma”distinta do corpo, cra natural perguntar de onde ela provinha. E eratambém natural responder que ela provinha do grande reservatóriode almas do Hades. Há indicações dc uma semelhante linha dc argumentação em Heráclito, assim como também no Fédon.10(1Duvido

entretanto, que crenças religiosas sejam freqüentemente adotadas,mesmo por filósofos, com base cm lógica pura - a lógica é, no melhor dos casos, sua ancillafidei [escrava fiel], No caso desta crençaem particular, houve receptividade por parte de muitos povos quenão eram, dc modo algum, lógicos natos.101 Estou por isso inclinado a atribuir mais importância a considerações de outro tipo.

Em termos morais, a reencarnação ofereceu uma solução maissatisfatória ao problema da justiça divina, surgido no final do perío

do arcaico, do que a idéia de culpa herdada ou de punição post-mortem em outro mundo. Com a crescente emancipação do indivíduo face à velha solidariedade familiar, e direitos jurídicos cadavez maiores, a noção de pagamento dos pecados em lugar de outrem começou a se tornar inaceitável. Uma vez que a lei humana

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havia reconhecido o homem como responsável por seus própriosatos, era hora da lei divina agir em conformidade com isso. No queconcerne à idéia de punição  postmortem , ela vinha explicar porque

os deuses pareciam tolerar o sucesso terreno dos perversos. Os novos ensinamentos de fato exploravam-na plenamente, utilizando orecurso da “viagem ao submundo” a fim de tornarem os horrores

do inferno mais vividos e reais para nossa imaginação.IH“ Mas a punição post-mortem não explicava porque os deuses toleravam tantosofrimento humano, especialmente o sofrimento imerecido do inocente."’3 A reencarnação, porém, explicava. Segundo ela, nenhuma

alma humana era inocente - todas pagavam, em graus variados, por crimes atrozes cometidos em vidas passadas. Toda a massa esquali-da de sofrimento ocorrida neste mundo ou em outro não seria, enlim,senão um capítulo da longa educação das almas - educação que culminaria na redenção do ciclo de nascimento e no retorno a suaorigem divina. Somente deste modo, e dentro desta escala cósmica, poderia cada alma obter justiça, no sentido arcaico profundo do ter

mo - dentro da lei segundo a qual o “autor dos atos solreiá .

Platão vê esta interpretação moral do renascer como um mitoou doutrina” ensinada por “antigos sacerdotes” .104 Esta e certamente uma velha interpretação, mas não creio que seja a mais antiga.Para o xamã siberiano, a experiência de vidas passadas não é umafonte de culpa, mas uma intensificação do poder. Este também e, ameu ver, o ponto de vista grego original. Foi um aumento do poder que Empédocles percebeu em Pitágoras, e que Epimênides teria rei

vindicado antes. Somente quando o renascimento foi admitido paratodas as almas que ele se tornou um peso em vez de um privilégio,sendo utilizado para explicar as desigualdades da vida terrena e mostrar que, nas palavras de um poeta pitagórico, os sofrimentos

humanos são auto-inflingidos (auBocip&toc).Abaixo desta exigência de solução para o que chamamos pio-

 blema do mal” , podemos crer que jaz uma necessidade psicológicamais profunda. Trata-se da necessidade de racionalizar sentimentos

inexplicáveis de culpa que, como vimos, prevaleciam no período arcaico .106Os homens eram então, segundo suponho, pouco conscientes- e segundo Freud corretamente conscientes - de que tais sentimentos estavam enraizados numa experiência passada submersa^eesquecida. O que seria mais natural do que interpretar esta intuição

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(que é de lato, ainda segundo Freud, uma percepção enfraquecidade traumas infantis) como uma percepção enfraquecida de algum

 pecado cometido em vidas passadas? Esbarramos aqui, talvez, comuma fonte psicológica para a importância atribuída pela escola pita-górica à “recordação” - não no sentido platônico da reminiscênciade um mundo de Formas conhecidas anteriormente por uma almaincorporai, mas no sentido mais primitivo de uma memória treinada

 para recordar as façanhas e sofrimentos de uma vida pregressa naterra.107

Isto entretanto é pura especulação. O que é certo é que estascrenças promoveram, nos que a elas aderiram, um horror do corpo

e uma repulsa contra a vida dos sentidos que eram bastante novas para a Grécia. Suponho que qualquer cultura da culpa é capaz defornecer um solo favorável para o crescimento do puritanismo, poisela cria uma necessidade inconsciente de autopunição que o puritanismo vem gratificar. Mas na Grécia, foi aparentemente o impactodas crenças xamanísticas que pôs tudo em funcionamento. Tais crenças foram interpretadas pelas mentes gregas em sentido moral; equando isto ocorreu o mundo da experiência corporal surgiu inevitavelmente como um lugar obscuro de penitência, a carne sendo vistacomo uma “túnica estranha à alma”. “O prazer”, diz o velho catecismo pitagórico, “é sob todas as circunstâncias ruim, pois viemosaqui para sermos punidos e devemos ser punidos”.101*Sob esta forma, que Platão atribui à escola órfica, o corpo era apresentado comoa prisão dentro da qual os deuses guardavam trancada a alma atéque ela fosse purgada de sua culpa. Sob uma outra forma, também

mencionada por Platão, o puritanismo encontrou uma expressão ainda mais violenta: o corpo era concebido como uma tumba na qual a

 psyche jazia morta, aguardando a ressurreição para a verdadeira vida,que seria a vida sem o corpo. Esta última forma pode ser retraçadaaté o tempo de Heráclito, que talvez a tenha utilizado para ilustrar aeterna alternância dos opostos, “o caminho que sobe e o que descesão o mesmo”.109

Para as pessoas que igualavam a  psyche à personalidade em pírica, como ocorria no século V a.C., tal asserção não faz qualquer sentido. Tratava-se de um paradoxo fantástico, cujas possibilidadescósmicas não escaparam , por exemplo, ao olho de Aristófanes.110 Nem faz muito sentido igualar “alma” à razão. Devo supor que, para

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as pessoas que tomavam tudo isso a sério, o que jazia morto nocorpo não era nem a razão nem o homem com suas experiências devida, mas um “eu” oculto, a “imagem da vida’ de Píndaro, indes

trutível mas capaz de funcionar apenas nas condições excepcionaisde sono ou de transe. Que o homem possui duas almas, uma divinae outra de origem terrena, é algo que já havia sido ensinado antes(se podemos confiar nos estudos recentes) por Ferécides de Siros.É significativo que Empédocles, de quem depende nosso conhecimento do puritanismo grego dos primórdios, evite o uso do termo

 psyche para falar do “eu” indestrutível."1Parece que Empédoclesvia a psyche como sendo um calor vital que no momento da morte éreabsorvido pelo elemento ígneo de onde ela se originou (uma visão bastante comum no século V a.C.112). O “eu” oculto que persistaatravés de sucessivas encarnações foi chamado por ele, não de“psyche”, mas de “daemon”. Este daemon aparentemente nada tema ver com a percepção ou com o pensamento, que Empédocles acie-ditava serem determinados mecanicamente. A função do daemon seria a de carregar a porção divina que existiria potencialmente no

homem,113 e também sua culpa atualmente existente. O daemon estaria mais próximo, em certo sentido, do espírito interno que o xamãherda de outros xamãs, do que da “alma” racional na qual Sócratesacreditava, mas ele acabaria finalmente moralizado, transformando-se no carregador da culpa. O mundo dos sentidos tornou-se o Hadesno qual esta alma racional sofre seus tormentos114 - tormentos descritos por Empédocles em algumas das passagens mais estranhas e

comoventes dc poesia religiosa que nos chegaram da antigüidade.11O aspecto complementar da doutrina era o ensinamento a res peito da catarse - os meios pelos quais o “eu” oculto poderia evoluir no caminho do ser e apressar sua liberação. A julgar pelo título, esteera o tema central do poema de Empédocles, embora as partes emque ele tratava do assunto estejam quase totalmente perdidas. A noção de catarse não era novidade; como vimos anteriorm ente,116 elaera uma das principais preocupações das mentes religiosas ao lon

go da era arcaica. Mas dentro do novo padrão dc crenças, ela adquiriuum novo conteúdo e uma nova urgência: o homem deve ser purificado não apenas de tipos específicos de conspurcação, mas tantoquanto possível de todo traço de carnalidade —eis a condição de suaredenção. “Da companhia do que há de mais puro eu venho, rainha

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 pura dos que vivem abaixo do mundo” - assim fala a alma para Per-séfone no poema das placas de ouro.117 Pureza, mais do que justiça,tornou o ponto capital da salvação, e como é um “eu” mágico e nãoracional que deve ser purificado, as técnicas de catarse também não

 podem ser racionais, mas devem ser mágicas. Elas deviam consistir unicamente de rituais, como nos livros órficos que Platão denunciou

 por seus efeitos desm oralizantes.118Mas elas também podiam se valer do poder encantatório da música, como na catarse atribuída aos

 pitagóricos, que parece ter sido desenvolvida a partir de cantos primitivos (ETtcoSai).119 Enfim, elas também podiam envolver uma

 prática especial de vida (askesis).

Vimos que a necessidade dc askesis estava implícita, desde oinício, na tradição xamanística. Mas a cultura da culpa do períodoarcaico dotou-lhe de um sentido peculiar. O vegetarianismo, que éum traço central da askesis órfica e, em parte, tambcm da pitagóri-ca, é normalmente tratado como um simples corolário para a questãoda transmigração; o animal que você mata para comer pode ser amorada dc um “eu” ou de uma alma humana. Isto é como Empédo-cles explicava a questão. Mas ele não está sendo lógico aqui, pois

do contrário deveria sentir a mesma repulsa diante da idéia de comer vegetais já que, segundo ele próprio, seu “eu” oculto já haviahabitado também um arbusto.12'1Por detrás desta racionalização im

 perfeita está, como suspeito, algo mais antigo - o horror de sanguederramado. Para mentes escrupulosas, o medo de uma conspurca-ção pode ter se estendido para outros domínios, até incluir oderramamento de sangue, tanto animal quanto humano. Como conta Aristófanes, a regra de Orfeu era epoveov a7t£xecr9ai (“não verter sangue”). Diz-se que Pitágoras evitava contato com açougueiros ecaçadores - presumivelmente porque eles seriam não apenas perversos, mas também perigosamente maculados, portadores de umaconspurcação infecciosa.121 Além de tabus sobre comida, a sociedade pitagórica parecia ter imposto outras fórmulas austeras aos seusmembros, como por exemplo, a regra dc silêncio para os noviços, ecertas restrições sexuais.122 Mas foi talvez apenas Empédocles quem

tenha dado o passo da lógica final em direção ao maniqueísmo. Nãovejo razões para duvidar, por exemplo, da afirmação de que ele denunciava o casamento e todas as relações sexuais ,123 em bora osversos nos quais ele o fazia não tenham sido preservados. Se a tra

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dição está correta quanto a este ponto, o puritanismo não apenas seoriginou na Grécia, como também foi levado pela mentalidade gre

ga até o seu extremo limite teórico.

Uma questão permanece. Qual seria a origem de toda esta perversidade? Como um “eu” divino pode pecar e sofrer dentro decorpos mortais? Como escreveu um poeta pilagórico: “De onde veioa humanidade, e de onde veio tanto mal?”.124 A esta pergunta incon-tornáve l a poesia órfica - pelo menos a poesia órfica tardia -forneceu um resposta mitológica. Tudo começou com os Titãs perversos que capturaram o infante Dioniso e o cortaram em pedaços,ferveram, assaram e comeram, sendo imediatamente queimados por 

um raio de Zeus. Da fumaça de seus restos brotou a raça humana,herdando, assim, as horríveis tendências titânicas, temperadas por uma pequena porção de alma divina, que seria a substância do deusDioniso ainda operando ali, como um “eu” oculto. Pausânias contaque esta estória - ou melhor, a parte referente aos Titãs da estória -foi inventada por Onomácrito no século VI (ele sugere que a partesobre Dioniso é mais antiga).125Todos, até Wilamowitz, acreditaram

em Pausânias; e não encontrando qualquer alusão clara e certa aomito dos Titãs em nenhum escritor de antes do século III a.C., inferiram que se tratava de uma invenção helenística.126 A dedução foiaceita por um ou dois estudiosos cujo juízo considero aceitável,1-7 eé com grande hesitação que discordo deles e da opinião deWilamowitz. Há, na verdade, razões para desconfiar das declaraçõesde Pausânias sobre Onomácrito.128 Todavia, várias considerações se

combinam para me persuadir de que o mito é, apesar dc tudo, antigo. Primeiramente há seu caráter arcaico: o mito é fundado nos rituaisdionisíacos antigos de Sparagmos e Omophagia [desmembramentoe antropofagia],129 e implica a crença arcaica na culpa herdada - oque no período hclenístico havia começado a ser descartado comomera superstição.13" O segundo ponto está na citação de Píndaro, queestá no  Mênon de Platão, segundo a qual “o castigo por um antigorevés” é explicado como sendo de responsabilidade humana, peloassassinato de Dioniso.131 Em terceiro lugar, há a consideração a res

 peito de uma passagem das  Leis de Platão, referindo-se a pessoasque “exibem a natureza do velho Titã”;132 e de uma outra passagemem que se fala dos impulsos sacrílegos que não pertencem “nem aum homem e nem a um deus”, mas que derivam de “más ações an

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tigas incapazes de serem purgadas pelo homem”.133 Em quarto lugar. conta-se que o pupilo de Platão, Xenócrates, procurouestabelecer uma conexão entre a compreensão do corpo como “prisã o” , D ioniso e os T itã s .134 Tom adas in div idu alm en te, estasreferências aparentes ao mito podem ser explicadas completa e satisfatoriamente, mas analisadas em conjunto fica difícil resistir àconclusão de que a estória inteira já era conhecida de Platão e deseu público.135

Se é assim, tanto o puritanismo moderno como o antigo tive

ram sua doutrina do pecado original, o que, aliás, explicava auniversalidade dos sentimentos de culpa. Verdadeira, a transmissão

de culpa por meio de herança corporal era, no entanto, inconsistente com a visão que havia feito do “eu” oculto um veículo desta culpa.Mas esta inconsistência não nos surpreende muito. De maneira algo

similar, os upanichades indianos conseguiram combinar a crença antiga de uma conspurcação hereditária com a doutrina dareencarnação;136 e a teologia cristã acha possível conciliar a heran

ça pecaminosa de Adão com a responsabilidade moral do indivíduo.O mito titânico explicava claramente ao puritano grego porque ele

se sentia, ao mesmo tempo, um deus e um criminoso; o sentimento“apolíneo” de distância do elemento divino, juntamente com o sentimento “dionisíaco” de identidade com este mesmo elemento foramambos responsáveis por isto. E eis aí algo mais profundo do que qualquer lógica.

 N o t a s   d o   c a p í t u l o   V

1. Píndaro, frag. 116B. (131 S.). Rohde enfatiza corretam ente a importância

deste tragmento ( Psyche, 415) embora estivesse errado ao ver algumas des

tas idéias em Homero (ibid., 7); cf. Jaeger, Theology of the Early Greek  

 Ph ilosophers, 75 sg. A visão de que o sujeito experiente dos sonhos é um

“eu profundo e imutável é sugerida pela forma na qual um passado morto

e esquecido pode ser revelado em sonho. Como afirma um escritor moder

no, “Nos sonhos não apenas estamos livres das limitações comuns do tempo,

e do espaço, não apenas retornamos ao nosso passado e provavelmente avançam os para o futuro, mas o ‘eu’ que aparentem ente expe rime nta estas

estranhas aventuras é um ‘e u ’ mais essencial, sem idade específica” (J.B.Priestley.  Johnson over Jordan).

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160 O s GREGOS E O IRRACIONAL

2. Xenofonte, Ciropédia. 8.7.21.3. Platão,  República, 571D sg.: quando o Xoykjxikov no sono é a u to Ka0

oojto pouou Ka0apov (que não é ainda o caso), pode perceber alguma

coisa não conhecida antes, no passado, no presente ou no futuro, e xqç

aÀ ,r|0siaç ev xco xoiouico n o d ia x a a rc te ra u Aristóteles, frag. 10 = Sext.

Emp. adv. Pkys. 1.21: oxav  y a o ev xco vumovm  Ka0 autriv yiyvexai r\ 

yoxri, xoxe xr|V iSiov ajxoXaPouoa (Jjdoiv npo(ravxe\)exai xe Kai

 jtp o ay o p e u e i x a pe^A ovxa. xo iau x ri 5e eoxi Kai ev xw K axa xov

Oavaxov x<»piÇeo0ai xcov aa>|iaxa>v, cf. Jaeger,  Aris tó te les, 162 sg. Ver 

também Hipócrates 7tepi5iaixr|ç, 4. 86, citado anteriormente, cap. IV, nota

104, e Ésquilo,  Eumênides 104 sg., em que o poeta combina a velho sonho

“objetivo” com a idéia de que o próprio espírito é dotado de um poder de

 presciência durante o sono , o que parece derivar de um diferente padrãode crença. Sobre a importância dada aos sonhos pelos pitagóricos, cf. Cí

cero, div. 1.62; Plutarco,  gen. Soer. 585E; Diógenes Laércio 8.24.

4. “A questão sobre se a personalidade consciente de alguém sobrevive após

a morte tem sido respondida, afirmativamente, por quase todas as raças de

homens. Neste ponto, céticos e agnósticos são quase totalmente desconhe

cidos.” Frazer, The Beliefin Immortality, I. 33.

5. A prova arqueológica é convenientemente reunida e coligida por Joseph

Wiesner, Grab und Jenseits (1938), embora alguma dúvida possa existir quanto à validade de algumas inferências retiradas pelo autor.

6 . Ver Lévy-Bruhl, The "S ou l” o f the Primitive, 202 sg., 238 sg. e Vexpêrience 

mystique, 151 sg. Muitos antropólogos mantêm que a crença na sobrevi

vência da alma não se deveu a nenhum processo lógico (como Tylor e Frazer 

defenderam ), mas muito mais por uma recusa a pensar, o inconsc iente c ri an

do um ponto cego diante da prova indesejada, é o que sustetam agora muitos

antropólogos; cf. Elliot Smith, The Evolution o f the Dragon, 145 sg.; Ma-

l inowski ,  M agic , Scie nce and R elig io n, 32 sg.; K. M euli, G riech.Opferbrauche”, in  Phyllobolia fü r Peter von der Mühll  (1946); Nilsson,

 Harvard Theol. Rev. 42 (1949) 85 sg.7.  I liada, 23.103 sg.; Odisséia, 11.216-224. O significado destas passagens,

com sua implicação de novidade, foi ressaltado corretamente por Zielinski

(“La Guerre à 1’outre tombe”, in  Mélanges Bidez 11.1021 sg., 1934), em

 bora ele vá um pouco longe dem ais ao ver os poetas homéricos como

reformadores religiosos, com paráveis em severidade aos profetas hebreus.

8. Não apenas oferendas de objetos, mas até mesmo tubos de alimentação são

encontrados em cerimônias de cremação (Nock,  Harv. Theol. Rev. 25 [1932]

332). Em Olintus, onde cerca de 600 enterros do século VI ao IV a.C. fo

ram examinados, oferendas de objetos são de tato mais comuns em

cremações (D.M. Robinson,  Excavations at Olynthus XI. 176). Isto pode sig

nificar uma das duas hipóteses: ou a cremação era, alinal de contas, sem

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visar, como pensa Rohde, separar o fantasma dos cadáveres por uma aboli

ção deste, ou, então, os antigos hábitos eram demasiadamente enraizados

 para serem perturbados por tais medidas. Meuli, loc. cit. observa que na

época de Tertuliano as pessoas continuavam a alimentar os corpos crema

dos (carn. resuri:  1, [vulgus] defunctos arocissime exàrit, quos post modum   gulosissim e nutrít); e que, apesar da desaprovação inicial da Igreja, o uso

de tubos alimentares persistiu nos Balcãs até quase os nossos dias. Cf. tam

 bém Lawsom,  Mod. Gr. Folklore, 528 sg., e sobre a questão como um todo,

Cumont,  Lux Perp etua , 387 sg.

9. Plutarco, Sólon 21; Cícero, de legg. 2.64-66. Cf. também o protesto de Pla

tão contra os desperdícios com gastos em funerais (Leis, 959c) e a lei de

Labiadae que proíbe inter alia as vestimentas muito caras nos cadáveres

(Dittenberger, Syll.2 11.438.134). Mas a fantasia do fantasma do cadáver-espírito é obviamente apenas um dos sentimentos que encontram satisfação

em funerais caros (Cf. Nock,  JRS  38 [1948] 155).

10.  Ilíada , 3.278 sg.; 19.259 sg. É muito pouco sábio im por consistência esca-

tológica sobre os escritos de Homero (ou sobre qualquer outro) à custa de

emendas, excisões ou distorções do significado. Esta forma confessional

da  Ilíada preserva uma crença que era mais antiga do que o Hades neutro

de Homero (pois tais fórmulas tornam arcaico e não inovam) e tiveram muitomaior vitalidade.

11.// .  Dem. 480 sg. Sobre a provável data do hino, que exclui qualquer plau-

sibilidade de influências “órficas”, ver Allcn e Halliday, The Homeric  Hymns2, 111 sg.

12. E algo sustentad o por W ilamow itz no início de sua carre ira ( H omer  

Untersuchungen, 199 sg.), mas retrabalhado posteriormente (Glauhe,11.200 ).

13. Ésquilo,  Eumênides 267 sg., 339 sg.; Sup. 414 sg. Cf. Wehrli, Aaôe (3icooaç,

90. Parece implícito em D emócrito (frag. 199 e 297; e Platão,  República,

330D) que na Idade Clássica o medo da punição pós-morte não era confinado a círculos “órficos” ou pitagóricos, mas poderia assombrar qualquer consciência culpada.

14. Píndaro, frag. 114B. (130 S.). Para a questão dos cavalos, cf.  Il íada, 23.171

e Wiesner, op. cit., 136\ 152", 160 etc.; para o 7ieooot, Wiesner, 146.

15. Anacreonte, frag. 4; Semonides de Amorgos, frag. 29.14D. (= Simonides

de Ceos, frag. 85B),  IG XI 1.9.287 (F riedlã ng ler,  Epig ram m ata , 79).

Hipponax tem um uso similar de \|/\>%r|, frag. 42D. (43B.).

16. C.R. Hirzel, “Die Person”, Miinch. Sitzb. 1914, Abh. 10.17. Sófocles,  Édipo em Colona 64 sg., 643. Mas embora cada frase pudesse

ser substituída pelo pronome pessoal, elas não são (como Hirzel sugeriu)

intercambiâveis; pcújicx não pode ser usado no 64, nem \|/u£,r| no 643.

18.  IG P. 1920 (= Friedlander,  Epigrammata , 59), \|/\)í;[T|]oXeT e[v Sat] (ca.

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162 O s GREGOS E O IRRACIONAL

500 a.C.); cf. Eur. Hei. 52 sg., \|A)Çai Se 7toUca Si epe ... eGavov e Tro.

1214 sg., \|/t>xnv aeOsv eicceive. Píndaro. 01. 9.33 sg.: ouõ Aiôaç

aK ivn xa v e%e pa|35ov, (3poTCa ompaG a Kcaayei koiAxxv npoç aym av

GvaoKOVTCOV (cf. Virg. Georg. 4.475 = Aen. 6.306).

19. A Conferência Hertz, 1916, Proc. Brit. Acade. VII L.-S., s.v.  psyche , naosoube tirar proveito da investigação de Burnet. Sobre tragédia, o material

lexicográfico foi reunido por Martha Assmann,  Mens et Anim us, 1 (Ams-

terdam, 1917).20. Sófocles,  Antígona, 176. Cf. 707 sg., onde \\iv%v contrasta com (jipoveiv,

e Eurípides,  Alc. 108.21. Antifon, 5.93; Sófocles,  Elec tra, 902 sg.22. Estou propenso a concordar com Burnet de que este deve ser o sentido nas

Troianas de Eurípides, 1171 sg.; é pouco natural construir or| \|A>xri de outraforma que não com yvouç.

23. Eurípides,  Hécuba, 87.24. Cf. frases como õ ia jiv x“ v P^T tOTOa \|A^r|, Sófocles.  Fil. 1013, e TCpoç

a K pov   (rueXov yu^riç, Eurípides,  Hipólito 255.

25. Sófocles,  Antígona 227.26. Que a palavra n^° carrega uma associação puritana é evidente poi

frases como  y v fy ] xcov «TaBcov xaprÇopevoç (Sem. Amorg. 29.14),

ôiSovteç r |5ovtiv K a0 r^ e p a v (Ésquilo , Os persas. 841), popaç \|n)£nverdripo-uai (Eurípides, lon 1169). Quão remota a palavra vuxri era na tala

mais comum quanto às suas implicações religiosas e metafísicas é muito

 bem mostrado por uma passagem do devoto Xenofonte (se é que ela lhe

 pertence): quando ele fornece algo sem imag inação o term o 4Juxr| em um a

lista de nomes para cães (Cyneg. 7.5).27. Como 0-u(.toç em H. Apoll. 361 sg., \|n>xr| às vezes é considerada como

residindo no sangue: Sófocles,  Electra. 785 TOupov eKTUVOW aei \|n>XT|Ç

aKpaxov ai| ia c Aristófanes,  Nuvens, 712 TtiG5 Y^XTIV eKrcivonoiv (oi

Koperç). Este é um uso popular, não uma especulação filosófica como em

Empédocles (frag. 105). Mas os escritores médicos também tendem, como

devemos naturalmente esperar, a salientar a íntima interdependência enüe

corpo e mente, e a importância de elementos aletivos na vida de ambos.

Ver W. Muri, “Bemerkungen zur Hippokratischen Psychologie” , Festschrift 

Tièche (Bern, 1947).28. E. Rohde, “Die Re ligion der Griechen”, 27 (Kl. Schriften 11.338).

29. A tese de Gruppe sobre a origem do orfismo na Ásia Menor ioi tecente-

mente reafirmada por Ziegler, P.-W., s.v. “Orphische Dichtung”, 1385. Maso problema é que as figuras divinas do orfismo tardio têm certamente ori

gem asiática - Erikepaios, Misa, Hipta e o Cronos de asas polimórficas -

não têm sua existência demonstrada na literatura órfica dos primórdios e

 podem facilmen te ser em prés timos de uma idade posterior. A derivação que

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Os XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 163

Heródoto faz da teoria do renascimento egípcio é impossível porque os egíp

cios na verdade não possuem tal teoria (ver Mercer,  Religion o f Ancient  

 Egypt, 323 e as autoridades citadas por Rathmann, Quaest. Pyth. 48). Uma

derivação da Índia não é algo provado e é intrinsecamente improvável

(Keith,  Rei. and Phil. o f Veda and Upanishcids, 601 sg.). Parece possível,

entretanto, que as crenças indiana e grega tenham a mesma fonte (ver nota 97).

30. Sobre o caráter e a difusão da cultura xamanística, ver K. Meuli. “Scythica”,

 Hermes 70 (1935) 137 sg., uma brilhante monografia a qual devo a idéia

deste capítulo. G. Nioradze,  Der Schamanismm bei den Sibirischen Võlkern 

(Stuttgart, 1925), e o interessante, porém especulativo, livro de Mrs.

Chadwick,  Poetry and Prophecy (Cambridge. 1942). Para descrições deta

lhadas dos xamãs, ver W. Radloff,  Aus Sibirien (1885). V.M. Mikhailovski,

 JRAl 24 (1885) 62 sg., 126 sg.; W. Sieroszewski,  Rev. de Vhistoire des rei. 46 (1902) 204 sg., 299 sg.; M.A. Czaplicka,  Aboriginal S ibéria (1914), que

fornece uma bibliografia completa; I.M. Kasanovicz, Smithsonian lnst. 

 Annual Report, 1924; U. Holmberg,  FinnoU gric and Siberian Mythology 

(1927). A conexão entre as idéias religiosas cíticas e urais-altaicas foi no

tada pelo estudioso húngaro Nagy e é aceita por Minns (Scynthians and  Greeks, 85).

31. Parece que em algumas formas modernas de xamanismo a dissociação é

mera ficção; em outras há provas de que ela é bastante real (cf. Niorazde,op. cit., 91 sg., 100 sg.; Chadwick, op. cit., 18 sg.). O último tipo é presu

mivelmente o mais antigo, que o outro imita de modo convencional. A.

Ohlmarks,  Arch. f . Rei. 36 (1939) 171 sg., afirma que o genuíno transe xa

manístico é confinado à região ártica e se deve à “histeria do Ártico". Ver,

 porém, as críticas de Mircea Eliade,  Rev. de l ’hist. des rei. 131 (1946) 5

sg. A alma pode também deixar o corpo na doença (Nioradze, o p. cit. 95;

Mikhailovski, loc. cit., 128) e durante o sono mais comum (Nioradze, op.

cit. 21 sg.; Czaplicka, op. cit., 287; Holmberg, op. cit., 472 sg.).

32. Sobre estes “xamãs gregos” ver também Rohde,  Psyche, 299 sg. e 327 sg.;

onde foram reunidas e discutidas muitas das evidências sobre eles; H. Diels,

 Pannenides Lehrgedicht, 14 sg.; e Nilsson, Gesch. 1.582 sg. que aceita a

visão dc Meuli sobre eles. Pode talvez ser argumentado que o comporta

mento xamanístico está enraizado em construções humanas psicofísicas, e

que algo do tipo pode, portanto, ter surgido entre os gregos independente

mente de influências estrangeiras. Mas contra isso há três coisas a serem

ditas. 1) tal com portam ento começa a ser verificado entre os gregos tão logo

o mar Negro é aberto para a colonização grega, e não antes; 2) dos maisantigos xamãs registrados, um é cítio (Abaris) e outro um grego que visi

tou a Cítia (Aristeas); 3) há coincidência o bastante entre o xamanismo

greco-cítio e o siberiano moderno tornando a hipótese de mera “conver

gência” parecer antes improvável: exemplos são a mudança de sexo do xamã

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164 OS GREGOS E O IRRACIONAL

na Cítia e na Sibéria (Meuli, loc. cit., 127 sg.), a importância religiosa da

flecha (ver nota 34 abaixo); o recuo religioso (nota 46); o  status da mulher 

(nota 59); o poder sobre bestas e pássaros (nota 75); a viagem ao submun

do para recuperar a alma (nota 76), as duas almas (nota 111); e a semelhança

com métodos catárticos (notas 118 e 119). Algumas dessas coisas são

coincidências bastante plausíveis; tomadas separadamente nenhuma delas

é decisiva, mas seu peso conjunto parece considerável.

33. Esta tradição, embora preservada apenas por escritores tardios, parece mais

antiga do que a versão racionalizada de Heródoto (4.36) na qual Abaris car-

rega a flecha (o motivo disto não é explicado). C.l. Corssen,  Rh. Mus. 67

(1912); e Meuli, loc. cit., 159 sg.34. Isto parece-me estar implícito no uso de flechas pelo xamã Buryal para trazer 

a alma dos doentes de volta, e também em funerais (MikhailoVski, loc. cit., 128, 135). Os xamãs também adivinham a partir do vôo das flechas (ibid.,

69, 99), e diz-se que “alma exterior” do xamã Tatar por vezes mora numa

flecha (N. K. Chadwick,  JRAI  66 [1936], 311). Outros xamãs podem ca

valgar no ar, como bruxas em suas vassouras (G. Sandshejew,  Anthro pos 

23 [1928] 980).

35. Heródoto 4.36.36. Sobre o “Apoio Hiperbóreo” cf. Alcaeus, frag. 72 Lobel (2 B); Píndaro,

 Píticas 10.28 sg.; Bacchyl. 3.58 sg.; Sófocles, frag. 870 N.; A.B. Cook, Zeus, 11.459 sg. A.H. Krappe, CPIi 37 (1942) 353 sg., mostrou que as ori

gens deste deus devem ser procuradas no norte da Europa: ele é associado

a um produto do norte (âmbar) e a um pássaro (o cisne “whooper”); e seu

“antigo jardim” reside por detrás do vento do norte (pois a óbvia etimolo

gia de “hiperbóreo” é provavelmente a certa). Parece que os gregos, tendo

ouvido falar dele por missionários como Abaris, identificaram-no com Apo-

lo (possivelmente por uma similaridade de nome, se Krappe está certo em

supor que ele é o deus de Abalus, “ilha de maçã” [apple island], o Avalonmedieval), e provaram sua identidade dando-lhe um lugar na lenda do tem

 plo dc Delos (Heródoto 4.32 sg.).37. Aristeas, frag. 4 e 7 Kindel; Alfõldi, Gnomon 9 (1933) 567 sg. Posso acres

centar que as “servas em forma de cisne” que nunca vêem o sol (P. V. 794

sg., talvez de Aristeas) possuem um paralelo com as “servas-cisne” da crença

asiática central que vivem no escuro e têm olhos de chumbo (N.K.

Chadwick.  JRAI  66 [1936] 313, 316). Quanto à viagem de Aristeas, o re

lato de Heródoto (4.13 sg.) é ambíguo e pode refletir uma tentativa deracionalizar a história (Meuli. loc. cit., 157 sg.). Em Máximo de Tiro, 38.3, é

claramente a alma de Aristeas que visita os hiperbóreos à maneira xamanís-

tica. Os detalhes dados em Heródoto 4.16 sugerem, porém, uma viagem real.

38. Heródoto, 4.15.2; Plínio,  N.H. 7.174. Compare os pássaros de alma das tri

 bos Yakut e Tungus (Holmberg, op. cit.. 473, 481), e também as vestimentas

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O S XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 165

de pássaros dos xamãs siberianos (Chadick,  Poeir y and Prophecy, 58 e

fig. 2); e a crença de que os primeiros xamãs eram pássaros (Nioradze,

op. cit., 2). Pássaros de alma são amplamente difundidos, mas não é certo

que os gregos dos primórdios os conhecessem (Nilsson, Gesch. 1.182 sg).

39. Sófocles,  Electra, 62 sg. O tom é racionalista, sugerindo uma influência

de seu amigo Heródoto. Sófocles tem em mente, sem dúvida, histórias como

a que Heródoto conta de Zalmoxis (4.95), que racionaliza o xamanismo trá-

cio. Os lapões costumavam acreditar que seus xamãs “caminhavam” após

a morte (Mikhailovski, loc. cit., 150 sg.); e em 1556 o viajante inglês Ri-

chard Johnson viu um xamã do norte da Sibéria “morrer” e em seguida

reaparecer vivo (Hakluyt, 1.317 sg.).

40. H. Diels, “Über Epimenides von Kreta”,  Beti in Sitzb. 1891, 1.387 sg. Os

fragmentos agora são Vorsokr. 3 B (formalmente 68 B). Cf. também H.Demoulin,  Epim énide de Crète (Bibliothèque de la Fac. de Phil. et Lettres

Liège, fase. 12). O ceticismo de Wilamowitz (Hippolytos, 224, 243 sg.) pa

rece excessivo, apesar de alguns oráculos serem certamente forjados.

4 1 .0 prestígio das K aO ap tai cretenses na era arcaica é atestado pela lenda

de que Apoio foi purificado, depois do assassinato de Píton, por Carmanor,

o cretense (Paus. 2.30.3); cf. também o cretense Taletas que expulsou uma

 peste de Esparta no século VII a.C. (Pratinas, frag. 8 B.). Sobre o culto da

caverna cretense, ver Nilsson.  MinoanM yc. Religion2, 458 sg. Epimênidesera chamado veoç K ou pr|ç (Plutarco, Sol. 12, Diógenes Laércio, 1.115).

42. A tradição da excursão psíquica foi possivelmente transferida a Epimêni

des por Aristeas; Suidas atribui o poder a cada um deles em termos muito

 parecidos. De modo similar, a aparição  postm ortem de Epimênides (Pro

clus, in Remp 11.113 Kr.) pode ser imitada daquela de Aristeas. Mas a

tradição dos alimentos encantados parece mais antiga, pelo menos por causa

da pata de boi. Isto pode ser traçado até o tempo de Herodorus (frag. 1 J.),

que Jacoby data de mais ou menos 400 a.C., e parece ser mencionada por 

Platão (Leis 677E). E tentador relacionar isto com: a) a tradição da mira

culosa vida longa de Epimênides, e b) a “receita trácia para escapar da

morte” (nota 60 adiante).

43. to Seppa et>pr|o9ai ypaiapaot Kmacmicrov, Suidas s.v. (= Epimênides

A 2). A fonte pode vir do historiador espartano Sosibius, mais ou menos

300 a.C. (cf. Diógenes Laércio, 1.115). Suidas acrescenta que to 

Em pev iSeio v S ep pa era um provérbio para qualquer coisa escondida (em

tcúv cotoBexcov). Mas não posso aceitar a curiosa teoria de Diels (op. cit.,

399) e Demoulin (op. cit., 69) de que esta frase se referia originalmente aum  yellum M S  das obras de Epimênides, e foi posteriormente mal com

 preendida como referindo-se à sua pe le tatuada. Com pare, talvez, £ Lucian,

 p. 124 Rabe, eXeyeto ya p o H uO ayo paç evTSTtmoxyBai tcú ôe^ico am o u

 pr|pcü tov <t>oi|3ov. Isto é a racionalização do misterioso  golden th ighl  Ou

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16 6 OS GREGOS E O IRRACIONAL

seria o núcleo histórico do conto de unia tatuagem sagrada ou uma marca

natural de nascimento?44. Heródoto 5.6.2: to |iev EOtT.%0 a t e u y s v e ç K E K p t t a t , to §e a a t t K t o v  

a y e v v e ç . O xamã trácio “Zalmoxis” possuía uma marca de tatuagem em sua

fronte que escritores gregos, sem saber de seu significado religioso, expli

caram dizendo que ele havia sido capturado por piratas, que o destinaram

ao mercado de escravos (Dionisófanes apud Porfírio, vit Pyth. 15, em que

Delatte,  Politique pyth ., 228, está absolutamente errado ao identificar os

fictícios ? i r | 0 t a i com insurreições anti-pitagóricos locais). Sabemos pelos

 pintores de vasos gregos que os trác ios faziam tatuagens sagradas: as mê

nades trácias se tatuavam de amarelo castanho como se vê em vários vasos(JHS 9 [1888]; P. Wolters,  Hermes 38 [1903] 268; Furtwángler-Reichhold,

III. Tafel 178, em que alguns apareciam tatuados com uma cobra). Para atatuagem como marca de devoção a um deus, cf. também Heródoto 2.113,

e os exemplos de várias fontes discutidas por Dõlger, Sphragis, 41sg. A

tatuagem foi igualmente praticada por sarmácios e dácios (Plínio,  N. H.

22.2), ilírios (Strabo 7.3.4), os “picti Agathyrsi” na Transilvânia, que Vir

gílio representa como idolatrando Apoio (o Hiperbóreo) (Eneida), e outros

 povos dos Bálcãs e do Danúbio (Cook.  Zeus). Mas os gregos pensam

a t o x p ü v K a t o c t i p o v   (Sextus Empiricus,  Pyrrh. Hyp. 3.202; cf. Diels,

Vorsokr .590 [83] 2.13).45. Frazer,  Pausânias, 11, 121 sg.46. Cf Rohde,  Psyche, cap. IX, n. 117; Halliday, Greek Divination, 91, n. 5; e

 para os longos sonos dos xamãs, Czaplicka, op. cit. 179. Holmberg, op.

cit., 496, cita o caso de um xamã que se deitou “imóvel e inconsciente”

 por mais dc dois meses no tempo dc seu “chamado” . C om pare o longo re

tiro no subsolo dc Zalmoxis (nota 60 adiante). Diels pensava (loc. cit., 402)

que o “Longo Sono” tinha sido inventado para conciliar discrepâncias cro

nológicas em vários contos de Epimênides. Mas se este losse o únicomotivo, “Longos Sonos” seriam muito comuns na história grega dos pri-

mórdios.47. Deixo de fora da questão as ousadas especulações de Meuli a respeito dos

elementos xamanísticos do épico grego (loc. cit., 164 sg.). Sobre a tardia

descoberta de acesso ao mar Negro e a razão para isto, ver Rhys Carpen-

ter,  AJA 52 (1948) 1 sg.

48. Isto foi claramente reconhecido por Rohde,  Psyche, 301 sg.

49. Proclus, in Remp. 11.122.22 sg. Kr. (= Clearchus, írag. 7 Wehrli). A histó

ria não pode, infelizmente, ser tratada como histórica (cí. Wilamowitz,

Glaube, 11.256; e H. Lewy,  Harv. Theol. Rev. 31 [1938] 205 sg.).

50. Aristóteles,  Meta física , 9841' 19. Cf. Diels sobre Anaxágoras A 58. Zeller-

 Nestle, 1.1269, n. 1, descartaria a afirmação de Aristóteles como inteiramente

■■desprovida de fundamento. Mas Iâmblico  Protrept. 48.16 (= Ar. frag. 61)

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Ü S XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 167

sustenta a idéia de que Anaxágoras apelou efetivamente para a autoridade

de Hermótimo.

51. Diógenes Laércio 1.114 (Vorsòkr. 3 A 1): JVeyexat Se coç ko« Jtpcoxoç

(TípcoTov C as au bo n, a r n o ç cj. D iels ) au xo v A icckov À,eyot. ...

7tpoajtotfi6r|vai xe JioíU-aKiç avaPePicoicevat. As palavras oroxov

AtaKOV  Xzyi mostram que avaftePicDKevoa não pode se referir meramen

te à excursão física, como sugeriu Rohde ( Psyche, 331).

52. Aristóteles,  Retó ric a , 1418a 24: eiceivoç yap 7tepi xcov eao|ievcov odk  e^avxeuexo, a X k a 7tepi xrov yeyovoxcüv, aSritaov 5e. Para uma explicação

diferente desta afirmação ver Bouché-Leclercq,  Hist. de la divination, 11.100.

53. H. Diels, loc. cit. (nota 40 acima), 395.

54.  Apud  Diógenes Laércio 8.4. Cf. Rohde,  Psy che, App. X e A. Delatte,  La  

Vie de Pythagore de Diogène Laerce, 154 sg. Outros lhe atribuíram umasérie diferente de vidas (Dicaerchus, fr. 36 W.).

55. Empédocles, frag. 129 D. (cf. Bidez,  La Biographie d ‘Empédocle 122 sg.;

Wilamowitz, “Die K a 6 a p |io t des Empedokles”,  Berl. Sitzb. 1929, 651);

Xenófanes, frag. 7 D. Acho muito pouco convincente a tentativa de

Rathmann de descreditar ambas as tradições em seu Quaes t iones 

 Pythagoriae, Orphicae, Empedoclae (Halle, 1933). Xenófanes parece ter 

zombado também das histórias a respeito de Epimênides (frag. 20). O modo

 pelo qual Burnett traduz o fragmento, “embora tivesse vivido há dez, sim,vinte gerações” ( EGPh', 236) - que excluiria qualquer referência a Pitágo

ras - é lingüisticamente impossível.

56. Mikhailovski, loc. cit. (nota 30 acima), 85, 133; Sieroszewski, loc. cit. 314;

Czaplicka, op. cit., 213, 280. O último deles atribui uma crença  gerai na

reencarnação a um certo número de povos da Sibéria (130, 136, 287, 290).

57. Eacus parece ser uma velha figura sagrada, talvez m inóica - em vida ele

era um mago fazedor de chuva (lsócrates,  Evang., 14) e após a morte foi

 prom ovido a porteiro do Inferno (ps. Apo llod . 3.12.6; cf. Eur.  Peiri thous fr. 591, Ar.  Ran. 464 sg.) ou até mesmo juiz dos mortos (Platão,  Apologia  

de Sócrates, 41 A; Górgias, 524A; cf. Isocr.  Evag. 15).

58. Diógenes Laércio, 8.4. Ferécides de Siros afirma que um outro dos avata-

res de Pitágoras, Aetalides, recebeu o poder de renascer como um privilégio

especial (Z Apoll. Rhod. 1.645 = Pherecydes frag. 8). Concordo com

Wilamowitz ( Pla ton, 1.251, n. 1) que tais histórias não são produtos de teo

rias filosóficas, mas, ao contrário, que a teoria é uma generalização sugerida

(pelo menos em parte) pelas histórias. Sobre a reencarnação como privilé

gio reservado aos xamãs, ver P. Radin,  Primitive Religion , 274 sg.

59. O  status concedido às mulheres na comunidade pitagórica é algo excepcio

nal para a sociedade grega da Idade Clássica. Mas vale notar que hoje, em

muitas sociedades siberianas, as mulheres podem sé tornar xamãs tantoquanto os homens.

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1 6 8 O s GREGOS E O IRRACIONAL

60. Heródoto, 4.95. Cf. 4.93: Fexaç touç aGavaxrÇovxaç, 5,4: Fexai oi

aOavaxiÇovxeç e Platão, Cliarm. 156D: xcovGpaKCDV xcov ZaX|ioÇiôoç

taxpcov, oi Àeyovxai Kai ajiaBavaxiÇeiv. Estas frases significam não que

os Getais “acreditavam na imortalidade da alma”, mas que possuem a re

ceita para escapar da morte (Linforth, Cph 13 [1918] 23 sg.). A natureza

da fuga que “Zalmoxis” prometeu aos seus seguidores está, entretanto, longe

de ser algo claro. Parece possível que os informantes de Heródoto tenham

fundido em uma só história várias idéias distintas, como por exemplo: a) a

do paraíso terrestre de “Apoio Hiperbóreo”, para o qual, como para o Elíseo

Egeu, alguns homens são transportados corporalmente sem morrer (atei

TtepieovxEç, cl'. Bacchyl. 3.58 sg. e Krappe, CPh 37 [1942] 353 sg.): por 

isso a identificação de Zalmoxis com Cronos (Mnaseas,  FHG 111, frag. 23);

cf. Czaplicka, op. cit.. 176: “Existem tradições sobre xamãs que foram trans portados vivos da Terra pa ra o Céu”; b) o xamã desaparecido que se oculta

 por longos períodos de tempo em uma caverna sagrada: Hdt. K axayato v

oiicriiia e avxpcoõeç xi xcopiov afiaxov xoiç a Xkoiç (7.3.5) de Strabo pa

recem versões que não morrem,  Rhesus, 970 sg., cf. Rohde,  Psyche, 279;

c) talvez também uma crença na transmigração (Rohde, loc. cit.)', cf. a ex

 plícita afirm ativa de Mela de que alguns trácios “red ituras putant animas

obeuntium” (2.18) e Phot., Suid.,  EM, s.v. Z a p o ^ iç , mas não existe nada

a respeito de “almas” na narrativa de Heródoto.61. Heródoto sabe que Zalmoxis é um Saiprov (4.94.1), mas deixa em aberto

a questão se ele foi antes um homem (96.2). O relato dc Strabo (7.3.5) su

gere for temente que ele era um xamã tornado herói - todos os xamãs se

tornam Üõr, heróis, após a morte (cf. Sieroszewski, loc. cit., 228 sg.) - ou

um protótipo divino dos xamãs (cf. Nock, CR 40 [1926] 185 sg. c Meuli,

loc. cit., 163). Podemos comparar o  status que, segundo Aristóteles (frag.

192 R. = lâmblico, vit. Pyth. 31), os pitagóricos reivindicavam para seu

fundador; xod  XoytKoi) Çcúou  xo pev eoxi  0eoç, xo 5e avOpwrcoç, xo 5eoiov riuBayopaç. O fato de Zalmoxis ter dado o seu nome a um tipo par

ticular de canto e de dança (Hesych. s.v.) parece confirmar sua conexão com

as atuações de xamã. As similaridades entre a lenda de Zalmoxis e as de

Epimênides e A risteas foram corretamente enfatizadas pelo professor Rhys

Carpenter ( Folk ta le , Fiction, and Saga in lhe H omeric Epics, Sather 

Classical Lec tures, 1946, 132 sg., 161 sg .), embora eu não possa aceitar sua

engenhosa identificação dos três com ursos hibernando (seria Pitágoras um

urso também?). Minar, que tenta extrair um núcleo histórico das histórias

de Zalmoxis, ignora seu passado religioso.62. Cf. Delatte,  Étucles su r la littérature pyth ., 77 sg.

63. Pitágoras e Abaris, lâmblico, Vil. Pyth. 90-93, 140, 147, que faz de Abaris

um pupilo de Pitágoras (Suidas, s.v. HuGayopaç, inverte a relação na sua

obra sobre Pitágoras). Sobre sua iniciação, ver a mesma obra. Sobre profe

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( )s XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 1 6 9

cia, deslocamento no espaço e a identidade com o Apoio Hiperbóreo, Aris

tóteles, frag. 191R (= Vorsokr., Pyth. A 7). Sobre cura, Aeliano, V.H. 4.17;

Diógenes Laércio 8.2], etc. Sobre a visita ao submundo, Hicronymus de

Rhodes apud Diógenes, 8,21, cf. 41. Contra a visão de que a lenda pitagó-

rica pode ser descartada em sua totalidade como uma invenção de

romancistas posteriores, ver O. Weinreich,  NJbb 1926, 638; e Gigon,

Ursprung d. gr. Philosophie, 131; e sobre o caráter irracional de grande

 parte do pensamento pitagórico, L. Robin.  La pensée héllénique, 31 sg. Não

sugiro, obviamente, que o pitagorismo possa ser explicado inteiramente

como um desenvolvimento do xamanismo; outros elementos, tais como o

misticismo envolvendo os números e as especulações sobre harmonia cós

mica, eram também importantes desde uma época anterior.

64. Como Reinhardt diz, as referências mais antigas a Pitágoras - em X enófa-

nes, Heráclito, Empédocles, Ion (e poder-se-ia acrescentar Heródoto) -

“pressupõem a tradição popular que o via como um Albertus Magnus” ( Par 

mênides , 236). C f I. Lévy,  Recherches sur les sources de la legende de  Pythagore,  6 sg. e 19.

65. A magia do vento remonta a Timeu (frag. 94M em Diógenes Laércio, 8.60).

As demais histórias a Heraclides Ponticus (frag. 72, 75 e 76 Voss = Diog.

L. 8.60 sg., 67 sg.). Bidez,  La Biographie d'Empédocle , 35 sg. argumen

tou de maneira convincente que a lenda do deslocamento espacial corporal

em Empédocles é anterior à de sua morte na cratera do vulcão Etna, e não

loi inventada por Heraclides. De modo similar, a tradição siberiana conta

como os grandes xamãs do passado tiveram seus corpos transportados

(Czaplicka, op. cit., 176), e como eles ressuscitaram os mortos (Nioradze,op. cit., 102 ).

66 . Empédocles, frag. 111.3, 9; 112.4.

67. Ibid., frag. 112.7. C f Bidez, op. cit., 135 sg.

68 . A primeira destas opiniões foi sustentada por Bidez, op. cit., 159 sg. e por Kranz ( Hermes 70 [ 1935] 115 sg.); a segunda por Wilamowitz ( B erl Silzb. 

1929, 655), após Diels (Berl. Sitzb. 1898, 1.39 sg.) e outros. Contra estes

últimos, ver W. Nestle,  Philol. 65 (1906) 545 sg.; A. Diès,  Le cycle  

mystique, 87 sg.; Weinreich,  NJbb 1926, 641, e Cornford, CAH , 1V.568 sg.

As tentativas de Burnet e outros visando distinguir em uma geração an

terior um pitagorismo “cientifico” e outro “religioso” ilustra a mesma

tendência a impor dicotomias m odernas sobre um mundo que ainda não ha

via sequer sentido a necessidade de definir “ciênc ia” ou “religião”.69. Esta explicação (de Karsten) foi aceita por Burnet e Wilamowitz. Ver con

tra isto Bidez, op. cit., 166 e Nestle, loc. cit., 549, n. 14.

70. A descrição de Wilamowitz do poema Sobre a natureza como "durchaus

materialislisch” (loc. cit., 651) é decididamente enganadora, embora não

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Os XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 171

quanto às bases sobre a qual a interpretação tradicional do “orfismo” se

ergue, mesmo na forma modificada em que é apresentada por escritores tão

cuidadosos quanto Nilsson (“Early Orphism”, Harv. Theol. Rev. 28 [1935])e Guthrie (op. cit.).

80. Ver contra a hipótese, Wilamowitz, II. 199. Face à sua generalização de que

nenhum escritor da Idade Clássica fala em Op(|nKOi, Heródoto 2.81 pode

ser visto como uma possível exceção apenas se adotarmos o “texto curto”

da passagem em questão. Mas uma omissão acidental causada por 

“hom oioteleuton” e conduzindo a uma m udança subseqüente quanto ao nú

mero no verbo conjugado, parece mais provável do que uma interpolação

em DRSV, e não posso resistir à convicção de que a palavra opytov na pró

xima frase foi determinada pela palavra BaKxiKOiCR no “texto longo” deste

(cf. Nock, Studies presented to F. L. Griffith, 248; e Boyancé, Culte des  M uses, 94, n. 1).

81. Ver contra a hipótese, Bidez, op. cit., 141 sg. Há, segundo o meu juízo,

um motivo ainda mais forte para ligar Empédocles à tradição pitagórica

(Bidez, 122 sg.; Wilamowitz,  Berl. Sitzb. 1929, 655; Thomas, 115 sg.) do

que para conectá-lo de natureza distinta e demonstradamente órfica (Kern,

Franz etc.). Mas é provavelmente um erro vê-lo como um membro de qual

quer “escola” - ele era um xam ã independente que possuía sua própria

maneira de agir.82. Em  Hypsipyle, frag. 31 Hunt (= Kern, O.F. 2), o adjetivo mais comum

ítpcoToyovoç não tem nenhuma ligação comprovada com a literatura órfica

mais antiga, enquanto Epmç e NoE, têm sido importados por conjectura. Nem

o fragmento 472 das Cretenses possui alguma conexão demonstrável como “orfismo” (Festugière,  REG 49.309).

83. Ver contra a hipótese, Thomas, 43 sg.

84. Ver contra a hipótese, Wilamowitz 11.202 sg.; Festuguère,  Rev. Bibl. 44.381sg.; Thomas, 134 sg.

85. Que tal hipótese é supérflua e improvável, é a tese central do livro de Thomas.

86 . Ver contra a hipótese, Linforth, 56 sg.; D.W. Lucas, “Hyppolitus”, CL 40

(1946) 65 sg. Pode-se ainda acrescentar que a tradição pitagórica colocava

lado a lado, de modo explícito, caçadores e açougueiros como pessoas im

 puras (Eudoxo, frag. 36 Gisinger = Porfírio . vit. Pyth. 7). A visão órficadificilmente pode ser diferente desta.

87. Erro que continua sendo defendido. Ver R. Harder, Üeber Ciceros Somnium  

Scipionis, 121, n. 4; Wilamowitz, 11.199; Thomas, 51 sg.; Linforth, 147 sg.Entrçtanto, como ela ainda é repetida por estudiosos extremamente respei

tados, parece que vale a pena dizer algo mais: a) que o que é atribuído por 

Platão (Crátilo, 400C) a oiajUiíj) Op<|>sa é uma forma derivada de acü|ia

(touto xo ovopa) de ctcoÇsiv, iva oroÇriTai (r) \fuxr|): isto é posto fora

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172 O s GREGOS E O IRRACIONAL

de dúvida pelas palavras Kai ouSev Seiv 7iapayeiv ouô ev ypa|i|ia, que

contrasta <3(£>|J.a-ocoÇcü com aa>|ia~ar|na e o<n|ia-oiTpaivco; b) que

oro|aa-or||ia é atribuído na mesma passagem a Ttveç, sem maiores especi

ficações; c) que quando um autor diz “Algumas pessoas ligam 0 ü)|ia a

or|(ia, mas creio que foram provavelmente os poetas órficos que cunha

ram o termo derivando-o de ocoÇa)”, não podemos supor que "poetas

órficos” sejam o mesmo que “algumas pessoas” ou que estejam incluídos

ali. (Estou inclinado a pensar que é assim mesmo que [laXiota é entendi

do como qualificando coX 8iKr)v SiSoticrriç ktA.)

88 . Como colocou o senhor D. W. Lucas (CL 40.67), “o leitor moderno, con

fuso e desanimado pela dureza aparente de muita rel igião grega

convencional, está inclinado a procurar por toda a parte sinais de orfismo,

 pois sente que ele nos dá mais do que o que se espera no rm almen te da religião, e abomina a idéia de que os gregos também o exigissem”. Cf. também

Jaeger, Theology, 61. Não posso evitar a suspeita de que a “histórica Igreja

Órfica” como aparece por exemplo em Toynbee, Study o f History, V.84 sg.

será um dia citada como um exemplo clássico do tipo de miragem históri

ca que ocorre quando os homens projetam sem saber suas próprias

 preocupações sobre um passado distante.

89. Festugière,  REG 49.307; Linforth, XIII sg.

90. Paralelos entre Platão ou Empédocles e estas compilações não constituem,a meu ver, nenhuma garantia, a não ser que possamos excluir a possibili

dade dc que o autor da compilação tenha retirado a frase ou a idéia dos

mestres dc pensamento místico aceitos então.

91. Os céticos parecem ter incluído 1Ieródoto, lon dc Quios e Epigenes (nota 96

adiante), assim como Aristóteles. Ver a admirável análise de Linforth, 155 sg.

92. Platão,  República, 364E. A etimologia e o uso da palavra opaSoç suge

rem que o que Platão tinha cm mente não era tanto o ruído confuso do

excesso de palavras sendo recitadas, quanto o ruído confuso de uma gran

de quantidade dc livros cada qual propondo seu próprio nostrunv, é preciso

mais do que um para fazer um o |i a 8oç. Uma frase de Eurípides (Hip., 954),

 jioXÀcúVYp|i|.iai:cov Karevouç também ressalta a multiplicidade de autori

dades órficas, assim como sua futilidade. Como afirma Jaeger  (Theology, 

62), é anacrônico postular um "dogma” uniforme para os orfismos na Ida

de Clássica.

93. Platão, Crátilo, 400C; Eur.  Hipp. 952 sg. (cf. Ar. Ran. 1032, Platão,  Leis ,

782C); Platão,  Rep. 364E-365A.

94. Ziegler, loc. cit., 1380, parece certo quanto a este ponto, contra o ultra-cético Thomas. As palavras de Aristóteles no de cmiina 41 ()h 19 (= O.F. 

27), longe de excluir a transmigração do rol das crenças órficas, vai de al

gum modo confirmar sua inclusão ao mostrar que alguns escritores de

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O S XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 173

OpoiKí/ acreditavam ainda assim em uma alma separável do corpo e preexistente.

95. P itagóricos são apresen tados na comédia fingindo-se de vegetarianos estri

tos (Antifon, frag. 135 K.; Aristofon, Irag. 9 etc.) e até mesmo vivendo a pão e água (Alexis, trag. 221). Mas a regra pitagórica possuía várias fo r

mas; a mais antiga delas pode apenas ter proibido a ingestão de certos

animais “sagrados” ou de suas partes (Nilsson, “Early Orphism”, 206 sg.;

Delatte,  Études sur Ia lití. pyth., 289 sg.). A idéia de Gcopa-cfipoupa foi

 posta por Clearco (frag. 38 W.) na boca de um pitagórico real ou im aginá

rio chamado Euxiteos. Platão {Fédon, 62b) na minha opinião não sustenta

a visão de que tal idéia foi ensinada por Filolau; e não confio no fragm.en-

to 15 de “Filolau". Sobre a catarse pitagórica, ver a nota 119 adiante, e sobrea semelhança estreita e geral entre velhas idéias pitagóricas e órlicas, E.

Frank,  Platon u. d. sogen annten Pythagoreer, 67 sg., 356 sg., e Guthrie,

op. cit., 216 sg. As diferenças mais fáceis de serem reconhecidas não são

doutrinais, mas concernem ao culto (Apoio é uma figura central para o pi-

tagorismo, e Dioniso aparentemente para o orfismo - Op(|)iKa); o  status 

social (o pitagorismo é aristocrático, enquanto o orfismo - Op<|)im - pro

vavelmente não era); e sobretudo o fato de que o pensamento órfico

 permanecia em um nível mitológico, enquanto os pitagóricos numa dataantiga, senão do próprio começo, tentaram traduzir este modo de pensamento em termos mais ou menos racionais.

96. Diógenes Laércio 8.8 (= Kern, Test. 248). Clemente de Alexandria, Strom. 

1.21, 131 (= Test. 222). Acho difícil aceitarmos a identificação deste Epi-

genes com um membro obscuro do círculo socrático, feita por Linforth (op.

cit., 115 sg.); o gênero de interesses lingüísticos atribuídos a ele por Cle

mente (ibid., 5.8, 49 O.F. 33) e Ateneu (468c) sugere uma forte erudição

alexandrina. Mas ele era, de qualquer maneira, um homem que havia con

cluído um estudo especial sobre a poesia órfica, e diante de nossa pobreza

dc informações parece pouco sábio descartar suas afirmações de modo ca-

valheiresco como faz Delatte (Études sur Ia litt. pyth., 4 sg.). Não sabemos

em que suas considerações particulares estão baseadas, mas quanto à visão

geral de que os pitagóricos dos primórdios haviam participado na elabora

ção da Op(|>uc<x ele poderia ter apelado para a autoridade do século V a.C.,

não apenas a lon de Quios, mas também, creio eu, a Heródoto - se estou

con eto em compreender a íamosa frase em 2.81 como “Estas práticas egíp

cias concordam (opoÀ.OYeei RSV) com práticas chamadas órficas e

dionisíacas, que realmente tiveram sua origem no Egito e (algumas delas)

foram trazidas até ali por Pitágoras” (ver nota 80 acima). Como Heródoto

atribui mais além (2.49) a importação da fSotKxiKCx a Melampo, as práticas

importadas por Pitágoras são presumivelmente limitadas ao orfismo -

Op<j)iKa. Cl. outra passagem (2.123) em que Heródoto afirma conhecer, sem

   B   I   B   L   I  -   j

   T   E   C   A

   C   E   N   T   R   A   L

   /   U   F   P   E   S

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1 7 4 O s GREGOS E O IRRACIONAL

querer nomear, os plagiadores que importaram a doutrina da transmigra-

ção do Egito afirmando ser de sua autoria,

97. Algo do mesm o gêne ro pode ter acontecido na índia, onde a crença na

reencarnação também emerge relativamente tarde e parece não ser nem

indígena e nem sequer uma crença trazida de fora. W. Rubens,  Acta  

Orientalia 17 [1939] 164 sg., encontra seu ponto de partida em contatos

com a cultura xamanística da Ásia Central. Um fato interessante é que na

índia, como na Grécia, a teoria da reencarnação e a interpretação do so

nho como uma excursão psíquica fazem sua primeira aparição ao mesmo

tempo (Br. Upanishad 3.3 e 4.3; cf. Ruben, loc. cit., 200). Parece que eles

são elementos de um mesmo padrão de crenças. Se assim for, e se o xa-

manismo for a fonte do último, é porque ele provavelmente é a fonte dos

dois elementos.

98. Rohde, “Orpheus”,  Kl. Schríften, 11.306.

99. Nilsson,  Eranos 39 (1941) 12. Veja, contra, Gigon, Ursprung, 133 sg.

100. Heráclito, frag. 88. Cf. Sexto Empírico.  Pyrrh. Hyp. (citado abaixo, nota

109). Platão,  Fédon, 70 c - 72 d.

101. “Esta doutrina da transm igração ou da reencarn ação da alma encontra-se

 presente em muitas tribos se lvagens” ; Frazer, The Belief in Immortality,

1.29. “A crença em uma certa forma de reencarnação está universalmente

 presente em todas as simples civilizações coletoras de caçadores e pescadores”, P. Radin,  Primitive Religion, 270.

102. Platão,  Fédon, 69C;  Repúb lica, 363D; e para a crença pitagórica no Tár

taro, Aristóteles,  Anal. Post. 94b 33 (= Vorsokr. 58 C 1). Uma Viagem ao 

 su bmundo está entre os poemas atribuídos por Epigenes ao pitagórico

Cercops (nota 96). A imagem específica de um inferno de lama é nor

malmente chamada de “órfica” na autoridade não tão impressionante de

Olimpiodoro (in Phaed. 48. 20 N.). Aristides, oral. 22. 10K (p. 421 Dind.)

a atribui a Elêusis (cf. Diógenes Laércio 6 , 39). Platão (República, 363De  Fédon, 69C) é bastante vago. Suspeito tratar-se de uma noção popular 

derivada da consubs tancialidade entre o fantasma e o cadáver com a con

seqüente confusão de Hades com o túmulo: os estágios desta evolução

 podem ser retraçados no AiSeco Sopov eupcoevra em Homero (Odisséia, 

10.512; cf. Sófocles,  Ajax 1166, Ta(f>ov eupcoevra); /Ux|im ou àootcc de

Ésquilo (Eumênides, 387, cf. Blass ad loc.); e (5op|3opov  ko X vv  kou OKCOp

cxeivcov de Aristófanes (Rãs 145). Em algum ponto deste desenvolvimento

o inferno foi interpretado como uma punição apropriada aos não-inicia-dos ou “impuros” (tcúv ccKaOaptcúV); isto pode ser considerado como uma

contribuição de Elêusis ou do orfismo, ou de ambos.

103. Sobre a questão: ti a^ r|0e cn ;aT ov ÀeyeTat, o velho catecismo pitagórico

tinha uma resposta: OTt 7tovr|poi oi avGptúTiot (Jâmb. vit. Pyth.82 = Vorsokr., 45C4).

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O s XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 175

104. Platão,  Leis, 872DE. Cf. a visao pitagórica de justiça, Aristóteles.  Ética  a Nicômaco, 1132h21 sg.

105. yvm aei 8’aTepcojio-oç at> 6aip ex a jirma-c ex ov xa ç, citado como pitagó-

rico por Crisipo apud Aul. Gel. 7.2.12. Cf. Delatte,  Études, 25.106. Cf. cap. II,  supra.

107. Contra a atribuição de Burnet da ava|avi]oxç platônica aos pitagóricos

(Thales to Plato, 43) ver Robin, “Sur la doctrine de Ia réminiscence”,  REG 

32 (1919), 41 sg. (=  La pensée helién ique, 337 sg.) e Thomas, 78 sg. So

 bre o treinam ento de mem ória pitagórica, Diodoro e Iâmblico vit. Pyht. 

164 sg. Estes dois autores não estabelecem uma conexão disto com a me

mória de vidas passadas, mas parece razoável supor que este era o objetivo

final. Neste sentido Ava(iv r|Giç é um feito excepcional, algo que se atinge

apenas graças a dons ou treinamentos especiais; trata-se de uma realiza

ção espiritual altamente estimada na fndia de hoje. A crença nisto é

 provavelmente ajudada pela ilusão psico lógica curiosa a que algumas pessoas estão sujeitas, conhecida como “déjà vu”.

108. Iâmblico, vit. Pyth. 85 (= Vorsokr. 58 C 4). Cf. Crantor  apud  [Plutarco]

cons. acl Apoll. 27. 25B, que atribui a “muitos homens sábios” a visão de

que a vida humana é uma xi|icopia, e Arist. (frag. 60) onde a mesma vi

são é atribuída a oi xaç xeXexaç Xeyovxeç (poetas órficos?).

109. Heráclito, frag. 62 e 88 . Cf. Sexto Empírico,  Pyrrh. Hyp. 3.230: o 8eHepaKX eixoço ^r io iv o u Kat xo Çr|v Kai xo ano G av eiv Kai ev xco Çr|v

r ^ a ç eoxi Kai ev xco xe 0v av ai oxe pev y ap ripeiç Çra^ev, xa ç \|/t>xaç

rmffiv xeG vav ai Kai ev im iv xe0a<])0ai, oxe Se ripeiç a7 io0vrivoKopev,

xaç yuxaç avaPtouv Kai Çrjv, e Filon,  Leg. alleg. 1.108. A citação de

Sexto não é, certamente, verbatim, mas não parece seguro descontá-la com

 pletamente, como fazem alguns, por causa da sua linguagem “pitagórica”.

Para uma opinião similar, m antida por Em pédocles, ver abaixo nota 114;

e para desenvolvimentos tardios desta linha de raciocínio, Cumont.  Rev. de Phil. 44(1 920 ), 230 sg.

110. Aristófanes,  Rãs 420, ev xoiç avco veKpoioi e a paródia em Eurípedes,

ibid., 1477 sg. (Cf. 1082, Kai (^aoKo-uoaç ou Çev xo Çr|v, em que a dou

trina e apresentada como um climax de perversidade).

111. Ferecides, A 5 Diels. Sobre as duas almas em Empédocles, ver Gomperz,

Greek Thinkers, I. 248 sg. (tradução para o inglês); Rostagni,  II Verbo di  Pitagora , cap. VI; Wilamowitz,  Berl. Sitzb. 1929, 658 sg.; Delatte,

 Enthousiasme, 27. A incapacidade de distinguir de Saijicov levou

vários estudiosos a descobrirem uma contradição imaginária entre as  Pu-rificações e o poema Sobre a natureza, no que concerne à questão da

imortalidade. Contradições aparentes sobre o mesmo tema nos fragmen

tos de Alcmaeon devam talvez ser explicadas de maneira semelhante

(Rostagni, loc. cit.). Uma outra visão do “eu” oculto persistente, atribuí

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176 O S GREGOS E O IRRACIONAL

da por Aristóteles a “alguns pitagóricos" (de anima, 404* 17), apresenta

va-o como urna pequena partícula material (Çwnoc), uma noção que possui

grande quantidade de paralelos primitivos. Novamente, isto é bastante dis

tinto do sopro de alma que é o princípio da vida em um nível empíricomais comum. A noção de uma pluralidade de “almas” pode ter sido to

mada da tradição xamanística: a maior parte dos povos da Sibéria hoje

acredita em duas ou mais almas (Czaplicka, op. cit., cap. Xlli). Mas, como

 Nilsson disse ultim am ente, “os ensinamentos pluralísticos sobre a alma

estão fundados na natureza das coisas, e apenas nossos hábitos de pensa

mento acham surpreendente que um homem possua várias ‘almas’” (Harv. 

Theol. Rev. 42 [1949], 89).

11 2. Empédocles, A 85 (Aécio, 5.25.4); cf. frag. 9-12. Sobre o retorno da \|/uxn

ou do 7tv£"ü|-ia para o éter incandescente, Eurípides, Sup. 533, frag. 971, e o

epitáfio de Potidaea (Kaibel,  Epigr. gr. 21). Parece que ele se encontra ba

seado na idéia simples de que a\|/v>XTl é um sopro ou ar quente (Anaximenes,

frag. 2 ) que tende a se volatílizar quando liberado na atmosfera por oca

sião da morte (Empédocles, frag. 2, 4, kootvoio 8ikt|V apGevTeç).

113. Um paradoxo similar é atribuído a Heráclito por Clemente,  Paedag. 3.2.1.

Mas o que está faltando nos fragmentos de Heráclito é a preocupação

empedocleana com a culpa. Como Homero, ele está mais voltado para a n p i] .

114. A visão de Rohde de que um “lugar incom um ” (frag. 118) e “prados deAte" (frag. 121) são simplesmente o mundo dos hom ens tem o apoio dc

autoridade antiga e parece ser muito provavelmente correta. Ela foi desa

fiada por Maass e Wilamowitz, mas é aceita por Bignone ( Empedocle ,

429), Kranz (Hermes 70 [1935], 114, n. 1) e Jaeger, Theology, 148 sg.,

238.115. As qualidades imaginativas das  Purificações foram bem apresentados por 

Jaeger, Tlieology, cap. VIII, sobretudo 147 sg. Empédocles era um ver

dadeiro poeta c não um filósofo escrevendo em versos.116. Certas funções catárticas são exercidas pelo primitivo xamã da Sibéria

(RadlolT, op. cit., II. 52 sg.); dc tal modo que o papel de ra O apm iç seria

natural para o gregos imitadores.

117. O.F., 32 (c) e (d).

118. Platão,  República, 364; 8 ia O-uauov Kai miStocç riôovcov. Empédocles,

lrag. 143 prescreve a lavagem feita com água retirada com uma vasilha

dc bronze, de cinco fontes - o que recorda a “prescrição fútil” oferecida

 por um orador em texto dc Menandro (frag. 530, 22K.), oitio KpowcovTpicov uScm neptppavai, e a catarse praticada por xamãs Buryat com

água extraída dc três fontes (Mikhailovski, loc. cit., 27).

119. Aristoxeno. frag. 26, e a nota de Wehrli; Iâmblico, vil. Pyth. 64 sg.; 110-

114, 163 sg.; Porfírio, vit. Pyth. 33; Boyancé,  Le culte des Muses. Música

é algo muito usado por xamãs modernos para convocar ou banir espíritos

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OS XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 1 7 7

- trata-se da “língua dos espíritos” (Chadw ick.  JRA1  66 [1936], 297). E

 parece provável que o uso pitagórico da música derive em parte ao me

nos da tradição xamanística: cf. a EJiwSai pela qual se diz que os

seguidores trácios de Zalmoxis “curam a alma” (Platão, Carin., 156D-157 A).

12 0 . Empédocles, frag. 117.

121. Aristófanes,  Rãs 1032 (cf. Linforth, 70); Eudoxo apud Porfírio, vit. Pytli.

7. O vegetarianismo é associado aos mitos de mistério dos cretenses por 

Eurípides (frag. 472) c por Teofrasto (apud Porfírio, de abst. 2.21), e pode

ser que o vegetariano cretense Epimênides tenha tido um papel nesta di

fusão. Mas a outra forma de regra pitagórica. que proibia apenas a ingestão

de certas criaturas “sagradas", tais como o galo branco (nota 95 acima)

 pode der ivar perfeitam ente do xamanismo, um a vez que hoje em dia “an i

mais, especialmente pássaros que desempenham algum papel nas crenças

xamaníst icas , não podem ser mortos e nem mesmo molestados”

(Holmberg, op. cit., 500) - apesar dc uma proibição geral de com er carneremeter a apenas certos clãs entre os Buryat (ibid., 499).

12 2 . O “silêncio pitagórico” torna-se proverbial de ísócrates (11.29) em dian

te. lâmblico laia de um completo silêncio de cinco anos para os noviços

(vit. Pyth.  68 , 72), mas isto pode ser um exagero posterior. Sobre restri

ções sexuais, Aristoxeno, frag. 39 W; lâmblico, vit. Pyth. 132, 209 sg.; esobre relações sexuais como nocivas, Diógenes Laércio, 8. 9, Diodoro

10.9.3 sg. c Plutarco, Q. Conv. 3. 6 . 3, 654B. O celibado não é um requi

sito para o xamã siberiano de nossos dias. Mas vale notar que, segundo

Posidônio, o celibato era praticado por certos homens sagrados (xamãs?)

entre os trácios (Estrabâo, 7. 3. 3 sg.).

123. Hipólito (Ref. Iiaerl.30 = Empédocles B 110) acusa Marcion de emula

ção das Kocôaptai de Empédocles ao tentar abolir o casamento: Sraipei

ya p o y ap o ç K a ra Ep7t£§OKÀea to ev Kai reoiei ko

\\< x . Isto é explicado por uma outra afirmação que ele atribui ao mesmo Empédocles (ibid.,

7.29 = Emp. BI 15), de que a relação sexual ajuda nos conflitos de tipo

disruptivo. Não fica claro, no entanto, se Empédocles chegou até o pontode pregar o suicídio étnico.

124. Hipodamas apud  lâmblico, vit. Pytli. 82.

125. Paus. 8 . 37. 5 (= Kerm, Test. 194).

126. Wilamowitz, Glaitbc, II. 193, 378 sg.

127. Em especial Festugière,  Revue Bib lique 44 (1935) 372 sg. e  REG 49

(1936) 308 sg. Por outro lado, a antigüidade do mito é mantida - nemsempre sobre aquilo que me parece ser a base mais sólida - por Guthrie

(107 sg.), Nilsson (“Early Orphism”, 202) e Boyancé (“Remarques sur le

salut selon l’Orphisme",  REA 43 [1941], 166). O mais completo e cuida

doso estudo é o de Linforth, op. cit., cap. V. Ele se inclina para uma

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178 O s GREGOS E O IRRACIONAL

datação anterior, embora suas conclusões sejam, em alguns aspectos, ne

gativas a este respeito.128. Para o provável significado da atribuição de Onomácrito ver Wilamowitz,

Glaube II. 379, n. 1; Boyancé, Culte des M uses , 19 sg.; Linforth, 350 sg.Hesito também em construir muitas teorias com base nos achados no

Kabeirion tebano (Guthrie, 123 sg.) que seria uma prova impressionante

se houvesse algo que os conectasse diretamente com os Titãs ou com

aKapaopoç. Nem sequer recebemos qualquer auxílio da descoberta en

genhosa de S. Reinach (Rev. Arch. 1919, I. 162 sg.) de uma alusão ao

mito em uma das  pro blemata “adicionais” aristotélicas (Didot Aristole,

IV. 331. 15), pois a datação permanece incerta. A prova de Aten. 656AB

não é sufic iente para mostrar que este problema era conhecido por Filocoro.

129. Ver o Apêndice I; e sobre a conexão entre rito e mito, Nilsson, “Early

Orphism”, 203 sg. Aqueles que negam, como Wilamowitz, que o orfismo

mais antigo tivesse qualquer conexão com Dioniso, devem explicar os la

tos encontrados em H eródoto 2. 81 (ou eliminá-los adotando uma leitura

menos provável dos textos transcritos).

130. Ver a discussão acima.131. Píndaro, frag. 127B (133 S.) = Platão,  Mênon, 81BC. Esta interpretação

foi oferecida por Tannery,  Rev. de Phil. 23. 126 sg. O caso tem sido dis

cutido de modo bastante persuasivo por Rose em Greek Poetry and Life: 

 Essays Presenteei to Gilbert Murray, 79 sg. (cf. também sua nota em  Harv. 

Theol. Rev. 36 [1943], 247 sg.).132. Platão,  Leis , 701C. O pensam ento aqui é, infelizmente, tão elíptico quan

to a sintaxe é truncada; mas todas as explicações que assumem que xr|V

?L870nevnv n a X a i a v TtxaviKqv ^uaiv se referem meramente à guerra

dos Titãs, os deuses parecendo-me sofrer um desastre em uma passagem

e m r a a v x a jcaA.iv CKeiva aijivKopevonç (ou a<juK 0 nev0 iç, Schanz) que

não pa rece aplicável aos Titãs e nem m esmo aos homens, exceto se a raçahumana for considerada tendo brotado dos Titãs. Com relação à objeção

de Linforth (op. cit., 344) de que Platão estaria falando apenas de dege

nerados enquanto o mito teria leito de TixocviKr| (Jnjcnç uma parte

 perm anen te de toda a natureza humana, a resposta que podemos dar é cer

tamente a de que enquanto todos os homens possuem uma natureza titânica

em seus corações, apenas os degenerados “a demonstram e emulam”

(eJt iSe iKvnoi indica que e les es tão orgulhosos dis to , enquanto

(Xijicop-Evoiç significa que eles seguem o exemplo de seus ancestrais míticos).

133. Ibid., 854B: a uma pessoa atormentada por impulsos para o sacrilégio,

devemos dizer: co 0a u [ i a 0 i£, odk avGpcomvov ae kockov ouSe Beiov

Ktvei xo vuv eTii xriv vepocoXtav ítpoxpeTxov levai oiaxpoç 8e ae xtç

e(i([)x)0|xev0ç etc TtaÀaicov Kat aKa0apxcov xotç av0pa>7ioiç

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O s XAMÃS GREGOS E A ORIGEM DO PURITANISMO 179

aSiKimaxcov, 7tepi(|)Epo(J.evoç aÀ,ixr|piü)5r|c;. Os aSiicripaxa são normal

mente vistos como crimes cometidos pelos ancestrais imediatos da pessoa

(assim na Inglaterra etc.), ou pela própria pessoa em uma encarnação an

terior (Wilamowitz,  Platon I. 697). Mas a) se a tentação vier de algum

modo de atos humanos passados, por que ela é chamada ouk avGpúmivov

kockov?; b) por que ela é especificamente uma tentação de  sacrilégio?;

c) por que os atos originais a ra G a p x a xoiç avGpam oiç (palavras que

estão normalmente juntas e devem de fato ser tomadas deste modo, pois

evidentemente levam ao conselho na frase seguinte de buscar purgação a 

 part ir dos deuses )? Não posso resisitir à conclusão (que creio ter sido a tin

gida por Rathmann por outros meios em Quaestt. Pyth., 67) de que Platão

está pensando nos Titãs, cuja determinação irracional (oiaxpoç) assom

 bra os homens infe lizes onde quer que eles es tejam (7xepi(|>£poji£voç),tentando-os a emular o sacrilégio. Cf. Plutarco, de esu carn. I. 966C: xo

yap ev rtpiv aXoyov Kai aiaKxov Kai piaiov, ou Geiov <ov> a X k a  

8a i | i0viK 0V, oi TraÀaioi T u a v a ç co vo ^a aa v (que parece vir de Xenó-

crates), e sobre oioxpoç resultante da herança do mal pelo homem,

Olimpiodoro, in Phaed. 87.13 sg. N. (= O.F. 232).

134. Olimpiodoro, in Phaed. 84. 22 sg.: r|£ <j)pot>pa [...] coç -EVOKpaxriç,

Tixaviicri Eaxiv Kai eiç A io v w o v a7t0K0pv)(|)0Dxai (= Xenócrates, frag.

20). Cf. Heinze, ad loc., E. Frank,  Platon u. d. sog. Pythagoreer, 246; eas mais cuidadosas considerações de Linforth, 337 sg.

135. Deve-se admitir com Linforth que nenhum dos antigos escritores explici

tamente igualam o elemento divino, no homem, ao elemento dionisíaco.

Mas no meu modo de ver é possível mostrar que esta equação não é (como

sustenta Linforth, p. 330) a invenção de Olimpiodoro (in Phaed. 3. 2 sg.),

ou (como poder-se-ia sugerir) de sua fonte em Porfírio (cf. Olimpiodoro,

ibid., 85. 3). a) Ela aparece em Olimpiodoro, não meramente “como um

recurso desesperado para explicar uma passagem intrigante de Platão”

(Linlorth, p. 359), mas como uma explicação em termos míticos do con

flito moral e da redenção do homem, in Phaed. 87. 1 sg.: xov ev r|(4.iv

A iov uco v SiacnicojiEv [...] odxco 5’exovxeç T ixav eç e ope v ox av Se eiç

ekeivo at)(.t(3w|i£v, Aiovuaoi YtvojiEGa XEiE^eicopevoi axe^vcoç. Quan

do Linforth diz (p. 360) que a conexão destas idéias com o mito de Titã

“não é sugerida por Olimpiodoro e é meramente uma asserção gratuita

de estudiosos modernos”, ele parece ter deixado passar o trecho mencio

nado. b) lâmblico diz outra coisa dos velhos pitagóricos, vit. Pyth., 240,

TtapriyyeAAov ya p G ap a aXA,r|Xoiç |ar| S ia a m v xov ev ean x oi ç Geov.Aparentemente tem escapado dos estudiosos o fato de que ele está alu

dindo à mesma doutrina que Olimpiodoro (o uso do verbo Siaoixav

toma-o bastante claro). Não sabemos qual era a sua fonte; mas mesmo

lâmblico dificilmente apresentaria como um velho símbolo pitagórico algo

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80 OS GREGOS E O IRRACIONAL

que tinha acabado de ser inventado por Porfírio. Sua idade verdadeira não

 pode ser determinada ex atamente; mas é razoável supor que, como o pró

 prio mito de Titã, Porfírio a teria encontrado em Xenócrates . Se assim

for, Platão dificilmente terá ignorado o fato. Mas Platão possuía uma boa

razão para não utilizar este elemento do mito: ele podia iden tificar os im  pulsos irracionais juntamente com os Titãs, mas igualar o elem ento divino

no homem ao elemento dionisíaco, era algo repugnante para uma filoso

fia racionalista.

36. Keith,  Rei. and Phil. ofVeda arnl Upanishads, 579.

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 R  a c io n a l is m o   e   r e a ç ã o   n a I  d a d e  C  l á s s ic a

 VI

Os m aiores avanços de uma civil ização são processos que fazem  

tudo, ex ceto naufrag ar as soc iedades em que ocorrem.

A. N. Whitehead

 A J  os capítulos anteriores, tentei ilustrar a lenta formação do

' que Gi,bert Murray chamou, em conferência recentemente publicada, de “herança conglomerada” .1 Uma tal formação foi possível a partir de sedimentos deixados por sucessivos movimentosreligiosos, mas dentro de um quadro bastante específico. A metáfora geologica é aqui bastante profícua, pois o princípio que rege odesenvolvimento de uma religião é, de um modo geral e apesar dasexceções, um princípio de aglomeração e não de simples substituição. Muito raramente um novo padrão de crenças apaga

completamente o padrão anterior: ou o antigo padrão sobrevivecomo um elemento do novo - às vezes como um elemento semi-in-conscicnte -, ou os dois persistem lado a lado, incompatíveis de um

 ponto de vista lógico, mas aceitos ao mesmo tempo por diferentesindivíduos ou ate por um mesmo indivíduo. Como exemplo da primeira situaçao. vimos como noções homéricas como a dc ate, foramadotadas e transformadas no quadro da cultura de culpa arcaica.

omo exemplo da segunda situação vimos como a Idade Clássicaherdou toda uma série de imagens inconsistentes de “alma” ou deeu - sob a forma de um defunto vivo em seu túmulo, como umaigura sombria do Hades, como um bafo perecível derramado no ar 

ou a soi vido no éter, ou como um daemon revivido em outros cor pos. Apesar de variarem na idade e de serem derivadas de padrões

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182Os GREGOS E O IRRACIONAL

culturais distintos, todas estas imagens persistiram dentro do mesmo pano de fundo lógico do século V a.C.. Era possível levai umadelas a sério, ou até mais do que uma, ou mesmo todas - desde que

não houvesse nenhuma Igreja estabelecida para assegurar que umaera verdadeira e a outra falsa. Sobre questões como esta não existiauma “visão grega” úriica, mas apenas uma contusão de respostas con

flitantes.Esta foi, então, a herança conglomerada que restou ao final do

 período arcaico - algo passível de ser compreendido historicamentecomo reflexo de uma mudança nas necessidades humanas ao longo

dc muitas gerações, mas que intelectualmente não passa de um amontoado confuso. Vimos como Ésquilo tentou organizar esta confusão para retirar dali um sentido moral.2 Mas no período entre Esquilo ePlatão esta tentativa não seria renovada. Neste período, o hiato entre as crenças do povo c as crenças dos intelectuais, que já estavamimplícitas na obra de Homero ,3 se alarga até formar um abismo, pre parando o caminho para a dissolução gradual do conglomerado.

Tratarei de algumas conseqüências deste processo e das tentativasdc compreendê-lo nos capítulos restantes.O processo dc alargamento cm si não faz parte de meu tema.

Ele pertence à história do racionalismo grego, sobre a qual se temescrito com bastante freqüência.' Mas vale dizer alguma coisa a res peito. Uma coisa que pode ser dita é que a lase dc  Aujk lãnmg  oudc Iluminismo grego não foi iniciada pelos solistas. Parece bom dizê-lo, pois há pessoas que ainda falam dc Iluminismo e movimento

sofistico como se ambos fossem a mesma coisa, envolvendo-as sobum mesmo manto dc condenação ou (com menos freqüência) deaprovação. O Iluminismo grego é evidentemente muito mais antigo

 —suas raízes são da Jônia do século VI a.C. Ele aparece nas obiasdc Hecatcus, Xenófanes e Heráclito, prosseguindo na geração posterior com cientistas especulativos como Anaxágoras c Demócrito.Hecateus é o primeiro grego a admitir que achava a mitologia grega

“engraçada” ,5 e trabalhar para torná-la menos engraçada, por meiode explicações racionalistas; enquanto seu contemporâneo Xenófanes atacava os mitos de Homero e Hesíodo de uma perspectivamoral.6Mais importante para nossos propósitos é a afirmação de queXenófanes negava a validade da adivinhação (jiavxiKri).7 Caso istoseja verdade, significa que ele é praticamente o único pensador gre

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R a c i o n a u s m o   e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a 183

go a varrer de seu horizonte, não apenas a pseudociência da leiturade oráculos proféticos, mas todo um complexo de idéias sobre a noção de “inspiração” de que tratamos anteriormente. Mas a

contribuição decisiva de Xenólanes foi a descoberta da relatividadedas idéias religiosas: “Se o boi pudesse pintar um quadro, seu deus pareceria um boi” .8Dito isso, seria apenas uma questão de tempo para que todo o quadro de crença tradicional começasse a se afrouxar. Xenófanes era porém, ele próprio, um homem profundamentereligioso. Possuía sua fé privada em um deus “que não é como oshomens, nem na aparência e nem no espírito ” .9Mas ele estava consciente de que se tratava de fé e não de conhecimento. Nenhum

homem, afirma, teve ou terá algum conhecimento certo sobre os deuses. Mesmo que ele tenha a sorte de esbarrar na verdade exata arespeito deles, este homem não tem como saber que atingiu um talconhecimento, o que não impede que todos possamos ter opiniõesacerca do assunto.10 A distinção honesta entre o que é cognoscívele o que não é, ressurge repetidas vezes no pensamento do séculoseguinte (V a.C.)11 e constitui uma de suas glórias - é ali que se fundaa humildade científica.

Se nos voltarmos outra vez para os fragmentos de Heráclito,encontraremos toda uma série de ataques ao “conglomerado”, algunsdeles relacionados a tipos de crença, analisados por nós em capítulos anteriores. Sua negação da validade da experiência onírica já foicomentada.12 Heráclito fazia piadas sobre a catarse ritual, comparando a purgação de sangue com sangue, ao homem que tenta selavar da sujeira banhando-se na lama.13 Isto era um golpe direto nas

consolações de natureza religiosa. Assim também as suas queixasde que os “mistérios ritualizados” eram conduzidos de modo profano, embora lamentavelmente não saibamos em que se baseia a crítica,e nem exatamente a que mistérios ele se refere . 14 Há ainda o provérbio veicueç KOTtptcov £KpÀ;r|T0T£p0i (“os mortos são maisinfectos do que o estrume”) que pode ter sido visto com bons olhos por Sócrates, mas que significava um insulto para o sentimento dohomem grego comum —descarta-se com ele, em apenas três pala

vras, toda a bruma que cercava os ritos de sepultamento presentes,tanto na tragédia ática quanto na história militar grega, mas tambémtodo o emaranhado de sentimentos em torno dos cadáveres-1'antas-ma.15 Uma outra máxima de três palavras, r|0oç av0p«ma> 8ai|i(jOV

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184 O s GREGOS E O IRRACIONAL

'‘o caráter é o destino”, descarta de modo  similar o conjunto de cren-ças arcaicas a respeito de sorte inata e tentação divina .16Finalmente,há a situação de Heráclito, que teve a coragem de atacar o que ain

da era, em seu tempo, um traço dominante da religião popular grega- o culto às imagens - que ele via como o mesmo que falar a quemestá na casa, em lugar de falar com o dono da casa .17 Se Heráclitofosse ateniense, ele certamente teria sido apanhado por blasfêmia,como afirma Wilamowitz.18

 Não devemos, porém, exagerar a influência destes antigos pioneiros. Xenófanes, e mais ainda Heráclito, nos dão a impressão deserem figuras isoladas mesmo em se tratando da região da Jônia .19Muito tempo se passou até que suas idéias encontrassem eco no continente. O primeiro ateniense de quem podemos afirmar, com certeza, ter lido Xenófanes é Eurípides.20Ele também é apresentado como

tendo introduzido o ensinamento de Heráclito pela primeira vez ao público ateniense.21 Mas nos tempos de Eurípides o Iluminismo gregohavia sido levado bem mais longe do que então. Foi provavelmenteAnaxágoras que lhe ensinou, por exemplo, a chamar o sol divino

dc “torrão dourado” ,22 e pode ter sido este mesmo filósofo que ins pirou suas zombarias face aos videntes profissionais23 enquanto foram certamente os sofistas que o fizeram, juntamente com toda a suageração, pensar as questões morais mais fundamentais cm termosdc  Nomos e  Physis (“Lei”, “Costume” ou “Convenção” versus Natureza).

 Não pretendo dizer muita coisa sobre esta celebrada antítese,

cujas origens e ramificações foram cuidadosamente examinadas emlivro recente por um jovem estudioso suíço, Felix Hcinimann .24 Mastalvez não seja supérfluo observar que pensar nestes termos podialevar a conclusões muito diferentes, dependendo do significado atri buído às palavras cm jo g o .  Nom os podia eqüivaler ao“conglomerado”, concebido aqui como uma carga herdada cm virtude de hábitos irracionais; ou podia ser uma regra arbitrária imposta

conscientemente por certas classes visando seu próprio interesse; ouum sistema racional de lei de Estado, uma realização que distinguiaos gregos dos povos bárbaros. De modo similar,  Physis podia re presentar uma “lei natural” não escrita e de validade incondicionalem oposição aos particularismos dos hábitos locais; ou podia indicar os “direitos naturais” do indivíduo contra as arbitrariedades do

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R a c i o n a l i s m o   e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a185

Estado, o que poderia passar por puro imoralismo anárquico comosempie ocoire quando direitos são concedidos sem correspondentereconhecimento das obrigações - enfim, o “direito natural do mais

torte , conforme exposto no Diálogo de Mélos e também por Cáli-Cie., no Gorgias. Não é, portam», de surpreender quc — t e

t T d . T 08 Sa° la° ambígU0S’ acabasse ]evando a uma vasta quantidade de argumentos contraditórios. Mas em meio à névoa deconüoversias confusas e fragmentárias podemos perceber, de maneiraum tanto obscura, a polêmica cm torno de duas grandes problemáticas. Uma delas e a questão ética sobre a fonte e a validade das

obrigações morais e políticas. A outra é a questão psicológica sobre

s motivações da conduta humana - por que os homens se comportam dc um modo e não de outro, e como eles são induzidos a alterar 

nos m Z r ment° Para mdh0r? AC,UÍ’ a ^ s t ã o

Sobre esta problemática, a primeira geração de sofistas (em es pecial Protágoras) parece ter defendido uma visão cujo otimismo é

e d do d Um P°nt° ^ V'Sla retrosPectivo>™ s que pode ser entendido dc uma perspectiva histórica - “a virtude ou eficácia (aretê)

 podei,a ser ensinada” . Através de uma crítica às tradições, de umamodcrmzaçao do Nomos criado por seus ancestrais e eliminando osúltimos vestígios de ‘tolice bárbara” o homem poderia adquirir uma nova arte de viver. A vida humana poderia ser elevada a novos

, C n l “ iate Cf ° Ímmagináveis - Uma esperança assim é com- pieensivel em homens que haviam testem unhado o repentinouesarnento da prosperidade material de logo após das guerras mé

dicas, alem do florescimento inaudito do espírito grego que oacompanhou e quc culminaria nas geniais realizações da Atenas deci 1C ts. aia esta geraçao, a idade de ouro não era o paraíso perdi-o dc um passado obscuro, como Hesíodo acreditava em seu tempo paiaiso nao estava atrás, mas à frente, e não muito distante. Como

eclarou .obustamente Protágoras, para uma comunidade civilizadamesmo o pior dos cidadãos é supostamente melhor do que o mais

 bie selvagem.*' De fato, cinqüenta anos de Europa são melhores

do que um ciclo em Catai. Mas a história toma lamentavelmente umquando se trata de otimistas. Imagino então que se Tennyson

houvesse experimentado os últimos cinqüenta anos de Europa ele

recons,derado sua preferência. Protágoras também, antes de

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186O S GREGOS E O IRRACIONAL

morrer, tinha amplo espaço para rever a sua. A fé na ínexorabilida-de do progresso tinha um caminho ainda mais curto a percorrer em

Atenas do que teve na Inglaterra.27

 Naquele que considero um diálogo bem antigo, Platão colocaesta visão protagórica da natureza humana contra a visão socrática.Aparentemente os dois pensadores têm muito em comum. Ambosutilizam a linguagem militarista tradicional28 para a qual “bom” significa “bom para o indivíduo” , sem se distinguir de “proveitoso ou“útil”. Ambos também adotam a mesma abordagem intelectualistatradicional29 concordando, contra a opinião comum da época, quese um homem realmente soubesse o que é bom para si, agiria conforme este conhecimento .30 Cada um, no entanto, qualifica seuintelectualismo com um tipo diferente de reserva. Para Protagoras aaretê pode ser ensinada, mas não como uma disciplina teórica - nosa aprendemos diretamente, como uma criança aprende sua lmguamaterna.31 A transmissão não se faz por meio de um ensinamentoformal, mas através daquilo que os antropólogos chamam de “controle social”. Para Sócrates cm contrapartida, a aretê é (ou deve ser)

episteme, ou seja, um ramo do conhecimento científico. No dialogoem questão, ele chega até mesmo a se expressar como se o metodoapropriado para tal aprendizado fosse o cálculo refinado dc nossos prazeres c dores futuras. Estou disposto a acreditar que ele realmentefalava deste modo.32 Mas ele chegou também a duvidar que a arete  pudesse ser ensinada, e estou inclinado a aceitar esta visao comohistórica,33 porque para Sócrates a aretê era alguma coisa que brotava dc dentro para fora, não um conjunto de padrões dc

comportamentos a adquirir por hábito, mas uma atitude mental consistente, brotando de uma firme intuição sobre a natureza e osignificado da vida humana. No que se refere à sua autoconsisten-cia, a aretê se assemelha à ciência,34mas creio que estaríamos erradosem interpretar esta intuição como puramente lógica - ela envolve ohomem dc modo integral.35 Sócrates, sem dúvida, acreditava na ideiade “seguir um argumento até onde ele conduzisse”, mas achava quemuito freqüentemente ele levava apenas a novas questões e que casofalhasse era preciso seguir outros guias. Não devemos esquecer queele tomava tanto sonhos, quanto oráculos, extremamente a serio,-’ eque freqüentemente ouvia e obedecia a uma voz interna que sabiamais do que ele (se pudermos acreditar na palavra de Xenofonte,

ele a chamava muito simplesmente de “voz de Deus”).

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R a c i o n a l i s m o  e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a 187

Assim, nem Protágoras e nem Sócrates correspondem exatamente à imagem moderna e popular de “racionalista grego”. Mas oque nos parece estranho é que ambos descartem tão facilmente o pa

 pel da em oção na determ inação do com portam ento humanoordinário. Sabemos através de Platão que isto também parecia estranho aos seus contemporâneos. A respeito disso houve umaclivagem radical entre os intelectuais e o homem comum. “A maior  parte das pessoas”, diz Sócrates, “não vê o conhecimento como umaforça (iGXDpov), muito menos como uma força diretora ou dominante; elas pensam que um homem pode muitas vezes possuir 

conhecimento, sendo, contudo, governado por outra coisa: às vezes pela ira, outras vezes pelo prazer ou pela dor; às vezes pelo amor,muito freqüentemente pelo medo. Elas realmente pintam o conhecimento como um escravo de tudo isso” .38 Protágoras concorda queesta é a visão comum, mas considera que ela não merece discussão- “o homem comum sempre dirá alguma coisa” .39 Sócrates, que decide discuti-la, termina por invalidá-la, traduzindo-a em termosintelectuais: a proximidade de um prazer ou dor imediata conduz a

falsos juízos, análogos a erros de perspectiva visual - uma aritmética moral permitiria corrigi-los.4(l

E improvável que semelhantes raciocínios tenham impressionado o homem comum. O homem grego havia sempre sentido aexperiência da paixão como algo misterioso e aterrorizante, como aexperiência de uma lorça que o habitava e o possuía muito mais doque alguma coisa possuída por ele. A própria palavra  pathos é umtestemunho disso: como o termo latino equivalente passio, ela se re-lere a algo que “acontece” ao homem, algo de que ele é vítima

 passiva. Aristóteles compara o homem em estado de paixão aos homens adormecidos, loucos ou embriagados - a razão dc todos elesestá em estado de suspensão.41 Vimos em capítulos anteriores42comoos heróis de Homero e os homens da era arcaica interpretaram estaexperiência em termos religiosos —como ate , como uma comunicação de menos ou como a ação direta de um daemon que faz da mente

e do corpo humanos seu instrumento. Esta é a visão que as pessoassimples tinham: “o homem primitivo, sob a influência de uma forte

 paixão, considera-se possuído ou doente, o que aliás é para ele a mesma coisa” .43 Este modo de pensar não estava morto nem sequer nosúltimos momentos do século V a.C. No final de Medéia, Jasão ex

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188 O s GREGOS E O IRRACIONAL

 plica a conduta de sua mulher simplesmente como o ato de um alas tor  - um daemon criado por crimes não reparados. Em Hipólito, ocoro pensa que Fedra pode estar possuída, e ela própria fala primei

ramente da ate de um daemon para descrever sua condição .44Mas para o poeta, e para a parte educada de seu público, esta

linguagem não tem apenas a força do simbolismo tradicional. O mundo dos daemons se foi, deixando o homem sozinho com suas

 paixões. Isto é o que confere às idéias de Eurípides sobre o crime,uma comovente intensidade - ele nos coloca diante de homens emulheres desprotegidos, confrontando o mistério do mal; mas não

mais como algo estranho, a investir contra a razão do exterior, e simcomo uma parte do ser dessas pessoas - "n0oç avBpconco Satpcov.Porém, não é por deixar de ser sobrenatural que o mal deixa de ser misterioso e aterrorizante. Medéia sabe que está em poder, não deum alastor, mas de seu próprio “eu” irracional (thurnos). Ela suplica misericórdia a este “eu”, do mesmo modo como um escravoimplora misericórdia a um mestre brutal.45 Mas a súplica é em vão,

 pois os motivos da ação estão ocultos no thumos, lá onde nenhumarazão ou piedade pode chegar. “Sei da perversidade que estou prestes a cometer, mas o thumos é mais forte do que os meus propósitos- thumos, a raiz dos piores atos humanos” .46Com estas palavras eladeixa o palco; c quando retorna já condenou a si mesma e às crianças a uma vida de infelicidade jamais vista. Para Medéia não existemas “ilusões de perspectiva” socráticas; ela não comete nenhum errocm sua aritmética moral, assim como não confunde sua paixão com

um espírito maligno. E nisso que reside a qualidade suprema de suatragédia.

 Não sei se o poeta tinha Sócrates em mente ao escrever Medéia. Mas uma rejeição consciente da teoria socrática foi vista ,47 eno meu modo de ver com razão, nas famosas palavras que ele coloca na boca de Fedra três anos depois. A má conduta, afirma ela, nãodepende de uma falha de intuição, “pois muita gente possui um bom

entendimento”. Sabemos e reconhecemos nosso bem, mas falhamosao agir sobre este conhecimento - uma espécie de inércia nos obstrui, ou então somos distraídos de nossos propósitos por “algum prazer ” .48 Isto realmente parece remeter a um ponto de controvérsia, pois vai muito além do que requer ou sugere a situaçãodramática .49 Tais passagens não estão sequer isoladas - a impotên

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R  a c i o n a l i s m o   e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a 1 8 9

cia moral da razão é afirmada mais de uma vez em fragmentos de peças perdidas.50 Mas a julgar apenas pelas peças conservadas, a preocupação central de Eurípides, em sua fase final, não era tanto aimpotência da razão quanto uma dúvida ainda maior sobre se poderíamos enfim vislumbrar algum propósito racional na ordenação da

vida humana e no governo do mundo.51 Esta tendência culmina nasBacantes, cujo conteúdo religioso é - como disse um crítico recente52 o reconhecimento de um “Além”, exterior às nossas categoriasmorais e inacessível à nossa razão. Não defendo a tese de que é pos

sível extrair das peças de Eurípides uma consistente filosofia da vida

(nem devemos exigir tal coisa de um dramaturgo escrevendo duran

te uma era de dúvidas), mas se é necessário pôr um rótulo nelas -conforme sugeri certa vez53 - ainda creio que a palavra irracionalis-ta é a mais adequada.

Isto não implica que Eurípides seja um seguidor da escola da Physis , que fornecia à fraqueza humana uma elegante desculpa com

sua declaração dc que as paixões são “naturais” e portanto corretas,sendo a moralidade por sua vez uma convenção e portanto um grilhão a ser rompido. “Seja natural”, afirma a Injusta Causa das

 Nuvens, “div irta -se, ria para o mundo, não tenha vergonha denada” .54 Alguns personagens de Eurípides realmente seguem esteconselho, ainda que de maneira menos despreocupada. “A naturezaquis assim”, afirma uma jovem transviada, “e a natureza não prestaatenção a regras - somos nós, mulheres, que fomos feitas para estarmos atentas ” .55 “Não preciso de seu conselho”, diz umhomossexual; “posso ver por conta própria, mas a natureza me obrigaa agir assim” .56 Mesmo o mais profundamente enraizado dos tabus

humanos, a proibição de incesto, é descartada com 3 observação deque “nela não há nada dc vergonhoso, mas pensar nisso é que o tor-na vergonhoso”.51Havia provavelmente, no círculo de convívio deEurípides, jovens que falavam deste modo (conhecemos, aliás, ti pos similares na nossa modernidade). Duvido porém que o poetacompartilhasse tais opiniões, pois os coros de sua peças saem repetidamente de sua trilha para denunciar, sem grande relevânciadramática, certas pessoas que “desconsideram a lei para satisfazer os impulsos desregrados” cujo objetivo é en KaKxropyeiv (“agir errado e escapar impune”). São pessoas cujas teoria e prática estão“acima das leis” e para quem aidos e aretê são meras palavras.58 Es

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190 O s GREGOS E O IRRACIONAL

tas pessoas sem nome são certamente os homens da  Physis, os políticos “realistas” que encontramos em Tucídides.

Eurípides então, se estou certo, reflete não apenas o Iluminis-

mo grego, mas também a reação ao Iluminismo - em todo o casoele reagiu contra a psicologia racionalista de alguns de seus expoentes e contra o astuto imoralismo de outros homens do período. Paraa violência da reação pública, existem outros testemunhos. Esperava-se que o público que assistiu às  Nuvens gostasse do ataque feitoà “loja de idéias”, ligando pouco para saber se Sócrates era ou nãoatacado juntamente com os demais. Mas escritores satíricos são mástestemunhas e com bastante boa vontade é possível crer que as Nu

vens não passa de uma brincadeira amigável da parte deAristófanes.59 Deduções mais seguras podem talvez ser extraídas deum pequeno fato menos conhecido. Um fragmento de Lísias60 remete à existência de certo clube de nome curioso e chocante. Seusmembros o chamavam Ka.K05at|J0Viatai, paródia profana do nomeA y a0oôai(i .ovi0 t a t [adoradores do infortúnio, adoradores do

 bem] que os clubes sociais às vezes adotavam. Lidell e Scott traduzem o termo como “adoradores do diabo”, e este seria o significadoliteral. Mas Lísias está sem dúvida certo ao dizer que eles escolheram o nome para “fazer troça dos deuses e dos costumes de Atenas”.Ele nos conta, além disso, que os membros decidiram combinar os

 jantares cm dias de azar (r |ji£poa anocppaSeç), o que sugere que oobjetivo do clube era escarnecer da superstição, por uma provocação deliberada aos deuses, fazendo o máximo de coisas azaradas

 possível - incluindo a adoção de um nome de azar. Pode-se achar 

isso algo inofensivo. Mas segundo Lísias, os deuses não acharamgraça - muitos dos membros do clube morreram jovens, e o únicosobrevivente, o poeta Cinésias,61 foi atingido por uma doença crônica tão dolorosa que era melhor ter morrido. A meu ver, esta estóriasem importância parece ilustrar bastante bem duas coisas. Primeiro,o sentido de liberação - no caso uma liberação de uma série de regras sem sentido e de sentimentos irracionais de culpa -, algo queos sofistas trouxeram consigo e que tornou seus ensinamentos tão

atraentes a jovens inteligentes e bem-humorados. Em segundo lugar, ilustra o quão forte foi a reação do cidadão médio contra oracionalismo, já que Lísias contará com o horrível escândalo do clubecitado para descreditar posteriormente o testemunho de Cinésias emação judicial.

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192 Os GREGOS E o IRRACIONAL

sos. Somos então levados a admitir que havia entre as massas umfanatismo religioso exacerbado, e que ele era utilizado pelos políticos com o objetivo de atingir seus objetivos. Esta exacerbação tinha,

com certeza, uma causa. Nilsson sugeriu71 que as massas foram fustigadas por adivinhos profissionais que viam no avanço do racionalismo uma ameaça a seu prestígio, e até mesmo a seu meio de subsistência. É bem provável.

O legislador que propôs o decreto responsável pela série de ações judiciais que se seguiram era o adivinho profissional Diopeites. Anaxágoras havia exposto a verdadeira natureza dos “presságios ” ,72enquanto Sócrates possuía seu “oráculo” próprio73 que também pode

ter provocado ciúmes.74 Entretanto, a influência dos adivinhos tinhalimites. A julgar pelas constantes piadas que Aristófanes lhes diri

ge, eles não eram tão amados assim, ou pelo menos não gozavamde plena confiança (exceto em momentos de crise75). Como os políticos, eles podiam explorar o sentimento popular, mas dificilmente

 participavam dc sua formação.Mais importante talvez foi a influência exercida pela histeria

dos tempos de guerra. Se admitirmos que as guerras projetam sorii- bras para os tempos vindouros e deixam distúrbios emocionais atrásde si, veremos que a era dc perseguições coincide muito dc pertocom a mais longa c desastrosa guerra da história grega. Tal coincidência seria dificilmente algo acidental. Foi observado que “emtempos dc perigo para uma comunidade, a tendência geral à conformação sofre um grande fortalecimento: o rebanho se agrupa demaneira compacta c se torna mais intolerante do que nunca diante

de opiniões ‘esquisitas’”.76 Vimos esta observação confirmada emduas guerras recentes, e podemos afirmar que as coisas não eramdiferente na antigüidade. O mundo antigo tinha, na verdade, umarazão consciente para insistir na conformação à religião vigente nos períodos de guerra, durante os quais há apenas razões inconscientes. É que ofender os deuses por meio dc uma dúvida em torno desua existência, ou por considerar o sol uma pedra, já é arriscado em

tempos de paz, tomando-se durante a guerra praticamente uma traição - eqü ivale a ajudar o inimigo, po rque a religião era dcresponsabilidade coletiva. Os deuses não se contentavam em atingir com maldições o indivíduo que os ofendia - I-Iesíodo não afirma quecidades inteiras sofriam freqüentemente pela ação de um único mau

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elemento?77 Que tais idéias ainda estivessem muito vivas nas mentes da plebe ateniense é algo evidente pela enorme confusão histéricacriada com o episódio da mutilação de Hermeus.78

Cieio que isto constitui parte da explicação - um tenor supersticioso baseado na solidariedade da cidade-estado. Gostaria de acreditar que esta explicação cobre tudo. Mas seria desonesto não

reconhecer que o novo racionalismo trazia consigo perigos para aordem social que eram tanto reais quanto imaginários. Ao descartar a herança conglom erada” muitas pessoas descartavam também asíestiições religiosas que haviam mantido o egoísmo humano sob controle. Para homens de rígidos princípios morais - como Protágorasou Demócrito - isto não importava: a consciência deles era bastante adulta para se erguer sem necessidade de amparo. Com a maioria

de seus pupilos porém era diferente. Para eles, a liberação do indivíduo signilicava uma liberdade ilimitada de auto-afirmação; significava direitos sem obrigações (a não ser que tomemos aauto-aliimação como uma obrigação); “aquilo que seus pais denominavam autocontrole era chamado por eles de desculpa por covar

dia . Tucídides atribui isso à mentalidade de guerra, e não restadúvida de que esta foi a causa imediata do fenômeno. Wilamowitzobservou corretamente que os autores do massacre de Corcira não

 piccisaiam aprender sobre transvalo ração dos valores” num ciclode conferências proferidas por Hípias. O novo racionalismo não ca

 pacitava os homens a se comportarem como animais - os homenssempre foram capazes de agir violentamente. Mas ele os tornou ca

 pazes de justificar sua brutalidade para si próprios, e isto numa época

em que as tentações externas a uma conduta brutal eram particularmente fortes. Como alguém declarou a respeito de nossa própria erade luzes , raramente tantas crianças foram jogadas fora jun to comtão pouca água de banho.8HNisso reside o perigo imediato, um perigo que sempre surge quando uma “herança conglomerada” entra emcolapso. Nas palavras do professor Murray: “a antropologia pareceindicai que estas heranças conglomeradas’ não têm praticam ente

nenhuma chance de se mostrarem verdadeiras ou sensatas; por outro lado, que nenhuma sociedade pode existir sem elas ou mesmosubmeter-se a qualquer ajuste drástico delas sem incorrer em perigos sociais.” 81 Há algo desta última verdade nas mentes daquelesque condenaram Sócrates por corromper os jovens. Seus temores

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194 O S GREGOS E 0 IRRACIONAL

não eram infundados; mas como procedem as pessoas quando sentem medo, eles acabaram atacando com armas erradas os homens

errados.

O Iluminismo grego também afetou o tecido social de uma maneira ainda mais perene. O que Jacob Burckhardt disse sobre areligião do século XIX - que se tratava de “racionalismo para poucos e magia para muitos” - pode ser dito no geral para a religião

grega do século V a.C. em diante. Devemos agradecer ao Iluminis-mo e à ausência de educação universal, a radicalização do divórcioentre a crença da maioria e a crença da minoria, com prejuízo para

ambas. Ao que parece, Platão é quase o último intelectual grego a possuir verdadeiras raízes sociais - seus sucessores, com muito poucas exceções, dão a impressão de existirem à margem da sociedadee não como parte dela. São “sapientes” primeiro, cidadãos depois(ou nem sequer depois). Suas atuações diante de realidades sociaisdo momento são por isso mesmo incertas. Trata-se de um lato comum. O que se nota menos freqüentemente é a regressão da religião popular na era do Iluminismo grego. Os primeiros sinais desta re

gressão surgem durante a guerra do Peloponeso, e sem dúvida,devem-se em parle à própria guerra. Por debaixo das tensões queela gerou, as pessoas começaram a se voltar sutilmente para o quetinha havido antes das dilíceis realizações da era de Péricles. Fendas começaram a surgir no tecido social, e elementosdesagradavelmente primitivos eclodiram aqui e ali por entre as lendas. Quando isto se deu, já não havia mais qualquer demonstraçãoefetiva de crescimento de tais elementos. À medida em que os intelectuais se enfurnavam num mundo próprio, a mente popular iaficando cada vez mais desprotegida, embora devamos lembrar queos poetas cômicos continuariam ainda a agir por várias gerações. Oafrouxamento dos laços de religião civil criou uma situação em queos homens ficaram livres para escolher seus deuses, em vez de sim plesmente idolatrá-los. Um número crescente de pessoas retornou aos prazeres e confortos dos primitivos com um suspiro de alívio.

Concluirei este capítulo com alguns exemplos do que chamot ’ a • yo

de regressão. Já tivemos ocasião de notar uma primeira ocorrência —a dem anda cada vez maior por curas mágicas que, no espaço deuma ou duas gerações, fez Asclépios passar de herói menor a deusmaior, transformando seu templo, em Epidauros, num local de pe

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R a c i o n a l i s m o   e   r e a ç à o   n a I d a d e C l á s s i c a 1 9 7

 N o t a s   d o   c a p í t u l o   VI

1. Gilber t Murray, Greek Studies, 66 sg.

2. Cf. cap. II, supra.3. Este ponto é levantado com bastante ênfase, mas com algum exagero, por 

Pfister,  Religion d. Grieschen u. Rõmer, Bursian’s Jahresbericht, 229 (1930),

219. Cf. cap. II, supra.

4. Ver, em particular, o recente livro de Wilhelm Nestle, Vom Mythos zum Lo 

 gos, cuja meta é exibir “a substituição progressiva do pensamento mitológico

 pelo pensamento racional entre os gregos” .

5. Hecateus, frag. 1; cf. Nestle, op. cit., 134 sg. Hecateus racionalizou os re

manescentes mitológicos como Cerbero (frag. 27), e possivelmente todosos demais horrores de  xa ev Aiôou. Do seu conselho aos concidadãos para

se apropriarem para usos seculares dos tesouros do oráculo de Apoio em

Brânquida, podemos inferir que ele era aSeiGiSaijxcov (Heródoto). Cf.

Momigliano, Atene e Roma, 12 (1931), e o modo pelo qual Diodoro e Plu-

tarco apresentam a ação similar de Sula (Diodoro, frag. 7; Plutarco, Sula 

12).

6. Xenófanes, frag. 11 e 12.

7. Cícero, divinatione 1. 5; Aécio, 5. 1.1 (= Xenófanes, A 52). Cf. suas ex

 plicações natura listas do arco-íris (frag. 32) e do fogo de Santo Elmo (A

39), ambas tradicionais.

8. Xenófanes, frag. 15 (cf. 14 e 16).

9. Idem, frag. 23. Cf. Jaeger, Theology, 42 sg. Como afirma Murray (op. cit.,

69), “Esse ‘ou em pensam ento ’ dá o que pensar. Lem bra o árabe místico

medieval que dizia que chamar Deus dc ‘justo’, era tão loucamente antro

 pológico, como dizer que Ele tinha barba” . Cf. o Deus dc Heráclito para o

qual as distinções humanas de “justo” e “injusto” são sem sentido, pois ele

 percebe tudo como sendo justo (frag. 102 Diels).

10. Frag. 34.

11. Heráclito, frag. 28; Almaeon, frag. 1; Hipócrates, vet. med. I, juntamente

com Festugière, ad loc.; Górgias,  Hei. 13; Eurípides, frag. 795.

12. Cf. cap. IV,  supra.

13. Heráclito, frag. 5. Se o fragmento 69 merece confiança, Heráclito não dei

xou de lado o conceito de catarse, mas pode tê-lo transposto, como Platão,

 para o plano moral e intelectua l.

14. Frag. 14. A referência anterior a |3ockxoi e Àrivat sugere que ele tinha es pec ialm ente em mente mistérios dionisíacos (e não “órficos” ), mas sob a

forma pela qual ela aparece, sua condenação parece não estar limitada a

tais mistérios. Se ele queria condenar os mistérios enquanto tais, ou ape

nas seus métodos, não pode ser determinado com exatidão a meu ver,

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198 O s GREGOS E O IRRACIONAL

embora esteja claro que ele tinha pouca simpatia pelos (ruaxcu. O frag. 15

não lança nenhuma luz sobre a questão, mesmo se estivermos certos quan

to ao seu sentido: os (j>aA.À,iKa não eram um |iu<3Tr|piov. Quanto à equação

muito discutida de Dioniso e Hades no fragmento, tomo como um paradoxo heraclítico, e não uma “doutrina de mistérios órficos”, e estou inclinado

a concordar com aqueles que vêem nisto uma condenação dos (|)aXXiKa, e

não uma desculpa para eles (a vida dos sentidos é a morte da alma, cf. frag.

77, 117, e Diels,  Herakleitos, 20).

15. Frag. 96. Cf. Platão,  Fédon, 115C; e para os sentimentos adversos, capítu

lo V,  supra.

16. Frag. 119; cf. capítulo II,  supra. O frag. 106 ataca de modo similar a su

 perstição sobre dias “de so rte” e dias “de azar” .

17. Frag. 5. Sobre o culto moderno a ícones sagrados (estátuas sendo proibi

das), ver B. Schmidt, Volksleben, 49 sg.

18. Wilamowitz, Glaube II. 209. O significado de Heráclito como um

 A u fk láurer  é corretamente enfatizado por Gigon, Untersuchungen zu 

 H era kli t, 131 sg. (apesar dc me parecer uma interpretação questionável do

frag. 15) e por Nestle, op. cit., 98 sg. Sua doutrina tem obviam ente outros

aspectos menos importantes, m as eles não concernem ao tema deste livro.

19. Cf. Xenófanes, frag. 8; Heráclito, frag. 1, 57, 104 etc.

20. A similaridade entre Eurípides (frag. 282) e Xenófanes (frag. 2) foi notada por Ateneus e parece grande demais pa ra ser ac idental; cf. também Eurípi

des,  Hei: 1341-1346 com Xenófanes A 32 e B 11 e 12. Por outro lado, a

semelhança de Ésquilo, Sup. 100-104 com Xenófanes B 25-26, apesar dc

interessante, é dificilmente específica o bastante para estabelecer que Es

quilo havia lido ou ouvido o ioniano.

21. Diógenes Laércio 2. 22. A crítica dc Heráclito ao ritual irracional exerce

de fato influências sobre Eurípides (Nestle,  Eurípides , 50. 118); embora tal

influência não tenha que ser necessariamente um empréstimo direto (Gigon, op. cit., 141). Eurípides é descrito como um notável colecionador de

livros (Aten. 3A; cf. Eurípides, frag. 369 sobre os prazeres da leitura, e Aris-

tófanes,  Rãs 943).

22. Eurípides, frag. 783.

23. Cf. P. Decharme,  Euripide et 1'esprit de son théâtre, 96 sg.; L. Radermacher,

 Rh. Mus. 53 (1898), 501 sg.

24. F. Heinimann,  Nomos und Physis (Basel, 1945). Para uma bibliografia dos

estudos anteriores, ver W.C. Greene,  M oira, App. 31.25. Cf. Heródoto I. 60. 3: cmeicpiOri £K Tccdouiepot) tod Papfiapo-u eBveoç

xo EAA,t| v i k o v , eov Kat ôe^ tanepov Kat eu^Oi/r iç r |?u9io \)

a7rriA,À,a'yixevov iiaAAov.26. Platão,  Pro tágoras, 327CD.

27. Uma medida do declínio repentino da confissão é o tom diferente adotado

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2 0 0 O s GREGOS E O IRRACIONAL

contra a idéia de tratar |a.avTiKT| como um substituto para “contar, medir e

 pesar” (Xen.,  Mem. 1. 1 .9 ); ele era um suplemento e (como no caso do

oráculo de Querefonte) um estímulo ao pensamento racional, e não um su

cedâneo para ele.37. Xenofonte,  Apologia de Sócra tes 12, 0eo\) |íoi (fxjovr) (jicavecai. Cf.  Mem.

4. 8. 6; Platão (?).  Alc. I, 124C.

38. Platão,  Pro tágoras , 352BC.

39. Ibid., 353A.

40. Ibid., 356C-357E.

41. Aristóteles,  Ética a Nicômaco, 1147“ 11 sg.42. Cf. caps. I e II,  supra.

43. Combarieu,  La musique et la magie (Études de philologie musicale, III [Pa

ris, 1909]), 66 sg., citado por Boyancé, Culte des Muses, 108. Platão fala

de animais tomados por desejo sexual como vooouvxa ( Banquete , 207A);

e de fome, sede e paixão sexual como Tpia voorujoaa (Leis, 782E 783A).

44. Eurípides,  Medéia 1333;  Hip. 141 seg., 240. M. André Rivier, em seu in

teressante e original  Iissa i sur le tragique d'E urip id e (Lausanne, 1944),

 pensa que é im portan te tomar estas op iniões a sério: Medéia é literalmente  

 po ssuída por um diabo (p. 59), e um a mão sobrenatural está derram ando

um veneno na alma de Fedra. Mas acho isto difícil de aceitar, no que tange

a Medéia. Ela, que vê mais fundo nas coisas do que o homem de mente

convencional (Jasão), não utiliza nada desta linguagem religiosa (contraste

com a Clitemnestra de Esquilo,  Agam. 1433, 1475 sg., 1479 sg.). E Fedra

também, quando levada a enfrentar sua situação, analisa isto em termos pu

ramente humanos (sobre o significado de Afrodite ver “Eurípedes lhe

Irrationalist”, CR 43 [1929], 102). As Troades são decisivas para a atitude

do poeta: Nelas, Helena culpa a interferência divina (940 sg., 948 sg.) por 

sua má conduta, apenas por se vincularem à réplica de Hécuba, (j.r\

oc|ja<|>r|eiç jcoiei <|>£ouç to aov kcxkov Kociaouaa, |ít| ou TCuxnç co^ouç(981 sg.)

45.  Medéia, 1056 sg. Cf. Heráclito, frag. 85: Oupco p.ax£C>9oa xoí^ctov o yap

av 0e^r|, viaotÇ coveitai.

46. Ibid., 1078-1080. Wilamowitz desconsidera uma passagem da  Medéia que,

do ponto de vista de um produtor moderno, diminui a eficácia do “pano”.

Mas é mantendo o hábito mental de Eurípides que ele deve fazer Medéia

generalizar sua auto-análise, como Fedra. Meu caso, ela sugere, não é úni

co: há guerra civil em todo coração humano. E, de fato, estas linhastornaram-se um exemplo de texto sobre conflito interior (ver capítulo VIII,infra, nota 16).

47. Wilamowitz,  Einleitung i. d. gr. Tragoedie, 25, nota 44; Decharme,  Euripide 

et 1‘esprit de son théâtre, 46 sg.; especialmente Snell,  Philologua, 97 (1948),

125 sg. Tenho muito mais dúvidas a respeito da suposição de Wilamowitz

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R  a c i o n a l i s m o   e   r e a ç à o   n a I d a d e C l á s s i c a 201

(loc. cit.) e de outros de que  Prot., 352B é a “resposta" de Platão (ou de

Sócrates) a Fedra. Por que Platão deveria julgar necessário responder às

observações casuais de uns personagens e de uma peça escrita há mais de

30 anos? E se ele julgou deste modo, ou se ele sabia que Sócrates havia

agido assim, por que não citaria Eurípides nominalmente como fez em ou

tra passagem (Fedra não pode mencionar o nome de Sócrates, mas este pode

mencionar o de Fedra)? Não vejo nenhuma dificuldade em supor que “os

muitos” em  Prot., 352B são apenas muitos: o homem comum nunca igno

rou o poder da paixão, na Grécia ou em qualquer outro lugar, e no trecho

isto lhe é creditado sem qualquer sutileza.

48. Eurípides,  Hip., 375 sg.

49. Para uma tentativa de relacionar a passagem como um todo à situação dra

mática à psicologia de Fedra, ver CR 39 (1925), 102 sg. E cf. Snell,  Philolo  gus, loc. cit., 127 sg., com quem estou atualmente inclinado a concordar.

50. Cf. lrag. 572, 840, 841 e o discurso de Pasifae em defesa própria. (Berl. 

 Kl. Texte, II. 73 = Page, Gk. Lit. Papyrí, I. 74). Nos últimos dois fragmen

tos a linguagem religiosa tradicional é utilizada.

51. Cf. W. Schadewaldt,  Monolog u. Selbstgesprãch , 250 sg. a “tragédia da to

lerância substitui a “tragédia do  path os”. Devo supor, entretanto, que o

Chrysippus, em bora uma peça tardia (produz ida juntam ente com a

 Phoenissae), era uma tragédia de  pathos: tornou-se, como  Medéia , umexemplo do conflito entre razão e paixão (ver Nauck sobre frag. 841), re-

enfatizando a questão sobre a irracionalidade humana.

52. Cf. André Ri vier,  Essai su r le tragique cTEuripide, 96 sg. Cf. minha edição da peça, p. XL sg.

53. Dodds, CR 43 (1929), 97 sg.

54. Aristófanes,  Nuvens, 1078.

55. Citado por Menandro,  Epitrep. 765 sg. Koerte, de  Auge (parte disto já eraconhecido, frag. 920 Nauck).

56. Chrysippus, frag. 840.57.  Aeolus, frag. 19, t i Ô’oci0x p o v r | v |ir| Toiat xpcojLevoiç ÔOKq, o sofista

Hípias argumentou que a proibição de incesto era convencional, e não “di

v inamente implantada” ou ins t in t iva , pois e la não era observada

universalmente (Xen.  Mem. 4. 4. 20). Mas o trecho de Eurípides compreen-

sivelmente gerou um escândalo: ele mostrou onde o relativismo ético

ilimitado nos leva. Cf. a paródia de Aristófanes (Rãs 1475); o uso do cor

tesão contra seu autor (Machon apud  Aten. 582CD); e as histórias

 poster iores que fazem Antístenes ou Platão responderem a isto (Plutarco,aud. poet. 12. 33C.; Serenus apud Stob. 3. 5. 36H).

58. Eurípides,  Heracles 778; Oréstia 823;  Bacantes 1890 sg .; Ifigênia em Áulis,  

1089 sg. Cf. Murray,  Eurípedes and his Age, 194; e Stier, “Nomos Basi-leus”,  Philol. 83 (1928), 251.

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2 0 4 O s GREGOS E O IRRACIONAL

77. Hesíodo,  Erga 240; cf. Platão,  Leis , 910B, e capítulo II, nota 43. A atitude

de Lísias é iluminadora. “Nossos ancestrais”, ele diz, “ao executar os sa

crifícios prescritos nos deixaram na cidade mais próspera e magnífica da

Grécia: certamente devemos oferecer os mesmos sacrifícios que eles, quando

mais não seja pelo simples fato da fortuna que resultou destes ritos” (30.

18). Esta visão pragmática da religião deve ter sido bastante comum na época.

78. Tucídides, 6. 27 sg., 60. O autor naturalmente ressalta os aspectos políti

cos do caso, e na verdade é impossível ler uma passagem em 6.60 sem se

lembrar das “purgações” políticas e das “caças às bruxas” de nossos tem

 pos. Mas a raiz causai da exc itação popular era a 8et(Ji8 oü|iovia : o ato

era uma oicovoç tov skttAod.79. Tucídides, 3. 82. 4.

80. Nigel Balchin,  Lonl, I was afraid, 295.81. Gilbert Murray, Greek Studies, 67. Cf. o juízo de Frazer de que “a socie

dade tem sido construída e cimentada em grande parte sobre fundamentos

religiosos, e de que é impossível flexibilizar o cimento e sacudir as bases

sem pôr em perigo a superestrutura” (The Belief in Immortality, I. 4). A

experiência dc outras culturas antigas, sobretudo a chinesa, onde o positi

vismo secular da escola de Fa Hia possuía contrapartida no militarismo cruel

do império de Ts’in, parece confirmar que há uma conexão causai real en

tre o colapso de uma tradição religiosa e o crescimento ilimitado da políticade força.

82. Cf. cap. IV,  supra.

83. Assim Kern,  Rei. der Griechen II. 312 e W. S. Ferguson, “The Attic

Orgeones”,  Harv. Theol. Rev. 37 (1944), 89, nota 26. Foi por uma razão

similar que o culto a Asclépios foi levado para Roma em 293 a.C. Na ver

dade foi, segundo as palavras de Nock, “uma religião de emergências” (CPh 

45 11950], 48). A primeira referência existente à incubação em um templo

de Asclépios ocorre nas Vespas, peça escrita poucos anos após o fim da peste.

84. Tucídides, 2. 53. 4: Kpivovxeç ev o|ioicü Kat aefíeiv Kat |ir|, £K  tod ítavtaç opav ev iow a7ioÀ,À,\)|ievouç.

85.  IG. II. 2. 4960. Sobre detalhes, ver Ferguson, loc. cit., 88 sg.

86. Wilamowitz, Glaube II. 233. A interpretação mais provável dos fatos pare

ce ser a de que Asclépios apareceu em um sonho ou visão (Plutarco, non 

 posse suaviter  22, 1103B) e disse: “Tirem-me de Epidauro”, de onde o re

tiraram ôpaKOvxi euca on ev ov , exatamente como os Siciônios em ocasião

descrita por Pausânias (2.10.3; cf. 3.23.7).

87. Por exemplo, de vetere medicina, que Festugière data de 440-420 a.C.; de 

aeribus, aquis, toeis (visto por Wilamowitz e outros como anterior a 430);

de morbo sacro (provavelmente algum tempo depois, cf, Heinimann,  No 

mos und Physis, 170 sg.). De modo similar, a aparição do primeiro

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R a c i o n a l i s m o   e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a 2 0 5

conhecido “livro de sonhos” (capítulo IV,  supra) é contemporânea das pri

meiras tentativas de explicar os sonhos em linhas naturalistas - aqui tambémocorre uma polarização.

88. A Segunda Guerra Púnica produziria efeitos similares em Roma (cf. TitoLívio, 25.1; e J.J. Tierney,  Proc. R.I.A. 51 [1947], 94).

89.  Harv. Theol. Rev. 33 (1940), 171 sg. Desde então, ver Nilsson, Gesch. 1.

782 sg., e o importante artigo de Ferguson (acima, nota 83), que lança muita

luz sobre a naturalização dos cultos frígios e trácios em Atenas e sua difu

são entre cidadãos atenienses. O estabelecimento do culto público a Bendis

 pode atualm ente ser datado do ano da peste 430-429, como Ferguson mos

trou em outro local ( Hesperia, Suppl. 8 [1949], 131 sg.).

90. Mais de 300 exemplares foram coligidos e estudados por A. Audollent,

 Defixionum tabel lae (1904) e outros foram encontrados desde então. Umalista suplementar da Europa central e do norte é fornecida por Preisendanz,

 A r c h .f Rei. 11 (1933).

91. Lawson,  M odem Greek Folklore , 16 sg.

92. Ver  Glohus, 79 (1901), 109 sg. Audollent, op. cit., CXXV seg., também

cita um número de exemplos, incluindo o caso de “um cavalheiro rico e

culto” na Normandia que, quando seu pedido de casamento foi rejeitado,

espetou um alfinete na fotografia da dama em questão e acrescentou a ins

crição “Deus te amaldiçoe!” Esta anedota indica as raízes psicológicassimples deste tipo de magia. Guthrie citou um exemplo interessante da Ga

les do século XIX (The Greeks and Their Gods, 273).

93. Os exemplos áticos conhecidos antes de 1897 (mais de 200) foram edita

dos separadamente por R. Wünsch,  IG III. 3, apêndice.  Defixiones áticas

adicionais têm desde então sido publicadas por Ziebarth, Gõtt Nachr. 1899,

105 sg., e  Berl. Sitzh. 1934, 1022 sg., e outras têm sido encontradas em

Kerameikos (W. Peek.  Kerameikos, III. 89 sg.) e na Ágora. Entre todos es

tes parecem haver apenas dois exemplos (Kerameikos 3 e 6) que podem

ser atribuídos com segurança ao século V a.C. ou antes; por outro lado,

muitos deles são exibidos por pessoas pertencentes ao século IV, e há mui

tas em que a grafia e o estilo sugerem aquele período (R. Wilhelm, Õst.  Ja hreshefte, 7 [1904], 105 sg.).

94. Wünsch, n. 24; Ziebarth, Gõtt. Nachr. 1899, n. 2,  Berl. Sitzb. 1934, n. 1B.

95. Platão,  Leis, 933A-E. Platão se refere a Kon;a8£a|ioi também na  Repúbli-

c a , 363C como executada para seus clientes por meio de ocyuorai

Koa|iavT;£iç, e nas  Leis, 909B ele se refere à necromancia praticada por pes

soas semelhantes. A leiticeira Theoris (nota 98 abaixo) reivindicava algumtipo de  status religioso para si: Harpocrácio (s.v.) a chama pavTiç; Plutar

co, ( Dem .) ispsia. Não havia, portanto, nenhuma linha rigorosa separando

superstição de “religião”. E, de fato, os deuses invocados na Ática antiga

como Ko.xaSeaaç são as divindades ctônicas da crença grega mais comum.

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2 0 6 OS GREGOS E O IRRACIONAL

mais freqüentemente Hermes e Perséfone. Vale, entretanto, notar que as fór

mulas sem sentido (Eijieoia ypa|i|aai;a) características da magia posterior  já estavam entrando em uso, como aparece em Anaxilas , frag. 18 Kock, e

com mais certeza ainda em Menandro. frag. 371.

96. Ibid., 933B: KT|piva n ip r in a r a Jie7t?iac>|i£va, e it £7ii 0-upaiç eix em

xpioSoiç eit ’etci  | ivri |aaai yovecúv . Até onde sei, a referência existente mais

antiga a esta técnica é uma inscrição de Cirene, do início do século IV a.C.,

em que diz-se que Kiipiva foi usada publicamente como parte de uma san

ção por um juramento feito no tempo da fundação de Cirene (Nock.  Arch. 

 f Rei. 24 11926j 172). As imagens de cera naturalmente pereceram, mas

 pequenas figuras de materiais mais duráveis feitas com as mãos amarradas

atrás das costas (literalmente uma KaxaSeoiç) ou com outras marcas de

magia têm sido encontradas com freqüência, ao menos duas delas na Áti-ca: cf. a lista de C. Dugas,  Buli. Corr. He.ll. 39 [1915], 413.

97. Ibid.. 933A:  x a v x ’ov v Kai Ttepi x o ia w a aDjiTtavTa o ur e p aS iov otccúç

tio te TtEijnjKEv yiyvoxjkeiv o \) t’£t xiç yvotri, TtEtOeiv eu jiexeç exepouç. A

segunda parle da passagem talvez aluda ao maior grau de ceticismo que

Platão escolhe expressar, pois o tom na  República , 364C (assim como nas

 Leis, 909B) é definitivamente cético.

98. Demóstenes, 25. 79 sg. O caso da (|iap(.iaKiç de Lemnos, denominada

Theoris, que foi condenada a morrerem Atenas “com toda sua família” por uma informação conseguida com uma criada. Uma referência na mesma fra

se (e cf. também Aristófanes,  Nuvens, 749 sg,) mostra que esta <|)ap(iaKiç

não era simplesmente uma envenenadora. Segundo Filocoro, apud  Harpo-

crâcio, s.v. Ge.opiç, a acusação formal foi de aoepeia, e isto é provavelmente

correto; a selvagem destruição de toda a família implica uma conspurca-

ção da comunidade. Plutarco (que fornece um relato diferente sobre a

acusação) diz  Dem. 14, que o prom otor era Dem óstenes - que foi ele pró

 prio, como vimos, mais de uma vez, objeto de ataques de magia.99. Mitologia à parte, há surpreendentemente poucas referências diretas na li

teratura ática do século V a.C. à magia de tipo agressivo, além dos filtros

do amor (Eurípides,  H ip .; Antifon, 1. 9 etc.) e o erccoôri ‘Op<])£coç, Eurípi

des, Cicl. 646. O autor do inorb. sacr. fala de pessoas supostamente

necfiacriiaKEuiiEVOuç, “colocadas sob feitiço” (VI. 362 L.), e a mesma coi

sa pode estar sendo dita em Aristófanes, Thesm. 534. Caso contrário, a

abordagem mais aproximada pode ser vista na palavra av aX urn ç, um “des-

fazedor” de feitiços, que se conta ter sido usado pelo poeta cômico dos

 prim órdios Magnes (frag . 4). Magia de proteção ou "bran ca” era sem dú

vida algo comum: por exemplo, pessoas utilizavam anéis mágicos como

amuletos (Eupolis, frag. 87; Aristófanes,  Plut., 883 sg. e 2). Mas se alguém

quisesse um feitiço realmente forte teria que comprá-lo na Tessália (Aris

tófanes,  Nuvens, 749 sg.).

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R  a c i o n a l i s m o   e   r e a ç ã o   n a I d a d e C l á s s i c a 2 0 7

100. Houve um intervalo comparável no século XIX entre o colapso da cren

ça cristã entre intelectuais e o advento do espiritismo e de movimentos

similares junto às classes semicultas (algumas das quais se espalharam

entre as classes cultas). Mas no caso de Atenas, não se pode excluir a

 possib ilidade de que o retorno da magia de tipo agressivo da tasse dos úl

timos anos desesperados da Guerra do Peloponeso. Sobre as razões que

 podem ter contribuído para sua popularidade no século IV, ver Nilsson,

Gesch. I. 759 sg. Não posso achar que a multiplicação das dcfixiones nessa

época reflita meramente um aumento no número de alfabetizados, como

tem sido sugerido, pois eles poderiam ter sido escritos, e provavelmente

o foram (Audollent, op. cit., XLV), por mágicos profissionais emprega

dos com este fim (Platão fala como se este fosse o caso,  República, 364C).

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 P  l a t ã o ,  a   a l m a    i r r a c io n a l

 E A “HERANÇA CONGLOM ERADA ”

Uma vez abandona da, não resta nenhum a esperança de retorno a uma fé tradicional, p ois a condição essencial para alguém p od er ma nter  

uma fé tradicional é ele não sa ber que é um tradicionalista.

Al Ghazali

 VII

O

capítulo anterior tratou de descrever a decomposição deuma estrutura de crenças herdada que se constituiu du

rante o século V a.C., e alguns dos primeiros fenômenos dali resultantes. Proponho-me agora a considerar a reação de Platão à situaçãocriada. O tema é importante, não apenas devido à posição ocupada por Platão na história do pensamento europeu, mas também porqueele percebeu, mais claramente do que qualquer um, os perigos inerentes à decadência da “herança conglomerada”; e porque no seutestamento final ele formulou propostas de grande interesse para aestabilização da situação, por meio de uma espécie de contra-refor-ma. Estou bastante ciente de que discutir este assunto de maneiracompleta envolveria um exame de toda a filosofia da vida de Platão; mas a fim de manter a discussão dentro de limites razoáveis, proponho-me a concentrar a análise em torno de duas questões:

Primeiro, que importância Platão atribuía a fatores não racionais do comportamento humano, e como ele os interpretava?

Segundo, que concessões ele estava preparado a fazer ao irra-

cionalismo presente na crcnça popular, pelo bem da estabilização do“conglomerado”?É desejável que mantenhamos estas duas questões como dis

tintas até onde possível, embora, como veremos, nem sempre seja

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P l a t ã o , a   a l m a   i r r a c i o n a l   e   a “ h e r a n ç a   c o n ô l o m e r a d a ’ 213

 possuía os dons naturais que perm itiriam transform á-lo s em“guardiães” .10 Quanto ao resto - isto é, para a esmagadora maioriados humanos - Platão parece reconhecer em todas as fases de seu

 pensamento que, se não for exposta às tentações do poder, esta parcela encontrará o melhor guia prático para uma vida satisfatória naforma de um hedonismo inteligente.11 Mas nos diálogos do períodointermediário, preocupado como ele estava com naturezas e possi

 bilidades excepcionais, Platão mostra escasso interesse na psicologiado homem comum.

 Na fase final de sua obra, entretanto, depois de ter descartadoos reis-filósofos como um sonho impossível e ter mudado para a nor

ma de uma Lei como segunda opção,12 Platão prestou mais atençãoàs motivações da conduta humana comum, e mesmo o filósofo passa a ser visto como não-isento do mesmo tipo de influências. Dianteda questão sobre se algum de nós se contentaria com uma vida desabedoria, compreensão, conhecimento e uma memória completa detudo o que aconteceu durante a história, sem porém ter experimentado prazer ou dor, grandes ou pequenos, sua resposta no  Fileboli éum enfático “não”. Enfim, estamos ancorados na vida do sentimento, que é uma parte de nossa humanidade, e não podemos deixá-lade lado nem mesmo tornando-nos “espectadores de todo o tempo ede toda a existência” ,14como os reis-filósofos. Nas  Leis ele nos dizque a única base concreta para a moral publica é a crença de que ahonestidade compensa: “porque ninguém, se pudesse, daria seu consentimento a uma ação que não lhe trouxesse mais alegria do quetristeza” .15 Com tal afirmação parecemos voltar ao mundo do  Pro 

tágoras, e de Jeremy Bentham. A posição do legislador não é, noentanto, idêntica à do homem comum, pois este deseja ser feliz, enquanto Platão, que está legislando por ele, deseja que ele seja bom.Platão trabalha portanto para persuadi-lo de que bondade e felicidade caminham juntas. Que isto constitui uma verdade, é algo quePlatão chega mesmo a acreditar. Mas ainda que não acreditasse, fingiria ser verdade, já que seria “a mais salutar mentira jamaiscontada”.16 Não é a posição de Platão que mudou; se algo mudou

foi sua cobrança face à capacidade humana. De qualquer modo, nas Leis, a virtude do homem comum não se baseia no conhecimento enem na opinião verdadeira enquanto tal, mas no processo de condicionamento ou de hábito17pelo qual ele é induzido a aceitar e agir 

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214 O S GREGOS E O IRRACIONAL

conforme certas crenças “salutares”. Afinal de contas, como afirmaPlatão, isto não é tão difícil: pessoas que conseguem acreditar emCádmos e em dentes do dragão, acreditarão em qualquer coisa.18Lon

ge de supor, como seu mestre, que “a vida sem um exame críticonão é vida para o ser humano”,19 Platão parece sustentar a hipótesede que a maioria dos homens pode manter uma saúde moral tolerável simplesmente com uma dieta de “encantações” (£7t(o8cci)~°cuidadosamente selecionada. O que significa: por meio da edificação de mitos e do reforço a certas máximas éticas. Podemos dizer que, em princípio, ele aceita a dicotomia de Burckhardt —raciona-lismo para poucos, magia para muitos. Vimos, entretanto, que seuracionalismo é precipitado por idéias que pertenceram em um dadomomento à magia; e veremos mais tarde como tais “encantações’

vieram servir para fins racionais.De outro modo também, o crescente reconhecimento da impor

tância de elementos afetivos por parte de Platão levou-o além doracionalismo do século V a.C. Isto aparece claramente no desenvol

vimento de sua teoria sobre o Mal. É verdade que, ao final de sua

vida,21 ele prosseguia repetindo o dito socrático segundo o qual “ninguém comcte erros se puder evitá-los”; mas há muito tempo ele haviadeixado de se contentar com a opinião socrática de que o erro moral era um desvio de perspectiva.22 Quando Platão tomou para si avisão mágico-religiosa da psyche, ele primeiro incorporou o dualismo puritano que atribuía todos os pecados e sof rimentos da psyche a uma conspurcação surgindo do contato com o corpo mortal. No Fédon ele transpôs esta doutrina para uma linguagem filosófica, dan-do-lhe uma formulação que se tornaria clássica: .somente quando o“eu” racional é purgado pela morte ou por autodisciplina “dos delírios do corpo”23 ele pode retornar à sua verdadeira natureza, divinae sem pecado. A vida do bem é uma prática de purgação (|i£?i£Tr|Gavaxou). Tanto na antigüidade quanto nos dias de hoje, os leitores têm sido levados a ver este aspecto como a última palavra dePlatão sobre o tema. Mas Platão era um pensador arguto e realista

demais para se satisfazer por muito tempo com a teoria exposta no Fédon. Assim que se voltou do “eu” oculto para o homem empírico, ele se viu forçado a reconhecer um fator irracional no própriointerior da mente humana, passando a pensar o mal moral em ter

mos de conflito psicológico (o xaorç).24

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Já é assim na  República - a mesma passagem de Homero, queno  Fédon havia servido para ilustrar o diálogo da alma com “as paixões do corpo”, transforma-se em um diálogo interno entre duas

“partes” da alma.25 As paixões já não são vistas como uma imperfeição de origem externa, mas como uma parte necessária da vidamental, do modo como a vemos hoje, e até mesmo como uma fontede energia, como a libido de Freud que pode ser “canalizada” paraatividades sensuais ou intelectuais.26 A teoria do conflito interno, vi-vidamente ilustrada na  República através do conto de Leôncio,27 seriaformulada de maneira precisa no Sofista,™ onde tais conflitos aparecem definidos como um desajuste psicológico resultante de “alguma

espécie de contusão”29 - um tipo de doença da alma que seria a causada covardia, da intemperança, da injustiça e (ao que parece) do malmoral cm geral, sendo algo distinto da ignorância ou do fracasso intelectual. Isto difere bastante, tanto da visão racionalista dos

 primeiros diálogos, quanto do puritanismo do  Fédon, indo um tantomais longe do que ambas as interpretações. Para mim é nisso quereside a contribuição pessoal de Platão.30

Contudo, isto não significa que Platão havia abandonado o “eu”

racional transcendente cuja perfeita unidade seria a garantia da imortalidade. No Timeu, onde ele tenta reformular sua visão anterior sobreo destino do homem, em termos que sejam compatíveis com sua psicologia e cosmologia tardias, encontramos novamente a alma unitáriado  Fédon. É significativo que Platão aplique a ela o velho termo religioso que Empcdocles havia utilizado para o “eu” oculto -daemon?1 No Timeu entretanto, esta alma possui uma outra “calcada sobre ela” - uma alma ou “eu” de “tipo mortal onde subsistem

 paixões terríveis e indispensáveis”.32 Teria então a personalidade humana se partido virtualmente em dois? Certamente não fica claro qualo liame que une ou poderia unir um daemon indestrutível habitandoa cabeça do homem, ao conjunto de impulsos racionais instaladosem seu peito ou “amarrados como um animal feroz” a seu ventre.Devemos lembrar da opinião ingênua do persa que, na obra de Xe-nofonte, acha óbvio possuir duas almas, pois como afirma, a mesmaalma não poderia ser boa e má - ela não poderia desejar ao mesmotempo ações nobres e baixas, se dispor e se indispor a executar determinadas ações em certos mom entos.33

Mas a rachadura que Platão promove no homem empírico, entre uma parte demoníaca e outra animal, não é talvez tão

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2 1 6 Os GREGOS E O IRRACIONAL

inconseqüente quanto possa parecer ao leitor moderno. Ela refleteuma rachadura semelhante na visão platônica da natureza humana -o abismo que separa a alma imortal da alma mortal corresponde ao

abismo entre o que o homem poderia ser e o que ele efetivamente é.Aquilo que Platão veio achar da vida humana tal qual ela aparece éalgo que encontramos nas  Leis. Nessa obra, por duas vezes ele nosinforma que o homem é como uma marionete. Face à questão desaber se os deuses o criaram simplesmente como um joguete ou comalgum propósito mais sério, nada podemos dizer. Tudo o que sabemos é que esta criatura vive dependurada em uma corda, e que suasesperanças, medos, prazeres e dores são solavancos que o fazem dançar para lá e para cá.34 Em uma passagem ao final, o atenienseobserva que é uma pena que tenhamos que levar a sério os negócioshumanos, ressaltando que o homem é um joguete nas mãos de Deuse que “isto é o melhor que pode ser dito a seu respeito”. Homens emulheres devem tornar este jogo o mais encantador possível, sacrificando-se aos deuses com música e dança - “deste modo elesviverão suas vidas de acordo com a natureza, sendo primordialmen

te marionetes e guardando apenas uma pequena porção de realidade”.“Você está fazendo dc nossa raça humana uma imagem muito medíocre”, diz o espartano. E o ateniense se desculpa: “Pensei cm Deuse fui levado a falar desta maneira. Bem, se você insiste, digamosque nossa raça não é medíocre, e que vale a pena tomá-la um pouquinho a sério” (g ttouS tiç x ivoç oc£,iov).35

Platão sugere aqui uma origem religiosa para este modo de pen

samento, e nós freqüentemente a encontramos cm pensadoresreligiosos de épocas posteriores, de Marco Aurélio a T.S. Eliot, queafirma quase com as mesmas palavras que “a natureza humana só écapaz de resistir a uma pequena parcela de realidade”. Isto está deacordo com a tendência geral das  Leis com a visão de que os homens são tão incapazes dc administrar a si próprios quanto umrebanho de ovelhas,36 que Deus, e não o homem, é a medida de todas as coisas,37 que o homem é propriedade dos deuses ( K t T ] | i a ) 3 8e

que, se deseja ser feliz, deve ser xaixeivoç (“abjeto”) diante de Deus- palavra que todos os escritores pagãos próximos, assim como o próprio Platão, empregam como um termo para indicar desprezo.39Devemos por acaso desconsiderar tudo isso como uma aberração senil, o pessimismo amargo de um homem velho e irritadiço? Pode

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 parecer que sim, pois trata-se, afinal, de uma visão que contrasta estranhamente com o radiante quadro da natureza divina da alma e donosso destino, que Platão pintou em seus diálogos da fase interme

diária e que certamente jamais renegou. Mas podemos tambémlembrar do fi lósolo da  República para quem, assim como ocorre paraa grande alma em Aristóteles, a vida humana não pode ser assimtão importante (|isya ti).40 Podemos ainda lembrar que no  Mênon amassa dos homens é comparada às sombras que se movem no  Ha-des homérico, e que a concepção dos seres humanos como escravosde deus já aparece no  Fédon.4' Podemos também pensar em outra

 passagem desta obra, na qual Platão prevê com indisfarçável pra

zer, o futuro de seus companheiros homens: na próxima encarnaçãoeles serão asnos, lobos e no caso dos (iexpiot (a burguesia respeitável) podem esperar retornar como abelhas ou formigas.42 Sem dúvidaque isto é, em parte, uma brincadeira de Platão, mas trata-se de umtipo de brincadeira que teria agradado a alguém como JonathanSwift, pois implica a conclusão de que todos, exceto o filósofo, estão à beira de se tornar sub-humanos - o que é (como viram osantigos pensadores platônicos43) algo difícil de conciliar com a visão de que toda alma humana é essencialmente racional.

A luz desta e de outras passagens, creio que devemos reconhecer dois esforços ou tendências do pensamento platônico face àquestão do  status do homem. Há, de um lado, a fé e o orgulho diante da razão humana, herdado do século V a.C., e pâra a qual eleencontraria uma sanção religiosa ao igualá-la ao “eu” oculto da tradição xamanística. E há, por outro lado, o reconhecimento amargodo lado imprestável da humanidade, que lhe foi incutido por sua ex

 periência própria, em Atenas e em Siracusa. Isto também poderiaser expresso cm linguagem religiosa como uma negação de todo valor atribuído às atividades e interesses deste mundo em comparaçãocom “as coisas do Além”. Um psicólogo poderia dizer que a relação entre estas duas tendências não era de simples oposição, masque a primeira havia se tornado uma compensação - ou supercom-

 pensação - pela segunda. Em suma, quanto menos Pla tão se

interessava pela humanidade real, mais ele considerava sua alma no bre. A tensão entre as duas foi resolvida, por certo tempo, no sonhode um novo código santificado” —uma elite de homens purificados que deveriam unir as virtudes incompatíveis do iogue e docomissário (utilizando aqui os termos de Arthur Koestler), salvando

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2 1 8 O S GREGOS E O IRRACIONAL

assim não apenas a si mesmos, mas também a própria sociedade.Mas quando esta ilusão se desfez o desespero subliminar de Platão passou a aflorar mais e mais à superfície, transpondo-se em termos

religiosos, até encontrar sua expressão lógica nas propostas finaisde uma sociedade “fechada”44 a ser gerida não por uma razão iluminada, mas pelo costume e pela lei religiosa (sob os auspícios deDeus). O “iogue”, com sua fé na possibilidade e necessidade de umaconversão intelectual, não desapareceu completamente, mesmo nestemomento, mas certamente sofreu um recuo ante a figura do “comissário”, cujo problema é a liderança do gado humano. De acordo com

esta interpretação, o pessimismo das  Leis não é uma aberração senil, mas o fruto da experiência pessoal de Platão, que trazia consigo

a semente de seu pensamento tardio.45É exatamente à luz desta avaliação da natureza humana que de

vemos considerar as propostas finais de Platão para a estabilizaçãodo “conglomerado”. Mas antes de passar a isto, devo dizer uma pa

lavra sobre suas opiniões a respeito de outro aspecto da alma irracional que nos tem interessado ao longo do livro; a saber, a importância

tradicionalmente atribuída a ela como fonte ou canal de nossa faculdade intuitiva. Quanto a esta questão, creio que Platão permaneceu, ao longo de sua vida, fiel aos princípios de seu mestre. Oconhecimento como algo distinto da opinião verdadeira permaneceu para ele um problema de intelecto, as crenças sendo justificadas por meio do argumento racional. Para as intuições do vidente e do poeta, Platão consistentemente recusava o rótulo de conhecimento, não

 por achá-las necessariamente desprovidas de fundamento, mas porque não era possível apresentar suas bases.46 Portanto, para ele, ocostume grego de conceder a última palavra de assuntos militaresao comandante-em-chefe e não aos videntes que o acompanhavam

em campanha estava correto. Em geral , era uma tarefa deaco(|)poa\)vri (“julgamento racional”) distinguir entre o verdadeirovidente e o charlatão.47 Do mesmo modo, os produtos da intuição poética deviam estar sujeitos à censura moral e racional de um legislador treinado. Tudo isso estava de acordo com o racionalismosocrático.48 Não obstante, como notamos,49 Sócrates havia levado aintuição irracional bastante a sério, fosse ela expressa em sonhos, pela voz interna de um daemonium , ou pela Pítia. Platão dá grandesmostras de levá-la a sério também. Ele se permite, porém, falar com

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um desprezo ligeiramente velado das pseudociências de profecia ede hepatoscopia*.5'1Mas “a loucura que chega por dom divino” , queinspira o profeta e o poeta ou que purga os homens nos ritos

coribânticos, como vimos num dos capítulos anteriores, é tratadocomo se fosse uma intrusão verdadeira do sobrenatural na vida humana.

Quão literalmente (aupied de la lettre) Platão pretendia tomar este modo de falar? Ultimamente a questão tem sido colocada comfreqüência, sendo respondida de modo variado;51 mas nenhuma unanimidade foi atingida e nem provavelmente será. Eu me inclinaria adizer três coisas a respeito:

a) que Platão percebia o que ele tomava por uma analogia reale significativa entre mediunidade, criação poética e manifestações

 patológicas dc consciência religiosa, sob a aparência de algo “concedido”52ab extra [do exterior];

 b) que as explicações religiosas tradicionais para estes fenômenos eram aceitas por ele, como aliás muitas outras coisas dentrodo “conglomerado”, de modo provisório - não porque ele as achas

se adequadas, mas porque não havia outra linguagem disponível paraexpressar esta misteriosa “doação” (“concessão”);53c) que mesmo aceitando o poeta, o profeta e o “coribântico”

(pouco importando suas reservas irônicas) como canais de graça54divina ou “demoníaca”,55 ele estimava suas atividades bem abaixodo “eu” racional,56 sustentando que elas deveriam estar sujeitas aocontrole e à crítica da razão, pois, do seu ponto de vista, a razãonão era um mero joguete de forças recônditas, mas uma ativa mani

festação da divindade no homem, um daemon por direito. Suspeito,aliás, que se Platão tivesse vivido nos dias de hoje, ele mostraria um

 profundo interesse pela nova psicologia sobre a morte, porém ficaria apavorado com a tendência a reduzir a razão humana a uminstrumento de racionalização dc nossos impulsos inconscientes.

Muito do que acabo de dizer se aplica também ao quarto tipode “loucura divina” mencionado por Platão, a loucura de Eros. Trata-se aqui novamente de um “dado” (“concedido”), algo que acontececom o homem sem que ele o tenha escolhido ou saiba por que -

Exame da alma através do fígado (N. da T.).

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2 2 0 O s GREGOS E O IRRACIONAL

trata-se, portanto, da obra de um formidável daemon.51 Aqui, maisuma vez— e sobretudo aqui58 - Platão reconhece a operação da graça divina, e utiliza a velha linguagem religiosa5tJ para expressar este

reconhecimento. Mas Eros tem uma importância especial no pensamento de Platão, por traduzir um modo de experiência que trazconsigo as duas naturezas do homem - a do “eu” divino e a do animal aprisionado60 - porque Eros está sinceramente enraizado naquiloque o homem compartilha com os outros animais:61 o impulso fisiológico do sexo (fato que é, infelizmente, obscurecido pela má

utilização moderna do termo “amor platônico”). Todavia, Eros tam bém fornece o impulso dinâmico que encaminha a alma na buscade uma satisfação que transcenda a experiência terrena. Assim, eleatravessa todo o escopo da personalidade humana, fazendo a junção empírica entre o homem tal qual ele é e o homem tal qual poderiaser. Platão chega aqui, de fato, bem próximo dos conceitos freudianos de libido e de sublimação. Mas ao que me parece, ele jamaisintegrou completamente esta linha de pensamento ao resto de suafilosofia. Se o tivesse feito, a noção de intelecto como entidade auto-

suficiente e independente do corpo poderia ter sido posta em perigo,e Platão não iria arriscar uma coisa dessas.62

Volto-me agora para as propostas platônicas de reforma e estabilização do “conglomerado” .63 Elas são expostas cm sua últimaobra, as Leis, e podem ser resumidas brevemente da seguinte maneira:

1) Platão estaria procurando fundar a fé religiosa logicamente,com base em certas proposições que deveriam ser  provadas.

2) Ele fundaria a fé legalmente, incorporando as proposiçõesa um código legal inalterável e impondo penas a qualquer pessoa

que propagasse descrença com relação a elas.3) Ele fundaria a fé em termos educacionais, tornando as pro

 posições tema obrigatório de instrução para todas as crianças.4) Ele fundaria a fé socialmente, promovendo uma união ínti

ma entre a vida religiosa e civil em todos os seus níveis - em outrostermos, por meio de uma união entre a Igreja e o Estado.

Podemos dizer que muitas destas propostas foram traçadas sim plesmente com o intu ito de fo rtalecer e generalizar uma práticaateniense já existente. Mas quando as tomamos cm conjunto, vemosque elas representam a primeira tentativa de lidar, de forma sistemática, com o problema do controle da crença religiosa. O problema

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em si mesmo era novo: em épocas de fé, ninguém pensa em provar a existência dos deuses ou em inventar técnicas para induzir a crença neles. Alguns dos métodos propostos eram aparentemente novos

- ninguém antes de Platão parece ter-se dado conta da importânciado treinamento religioso dos primórdios como meio de condicionamento do futuro adulto. Além disso, quando olhamos as propostas

mais de perto, fica evidente que Platão estava tentando não apenasestabilizar o “conglomerado”, mas também reformá-lo, não somente escorar a estrutura tradicional, mas também descartar muito doque ela possuía e que estivesse em claro estado de decomposição,

 para substituir por algo mais durável.

Basicamente as proposições de Platão eram:a) Que os deuses existem;

 b) que eles se preocupam com o destino da humanidade;c) que eles não podem ser adulados;

Os argumentos através dos quais ele procurou provar estasafirmações não nos interessam aqui - eles pertencem à história dateologia. Mas vale ressaltar alguns dos pontos sobre os quais ele seviu obrigado a romper com a tradição, e outros diante dos quais ele

 preferiu estabelecer um meio termo.Em primeiro lugar, quem eram os deuses cuja existência Pla

tão procurou provar e cuja adoração ele procurou reforçar? Aresposta a esta questão não é livre de ambigüidades. No que concerne à adoração aos deuses, uma passagem das  Leis IV fornece umalista completamente tradicional de deuses do Olimpo, da cidade, dosubmundo, de daemons locais e de heróis.64 São as figuras conven

cionais do público culto, deuses que, como Platão coloca em outra passagem das  Leis, “existem em função do uso costum eiro”.65 Massão estes os deuses cuja existência Platão acreditava poder provar?Temos base para duvidar disso. No Crátilo, por exemplo, ele faz Sócrates dizer que não sabemos nada sobre estes deuses, nem sequer seus nomes verdadeiros, e no  Fedro, que imaginamos um deus(7tÀ,cmo|J£v) sem termos visto ou formado uma idéia adequada decomo ele é.66 Em ambas as passagens a referência é feita aos deuses

mitológicos. A implicação parece ser a de que o culto a tais deusesnão possui nenhuma base racional, empírica ou metafísica. Seu nível de validade é, no melhor dos casos, da mesma ordem daqueleque Platão confere às intuições do poeta ou do vidente.

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222 O s GREGOS E 0 IRRACIONAL

Assumo que o deus supremo, no que tange a fé pessoal de Platão, era um ser de natureza bem diferente. Tratava-se de alguém que(segundo as palavras do Timeu) “é difícil encontrar e impossível de

descrever para as massas”.67 É possível presumir que Platão sentiaque um tal deus não poderia ser introduzido no “conglomerado” semcausar-lhe a destruição; de qualquer maneira ele se absteve de qualquer tentativa nesse sentido. Mas havia um tipo de deus que todos

 podiam ver; um deus cuja divindade podia ser reconhecida pelasmassas68 e sobre o qual os filósofos podiam, na opinião de Platão,fazer afirmações logicamente válidas. Estes “deuses visíveis” eramcorpos celestiais - ou, de modo mais exato, mentes divinas atravésdas quais os corpos eram animados ou controlados.69 A grande novidade no projeto de Platão para uma reforma religiosa foi a ênfasedada, não apenas ao caráter divino do sol, da lua e das estrelas (poisisso não era nada novo), mas ao culto a estes astros. Nas  Leis, nãoapenas as estrelas são descritas como “deuses do céus” e o sol e alua como “grandes deuses”, mas Platão insiste que oração e sacrifício deverão ser feitos a todos eles.70 O ponto focal de sua nova Igreja

de Estado deve ser um culto conjunto a Apoio e ao deus solar Hé-lios, ao qual o alto sacerdote estará vinculado e os mais altos oficiaisda política serão solenemente devotados.71 Este culto conjunto - emlugar do culto esperado a Zeus - expressa a união do velho e donovo: Apoio valendo pelo tradicionalismo das massas, e Hélios pelanova “religião natural” dos filósofos.72 Trata-se da última tentativadesesperada da parte de Platão, de construir uma ponte entre os in

telectuais e o povo, salvando, assim, a unidade da crença e da culturagregas.

Uma mistura semelhante, de necessidade de reforma com ummeio termo não menos necessário, pode ser observada no modo comoPlatão opera com as demais proposições fundamentais que ele apresenta. Ao lidar com o problema tradicional da justiça divina, eleterminantemente ignora, não apenas a velha crença em deuses “cium entos” ,73 mas também (com certas exceções conced idas à lei

relig iosa)74 a velha idéia de que o homem perverso é punido na figura de seus descendentes. Que o agente da ação sofre em sua

 própria pessoa é algo que Platão vê como uma lei demonstrável docosmos, a ser ensinada como um artigo de fé. O funcionamento detalhado desta lei não é. no entanto, passível de demonstração - ele

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 pertence ao “mito” ou à “encantação” .75 Sua crença final quanto aesta questão é apresentada numa passagem impressionante das  Leis X:76 a lei da justiça cósmica é uma lei de gravitação espiritual; nesta

vida e na série completa de outras vidas as almas gravitam naturalmente para a companhia das almas de mesmo tipo, e é nisso quereside seu castigo ou recompensa. Como se sugere, o Hades não éum lugar mas um estado mental,77 e a isto Platão acrescenta umaoutra advertência - uma advertência que marca a transição da pers

 pectiva clássica para a helenística: se um homem exigir felicidade pessoal da vida, deixemo-lo lembrar que o cosmos não existe paraele, mas para si próprio .78 Tudo isso estava porém, como Platão bem

sabia, acima da mentalidade do homem comum. Aliás, se o com preendo corretamente , ele não propunha tom ar nada disso parteobrigatória do credo oficial.

Por outro lado, a terceira proposição de Platão - que os deuses não podem ser adulados - implicava uma interferência maisdrástica na crença e na prática tradicionais. Ela envolvia uma rejeição da interpretação comum do sacrifício como expressão de gratidão

 por favores futu ros (“do ut des” [conceder a]), uma visão que elehavia estigmatizado muito antes no  Eutifron, como sendo a aplicação de uma técnica comercial (ep 7to pncr|TiÇT£xvr| )7y à religião.Mas parece óbvio que a grande ênfase dada a este ponto, na  Repú-blica e nas  Leis, não se deve simplesmente a considerações denatureza teorética; ele também está atacando certas práticas bastante difundidas que, a seus olhos, constituem uma ameaça à moralidade

 pública. Os “viajantes sacerdotes e adivinhos”, juntamente com os

 provedores do ritual catártico que são denunciados em uma passagem bastante discutida da  República II, e nas  Leis,M) não são, naminha opinião, meramente charlatães menores que em todas as sociedades pilham ignorantes e supersticiosos, porque nos dois textosdiz-se que eles confundem cidades inteiras81- uma façanha que charlatães menores raramente realizam. O escopo da crítica de Platão é,a meu ver, mais amplo do que alguns estudiosos estão dispostos aadmitir: creio que ele está atacando toda a tradição de purificaçãoritual, enquanto ela permanecer nas mãos privadas, de pessoas “semlicença”.82

Isto não significa que Platão tenha proposto abolir a purificação ritual por completo. Para ele a imica catarse verdadeiramente

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2 2 4 OS GREGOS E O IRRACIONAL

eficaz era, sem dúvida, a prática de retiro e concentração mentaisque aparece descrita no  FédoivP  o filósofo treinado podia limpar sua alma sem a ajuda ritual, mas o homem comum não podia. A fé

na catarse ritual era por demais enraizada na mentalidade popular  para Platão propor sua completa eliminação. Ele sentia, entretanto,a necessidade de algo como uma Igreja, com seu cânone de rituaisautorizados, para que a religião não saísse dos trilhos e se tornasseum perigo para a moralidade pública. No campo da religião, comono da moral, o grande inimigo contra o qual era preciso lutar era oindividualismo de antinomias, e ele contava com Delfos para organizar sua defesa. Não devemos todavia supor que Platão acreditavana Pítia como fonte de inspiração verbal. Minha hipótese seria deque sua atitude com relação a Delfos era mais próxima da atitudemoderna do “católico político” face ao Vaticano: ele via em Delfosuma grande força conservadora que poderia ser aproveitada nas tarefas de estabilização da tradição religiosa grega e de controle tantona difusão do materialismo quanto no crescimento de tendênciasaberrantes da própria tradição. Daí sua insistência, tanto na  Repú-

blica quanto nas  Leis, dc que a autoridade de Delfos deveria ser absoluta em todas as questões religiosas.84Daí também a escolha deApoio para dividir com Hélios a posição suprema na hierarquia doscultos dc Estado: enquanto Hélios fornece uma forma relativamenteracional de adoração a algumas poucas pessoas, Apoio passa a dis pensar aos muitos que o exigem, em doses regulares e inofensivas,a magia ritual arcaica.85

As  Leis fornece muitos exemplos destas magias legalizadas,sendo que alguns deles são espantosamente primitivos. Assim temoso caso de um animal ou objeto inanimado que causou a morte deum homem, devendo ser julgado, condenado c banido além das fronteiras do Estado por carregar um “miasma” ou uma “conspurcação”.86

 Nesta e em muitas outras questões Platão segue a prática ateniensee a autoridade déllica. Não é necessário supor que ele próprio tenhadado algum valor a procedimentos deste tipo; eles eram o preço a

 pagar por utilizar a tradição de Delfos e manter a superstição dentro de certos limites.

Resta algo a dizer sobre as sanções, por meio das quais Platão propõe reforçar a aceitação de sua versão reformada da crença tradicional. Os que a ofenderem, em discurso ou por ato, devem ser 

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2 2 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL

 N o t a s d o c a p í t u l o VII

1. Do dds, “Plato and thc Irra tion al” , JH S  65 (1945), 16 sg. A monografia

foi escrita antes que este livro tivesse sido planejado; ela não abordaalguns dos problemas que trato aqui, e, por outro lado, lida com alguns

aspectos do racionalismo e do irracionalismo platônicos que escapam

do escopo desta obra.

2. Platão nasceu no ano da morte de Péricles, ou no ano seguinte, e mo r

reu em 347 a.C. - um ano antes da paz de Filocrate s e nove anos antes

da batalha de Queroneia.

3. Cf. cap. VI, notas 31-33.

4. Xenofonte,  Mem . 4.3.14; Platão,  Apologia de Sócrate s, 30AB,  Laques ,185E.

5. Górgias, 493AC.. A visão de Frank sobre o que está sugerido nesta pas

sagem ( Pla ton u. die sog. Pytltagoreer, 291 sg.) parece-me mais correta

no principal, embora eu questione certos detalhes. Platão distingue, como

493B 7 mostra: a) n ç |í\)0o?ioyc£>v ko|iv|/oç a v q p , icrcoç I ik e à o ç n ç q

InxA-tKoç, um trecho que tomo como pertencendo ao autor anônimo de

uma antiga viagem ao submundo (não necessariamente “órfico”) corrente

na parte oeste da Grécia e que pode ter estado de algum modo cunhadono estilo do poema citado nas placas de ouro; b) o informante dc Só

crates, n ç tcov üO(|húv, que viu no velho poem a um sen tido alegórico

(muito como Teagenes de Régio havia alegorizado Homero). Suponho

que este oo<j>oç seja pitagórico, uma vez que tais fórmulas são regular

mente utilizadas por Platão ao colocar idéias pitagóricas na boca de

Sócrates: 507E, <j)cxot 8’ot ao<|)ot sobre a ordem moral do mundo (cf.

Thompson, ad loc.); Mênon, 81A, «KqKoa avSpcov te koci yvvcukcüv

ao<j)Cüv sobre a transmigração;  República, 583B, ôokü) qot tcúv go(|>covnqoç aicqKoevcu sobre prazeres físicos ilusórios (cf. Adam, ad loc.). 

Além disso, a visão de que os mitos do submundo são uma alegoria desta

vida aparece cm Empédocles (cf. capítulo V,  su pra, nota 114), e no pi-

tagorismo tardio (Macróbio, in Somn. Scip. 1.10.7-17). Não posso

concordar com Linforth ("Soul and Sieve in Plato’s Gorgias”, Univ. 

Calif. Publ. Class. Philol. 12 [ 1944], 17 sg.) de que “o conjunto do que

Sócrates professa ter ouvido de outros... era de autoria do próprio Pla

tão”: se fosse o caso, ele dificilmente teria feito Sócrates descrever istocomo etueikcoç dtio n a i o n a (493C) ou chamá-lo de um produto de

certa escola (yupvaoiou, 493D).

6.  Fédon, 67C, cf. SOE, 83AC. Para o significado do termo logos (“dou

trina religiosa”) cf. 63C, 70C,  Epist. VII 335A etc. Interpretando assim

a velha tradição sobre a importância de estados de dissociação, Platão

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P l a t ã o , a   a l m a   i r r a c i o n a l   e   a “ h e r a n ç a   c o n g l o m e r a d a ’ 227

estava, sem dúvida, influenciado pela prática socrática de retiro mental

 pro longado, como descri ta no Banquete , 174D 175C. e 220C D, e (pa re

ce) parodiada nas  N uvens: cf . Fes tug ière , Comtempla t ion e t v ie

contemplative chez Paton, 69 sg.

7. Cf. cap. V,  supra, nota 107.8. Proclus, in Remp. II. 113.22, citacomo precedentes Aristeas. Hermóti-

mo (assim Rohde com relação a Hermodoro) e Epimênides.

9 . Sobre como o xamã s iber iano se to rna um Üõr após a mor te

(Sieroszewski,  Rev. de l ’his to ir e cies rei. 46 [1902], 228 sg.), assim os

homens da “linhagem de ouro” de Platão receberão culto  postm orte m  

não apenas com o heróis - o que estaria dentro do espectro do costume

contemporâneo - mas (sujeito à aprovação délfica) como ôa ipo v eç ( R e-

 púb lica , 468E-469B). Na verdade, tais homens já podem ser chamados5ca|ioveç durante sua vida (Crátilo, 398C). Em ambas as passagens, Pla

tão apela para o precedente da “raça de ouro” de Hesíodo (Erga, 122

sg.). Mas ele está quase certamente influenciado também por algo me

nos remotamente mítico, a saber as tradições pitagóricas que concediam

 sta tu s especial ao Geioç ou §ai|aovioç avr|p (capítulo V,  supra, nota

61). Os pitagóricos, como os xamâs siberianos de hoje, tinham um ri

tual fúnebre especial próprio que lhes assegurava (raicapicjTOV Kai

oikeiov TEÀ.OÇ (Plutarco,  gen. Soer. 16; 585E, cf. Boyancé, Culte des 

 M uses, 133 sg.; Nioradze, Schamanismus, 103 sg.) e que pode ter for

necido o modelo para as regulações pouco costumeiras e elaboradas

deixadas nas  Leis para os funerais de EuOuvoi (947BE; cf. O. Reverdin,

 La Religion de la cité pla tonic ie nne, 125 sg.). Sobre a questão polêmi

ca em torno de saber se Platão, ele próprio, teria recebido honras divinas

(ou demoníacas) após a morte, ver Wilamowitz,  Aris tó te le s u. Ath en II.

413 sg.; Boyancé, op. cit., 250 sg.; Reverdin, op. cit., 139 sg.; e contra

estas opiniões, Jaeger,  Aris to tle, 108 sg.; Festugière,  Le Dieu cosm iq ue ,

219 sg.).10.  República, 428E-429A. Cf.  Fédon , 69C.

11.  Fédon, 82AB;  República, 500D; e as passagens citadas abaixo do  File bo e das  Leis.

12.  Político, 297DEe, 301 DE; cf.  Leis , 739DE.

13.  Filebo, 2IDE.

14.  República, 486A.

15.  Leis , 663B, cf. 733A.

16. Ibid., 663D.

17. Ibid., 653B.

18. Ibid., 664A.

19 .Apologia de Sócrates, 38A. O professor Hackforth, CR 59 (1945), 1 sg.,

 procurou nos convencer de que Pla tão perm aneceu leal a esta máxim a

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2 2 8 O S GREGOS E O IRRACIONAL

ao longo de sua vida. Mas embora ele tenha dado apoio insincero a ela,

ao final de sua obra, como no Sofista (230CE), não vejo escapatória para

a conclusão de que a política educacional da  República , e ainda mais

claramente a das  L eis, é na realidade baseada em diferentes considera

ções. Platão nunca pôde confessar para si mesmo que havia abandonado

qualquer princípio socrático, mas isto não o impedia de fazê-lo. A “te

rapia m ental” de Sócrates certamente implica respeito pela mente humana

como tal; as técnicas de sugestão e outros controles recomendados nas

 Leis parecem implicar o oposto disto.

20. Nas  L e is , eTC(úôr) e seus cognatos são continuamente usados neste sen

tido metafórico (659E, 664B, 665C., 666C, 670E, 773D, 812C, 903B,

944B). Cf. o uso pejorativo da palavra em Cálicles, Górgias, 484A. Sua

aplicação no Cármides (157AC) é significativamente diferente: ali ocorreque o “encantamento” se torna uma réplica socrática. Mas em  Fédon, 

onde o mito é uma erecoôr) (114D, cf. 77E-78A) da qual tivemos uma

noção nas  Leis . Cf. a discussão interessante de Boyancé, Culte des 

 Muses, 155 sg.

21. Timeu, 86DE;  Leis , 731C, 860D.

22. Cf. cap. VI,  supra.23.  F éd o n . ( t lA . K a G a p o i a7 ia X Â .a TT o |ie vo i t r | ç t o u a m p a t o ç

oc<|)poat>vr|ç. Cf. 66C: t o oco|aa K ai a i t o u t o d STuO-u^iai, 94E:otYEoGca utco tcdv t o u acopaTOç TiaGru-ioacov, Crát. 4 I4 A : r a G a p a

ncxvTcov tcúv itep i to acú|aa kockcüv Kai eniGvpicov. No  Fédon, como

Festugière afirmou ultimamente, “o corpo é o mal, e é todo o mal” (Rev. 

de Phil. 22 [1948], 101). Aqui, o ensinamento de Platão é a principal

ligação entre a tradição “x am anística” grega e o gnosticismo.

24. Para uma análise mais com pleta da alma u nitária e tripartida em Platão,

ver G.M.A. Grube,  P la to ’s Thought, 129-149, onde a importância do

conceito de  sta sis “uma das coisas mais incrivelmente modernas da filosofia de Platão” é corretamente ressaltada. À parte os motivos

apresentados no texto, a extensão da noção de  psyche para englobar toda

a atividade humana está, sem dúvida, conectada à visão final de Platão

segundo a qual  psyche é a fonte dc todo movimento, bom ou ruim (cf.

Timeu, 89E: T p ia Tpi%r| y u x ti ç ev 11lii v e i8'n K aic oK iara i, TDy%avei

5e EKaoTov Kivriaeiç e/ov,  Leis, 896D: tcúv Te ayaGcov a m a v eiv ai

V|/DXilv Kai tcúv KaKCOV). Sobre a atribuição de uma alma secundária,

irracional e potencialmente má, nas  Leis (896E) ver Wilamowitz,  Platon,  

II 315 sg., e a muito completa e justa discussão desta passagem por Si-

m o n e P é t r em en t ,  Le du a lism e chez P la ton, le s g n o stiq u es et le s  

manichéens (1947), 64 sg. Apresentei minha visão de maneira breve em

 JHS 65 (1945), 21.

25.  Fédon, 94DE;  República, 441 BC

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I 'l a t ã o , a   a l m a   i r r a c i o n a l   e   a “ h e r a n ç a   c o n g l o m e r a d a ” 229

20. Ibid., 485D: MOTOp peü|J.a ekeioe aTKOX&ceunevov. Grube, loc. cit., 

chamou a atenção para o significado desta passagem, e de outras na  R e-

 pública, como sugerindo que “o objetivo não é reprimir, mas sublimar”.

Mas os pressupostos de Platão são, é claro, muito diferentes dos de

Freud, como Cornford observou em seu ótimo ensaio sobre o Eros pla

tônico (The Unwritten Philosophy, 78 sg.).

27. Ibid., 439E. Cf. 35IE-352A, 554D, 486E, 603D.

28. Sofista, 227D-228E. Cf. também  Fedro, 237D-238B;  Leis , 863A- 864B.

29. ek  Ttvoç 5ico|)0opaç Stcx(j>opav. Assim em Burnet a partir da tradição

indireta com base em Galeno.

30. As primeiras sugestões de uma abordagem desta visão das coisas po

dem ser detectadas em Górgias (482BC, 493A). Mas não posso acreditar 

que Sócrates ou Platão assumam a posição de Pitágoras como algo pronto e acabado, como Burnet e Taylor supõem. A alma unitária do  Fédon 

vem (com um significado algo alterado) da tradição pitagórica; a prova

de que a alma tripartida vem desta mesma tradição é tardia e fraca. Cf.

J aeg e r ,  N e m e s iu s von E m esa , 63 sg. ; Field,  P la to a n d h is  

Contemporaries, 183 sg.; Grube, op. cit., 133. O reconhecimento de um

elemento irracional na alma por parte de Platão foi visto na escola pe-

ripatética marcando um avanço importante face ao intelectualismo de

Sócrates ( M agna Moralia, 1.1. 1182a 15 sg.); e suas visões sobre o trei namento da a lma i r racional , que reagirão apenas a um £0ig | íoç

irracional, foram posteriormente invocados por Posidônio em sua polê

mica contra o intelectualista Crisipo (Galeno, de placitis Hippocratis 

et Platonis, p. 466 sg. Ktihn, cf. 424 sg). Cf. capítulo VIII, infra.

31. Timeu, 90A; Crátilo, 398C. Platão não explica as implicações do ter

mo; sobre o seu provável sentido, ver L. Robin,  La th éorie pla tonic ien, 

107 sg. A alma irracional, sendo mortal, não é um 5ai|i(ov; mas as  Leis  

 parecem in dicar que o 5at| i(úv “paradisía co” tem uma contrapart id a de

moníaca malévola na “natureza titânica” que é uma raiz hereditária da

fraqueza humana (701C, 854B; cf. capítulo V,  supra, notas 132, 133).

32. Timeu, 69C. No  Polí tico, 309C, Platão já havia se referido aos dois ele

mentos no homem como to aeryEVEÇ ov rr)ç \|/r>xr|ç |i£poç e to

Çdoyeveç, que sugere que a última delas é mortal. Mas ali elas são “par

tes” da mesma alma. No Timeu elas são apresentadas usualmente como

“tipos” distintos de almas, têm origens diferentes, e os “tipos” inferio

res são mantidos afastados do elemento divino para que não poluam-no

“além do mínimo inevitável” (69D). Se formos interpretar esta linguagem literalmente, a unidade da personalidade é virtualmente abandonada.

Cf., entretanto,  L eis , 863B, onde a questão se 0t>|ioç é um 7ta0oç ou

um |iBpoç da alma é deixada em aberto, e Timeu, 91E onde o termo |i£pr|

é utilizado.

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2 3 0 OS GREGOS E O IRRACIONAL

33. Xenofonte, Ciropéclia, 6.1.41. O persa imaginário de Xenofonte é, sem

dúvida, um dualista “mazdeano”. Mas não é necessário supor que a psi

cologia do Timeu (segundo a qual a alma irracional é concebida como

capaz de ser educada, e portanto não depravada de modo incurável) é

tornada emprestada de fontes “mazdeanas”. Ela possui antecedentes gre

gos na doutrina arcaica do 8ai|iCúV interno (capítulo II,  supra), e na

distinção de Empédocles entre Sai|.icúV e \)/x>%n (capítulo V,  supra), e a

adoção que Platão faz disto pode ser explicada em termos do desenvol

vimento de seu próprio pensamento. Sobre a questão geral da influência

oriental 110 pensamento tardio de Platão eu disse algo em  JHS  65 (1945).

Desde então, 0 problema tem sido amplamente discutido por Jula

Kerschensteiner,  Pla to u. d. Orient  (Diss. München, 1945); por Simo-

ne Pétrement,  Le dualisme chez P laton; e por Festugière em urnaimportante monografia, “Platon et rOrient”,  Rev. de Phil. 21 (1947), 5

sg. Até onde se trata de sugerir uma origem "mazdeana" para 0 dualis

mo platônico, as conclusões dos três autores são negativas.

34.  Leis , 644DE. O germe desta idéia já pode ser visto no lon, por onde

sabemos que Deus age sobre as paixões através dos poetas “inspirados”,

sA-Ket ti"|v \|/dxviv 07101 av Po-uXiixai xcov av0pci)7icov (536A), apesar 

de a imagem ali encontrada ser a de um ímã. Cf. também  Leis , 903D,

onde Deus é “jogador” (jietteuttiç) e os homens suas peças.35. Ibid., 803B-804B.

36. Ibid., 713CD.

37. Ibid., 716C.

38. Ibid., 902B, 906A; cf. Crítias, 109B.

39. Ibid., 716A. Sobre as implicações de tooieivoç cf., por exemplo, 11 AC., 

ôou^Eta TomEtvri Kat aveXe\)0epoç. Ser laneivoç com relação aos deu

ses era, para Plutarco, um indício de superstição (non posse suaviter, 

1101E), como também para Máximo de Tiro (14. 7 Hob.) e provavel

mente para a maioria dos gregos.

40. Ibid., 486A; cf. Teeleto, 173C-E, Aristóte les,  Ética a Nicômaco, 1123b 32.

41 .  Mênon, 100A;  Fédon, 62B.

42. Ibid., 81E 82B.

4 3 . P l o t i n o ,  E n é a d a s , 6 .7 .6 : | j£Ta? ia (3ou0r | ç ôe 0 r ipe iov ocú |aa

OaDiaaÇEtat tccoç, \o y o q o v a a avOpamoti. Cf. ibid., 1.11; Alex, Afrod.

de anima, p. 27 Br. (Supl. Arist. II.I); Porfírio apiul  Santo Agostinho,

 A Cidade de Deus, 10.30; Iâmblico apud  Nemes; natura hom. 2 (PG

40, 584A); Proclus in Tim. III, 294, 22 sg. A noção de reencarnaçãoem animais foi de fato transferida do “eu” oculto do pitagorismo para a

 psyche racional a qual ela não correspondia: cf. Rostagni.  II verbo di 

 P itagora, 118.

44 .  Leis , 942AB: “O principal é que ninguém, homem ou mulher, possa es

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P l a t ã o , a   a l m a   i r r a c i o n a l   e   a “ h e r a n ç a   c o n g l o m e r a d a ” 2 3 1

tar alguma vez sem um superintendente e que ninguém tenha o hábito

mental de tomar uma decisão, a sério ou de brincadeira, que seja da sua

responsabilidade exclusiva: na paz como na guerra, deve-se viver com

os olhos postos no oficial superior, seguindo suas ordens e deixando-seguiar por ele nas menores ações [...] em uma única palavra, devemos

treinar o espírito para nem saber considerar a possibilidade de uma ação

individual.”

45. Sobre desenvolvimentos tardios do tema da pouca importância de Ta

avGpcümva, ver Festugière,  Eranos 44 (1946), 376 sg. Sobre os ho

mens como marionetes, cf. M. Ant. 7.3 e Plotino,  E néadas, 3.2.15

(1.244.26 Volk.).

46.  Apologia de Sócrate s, 22C para os poetas e videntes inspirados  X eyovai 

|i£v noXXa Kai rn À a la a a iv d ’ou5e v cov Àeyouoi. O mesmo é dito

com relação a políticos e videntes ( M ênon, 99CD), poetas (l on , 533E-

534D;  Leis , 719C), videntes (Timeu, 72A).

47.  Lacjues, 198E; Cármides, 173C.

48. O ataque à poesia na  República é normalmente tido como platônico mais

do que socrático, mas a visão da poesia como irracional, de que depen

de o ataque, já aparece na  Apolo gia de Sócrate s (nota 46 acima).

49. Cf. cap. VI,  supra.

50.  Feclro, 244CD; Timeu, 72B.51. Cf. R.G. Colingwood, “Plato ’s Philosophy of Art”,  M in d  N.S. 34 (1925),

154 sg.; E. Fascher,  Pro phetes,  66 sg.; Jeanne Croissant,  A risto te et les 

mystères, 14 sg.; A. Delatte,  Les conceptions de 1'enth ousiasme, 57 sg.;

P. Boyancé,  Le Culte cies M uses, 177 sg.; W.J. Verdenius, “L’lo n de

Platon”,  Miiem. 1943, 233 sg., e “Platon et la poésie”, ibid. 1944, 118

sg.; I.M. Linforth, “The Corybantic Rites in Plato”, Univ. Calif Publ. 

Class. Philol. 13 (1946), 160 sg. Alguns destes críticos separariam a

linguagem religiosa de Platão de qualquer tipo de sentimento religioso:“não é nada mais do que uma bela vestimenta com a qual ele reveste

seu pensamento” (Croissant); “chamar de arte lima força divina ou uma

inspiração é simplesmente chamá-la um je ne sa is quoi” (Collingwood).

Isto me parece perder parte do que Platão quer dizer. Por outro lado,

aqueles que, como Boyancé, tomam sua linguagem muito ao pé da letra

 parecem perder de vis ta o tom irônico que é evidente em passagens como

 M ênon, 99CD e que pode ser detectado em outras passagens.

52.  Feclro, 244A: paviaç 0£ia Sooei 8iÔ0 |ievr|Ç.

53. Cf. cap. III,  supra.

54.  Leis , 719C, o poeta oiov Kpqvr) tiç to emov peiv etoi(ícoç ea.

55.  Banquete, 202E: 8ia toutoi) (sc. tou Saiiioviou) Kai q | iavTiKT| 7iaaa

Xcopei Kai r) tcov ispecov T£%vii tcúv te jiEpi Taç G u a ia ç K ai TE^Eraç

Kai Taç ETtwSaç Kai t t |v pavisiav naoav Kai yoqTEiav.

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232 O s GREGOS E O IRRACTONAL

56. Na “avaliação de vidas” ( Fedro, 248D) |iavxiç ou xeX£OTT|ç e o poeta

são colocados nos grupos quinto e sexto respectivamente, abaixo até

mesmo de homens de negócios e atletas. Sobre a opinião de Platão a

respeito de |icxvx£tç, cf. também  Polí tico, 290CD;  Leis , 908D. Entretanto ambos, |iocvx£iç e poeta, têm uma função, embora subordinada,

ao seu projeto final de uma sociedade reformada ( Leis 660A, 828B); e

ouvimos falar de p.ccvxiç que haviam estudado com ele na Academia

(Plutarco,  Dion. 22).

57. Cf. cap. II e cap. VI,  supra. Cf. Taylor,  Piato 65. “Na literatura grega

do período áureo, Eros é um deus para ser temido pelas destruições que

faz na vida humana, e não para ser cobiçado pelos benefícios que con

fere; é um tigre, não um gatinho para brincar.”

58.  Fedro , 249E, a loucura erótica é 7taocov xcov £v9ot>aiaG£Cúv aptatr).

59. Esta linguagem religiosa não exclui, entretanto, a explicação da atração

erótica em termos m ecanicistas - sugerida talvez por Em pédocles ou

Dem ócrito - pela postulação de emanações físicas do olho do amado

que era, em última instância, refletido de volta sobre o autor  (Fedro, 

251B, 255CD). Cf. a explicação mecanicista da catarse produzida por 

ritos coribânticos (Leis, 791 A), que é chamada democrítica por Delatte

e Croissant; pitagórica por Boyancé, mas pode ser muito possivelmente

do próprio Platão.60. Eros como um ôat|_tff)V tem a função geral de ligar o elemento humano

ao divino (Banquete, 202E). Em conformidade com tal função, Platão

vê as manifestações sexuais e não sexuais de Eros como expressões do

mesm o im pulso básico em direção a to k o ç ev kcxA.cú - uma frase que é

 para ele a afi rm ação de uma lei org ânica pro fundam ente enra izada. Cf.

1. Brun s, “A ttische L iebc sth eo rien ”,  NJbh 1900, 17 se.; e Grube, op.cit., 115.

61. Ibid., 207AB.62. E significativo que o tema da imortalidade, no seu sentido platônico

usual, esteja completamente ausente do  B anquete ; e que no  Fedro , onde

uma espécie de integração é tentada, ela possa ser atingida apenas ao

nível do mito e unicamente à custa de um tratamento da alma irracional

como perseverando após a morte e retendo seus apetites carnais em umestado desencarnado.

63. D evo m uito das próx im as páginas à exce lente m ono graf ia de O.

Reverdin,  La relig ion de la c ité p la ton ic ienne (Travaux de 1’École

Française d’Athènes, fase. VI, 1945), que não achei menos valioso ape

nas por causa do seu ponto de vista religioso que é muito diferente do meu.

64.  L e is , 717AB, 738D: todo vilarejo deve ter seu deus local, 8ai|amv, ou

herói, como todo vilarejo na região ática provavelmente tinha de fato

(Ferguson,  Harv. Theol. Rev. 37 [1944], 128 sg.).

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I'I .M AC), A ALMA IRRACIONAL E A "HERANÇA CONGLOMERADA” 2 3 3

<>Y Ibid., 904A, oi Koaa vo |ío v   ovteç 0 e o i . Cf. 885B. e s e a p a s s a g e m é  

m u i t o f o r t e , v e r 891E.

()(). Crátilo, 400D;  Feclro, 246C; Crítias, 107AB;  Epin. 984D (que soa de

finitivamente pejorativa). Aqueles que, como Reverdin (op. cit., 53),

creditam a Platão uma forte crença pessoal nos deuses da tradição, poisele prescreve culto a eles e em nenhum lugar nega explicitamente sua

existência, parecem-me permitir pouco espaço para qualquer esquema

 prático de re form a re ligio sa. Separa r as massas com ple tam ente de suas

crenças herdadas, se possível fosse, teria sido para Platão algo desas

troso, e nenhum reformador pode abertamente rejeitar para si o que ele

 pre screveria para outros. Ver mais à frente minhas observações em  JHS  

65 (1945), 22 sg.

67. Timeu, 28C. Sobre a muito debatida questão em torno do Deus de Platão, ver especialmente Diès,  A u tour de P la ton , 523 sg.; Festugière,

 L ’Idéal religie ux des Grecs eí 1' Evangile, 172 sg.; Hackforth, “Plato’s

Theism”, CQ 30 (1936), 4 sg.; F. Solmsen,  P la to’s Theolo gy (Cornell.

1942). A pre sen te i m inha pró pr ia proposta de v isão em  JHS, loc. 

cit., 23.

68. Os corpos celestiais são por toda a parte representantes naturais ou sim

 b ó lico s daqu ilo que C h ris to p h e r D aw son cham a de "o e lem en to

transcendente da realidade externa” (Religion a nd Culture, 29). Cf.  Apo-logia de Sócrates, 26D, onde diz-se que “todos”, incluindo o próprio

Sócrates, acreditam que o Sol e a Lua são deuses; e Crátilo, 397CD,

onde os corpos celestiais são representados como deuses primitivos da

Grécia. Mas no século IV a.C., como ficamos sabendo por  Epin omis , 

982D, esta crença estava começando a desaparecer diante da populari

zação de explicações mecanicistas (cf.  Leis , 967A;  Epin ., 983C). Seu

retorno na época helenística deveu-se, em grande parte, ao próprio

Platão.

69. Sobre a questão da animação versus o controle externo, ver  Leis , 898E-

899A;  Epin ., 983C. A animação era sem dúvida a teoria popular, e

deveria prevalecer na era seguinte, mas Platão recusa-se a decidir (as

estrelas tanto são Geoi como Gecov  e ikoveç   coç ayaX paT a, Oecov cxmcov

£pyaoa|i£vcov,  Epin . 983E; sobre a última opinião, cf. Timeu, 37C).

70.  Leis , 821B-D. Em si mesma, a oração ao Sol não era estranha à tradi

ção grega: Sócrates reza para ele ao nascer  (Banquete, 220D), e um

falante em um peça perdida de Sófocles também reza: r |£À,ioç,

OlKTEipElE |i £ , | OV 01 0 0 0 0 1 >i£ yO \)0l Y£VVT|Tr|V 0ECÜV | Kai 7taT£paTtavTCüv (cf. 752 P.). Mais adiante nas  Leis (887D) Platão fala de

TipoKvA.iGEiç a p a Kai T ipoaK uvriaeiç E^Xr|vcov te Kai p ap pa pc ov ao

nascer e no pôr do Sol e da Lua. Festugière acusou-o de representar fal

samente os fatos aqui relatados: "Nem o objeto de culto nem o gesto de

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2 3 4 O S GREGOS E O IRRACIONAL

adoração são gregos: eles são bárbaros. Trata-se da astrologia caldéia e

da rcpocKUvriaiç em uso na Babilônia e entre os persas” (Rev. de Phil. 

21 [1947], 23). Mas enquanto podemos aceitar que Ttpoiculiaeiç, e tal

vez também o culto da Lua, sejam bárbaros e não gregos, a afirmação

de Platão parece suficientemente justificada pela regra de Hesíodo de

oração e oferendas ao nascer e pôr do Sol (Erga, 338 sg.) e por Aristó-

fanes,  Plu t. 771: Kat TtpocKuvro ye npcoxa |iev xov r|A.tov, kxL

Entretanto, as propostas das  Leis realmente parecem dar aos corpos ce

lestiais uma importância religiosa que faltava a eles no culto grego mais

comum, embora possam ter tido precedentes parciais no pensamento e

 prá tic a pitagóricos (cf. capítulo VIII, infra, nota 68). E no  Epin omis  

que atualmente me inclina a considerar uma obra de autoria do próprio

Platão ou como com pilada a partir de seu “Nac hlass” - encontramos algoque é certamente oriental, e francamente mostrado como tal: a proposta

de idolatrar  publicam ente os  pla neta s.

71. Ibid., 946BC, 947A. A dedicatória não é meramente formal: as euG-ovoi

devem ser na realidade armazenadas no xe(xevoç do templo em anexo

(946CD). Deve-se acrescentar que a proposta de instituir um alto sa

cerdote (apxiEpevç) parece ser uma inovação; de qualquer modo, o

título não é em parte alguma confirmado antes da época helenística

(Reverdin, op. cit., 61 sg.). Presume-se que ele reflete a idéia platônicasobre a necessidade de uma organização mais rígida para a vida religio

sa nas comunidades gregas. O alto sacerdote será, entretanto, como

outros sacerdotes, um leigo, e se manterá no cargo por apenas um ano;

Platão não concebia a idéia de um clero profissional, e o teria certa

mente desaprovado, creio eu, como tendendo a causar danos à unidade

da “Igreja” e do Estado, à vida religiosa e política.

72. Ver Festugière,  Le D ie u cosm iq ue (=  La révélation d ’Herm es, II, Paris,

1949); e capítulo VIII,  supra .73. O (j)6ovoç divino é explicitamente rejeitado no  Fedro (247A), no Timeu 

(29E), e na  M etafísic a de A ristó teles (983a 2).

74. Ver cap. II,  supra, nota 32.

75.  Leis , 903B, ejtcüôcov ^foGoiv: Cf. 872E, em que a doutrina de compen

sação em futuras vidas terrestres é chamada ^tuBoç r|  Xoyoç, r] o xt %pr|

rtpoaayopEDEiv a w o , e L. Edelstein, “The Function of the Myth in

P lato’s Philosophy” ,  Journal o f tlie H is tory o f ldeas 10 (1949), 463 sg.

76. Ibid., 904C-905D, 728BC e o desenvolvimento de Plotino desta idéia

(Enéadas, 4.3.24).77. Ibid., 90 4D: A tSiiv xe Kat xa xo-uxwv Ex;o|i£va xwv ovo(.taxcov

E7tovo|.iaÇovx£ç aifioSpa <|>o|3o\)Vxat Kat ovEtpOKO^ouotv Çcovxeç 

5ia?a)0EVX£ç xe xcov acoi-iaxcov. A linguagem de Platão (ovo|.iaxa>v,

ovEipoTioA-Oucnv) nesta passagem sugere que a crença popular sobre o

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P l a t ã o , a   a l m a   i r r a c i o n a l , e   a " h e r a n ç a   c o n g l o m e r a d a ” 2 3 5

submundo não tem senão valor simbólico. Mas as últimas palavras são

intrigantes: elas dificilmente devem querer dizer “quando em sono ou

transe” (England) pois seriam assim antitéticas com relação ao termo

Çovreç, mas parece afirmar que o temor do Hades continua após a m orte. 

Platão pr ete nd e insinuar que para experimentar este temor - fruto de

uma consciência culpada - é preciso já estar  no Hades? Isto estaria de

acordo com a doutrina geral que ele pregou do Górgias em diante, de

que errar já é sua própria punição.

78. Ibid., 903CD, 905B. Sobre o significado deste ponto de vista, ver Fes-

tugière,  La Sain teté , 60 sg.; e V. Goldschmidt,  La reügion cie Pla ton,

10 sg. Isto tornou-se um lug ar comum do esto icism o, por exemplo, Cri -

sipo apud  Plutarco, Sto. rep. 44, 1054F; M. Ant. 6.45, e que reaparece

em Plotino, por exemplo,  Enéadas 3.2.14. Os homens vivem no cosmos como ratos em um casarão, aproveitando esplendores não destinados

a eles (Cícero, nat. cleor. 2.17).

79.  Euti fron, 14E;  Leis , 716E-717A.

80.  República, 364B-365A;  Leis, 909B (cf., 908D). As similaridades ver

 bais das duas passagens são, creio eu, su ficientes para mos trar que Pla tão

tinha em vista a mesma classe de pessoas (Thomas, ‘Eíieiceiva, 30;

Reverdin, op. cit., 226).

81.  República, 364E: TteiQovxeç ou |iovov lôtcoxaç aXXa koci no/Veiç (Cf.366AB, a i (tÊyiOToa 7ioÀ,eiç);  Leis , 909B: tStcoraç te kou o\ac , otKtaç

Kai tcoàeiç xpriiaaTcov %aptv ertixeipcocnv K ar ’aK pa ç e^ atp eiv . Pla

tão pode ter em mente exemplos históricos famosos como a purificação

de Atenas por Epimênides (mencionada nas  Leis , 642D, onde o tom res

 peitoso está no personagem cre te nse) ou de Esparta por Tale tas: cf.

Festugière,  REG 51 (1938), 197. Boyancé,  REG 55 (1942), 232, obje

tou que Epimênides não estava interessado no que viria depois. Mas isto

é verdade apenas na visão de Diels de que os escritos atribuídos a eleeram falsificações “órficas” - uma visão que, correta ou não, Platão pro

vavelmente não teria feito.

82. Acho difícil acreditar - como muitos fazem , apoiados em "M useu e o

filho” (Rep. 363C) - que Platão preten desse co nden ar os Mistérios de

Elêusis: cf. Nilsson,  Harv. Theol. Rev. 28 (1935), 208 sg.; e Festugière,

loc. cit. Certamente ele não pode ter querido sugerir nas  Leis que o sa

cerdócio eleusiano devesse ser levado a julgamento por ofensa que ele

vê como pior do que o ateísmo (907B). Por outro lado, a passagem da

 República não justifica uma restrição na condenação platônica a livrose práticas "órficos”, embora estes estejam certamente incluídos nela. A

 pa ssagem para le la nas  Leis não menciona Orfeu.

83. Ver nota 6 acima.

84.  República, 427BC;  Leis , 738BC, 759C.

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2 3 6 O S GREGOS E O IRRACIONAL

85. Não pretendo insinuar que para Platão a religião apolínea fosse simples

mente uma m entira piedosa, uma ficção m antida por sua utilidade social.

Ela reflete muito mais uma verdade religiosa ao nível da imaginação

(eiKacaa) que pode ser assimilada pelo povo. O universo de Platão era

um universo de gradação: assim como ele acreditava em graus de ver

dade e realidade, também acreditava em graus de intuição religiosa. Cf.

Reverdin, op. cit., 243 sg.

86.  Leis , 873E. A conspurcação deve ocorrer em todos os casos de homicí

dio, mesmo involuntário (865CD), ou de suicídio (873D), e requer uma

calarsis que será prescrita pelo ei;r|Yr|Tai délfico. A infecção de mias 

ina é reconhecida dentro de certos limites (881DE, cf. 916C, e capítulo

II,  supra , nota 43).

87. Ibid., 907D-909D. Aqueles cujo ensinamento contra a religião é agravado por conduta anti-social devem sofrer confinamcnto solitário por 

toda a vida (909BC) em horríveis locais nos arredores (908A) - um des

tino que Platão encara corretamente como pior do que a morte (908E).

Ofensas rituais graves, tais como o sacrifício a um deus quando em es

tado impuro, devem ser punidas com morte (910CE), como eram em

Atenas: isto é defendido sobre a velha base de que tais atos trazem a

fúria dos deuses sobre toda a cidade (910B).

88. Ibid., 967BC. “Certas pessoas” que anteriormente tiveram problemas por afirmarem falsamente que corpos celestiais eram “um monte de pedras

e terra” tinham apenas a si mesmos para culpar. Mas a visão de que a

astronomia é uma ciência perigosa é, graças às descobertas modernas,

uma visão desatualizada (967A); algo dela é ainda necessário para a edu

cação religiosa (967D-968A).

89. Cornford traçou um forte paralelo entre a posição de Platão e aquela

do Grande Inquisidor cm Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski [The 

Unwritten Philosophy, 66 sg.).90.  Leis , 885D: odk em to |ir | §pav Ta aôiKa Tpe7io|ae0a oi 7iÀ,etaT0i,

SpaovTeç 5’eE,aKeta0at TteipopeOa, e 888B: neytoTov Se [...] to rtepi

to u ç Oeouç opOcoç 8 ia v o r|0 ev T a Çriv KaÀ.raç T) |a.T|. Sobre a ampla d i

fusão do materialismo, ver 891B.

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O MEDO DA LIBERDADE 

 VIII

 As m aio res dif ic uld ades de um homem  

com eçam quando ele se torna capaz 

de agir como lhe apraz.

T. H. Huxley

evo começar este último capítulo por uma confissão.Quando a idéia geral das palestras, nas quais se baseia estelivro, se formou pela primeira vez na minha mente, meu objetivoera ilustrar a atitude grega diante de certos problemas dentro dc todaa extensão temporal, que vai de Homero aos últimos neoplatônicos pagãos - um espaço de tempo tão grande quanto aquele que nos se

 para da antigüidade. Mas à medida que o material se acumulava eas palestras eram redigidas, ficou claro que isto não poderia ser feito, a não ser ao preço de uma desesperançada superficialidade. Até

aqui cobri, de fato, aproximadamente um terço do período em questão, e mesmo assim deixando muitos hiatos. A maior parte da estória permanece sem ser contada. Tudo o que posso fazer agora é

examinar uma perspectiva de mais ou menos oito séculos e me perguntar, de maneira bem geral, que mudanças ocorreram em certas

atitudes humanas e por que razões. Não posso esperar chegar a res

 postas exatas e seguras com uma análise tão curta. Mas já será alguma coisa se pudermos traçar um painel dos problemas existentes,

formulando-os de maneira correta. Nosso exame começa numa era em que o racionalismo grego

 parecia estar à beira do triunfo final, a grande era de descoberta in

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238 OS GREGOS E O IRRACIONAL

telectual que começa com a fundação do Liceu, em torno de 335 a.C.,continuando até o fim do século III a.C. Este período testemunhou atransformação da ciência grega, que de um acúmulo desordenado

de observações isoladas mescladas a suposições a priori passa a umsistema de disciplinas metódicas. No caso das ciências mais abstratas, como a matemática e a astronomia, atingiu-se um nível que nãoseria alcançado novamente antes do século VI. Foi feita a primeiratentativa organizada de pesquisa em campos como a botânica, a zoologia, a geografia e a história da linguagem, da literatura e dasinstituições. Não foi apenas no domínio da ciência que os temposse mostraram venturosos e criativos. Foi como se a repentina am

 pliação do horizonte espacial, resultante das conquistas de Alexandre,houvesse ampliado, ao mesmo tempo, os horizontes da mente. Ape

sar da falta de liberdade política, a sociedade do século III a.C. erade diversos modos a maior aproximação de uma sociedade“aberta”' que o mundo havia conhecido, estando mais próxima doque qualquer outra, ate mesmo daquilo que veríamos nas sociedades modernas. As tradições e instituições da velha sociedade

“fechada”, é claro, ainda estavam ali e eram influentes - a incorporação de uma cidade-estado dentro de outro reino helenístico nãocausava uma perda de importância moral do dia para a noite. Masembora a cidade estivesse ali, seus muros - como alguém afirmou -

haviam sido destruídos. Suas instituições estavam expostas à críticaracional; seus modos de vida tradicionais eram cada vez mais penetrados e modificados por uma cultura cosmopolita. Pela primeira vez

na história grega pouco importava onde um homem havia nascidoou qual era seu ancestral - dos homens que dominavam a vida intelectual neste período, Aristóteles e Teofrasto, Zenão, Cleantes eCrisipo eram todos estrangeiros; apenas Epicuro era ateniense, apesar de colono de nascimento.

Juntamente com este nivelamento dos fatores determinantes locais e com esta liberdade de movimento no espaço, houve umnivelamento análogo dos determinantes temporais, com uma nova

liberdade para a mente viajar de volta no tempo, escolhendo à vontade os elementos da experiência passada que deveriam ser assimilados e explorados. O indivíduo começou a fazer uso consciente da tradição, em vez do contrário. Isto é ainda mais óbvio emse tratando dos poetas helenísticos, cuja posição a respeito era como

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( ) MKDO DA LIBERDADE 2 3 9

,i dos poetas e artistas de hoje. “Se falamos de tradição hoje”, afirma Auden, “isso não significa mais o que o século XVIII queria dizer com o termo, isto é, um modo de trabalhar que é passado de uma

geração para outra; queremos dizer, uma consciência da totalidadedo passado existindo no presente. Originalidade não significa maisuma ligeira modificação pessoal de um imediato predecessor, mas acapacidade de encontrar, em qualquer obra, de qualquer época oulugar, pistas para tratar um tema próprio”.2Que isto vale para a maior 

 parte da poesia helenística, senão para toda, é algo que quase nãonecessita de provas. E, aliás, o que explica tanto a força quanto afraqueza de obras como a Argonáutica, de Apolônio, ou nAetia, de

Calímaco. Mas podemos aplicar tal princípio também à filosofia helenística: o uso que Epicuro faz de Demócrito e que os estóicosfazem de Heráclito são alguns casos que ilustram esta tendência.Como mostraremos agora,3tudo isso se funda ainda uma vez no catn-

 po das crenças religiosas.É certamente nesta idade que o orgulho grego da razão huma

na atinge sua expressão mais confiante. Devemos rejeitar, dizAristóteles, a velha regra de vida que aconselhava humildade, convidando o homem a pensar em termos mortais (0vr|Ta cj)povetvtov 0vt|TOv); pois o homem possui dentro de si algo divino - o intelecto -, e até onde ele puder viver desta experiência intelectual,ele viverá como se não fosse mortal.4 O fundador do estoicismo iráainda mais longe na mesma direção: para Zenãoo intelecto humanonão é meramente aparentado ao intelecto divino, mas sim o próprioDeus, uma porção da substância divina em estado puro ou ativo.5

Embora Epicuro não tenha feito nenhuma afirmação desta natureza,ele ainda assim sustenta que através de uma constante meditação so bre as verdades da filosofia pode-se viver “como um deus entre oshomens”.6

Mas é claro que a vida humana comum não é assim. Aristóteles sabia que nenhum homem pode manter uma vida baseada na purarazão, senão por períodos muito curtos.7 Ele e os seus pupilos talvez apreciassem mais do que outros gregos a necessidade de estudar os fatores irracionais do comportamento como condição para atingir uma compreensão realista da natureza humana. Ilustrei de maneira breve a lucidez e sutileza de sua abordagem ao problema, ao tratar da influência catártica da música e dos sonhos# Se as circunstân

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2 4 0 OS GREGOS E O IRRACIONAL

cias houvessem permitido eu gostaria de ter dedicado um capítulointeiro ao tratamento dado por Aristóteles à questão do irracional.Mas minha omissão pode talvez ser desculpada, uma vez que já exis

te um excelente pequeno livro que trata do assunto, não de modocompleto, mas abordando seus principais aspectos de uma maneirameticulosa e original.?

A abordagem feita por Aristóteles do que seria uma psicolo

gia empírica (e mais particularmente de uma psicologia do irracional)não foi, infelizmente, continuada pela primeira geração de seus pu pilos. Quando as ciências natu ra is se destacaram do estudo dafilosofia propriamente dita (como aconteceu no princípio do séculoIII a.C.) a psicologia foi deixada nas mãos dos filósofos (onde aliás

 permaneceu - na minha opinião em seu detrimento - até muito recentemente). Os racionalistas dogmáticos da era helenística parecemter se preocupado pouco com o estudo do homem, tal qual ele é:concentrando sua atenção no glorioso quadro do homem tal qual ele poderia ser - sábio ou  sapiens ideal. No intuito de tornar o quadro possível, Zenão e Crisipo recuaram da posição de Aristóteles e Pla

tão em direção ao intelectualismo ingênuo do século V a.C. Diziameles que atingir a perfeição moral não dependia de dons naturais ede hábito, mas unicamente do exercício da razão.10 Não havia nenhuma “alma irracional” contra a qual a razão deveria se debater -as chamadas paixões eram apenas erros de julgamento ou distúrbiosmórbidos, resultantes de erros de julgamento .11 Corrija o erro e odistúrbio cessará automaticamente, deixando a mente isenta de alegria ou dc tristeza, sem ser perturbada por esperanças ou temores,

“sem paixões, sem penas, perfeita”.12Esta psicologia fantástica foi adotada e mantida durante dois

séculos, não cm virtude dc seus méritos, mas porque era julgada necessária para um sistema moral que visava combinar ação altruística

com desapego completo à vida interior.13 Sabemos que Posidônio serebelou contra tal psicologia, reclamando um retorno a Platão14e lam bem ressaltando que a teoria de Crisipo ia tanto contra a observação

que mostrava que os elementos do caráter eram inatos,15quanto contra a experiência moral que revelava que a irracionalidade e o malestavam inextricavelmente enraizados na natureza humana, só sendo controlados por algum gênero de “catarse”."' Mas seu protestonão serviu para matar a teoria; estóicos ortodoxos continuaram a ia-

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O MEDO DA LIBERDADE 241

lar em termos intelectualistas, apesar de uma diminuição de suas convicções. A atitude de epicuristas e céticos não era tampouco muitodiferente quanto ao tema. Ambas as escolas gostariam de ter banido

as paixões da vida humana; o ideal de ambas era a ataraxia, a liberdade diante de emoções perturbadoras. Isto poderia ser alcançado, por um lado, pela manutenção de juízos corretos sobre o homem esobre Deus, e por outro, pela ausência total de ju ízos .17Os epicuristas íaziam a mesma reivindicação arrogante dos estóicosde que semfilosofia não pode haver bondade18—uma reivindicação que Platãoe Aristóteles jamais fizeram.

Esta psicologia e esta ética racionalistas iam de par com uma

religião racionalizada. Para o tilósofo, a parte essencial da religião já não reside nos atos de culto, mas sim na contemplação silenciosado elemento divino, e na compreensão da afinidade humana com esteelemento. O estóico contemplava o céu estrelado, e via nele a ex pressão do m esmo propósito racional e m oral que ele haviadescoberto em seu peito. O epicurista, em certos aspectos o maisespiritual das duas correntes de pensamento, contemplava deuses ja

mais vistos, que habitavam um remoto intermundia,19 encontrandoaí a iorça necessária para aproximar suas vidas das deles. Para am bas as escolas a divindade deixou de ser sinônimo de poder arbitrário para se tornar, ao contrário, a incorporação de um ideal racional. Taltransformação loi o trabalho dos pensadores gregos clássicos, emespecial de Platão. Como insistiu de forma correta Festugière,20 areligião estóica é uma herança direta do Timeu e das  Leis, e mesmoEpicuro se encontra, às vezes, mais próximo do espírito de Platão

do que ele seria levado a admitir.Ao mesmo tempo, todas as escolas heienísticas - talvez até mes

mo os céticos21 - estavam tão ansiosos, quanto Platão em seu tempo, para evitar uma ruptura radical com as formas tradicionais de culto.Zcnão, na verdade, chegou a declarar que os templos eram algo su pérfluo - o verdadeiro templo de Deus era o intelecto humano.22Tampouco Crisipo escondia sua opinião de que a representação dosdeuses em tamanho humano era algo infantil.23 O estoicismo criava,no entanto, bastante espaço para deuses antropomórficos ao tratá-los como figuras ou símbolos alegóricos;24 e quando encontramos oDeus estóico adornado com os mesmos epítetos e atributos do Zeusde Homero no “Hino” de Cleantes. isto a meu ver, significa mais

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2 4 2 O s GREGOS E O IRRACIONAL

do que uma simples formalidade estilística - trata-se de uma sériatentativa de preencher as formas antigas com novos significados.25Epicuro também tentou manter as formas e purificar seus conteú

dos. Segundo se conta, ele era bastante escrupuloso em observar todas as manifestações de culto,26 mas insistia em que as formas deveriam ser desligadas de todo temor a uma fúria divina ou àesperança de benefícios materiais. Para ele, como para Platão, o lema

“do ut des” da religião é a pior de todas as blasfêmias.27 Não seria nada sábio supor que tais tentativas de purgar a tra

dição tenham tido muito efeito sobre a crença popular. Como Epicurodisse: “as coisas que sei a multidão desaprova, e do que a multidãoaprova eu nada sei” .28 Também não é fácil para nós saber o que amultidão aprovava nos tempos de Epicuro. Naquele tempo, comohoje em dia, o homem comum havia se tornado eloqüente para taisquestões, mas somente quando posto diante de sua lápide - e, às vezes, nem mesmo nestas circunstâncias. Pedras tumularesremanescentes da era helenística são menos reticentes do que as deépocas anteriores, e sugerem que a crença tradicional no Hades es

tava desaparecendo lentamente, começando a ser substituída pelanegação explícita de uma vida após a morte ou por esperanças vagas dc que os falecidos rumassem para um mundo melhor - “paraas ilhas dos abençoados”, “para junto dos deuses” ou mesmo “parao cosmos eterno”.29 Não posso concluir muita coisa a partir desteúltimo tipo de epitáfio, pois sabemos que os parentes consternadosestão sempre aptos a encomendar “inscrições condizentes” que nemsempre correspondem a qualquer crença em vigor.3'1Mesmo assim,tomadas em conjunto, as pedras tumulares sugerem que a desintegração do “conglomerado” já deu um passo adiante.

Quanto à religião pública ou civil, deveríamos esperar que elasofresse com a perda da autonomia civil - afinal, na cidade-estadoreligião e vida pública estavam muito intimamente ligadas para queuma delas declinasse sem prejuízo para a outra. Sabemos por intermédio do hino de Hermócles a Demétrio Poliorcetes31 que a religião

 pública havia de fato declinado de maneira exorbitante em Atenas,meio século após os acontecimentos de Queronéia. Em nenhum outro período anterior um hino cantado para o grande público poderiadeclarar que os deuses da cidade eram indiferentes ou que não existiam, e que estas cargas inúteis seriam enfim substituídas por um

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2 4 4 OS GREGOS E O IRRACIONAL

dade de um amigo e ajudante divino. A celebrada observação deWhitehead de que “a religião é o que faz o indivíduo com sua pró pria solidão”,40 pouco importa o que se possa pensar dela em ter

mos de definição geral, descreve de modo bastante acurado, asituação religiosa dos tempos de Alexandre em diante. Algo que oindivíduo fez efetivamente com sua solidão no período, foi formar clubes privados dedicados à adoração de deuses individuais, velhosou novos. Inscrições contam das atividades de certos “Apolonistas”,“Hermistas” ou Baquistas”, ou ainda “Sarapistas”. Mas não podemos enxergar tão longe a ponto de entendermos suas mentes. Tudo

o que podemos dizer realmente é que estas associações serviam a propósitos sociais e religiosos, em proporções que desconhecemose que provavelmente variavam. Alguns clubes podem não ter sidomais do que clubes para jantares; outros podem ter dado a seus mem

 bros um sentido real de comunidade, na figura de um patrono divino ou de um protetor de escolha própria, para substi tuir acomunidade local que era uma herança da velha sociedade fecha

da.41 Estas eram, dentro de um esboço o mais amplo possível, as relações entre religião e racionalismo no século III a.C.42 Olhando parao quadro como um todo, um observador inteligente do ano 200 a.C. poderia muito bem prever que dentro de poucas gerações a desintegração da estrutura herdada estaria completa, e que a perfeita “Idadeda Razão” a sucederia. Ele estaria entretanto errado quanto às duasconsiderações - assim como previsões similares feitas por raciona-listas do século XIX parecem ter se mostrado falsas. Seria umasurpresa para nosso grego racionalista imaginário saber que, meiomilênio após sua morte, a deusa Atena ainda estaria recebendo a dádiva periódica de um novo traje das mãos de seu povo agradecido;43e que bois ainda estariam sendo sacrificados em Megara cm honraa heróis mortos nas Guerras Médicas oitocentos anos antes;44 e quetabus antigos relativos à pureza ritual ainda continuariam rigidamente

mantidos em diversos lugares.45 Na realidade, nenhum racionalista jamais levou em consideração a vis inertiae [força de inércia) quemantém este tipo de coisa funcionando - aquilo que Matthew Ar-nold chamou certa vez de “extrema lentidão das coisas” .46 Os deusesse retiram de cena, mas seus rituais ficam, e ninguém, com exceçãode uns poucos intelectuais, nota que eles pararam de significar o que

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O MEDO DA LIBERDADE 2 4 5

quer que seja. Em sentido material a “herança conglomerada” não

 pereceu finalmente por desintegração - grandes porções foram deixadas de pé através dos séculos, como uma fachada familiar, gasta

e bastante simpática, até o dia em que os cristãos puseram-na abaixo e descobriram que não havia virtualmente nada por detrás dela,senão um patriotismo local algo murcho e um sentimento de anti-quário.47 Foi o que ocorreu, ao menos nas cidades. Para a gente docampo, os pagani, parece que certos velhos ritos ainda significavamalgo, como ainda significam hoje, embora de uma maneira obscure-cida e incompleta.

Uma antecipação desta história teria surpreendido um obser

vador no século III a.C. Mas seria muito mais dolorosamentesurpreendente saber que a civilização grega estava entrando, não naIdade da Razão, mas em um período de longo declínio intelectualque deveria durar, com alguns refluxos ilusórios e algumas brilhantes ações individuais de resguardo, até a captura de Bizâncio pelosturcos; e que durante todos os seus dezesseis séculos de existênciao mundo helênico não produziria nenhum poeta tão bom quanto Teó-crito, nenhum cientista tão bom quanto Eratóstenes, nenhum

matemático tão bom quanto Arquimedes; e enfim que o grande nomeda filosofia no período seria o de um representante de uma corrente

 julgada extinta - o platonismo transcendental.Compreender as razões deste prolongado declínio é um dos pro

 blemas maiores da história. Estamos aqui preocupados apenas comum de seus aspectos, que pode ser chamado, por conveniência, de“retorno do irracional”. Mas mesmo este tema é tão vasto que não

 posso ilustrar o que tenho em mente senão por meio de comentários

 breves a respeito de alguns de seus desenvolvimentos.Vimos cm outro capítulo como o hiato entre as crenças dos in

telectuais e as crenças do povo, já identificáveis na literatura gregamais antiga, se ampliaram no final do século V a.C. a ponto de chegarem a um completo divórcio, e como o crescente racionalismo dosintelectuais acabou rivalizando com sintomas regressivos de crença

 popular. Na sociedade relativamente “aberta” do período helenísti-co, embora tal divórcio tenha no seu conjunto se mantido, mudançasrápidas na estratificação social, juntamente com a abertura da educação para outras classes, criaram mais oportunidades de interaçãoentre os dois grupos. Examinamos anteriormente algumas provas de

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que na Atenas do século III a.C. um ceticismo, antes confinado aosintelectuais, começou a contagiar a população em geral, e o mesmoiria acontecer depois em Roma.4li Mas após o século III a.C. um tipo

diferente de interação se faz ver, com o surgimento de uma literatura pseudocientífica, divulgada sobretudo sob pseudônimos eque freqüentemente se afirma calcada na revelação divina. Esta literatura adota as antigas superstições do Oriente ou, ainda, asfantasias mais recentes das massas, enfeitando-as com material tomado da ciência ou filosofia gregas. Ela acabaria ganhando aaceitação de grande parte da classe instruída. A assimilação funcionaria, a partir daí. em ambas as direções: enquanto o racionalismode tipo negativo e limitado continua a se difundir de cima para baixo, o anti-racionalismo se difunde de baixo para cima, eventualmente

triunfando.A astrologia é o exemplo mais conhecido.49 Tem sido dito que

ela “caiu sobre a mentalidade helenística como uma nova doençaque atinge algum povo de uma ilha remota” .50 Mas a comparaçãonão corresponde muito aos latos, pelo menos não até onde os co

nhecemos. Inventada na Babilônia, a astrologia se espalhou peloEgito onde Heródoto parece tê-la encontrado.51 No século IV a.C.Eudoxo relatou sua existência na Babilônia, ao lado das realizaçõesda astronomia babilônica, encarando-a, porém, com ceticismo.52 Nãohá provas de que ela lenha sido adotada, embora no mito do  Feclro Platão se divirta traçando seu próprio percurso a partir dc um temaastrológico.53 Em torno dc 280 a.C., uma informação mais detalhada se tornou disponível para os leitores gregos, através dos escritosdo sacerdote babilônio Berossus, sem causar no entanto (ao que parece) grande excitação. A verdadeira moda da astrologia parececomeçar no século II a.C., quando uma quantidade dc manuais po pulares —especia lm ente um composto sob o nome de um faraóimaginário, as  Revelações de Nequépso e Petos íris54 - começa a circular amplamente, e praticantes surgem em locais tão distantesquanto Roma.55 Por que isto ocorreu nesta época e não antes? A idéia

não era então nenhuma novidade, e a base intelectual para sua recepção havia sido longamente preparada por meio da teologia astralensinada tanto pelos platônicos quanto por Aristóteles e pelos es-tóicos, ainda que Epicuro tenha advertido para os seus perigos.56Pode-se supor que sua difusão tenha sido favorecida por condições

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 políticas: na conturbada primeira metade do século que precedeu aconquista romana da Grécia, era particularmente importante saber oque iria acontecer. Pode-se também supor que o grego babilônio, que

ocupava a cadeira de Zenão57durante esta época, encorajou uma es pécie de “trahison des clercs” (a Stoa já havia utilizado sua influência para eliminar a hipótese heliocêntrica de Aristarco que - se fosseaceita - teria abalado as fundações da astrologia e da religião estói-ca ).58 Mas por detrás destas causas imediatas podemos, talvez, perceber algo mais profundo e menos consciente: por um ou maisséculos o indivíduo havia ficado face a face com sua liberdade intelectual, e agora ele virava as costas e abandonava as horrendas

 perspectivas - o rígido determinismo do Destino astrológico era ainda melhor do que a aterrorizante carga de responsabilidade diáriaexistente. Homens racionais como Panécio e Cícero tentaram controlar o retorno por meio de argumentação, do mesmo modo comoPlotino faria posteriorm ente,59 mas sem nenhum efeito perceptível- certos motivos estão para além da argumentação.

Além da astrologia, o século II a.C. assistiu ainda ao desenvol

vimento de uma outra doutrina irracional que influenciou profundamente o pensamento da antigüidade tardia e toda a IdadeMédia - a teoria das propriedades ocultas ou de forças imanentes acertos animais, plantas e pedras preciosas. Embora seus começosdatem provavelmente de bem antes, a teoria foi apresentada, pela primeira vez de forma sistemática, por Bolus de Mendes, chamado“democritiano”, que parece tê-la redigido por volta de 200 a.C.f'° Seusistema estava intimamente ligado à medicina mágica e à alquimia,

sendo logo combinado à astrologia, para a qual fornecia um conveniente suplemento. O que havia permanecido embaraçoso a respeitodas estrelas era a impossibilidade de se ter acesso a elas, tanto paraa oração quanto para a magia.61 Mas se cada planeta tivesse um re

 presentante nos reinos animal, vegetal e mineral, estando ligado aele por uma oculta “simpatia” conforme se afirmava, poderíamos ter acesso mágico a estes astros pela manipulação de seus correlatos terrestres.62 Consistindo em uma concepção primitiva do mundo comounidade mágica, as idéias de Bolus eram fatalmente atraentes paraos estóicos, que já concebiam o cosmos como um organismo cujas partes gozavam de uma comunidade de experiência (0a |i7 ta0eia).63A partir do século V a.C. Bolus começa a ser citado como uma au

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2 4 8 O S GREGOS E O IRRACIONAL.

toridade científica de  status comparável a Aristóteles e Teofrasto,1’4

e suas doutrinas vão sendo incorporadas ao quadro geral do mundotal qual ele é aceito.

Muitos estudiosos do assunto viram no século I a.C. o períododecisivo de Weltende - período em que a onda de racionalismo, que

havia fluído preguiçosamente durante os últimos cem anos, extingue sua força e começa a recuar. Não há dúvida de que todas asescolas filosóficas, com exceção dos epicuristas, tomaram uma novadireção nesta época. O velho dualismo religioso entre espírito e ma

téria, Deus e Natureza, a alma e os apetites, que o pensamentoracionalista havia se esforçado para superar, se reafirma em formas

vividas e com um novo vigor. Dentro do estoicismo novo e não-or-todoxo de Posidônio, este dualismo surge como uma tensão deopostos no interior do cosmos e do homem unificados pela tradiçãoda antiga Stoa.65 Mais ou menos ao mesmo tempo, uma revoluçãointerna na Academia platônica põe fim à fase puramente crítica do

 platonismo, tornando-a novam ente uma filosofia especulativa e pre parando cam inho que co nduz irá p osterio rm ente a P lo tino .66

Igualmente significativo é o renascimento do pitagorismo, após doisséculos dc aparente suspensão, não como uma escola formal, mascomo um culto e uma prática dc vida.67 Ele se baseava, agora, francamente na autoridade e não na lógica - Pitágoras era apresentado

como um sábio inspirado, uma contrapartida grega de Zoroastro ouOstanes, com muitos textos apócrifos sendo atribuídos a ele e aosseus discípulos imediatos. O que era ensinado em seu nome era avelha crença cm um “eu” mágico separável do corpo, a crença nomundo como um lugar obscuro de penitência e na necessidade decatarse. Mas isto vinha agora junto com idéias derivadas da religiãoastral (que tinha de fato certas ligações com o pitagorism o antigo),68dc Platão (que era apresentado como um pitagórico), do ocultismode Bolus69 e dc outras formas de tradição mágica.70

Todos estes desenvolvimentos são talvez sintomas, mais do quecausas, de uma mudança geral no clima intelectual do mundo medi

terrâneo - algo cujo exemplo análogo mais próximo de nós seria areação romântica contra a “teologia natural” racionalista que se instaurou no princípio do século XIX, e que ainda exerce uma poderosainfluência nos dias de hoje.71 A adoração do cosmos visível, juntamente com o sentido de uma unidade com ele - que havia encontrado

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expressão no antigo estoicisrno - começaram a ser substituídas emmuitas cabeças72 por um sentimento de que o mundo físico (pelo menos a sua parte sub-lunar) está sob o controle de poderes malignos,

e de que a alma necessita, não de uma unidade com este mundo,mas uma íuga disso. Os pensamentos dos homens passaram a se voltar cada vez mais para técnicas de salvação individual, algumas delascalcadas em livros sagrados pretensamente descobertos em templosorientais ou ditados por Deus a algum profeta.73 Outros buscaramrevelação pessoal através de oráculos, sonhos ou visões,74 e outrosainda, foram procurar segurança em rituais de iniciação (nos nume

rosos “mysteria” de então) ou tentaram se valer dos serviços de ummago particular.75Havia uma crescente demanda pela prática do ocultismo, que não é senão uma tentativa de capturar o “reino dos céus”através de meios materiais - o que tem sido descrito como “uma forma vulgar de transcendentalismo”.76 A filosofia seguia um caminho

 paralelo em nível mais elevado. A maior parte das escolas já haviadesde muito deixado de valorizar a verdade pela verdade.77 Mas naera imperial eles abandonam de vez, com algumas poucas exceções,78

qualquer curiosidade desinteressada, apresentando a si mesmos comotécnicos de salvação. Não é que o filósofo simplesmente concebaseu gabinete de trabalho como um lugar para almas doentes,79 poisaíinal de contas nada haveria de novo nisso. O filósofo não é aquium mero psicoterapeuta; ele também é, como coloca Marco Aurélio, “um tipo dc pa dre e de m inis tro dos d eu se s” .80 Seusensinamentos pretendem ter valor mais religioso do que científico.O “objetivo do platonismo”, como afirma um observador cristão doséculo II, “é ver Deus Irentc a frente” .81E o conhecimento profanoera valorizado apenas na medida em que contribuísse para isso. Sê-neca, por exemplo, cita com aprovação a visão de que não devemosnos incomodar com a investigação de coisas que não podemos conhecer, ou coisas cujo conhecimento é inútil, como a causa das marésou o princípio de perspectiva.82 Em tais ditos já podemos sentir oclima intelectual da Idade Média. Trata-se do ambiente onde o Cris

tianismo se desenvolveu, tornando possível o triunfo de uma novareligião. Tal clima deixou sua marca sobre os ensinamentos cristãos,83mas não foi criado pelos cristãos.

O que então criou um tal clima? Uma dificuldade para respondermos a esta questão em nossos dias reside na falta de um estudo

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abrangente e equilibrado de todos os fatos relevantes que permitiriam compreender aqui a relação entre as “árvores” e a “floresta”.Possuímos brilhantes estudos de muitas “árvores”, embora não de

todas; mas da “floresta” temos apenas esboços de impressões. Quando surgiu o volume II dos GeschichteM de Nilsson, quando Nock 

 publicou suas tão esperadas conferências Gifford sobre a religião helenística, e quando Festugière completou a importante série deestudos sobre a história do pensamento religioso intitulado de maneira algo enganadora,  La révélation d ’Hermès Trim egiste ,85estudiosos comuns e não especialistas como eu se encontraram em

melhor situação para decidir a respeito do assunto. Enquanto issonão ocorria eles tiveram, porém, que se abster de tecer julgamentos.Gostaria, entretanto, de concluir com uma palavra sobre algumas ex

 plicações sugeridas para este fracasso do racionalismo grego.Certas explicações simplesmente recolocam o problema que

 propõem resolver. Não é útil, por exemplo, dizer que os gregos haviam se tornado um povo decadente, ou que a mentalidade gregahavia sucumbido às influências orientais, a não ser que nos disses

sem também porque isso ocorreu. Ambas afirmações podem ser verdadeiras em certo sentido, mas creio que os melhores estudiososde hoje hesitariam em concordar com uma aceitação sem nuancesdestas teses, como ocorria no século passado.86 Mas ainda que se

 jam verdadeiras, tais afirmações de longo alcance não nos servirão para muita coisa enquanto a natureza e as causas da degeneraçãogrega não forem esclarecidas. Nem me contentarei em aceitar o en-

trecruzamento de raças como explicação suficiente para o fato, atéque seja estabelecido que atitudes culturais se transmitem por contágio ou que origens mestiças são necessariamente inferiores às

“puras”.87Se buscamos respostas mais precisas, devemos, antes de mais

nada, nos certificarmos de que elas realmente se enquadram aos fatos, não sendo ditadas unicamente pelo preconceito. Mas isto nemsempre é feito. Quando um conhecido estudioso britânico me assegura que “há provavelmente pouca dúvida de que a super-especiali-zação da ciência e o desenvolvimento da educação popular na erahelenística levaram ao declínio da atividade intelectual” ,88 temo queele esteja simplesmente projetando sobre o passado seu diagnóstico pessoal a respeito de certas doenças contemporâneas. O tipo de espe

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cialização que possuímos hoje era bem desconhecido da ciência grega de qualquer desses períodos e alguns de seus maiores nomes sãonão-especialistas, como pode ser visto se olharmos para uma lista

das obras de Teofrasto ou Eratóstenes, Posidônio, Galeno ou Ptolo-meu. A educação universal era igualmente desconhecida - é mais provável que o pensamento helenísdco tenha sofrido de pouca educação popular, do que de muita.

Ainda aqui, algumas das favoritas explicações sociológicas possuem o inconveniente de não corresponderem exatamente aos fatoshistóricos.89 Assim por exemplo, a perda da liberdade política podeter ajudado a desencorajar o empreendimento intelectual, mas este

dificilmente foi o fator determinante, pois a grande era de racionalismo (do final do século IV a.C. ao final do século III a.C.)certamente não foi uma era de liberdade política. Nem sequer é fá

cil atribuir toda a culpa da decadência à guerra e à pobrezaeconômica. Há, na verdade, provas de que estas condições favorecem um acréscimo no desenvolvimento da magia e da adivinhação90(exemplos muito recentes são a moda do espiritismo durante e após

a Primeira Guerra Mundial, e da astrologia durante e após a Segunda Guerra),91 e estou pronto a admitir que as condições conturbadasdo século I a.C. ajudaram a dar início a um recuo direto da razão,enquanto as condições no século III a.C. ajudaram a pôr fim a isso.Mas se esta fosse a única força em ação, deveríamos esperar que osduzentos anos intermediários - um período, excepcionalmente longo, de paz doméstica, segurança pessoal e governos geralmentedecentes - mostrassem uma reversão da tendência ao invés de sua

acentuação gradual.Outros estudiosos enfatizaram a ruptura interna do racionalis

mo grego. “Ele foi se consumindo”, afirma Nilsson, “como um fogose consome a si próprio por falta de combustível. Enquanto a ciência se encerrava em logomaquias infrutíferas e áridas compilações,a vontade religiosa de crer ganhava uma nova vitalidade”.92 Comocoloca Festugière: “Havia se discutido demais, as pessoas estavamcansadas de palavras. Não havia sobrado nada a não ser a técnica”. 93Para um ouvido moderno a descrição soa familiar e inquietante, mashá muitas provas para sustentá-la. Se procerdemos a uma interrogação sobre o por quê da falta de “combustível”, a resposta de ambosos autores citados é a velha resposta de que a ciência grega não soube

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desenvolver o método experimental.94 Se perguntarmos o por quêdisso, obteremos a resposta habitual de que a mente dos gregos erade tendência dedutiva - o que não me parece nada esclarecedor. Nes

te ponto a análise marxista se deparou com uma resposta maisinteligente: a atividade experimental não conseguiu se desenvolver 

 porque não havia tecnologia séria para tal; não havia tecnologia porque o trabalho humano era barato; o trabalho humano era barato porque os escravos eram abundantes.95 Deste modo, através de umanítida cadeia de inferências, o advento de uma visão de mundo medieval aparece como dependente da instituição da escravidão.

Suspeito que alguns elos da cadeia suposta possam precisar de maistestes, mas esta é uma tarefa para a qual não estou qualificado. Ar-riscar-me-ei, porém, a fazer mais dois comentários bastante óbvios.Um é o de que o argumento econômico explica melhor a estagna

ção da mecânica depois dc Arquimedes, do que a estagnação damedicina depois de Galeno, ou da astronomia depois dc Ptolomeu.O outro é o de que a paralisia geral do pensamento científico podemuito bem servir para explicar a apatia e o marasmo dos intelec

tuais , mas não para explicar a nova at i tude das massas.Evidentemente que para a ampla maioria daqueles que se voltaram para a astrologia ou para a magia, e para a grande maioria dos devotos do Mitraísmoou do Cristianismo, a estagnação científica nãoera uma preocupação direta c consciente. Acho difícil alirmar, com

certeza, que a perspectiva religiosa destas pessoas pudesse ser fundamentalmente diferente disso, mesmo que existissem inventos como

a máquina a vapor, capazes de alterar suas vidas econômicas.Sc historiadores futuros quiserem obter uma explicação maiscompleta acerca do que ocorreu, creio que eles não deverão ignorar os fatores econômicos e intelectuais, mas terão que levar em contaoutro gênero de motivos, menos conscientes e ordenadamente racionais. Já sugeri que por detrás da aceitação dc um determinismo astralreside, entre outras coisas, o medo da liberdade - a fuga inconsciente dos pesos da escolha individual que uma sociedade aberta coloca

sobre seus membros. Se tal motivo for aceito como uma vera causa(e há bastante prova para aceitá-lo nos dias de hoje),96 podemos sus

 peitar que ele atua, de fato, em muitos lugares. Podemos suspeitar que ele está por detrás do endurecimento da especulação filosófica,transformando as idéias em dogmas quase religiosos, capazes de

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fornecer uma regra de vida imutável aos indivíduos. Podemos vê-lono horror pela pesquisa inconveniente, expresso mesmo por Cleantesou por Epicuro, e posteriormente, em nível mais popular,na exigência de um profeta ou de uma escritura; e de modo maisgeral, na patética reverência à palavra escrita, que é característicado final dos tempos romanos e da Idade Média - como coloca Nock,“a disposição de aceitar declarações por elas constarem em livros,ou mesmo porque dizem que elas constam em livros”.97

Quando um povo viaja tanto na direção de uma sociedade aberta, como os gregos no século III a.C., o “recuo” não acontecerapidamente ou de modo uniforme. Tampouco ocorre sem dor para

o indivíduo. Há sempre um preço a pagar pela recusa de responsa bilidade, em qualq uer esfera que seja. Normalm ente este preçoassume a forma da neurose. Podemos encontrar provas colaterais deque o medo da liberdade não é uma mera fase em meio ao aumentode ansiedades de tipo irracional e às fortes manifestações de culpaneurótica observáveis nas fases finais98 do “recuo” . Tais coisas nãoeram novas na experiência religiosa dos gregos; podemos encontrá-las ao estudar a Grécia arcaica. Mas os séculos de racionalismohaviam enfraquecido sua influência sobre a sociedade e assim, indiretamente, enfraquecido também seu poder sobre o indivíduo. Agoraelas se mostram sob novas formas e com nova intensidade. Não tenho condições de apresentar provas aqui, mas posso dar uma noçãodo impacto da mudança, comparando o “homem supersticioso” deTeofrasto (que não é muito mais do que um observador fora de modados tabus tradicionais) com a idéia de homem supersticioso de Plu

tarco, um homem que “senta em um lugar público vestido comroupas esfarrapadas ou em andrajos, ou então chafurda nu, em meioà lama, proclamando pecados”.99 O quadro de neurose religiosa traçado por Plutarco pode ser ampliado partindo de muitas outrasfontes: documentos extraordinários como o retrato de Peregrinus, traçado por Luciano, que abandonou seus pecados, pr imeiroconvertendo-se para o cristianismo, adotando em seguida a filosofia pagã e finalmente, após um suicídio espetacular, tornou-se um

santo pagão realizador de milagres.™0 Há ainda o auto-retrato de outro neurótico interessante, Aelius Aristides.101 Novamente a presençade um sentimento difuso de ansiedade entre as massas se mostra demaneira clara, não apenas no horror revivido das punições  post

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2 5 4 O s C.REGOS E O IRRACIONAL

mortem ,1112mas em terrores mais imediatos, revelados nas orações eamuletos rem anescentes .103 Pagãos e cristãos rezavam da mesmamaneira no final da era imperial, pedindo todos eles proteção con

tra perigos invisíveis - contra o mau olhado e a possessão demoníaca,contra o “demônio enganador” ou contra o “cão sem cabeça” .104Umamuleto promete proteção “contra toda a malícia de sonhos aterro-rizantes ou de seres presentes no ar”; um segundo amuleto promete

 proteção “contra inimigos, acusadores, ladrões, terrores e apariçõesoníricas”; um terceiro (de origem cristã) pede proteção contra “es píritos insalubres” escondidos embaixo da cama, nos tetos ou poços próprios para o lixo.105O “retorno do irracional” estava então, como

 podemos ver por tais exemplos, completo.Aqui devo abandonar o problema. Mas não terminarei este li

vro sem fazer uma última confissão. Estive evitando, dc forma proposital, o uso de paralelos com a modernidade, pois sei que tais paralelos tanto podem nos induzir ao engano quanto servir para esclarecer.106Mas assim como um homem não pode fugir de sua própriasombra, nenhum a geração pode julgar os problemas da história sem

fazer referência, consciente ou inconscientemente, a seus próprios problemas. Não posso, portanto, enganar o leitor e esconder que, aoescrever os capítulos do livro, especialmente este último, tive nossa

 própria situação sempre lembrada. Nós também testemunhamos alenta desintegração de uma espécie de “herança conglomerada”, começando nas classes mais instruídas e afetando as massas quase por toda a parte, apesar de ainda muito longe de estar completa. Nóstambém experimentamos uma grande era de racionalismo, marcada

 por avanços científicos e, além de tudo aquilo que os tempos passados julgaram possível, pondo a humanidade diante de perspectivasde uma sociedade mais aberta do que qualquer outra jamais conhecida. Nos últimos quarenta anos experimentamos algo mais - ossintomas inequívocos de um retrocesso face a estas perspectivas.Parece que, para empregar as palavras usadas recentemente por André Malraux, “a civilização ocidental começou a duvidar de suas

credencia is”.107Qual o significado deste retrocesso, desta dúvida? Trata-se da

hesitação que precede o salto, ou do começo de uma fuga em pânico? Não sei. Diante desta questão um simples professor de gregonão está em condições de dar uma opinião. Mas há algo que ele pode

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2 5 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL

ninguém estaria ciente de suas escolhas). Tal sociedade nunca existiu e nun

ca existirá; mas pode ser útil falar em sociedades relativamente abertas ou

fechadas, e pensar em termos amplos na história da civilização, como na

história do movimento que conduz do primeiro ao segundo tipo de socie

dade. Cf. Karl Popper, The Open Society and its Enemies (Londres, 1945),

e também a monografia do poeta Auden citada mais abaixo. Sobre a novi

dade da situação no século III a.C. ver Bevan, Stoics and Sceptics, 23 sg.

2. W. H. Auden, “Criticism in a Mass Society” , The Mint, 2 (1948), 4. Cf.

também Walter Lipman,  A Preface to M orais , 106 sg., sobre “o peso da

originalidade”.

3. Ver p. 248 sg.

4. Aristóteles,  Etica a Nicômaco, 1177 h 24-1178a 2. Cf. frag. 61: o homem é

quasi mortalis deus.5. Stoicorum Vetem Fragmenta (daqui em diante citado corno SVF). I. 146:

Zr|vcov o KruEuç o Sxcúikoç e<f>r| [...] 5eiv [...] e^siv xo 0etov ev povoco

xo) vco, paÀXov 5e 0eov iiysioOai xov vouv. Deus ele próprio é “a razão

certa que penetra todas as coisas” (Diógenes Laércio 7.88, cf. SVF  1. 160-

161). Desta visão existem precedentes em um a especulação anterior (cf. por 

exemplo, Diógenes de Apolônia, frag. 5); mas ela surgiu como fundação

de uma teoria sistemática da vida humana.

6. Epicuro,  Episi. 3. 135: ÇrioEtç 5e wç 0 e o ç  ev avBpomoiç. Cf. também Sen-tenças Vaticanas 33; Aeliano, V.H. 4.13 (= frag. 602 Usener); e Lucrécio,

 Da natureza , 3. 322.

7. Aristóteles.  M eta física, 10721’ 14: StayMyri 5’ea xtv o ia rj ap ia xri ptKpov

Xpovov qptv.

8. Cf. cap ítulos III e IV, supra.

9. Cf. também Jaeger,  Aris tó te le s, 159 sg., 240 sg., 396 sg.; Boyancé, Culte 

des Muses, 185 sg.

10. Cícero,  Acad. post. 1.38 = SVF  1.199.

11. Sobre a unidade da  psyche, SVF  11.823, etc. Zenão definiu  pathos como

“um distúrbio irracional e não natural da mente” (SVF  1.205). Crisipo foi

ainda mais além, identificando na verdade os diversos  pathos com juízos

errôneos: SVF  III. 456, 461, XpuotrcTtoç pev [...] otTtoôeiKvuvoa rcEipaxat,

KpiüEiç xtvaç sivoa xou /\.0YiaxiK 0 t> xa 7ra0r|, Zrivcov 5’ou xaç Kptaetç

a u x a ç , a W a xaç ETtiYiyvopEvaç a u x a tç o\)axoA.aç r a t %uaEiç,

ETiapaetç xe Kai tixgx teiç x r|ç x|n)%riç EVoptÇEV Eivai xa 7ia0r|.

12. SVF  III. 444: Stoici affectus onmens, quorum impulsu animus commovetur,

ex homine tollunt, cupiditatem, laetitiam, metum, maestitian [...] Haecquattuor morbos vocant, non tam natura insitos quam prava opinione

susceptos; et idcirco eos censent extiropari posse radicitus, si bonorum

malorumque opinio falsa tollatur. A caracterização do Sábio está em Tarn(.Hellenistic Civilization, 273).

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O MEDO DA LIBERDADE 2 5 7

13. Cf. a discussão interessante de Bevan, op. cit., 66 sg.

14. Em seu Jtepi JtaOcov, no qual Galeno esboçou seus tratados de  pla cit is  

 Hippoèratis et Plátonis. Cf. Pohlenz,  NJbb Supp. 24 (1898), 537 sg., e  Die 

Stoa, I. 89 sg.; Reinhardt,  Poseidonius, 263 sg.; Edelstein,  AJP  47 (1936),

305 sg. Parece que a falsa unidade da psicologia zenoniana já havia sido

modificada por Panécio (Cícero, Ojf., 1.101), mas Posidônio levou a revisão muito mais longe.

15. Um tratado reôentemente descoberto de Galeno, cujo material parece ser 

tomado em grande parte de Posidônio, desenvolve o argumento até certo

 ponto, citando diferenças de caráter observáveis em crianças e animais. Ver 

Walzer, “New Lights on Galen’s Moral Philosophy”, CQ 43 (1949), 82 sg.

16. Galeno, oti r a i ç tou aco|iaroç KpaoEotv kt ., p. 78. 8 sg. Müller: od 

toivdv o-uôs riooeiScovtcú Sokei  tt|v KaKiav e^coGev ETieiaiEvat toiç 

avGpamoiç ou5e|jicxv E x o m a v p i Ç a v ev r a i ç y -u x a i ç tiecov, oGev 

op|icofjEvr| p^aaravEi te Kai a-u^aveiai, aXX’ai)To TODvavnov. Kai

yap odv Kai ttiç KaKiaç ev tiiiiv auxoiç G7t£p|ia, Kai SEopEOa rcavTEç

ODX 1TODTCO TOX) GEDyEtV TODÇ TTOVl-lpODÇ CÚÇ TOD SlCÚKElV TODÇ

Ka Gap iaovTaç te Kai KtoXuaovTaç rmcov tt|v au ^r iaiv tt |ç KaKiaç. Cf.

 plac . Hipp. et Plat., p. 436.7 sg. Müller: em seus tratamentos (0Epa7teia)

das paixões, Posidônio seguiu Platão e não Crisipo. É interessante que o

conflito interno da Medéia de Eurípides, em que o poeta do século V a.C.

havia expressado seu protesto contra as cruezas da psicologia racionalista

(capítulo VI, supra), também desempenhou um papel nesta controvérsia,

sendo citado, estranhamente, por ambos os lados da querela (Galeno,  plac. 

 Hipp. et Plat., 342 Müller, ibid., 382 = SVF  III. 473 adfin).

17. Epicuro,  Epist. 1.81 sg.; Sexto Empírico,  Pirrh. Hyp., 1. 29.

18. Sêneca,  Epist. 89. 8: nec. philosophia sine virtute est nec sine philosophia  

virtus. Cf. os  Pap. Herc. epicuristas, 1251, col. XIII. 6: 0i?u)GO<|)iaç 8i'r)ç

|-iovr|ç eo tiv opGo7tpayEiv.19. Cl. Filodemus, de dis III, frag. 84 Diels = Usener,  Epicurea, frag. 386: o

homem sábio nEiparai ODVEvyyiÇeiv auTT] (ou seja, o caráter divino) Kai

KaGanEpei ykxne^ai Giyeiv Kai auveivai.

20. Festugière,  Le Dieu cosmique, XII sg.; e também  Épicure et ses dieux, 95

sg. Contra a visão de que o estoicismo antigo representa uma intrusão do

misticismo oriental dentro do pensamento grego, ver  Le Dieu cosm ique,  

266, e Bevan, op. cit., 20 sg. A relação geral entre filosofia e religião nesta

época é bem mostrada por Wendland,  Die hellenistischrômische Kultur2, 106 sg.

21. Co nta-se que Pirro chegou a ser um alto sacerdote (D iógenes Laércio 9. 64).22. SVF  1. 146, 264-267.

23. SVF  11. 1076.

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2 5 8 O s GREGOS E O IRRACIONAL

24. Crisipo, ibid. Uma alegoria semelhante é atribuída ao platônico Xenócra-

tes (Aécio 1.7.30 = Xenócrates, frag. 15 Heinze).25. Cf. W. Schubart, “Die religiôse Haltung des frühen Hellenismus”, Der A lte  

Orient, 35 (1937), 22 sg.; M. Pohlenz, “Kleanthes’ Zeus- hymnus”, Hermes 75 (1940), esp. 122 sg. Festugière deu-nos agora um comentário

esclarecedor sobre o Hino de Cleantes (Le Dieu cosmique, 310 sg.).

26. Filodemus, de pietate, p. 126-128 Gomperz = Usener,  Epicurea, frag. 12,

13, 169, 387. Cf. Festugière,  Épicure et ses dieux , 86 sg.27. Avt)]7iepP^riT0v a [oejtei] av , Filod., ibid., p. 112. Sobre Platão, cf. ca

 pítulo VII,  supra. Epicuro aceitava a primeira e terceira das proposições

das  Leis, X, mas rejeitava a segunda, crença que lhe parecia uma das prin

cipais fontes da infelicidade humana.28. Epicuro apud  Sêneca  Epist. 29.10, que acrescenta: idem hoc omnes tibi

conclamabunt, Peripatetici, Academici, Stoici, Cynici.29. Até o final do século V os epitáfios gregos raramente incluíam pronuncia

mentos sobre o destino dos mortos. Quando o faziam, quase sempre fala

vam em termos do Hades homérico (sobre a mais impressionante exceção,

o epitáfio de Potidaea, ver capítulo V,  supra). Esperanças de imortalidade

 pessoal começam a surgir no século IV - quando são expressas em uma lin

guagem sugerindo influência eleusiana - e tornam -se menos raras na Idade

Helenística, mas mostram poucos traços de terem sido erigidas a partir dedoutrinas religiosas específicas. Não é feita nenhuma referência à reencar-

nação (Cumont,  Lux Perpetua, 206). Epitáfios explicitamente céticos pa

recem começar com os intelectuais do período alexandrino. Mas um homem

como Calímaco pôde explorar em algumas oportunidades a visão conven

cional ( Epigr. 4 Mein.), otimista ( Epigr. 10) ou cética ( Epigr. 13). No con

 junto não há nada nos fatos que contradiga a afirmação de Aristóteles de

que a maior parte das pessoas considera a mortalidade ou imortalidade da

alma uma questão em aberto {Soph. Elench. 1761’ 16). A respeito de toda aquestão, ver Festugière,  L ’ldéal rei. des grecs, parte II, cap. V e R.

Lattimore, “Themes in Greek and Latin Epitaphs”,  Il linois Studies, 28

(1942).30. Cf. O cuidadoso veredito de Schubart (,loc. cit., II): “wo in solchen

Àusserungen wirklicher Glaube spricht und wo nur eine schõne Wendung

klimgt, das entzieht sich jedem sichren U rteil.”31. Ateneu, 253D = Powell, Collectanea Alexandrina, p. 173. A data não é

muito precisa, provavelmente 290 a.C.32.  A W o i |iev ii iioiKpav yap a7texr|ouaiv 0eoi,

r| ouk e /c u a iv cora,

il odk eiaiv, ti o v n p o o e x o v a i v ripiv o-uõe ev,

a e Se 7iapo vx0’ opcopev,

od £,U/Uvov oi)ôe A,i0wov, aXX’a^ii0i.vov.

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O MEDO DA LIBERDADE 2 5 9

 Não compreendo por que Rostovtzoff diz na sua conferência Ingersoll (“The

Mentality of the Hellenistic World and lhe Afterlife”, Harvard Divinity

School  Bulletin, 1938-1939) que "não há nenhuma blasfêmia ou aoE(3eia”

aqui, se ele utiliza os termos no sentido tradicional grego. E como ele sabe

que o hino é “uma explosão de sincero sentimento religioso”? Esta não era

a visão do historiador contemporâneo Demócares (apud Aten. 253A), e não

consigo encontrar nada nas palavras que o sugira. Presume-se que a peça

tenha sido escrita como uma ordem (sobre a atitude de Demétrio ver Tarn,

 Antigonos Gonatas, 90 sg.) e pudesse ter sido composta no espírito de De-

móstenes aconselhando a assembléia “a reconhecer Alexandre como filho

de Zeus - ou de Poseidon - se assim ele quiser”. Demétrio é o filho de

Poseidon e de Afrodite? Certamente —por que não? —desde que ele o pro

ve trazendo a paz e lidando com os aetólios.33. A ten. 253 F (de D uris ou de D em óc ares ?): TaojT’r)ôov oi

Mapa6cúvo| iaxriai od 5r | | ioaiai [rovov, o X k a Kai Kax’otKiav.

34. Não estamos sozinhos aqui. O século V também exaltava e tornava heróis

atletas e grandes homens, presumivelmente em resposta à demanda popu

lar: não, entretanto, até que estivessem mortos. Uma tendência a este tipo

de coisa existiu talvez em todas as épocas e lugares, mas um sério super-

naturalismo o mantém dentro de certos limites. As honras concedidas a

Brasidas são tracas face àquelas concedidas a qualquer rei dos tempos he-Iênicos, e Hitler chegou mais perto de ser um deus do que qualquer conqu istador do período cristão.

35. Tudo indica que uma vez que o costume era estabelecido, honras divinas

 passavam a ser oferecidas , com freqüênc ia, até mesmo pelos gregos; e em

alguns casos, para o embaraço genuíno dos homenageados, por exemplo

Antigonos Gonatas, que, ao ouvir ser descrito como um deus, replicou se

camente: “O homem que esvazia meu urinol não o notou” (Plutarco,  Is. et  Os. 24, 360CD).

36. Não apenas reis, mas benfeitores privados também eram idolatrados, às vezes até mesmo durante suas vidas (Tarn,  Hellenistic Age, 48 sg.). E a práti

ca epicurista de se referir ao seu fundador como a um deus (Lucrécio, 5.8,

deus ille fu it, Cíc. Tusc. 1. 48, eumque veneratur ut deum) estava enraizada

no mesmo hábito mental - Epicuro não era afinal um EuepyETriç maior do

que qualquer rei? Platão mais urna vez, se realmente não recebeu honras

divinas após a morte (capítulo VII, nota 9), era visto nos tempos de seu

sobrinho como um filho de Apoio (Diógenes Laércio, 3.2). Estes fatos me

 parecem ir contra a visão de W. S. Ferguso n {Amei: Hist. Rev. 18 [19.12-1913], 29 sg.) de que o chefe de culto helenístico era essencialmente um re

curso político e nada mais, o elemento religioso sendo meramente formal.

 No caso destes chefes, reverência pelo euepYexTiç ou pelo ocoxrip era sem

dúvida reforçada, consciente ou inconscientemente, pelo sentido antigo de

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2 6 0 O s GREGOS E 0 IRRACIONAL

um "mana real” (cf. Weinreich,  NJbb 1926. 648 sg.) que, por seu lado, pode

ser visto como residindo na identificação inconsciente do rei com o pai.

37. Nilsson, Greek Piety (trad. ingl., 1948), 86. Sobre a profunda impressão

deixada na mente humana no final do século IV pelos acontecimentos re

volucionários imprevisíveis, ver as fortes palavras de Demétrio de Falero

apud  Políbio 29.21, e a observação de Epicuro de que oi rcoMm acredi

tam que tokt| é uma deusa ( Epis t. 3. 134). Um exemplo anterior de culto

verdadeiro é o altar que Timoleão dedica a A\)TO|icma (Plutarco, Timol.

36, qua quis rat. II. 542E). Esta espécie de poder neutro e moralmente im

 pessoal - sobre o qual a Nova Comédia fez tantas brincadeiras, cf. Stob.

 Ecl. 1.6 - é algo diferente da “sorte” de um indiv íduo ou cidade, que tem

raízes mais antigas (cf. cap. II, notas 79 e 80). O melhor estudo sobre o

tema como um todo será encontrado em Wilamowitz, Glaube II. 298-309.

38. A. Kárdiner, The Psychological Frontiers ofS oc iety, 443. Cf. Wilamowitz,

Glaube II. 271, Das Wort des Euripides, vou® Kai Geodç riyotipEea, ist

volle Wahrheit geworden.39. Sobre as primeiras fases deste processo ver Nilsson, Gesch. I. 760 sg. So

 bre a im portância durante o período helenístico , Festugière ,  Épicure et  ses

dieux, 19.40. A. N. Whitehead,  Religion in lhe Making , 6.

41. O livro-padrão para compreender os clubes do período helenístico éGeschichte des griechisclien Vereínswesens, de F. Poland. Para uma análi

se curta em inglês, ver M.N. Tod, Sidelights on Greek History , Lecture III.

A função psicológica de tais associações em uma sociedade onde liames

tradicionais haviam se rompido é bem apresentado por Grazia, The Political  

Community, 144 sg.42. Neste breve esboço não levei em conta a região leste recentemente heleni-

zada, onde os gregos imigrantes encontraram cultos locais firmemente

estabelecidos de deuses não-gregos aos quais eles fielmente mantinham res peito , às vezes sob nomes gregos. Sobre as terras de cultura grega antiga, a

influência oriental era ainda relativamente leve; na região mais a leste for

mas gregas e orientais de culto viviam lado a lado, sem hostilidade, mas

aparentemente ainda sem muitas tentativas de sincretismo (cf. Schubart, loc. 

cit., 5 sg.).

43. Dittenberger, Syll.1 894 (A. D. 262-3).

44.  IG VII 53(século IV).

45. Cf. Festugière et Fabre,  Monde grécoromain, II. 86.46. Matthew Arnold para Grant Duff, 22/8/1879: “Mas cada vez eu descubro

mais sobre a extrema lentidão das coisas, e que apesar de estarmos todos

dispostos a pensar que tudo mudará durante nossa vida, isto não acontecerá .”

47. Isto não implica negar que tenha havido uma organizada e amarga oposi

ção ao processo de cristianização do império. Mas ela veio de uma pequena

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O MEDO DA LIBERDADE 261

classe de intelectuais helenizantes, apoiada por um grupo ativo de senado

res de mentalidade conservadora mais do que das massas. Sobre o tema

como um todo, ver Geffcken,  Der Ausgang cies griechischrômischen  

 Heidentums (Heidelberg, 1920).

48. A respeito da predominância do ceticismo entre a plebe romana, cf. Cíce

ro, Tusculanas 1. 48; quae est anus tam delira quae timeat ista? Juv. 2.149

sg.: esse aliquid Manes, et subterranea regna [...] nec pueri credunt nisi 

qui nondum aere lavantur ; Sêneca,  Epist. 24.18: nemo tam puer est ut  

Cerberum timeat, etc. Tais passagens retóricas não devem, entretanto, ser 

tomadas muito ao pé da letra (cf. W. Kroll, “Die Religiositãt in der Zeit

Ciceros”,  NJbb 1928, 514 sg.). Temos, por outro lado, o testemunho claro

de Luciano, de luctu.

49. Devo muito dos parágrafos seguintes a Festugière, VAstrologie et les 

 sc iences occultes (= La Révelat ion d ’Hermes Trismégiste I [Paris, 1944]),

que é de longe a melhor introdução ao ocultismo antigo como um todo.

Sobre a astrologia, ver também Cumont,  Astrology and Religion àinong the 

Greeks and Romans, e a excelente análise curta de H. Gressmann,  Die 

 HeUenistische Gestirnreligion.

50. Murray,  Five Stages ofG reek Religion, cap. IV.

5 1. H eródoto 2.82.1. Não é muito certo que ele faça ali referência à astrologia.

52. Cícero,  Div. 2.87:  Eudoxus [...] sic opinatur, icl quod scriptum reliquit, Chalclaeis in praedictione et in notatione cuiusque vitae ex natali die minime  

esse credendum. Platão também rejeita a astrologia, ao menos por implica

ção, no Timeu, 40CD; a passagem foi compreendida na antigüidade tardia

como se referindo em especial à astrologia (ver Taylor sobre 40D 1), mas

é bem possível que Platão tivesse em mente apenas a visão tradicional gre

ga dos eclipses como proféticos. De outros escritores do século IV a.C., é

 provável que Ctésias conhecesse algo de astro logia, e há um a leve indica

ção de que Demócrito pode ter sabido algo (W. Capelle,  Hermes, 60 [1925],373 sg.).

53. As almas dos ainda não nascidos assumem o caráter dos deuses que elas

“seguem” (252CD), e estes doze 0eot apxovteç parecem estar localizados

nos doze signos do Zodíaco (247A) com os quais Eudoxo os havia associa

do, embora Platão não o diga com muitas palavras. Mas Platão,

diferentemente dos astrólogos, toma cuidado para salvaguardar o livre ar

 bítrio. Cf. Bidez,  Eos, 60 sg. e Festugière,  Rev. de Phil. 21 (1947), 24 sg.

Concordo com este autor de que a “astrologia” desta passagem nada mais

é do que uma peça de imaginação. É significativo que Teofrasto (apud Pro

clus, in Tim. III. 151.1 sg.) ainda falasse de astrologia como se fosse uma

arte totalmente estrangeira (se ele sentia por ela toda a admiração que Pro

clus afirma, pode ser posto em dúvida com alguma dose de certeza.)

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2 6 2 O s GREGOS E O IRRACIONAL

54. Festugière,  L ’A stro log ie , 76 sg. Alguns dos fragmentos da obra de

“Nequepso”, que tem sido chamada “a Bíblia dos astrólogos”, foram coli-

gidos por Riess,  Philologus. Supp.-Band 6 (1892), 327 sg.

55. Cato inclui “caldeus” entre os pobres que não deveriam ser consultados pe

los capatazes das fazendas (de agri cultura 5.4). Um pouco depois, em 139

a.C., eles foram expulsos de Roma pela primeira e, de modo algum, última

vez (Vai. Max. 1.3.3). No século seguinte eles estavam de volta e, então,

os senadores, assim como os capatazes, faziam parte de sua clientela.

56. Epicuro,  Epist. 1. 76 sg., 2. 85 sg. (cf. Festugière,  Épicure et ses dieux,  

102 sg.). Uma das frases da epístola soa como uma advertência específica

contra astrólogos (Bailey, cul loc.).57. Diógenes de Seleucia, chamado de “o babilônio” , morto mais ou menos em

152 a.C. Segundo Cícero (div. 2. 90) ele admitia algumas, mas não todasas afirmações feitas pela astrologia. Os primeiros estóicos talvez não tives

sem achado necessário expressar nenhuma opinião a respeito, pois Cícero

diz claramente que Panécio (sucessor imediato de Diógenes) foi o único

estóico que rejeitou a astrologia (ibid., 2.88), enquanto Diógenes é o único

que ele cita em seu favor. Ver, entretanto, SVF  II. 954, que parece sugerir 

que Crisipo acreditava em horóscopos.58. Cleantes achava que Aristarco deveria ser condenado (como Anaxágoras

antes dele e Galileu depois) por ao e P e ia (Plutarco, defacie 6. 923A = SVF I. 500). No século III a.C. isto não era mais possível, mas parece provável

que preconceitos teológicos desempenharam algum papel em assegurar a

derrota do heliocentrismo. Cf. o horror expresso pelo platônico Dercílides,

apud Theon Smirn., p. 200. 7 Hiller.59. Cícero, divin. 2. 87-99. Plotino,  Enéadcis, 2.3 e 2.9.13. Os astrólogos ficaram

deleitados com o triste fim de Plotino, que eles explicaram como castigo me

recido pela sua falta de respeito e blasfêmia do filósofo para com os astros.

60. Ver M. Wellman, “Die (jruoiKCX des Bolos”, Abh. B erl Akad., phil.hi.st. Kl.,1928; W. Kroll, “Bolos und Demokritos”,  Hermes 69 (1934), 228 sg.; e

Festugière,  L ’Astrolo gie , 196 sg., 22 sg.61. É por este motivo que Epicuro pensava que era ainda melhor seguir a reli

gião popular do que permanecer escravo de £i|iap|i£vri astrais (Epist. 3.

134). A futilidade da oração foi enfatizada por astrólogos ortodoxos: cf.

Vettius Valens, 5. 9; 6 proem.; 6. 1 Kroll.62. Cf. Apêndice II, p. 308 sg.; e também  PGM  1.214 e XI11.612; e A.D. Nock,

Conversion, 102, 288 sg.

63. SVF  II. 473 init. Crisipo sustentou isto em virtude do 7iv£\)|ia que tudoinvade, GUliTccaeeç ecmv ocmco to rtav. Cf. também 11.912. Isto é obvia

mente algo diferente da doutrina de “simpatias ocultas específicas, mas é

 provavelm ente mais fácil pa ra as pessoas educadas aceitar estas últimas.

64. Festugière, op. cit., 199. Daí a observação de Nilsson de que “a antigüida

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2 6 4 O S GREGOS E O IRRACIONAL

 berto um tesouro escond ido, po r meio de jo vens méd iuns (Apu leio,  Apol. 

42). Vatinius, que "se autod enom inava pitagó rico”, e Appius Claudius Pul-

cher, que provavelmente pertencia ao mesmo grupo, são considerados por 

Cícero como tendo se engajado em necromancia (in Vai. 14; Tusculanas,1. 37; div., 1. 132). E Varro parece ter creditado ao próprio Pitágoras a ne

cromancia ou hidromancia, sem dúvida com base em textos apócrifos

neopitagóricos (Santo Agostinho,  A cidade de Deus, 7. 35). O professor 

 Nock está inclinado a atr ibuir aos neopitagóricos um a parcela substancial

na sistematização da teoria mágica, assim como na sua prática (J. Eg. Arch. 

15 [1929], 227 sg.).71. A reação romântica contra a teologia natural foi bem caracterizada por Chris-

topher Dawson ( Religion and Culture , 10 sg.). Seus traços típicos são: a) a

insistência sobre a transcendência, contra uma teologia que, nas palavras

de Blake, “chama o príncipe deste mundo de ‘Deus’”; b) a insistência so

 bre a realidade do mal e o “sentido trág ico da vida , contra o otim ismo

insensível do século XVIII; c) a insistência de que a religião está eniaiza-

da no sentimento e na imaginação, e não na razão, o que abriu caminho

 para um a compreensão mais profunda da experiência religiosa , mas tam

 bém para um re to rn o do ocult ism o e um respeito supersticio so pela

“sabedoria do Oriente”. A nova tendência do pensamento religioso que co

meçou no século I a.C. pode ser descrita exatamente nos mesmos termos.

72. Nos primeiros séculos do império, monismo e dualismo, “otimismo cós

m ico” e “pe ssimismo c ósm ico” persistiam lado a lado - ambos são

encontrados, por exemplo, na  Herm etica e foi apenas gradualmente que

o dualismo assumiu maior importância. Plotino criticava agudamente tanto

o monismo extremo dos estóicos quanto o extremo dualismo de Numenius

e dos gnósticos, e se esforçou para construir um sistema que lizesse justiça

a ambas as tendências. Os céus estrelados ainda são para o imperador Ju

liano um objeto de profunda adoração: cf. orai ., 5. 130CD, em que ele narracomo a experiência de caminhar sob a luz das estrelas levou-o durante a

adolescência a cair em um estado de abstração e transe.

73. Cf. Festugière, UAstrologie , cap. IX.74. Cf. Nock, “A Vision of Mandulis Aion”,  Harv. Theol. Rev. 27 (1934), 53

sg.; e Festugière, op. cit., 45 sg., em que um número de textos interessan

tes são traduzidos e discutidos.75. A teurgia era inicialmente uma técnica para atingir salvação por meios má

gicos. Ver Apêndice II. E o mesmo pode ser dito de alguns dos rituais preservados nos papiros mág icos , tais como a famosa “rece ita para a im or

talidade” (PGM  IV. 475 sg.). Cf. Nock, “Greek Magical Papyri”, ./.  Eg. 

 Arch. 15 (1929), 230 sg.; Festugière,  L ’Idéa l re ligieux, 281 sg.; Nilsson,

“Die religion in den gr. Zauberpapyri”, Buli. Soc. Roy. des Lettres de Lurid, 

1947-1948, II. 59 sg.

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O MEDO DA LIBERDADE 2 6 5

76. Nilsson, Greek Piety, 150. O ocultismo, devo acrescentar, deve ser distin-

guido da magia primitiva descrita por antropólogos, que é pré-científico,

 pré-filosófico e ta lvez pré-religioso, enquan to o ocultism o é uma pseudo-

ciência ou sistema de pseudociências freqüentemente apoiado por umafilosofia irracional, e sempre explorando as margens desintegradas de reli

giões preexistentes. O ocultismo deve também, é claro, ser distinguido das

disciplinas modernas de pesquisa física que tentam eliminá-lo sujeitando

fenômenos supostamente “ocultos” a análise racional, e deste modo esta

 belecendo seu cará ter subjetiv o ou in tegrando-os no corp o gera l doconhecimento científico.

77. Epicuro foi particularmente franco ao expressar seu desprezo pela cultura

(frag. 163 Us., TtaiSsiav reaoav Oeuye, cf. Cíc.fin. 1.71 sg. = frag. 227)

e pela ciência que não fosse capaz de promover a axapa^ta (Epist. 1. 79,

2. 85; Kuptca AoÇoa, 11). O professor Farrington parece-me completamente

equivocado em lazer de Epicuro um representante do espírito científico, em

contias te com os estoicos reacionários \ Mas o estoicismo também era ge-

íalmente indifeiente à pesquisa exceto até onde ela pudesse confirmar os

dogmas estóicos, e estivesse preparada para suprimir o espírito científicoonde ele entrasse em conflito com eles (n. 58).

78. Plotino é a exceção que mais salta aos olhos. Ele organizou seu ensina

mento em bases de seminário com espaço aberto para o debate,teconhecendo o valor da música e da matemática como preparação para afilosofia (Porfírio, vita Plotini, 13; Plotino,  Enéadas, 1.3.1,. 1.3,3). E diz-

se que ele próprio era versado em tais assuntos, assim como em mecânica

e ótica, embora ele não os ensinasse (vit. Plot. 14); sobretudo corno colo

cou Gelicken ( Ausgang, 42), “ele não fica no topo do sistema e faz sermões:ele investiga.”

79. Epiteto,  Diss. 3.23.30: laxpetov ecmv, ocvSpeç, t o t od 0tXoao(|>ov

GXOÀstov; Sêneca,  Epist. 48.4: ad miseros advocates es / . . . /  perd itae vi tae perituraeque auxiliam aliquod imploram. Esta linguagem era comum

a todas as escolas. Os epicuristas sustentavam que sua questão era Jtspi TT|v

r|pov tccTpsicxv (Sent. Vat. 64, cf. Epicuro,  Epist. 3. 122, rcpoç to kocicx

w-u^qv uytatvov). Filo de Larissa eotKEvai 0r|£ct to v 0 ià.koco([>ov taipco

(Stob. Ecl. 2.7.2, p. 39 sg. W), e o próprio Platão é descrito no texto anô

nimo vita, 9.36 sg. como um médico de almas. A fonte definitiva de tudo

isto é, sem dúvida, terapia da mente socrática, mas a freqüência da metáfo

ra médica é, entietanto, significativa. Sobre a lunção social da filosofia na

Idade Helenística e posteriormente, ver especialmente Nock, Conversion, cap. XI.

80. Marco Aurélio, 3.4.3: tspuç Ttç eoti  kou -uitoupyoç Oscov.

81. Justin Martyr,  Dial. 2.6. Cf. Porfírio, ad Marcellam 16: M/ir/j] §g ooooij

apf.ioÇ£Tca repoç 0eov, aet 0eov opa, cruvecmv aet 0eco.

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2 6 6 O s GREGOS E O TRRACIONAL

82. Demétrio Cínico (séc. I) apud Sêneca, de beneficiis 7.1.5 sg.

83. Como ressalta Wendland (. Die hellenis tischromische Kultur 2, 226 sg ), a

atitude de pagãos como Demétrio coincide com a de alguns escritores cris

tãos, como Arnóbio, que sustentavam que todo ensinamento seculai eiadesnecessário. E não há uma grande diferença entre a visão do pequeno

catecismo de que “toda a obrigação do homem consiste em gloiificai Deus

e apreciá-lo para sempre” e a visão pagã hermética que escreveu que “a

filosofia consiste exclusivamente em buscar o conhecimento de Deus atra

vés da contem plação habitual e da sagrada piedade” (. Asclepius 12).

84. Enquanto isso, ver seu Greek Piety (trad. ing., 1948), e seus artigos sobie

“The New Conception of the Universe in Late Greek Paganism (. Eranos 

44 [1946], 20 sg.) e “The Psychological Background of Late Greek 

Paganism” ( Review o f Re ligion, 1947, 115 sg.).

85. Vol. I,  L ’Astrologie et les sc iences occultes (Paris, 1944), contendo tam

 bém uma in tro dução bri lh ante m ente escrita às sé ries; vol. II,  Le Dieu 

cosmique (Paris, 1949). Dois outros volumes,  Les doctr ines de l'âme e  Le 

 Dieu inconnu et la gnose estão prometidos. O livro póstumo de Cumont,

 Lux Perpetua , que faz pelo mundo greco-romano algo que  Psyche, de

Rohde, fez pelo mundo helênico, surgiu tarde demais para que eu pudesse

utilizar.

86. Bury achava que nenhum mau uso “daquela palavra vaga e fácil decad ente’" podia ser mais flagrante do que sua aplicação aos gregos dos séculos

II c III (The Hellenistic Age, 2); e Tarn “mantém dúvidas sobre se os gre

gos verdadeiros realmente degeneraram” ( H ellenistic C iv ili zati on, 5).

Quanto à influência sobre o pensamento grego tardio, a tendência atual é

diminuir a importância dada a ela em comparação com aquela de pensado

res gregos anteriores, em especial Platão (cl. Nilsson, Greek Piety, 136 sg.;

Festugière,  Le Dieu cosm ique, XII sg.). Homens como Zenão de Cício, Po

sidônio, Plotino, e mesmo os autores da  Hermetica lilosólica não são maisconsiderados “orientalizantes” em qualquer sentido fundamental. Há

atualmente uma reação contra estimativas exageradas da influência de cul

tos de mistérios orientais: cf. Nock, CAH  XII. 436, 448 sg.; Nilsson, op.

cit., 161.87. Cf. as observações dc N. H. Barnes no  JRS  33 (1943), 33. Vale lembrar 

que os criadores da civilização grega eram eles próprios, ao que tudo indi

ca , p rodu tos de um cruzamen to en t r e legados indo-eu ropeus e

não-indo-europeus.88. W. R. Halliday, The Pagan Background ofEarly Christianity, 205. Outros,com mais razão, culparam a fragilidade da camada superior civilizada e o

fracasso total da camada mais educada em atingir e influenciar as massas

(assim, por exemplo, Eitrem, Orakel und Mysterien am Ausgang der Antike, 

14 sg.).

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O MEDO DA LIBERDADE 2 6 7

89. Cf. Festugière,  L ’Astrologie , 5 sg.90. Cf. cap. II, supra.

91. Um livro publicado em 1946 afirma que há atualmente perto de 25.000

astrólogos praticantes nos EUA e que cerca de 100 jornais norte-americanos fornecem aos seus leitores a previsão diária do futuro (Bergen Evans,

The Natural H istory o f Nonsen.se, 257). Lamento não possuir nenhum dadosobre a Grã-Bretanha e a Alemanha.

92. Nilsson, Greek Piety, 140.

93. Festugière,  L ’Astro logie, 9.

94. Há importantes exceções à regra, em particula r na obra de Strato sobre

física (cl. B. Farrington, Greek Science, 11. 27 sg.), e nos campos da ana

tomia e da lisiologia. Na ótica, Ptolomeu elaborou um número deexperiências, como A. Lejeune mostrou em seu  Euclide et Ptolomée.

95. B. Farrington, op. cit. II. 163 sg., e Walbank,  Decline o ft he Roman Empire 

in the West, 67 sg. Simplifiquei o argumento, mas, espero, sem cometer uma grave injustiça.

96. Cf. Erich Fromm ,  Escape from freedom.

97. Nock, Conversion, 241. Cf. a concepção de Fromm da dependência do

ajudante medico” e o bloqueio resultante da espontaneidade, op. cit., 174

sg-

98. Nossos poucos dados sobre a Idade Helenística se devem à perda quasetotal da literatura em prosa do período. Mas sua história realmente forne

ce um exemplo muito forte de uma efervescência maciça de religião

irracionalista, o movimento dionisíaco na Itália que foi suprimido em 186

a.C. e nos anos seguintes. Ele reivindicava ter muitos seguidores, “quase

um outro povo”. Cf. Nock, op. cit.; E. Fraenkel,  Hermes , 67 (1932), 369

sg.; cf. mais recentemente J.J. Tierney.  Proc. R.LA. 51 (1947), 89 sg.

99. Teofrasto, Caráteres (16 (28 J.); Plutarco, de superstitione 7, 168D. Cf.

“The Portrait of a Greek Gentleman”, Greece andRome 2 (1933), 101 sg.100. Se podemos confiar em Luciano, Peregrino também costumava manchar 

o rosto com lama ( Peregrinus, 17), embora talvez por outros motivos. Lu

ciano explicou tudo da estranha carreira de Peregrino como estando rela

cionado ao seu desejo ardente de notoriedade. E pode haver um elemento

de verdade em seu diagnóstico: o exibicionismo de Peregino à Ia Diogénes 

(ibid.), se não é um simples sinal convencionalmente atribuído aos cíni

cos extremistas, parece confirmá-lo melhor do que Luciano poderia sa

 ber. Assim mesmo é difícil ler a narrativa ir ri tada de Luciano sem osentimento de que o homem era mais do que um charlatão vulgar. Ele era

certamente neurótico, chegando a um ponto não muito distante da verda

deira insanidade; e ainda assim muitos, cristãos e pagãos, tinham visto

nele um Geioç a v ip , e até mesmo um segundo Sócrates (ibid., 4 sg., 11

sg.), tendo ele se beneficiado inclusive de um culto  post m ortem (Atená-

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2 6 8 Os GREGOS E O IRRACIONAL

goras,  Leg. pro Christ. 26). Um psicólogo poderia estar disposto a achar 

o leitniotiv de sua vida em uma necessidade interna de desafiar a au

toridade (cf. K. v. Fritz em P.-W., s.v.). E ele poderia prosseguir e con-

 je tu rar que esta necessidade es tav a en ra izad a em um a situação defamília, lembrando o rumor sinistro de que Peregrino era um parricida,

e lembrando também suas inesperadas últimas palavras antes de saltar 

na pira - 8a t(io ve ç priípco oi K ai jiaxprooi, ôeÇ aaGe |ie ei)(.tev(ieiç

(Peregr. 36).

101. Wilamow itz, “Der Rhetor Aristides” , Berl. Sitzb. 1925, 333 sg. Campbell

Bonner, “Some Phases of Religious Feeling in Later Paganism”,  Harv. 

Theol. Rev. 30 (1937), 124 sg.; e capítulo IV,  supra.

102. C.1". Cumont, A fter L ife, conferência VII. O Õ8iaiSai(.t(üv de Plutarco mostra “a abertura dos portões fundos do inferno”, rios de fogo, os gemidos

dos amaldiçoados, etc. (de superst. 4, 167A) - bem ao estilo do  Apoca-

lipse de São Pedro , que pode ter sido escrito durante a vida de Plutarco.

103. Sobre amuletos, ver a importante monografia de Campbell Bonner na

 Harv. Theol Rev. 39 (1946). 25 sg. Ele salienta que do século I em diante

houve, aparentemente, um grande aumento do uso de pedras valiosas gra

vadas (com o que sua monografia se ocupa principalmente). A compilação

conhecida como  Kyranides , cujas partes mais antigas retrocedem até aque

le século, abundam em receitas de amuletos contra demônios, fantasmas,

temores noturnos, etc. Até onde o medo dos demônios havia chegado na

antigüidade tardia, mesmo na classe letrada, pode ser visto através da opi

nião de Porfírio de que toda casa e corpo animal estavam cheios deles

(de pliilosopliia ex oraculis haurienda , p. 147 sg. Wolff), e pela afirma

ção de Tertuliano nullum paene hominem carere daemonio (de anima 57).

É verdade que tarde nos séculos II e IV houve homens racionais que pro

testaram contra tais crenças (cf. Plotino,  Enéadas 2.9.14; Filostórgio,  Hist. 

 Eccl. 8.10; e outros exemplos citados por Edelstein, “Greek Medicine inIts Relation to religion and Magic”,  Buli. Hist. Med. 5 [1937], 216 sg.).

Mas eles constituíam um grupo diminuto. Para os cristãos, a visão de que

os deuses pagãos eram maus espíritos realmente existentes aumentou enor

memente o peso de seus temores. Nock vai tão longe a ponto de dizer 

que “para os apologistas como um lodo, e para Tertuliano em sua obra

apologética, a operação de redenção de Cristo consiste na libertação de

demônios mais do que na libertação dos pecados” (Conversion, 222).

104.  PGM  VIII, 33 sg. (cf. P. Christ. 3); avTtOeoç 7t^avo5aipcov, VII.635;kucúv aK£(|>a?a)ç, P. Christ. 15B.

105.  PGM  VII. 311 sg.; X. 26 sg.; P. Christ. 10. O medo de sonhos assustado

res é também proeminente no quadro que Plutarco faz do §£ioi5on.|iwv

(de superst. 3, 165E sg.).

106. Creio que há elementos em nossa situação atual que a tornam essencial

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O MEDO DA LIBERDADE 2 6 9

mente diferente de qualquer situação humana anterior, invalidando as hi

 póteses cíclicas de Osw ald Spengler. A questão foi bem afirm ada por 

Lippmann, /l  Preface to Morais, 232 sg.

107. A. Malraux,  Psychologie de l ’art  (Paris, 1949). Cf. a observação de Au-den de que “o fracasso da raça humana em adquirir os hábitos que uma

sociedade aberta exige para funcionar bem, está levando um núm ero cada

vez maior de pessoas à conclusão de que uma sociedade aberta é impos

sível, e que, portanto, a única forma de escapar do desastre econômico e

espiritual é retornando o mais rápido possível para um tipo de sociedade

fechada” (loc. cit., supra, nota 2). Ainda assim, faz menos de trinta anos

que Edwyn Bevan pôde escrever que “a idéia de alguma causa sendo le

vada à lrente está tão arraigada nos homens modernos que podemosdificilmente imaginar um mundo no qual a esperança de melhoria e avanço

esteja ausente” (The Hellenistic Age, 101).

108. R.G. Collingwood defendeu que “elementos irracionais [...] atividades e

forças que são cegas em nós, e que são partes da vida humana [...] não

são partes do processo histórico”. Tal afirmação vai no sentido da prática

de quase todos os historiadores, no passado e no presente. Minha con

vicção, como estes capítulos procuraram ilustrar, é de que nossa

compreensão do processo histórico depende, em larga medida, da remo

ção desta restrição bastante arbitrária sobre a análise histórica. A mesma

consideração foi ressaltada repetidas vezes por Cornford em relação à his

tória do pensamento: ver especialmente The Unwritten Philosophy, 32 sg.

Quanto à posição geral, devo aceitar a conclusão de L.C. Knights em seu

 Expiora tions: “o que precisamos não é abandonar a razão, mas simples

mente reconhecer que ela nos últimos três séculos tem funcionado dentro

de um campo que não cobre o todo de nossa experiência, que ela tem fa

lhado em atingir partes deste todo, e imposto limites arbitrários a seu

 próprio funcionamento .” (p. 111)

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A p ê n d ic e I

 M   e n a d i s m o *

i < jE7fm arl;e como em poesia, a representação destes esta-JL/dos selvagens de entusiasmo ficava apenas na esfera

da imaginação, pois em literatura e prosa, por exemplo, possuímos poucas provas históricas de mulheres promovendo orgias1a céu aberto. Esta prática teria sido estranha para o espírito de reclusão que

 permeava a vida feminina na Grécia... Os festivais das Tíades eramconfinados principalmente ao Parnaso.” Assim escreve Sandys, naintrodução de sua edição merecidamente elogiada das  Bacantes. Dio-doro, por outro lado, nos conta que (4.3) “em muitos estados gregos,congregações (|3aK%£ia) de mulheres se reúnem a cada dois anos,e que mulheres não casadas têm permissão para carregar o tirso ecompartilhar do êxtase dos mais velhos (auvevQowiaÇeiv).” Desde Sandys, provas em inscrições, vindas de várias partes do mundogrego, confirmaram a afirmação de Diodoro. Sabemos agora que taisfestas bienais (xpiTipiSeç) existiam em Tebas, Opus, Meios, Pér-gamo, Priene e Rodes, atestadas por inscrições em Aléa na Arcádia,feitas por Pausânias, em Mitilene por Aeliano, e em Creta por Fir-micus Maternus.2 O caráter das festas pode ter variado bastante deuma localidade para outra, mas é difícil duvidar de que elas normalmente incluíam opyta feminina de tipo extático ou quase extático,conforme descritas por Diodoro, envolvendo freqüentemente - se

* Estas páginas fizeram parte, originalmente, de artigo publicado na  Harvard  Theological Review, v. 33 (1940). Aqui elas são reproduzidas com pequenas

correções e acréscimos. Agradeço ao Prof. A.D. Nock, Dr. Rudolf Pfeiffer eoutros pelas valiosas críticas.

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2 7 2 O s GREGOS E O IRRACIONAL

não sempre - danças da montanha (op£i(3acioc noturna). Este estranho rito, descrito nas  Bacantes e praticado por sociedadesfemininas no xpit|xepiç délfico nos tempos de Plutarco, era prati

cado também em outros lugares: em Mileto, a sacerdotisa de Dionisoainda “conduzia as mulheres à montanha” em tempos helenísticos tard ios;3 em Eritréia, o título M i|a.avxo|3axriç aponta para umao p e tp a a ta no M onte M imas.4 O próprio Dioniso é opetoç,opei|aavriç, opEGKioç, 0t)peat(|)0ixr|Ç [originário das montanhas],e Strabo, ao discutir os cultos de mistérios dionisíacos e outros aele relacionados, fala geralmente de xaç opeipaaiaç xcov viepi xo

Beiov otwuôocÇovxcov. A alusão literária mais antiga está no ho-mérico “Hino aDeméter”: r|i£, r |w e ^aivaçopoçKM xaÔaoKiov t>Xr|ç.

A opetpaata acontecia à noite, no meio do inverno, e deveter envolvido grande risco e desconforto. Pausânias5afirma que emDelfos as mulheres iam até o pico do Parnaso (que mede mais dc2.500 metros de altura), c Plutarco6 descreve uma ocasião, aparentemente durante a sua vida, em que elas foram interceptadas por uma

tempestade de neve, tendo sido necessário o envio de uma equipede resgate. Quando retornaram, suas roupas estavam congeladas.Qual era o objetivo desta prática? Muitas pessoas dançam para queas colheitas possam brotar, através da magia de simpatia. Mas taisdanças são anuais como as colheitas e não bienais como asopeiPotaia; a estação é a primavera e não o meio do inverno; seulocal é, por exemplo, o milharal e não os topos ressequidos das montanhas. Escritores gregos tardios achavam que as danças em Delfoseram comemorativas: elas dançam, segundo Diodoro, “para imitar as mênades que, pelo que se afirma, haviam estado ligadas aos deuses no passado”. Diodoro está provavelmente certo no que tange aseu próprio tempo; porém, um ritual é normalmente mais antigo doque o mito pelo qual o povo procura explicá-lo, e possui raízes psicológicas mais profundas. Deve ter havido um tempo em que asmênades ou tíades ou |3aK%ou, realmente se tornavam, por algumas

 poucas horas ou dias, o que o nome implica - isto é, mulheres selvagens cuja personalidade humana havia sido substituída por outrotipo de personalidade. Não temos meios seguros de saber se ainda podia ser assim no tempo de Eurípides. Uma tradição délfica, registrada por Plutarco,7sugere que o rito às vezes produzia um verdadeirodistúrbio de personalidade, como no século IV a.C., mas as provas

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A p ê n d i c e ! . M e n a d i s m o 2 7 3

são muito insuficientes e a natureza da mudança operada não é nadaclara. Há, entretanto, fenômenos paralelos em outras culturas que podem nos ajudar a compreender o Ttocpoôoç das  Bacantes e o cas

tigo de Agave.Em muitas sociedades, talvez em todas, há pessoas para quem,

como colocou Aldous Huxley, “as danças rituais fornecem uma ex periência religiosa que parece mais satisfatória e convincente do quequalquer outra... É com os músculos que eles mais facilmente obtêm um conhecimento do elemento divino”.8Huxley pensa que oCristianismo cometeu um equivoco quando permitiu que a dança setornasse completamente secularizada,9 pois segundo um sábio mao-

metano “aquele que conhece o poder da dança habita Deus”. Mas o poder da dança é um poder perigoso. Como outras formas de auto-cntrcga, é mais fácil começar a dançar do que parar. Na extraordinária loucura dançante que invadiu a Europa periodicamente dosséculos  XIV  ao  XVII, as pessoas dançavam até cair - como um dançarino das  Bacantes ou um dançarino em um vaso Berlim"1- ficando inconscientes, sendo pisoteadas por seus companheiros." A coisaseria também altamente infecciosa. Como observa Penteu, nas  Ba-

cantes, a loucura se espalha como o fogo. A disposição para a dança toma posse das pessoas sem o consentimento da parte conscienteda mente. Por exemplo, em Liège em 1374, conta-se que depois quealgumas pessoas possuídas haviam caminhado seminuas até a cidade, com guirlandas de flores à cabeça e dançando em nome de SãoJoão, “muitas outras pessoas, aparentemente sãs da mente e do cor po. também foram repentinamente possuídas por diabos, juntando-se aos demais.” Estas pessoas abandonavam o lar, como as mulherestebanas na peça dc Eurípides. Mesmo as mulheres mais jovens cortavam laços com a família e com os amigos, vagando com os dançarinos.12 Contra uma mania semelhante, na Itália do século  XVII,conta-se que nem a idade e nem a juventude podiam conferir proteção, de modo que mesmo os homens de mais de noventa anos deidade jogavam fora suas muletas para dançar ao som da “tarantella”,e como se estivessem sob o efeito de alguma poção mágica, restau-

radora do vigor e da juventude, se uniam aos dançarinos maisextravagantes” .13A cena de Cadmos e T iré sias nas  Bacantes era portanto, ao que parece, freqüentemente reencenada, justificandoa observação do poeta, de que Dioniso não impõe nenhum limite de

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2 7 4 O s GREGOS E O IRRACIONAL

idade. Mesmo céticos como Agave eram, às vezes, contaminados por esta mania contra as suas próprias vontades e contrariamente às crenças professadas por eles .14 Na Alsácia, nos séculos XV e XVI, foi

defendida a tese de que a loucura da dança poderia ser imposta auma vítima po r m eio de um a praga rogada.15 Em alguns casos aobsessão compulsiva ressurgia a intervalos regulares, crescendo emintensidade até o dia de São João ou de São Vito, quando irrompia,sendo segu ida por um retom o à norm alidade .16Na Itália a “cura”

 periódica dos pacientes em estado de sofrim ento, através da música e da dança extática, parece ter se desenvolvido em um festivalanual.17

Este último fato sugere o caminho pelo qual o ritual daoreibasia pôde ter se desenvolvido originalmente na Grécia, a partir de ataques espontâneos de histeria coletiva, e a uma data bem

 precisa. Ao canalizar uma tal histeria dentro de um rito organizadouma vez a cada dois anos, o culto dionisíaco mantinha-o dentro delimites, fazendo-o brotar sem grandes perigos. O que o TtapoSoç[narrador] das  Bacantes™ descreve é uma histeria subjugada a ser

viço da religião. O que aconteceu no Monte Citeron foi pura histeria, o perigoso Baquismo que desce como um castigo sobre oshomens respeitáveis e os devasta contra suas vontades. Dioniso está

 presente em ambos os casos - como São João ou São Vito, ele é acausa e o liberador da loucura, Bcck%oç e A 'ogioç.1s Devemos ter cm mente a ambivalência se quisermos compreender a peça corretamente. Resistir a Dioniso é reprimir o que há de elementar na nossa

 própria natureza, e o castigo é o repentino e completo colapso dasrepresas internas, quando o elementar rompe a compulsão fazendodesaparecer a civilização.

Há, além disso, certas semelhanças de detalhe entre a religiãoorgiástica das  Bacantes e a religião orgiástica de outros lugares quemerecem ser notadas, pois tendem a estabelecer que a mênade é umafigura real, não convencional, que existiu com diferentes nomes e

em épocas e lugares muito diferentes. A primeira semelhança diz

respeito às flautas e tímpanos ou tambores que acompanham a dança mênade nas  Bacantes e nos vasos gregos.20 Para os gregos esteseram os instrumentos “orgiásticos” par excellence:2' eles eram usados em todos os grandes cultos de dança, da asiática Cibele e dacretense Réa, tanto quanto de Dioniso. Tais instrumentos podiam cau

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A p ê n d i c e 1. M e n a d i s m o 2 7 5

sar loucura, e em doses homeopáticas podiam também curá-la.22 Doismil anos depois, em 1518, quando os dançarinos loucos de São Vitodançavam através da Alsácia, uma música similar - música de per

cussão e de sopro - foi novamente usada com o mesmo propósitoambíguo: provocar e curar a loucura. Ainda possuímos a minuta doconselho da cidade de Estrasburgo a respeito do assunto.23 Não setrata certamente de tradição, e provavelmente também não é umacoincidência: parece a redescoberta de uma conexão causai real, so bre a qual apenas o Ministério da Guerra e o Exército da Salvação possuem algum tipo de informação.

Um segundo ponto concerne ao movimento de cabeça duranteo êxtase dionisíaco. Isto é algo que é repetidamente ressaltado nas

 Bacantes: “jogando seu longo cabelo para os céus”; “eu pararei de puxar seu cabelo para trás”, “lançando minha cabeça para frente e para trás como em um bacanal”. De maneira semelhante e em outrolugar, a possuída Cassandra “sacode seus cachos dourados quandode Deus sopra o vento imponente de uma segunda visão”. O mesmo traço aparece em Aristófanes, na  Lisístrata, e é constante em

outros escritores, apesar de descrito de modo menos vivaz: as mê-nades ainda “sacodem suas cabeças” em Catulo, Ovídio e Tácito.24Vemos este ato de lançar a cabeça para trás e levantar a gargantaem antigas obras de arte, como, por exemplo, nas figuras preciosasde Sandys ou na mênade em baixo-relevo do Museu Britânico.25 Maso gesto não é uma simples convenção da poesia e da arte gregas;em todos os tempos e lugares ele caracteriza este tipo particular dehisteria. Tomo, por exemplo, três descrições modernas independen

tes: o “contínuo modo abrupto de lançar a cabeça para trás, fazendoo longo cabelo negro se retorcer, acrescentava muito à sua aparência selvagem ” ;26 “seu longo cabelo foi sacudido pelos rápidosmovimentos da cabeça para frente e para trás” ;27 “a cabeça era sacudida de um lado para o outro ou lançada bem para trás, acima dagarganta inchada e protuberante”.28 A prim eira frase é de um relatomissionário sobre uma dança canibal na Columbia Britânica; a se

gunda descreve uma dança sagrada de devoradores de bode noMarrocos; a terceira é uma descrição clínica de histeria possessivafeita por um médico francês.

Esta não é a única analogia que liga tais tipos dispersos. Osdançarinos extáticos de Eurípides “carregavam fogo em suas cabe

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2 7 6 Os GREGOS E O IRRACIONAL

ças sem se queimar”.29 Assim ocorre com o dançarino extático deoutras localidades. Na Columbia Britânica, por exemplo, o homemdança com carvão em brasa nas mãos, brincando sem medo. che

gando até mesmo a colocá-lo na boca.30 O mesmo acontece na África do Sul31e em Sumatra.32 No Sião33e na Sibéria34o dançarino seapresenta como invulnerável, enquanto o deus estiver com ele - exatamente como os dançarinos do Citeron. Nossos médicos europeusencontraram uma explicação para isso (ou a metade de uma explicação) nos próprios hospitais: durante os ataques o paciente histérico é de fato anestesiado - toda sensibilidade à dor sendo reprimida.35

Uma versão interessante do uso espontâneo e curativo da dançae da música de tipo extático (trompete, tambor e flautim) na Abissí-nia, no início do século XIX, pode ser encontrada em  A vida e as aventuras de Nathanael Pearce, escrito por ele próprio durante sua residência na Abissínia de 1810 a 1819. A versão apresenta vários

 pontos em comum com a descrição de Eurípides. No momento culminante da dança a paciente “executava o movimento com talvelocidade que o corredor mais rápido não conseguiria alcançá-la,

e quando ela havia percorrido uma distância de cerca de 180 metros, caía repentinamente, como que atingida por algo”. ( Bacantes).A mulher de Pearce, uma nativa dominada pela mania, dançava esaltava “mais como um veado do que como um ser humano” ( Ba-cantes). “Durante estes ataques eu os via dançar com uma garrafasobre a cabeça, sem no entanto derramar o líquido que ela continha,ou mesmo deixar cair a garrafa, embora seu corpo assumisse as mais

extravagantes poses” ( Bacantes, Nonnus, 45.294 sg.).Uma descrição completa do ataque das mênades aos vilarejostebanos ( Bacantes, 748-764) nos mostra um comportamento já conhecido entre outros grupos. Em muitos povos, pessoas fora doestado normal, induzidas ou de modo natural, gozam do privilégiode poder saquear a comunidade - já que interferir em seus atos seria perigóso, visto que elas estão, naquele instante, em contato como elemento sobrenatural. Assim por exemplo, na Libéria, os novi

ços que se submetem a uma iniciação na floresta têm o direito deatacar e saquear os vilarejos vizinhos, levando tudo o que quiserem.Assim também os membros de sociedades secretas no Senegal, arquipélago Bismarck etc. durante o período em que os ritos os isolamda comunidade.36 Esta situação pertence, sem dúvida, a um estágio

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de organização social que a Grécia do século V a.C. já havia deixado para trás, mas a lenda ou ritual podem tê-la preservado namemória, e Eurípides pode ter encontrado algo disso na Macedô-

nia. A sobrevivência de um ritual de modo atenuado pode, talvez,ser vista mesmo nos dias de hoje, por exemplo, no comportamentodos Viza: “em geral”, afirma Dawkins, “qualquer coisa ao redor podeser encarada como um sinal para se conseguir a redenção, e asKoritzia (mulheres jovens) tomam as crianças e as levam embora juntam ente com o ob je to” .37 Seriam estas jovens descendentes dasmênades, ladras de criança, que aparecem nas  Bacantes, 754 (tam

 bém presentes em Nonnus e em vasos gregos)?38Outro elemento primitivo é a manipulação de cobras. Eurípi-

des não compreendia o gesto, embora soubesse que Dioniso podiaaparecer como serpente. É algo que se vê em vasos, e que, segundoo mesmo Eurípides, já faz parte da imagem convencional e literáriada mênade.39 Mas na Idade Clássica, aparentemente apenas no culto mais primitivo de Sabázio40- e talvez no Baquismo macedônico41- a serpente era efetivamente manipulada em ritual, como veículo

da divindade.42 Essa manipulação, mesmo sem deixar subentendidaqualquer crença da divindade da serpente, pode ser um poderoso fator para a produção de excitação religiosa e pode ser constatada por um curioso relato recente43-documentado com fotografias do ritual praticado nas igrejas sagradas de vilarejos mineiros e remotos,de condados no estado do Kentucky. Segundo este relato, a mani pulação das cobras (baseadas ostensivamente em Marcos 16:18: “eeles tomarão serpentes”) compõe o serviço religioso e é precedidoe acompanhado de danças extáticas até a exaustão. As cobras sãoretiradas de caixas e passadas de mão em mão (aparentemente por  pessoas de ambos os sexos); fotografias mostram as cobras levantadas acima da cabeça do adorador ou próximas ao seu rosto. “Umhomem enfiava uma cobra em sua blusa e a apanhava enquanto secontorcia, antes que caísse no chão” - um estranho paralelo com oato ritual dos sabazistas descritos por Clemente e Arnóbio,44 e que

 pode nos levar a hesitar diante do que afirma Dieterich45(que o atoem questão “pode não significar absolutamente nada, exceto a uniãosexual do deus com o iniciado”!).

Resta algo a dizer sobre o ato máximo da dança dionisíaca durante o inverno, que era também o ato culminante nas danças cana-

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2 7 8 Os GREGOS E o IRRACIONAL

denses e marroquinas mencionadas acima - o desmembramento deum corpo de animal para, em seguida, comê-lo cru, a7tapaYjJ,oçe(úfXO(j)ayia. Podemos descontar as descrições de regozijo diante do

ato, feitas por certos padres cristãos, mas é difícil saber que valor dar aos dados anônimos colhidos por escoliastas e lexicógrafos a res

 peito do assunto.46 Mas que o ato ainda tinha lugar no ritual orgiás-tico grego durante o período clássico é algo que pode ser atestado

não apenas pela autoridade de Plutarco,47 como também pelas regulações ao culto dionisíaco em Mileto, no ano 276 a.C.,48 nas quaislemos |ii| crivou. o)|io(|>ayiov epfialeiv |j,r|0£vi Ttpoxepov r| r)

tepeia tmep xr|ç tcoÀ-ecoç . A frase cú|ao<j>(ryiov[lançar ao centro para ser devorado] deixou os estudiosos confusos. Não creio que queira dizer “lançar ao poço um animal de sacrifício” (Wiegand) ou “lançar uma porção de carne em lugar sagrado”(Haussoulier). Um quadro mais sangrento e no entanto mais convincente, é sugerido pela análise feita por Ernest Thesiger sobre umrito anual que ele testemunhou em Tânger no ano de 1907:49 “Uma

tribo das colinas desce até a cidade, em estado semi-famélico e em

delírio causado por drogas. Após a habitual batida de tambores, oruído alto dos instrumentos de sopro e a dança monótona, uma ovelha é lançada ao meio da cena. Os devotos se atiram a ela, desmem

 bram o animal e o devoram cru”. O escritor acrescenta que “certoano, um mouro de Tânger, que olhava o que era feito, acabou con

taminado pelo frenesi geral da multidão, lançando seu filho no meiodeles”. Seja isto verdade ou não, a passagem nos serve como uma

 pista para o significado de £|0,paÀ,eiv; além de ilustrar os possíveis perigos de uma (OHOc()ayia praticada sem regulamento. A administração de Mileto, por exemplo, se engajou na recorrente tarefa de

colocar Dioniso dentro de limites estreitos. Nas  Bacantes crraxpcryuoç é praticado primeiro sobre o gado

tebano e depois em Penteu. Em ambos os casos ele é descrito comum gosto que o leitor moderno dificilmente compartilharia. Uma descrição detalhada da copo^ayia seria demais, mesmo para osestômagos do público ateniense - Eurípides fala disso duas vezes( Bacantes, Cretenses), mas em cada um dos trechos ele trata do assunto de modo rápido e discreto. E difícil imaginar o estado

 psicoló gico que ele descreve com as duas palavras copo(j)ayov%ocpiv; mas vale notar que os dias indicados para copoc|)ayta eram

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“dias negros e sem sorte” .50 De fato, aqueles que praticam um talrito em seu tempo, parecem experimentar uma mistura de exaltaçãoe repulsão supremas. Trata-se de algo a um só tempo sagrado e hor

rível, realização impura, sacramento e conspurcação - o mesmoconflito violento de atitudes cheias de emoção que atravessa as  Ba-

cantes e está na raiz de toda religião de tipo dionisíaco.51Escritores gregos tardios explicavam a a)|io<|)aya do mesmo

modo como explicavam a dança, e como explicariam a comunhãocristã: seria meramente um rito de comemoração em memória ao diaem que a criança Dioniso havia sido desmembrada, cortada em pedaços e devorada.52 Mas a prática parece, na realidade, consistir em

um simples argumento de lógica selvagem: os efeitos homeopáticosde uma dieta à base de carne são conhecidos no mundo inteiro. Sequeremos ter um coração de leão, devemos comer um leão; se queremos ser sutis, devemos comer cobras; os que comem galinhas elebres serão covardes, enquanto aqueles que comem carne de porcoterão olhos pequenos como os porcos.53 Por um raciocínio similar,se quisermos ser como deuses devemos comer um deus (ou algo que

seja Beiov). Devemos comê-lo rápido e cru, antes que o sangue tenha escoado; apenas deste modo acrescentaremos a vida dele à nossa, pois “o sangue é a vida”. Deus não está sempre disponível para ser comido, nem sequer seria seguro comê-lo a qualquer hora e sem odevido preparo durante o recebimento de sacramento. Mas uma veza cada dois anos, ele se faz presente aos dançarinos da montanha:“os beócios”, afirma Diodoro (4.3), “juntamente com outros gregose trácios, acreditam que esta é a época de sua epifania entre os ho

mens” - exatamente como nas  Bacantes. Ele pode aparecer sobvárias formas, vegetais, animais ou humanas, sendo comido de diversas formas. Na época de Plutarco era a hera que devia ser cortadaem pedaços e mastigada54- podemos julgá-lo primitivo ou substituí-lo por algo mais sangrento. Já em Eurípides, bois sãosacrificados55 - um bode é cortado em pedaços e devorado.56 Por fim,ouvimos falar da C0|i0(()aya de pequenos veados57 e da exibição devíboras.58 Como em todos estes casos podemos, com maior ou menor probabilidade de erro, reconhecer a encarnação de um deus,inclino-me a aceitar a opinião de Gruppe59de que a (o^o^aYa eraum sacramento no qual Deus se fazia presente, através de um animal que seria seu veículo, sendo cortado em pedaços e devorado

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5. 10.32.5. A afirmação, naturalm ente, tem sido posta em dúvida.

6. de primo frigido 18, 953D.

7. mui. virt. 13, 249E.

8.  Ends and Means, 232, 235.9. A dança, como form a de idolatria,sobreviveu por longo tempo emalgu

mas seitas norte-americanas. Ray Strachey, Group Movements of the Past,

93, cita a exortação de um dançarino mais idoso há cem anos: “Avançai,

velhos, jovens e virgens e adorai a Deus com toda a sua força pela dança.”

E parece que a dança sagrada ainda é praticada por membros da Igreja da

Sagração em Kentucky ( Picture Post, 31 de dezembro de 1938) como tam

 bém pelo Hassidim ju daico (L.H. Feldm an,  Harv. Theol. Rev. 42 [1949],

65 sg.).

10. Beazley,  ARV  724. 1; Pfuhl,  Malere i u. Zeis chnung, fig. 560; Lawler,

 Mem oirs o f the American Academ y at Rom e, 6 (1927), fig. 21, n. 1.

11. Chronic le o f Limburg (137 4), citado por A. M artin, “G esch. der 

Tanzkranheit in Deutschland”, Zeitschrift d. Vereins f. Volkskunde 24 (1914).

De modo similar, a dança do fantasma, pela qual os índios norte-america

nos desenvolveram uma paixão nos anos 1890, continuava “até que os

dançarinos caíssem duros, uns após os outros, prostrados ao solo” (Bene-

dict,  Patterns o f Culture, 92).

12. Citado por Martin, loc. cit., a partir de vários documentos contemporâneos. Seu relato suplementa, e em alguns pontos corrige, a obra clássica

de J.F.K. Hecker,  Die Tanzwuth (1832: edição em inglês de 1888).

13. Hecker, op. cit., 152 sg. Assim Brunel conta a respeito de uma dança ára

 be que “infecta a todos de loucura contagio sa” ( Essai sur Ia confrérie 

religieuse des Aissaoua au Maroc, 119). De modo similar, a loucura da dan

ça na Turíngia, em 1921, era infecciosa (ver minha edição das  Bacantes,

 p. XIII, nota 1).

14. Hecker, 156.

15. Martin, 120 sg.

16. Hecker, 128 sg.; Martin, 125 sg.

17. Hecker, 143 sg., 150. Martin, 129 sg., acha um sobrevivente formal e re

gulado das danças compulsivas e curativas do Reno na procissão dançante

anual de Esternach, a qual ainda se crê ser curativa para a epilepsia e ou

tras doenças psicopáticas similares.

18. Talvez expresso na Lacôn ia pelo termo A u a ^ a iv a i (título de uma tragédia

de Pratinas, Nauck, TGF2, p. 726). Um fracasso na capacidade de distin

guir o menadismo “negro” descrito pelas mensageiras, do menadismo“branco” descrito pelo Côro, tem sido responsável por muito da má com

 preensão em torno das  Bacantes.

19. Cf. Rohde,  Psyche, IX, nota 21; Farnell, Cults, V. 120. Outros explicam

Auaioç e Auaioç como liberador de convenções (Wilamowitz), ou como

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2 8 2 O S GREGOS E O IRRACIONAL

liberador dos aprisionados (Weinreich, Tübinger Beitrãge, V [1930], 285

sg., comparar com  Bacantes, 498).20. Em pinturas de vasos retratando as mênades, Lawler, loc. cit., 107 sg., en

contra 38 ocorrências de flauta e 26 de tímpanos, também 38 de crotala ecastanholas (cf. Eurípides, Cicl. 204 sg). Ela observa que “cenas tranqüi

las nunca apresentam o uso do tímpano”.

21. A respeito do uso da flauta, cf. Aristóteles,  Política , 1341a 21: o u k e a tiv

o croX.oç t]0ikov aXXa [iaXXov op-yiacmKOv; Eurípides,  Her, 871, 879,

e cap. III  supra , nota 95. Sobre o tímpano em cultos orgiásticos de Atenas,

Aristófanes,  Lis., 1-3,388.

22. Cf. cap. III,  supra.

23. Martin, 121 sg. O tambor turco e a flauta de pastor eram também usadosna Itália (Hecker, 151).

24. Catulo,  A ttis 23; Ovídio,  Metamorfoses 3.726; Tácito,  Anais, 11.31.

25. Outros exemplos podem ser vistos em Fürtwangler,  Die Antike Gemmen, 

fig. 10, n. 49; fig. 36, n. 35-37; fig. 41, n. 29, fig. 66, n. 7. Lawler, loc. 

cit., 101, encontra uma “forte inclinação para trás” da cabeça em 28 figu

ras de mênades em vasos.26. Citado em Frazer, O ramo de ouro, V. 1.19. De modo similar nas danças

vudu, “as cabeças são lançadas para trás, de forma sobrenatural, como se

os pescoços estivessem partidos” (W.B. Seabrook, The Magic Island, 47).

27. Frazer, ibid., V. 1.21.28. P. Richer,  Études cliniques sur la grande hystérie, 441. Cf. S. Bazdechi,

“Das Psychopathische Substrál der  Bacchae”, Arch. Gesch. Med. 25 (1932),

288.29. Para outras provas antigas disso, ver Rohde,  Psyche, VIII, n. 43.

30. Benedict,  Patterns ofC ulture, 176.

3I .O. Dapper ,  Beschreib ung von A fr ika , citado por T. K. Oesterreich,

 Possess ion, 264 (trad. ingl.). Lane viu as dançarinas maometanas agiremdo mesmo modo ( Manners and Customs o fthe M odem Egyp tians, 467 sg.,

edição da Everyman’s Library). Ver também Brunel, op. cit., 109, 158.

32. .1. Warneck,  Religion der Batak, citado por Oesterreich, ibid., 270.

33. A. Bastian, Võlker des O estlichen Asiens, III. 282 sg. “Quando o Chao (se

nhor demoníaco) é obrigado pelas conjurações a descer ao corpo de Khon

Song (uma pessoa vestida como o senhor demoníaco), o último permanece

invulnerável enquanto ali estiver e não pode ser tocado por nenhum tipo

de arma” (citado ibid., 353).34. Czaplicka,  Aboriginal Sibéria, 176.

35. Binswanger,  Die Hysterie, 756.

36. A. van Gennep,  Les Rites de passage, 161 sg.

37.  JHS, 26 (1906), 197; cf. Wace.  BSA 16 (1909-1910), 237.38. Nonnus, 45, 294 sg. Cf. a mênade do Museu Britânico do pintor Midias

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A p ê n d i c e 1. M e n a d i s m o 2 8 3

(Beaziey,  ARV  833, 14; Curtius,  Pentheus, fig. 15) que é quase contem po

rânea das  Bacantes. A criança que ela carrega dificilmente seria sua, pois

aparece brutalmente pendurada por uma perna sobre seu ombro.

39. Cf. Beaziey, ARV  247. 14; Horácio, Odes, 2. 19.19.

40. Demos, de cor., 259.41. Plutarco, Alex. 2; Luciano , Alex. 7.

42. Cf. Rapp,  Rh. Mus. 27 (1872), 13. Mesmo Sabázio, se podemos acreditar 

em Arnóbio, teria finalmente poupado os nervos de seus adoradores per

mitindo-lhes utilizar uma serpente de metal (ver nota 44). As cobras, na

 proc issão dionis íaca de Ptolomeu Filad elfo s em Alexandria (Aten. 5.28),

eram sem dúvida imitações (tal como as imitações da hera e das uvas des

critas na mesma passagem), já que as senhoras eram £OTe0ava)(i8vat

oBectiv: uma grinalda de cobras vivas, embora domadas, desmanchar-se-iae estragaria o efeito.

43.  Pic tu re Post, 31 de dezembro de 1938. Sou grato ao professor R.P.

Winnington-lngram por ter me chamado a atenção para este artigo. Fui in

formado de que o ritual resultou em m ortes por mordida de cobra e que foi

 por isso proibido por lei. Lidar com cobras é algo praticado em Cocu lo, no

Abruzzi, como um traço característico do festival religioso; ver Marian C.

Harrison,  Folklore 18 (1907), 187 sg. e T. Ashby, Some Italian Scenes and  

 Festivais, 115 sg.44.  Protrep, 2.16: SpaKov Se e a n v o w o ç (sc. £apaÇ toç) Sie?iKO|i£voç tov KO/biOD xcov TeA,ounev(üv, Arnóbio, 5.21: aureus coluber in sinum

demittitur consecratis et examitur rursus ab inferioribus partibus atque imis.

Cf. também Firmicus Maternus,  Err. prof. rei. 10.

45.  Mithrasliturgie2, 124. O motivo inconsciente pode, é claro, ser sexual em

ambos os casos.

46. Coligido por Farnell, Cults, V. 302 sg., notas 80-84.

47.  Def. ora c., 14, 417C: rutepaç arcoOpaSaç kou  aicoOpcoTiaç, ev atç

cü|to0aYioa koci 5tacntac|J,oi.

48.  Mil et, VI, 22.

49. Foi-me gentilmente comunicado por Miss N.C. Jolliffe. O rito árabe é tam

 bém descrito por Brunel, op. cit. (nota 13 acima). Ele acrescenta observações

significativas como a de que o animal é jogado de um telhado ou platafor

ma, onde é mantido até um momento apropriado, a não ser que a multidão 

o destroce antes\ e que os pedaços das criaturas (boi, bezerro, ovelha, bode

ou galinha) são preservados para uso como amuletos.

50. Ver nota 47.51. Cf. Benedict,  Pattern s o f Culture, 179: “A mesma repugnância que os

Kwakiutl (índios da ilha de Vancouver) sentiram relativamente ao ato de

comer carne humana, tornou-se para eles uma expressão adaptada da vir

tude dionisíaca que reside nas coisas terríveis e proibidas.”

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2 8 4 Os GREGOS E O IRRACIONAL

52. Schol, Ciem. Alex. 92 P. (vol. I, p. 318, Stahlin); Fócio, s.v. vePpiÇeiv;

Firm. Mat.  Err. prof. rei. 6.5.

53. Frazer, O ramo de ouro, V. II, cap. 12.

54. Plutarco, Q. Rom. 112, 291 A.

55. Eurípides,  Bacantes, 743 sg.; cf. Escol. Aristófaneí,  Rãs 360.

56.  Bacantes, 138, cf. Arnóbio, adv. Nat. 5.19.

57. Fócio, s.v. vePpiÇeiv. Cf. o tipo de arte da mênade ve|3p0<j)0v0ç mais recen

temente discutido por H. Philippart, Iconographiedes “Bacchcmtes", 41 sg.

58. Galeno, de antidot. 1.6.14 (em um festival de primavera, provavelmente

de Sabázio).

59. Griech, Myth, u. Rei. 732.

60. Ver minha Introdução às  Bacantes, XVI sg., XXIII sg.

61. Como argumentou Rapp.  Rh. Mus. 27, 1 sg., 562 sg., sendo aceito por 

Marbach em P.-W., s.v. e Voigt em Roscher. s.v. “Dionysos”.

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A p ê n d i c e I I

T  e u r g ia *

 A última metade do século assistiu a um formidável avan- X X .  ço no conhecimento das crenças e práticas de magia da

antigüidade tardia. Mas em comparação com este progresso geral, oramo especial da magia, conhecido como “teurgia”,*1tem sido relativamente negligenciado e permanece mal compreendido. O primeiro passo na direção de sua compreensão foi dado há mais decinqüenta anos, por Wilhelm Kroll, quando reuniu e discutiu os frag

mentos dos Oráculos C a ld e u s Desde então, o falecido professor Joseph Bidez2desenterrou e explicou uma quantidade de textos bizantinos interessantes, sobretudo de autoria de Pselus, que parecemderivar do comentário perdido de Proclus aos Oráculos Caldeus, talvez por meio da obra de seu oponente, o cristão Procópio de Gaza.Hopfner3 e Eitrem4 trouxeram valiosas contribuições para o problema, sobretudo ao chamarem a atenção para os muitos traços comunsligando a teurgia à magia greco-egípcia dos papiros.5Mas muito ain

da permanece obscuro, e é provável que continue assim até que ostextos esparsos relativos à teurgia tenham sido reunidos e estudadoscomo um todo6(uma tarefa à qual Bidez parece ter se dedicado, deixando-a porém inacabada com sua morte). Esta monografia não ob

 je tiva ser completa, e menos ainda definitiva, mas visa apenas duas

* Estas páginas são republicadas com pequenas alterações, do  Journal o f Ro 

man Studies, v. 37 (1947). Agradeço aos professores M.P. Nilsson e A.D. Nock, que leram o manuscrito e contribuíram com valiosas sugestões.

** Prá tica de magia baseada na relação com espíritos celestes e cujo objetivo

final é atingir Deus. Normalmente oposta a “goetéa” (y o rim a ) que invocaespíritos maus (N. daT .).

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286 Os GREGOS E O IRRACIONAL

coisas: 1) esclarecer a relação entre neoplato nism o e teurgia ao longo do desenvolvimento de ambas, e 2) examinar o seu verdadeiromodus operandi naquilo que parece ter sido os dois principais ramos

da teurgia.

I. O fundador da Teurgia

Até onde sabemos, a pessoa que primeiro foi descrita comoOeoDpyoç foi alguém de nome Juliano,7que viveu durante o impé

rio de Marco A urélio.8 Provavelmente, como sugeriu Bidez,9 ele inventou a designação para se distinguir dos simples Geo^oyot: estesfalavam sobre os deuses, enquanto ele “agia sobre eles”, ou até mesmo “os criava”.10A respeito deste personagem sabemos lamentavelmente pouco. Suidas nos conta que ele era o filho de um “filósofocaldeu” de mesmo nome," autor de uma obra sobre daemons em quatro volumes, e que ele próprio escreveu Gecupytica Te^ecraicaAoyta 6t £7rcov. Não restam praticamente dúvidas, graças a uma re

ferência feita por um com entador a propósito de Luc iano 12 (x axe^eaxiKa ‘Iodàkxvod a npoK^oç Dno|iivri(j,axiÇei, oiç onpoK cm oç avxi<|)0£Mtexat) - e também pela afirmação de Pselusde que Proclus “se apaixonou pela £7tr|, chamada Aoyta por seusadmiradores e sobre a qual Juliano erigiu as doutrinas caldéias” 13 -de que estes “oráculos hexaméricos” nada mais eram (como conjec-turou Lobeck) do que os Oracida Chaldaíca, sobre os quais Pro

clus escreveu um vasto comentário (Marinus, Vita Procli 26).Segundo Juliano, ele recebeu estes oráculos dos deuses - eles seriamOeoT tapaSoxa.14 De onde ele realmente os extraiu, não sabemos.Como salientou Kroll, o estilo e conteúdo coincidem mais com a erados Antoninos do que com qualquer período anterior.15Juliano pode,é claro, tê-los forjado; mas o modo de expressão é tão bizarro e bom bástico, e o pensamento por detrás tão obscuro e incoerente, que elessugerem mais as enunciações sob transe dos “guias espíritas” mo

dernos do que esforços deliberados de alguém interessado em forjar o que quer que seja. Não parece na verdade impossível, em vista doque sabemos sobre a teurgia tardia, que eles tivessem sua origemnas “revelações” de algum visionário ou médium, e que o papel deJuliano consistisse, como afirma Pselus16 (ou Proclus), em colocá-

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A p ê n d i c e I I . T e u r g i a 2 8 7

los em verso. Isto estaria de acordo com a prática estabelecida dosoráculos oficiais;17e a transposição em hexâmetros seria uma oportunidade para introduzir uma aparência de sistema e significado filosóficos em meio a todo o palavreado. Mas o leitor pio ainda assimficaria prejudicado, necessitando de alguma explicação em prosa oude algum comentário. Parece que isto foi fornecido por Juliano, poisé certamente ele que é citado por Proclus (,in Tim. 111.124.32) comoo 0eo\)pyoç ev xoiç X)())T|yr|TiKOtç. Marinus está provavelmente sereferindo ao mesmo comentário quando fala de xa Aoyta kcu  xa

auaxoixoc xcov Xodôcaov cruM.pan|j,axa (vir.  Procli 26), e Da-mascius (11.203.27) quando cita oi 9eoi Kat avxoç o 0£ot>pyoç. Se

isto é idêntico ao Oeoupyim mencionado por Suidas, não sabemos.Proclus cita (in Tim. 111.27.10) uma vez Juliano - ev e|3§0|ar| xcovZcovcov - o que soa como um trecho do Geovpyiica lidando em setecapítulos, com as sete esferas planetárias pelas quais a alma desce eascende (cf. in Remp. 11.220.11 sg.). Sobre o conteúdo provávelda Ts?i£axiKa, ver a seção IV abaixo.

Seja qual for a origem dos Oráculos Caldeus, eles certamenteincluem não apenas prescrições para o culto do fogo e do sol,18 mas

também prescrições para a mágica evocação dos deuses. A tradição posterior apresenta os Julianos como potentes magos. De acordo comPselus,19 Juliano, o velho, “apresentou” (<xuveoxr|a£) seu filho aofantasma de Platão. E parece que eles reivindicavam ainda um feitiço (ayoyr|) para produzir a aparição do deus X povoç20 por exemplo.Eles podiam também fazer as almas dos homens abandonarem e retornarem ao corpo.21 A fama deles não era sequer confinada aos

círculos neoplatônicos. O temporal que salvou o exército romanodurante a campanha de Marco Antônio contra os Quadi, em 173,foi atribuído a algumas das artes mágicas de Juliano, o jovem.22 Naversão de Pselus, Juliano faz uma máscara humana de barro que soltadescargas de “raios insuportáveis” contra o inimigo.23 Sozomen ouviu falar que ele partiu uma pedra através de magia (Hist. Eccl. 1.18),e uma pitoresca lenda cristã mostra-o competindo em uma exibiçãode poderes mágicos contra Apolônio e Apuleio - Rom a tendo sido

atingida por uma peste, a cada mago é atribuída a superintendênciamédica de um setor da cidade; Apuleio consegue parar a peste emquinze dias, Apolônio em dez; mas Juliano interrompe-a instantaneam ente com uma simples palavra de ordem.24

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2 8 8 Os GREGOS E O IRRACIONAL

II. A teurgia na escola neoplatônica

O criador da teurgia foi um mago e não um filósofo neoplatô-

nico. E o criador do neoplatonismo não era nem mago e nem sequer - dando um exemplo para escritores modernos - um teurgista.25 Plo-tino nunca é descrito por seus sucessores como um ©Eovpyoç, nemutiliza o termo 0£or)pyta ou cognatos em seus escritos. Não há, defato, nenhuma indicação26 de que ele tenha ouvido falar de Julianoe de seus Oráculos Caldeus. Se este fosse o caso. presumimos queele tê-los-ia submetido ao mesmo tratamento crítico das revelações“de Zoroastro, Zoroastrino, Nicoteos, Alogenes, Mesos e outros do

mesmo gênero”, os quais foram apresentados e analisados no seminário plo tin ian o .27 Porq ue em sua grande defe sa da tradiçãoracionalista grega, no ensaio “Contra os gnósticos” (.Enéadas 2.9),ele deixa bastante claro, tanto seu desgosto por todas estas megalomaníacas “revelações especiais”28 quanto seu desprezo por to içnoXXoic,, ot x aç 7 iapa xoiç |iay otç SDVoqaeiç B anpaÇ orjai (c. 14,1.203.32 Volkmann). Não que ele negasse a eficácia da magia (al

gum homem do século III poderia negá-la?). Porém, o lema não lheinteressava. Ele via nisso simplesmente uma aplicação para fins pessoais da “verdadeira magia que é a soma do amor e do ódio nouniverso”, a misteriosa e realmente admirável cru|J7ta0£i,a que torna o cosmos um só; os homens se maravilhando porém mais com ayoT|T£ia humana do que com a magia da natureza, unicamente porque esta lhes é menos familiar.29

Apesar de tudo isso, o artigo “Teurgia” que apareceu em um re

cente volume de Pauly-Wissowa, chama Plotino de teurgista, e Eitremtem ultimamente falado de Plotino, “de onde deriva provavelmentea teurgia” .30 As principais bases para esta afirmação parecem ser:1) sua nacionalidade pretensamente egípcia31 e o fato de ele ter estudado em Alexandria com Amonius Saccas; 2) seu pretenso profundo conhecimento32 da religião egípcia; 3) sua experiência de unio mystica (Porph. vit. Plot. 23) e 4) o caso no  Iseum de Roma (citado e discu

tido na seção III abaixo). Destas considerações, apenas a última pa-rece-me realmente relevante. Quanto ao primeiro ponto, deve bastar dizer que o nome de Plotino é romano, que seu estilo de pensamento e discurso é caracteristicamente grego, e do pouco que sabemossobre Amonius Saccas não há nada que garanta que ele seja um

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A p ê n d i c e II. T e u r g i a 289

teurgista. No que concerne ao conhecimento da reiigião egípcia demonstrado nas Enéadas, não consigo ver ali nada mais do que algumas referências casuais a assuntos do senso comum - Porfírio apren

deu tanto ou mais pela leitura de Queremon.33 E finalmente, quantoà unio mystica plotiniana, deve estar bem claro para qualquer leitor criterioso de algumas passagens das  Enéadas 1.6.9 ou 6.7.34, queela é atingida não por meio de ritual ou de ações prescritas, mas através de uma disciplina interna da mente sem envolver nenhum elemento compulsivo e sem qualquer ligação que seja com magia.34Resta, enfim, o caso do  Iseum. Trata-se realmente de teurgia ou dealgo parecido. O caso, porém, consiste simplesmente em conversas

de escolas de pensamento. E, de qualquer maneira, uma visita feitaa uma sessão espírita não faz de ninguém um espírita, sobretudo sea pessoa, como Plotino, comparece à sessão por iniciativa de outrem.

Plotino era um homem que, conforme colocou Wilhelm Kroll,se elevava acima da atmosfera nebulosa que o circundava por meio

de um grande esforço intelectual e moral”. Enquanto viveu, elevouconsigo o espírito de seus pupilos. Mas com sua morte a neblina in

telectual voltou a se fechar sobre as pessoas. O neoplatonismo posterior é, em muitos aspectos, um retorno ao sincretismo deses-truturado do qual Plotino tentou escapar. O conflito entre suainfluência pessoal e as superstições de seu tempo aparece muito diretamente na atitude hesitante de seu pupilo Porfírio35 - um homemhonesto, estudado e amável, porém um pensador sem criatividadeou consistência. Profundamente religioso por temperamento, Porfírio tinha um fraco incurável por oráculos. Antes de encontrar 

Plotino36 ele já havia publicado uma coleção sob o título flep t xr|Ç 

ek  Jioyttóv <|)tA,0(J0<|)iaç.37 Alguns destes textos se referem a médiunse são claramente aquilo que poderíamos chamar de resultado de umasessão espírita . Mas não há traços de citação dos Oráculos Cal 

deus (ou do uso do termo “teurgia”) na obra. Provavelmente, ele nemsabia de sua existência ao escrevê-la. Posteriormente, quando Plotino ensinou Porfírio a fazer certos questionamentos, passou a

direcionar uma série de pesquisas irônicas sobre demonologia e ocultismo ao egípcio Anebo,38 salientando, entre outras coisas, a loucuraque é tentar limitar os deuses por meio de magia.39 Foi provavelmente depois,411após a morte de Plotino, que ele retirou os Oráculos Caldeus do ostracismo em que estiveram por mais de um século, es

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290 O S GREGOS E 0 IRRACIONAL

crevendo um comentário41 e “fazendo contínua menção a eles” emseu de regressu animae [do retorno da alma].42 E em sua última obraPorf í r io sus tentou que a xs^exai teúrgica podia pur i f icar  

TweujiaxiKri yoxri e fazê-la “aptam susceptioni spirituum etangelorum et ad videndos deos”, mas advertiu seus leitores que tal

 prática era perigosa e passível de bons e maus usos, negando que pudesse realizar um retorno da alma a deus.43 Porfírio era de tato,no fundo, ainda a esta altura, um plotiniano no fundo do coração.44Mas ele fez uma concessão perigosa à escola contrária.

A resposta desta escola oponente veio com o comentário deIâmblico aos Oráculos Caldeus45 e no tratado de mysteriis,46 Trata-

se de um manifesto irracionalista, uma afirmação de que a estradada salvação encontra-se não na razão, mas no ritual. “Não é o pensamento que liga os teurgistas aos deuses - do contrário, o queimpediria os filósofos teóricos dc gozar de união teúrgica com eles?

 Não se trata disso. A união teúrgica só é atingida pela eficácia decertos atos inefáveis realizados de modo apropriado, atos além detoda a nossa compreensão, pela potência de símbolos impronunciá-

veis que só são compreendidos pelos deuses... Mesmo sem esforçointelectual de nossa parte, os emblemas (owOiipaxa) cumprem, por virtude própria, a sua função” (de myst. 96.13 Parthey). Para as mentes desencorajadas de pagãos do século IV, a mensagem oferecia umconforto sedutor. Os “filósofos teóricos” haviam discutido suas questões por nove séculos e o que havia saído dali? Apenas uma culturavisivelmente em declínio, e o crescimento da cx0£oxr|Ç cristã, queretiraria todo o sangue vital do helenismo. E como a magia vulgar é

normalmente o último reduto dos desesperados, e das pessoas a quemnem o homem nem Deus conseguem ajudar, a teurgia acabou tornando-se o refúgio dc uma intelligentsia sem esperança.

Parece, entretanto, que mesmo durante a geração posterior, ateurgia de Iâmblico não era ainda completamente aceita na escolaneoplatônica. Em uma passagem bastante instrutiva (vit. soph. 474sg., Boissonade), Eunápio nos apresenta Eusébio de Mindus (um pu

 pilo de Edésio que, por sua vez, era pupilo de Iâmblico) defendendoem suas palestras que a magia era um assunto para “pessoas enlouquecidas que elaboram estudos pervertidos sobre certos poderesoriundos da matéria”, e advertindo o imperador Juliano contra o“maneirista fazedor de milagres” , Máximo, concluindo com palavras

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A p ê n d i c e I I . T e u r g i a 291

que fazem lembrar Plotino: cro Se xouxcov |JT|§£V 80041 a<rr|Ç oocnrepouòe eyco tt)v Sroc xou Xoyoti Kccyocp a tv | i ey ax i x p v i - ^t)7toÀa|i[3avcov. Ao que o príncipe teria replicado: “você pode fi

car com seus livros, pois agora já sei onde ir” - entregando-se emseguida a Máximo. Pouco depois, encontramos o jovem Juliano pedindo a seu amigo Priscus para conseguir uma boa cópia docomentário de lâmblico sobre o texto de Juliano o teurgista, poiscomo afirma, “estou sedento por lâmblico em filosofia e por aqueleque possui meu nom e”.47

O mecenato de Juliano colocou a teurgia temporariamente namoda. Após a reforma imperial do clero pagão, o teurgista Crisân-

teos tornou-se apxiepetx; da Lídia, enquanto Máximo, que era consultor teúrgico da corte imperial, tornou-se uma rica e influente eminência parda, porque m e p xcov Tiapovxoov era xouÇ Geoua oatavxaaveyepov (Eunap. p. 477 Boiss.; cf. Amm. Marc. 22.7.3 e 25.4.17).Mas Máximo pagaria por isso na sua subseqüente reação cristã, quando seria multado, torturado e finalmente executado em 371, sob acusação de conspiração contra os imperadores (Eunap. p. 478; Amm.

Marc. 29.1.42; Zosimus 4.15). Depois deste acontecimento, e por certo tempo, teurgistas julgaram prudente o silêncio,48 mas a tradição foi mesmo assim transmitida a certas famílias.49 No século Vela foi outra vez ensinada e praticada abertamente pelos neoplatôni-cos de Atenas - Proclus não apenas compôs um Hepi aycoyrjç [so bre a magia], além de um comentário sobre os Oráculos Caldeus, mas também experimentou visões pessoais (a\)X07iX0’0p.ev0iç) defantasmas “hecáticos” luminosos sendo, a exemplo do fundador do

culto, um grande “fazedor de chuva”.50 Depois, a teurgia justinianavoltou a fazer parte do submundo sem, porém, morrer completamente. Pselus descreveu uma Seocycoyta dirigida por um arcebispo nosmesmos moldes da teurgia pagã (xotÇ, %a?iSoaü)v ?toyoiÇ £7to|aevoQque ele afirma ter ocorrido em Bizâncio no século  XI.51 E o comentário de Proclus sobre os Oráculos Caldeus era ainda desconhecido, tanto de forma direta quanto indiretamente, de alguém como Ni-

céforo Grégoras no século  XIV.52

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2 9 2 Os GREGOS E O IRRACIONAL

III. Uma sessão espírita em Iseum

Porfírio, vita Plotini,  10 (16.12 sg. Volk.): Arywtxioc; yap xiç

repe-uç ave?i9cov etç ir|v ‘P©|jr|v Kai 8ia xtvoç «tuA-ov a-oxcoyvcopiaOeiç OeXrnv xe xr|ç eauxot» ao(|naç a7io8ei^rv 8 o w airiÇrcoae xov n^coxvov em Geav a^tKeaOai  xov auvovxoÇ amcooiKSiou 5caj_iovÇ KaXot) lasvot). xouSe exoiiucoÇ tmaKODaavxoÇytvexat, |iev ev xco Iae wo ri K^rjoxÇ.|iovov yap e ke i vov   xov  xorcovrnOapov (j>aaiv eupeiv ev xr) Pcd(it| xoco  Aiyu7txtov. K/Vr|yevxa8e etÇ a w o y lav xov 8ai|aova0eov eA,0eiv Kai |u,t| xot> Sat|.iovcoveivai ye vodÇ xov auvovx. |ir|xe 8e epeaOai xi eKyeveayai {.irjxeeTii jtÀeov iSeiv Ttapovx, xou croyeaxiotivxoÇ ((nlou xaÇ opveiÇaÇ Kaxei%e (fro aicriÇ eveK,icvii;avxoÇ eixe 8 ia (fiyovov eixe r a i8ia (|)opov xiva.

Esta curiosa passagem foi discutida por Hopfncr, OZ 11.125, ede maneira mais completa por Eitrem, Symb. Oslo. 22.62 sg. Nãodevemos dar demasiado valor histórico a ela. O uso que Porfírio fazde (|)aoiv [palavra]53 mostra que a sua fonte não era nem Plotino e

nem qualquer dos “freqüentadores da sessão”, e como ele afirma queo negócio acabou levando à composição do ensaio plotiniano Ilepixot) ei^exoxoç r | | iaç Sai|iovoç ( Enn. 3.4) deve ter ocorrido, comoa própria composição do ensaio, antes da chegada de Porfírio a Romae pelo menos trinta e cinco anos antes do Vita Plotini. O testemunho sobre o qual se baseia a história não é direto, e nem sequer está cronologicamente perto do evento. Ele não pode, comoE itrem co rretam ente af irm a, “ter valor de um autêntico

atestado”.54 Entretanto, ele nos fornece uma interessante e hipnótica imagem dos procedimentos mágicos de alto nível praticados noséculo III.

 Nem o local e nem o propósito da sessão esp írita devem nossurpreender. A crença em um ôatjitov interior é muito antiga e di

fundida, sendo aceita e racionalizada nos seus modos respectivos por Platão e pelos estóicos.55 Isto pode ter exercido um papel na forma

ção da magia greco-egípcia, rotulada em uma receita, e de modoincompleto, como Enaxaatç i ô i o d   8ai|i.ovoç .5fl Para o Saifiov quefinalmente se revela divino, há citações de Plotino Enn. 3.4.6 (1.265.4Volk.) 8at|_ta)v xouxcoOeoç (citado por Eitrem), Olimpiodoro inAlc. 

 p. 20 Cr., nas quais após distin guir 0etot 8at|a o veç de outros

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daemons de nível inferior, ele conta que oi kcxt ouaiav eauxcovPtouvxeç Kat coç 7ie(|wKaoi xov 0etov Satfiova exouotv eiArixoxa... Kax ovatav òe eaxi Çr|v xo 7tpoa(j)opov atpetoBax ptov xr)

aetpa tjí)) r|v avayexat, otov axpaxtcoxiKOv |j£v, eav tmo xrjvapeiier|v, kxL Quanto à escolha do local, ela está suficientementeexplicada pela conhecida exigência de um X0710Ç Ka0apoç para operações de magia,57 juntamente com a afirmação de Queremon de queos templos egípcios eram acessíveis em épocas comuns apenas aoshomens purificados, submetidos a dietas rigorosas.58

Mas o que deixa Eitrem intrigado (e também a mim), é o pa pel desempenhado pelos pássaros, a ç Kaxetxe (jn)A,aicr|Ç eveKa, istoé, a proteção deles aos operadores de magia do ataque dc espíritosmalignos (e não se trata certamente de evitar os pássaros de voar,como na unânime má tradução de MacKenna, Bréhier e Harder, poisneste caso a presença dos pássaros ficaria completamente sem ex plicação). Medidas de proteção são às vezes prescritas nos textosdos papiros.59 Mas como agiam os pássaros como (jvu^aicri? E por que a morte deles bloqueou as aparições? Hopfner diz que foi a im

 pureza da morte que afastou o deus - os pássaros eram levados atélá para que suas mortes agissem como um ooto/Uxnç cm caso dcnecessidade,60 mas na verdade tratava-se de algo feito prematura edesnecessariamente. Eitrem por outro lado crê que a verdadeira intenção era o sacrifício c que Porfírio ou seu informante entenderamerrado o que acontecia - ele acha ainda que os motivos atribuídosao (|)iÀ,oç inverossímeis. Para defender esta posição ele poderia ter citado uma afirmação do próprio Porfírio na sua Carta a Anebo61

que 5 ta vsKpcov Çcocoen xa noXXa at ©eaycoytat emxeÂcmvxai, oqual parece descartar de vez a explicação dc Hopfner. Há entretanto uma outra passagem de Porfírio que parece implicar que ao matar 

 pássaros nesta ocasião específica o <|nA,oç estava na realidade rom pendo com uma regra do puoxr|p tov teúrgico: at de abst. 4.16 (255.7 N.), ele diz, oaxiç Se <j)aa|iaxcov (fcuatv taxopiiaev, otSev k o c 0 o v  

^oyov catexeaBca XP1! Ttavxcov opvt0cov, Kat p aX ia x a o xa vG7teuSr| xiç £K  x c o v   xQovtcov a j t a ü a y n v a t Kat 7tpoç xouç

o up av tc uç Oeouç i8 p w 0 r|v a is - o que corresponde tão bem aoIseum (pois aueKeo0at pode certamente valer tanto como abstenção de matar quanto como abstenção de comer) que é difícildescobrir o que Porfírio tem exatamente em mente. Podemos talvezcompará-la com a regra pitagórica que especificamente proibia o

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sacrifício de galos (lâmblico, Vita Pythagorii, 147,  Protréptico , 21).Mas se é assim, por que os pássaros aparecem ali naquele contexto? Possivelmente porque a presença deles era em si mesma uma

<tn)^(XKT|. A palavra opviBeç proferida sem qualificação, normalmente significa aves domésticas, KaxoiKiSioi opvtBeç (cf. L.S.9, s.v.).E ave doméstica, como observou Cumont,62 traz consigo o nome deum pássaro sagrado da Pérsia, capaz de banir a escuridão e, por conseguinte, os dem ônios.6-1Plutarco, por exemplo, sabe que Kuveç r a iOpvtBeç pertence a Oromazes (Ormuzd).64 Não seria provável queneste assunto, como no culto do fogo, a tradição teúrgica tenha pre

servado traços de idéias religiosas do Irã? E se Porfírio não foi um padre egípcio, não pode ter ele pensado que a função dos pássarosera apotropáica e que suas mortes eram um ultraje ao fantasma do paraíso? Há, de fato, motivos para defender esta tese. Assim, por exemplo, aprendemos de Proclus que os galos não são as únicas criaturas solares, pexexovxeç koci oaixoi xot> Geio-u KOixa xr|v eauxoovxocÇtv, mas que i]8r| xtva xcov r|?aaKCOv ScapovcovXeovxcmpoacoxov (j)ocivo|aevov, aA.eKp\)0 V0ç Seix^ev^oç, ax|)avr|yeveaGou (|)aatv t>7i;oGxe?^opevov xa xcov Kpetxxovcov

ouvOrmaxa.65

IV. O modus operandv. T£À£GTiKT|

Proclus define a teurgia de modo grandiloqüente como “um poder mais elevado do que toda a sabedoria humana, englobandoas bênçãos da adivinhação, os poderes purificadores da iniciação e,cm uma palavra, todas as operações de possessão divina” (Theol.  Plat. p. 63). Ela pode ser descrita de modo mais simples como amagia aplicada com propósito religioso e consistindo em uma su

 posta revelação de caráter religio so. Enquanto a magia vulgar utilizava nomes e fórmulas de origem religiosa para fins profanos,

a teurgia utilizava procedimentos de magia vulgar principalmentecom fins religiosos: seu xeloç era TeXoç era i] npoç to vor|Xov T t D p

avoÔoç (de myst. 179.8) que permitia que seus devotos escapassemeipappevi] (ou yap xx)) eipapxr|v aye?tT|v 7ti7txox)ot 0eo-opyot, O r. chald. p. 59 Kr.; cf. de myst. 269.19 sg.), assegurando xr|ÇocKaOavaxtGpoç (Proclus, iu Remp. 1.151.10).66 Mas a teurgia tam

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 bém possuía uma utilidade mais imediata: por exemplo, o livro IIIdo de mysteriis é dedicado inteiramente às técnicas de adivinhação,e Proclus afirma ter recebido de ôaifioveç muitas revelações sobre

o passado e o futuro (in Remp. 1.86.13).Até onde podemos julgar, os procedimentos teúrgicos erammuito semelhantes aos da magia vulgar. Podemos distinguir aí doistipos principais: 1) os que dependem exclusivamente do uso dosati^Po^a ou cuvBruiaxa; e 2) os que envolvem o emprego de um“médium” em estado de transe.

Destes dois ramos da teurgia, o primeiro parece ter sido conhecido como teleaxiKTi, e estar vinculado principalmente à

consagração (xe leiv, Procl. in Tim. III.6.1 3) e animação das estátuas mágicas com o intuito de extrair delas oráculos: Proclus in Tim. III. 155.18, xt)v xfAeaxiKT|v m i x p r ic i ip ia Kai aya?q.iaxa 9ecovi8pua9ai em yqç Kai ôia xivmv aujJpoXrov emxriSeia 7toieiv xa|iepiKi]ç yevo|ieva Kai <])0apxr|ç eiç xo |uexexeiv 9eou KaiKiveia9ai raxp auxou Kai 71 p o le7e.1v xo fieHov: Theol. Plat. 1.28,

 p. 70, 11 xeX,eaxiKi"| SiaKaOi]paaa Kai xivaç xapaKxr|paç Kaio u ji p o la 7tep ixi0e iaa xoo ay a l|a a x i e,|iij/\)Xov a m o £7xoiT|ae:

0mesmo em in Tim. 1.51.25, III.6.12 sg.; in Crat. 19.12.67 Podemossupor que pelo menos uma parte deste conhecimento específico remete à T£À£OXiKa de Juliano; certamente os co^poÀ-a remetem aosO ráculos C  m   Ide us.68

O que foram estes <yo|J.j3oÀ,a, c como eles eram usados? A res posta mais clara a isso consta da carta de Pselus:® eKetvq yap (sc.v xeÀeaxiKT| eTtiaxrnari) xa KoiÀ,a xcov ayal|aaxrov uÀriç

e(i7ti7il(ooa o iKeiaç xaiç e(f>eaxr|K\)iaiç 5i)va|ie ai, Çaxov, cjroxcov,1i9cov, Poxavcov, piÇcov, cc|)payi5(tív, eyypa|i|iaxoov, evioxe 5e Kaiapo) | i axcov a \ ) | ina9cov, auyKaGiSpuouca Se xodxoiç KaiKpaxiipaç Kai GTiovôeia Kai 0D|jiaxripia, eiirtvoa Ttoiei xaeiôcola Kai xr) a7toppr|X(ú 8uva|Liei Kivei. Aí a genuína doutrinateúrgica, sem dúvida derivada do comentário de Proclus aos Orá-culos Caldeus. Os animais, ervas, pedras e perfumes figuram no de mysteriis (233.10 sg., cf. Aug. Civ. D. 10.1) e Proclus nos dá ali uma

lista de ervas mágicas e pedras boas para propósitos variados.70 Cadaum dos deuses possui seu representante nos mundos animal, vegetal e mineral, sendo ou contendo a u f ip o la de sua causa divina,estando assim em relação com o elemento anterior.71 Estes <xo|ipo— 

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2 9 6 O s GREGOS E 0 IRRACIONAL

 Xa eram escondidos dentro da estátua,72 de modo que eles só se tornavam conhecidos para os XEÀecraiç (Procl. in Tim. 1.273.II). Osa^pocyiôeç (pedras semi-preciosas gravadas) e £yypa|a[iaxa (fórmu

las escritas) correspondem aos %apaKTr|p£ç r a i ovo jaax a ÇcoxiKade Proc. in Tim. III.6.13). O %apaKXT|p£Ç (que incluem as sete vogais simbolizando os setes deuses planetários)73 podiam ser escritos(0eciç) ou pronunciados oralmente (£K(|)COvr|Giç).74A maneira correta de pronunciá-las era um segredo profissional transmitido também

oralmente.75 Os atributos do deus podiam também ser nomeados gerando um efeito mágico por meio de invocação oral.76 Os nomes queserviam para “dar a vida" incluíam, além disso, certas apelações secretas que os próprios deuses revelaram aos Juliani, capacitando-osa obter respostas às suas preces.77 Tais apelações estariam entre osOVO|_taxa (3appapa que, segundo os Oráculos Caldeus, perdem suaeficácia quando traduzidos para o grego.78 Alguns deles eram, naverdade, exp licad os pelos deuses ;79 quanto aos demais, se um%apocKTT|p se mostra sem sentido para nós a m o x o w o £cm voartox) xo a£|ivoxotxov (de rnyst. 254.14 sg.)

Diante disso tudo a X£A,£.oxikt | teúrgica estava longe de ser original. O uso de ervas c de pedras estão cheios da “botânica e damineralogia astrológicas” que vinculavam plantas e gemas a deuses

 planetários específicos, e cujos princípios datam pelo menos do tem po de Bolus de Mendes (por volta de 200 a.C.).1,11 Estes gu|í[3o^(x já eram utilizados nas invocações de magia greco-egípcia; assim, por 

exemplo, Hermes é evocado pelo nome de sua planta e árvore correspondentes; a deusa da lua pela recitação dc uma lista de animais;c assim por diante, terminando £ipi]Ka o o v xa ar | |a£ta K ai xa<xo|iPoXa xon ovoi-iaxoç.81 ftap aiecrip eç (listas de atributos),ovop.axa (3ap(3apa, pertence à matéria magica greco-egípcia pa

drão: o uso desta era conhecida dc Luciano e de Celso ( Menipp. 9 fin .). A teoria a propósito de sua eficácia foi vigorosamente sustentada por Origines contra este último (c. Cels. 1.24 sg.).

 Nem mesmo a manufatura de estatuetas mágicas representan

do os deuses era monopólio dos teurgistas.82 Ela residia, em últimainstância, na crença primitiva e bastante difundida em uma<xu|iTta0£ia natural ligando a imagem ao original,83 a mesma crença que jaz sob o uso mágico dc imagens de seres humanos com vistasa um envoütement  (encantamento). Seu centro de difusão foi evi

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dentemente o Egito, onde ela se encontrava enraizada nas idéias religiosas dos nativos.84 O diálogo hermético tardio intitulado Asclépios  está informado de “statuas animatas sensu et spiritu plenas” que pre

dizem o futuro “sorte, vate, somniis, multisque aliis rebus”, e amboscausam e curam doenças. A arte de produzir tais estátuas pelo apri-sionamento das almas de demônios ou de anjos em imagensconsagradas e com a ajuda de ervas, gemas e aromas, foi descoberta pelos antigos egípcios: “sic deorum fictor est homo”.85 Os papirosmágicos oferecem receitas de como construir as imagens e animá-las (Çcú7rupsiv, xii.318), e.g., iv. 1841 sg., a imagem devendo ser oca(como as estátuas de Pselus) e contendo um nome mágico inscritocm ouro; 2360 sg., um Hermes oco com fórmula mágica, consagrado com uma guirlanda e pelo sacrifício de um galo. A partir do séculoI86 começamos a ouvir falar dc manufaturas privadas87 e do uso mágico de imagens análogas mesmo fora do Egito. Ncro possuía uma,

 presente de “plebeius quidam et ignotus” , que o advertiu dc conspirações (Suetônio, Vida dos doze Césares'. “Nero” 56). Apuleio foiacusado, provavelmente dc modo justo, de também possuir uma des

tas imagens.88 Luciano, em sua obra  Philopseudes, satirizou a crençanelas.189 Filostrato menciona o uso delas como amuletos.90 No século III, Porfírio cita um oráculo dc Hécate91 dando instruções para aconfecção de uma imagem que traria ao idólatra uma visão da deusa adormecida.92 Mas a verdadeira moda da arte de confeccionar imagens veio depois, e parece se dever a Iâmblico que, sem dúvida,via nela a defesa mais eficaz contra o desdém dos críticos cristãos.Enquanto o llept «ya^aTCov de Porfírio parece não reclamar a pre

sença dos deuses nas imagens que os simbolizavam;93 Iâmblico, emobra com o mesmo título, busca provar “que os ídolos são divinos eestão cheios dc presença divina”, defendendo sua afirmação por umanarração teoXXoc a it tB ava .94 Seus discípulos normalmente procuravam profecias nas estátuas, e não perdiam tempo para contribuir aTuOava : Máximo faz uma estátua de Hécate rir e provoca o acender automático95 da tocha em suas mãos. Heraisco tem uma intuição

tão sutil que pode imediatamente distinguir a estátua “animada” da“inanimada”, simplesmente pelas sensações que ela lhe causa.96A arte de fabricar imagens oraculares passaria do agonizante

mundo pagão para o repertório dos magos medievais, onde gozariade vida longa, embora ela nunca tenha sido tão comum quanto nos

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298 Os GREGOS E O IRRACIONAL

tempos de seu uso para envoütement. Assim, uma bula do papa JoãoXXII, datada de 1326 ou 1327 denuncia pessoas que aprisionam demônios em imagens e em outros objetos, interrogando-as e obtendo

respostas.97 E duas perguntas sugerem uma conexão com a teúrgicateXeaxiKr], apesar de não poderem ser analisadas aqui. Em primeiro lugar, tal arte contribuiu para a crença em xe?ieo|J.ata (talismãs)ou em estátuas mágicas, comuns tanto na Itália medieval quanto emBizâncio - imagens cuja presença, oculta ou não, tinham o poder de advertir sobre desastres naturais ou derrotas militares?98 Eram alguns destes xeleaiiaxa (normalmente atribuídos a magos lendáriosou anônim os) de fato obra de teurgistas? Zózimo con ta que oteurgista Nestório salvou Atenas de um terremoto em 375 ao inaugurar uma X£/lea|ia (uma estátua de Aquiles) no Parthenon, deacordo com instruções recebidas em sonho. Ao que parece, a estátua de Zeus Filios consagrada jiayyavE iaiç u a i kou yor|X£iaiç; emAntióquia, por um contemporâneo de Iâmblico (o pagão fanáticoTheoteknos) que praticava xeXexat, fruriaeiç e KaBapj-ioi tambémera teúrgica (Eusébio,  Hist. Eccl, 9.3; 9.11). Uma origem semelhan

te pode ser suposta para a estátua de Júpiter, armado com raiosdourados, que em 394 foi “consagrado com certos ritos” a ajudar o pre tendente pagão Eugênio contra as tropas de Teodósio (SantoAgostinho,  A cidade de Deus 5.26). Podemos ver aqui a mão de Fla-viano, principal apoio de Eugênio e um homem conhecido por ser diletante cm ocultismo pagão. Outra vez a aya^[ia X£X£À,£a|iEvovque protegia Régio dos fogos do Etna e de invasões marítimas, parece ter fornecido axoi%£ia de uma maneira que recorda os

0 D |.tp o la da teurgia e os papiro s: ev ya p xrn sv i rcoSi rtupaK0i|ir|X0v exuyxave, Kai ev xco exEpco uScop a8iac()0opov.99

Em segundo lugar, foi a xeleaxiKr] teúrgica que sugeriu aosalquimistas medievais a idéia de tentar criar seres humanos artificiais (“homunculi”)? Aqui a conexão de idéias é menos óbvia, masuma prova curiosa da ligação histórica entre os dois fatos foi recentem en te ap rese nta da p elo a rab ista Paul K ra u s,100 cuja m orte prematura foi uma enorme perda. Ele observa que o grande corpus alquímico atribuído a Jâbir b. Hayyan (Gebir) não apenas se refereaqui à obra (espúria?) de Porfírio intitulada O livro da geração,101como também faz uso de especulações neoplatônicas a respeito deimagens, de um modo que indica algum conhecimento de obras genuínas do autor, incluindo talvez a Carta a Anebo.1112

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A p ê n d i c e II, T e u r g i a 2 9 9

V. O modus operandi: transe mediúnico

Enquanto a X£?i£GXtKr|  procurava induzir a presença de um

deus no interior de um “receptáculo” (t)7to8oxr|) inanimado, um outro ramo da teurgia visava uma encarnação temporária do deus(E iGKptvav) no ser humano (kocto%oç ou, em termo mais técnico,8o%£'uç).10:' Assim como a primeira arte (X£?i£gxikt|) consistia emuma noção mais ampla de Gt)(i7ta0£ta, natural e espontânea, entreimagem e original, a segunda (teurgia) agia no sentido de uma difusão da crença de que alterações espontâneas da personalidade se

deviam à possessão por um deus, demônio ou ser humano falecido .104 Podemos inferir por uma afirmação de Proclus, falando dacapacidade da alma de deixar e retornar ao corpo, confirmado por ogoc xotç £7tt MapKOu BEOvpyoiç ekSeSotco. Kat yap e k e i v o i Sta8r| x t v o ç xeXexriç xo am o ôpcoatv £ iç xov x£?uyo| i£vov ,1115e queuma técnica para produzir alterações deste tipo data da época dosJulianos. E que tais técnicas eram praticadas também por outras pessoas, é evidente pelo oráculo citado por Firmicus Maternus (err. prof  

rei. 14) a partir da coleção de Porfírio, c que se inicia por “Serapisvocatus et intra corpus hominis collocatus talis respondit”. Muitosdos oráculos de Porfírio parecem se basear em pronunciamentos dcmédiuns que se encontravam em estado de transe mesmo fora dc santuários oficiais, em círculos privados, como Frederic Myers

 percebeu."16 Deste grupo fazem parte as instruções para encerramento do transe (a7to?a)aic ,) concedidas pelo deus através de transemediúnico,107 análogas aos papiros egípcios, mas que dificilmente poderiam fazer parte de uma resposta oracular oficial. Deste mesmo tipo é o “oráculo” citado (dc Porfírio?) por Proclus in Remp. 1.111.28, “cro (|)£p£i |i£ xot> SoxTioç i] xa^atva KapSia,” (|)r|cn, itç0£(ov. Tal eiGKptciç dc caráter privado diferia de oráculos oficiais,

 pois o deus era visto como entrando no corpo do médium não emum ato espontâneo de graça, mas como resposta a um apelo, aindaque por com pulsão108 da parte do operador de transe (K?o~|XCúp).

Este ramo da teurgia é especialmente interessante devido à evidente analogia entre ele e o espiritismo moderno. Se estivéssemosmelhor informados sobre ele, poderíamos lançar luz sobre as bases

 psicológica e fisiológica de ambas as superstições. Mas nossa informação é bastante incompleta. Sabemos, por intermédio dc Proclus,

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300 Os GREGOS E O IRRACIONAL

que antes os “freqüentadores” da sessão, operador e médium, eram purificados com água e fo go,109 (in Cratl. 100.21), e que eram vestidos com cintas especiais, apropriadas para a invocação da divindade

(in Remp. 11.246.23). Isto parece corresponder ao NetXair| oBovriou (TivScov do oráculo de Porfírio (Praep. Ev. 5.9), cuja remoçãoera uma parte evidentemente essencial do aTto?a)Giç (cf.  PGM  iv.89,aivSoviaoocç koctcx K£(j)a?a|ç |i£%pt no8oov yujivov ... jiatõa, a“lintea indumenta” dos magos in Amm. Marc. 29.1.29, e a “purum

 pallium” de Apul.  Apol. 44). O médium usava também uma grinalda magicamente eficaz,11(1e carregava ou acrescentava às suas vestes

e i k o v i o ( j a t a xcov K£K?a||a£vcov Gecov111 ou outros apropriadosa u p p o la .112 O que mais era feito para induzir o transe é incerto.Porf ír io sabe de pessoas que tentam conseguir possessão(£iOKpiv£tv) “com base cm %apaKir|p£ç;” (como faziam os magosmedievais), mas lâmblico vê com maus olhos este procedimento (de myst. 129.13; 131.3 sg.). Ele reconhece o uso de ocxpoi e de£7UKÀ,r|CElç (Ibid. , 157.9 sg.), mas nega que eles tenham qualquer efeito sobre o médium. Apuleio, por outro lado (Apol. 43), fala em

 pôr o médium para dormir (“seu carminum avocamento sive odorumdelenimento”). Proclus informa da prática dc manchar os olhos comestricnina e outras drogas com o intuito dc provocar visões,"3 porém não atribui isto aos teurgistas. Provavelmente os agentes efetivos,tanto da operação teúrgica quanto do espiritismo, eram de fato psicológicos c não fisiológicos. lâmblico diz que nem todos são médiunsem potencial; os mais recomendados são “pessoas jovens c de pre

ferência simples” .114Aqui ele está de acordo com a opinião geral,115c a experiência moderna também tcndc a corroborar sua afirmação,

 pelo menos no que concerne à segunda parte de sua exigência.O comportamento c as condições psicológicas do médium são

descritas em extensão, embora dc modo obscuro, por lâmblico (de myst. 3.4-7), e em termos mais claros por Pselus (orat. 27; Scripta  Minora 1.248.1 sg. etc., baseado em Proclus: cf. também CM  AG  VI.209.15 sg., e Op. Duem. xiv,  PG 122, 851) que distingue casos

em que a personalidade do médium fica cm estado de suspensãocompleta, de tal modo que é absolutamente necessário ter uma pessoa normal presente para cuidar dele. de outros casos em que aconsciência (7tapaK0À,0t)9riaiç) persiste B au iiacx ov xiva xporcovde maneira que o médium sabe xtva x£ Evepyet Kai xi <|)0£Àãxai

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A p ê n d i c e II. T e u r g i a 301

K a i rtoBev Sei a7roÀA)£iv xo k i v o u v . Ambos os lipos de transe ocorrem nos dias de hoje.116 Iâmblico conta que os sintomas de transevariam amplamente conforme os diferentes “comunicadores” e tam

 bém conforme a ocasião (III.3 sg.); pode haver anestesia, incluindoinsensibilidade ao fogo (II0.4 sg.); pode haver movimento corporalou imobilidade (III. 17); podem haver mudanças de voz (112.5 sg.).Pselus menciona o risco de u/Um nvroiiaxa causando movimentos convulsivos (Kivrioiv (iexa xtvoç [3iaç ?i£vo|_i£vr|v) que médiunsmais fracos não conseguem suportar."7 Em outro local ele fala deKaxo%oi, mordendo os lábios e murmurando entre os dentes (CMAG VI. 164.18). A maior parte destes sintomas pode ser ilustrada pelo

estudo clássico sobre fenômenos de transe de Mrs. Piper, de autoriade Mrs. Henry Sidgw ick."8 A meu ver, é razoável concluir que osestados descritos por observadores antigos e modernos são, senãoidênticos, pelo menos análogos.

 Não ouvimos falar de nenhuma prova da identidade “fornecida” por estes deuses, e é provável que ela fosse mesmofreqüentemente objeto de disputa. Porfírio desejava saber como a

 presença de um deus poderia ser distinguida da de um anjo, arcan jo, Sai|_i(DV, ap%cov, ou alma humana (de myst. 70.9). Iâmblicoadmite que operadores de magia impuros ou amadores, às vezes tomavam para si o deus errado, ou, pior ainda, tomavam um deus deespírito mau, chamado avxi0£O i"9 (ibid., 177.7 sg.). Conta-se (Eu-nápio, vita soph., 473) que ele próprio desmascarou um pretensoApoio, que na verdade era apenas o fantasma de um gladiador. Res

 postas f alsas são atribuídas por Sinésio (de insomn. 142A) a estes

espíritos intrusos que “saltam e ocupam o lugar preparado para seres mais elevados”. Seu comentador, Nicéforo Grégoras (PG 149,540A) atribui esta visão ao XaA,8aioi (Juliano?) e cita (seria dosOráculos Caldeusl) uma prescrição para lidar com tais situações.Outros acreditam que as falsas respostas se devem às “más condições”120 (7tovr|pa K axaaxaaiç xov rcepiexovxoç, Porph. ap. Eus. Praep. Ev. 6.5 = Philop. de mundi creat. 4.20) ou a uma falta de£7tixr|5£ioxriç;121 outros, ainda, a um distúrbio mental do médium oua uma intervenção inoportuna por parte de seu “eu” normal. Todosestes modos de desculpar o fracasso ressurgem na literatura espírita.

Além de revelar o passado ou o futuro pela fala do médium,os deuses outorgavam sinais visíveis (e ocasionalmente auditivos)122

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302 OS GREGOS E O IRRACIONAL

de sua presença, A pessoa do médium podia ser alongada, dilatada,123 ou até mesmo levitar  (de myst. 112.3).124Mas as manifestaçõesnormalmente tomavam a forma de luminosas aparições: na verda

de, na ausência destas “visões abençoadas Iâmblico consideia queos operadores não podem ter certeza do que estão fazendo (de myst. 

112.18). Parece que Proclus distinguia dois tipos de sessão: a de tipo“autóptico”, na qual o 0eaxr|ç testemunhava os fenômenos ele pró prio; e a “epóptica” , em que ele tinha que se contenta r com adescrição do K ^ x c o p (o xr|V xeA,exr|V 5iaxi0e|J.evoç).125 Neste último caso as visões eram obviamente suspeitas de serem puramentesubjetivas e Porfírio parece tê-lo sugerido, porque Iâmblico repudia

energicamente a noção de que evOoucriccGUOÇ ou j_t<xvxiKT| possamter uma origem subjetiva (de myst. 114.16; 166.13), e aparentemente

se refere a traços objetivos de sua visita deixada pelos deuses .Escritores têm dificuldade cm explicar por que apenas certas pessoas, graças a um dom natural ou tepaxncn &uvap.iç, podem gozar destas visões (Procl. in Remp. 11.167.12; Hcrmeias in Phaedr. 69.7

Couvrcur).

As aparições luminosas datam dos Oráculos Caldeus prometendo que, por meio da pronúncia de certas palavras mágicas, o operador veria, por exemplo, “o fogo na forma de um garoto , ou umfogo disforme (axurtcoxov) de onde sairia uma voz”, e várias outrascoisas.127Compare-se a TtDpa-uyr) (jjaajxaxa onde consta que os “caldeus” exibiram ao imperador Juliano1-8 a (jxxojjocxoc Ekocxikoc  

( | ) ( ü x o £ 1.8 t | que Proclus afirmara ter visto (Marim. vit. Procl. 28), e areceita de Hipólito para estimular uma aparição cm fogo dc Hécate por meios naturais e perigosos (Ref. Haer. 4.36). Todos estes fenômenos estão claramente associados à mediunidade: o espírito podeser visto sob uma lorma luminosa ou incandescente entrando(eiGKpivoiievov) ou deixando o corpo do médium, por meio da açãodo operador (xcoOeaYCoyotivxi), do médium (xco 5e%0H£va>) e às vezes de todos os presentes: este último caso (a ccuxo\|a.cx de Proclus)sendo o mais satisfatório. A aparente analogia com o que chama

mos “ectoplasma” ou “telcplasma”, que observadores modeinos alir-mam ter visto emergir dos corpos dos médiuns para depois íetoinar até eles, foi anotada por Hopfner e por outros comentadores.129Assimcomo o “ectoplasma”, a aparência pode não possuir forma(axuTtroxa, a(iop(j)coxa) ou ser formada (x£xuiT<i)|i£va,

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A p ê n d i c e II. T e u r g i a 303

|i£|iop(|)coji£va): um dos oráculos de Porfírio ( Praep. Ev. 5.8) falado “fogo puro sendo comprimido em formas sagradas ( t u t u » ) ” : masde acordo com Pselus (PG 122, 1136C) as aparências disformes são

mais dignas de crédito, e Proclus (in Crat. 34.28) dá a razão disso -avto yap a | iop( |)coxoç ouaa Sta xrjv r tpooSov eyevexo(-t£jj.opcj)cofj.£VT|. O caráter luminoso que é regularmente atribuído àsaparições está sem dúvida ligado ao culto “caldeu” (iraniano) dofogo, mas também recorda os (JxMxaycúyiai dos papiros,.130como ainda as “luzes” das salas de sessão espírita modernas. Proclus pareceter falado do processo de formação das aparições acontecendo “sobuma luz”131- isto sugere uma A/u%vojiavx£ia, como prescrito em

 PGM  vii.540 sg., em que o mago diz (561), £(xpr|0i am o u (sc. xouTtouSoç) a ç xr|v iv a TU7rcc>crr|Tai xt|v aB avaxov |aop<l)T|v

£v (jxoxt Kpaxatco Kai a<j)9apx®. Eitrem 132 traduziria xm coarixai por “perceber” (um sentido que não é atestado em nenhum outro lugar); porém, em vista das passagens já referidas, penso que devemos colocar “dar forma à” (“abbilden”, Preisendanz) e supor queestá em jogo um processo de materialização do espírito. A “forteluz imortal” substitui a luz mortal da lâmpada, da mesma maneiraque o observador vê a luz da lâmpada ganhar a “forma de uma abó bada” e então a vê substituída por uma “grande luz dentro do vazio”, e enfim contempla deus. Mas se a lâmpada cra ou não utilizadana teurgia, é algo que não sabemos. Certamente alguns tipos de(Jjcoxaycoyta eram dirigidos no escuro,133outros em espaço aberto,134enquanto a licnomancia* não figura entre as variedades de (jwnxoçaycoyri listadas (de myst. 3.14). A similaridade na linguagem em

 pregada permanece, no entanto, marcante.

 N o t a s d o a p ê n d i c e II

1. W. Kroll, de Oraculis Chaldaicis (Breslauer Philologische Abhandlugen,VII.I, 1894).

2. Catalogue des manuscrits alchimiques grecs  (CMAG), vol. VI;  Mélcutges 

Cumont, 95 sg. Cf. seu “Note sur les mystères néo-platoniciens”,  Rev. Belge de Phil. et d ’Hist. 7 (1928), 1477 sg. e seu Vie de 1’Emp. Julien , 73 sg.

* Licnom ancia é a adivinhação por meio de lâmpadas (N. da T.).

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304 OS GREGOS E O IRRACIONAL

Sobre Procópio de Gaza como a fonte aproximada de Pselus, ver L.G.

Westerink em  Mnemosyne 10 (1942), 275 sg.3. GrieschischAegyptische Qffenbarungszraube (citado como OZ)\ e na in

trodução e comentário à sua tradução do de mysteriis. Cf. também seus

artigos “Mageia” e "Theurgie”, em Pauly-Wyssowa, e nota 115 abaixo.

4. Especialmente Eitrem, “Die c u a x a a iç und Lichtzauber in der Magie”

(Symb. Oslo 8 [1929], 49 sg.), e “La Théurgie chez les Néo-Platoniciens

et dans les papyrus magiques”, ibid. 22 (1942, 49 sg.). O ensaio de W.

Theiler,  Die chaldaischen Orakel und die Hym nen des Synesios (Halle,

1942) lida estudadamente com a influência doutrinai dos Oracles no neo-

 platonism o tardio, um tópico que não tentei discu tir aqui.

5.  Papyri Graecae Magicae , ed. Preisedanz {PGM).

6. Cf. Bidez-Cumont,  Les Mages liellénisés, 1. 163.

7. ro v K ^G ev ro ç 0eo\)yo\) lou X iavo n. Suidas. s. v.8. Suidas, s.v. cf. Proclus in Crat. 72.10; Pasq. in Remp. II. 123.12 etc. Pselus,

em um lugar (confundindo Proclus com seu pai?), coloca-o na época de

Trajano (Scripta Minora 1, p. 241. 29 Kurtz-Drexl.)

9. Vie de Julien , 369, nota 8.10. Ver Eitrem, Symb. Oslo. 22.49. Pselus parece ter entendido a palavra neste

último sentido,  PG 122, 721 D: Geouç todç ocvOpíorcouç epYaÇerat. Cf.

também o hermético “deorum lictor est homo’ , citado mais adiante.11. Uma expressão de Proclus oi etu MapKOu eeoupyoi (in Crat. 72. 10, in 

 Remp. II. 123.12) se refere talvez ao pai e ao filho conjuntamente.

12. ad  Philops. 12 (IV. 224 Jacobitz). Sobre este escólio, ver Westerinck, op.

cit., 276.13. Scripta Minora, 1. 241.25 sg. Cf. CMAG VI. 163. 19 sg. Como Westerinck 

salienta, a fonte destas afirmações parece ser Procópio.

14. Marinus, vit Procl. 26; cf. Proclus, in Crat. Sobre tais reivindicações de

origem divina, que são freqüentes na literatura helenistica oculta, ver Fes-tugière,  L ’Astrologie, 309 sg.

15. Bousset,  Arch. f. Rei. 18 (1915) argumentou a favor de uma data anterior 

com base em coincidências em sua doutrina com a de Cornelius Labeo. Mas

a própria data de Labeo está longe de ser certa, e as coincidências podem

apenas significar que os Juliani transitavam em círculos neopitagóricos que

sabemos interessados em magia.16. Script. Min. I. 241. 29 sg.; cf. CMAG VI. 163.20. Sobre os oráculos

doutrinais recebidos em visão, ver Festugière, op. cit., 59 sg.

17. Cf. cap. III,  supra, nota 70.18. Kroll, op. cit. As passagens sobre o fogo divino lembram a "receita da imor

talidade” em  PGM  IV. 475 sg., que é de muitos modos o análogo mais próximo dos Oráculos Caldeus. Juliano, Or. V. 172D, atribui a O Xc//-<5(xi.oc.

(ou seja, Juliano), um culto de tov ETtraicciva 0eov. Este título solar foi

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A p ê n d i c e I I . T e u r g i a 305

desfigurado pela corrupção em duas passagens de Pselus, Script. Min. 1.262.

19: EpcoTUxr|£V r| K aaoG av r|  Enxaia q (ler HETcxaimç), r\ ei t iç a U o ç

Saípcúv amxr|A.oç, ibid., I. 446. 26: xov Ercaicxov (Hetctcxkiv, Bidez) o

Atio-uàtiioç opKoiç K a x a v a y ra aa ç nr| 7 cp oo o|j.ar|aai tcú esonpyco (sc.

Juliano). Cf. também Proclus, in Tim. I. 34.20: HiVico, 7i a p ’ü) [.. .] oHíixaKxiç r a x a xo uç 0£oA.oyonç.

19. n ep i xvç x p w riç aÀWEcoç,  A m . Assoc. Ét. Gr. 1875, 216. 24 sg.

20. Proclus, in Tim. III. 120.22: oi Geoupyoi [...] aycoyqv auxou 7i a p e So a a v

r|(rw 8 i’r |ç eiç a\)xo0 avE iav Kiveiv a w o v Snvaxov: cf. Simpl. in Pliys., 

795.4, e Damasc.  Princ. II. 235.22. Ambos cruoxaaiç e aycüyr| são “ter

mos de arte”, familiares para nós pelos papiros mágicos.21. Proclus, in Remp. II. 123. 9 sg.

22. Suidas, s.v. Iot^iavoç. A atribuição de crédito a Juliano talvez seja tam bém sugerida em Claudiano, de VI cons. Honorii, 348 sg., que fala de magia

caldéia”. Para outras versões do conto, e um sumário da extensão das dis

cussões modernas, ver A.B. Cook.  Zeus III. 324 sg. A atribuição a Juliano

 pode ter sido su gerida por uma confusão com os Julianos que comandaram

contra os dácios sob Domiciano (Dio Cass, 67.10).23. Script Min. 1.446.28.

24. S. Anastasius do Sinai, Quaestiones ( PG 89, col. 525A). Sobre a suposta

rivalidade de Juliano e Apuleio, ver também Pselus citado acima, nota 18.25. Cf. Olimpiodoro, in Phaed. 123.3 Norvin: oi |iev xr)v 0iA,OGO0iav

rcpoxípcüGiv, coç FIopO-upioç r a i nXcoxivoç r a i aXXoi  ko XX oi  0iAocto0oi

oi ôe ir|v lepaxiicriv (isto é, teurgia), coç la p p À i/o ç Koa S n p iav o ç KainpoKÀ oç m i o i cepaxiKoc rcavxeç.

26. A injunção de prosa, nr| e ^ a ^ ç iv a (aii exo D oa xi, citada nas Enéa  

das 1.9 init., é chamada de “caldéia” por Pselus ( Expos. or. Chald. 1125C

sg.) e em um escólio tardio ad loc., mas não pode vir de um poemahexamétrico. A doutrina é pitagórica.

27. Porfírio, vit. Plot. 16. Cf. Kroll.  Rh. Mus. 71 (1916), 350; Puech in 

 Mélanges Cumont, 935 sg. Em uma lista similar de falsos profetas, Arnó-

 bio,  Adv. gen tes 1.52; Juliano e Zoroastro figuram lado a lado.

28. Cf. esp. c. 9 , 1, 197.8 sg. Volk: xoiç 5’aAAoiç (Sei) vomÇeiv Eivai j(copav

 j t a p a xco 0eco K ai |i r | a m o v ftovov ji£x’£K£ivov xaE ,a vxa wa7i£p

oveipaoi 7t£xea0ai [.. .] xo Se -utcep vouv r|8ri Eaxiv e^cüvou  íieoeiv .

29.  Enéadas, 4. 4. 37, 40. Observem que através desta discussão ele utiliza a

 palavra pejorativa yor|X£ia e não in troduz nenhum dos term os teúrg icos da

arte. Sobre a concepção estóica e neoplatônica de <xu|J7ta0Eia, ver K.Reinhardt,  Kosm os und Sympathie, e minhas observações em Greek Poetrv 

and Life, 373 sg. Para os teurgislas, tais explicações pareciam inteiramenteinadequadas (de myst. 164. 5 sg. Parthey).

30. Symb. Oslo. 22. 50. Como o próprio Eitrem nota, Lobeck e Wilamowitz

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3 0 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL

 pensavam de outro modo; e ele poderia ter acrescentado os nomes de Wi-

lhelm Kroll (Rh. Mus. 71 [1916], 313) e Joseph Bidez (Vie de Julien, 67;

CAH  XII. 635 sg.).

31. Ver  CL 22 (1928), 129, nota 2.32. J. Cochez,  Rév. NéoScolastique, 18 (1911), 328 sg. e Mélanges Ch. Moeller,

1.85 sg.; Cumont,  Mon. Piot, 25-77 sg.33. de abst. 4.6; cf. de myst. 265. 16. 277. 4. Ver também a resposta convin

cente de E. Peterson a Cumont, TheoL Literaturzeitung  50 (1925), 485 sg.

Eu acrescentaria que a alusão nas  Enéadas 5. 5. 11, a pessoas que são ex

cluídas de certos iep a por causa de sua y ao tp i|iap Y ia provavelmente se

refira a Elêusis e não ao Egito: TtapayyeXÀeTai yap Kai E^evaivi

a7texr|ea0ou KaTOiKiSicov opviOcov Kai ixôucov Kai K-oa^cov poiaç ie  

Kai |ir)Xcov, Porfírio, de abst. 4. 16.

34. Cf. CQ 22 (1928), 141 sg., e E. Peterson,  Philol. 88 (1933), 30 sg. Inver

samente. como Eitrem salientou corretamente (Symb. Oslo 8. 50), o termo

mágico e teúrgico aucrraoiç nada tem a ver com a unio mystica.35. Ver o estudo sim pático, e lega nte e r igoros o de Bidez,  La Vie du 

 Néopla tonic ien Porphyre. Uma infecção similar de misticismo por magia

ocorreu em outras culturas. “Em vez da religião popular ser espiritualizada

 pelo ideal contemplativo, há uma tendên cia para a alta religião ser invadi

da e contaminada por forças sobre-racionais do submundo pagão, como no budismo tântrico e em algum as form as de hindu ísmo sectário” (Christopher 

Dawson,  Religion and Culture, 192 sg.).

36. v e o ç 5e rnv igcúç l a m a ey pa^ ev, coç eoixev , Eunápio, vit. soph. 457

Boissonade; Bidez, op. cit., cap. III.

37. Os fragmentos foram editados por W. Wolff,  Porphyrii de Philosophia ex  

Oraculis Haurienda (1856). Sobre o caráter geral desta coleção, ver A. D.

 Nock, “Oracles Théologiq ues”, REA 30 (1928), 280 sg.

38. Os fragmentos tal como foram reconstruídos por Gale (de modo não muitocientífico) estão reimpressos na edição de Parthey dos de mysteriis. Sobre

a data, ver Bidez, op. cit., 86.

39.  Apud Eusébio de Mindus,  Praep. Ev. 5. 10. 199A (= frag. 4 Gale): p a ta io i

a i 0ecov kA,t|C£iç ea o v x ai [...] Kai m naÀAov ai X eyo|ievai a v a y r a i

Gewv aicri^Tixov  yap Kai a |3iaotov Kai aKaTavayKaa-tov  xo aitaBeç.

40. É provável que a carta a Anebo não citasse Juliano ou mesmo os Oráculos 

Caldeus, pois a réplica de lâmblico não chega a mencioná-la. Se a “teur

gia” do de m ysteriis é, de fato, independ ente da tradição juliana, é algo que perm anece para ser inves tigado. O escri to r certam ente re iv indica uma in ti

m idade tanto com doutrinas “ca ldé ias” (p. 4. 11) ou “ass írias’ (p. 5. 8)

quanto com doutrinas egípcias, dizendo que apresentará ambas.

41. Marinus, vit. Procli 26; Lydus, mens. 4. 53; Suidas, s.v.  Porphyrio.

42. Santo Agostinho,  A cidade de Deus 10. 32 = de regressu trag. 1 Bidez, Vie

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A p ê n d i c e I I . T e u r g i a 307

de Porphyre, ap. II.

43. Ibid., 10.9 = frag. 2 Bidez. Sobre a função da íivediíoctikti x|/uxii na teur

gia, ver minha edição dos  Elementos de Teologia, de Proclus, p. 319.

44. Cf. o juízo feito por Olimpiodoro, nota 25 acima.

45. Juliano,  Epístolas 12 Bidez; Marinus, vit. Procli 26; Damascius I. 86. 3 sg.46. O de mysteriis, embora publicado com o nome de “Abammon", foi atribuí

do a Iâmblico por Proclus e Damascius; e desde a publicação da dissertação

de Rasche, em 1911, a maior parte dos estudiosos aceitou a atribuição. Cf.

Bidez,  Mélanges Desrousseaux , 11 sg.

47.  Epist. 12 Bidez = 71 Hertlein = 2 Wright. O editor da Loeb está claramen

te errado em manter, contra Bidez, que tov o(rmvo|.tov nesta passagem se

refere a Iâmblico, o jovem: t a IocpP^ixou eiç tov o|ícúvdpov não pode

significar “os escritos de Iâmblico em seu nome”; e o jovem Iâmblico nãoera sequer Seooocfioç.

48. Cf. o que Eunápio diz de um dos Antoninos que teria morrido pouco antes

de 391: eíieSaK vw o ouSsv Oeo-uyov Kai m p cd o y o v eç rr|v 0 aivo pev r|v

ocia0r|Giv, tocç PocgiXikocç lacoç oppaç n(|)opcü|aevoç erepcooe <j>epouaaç

(p. 471).

49. Assim, Proclus aprendeu, de Asclepigeneia, o BeoDpyiKq ocYfflyri do “grande

 Nestorius”, do qual ela era, por meio de seu pai Plutarco, a única herdeira

(Marinus, vit. Procli 28). Sobre este tipo de transmissão familiar de segre

dos mágicos, ver Dieterich,  Abra xas, 160 sg.; Festugière, UAstrologie, 332sg. Diodoro chama isto de urna prática caldéia, 2. 29. 4.

50. Marinus, vit. Procli 26, 28. O Flepi aYfflyriç é listado por Suidas, s.v. Proclos.

51. Script. Min. I. 237 sg.

52. Migne,  PG 149, 538B sg„ 599B; cf. Bidez, CMAG VI. 104 sg.; Westerink,

op. cit., 280.

53. A correção de Nauck para <f>r|0 iv que nao tem nenhum sujeito possível.

54. Entre os escritores tardios, Proclus (in. Alc., p. 73. 4 Creuzer) e AmmianusMarcellinus (21. 14. 5) referem -se ao incidente. Mas o que diz Proclus o

Aryuiraoç tov nXcouvov e9ai)| iaoev coç 0£iov exovra tov Scapova, é

claramente dependente de Porfírio; o mesmo podemos presumir quanto a

Ammianus, diretamente ou via alguma fonte doxográfica.

55. Cf. cap. II,  supra. Ammianus, loc. cit. diz que enquanto cada homem pos

sui seu “gênio” próprio, tais seres são “admodum paucissimis visa”.

56. Uma vez que a parte remanescente da receita consiste em uma invocação

ao sol, Preisendanz c Hopfner crêem que tSioi) é um equívoco de quem

 procurava dizer T]Xiou. Mas a perda do restante da rece ita (Eitrem) pareceuma explicação igualmente possível. Sobre tais perdas, ver Nock,  J. Eg. 

 Arch. 15 (1929), 221. O iSioç Satpmv parece ter desempenhado um papel

na alquimia também; cf. Zózimo, Comm. in o 2 (Scott,  Hermetica IV. 104).

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308 O s GREGOS E O IRRACIONAL

57.  E.g. PGM  IV. 1927. De maneira sem elhan te, IV. 28 requer um lugar recen

temente descoberto pela cheia do Nilo e ainda não pisado e II. 147 um totioç

ayvoç an o m v io ç pt icjapou. Assim Thessalus, CCAG 8 (3). 136. 26

(oikoç K a0apoç).

58 . apud  Porf í r io , de abst. 4. 6 (236. 21 Nauck). Continua a falar de

ay ve w ripta to iç | ít | KaBapet iouaiv aS w a Kai rcpoç tepoupyiaç ayta

(237. 13). Sobre práticas de magia nos templos egípcios, ver Cumont,

 L 'Egypte des Astrologues, 163 sg.

59.  PGM  IV. 814 sg. Sobre <f>t)XcxKr|, cf. Proclus em CMAG VI, 151.6:

cotoxTipe yotp 7ipoo [...]; e sobre os espíritos tornando-se figuras asquero

sas durante as sessões, Pitágoras de Rodes em Eus.  Praep. Ev. 5. 8, 193B;

Pselus, op. Daem. 22, 869B.

60. A spersão com sangue de pombos ocorre em c o to à w iç (PGM  II. 178).61. Frag. 29 = de myst. 241. 4 = Eus.  Praep. Ev. 5. 10. 198A.

62. CRAI  1942, 284 sg. Dúvida pode pairar quanto à última data, que Cumont

atribui à introdução de aves domésticas na Grécia, mas isto não afeta o ar

gumento aqui defendido.

63. “O galo foi criado para combater demônios e feiticeiros juntamente com o

cão”, Darmester (citado por Cumont, loc. cit.). A crença em virtudes

apotropaicas sobrevive até hoje em muitos países. Sobre esta crença entre

os gregos, ver Orth em P.-W., s.v. “Huhn”, 2532 sg.64.  Is. et Os. 46, 369F.

65. CMAG VI. 150. I sg., 15 sg. (parcialmente baseado na antipatia tradicio

nal do leão e do galo, Plínio,  N.H. 8. 52 etc.). Cf. Bolus, Physica frag. 9,

Wellmann (Abh. Berl. Akad., phil.-hist. Kl., 1928 n. 7, p. 20).

66. Idéias similares aparecem na “receita para a imortalidade”,  PGM  IV. 475

sg., v.g. 511: tva ©aupaaco to tepov Ttup, e 648: ek xoaowrov p\)pia8cov

amaGavoataGeiç ev Tawri  xr\ copa. Culmina em visões luminosas (634

sg., 694 sg.). Mas o a m O a v a T io p o ç teúrgico pode ter estado conectado

ao ritual de enterro e de renascimento (Proclus, Theol. Plat. 4. 9, p. 193:

tcov Oeoupycov Oanieiv to acopa Ke/VeuovTCúv jiàtiv tt)ç Ke^a^riç ev tii

|TUüTiKCúTaTr| tcov TeXeTcov). Cf. Dieterich,  Eine Mithrasliturg ie, 163.

67. Pselus, embora também conecte TeA.eaxiKT| com estátuas, explica o termo

de outro modo: Te^ecmKTi 8e em oT iipn eaTiv Tj oiov TeX ouo a (assim

manuscrito) rr|v \|A)xriv 5ia tiiç tcov evTat>0 vàcdv Stivapecoç ( Expos. 

or. Chald. 1129D, in  PG, vol. 122). H ierocles, que represen ta uma outra

tradição faz da TeXeoTiKri a arte de purificar o pneuma {in aur. Carm. 482A

Mullach).

68. Pselus diz que “os Caldeus” 8ia(f>opoiç "uXaiç avSpeiKeXa TtXaTTOvTeç

anoTportaia voaiijiaTCOv epyaÇovTai (Script. Min I. 447. 8). Sobre osau|i|3o^a cf. o verso citado por Proclus, in Crat. 21. 1: oupPoXa yap

TtaTpiKoç vo oç eo7ieipev K aTa Ko apov.

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A p ê n d i c e I I . T e u r g i a 309

69.  Epist. 187 Sathas (Bibliotheca Grcieca M edii Aevi, V, 474).

70. CMAG VI. 151. 6; cf. também in Tim. I. 111. 9 sg.

71. Cf. Proclus in CMAG VI. 148 sg., com a introdução de Bidez, e Hopfner,

OZ  I. 382 sg.

72. Uma prática idêntica é encontrada no Tibet de hoje, onde estátuas são consagradas por meio da inserção em seu interior de palavras encantadas e de

outros objetos mágicos (Hastings,  Encycl. ofReligio n and Etliics, VII. 144,

160).

73. Cf. R. Wünsch, Sethianische Verf luchungstafeln, 98 sg. Audollent,

 Defixio num Tabellae, p. LXX1II; Dornseiff,  Das A lp habet in M ystik n. 

 M agie , 35 sg.

74. Proclus, in Tim. II. 247. 25; cf. in Crat. 31. 27. Porfírio também inclui em

sua lista de matéria magica teúrgica ambas “figurationes” e “soni certiquidam ad voces” (Santo Agostinho,  A cidade de Deus, 10. 11).

75. Marinus, vit. Procl. 28; Suidas, s.v. XaÀSaiKOiç E7tiTT|5e\)jj.aoi. Cf. Pselus,

 Epist. 187, onde ficamos sabendo que certas fórmulas são inoperantes ei

 p r| t i ç T a w a epei D7to\|/e^A.co  xr\ y?icooor| r| etepcoç coç r) Texvri

S i a Tc m e t a i .

76. Pselus, em CMAG VI. 62. 4, conta-nos que Proclus aconselhava invocar 

Artêmis (= Hécate) ^i(t>r|<l)opoç, OTterpoSpaKOvxoÇcovoç, Xeovtodxoç,

Tptp.0p(|)0ç TOUTOtç yap a m r iv (f>r|ai t o i ç ovopaaiv eXK£a(j>ai Kai oiov

e£,a7iaxa<30ai Kai yoriTeueGOai.

77. Proclus, in Crat. 72. 8. Cf. o nome divino que “o profeta Bitys” encontrou

gravado em hieróglifos em um templo em Sais e revelou ao “rei Ammon”,de myst. 267. 14.

78. Pselus, expos. or. chald. 1132C; Nicéforos de Grégoras, in Synes. de insomn. 

541 A. Cf. Corp. Herm. XVI. 2.

79. Cf. as traduções gregas deste nomes mágicos dadas por Clemente de Ale

xandria, Strom. 5. 242, e Hesiq. s.v. E(|)eoia ypappaTa.

80. Ver Wellmann,  Abh . B erl Akad ., phil.-hist. Kl. 1928, n. 7; Pfister,  Byz.  Ztschr. 37 (1937), 381 sg.; K.W. Wirbelauer,  Antike Lapidar ien (Diss. Berl.,

1937); Bidez-Cumont,  Les Mages he llénisés I. 194; Festugière, L'Astrologie , 

137 sg., 195 sg.

81.  PGM  VIII. 13; VII. 781. Cf. VII. 560; r|K£ p.oi to íive^pa to aeponeTeç,

raXoupevov cropPo^oiç Kai ovofiaoiv a<|)0EyKTOiç, e IV. 2300 sg.; Hopf

ner. P.-W. s.v. “Mageia”, 311 sg.

82. Cf. J. Kroll,  Letiren des Hermes Trism egistos, 91 sg., 409; C. Clerc,  Les 

Théotíes relatives au culte des images chez les auteurs grecs du IP"“ siècle  après J.C .; J.Geffcken,  Arch. f. Rei. 19 (1919), 286 sg.; Hopfner. P.-W.

s.v. “Mageia”, 347 sg.; e OZ I. 808-812; E. Bevan,  Holy Images.

83. Cf. Plotino,  Enéadas 4. 3. 11 (II. 23. 21 Volk); Jipoo7ia0eç 8e to ojic úoow

 pij ir |0 £v, cúoarcep KaTOJiTpov a p T ia a a i eiS oç t i Swapevov , em que

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310 OS GREGOS E O IRRACIONAL

O T I O X T O U V p a r e c e e n v o l v e r n e g a ç ã o d e q u a l q u e r v i r t u d e e s p e c í f i c a a o s r i

to s m á g i c o s d e c o n s a g r a ç ã o .

84. Erman,  Die agyptisc he Religion, 55; A. Moret,  Ann. M usée Guimet  14

(1902), 93 sg.; Gadd,  Divine Rule , 23. Eusébio parece saber disto: ele lista

£,oavrov iSpnaeiç entre as práticas mágicas e religiosas tomadas de em préstim o ao Egito pelos gregos (Praep. Ev. 10. 4. 4). Um simples ritual de

devoção oferecendo xuxpca era comum na Grécia clássica (textos em G.

Hock, Griech. Weihegebrãuche, 59 sg.), mas não há nenhuma sugestão de

que isto fosse visto como induzindo uma animação mágica.

85.  Asc lep. 111. 24a, 27a-38" (Corp. Herm. 1. 338, 358 Scott). Cf. também

Preisigke, Sammelbuch n. 4127, ^oavco (assim Nock para aoccvcú) xe ato

m i vaco ettjxvoiav rapex cov kom Su va |itv (reya^riv, de Mandulis-Helios;

e Numenius apud Orig. contra Celso 5. 38.86. Este é também o período em que pedras valiosas (gemas) marcadas com

figuras mágicas ou fórmulas começam a aparecer em grandes quantidades

(C. Bonner, “Magical Amulets”,  Harv. Theol. Rev. 39 [1946, 30 sg.]). A

coincidência não é fortuita: a mag ia está entrando na moda.

87. Lendas a respeito do comportamento miraculoso de estátuas públicas de

culto eram tão comuns no mundo helenístico quanto seriam no mundo me

dieval: Pausânias e Dio Cássio estão cheios delas; Plutarco, Camillus 6 é

um locus classicus. Mas tal comportamento era normalmente visto como

um ato espontâneo da graça divina, e não como um resultado de iSpuaiç

ou KTOCK^riaiç mágicas. Sobre a atitude grega clássica, ver Nilsson, Gesch. 

der Griech. Rei. I. 71 sg.; até o tempo de Alexandre, o racionalismo pare

ce ter sido, de um modo geral, forte o bastante para manter em xeque (ao

menos no meio da classe mais letrada) a tendência a atribuir poderes divi

nos a imagens públicas ou privadas. Posteriormente, a crença na animação

das imagens pode ter sido sustentada, algumas vezes, por meio de maqui

nações fraudulentas; ver E Poulsen, “Talking, Weeping and Bleeding

Sculptures”, Acta Archaeologica, 16 (1945), 178 sg.88. Apuleio,  Apol. 63. Cf. P. Vallette,  L ’Apologie d ’Apulée, 310 sg.; Abt.  Die 

 Apologie des A. u. die anlike Zauberei, 302. Tais estatuetas, que eram pos

sessões permanentes, são obviamente algo diferente da imagem construída

ad hoc para uso em um tipo de  pra xis particular.

89.  Philops. 42: ek rcriXou Epcuxiov t i avccTt^aaaç, AtuOi, s^ti, kcu aye

XpnaiSa. Cf. Ibid., 47, e  PGM  IV.296 sg., 1840 sg.

90. Filostrato, vit. Apoll. 5. 20.

91. Estátuas animadas podem ter desempenhado um papel importante na magia hecática da Grécia clássica; ver as curiosas notas em Suidas, s.vv.

Oeayevriç e Eicaxeiov, e cf. Diodoro 4. 51, em que Medéia constrói uma

estátua oca de Artêmis (Hécate) contendo (|)Oop|.taKa, de um modo bastan

te próximo ao dos egípcios.

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312 O s GREGOS E O IRRACIONAL

ses pagãos e aceitos como tais por exorcistas cristãos, cf. Min. Felix. Oct.

27. 6 sg.; Sulpicius Severus,  Dial. 2. 6. (PL 20, 215C), etc.

105. Proclus, in Remp. II. 123. 8 sg. A ju lgar pelo con texto, o objetivo deste

te/V ett| era, provavelmente, corno aquele da experiência imaginária com

o v|A)xou?ikoç pa(35oç que Proclus citou em 122. 22 sg. a partir de

Clearcus, para possibilitar uma “excursão psíquica” mais do que posses

são; mas a experiência deve de qualquer modo a indução de algum tipo

de transe.

106. Frederic Myers, “Greek Oracles” in Abott’s  H ellenic a , 478 sg.

107. Linhas 216 sg. Wolff (= Eusébio,  Praep. Ev. 5. 9). G. Hock, Griech. 

Weihegebrãuche, 68, toma as instruções como referências à extração da

 presença divina de urna estátua. Mas frases como PpoTOç 0eov o u k e t i

/copEi, fSpoxov oukiÇegOe, a v a u r o E Se (jx»Ta, X w o v te So%ria, a p a r e

<f)C0Ta  yct )0£ v   avaGTTioavTEÇ E T a i p o i ,  podem se re ferir apenas ao mé

dium humano (“controles” em sessões modernas falam regularmente do

médium na terceira pessoa.

108. Isto é afirmado em vários dos oráculos de Porfírio, v.g., 1. 190,

0ao8a|ioiç Ekxxttiv )-i£ 0et|v EKaA.EC>oaç avayraiç, e por Pitágoras de

Rodes, que Porfírio cita neste caso (Praep. Ev. 5. 8). A compulsão é ne

gada em de myst. (3. 18, 145. 4 sg.), que também nega que os “caldeus”

usem ameaças aos deuses, enquanto admitem que os egípcios o fazem (6.5. 7). Sobre o assunto como um todo, cf. Olsson em APAFMA  Nilsson, 374 sg.

109. Em CMAG V I.151 10 sg. ele menciona purificações através de enxofre e

água marinha, ambos vindos da tradição clássica grega: sobre o enxofre,

cf. Homero, Odisséia , 22.481, Teócr. 24.96 e Eitrem, Opferritus, 247 sg.;

sobre água marinha, Dittenberger, Syll. 1218.15; Eurípides, l.T. 1193;

Teofrasto, Caráteres, 16.12. O que é novo é o propósito - preparar o “ani

ma spiritalis” para a recepção de um ser superior (Porfírio, de regressu frag. 2). Cf. Hopfner, P.-W. s.v. “Mageia”, 359 sg.

110. Cf. /VuoaTE |iOt <3T£(|)avoi>ç no oráculo porfiriano (Praep. Ev. 5.9) e o

 jo vem Edésio a quem “bastava pôr um a guirlanda e olhar para o sol, e

ele imediatamente produzia oráculos fiéis no melhor estilo de inspiração”(Eun. vit. soph. 504).

111. Porfírio, loc. cit.

112. Proclus in CMAG VI. 151. 6: a7io%pr| yap jipoç jiev amo<|)avEiav to

KVECÚpOV.

113. Proclus, in Remp. II. 117.3; cf. 186.12. Pselus co rretam ente chama isto de

 prá tica egípcia (Ep. 187, p. 474 Sathas): cf.  PGM  V e os papiros mági

cos demóticos de Londres e Leiden, verso col. 22.2.

114. lâmblico, de mysteriis 157. 14. Olimpiodoro, in Alc. p. 8 Cr., diz que as

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3 1 4 OS GREGOS E O IRRACIONAL

Posidônio (cf. Greek Poetry and Life, 372 sg.). Hipólito sabe como for

 jar este fenômeno ( Ref. Haer. 4.28).

123. e 7 t a i p 0 | i £ V 0 V   opcaoa r | 5 i o y k o u ( í e v o v . Cf. o dito alongamento de uma

freira italiana do século XVI, Verônica Laparelli ( Joui: Soc. Psych. 

 Research 19. 51 sg.), e os médiuns modernos Home e Peters (Ibid., 10.

104 sg., 238 sg.).124. Isto é uma tradicional marca de magos e homens sagrados. E atribuído a

Simon Magus (ps.-Ciem.  Hom. 2.32); a místicos indianos (Filost. vil. 

 Apoll. 3.15); a vários santos cristãos e rabinos judeus; e ao médium Home.

Um mago, em um romance, lista isto em seu repertório (PGM  XXXIV.

8), e Luciano satiriza tais afirmações (Filops. 13;  Asin. 4). Os escravos

de Iâmblico gabavam-se do fato de seu mestre ter levitado (Eunap. vit. 

 sopli. 458).125. Ver as passagens de Pselus e Nicetas de Serrae coligidas por Bidez,

 Mélanges Cumont, 95 sg. Cf. também Eitrem, Symb. Oslo 8 (1929), 49

sg-126. de myst. 166, 15, em que t o u ç K a ? i0U|i£V 0t)Ç  parece ser passivo (sc.

Beouç), e não (conforme Parthey e Hoplner) e no meio (= touç

KÀ.T|Topaç); são os “deuses” e não operadores que melhoram o caráter 

dos médiuns (166.18 , cf. 176.3). Se assim é, “as pedras e ervas” serão

 symbola trazidos pelos “deuses” e deixados por eles, como os “aportes”do espiritismo. Cf. capítulo IV,  supra nota 19.

127. Proclus, in Remp. I. 111. 1; cf. in Crat. 34, 28; e Pselus,  PG. 122, 1136B.

128. Gregório de Nazianzus, oral 4. 55 (PG 35, 577C).

129. Hopfner, “Kindermedien”, 73 sg.

130. Cf. de myst., 3.1 4, sobre vários tipos de (| xotoç aycoYn.

131. Simplício, in phys. 613.15, citando Proclus que falava de uma luz  xa. 

auTOTrrira 0e a | ic aa ev   eototcú  to i ç   a^toiç £K<|>cavov ev   toutcü  yap

r a cm mcoxa xwto-ucOoa. (|>r|0 i tcaxa to   /Voyiov. Simplício, entretanto,

nega que os Oráculos descrevessem as aparições como vindo £V  xco <J)COTi

(616. 18)132. Eitrem, Greek Magical Papyri in the. British Museum, 14. Reitzenstein,

 Hell. Myst.Rei., 31, traduziu-o “damit sie sich forme nach.”

133. de myst., 133. 12; t o t e ^ e v   o k o t o ç   cruvEpyov À,ap(3avo\)aiv ot

OcüTaycoycuvxeç, cf. Eus,  Praep. Ev. 4. 1. Os prestidigitadores fingem, para

sua conveniência, que a escuridão é necessária. Hip.,  Ref. Haer. 4. 28.

134. de myst., 133. 13; x ote Se ri^ io ti (|)COç q aeX nvriç il oAxdç t t |v tm caepiov

ocuynv a\)XXa|iPavo|iEva Exotiot 7tpoç tt]v £Wia|J\|nv. Cf. Edésio,  su- pra , nota 110; Pselus,  Expos. orac. Chald. 1133B; e Eitrem, Symb. Oslo.

22. 56 sg.

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ÍND ICE REMISSIVO

(Números entre parênteses, referem-se ao número das notas)

A

Abáris: 148, 149

acidente, não reconhecido no pensamento  

dos primórdios: 14 

adivinhação, em llíada sempre indutiva: 77 Platão na: 218. 223 

por xamãs: 144 sg., 147 

rejeição por Xenófanes: 183 

teúrgica: 294

ver também sonhos, profecia 

adivinho, veja profeta 

Adônis: 195

Aetius,  Placita 5.2.3: 128 (28)

ayoç: 44aycoyr|: 305 (20)

aidos: 26

aisa: 16

aiaxpov. aplicada à conduta: 34 (109)

Al Ghazali: 209

alastor: 38, 46, 188

Alexandre Polistor: 116, 131 (53)

Alfoldi: 145

alma, em forma de pássaro: 145. 164 (38)  

irracional, em Platão: 124,215, 229 (30) 

rejeitada pelos estóicos: 240  

pluralidade de almas: 156, 175 (111) 

captura: 150 

sombra: 126(10)  

inconsistentes visões da: 181 sg. 

ver também vida após a morte, corpo, 

 psyche, renascimento 

alongamento: 302, 314 (123) 

alquímico, alquimia: 298, 311 (101)Alto Sacerdote, em  Leis, de Platão: 234  

(71)

alucinação, ver visões a(.nixavia: 36 

Amonius Saccas: 288 

amuletos: 254, 268 (103), 297

Anacreonte, psyche em: 142 

Anaxágoras, e Hermótimo: 146 

Anfiaraos, santuário de: 115 

anjos: 297, 301

ansiedade: 51, 84, 85, 102 (98), 253  

Antifon o iepax0(TK07C0ç, identificado 

com o sofista Antifon: 135, 136(100)  

av nO soç 301, 313 (119) 

aparições luminosas: 302 

ver também epifânias 

A poio , aÀsÇiKaKoç: 81 

origem asiática: 76 

Hiperbóreo: 144, 148, 164 (36) 

Nômios: 83

em Platão,  Leis: 222, 224, 236 (85) patrono da loucura profética: 7578  

ver também Delfos, Pitia 

Apolônio, como mágico: 287  

“aporte”, em sonhos: 111, 127 (19)  

Apuleio, como mágico: 287, 297, 300  

“Apulunas”: 76, 92 (32)

Ares: 18, 83

aretê, Protágoras e Sócrates: 185 sg.

dependente de um saber: 199 (29)  

Arimáspios: 145 

Aristarco, o astrônomo: 247  

Aristeas: 145, 164 (37)

Aelius Aristides: 114 sg., 118120, 129

(32), 133 (79), 253 

Aristides Quintiliano: 84  

Aristófanes: 131 (56) 

e “Orfismo”: 150 

e Sócrates: 190 

Vespas:  8 , 91 (21)Vespas: 122, 101 (91)

Aristóteles, na catarse: 55, 85 

nos sonhos: 124, 137 (116) 

opiniões prematuras de: 124, 139 

na paixão: 187 

na psyche: 139

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3 1 6 O S GREGOS E O IRRACIONAL

insight psicológico: 239 sg. 

na tragédia: 68 ( 1 1 0 ) 

de anima 41 01’: 19, 172 (94 )

 Div. p. somn. 46 31’: 14, 137 (112)

 Met. 98 41’: 19, 146, 166 (50) Rhet. 1418“: 24, 147 

Arqufloco: 38

Artemidoro: 112, 127128 (24), 136 

137 (107)

Asclepiades: 86

Asclépios: 85, 114123

culto de, “uma religião de emergê ncias” : 

204 (83)

cães sagrados de: 118, 132 (65)  

epifânia de: 204 (86 ) 

deus maior: 194

Serpente Sagrada de: 118, 13 3(64 ), 195 

askesis: 153, 157 

Assiria, sonho em: 113 

oráculos: 92 (31)  

astrologia: 246 sg., 251, 261 sg., 267 (91)  

astronomia, uma possível ofensa a Atenas: 

191

desaprovação de: 202 (64)Platão na: 236 (88) 

ate 28: 25 sg., 4448  

Atena: 23, 42, 61 (38), 116, 130 (50), 244  

Átis: 195

Auden, W.H.: 239, 269 (107) 

“Aufldarung": ver Iluminismo 

Autocastração: 133 (79)

B

Baco, veja Dioniso 

Báquis; 78, 93 (45)

Pcocxedeiv: 280 ( 1 )

Beauchamp, Sally: 74  

bellytalkers: 78 sg.

Bendis: 195, 205 (89)

Berossus: 246  

Bidez: 285

Bion de Borístenes: 41, 60 (33)

bode expiatório: 50Bolus de Mendes: 247, 263 (69), 296

Bonner, Campbell: 120

Bowra, Sir Maurice: 10

Brânquida, oráculo de: 76, 79, 98 (70)

Burckhardt, Jacob: 194, 214

Burnet, John: 142 sg.

C

cabeça, movimento de: 275 sg.

mânticas: 150, 170 (78) 

cães no culto de Asclépio: 118, 132 (65)  

Calhoun, G.M.: 54 sg.

Calcídio, sobre sonhos: 112, 121, 128 (26)  

Xapcacrripeç: 295, 300  

Cassandra: 76 sg., 93 (45)  

castração, tema: 67 (103) 

catarse (catharsis), na era arcaica: 4345, 

50 sg., 54 

Aristoteliana: 55  Coribantes: 8386, 232 (59)

Cretenses: 165 (41) 

de um eu oculto: 156 sg.

Dionisíaco: 8285, 100 (87)

Heráclitos: 183, 197 (13)

Homérica: 42 sg„ 61 (39)

Órfico: 157

em outras culturas: 68 (109)

Pitagórica: 85, 157, 248  

Platônico: 212, 214, 223, 224  Posidônio em: 240 sg. 

teúrgica: 298 sg., 312 (109)  

xamanística: 176 (116 e 118) 

catarse pitagórica: 157 

comunidade: 147 

silêncio: 157, 177 (122)

“recordação”: 155 

vegetarianismo: 157, 173 (95) 

caverna de Charon: 115 

caverna sagrada: 115, 145, 168 (60)  

céticos: 241

China, moral divina na: 58 ( 8)

colapso de tradição religiosa: 204 (81) 

Cibele: 83, 100(90), 195 

Cícero, sobre astrologia: 247 

sobre sonhos: 125 

ciência grega, realização de: 237 sg. 

superespecialização na: 250  

falta de experimento na: 251, 251, 267  (94)

desprezo dos filósofos helenísticos por: 

265 (77)

Cinésias: 190 sg„ 202 (61)  

ciúme divino, veja phthonos

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Í n d i c e   r e m i s s i v o 3 1 7

clarividência, em sonhos: 1 1 2 , 122 sg. 

clarividência médica: 123 

Claros, oráculo de: 76, 79, 94 (53), 95 (60), 

97 (70)

Cleantes: 238, 241 

Clearco: 146 

clubes, Helenístico: 244  

cobras, no ritual Asclépio: 118, 132 (64) 

no culto dionisíaco: 276279, 282 sg. 

conflito, moral: 215, 228 (24), 257 (16) 

consciência: 44, 49, 62 (46)

Cook, A. B.: 76  

Coribantes: 8386

relação com o culto a Cibele: 100 (90) corpo e alma: 141147, 152, 162 (27) 

em Platão: 214215 

amnacrr||ia: 151, 155, 171 (87) 

cosmopolitanismo, Helenístico: 238 

cosmos: 223, 235 (78), 242, 248 sg. 

cremação, suposto significad o de: 160 (8) 

Crisânteos: 291 

Crisipo: 238, 240 sg.

Cristianismo: 249 oposição ao: 260 (47)

Cronos: 53, 67 (103)

culpa, herança: 38 sg., 41, 50 (25), 153,

223

culto ao sol, em  Leis, de Platão: 222, 223,

224

no s Oráculos Caldeus: 287, 305 (18) 

cultura de culpa: 35, 34 (106), 50  

na inveja divina: 68 (108) 

ênfase sobre a justiça na: 6 0 (34)  

necessidade de autoridade sobrenatural: 

81

e puritanismo: 155 

culturas de culpa: 26, 34 (106) 

culturas de vergonha: 25 sg., 35, 50  

Cumont, F.: 294

cura, religiosa: 75, 8386, 102 (100, 102), 

117121, 144, 147150, 194, 274

D

daemonion, veja Sócrates 

 Daemonios:   21 sg.

 Daemons, na Idade Arcaica: 4650, 52 

sonhos: 64 (70)

em Empédocles: 156, 175 (II 1 )

maldade: 20, 31 (77), 37, 4649  

evolução do termo: 31 (65)  

da família: 4849  

medo de: 46, 253, 268 (103)  

em Homero: 1922 

confinado a imagens: 296 sg. 

do individual: 48 sg., 65 (84), 184 

e os insanos: 75, 102 (98)  

e moira: 31 (65), 49, 64 (79) 

em Platão: 49, 214 sg., 219 

e ruxr|: 65 (80)

Damascius: 287 

dança do fantasma: 281 ( 1 1 ) 

dança religiosa: 76, 8286, 100 (87), 271  sg., 274 sg.;

moderna sobrevivência da: 280 (9) 

Dawkins, R. M.: 276  

Se.KaxEvsiv: 62 (50) 

defixio: 195, 205, 207  

Delfos, oráculo de: 51, 3642, 223 sg.  

crença em: 80 sg., 98 (71)  

suposto hiante e vapores: 80 sg., 95 (59), 

96 (66 )originalmente oráculoterra: 96 (66 ), 115 

razões para declínio de: 81 

resposta em verso: 97 (70) 

ver também Apoio, Pitia 

De métrio de Falero: 141 

Demétrio Poliorcetes: 242, 259 (32) 

Demócrito, nos sonhos: 122, 124, 135 (95) 

na poesia: 88

Demodocus: 86

destino, ver moira deuses, astral: 221 sg., 233 (67) 241  

causa ate: 13 

compulsão de: 312 (108) 

disfarçado: 33 (93)

Epicurista: 241

como fome e peste: 48, 89 (14) 

de amor e medo: 42, 61 (38)  

comunicação de menos: 1618 

enviar advertências: 19 sg. mitológico, em Platão: 221, 233 (6 6 ) 

intervenção psíquica: 22, 32 (90)  

representação de, na arte: 69 (112) 

inspira canções: 19

seduzindo homens: 4448, 63 (65), 69  

( 112 )

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3 1 8 O s GREGOS E O IRRACIONAL

Xenófanes sobre: 183 

ver também epifânias,  phthonos  Diágoras, ação judicial de: 191 

Dicaerco: 137 (117 )

Diels, H.: 145, 146, 147 

Dieterich, A.: 277  

Dio Cássio: 125 

Diodoro 4.3: 271 sg., 279 

Diógenes, o cínico: 117 

D iógen es Laércio 1.114: 16 7(5 1)

Dioniso: 82 sg., 88 , 271282  

veículos animais: 279 sg. 

não aristocrático: 99 (80) 

como deus de cura: 99 (78) 

como deus de profecia: 91 (30)

A v g i o ç : 2 7 4 , 28 1 ( 1 9)  

e “orfismo”: 173 (95). 178 (129)  

e Titãs: 158 sg., 177180, 279  

equação com Hades: 197 (14)

Diopeites: 192

data de seu decreto: 202 (62) 

e monismo 110 pensamento grego tardio: 

264 (72)Dodona, oráculo de: 78, 130 (47) 

dualismo, platônico e mazdeano: 230 (33)  

despertado 110 séc. 1 d.C.: 248 

“Dumb” espíritos: 95 (57)

Dunne, J.W.: 112

E

Eacus: 147, 167 (57)

“ectoplasma”: 302 Edelstein, L.: 7. 117, 120 

educação, e declínio intelectual: 250, 266  

(88 )

Egito, animação de imagem 110: 296, 297,  

310 (84)

sonhos no: 113 sg. 

egoconsciência: 24, 47, 48,

Ehnmark, E.: 20

Eitrem, S.: 285, 288, 292 sg„ 303 

Eleusis: 141, 174 (102), 258 (29), 306

(33)

Platão, atitude para: 235 (82)

Eliol, T. S.: 49, 216  

Empédocles: 148 sg.

11a loucura: 72

e “orfismo": 148, 150, 171 (81)

 psyche e dãenmn em: 156, 175 (111) 

deslocamento corporal de: 169 (65) 

frag. 15,23: 149 

frag. 1 1 1 : 148 sg. 

frag. 129: 147, 167 (55)  

ev9eoç, significado de: 92 (41) 

svOvpiov: 62 (46) 

enlouquecer do poeta: 88

da Pítia: 92 (41)

Epicuristas: 241 

Epicuro: 239, 242, 246  

com um deus: 259 (36)  

representante do espírito científico: 265  

(77)Epidauro, registro do Templo de: 116 

epifânias: 32 (91). 130 (50), 134 (83, 84), 

204 (86), 279  

Epigenes: 152, 173 (96) 

epilepsia, confundida com possessão: 73, 

89 (10)

antiga opinião médica sobre: 90 (20) 

tratamento por música: 103 (109), 

porque chamada “sacra”: 89 ( 11) Epimênides: 115, 144150, 177 (121),

235 (81) 

epitáfio: 242, 258 (29) 

eirwSai: 176 (119), 214, 228 (20)

Era arcaica, definição: 57 ( I) 

atitudes religiosas: 3542  

con dição social: 51 sg., 82 sg.

Era helenística: 237243  

Erínias: 1416, 26, 45 sg., 48 

não a mortos vingativos: 29 (37)

Eros: 48, 219, 232 (57)  

escravidão, e declínio intelectual: 252  

espiritismo moderno: 81, 207, 251 

e teurgia: 299303  

ver também médiuns 

espírito, consubstanciai co m cadáver: 140 

142, 174 (102) 

espirro: 32 (87)

Ésquines: 48 , 64 (71)Esquilo, Erínias em: 16 

maus espíritos em: 47  

culpa herdada: 41 

 phthonos em: 37 

punição postmortem: 141 

Coéforas 534: 127(24)

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Í n d ic h   r e m i s s i v o 3 1 9

Coéforas 953: 96 (66)

 Eumênide.s 104: 160 (3)

 P. V. 794: 164 (37), 198 (20)  

frag. 156: 63 (65) 

estátuas, ver  imagens Estóicos, aceitação da astrologia: 246,

262 (57)

visão de sonhos: 125 

visão de inspiração: 98 (71)  

intelectualismo: 240 sg. 

religião: 241 sg. 

doutrina de “simpatia”: 247  

OTOi^eta: 298  

eu oculto: 143 sg., 150, 158, 159 (1), 248  

chamada “daemon” por Empédocles: 

156, 175 (111)

identificado por Platão com racional 

 psyche : 2 1 2

Eudoxo:246  

Euricles: 78 

Eurípedes: 188190  

e Anaxágoras: 184 

em ritos dionisíacos: 271280  

Erínias em: 4849  e Heráclito: 184, 198 (2 1 ) 

sobre phthonos: 37  

e “orfismo”: 150 sg. 

e os sofistas: 184 

e Xenófanes: 184, 198 (21)

 Med. 107880: 188, 200 (46)

Hipp. 375 sg.: 188 sg., 201 (49)  

ação jud icia l de (?): 191 

 Hyps. frag. 31 Hunt: 171 (82)

Tro. 1171 sg.: 162 (22) frag. 472: 171 (82)

Eusébio de Mindus: 290  

excursão psíquica, sonho como: 109, 139, 

174 (97)

em transe: 145148, 287  

exorcismo: 103 (103) 

êxtase, significado de: 83, 99 (84) 

ver também, possessão

F

fadado: 32 (88) 

família patriarcal: 52 sg.

solidariedade de: 41 sg., 53, 83. 114, 153  

tensões na: 5355

Fedra: 188 sg., 200 (44, 47)

Fêmios: 18, 104(115)

Fenícios, profecia entre: 76

Ferécides, duas almas em: 156

Festugière, A.J.: 151 sg., 241, 250, 251Filípides: 121

flauta: 84, 101 (95), 274

Flaviano: 298

Fóclides: 49

fogo, insensibilidade ao: 275, 301, 313

(118)

espontâneo: 311 (95) 

fonte sagrada: 79, 96 (64)

Forster, R.M.: 7 1

Frankfort, H. e H.A.: 48  

Freud, S.: 49, 55, 65 (84), 111, 119, 120,  

124 sg., 154 sg., 215, 220  

Fry, Roger: 9

G

Galeno, acredita nos sonhos: 125, 136  

(104)

galos, apotropaica virtude de: 294, (308  

(63)Gebir: 298 

Glotz, G.: 41, 47 

Gruppe, O.: 279

Guerra, efeitos sociais da: 192 sg., 2 5 1

Guthrie, W.K.C.: 7

H

Hades, no ar: 116

Dioniso, equação com: 197 (14)  

confusão, em: 174 (102) como estado mental: 223, 234 (77) 

este mundo como: 176 (114), 226 (5) 

ver também vida após a morte 

Hécate, culto a Aegina: 101 (91)  

aparição de: 302  

e distúrbio mental: 8386  

imagens mágicas de: 297, 311 (91) 

santuário de: 202 (61)

Hecateus de Miletos: 182, 197 (5)

Heinimann, F.: 184

Helios, ver culto ao sol

Hell, ver vida após a morte, Hades

Heráclides Ponticus: 147

Heráclito: 16, 49, 98 (71), 99 (80)

Page 318: Os Gregos E O Irracional

7/22/2019 Os Gregos E O Irracional

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3 2 0 O s GREGOS E O IRRACIONAL

sobre sonhos: 122, 135 (91) 

influência de: 184 

racionalismo de: 183 sg., 197 sg.  

na alma: 153, 155, 175 (109)  

frag. 14, 15: 197 (14)  frag. 92: 91 (27)

Heraisco: 297

Hermeus, mutilação de: 193, 204 (78) 

Hermócles: 242, 258 (32)

Hermótimo: 145, 146 sg.

“heróis”: 83

Herodes 4.90 sg.: 132 (66)

Heródoto, sobre sonhos: 122 

fatalidade: 49, 63 (55)  

culpa herdada em: 41 

 phthonos em: 37 sg.

2.81: 171 (80), 173 (96)

4.36: 164 (33)

4.95: 148, 168 (60)

5.92: 116 

6.105: 121, 122 

6.135: 47

causas da loucura em: 72  

Herófilos, sobre sonhos: 112, 128 (28) heróis: 259 (34), 244  

Herzog, R.: 117 

Hesíodo: 40, 45, 49, 52,

Theag. 22 sg.: 87, 121, 134 ( 86)

Theog. 188 sg.: 67 (103) 

hidromancia: 264 (70)

Hipócrates, de morbo sacro: 74 sg., 83 sg. 

On Regimen: 123, 136 

 Int. 48: 122, 135 (90)

 Progn. 1: 90 (20)Hipótese heliocêntrica: 247, 262 (58)  

história, elementos irracionais na: 269

(108)

hititas: 53, 67 (103), 76, 92 (32), 113 

Hopfner, T.: 285, 292 sg„ 303  

Homero: 1034

catarse em: 43 sg., 61 (39)

Dioniso em: 99 (80)  

 just iça divin a em: 39  

maquinação divina: 17:20, 22, 110 

sonhos em: 109112 

egoconsciência: 24, 33 (98)  

livre arbírtrio em: 15, 28 (3 1) 

atitude a deuses: 36, 42

Hades em: 141 sg.

interpolação órficaem: 141

elementos tardios em: 13, 14, 59 (16),

67 (102), 104 (115)

loucura em: 74apelo às Musas: 86 sg.

silêncio de: 50 sg., 77, 115

virtude em: 52

 Ilíada 1.63: 127 (22)

I.198: 22

2.484 sg.: 86 sg„ 104 (116)

3.278 sg.: 161 (10)

9.512: 14 

10.391: 27 (20)

II .403410: 33 (98)

13.61 sg.: 17 

15.461 sg.: 20  

19.86 sg.: 1114 

19.259 sg.: 161 (10)

22.199 sg.: 127 (20)

24.480: 27 (17)

Odisséia 1.32 sg.: 39, 59 (21)

8.487 sg.: 104 (116)

9.410 sg.: 74  18.327: 74  

20.351 sg.: 92 (38)

20.377: 74  

22.347 sg.: 18, 19 

 Hosioi a Delfos: 79 sg.

Hrozny, B,: 76

hubris: 38, 45 sg., 54, 59 (13)

Hugo, Victor: 107 

Huxley, Aldous: 272  

Huxley, T.H.: 237

I

lâmblico: 290 sg„ 297, 300302, 306 (40) 

de myst. 166.15: 314 (126) 

vit. Pyth. 240: 179 (135) 

lâmblico anônimo: 199 

 IG II2, 4962: 132 (65)

IV2, 1.121124: 116117  

igrejas sagradas: 277Iluminismo, mais antigo do que movimen-

to sofistico: 182184  

reação contra: 190194  

efeitos de: 193196, 104 (81)  

e Platão: 210

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Í n d ic e   r e m i s s i v o 321

E^ eora ypap ,| xaxa: 205 (95 )

“imagens arquetípicas”: 126 (4) 

imagens, Crisipo na cultura de: 241 

Heráclito, sobre culto de: 184 

animação mágica de: 294299, 311 

(91)

miraculoso: 310 (87)

usada para ataque mágico: 196, 206

(96)

imortalidade, veja vida após a morte 

impureza, ver miasma incesto: 67 (105), 189, 201 (57) 

incubação: 114121, 204 (83)  

ver também sonhos 

Índia conspurcaçâo e purificação na: 68

(109), 159

renascimento na: 158159, 162 (29), 

174 (97)

“lembrança” em: 175 (107) 

individualidade, emancipação da: 41, 42, 

146, 153, 193, 238, 242 sg. 

influência órfica sobre Asclépios: 123 

catarse: 157reforma em Eleusis, pretensa: 141 

interpelação em Homero, pretensa: 141 

poemas: 147, 151 sg., 157 

teoria de sonhos: 1 22 sg.

Titã mito: 158 sg. 

influência oriental no pensamento grego: 

67 (103), 136 (107), 143, 250, 257  

(2 0 ), 266 (86) 

insanidade, veja loucura inspiração de menestréis em Homero: 18, 

30 (63), 86 sg. 

de poetas: 87 sg. 

de Pítia: 7781, 92 (41) 

intelectuais e povo, divisão entre: 182, 

187, 193, 194 sg., 222, 245 sg. 

ação judicial: 224 sg. 

intelectualismo grego: 24 sg., 34 (105),

186, 240 sg. intervenção psíquica em Homero: 1026 

fon de Quios: 152

Irracional, consciência grega do: 9, 254, 

255

retorno do: 245254  

Isócrates 4.29: 61 (37)

J

Jaeger, W.: 149 

James William: 9 

 jejum: 115, 144 John XXII, Papa: 298  

 jo vens, com o médiuns: 263 (7 0), 300, 313 

(15)

Juliano, o Imperador: 291, 302  

 Epist. 12: 307 (47)

Juliano, o teúrgico: 286288, 291, 295299, 

304 (15)

Juliano, o “filósofo caldeu”: 286 sg.

Jung, C.G.: 126 (4), 129 (37)   ju st iça divina: 3842, 51 , 153 sg ., 192  

e cultura de culpa: 60 (34)  

descendência das mênades: 277, 282  

(38)

KaKoSai | iov iaxai : 190

raXov aplicado à vergonha: 34 (109)

Kardiner, A.: 44

Koestler, A.: 217

koros: 38, 58 (8 )

Kraus, P.: 298

Kroll, W.: 285 sg„ 289

KuavEai, oráculo de: 92 (40)

 Kumarbi, épico de: 67 (103)

L

Labeo, Cornelius: 304 (15)

Latte, K. 76, 121 

LévyB ruhl, L.: 6, 46  

levitação: 302, 314 (124) 

liberdade: 247, 252

perda da política, efeitos: 251 

de pensamento, l imitações sobre, aos  

atenienses: 202 (63), 203 (68), em  Leis, de Platão: 224 sg. 

libido: 215, 220  

licnomancia: 303 Licurgo, o orador: 46  

líderes do culto: 243, 258 (32), 259  

Liddell e Scott’s Lexico, erros em: 13, 14, 

27 (17), 61 (37), 94 (49), 162 (19)  

Linforth, 1. M.: 7, 82, 84 sg., 151 sg. 

linguagem “divina”: 91 (24)

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3 2 2 Os GREGOS E O IRRACIONAL

livre abítrio em Homero: 15, 28 (31)  

livro dos sonhos: 114, 123, 125, 135 (100),

136 (107) 

livro dos sonhos indiano: 136 (107) 

livros, queima de: 191 

longos sonos: 146, 166 (46), 212  

loucura, atitude grega para: 7277, 90 (23) 

origem demoníaca da: 13, 46, 73 sg.  

em Homero: 74  

linguagem especial na: 91 (24) 

poética: 8688

profética: 7584  

ritual: 8186, 271282  

poder sobrenatural na: 74 Lourdes: 117, 119, 131 (60) 

loureiro: 79

“luzes” na sessão espírita: 303  

M

Macróbio, sobre sonhos: 112, 114, 127 (24)  

magia, função biológica da: 51 

pássaros na: 293  

na literatura do séc. V: 206 (99)  retorno ao séc. IV: 195 sg„ 207  

ritual: 224

neopitagóricos: 263 (70) 

transmissão familiar de: 307 (49) 

de Juliano: 287  

e misticismo: 306 (35) 

em Plotino: 288 sg. 

pureza requerida na: 293. 308 (57)  

ver também defixio, teurgia 

Malinowski, B.: 51, 66 (92)

Malraux, A.: 254  

mana, real: 259 (36)

HavmKT|: veja adivinhação, profecia  

manipulação de cobras cm Kentucky: 277  

no Abruzzi: 283 (43)

Marco Aurélio: 125, 216, 249  

Marinus: 286

marionete, homem como: 216  

marxismo: 55, 252  

máscara: 99 (82)

Matthevv Arnold: 244  

(javxiç, derivação de: 76  

ver também profeta 

Máximo, o teúrgico: 291, 297 

Mazon, P.: 10

Medéia: 187, 200 (44, 46), 257 (16) 

medicina, profana e religiosa: 120, 133 

(74 e 77) 

médiuns, espíritos: 77, 79

pode quebrar durante o transe: 95 (59)  

respiro estripitoso: 78, 94 (52) 

ver também jovens, possessão, 

espiritismo, transe 

Melampo: 83, 99 (85)

Melville, Herman: 139 

menestréis: 18, 31 (63), 86 sg. 

mem ória racial, suposta: 126 (4) 

mênades: 271282  

Menécrates: 73menos, comunicação de: 1618 

de reis: 30 (47)

Mesopotâm ia, incubação era: 130 (48) 

ver lambéni Assíria 

Meuli, K.: 144

miasma: 4244, 55, 62 (47), 224, 236 ( 86) 

infecção de: 43, 61 (43), 193, 206 (98) 

de sangue derramado: 157 

microcosmo, homem como: 123 Mileto VI.22: 278 

Miltíades: 47

minóicos, incubação: 115, 130 (48) 

mistérios, Heráclito sobre: 183 

ver também Eleusis 

mito de Titã: 158 sg., 177180  

mito e sonho: 109, 131 (58)  

inoira: 1618, 28 (30), 41, 45. 49  

e daemon: 31 (65), 49, 64 (79)

 Moirai: 15, 28 (29 sg.) 

morte, sonhos sobre a: 123. 130 (52)  

oráculos: 116

possessão pela: 89 (14), 302  

tendência de: 140 sg., 160 (8 sg.) 

ver também vida após a morte, 

renascimento 

M ovim ento sofistico: 182, 183, 184188,  

189191 

Murray, G.: 10, 52, 181, 193 Musas: 86 88 , 103 (111), 121 

música, com significado de cura: 8487, 

103 (108), 273  

orgiástica: 274

pitagórica: 85, 157, 176 (119) 

de xamãs: 150, 176 (119)

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I n d ic e   r e m i s s i v o 3 2 3

Myers, Frederic: 299 

N

natural teologia, rejeição de: 248 , 264 ( 7 1) 

necromancia: 263 (70), 287 sg. 

nemesis: 34 (109), 40  

neopitagorismo: 248 sg„ 263, 304 (15) 

neoplatonismo e teurgia: 287293  

 Nequépso, revelações de: 246  

Nero: 297

Nestório, o teurgista: 298  

Nicéforo Grégoras: 291, 301 

Nietzsche, F.: 75

Nilsson, M.P.: 6 , 21, 22, 23, 76, 153, 192,  243, 250, 251, 285  

Noek, A.D.: 7, 250, 253, 271, 285  

 Nomos e  Physis:  184 sg., 189 sg. 

nous.  separabilidade: 146

O

ocultismo: 248

distinguido da magia: 264 (76)  

Olimpiodoro, em  Phaed. 87.1 sg.: 179 (135)  

Omophagia: 158, 278280(0(tO(|>aYtov £|i|3aA.£iv: 278, 283 (49)  

oneiros, significado em Homero: 109 

ver também sonhos 

Onomácrito: 147, 158 

Oráculos assírios: 91 (31)

caldeu: 285287, 290 sg„ 295 sg. 

sonho: 115 sg., 130 (49)  

de imagens mágicas: 295299  

da musa: 87 

deOrfeu: 150

tempo romano tardio: 98 (75)

Porfírio: 289, 297,302  

opetPauta: 272  

ops t f iama: 82 

ov£ip07toA.oç: 127 (22)

Orfeu: 150 sg.

“Orfismo”, pretensa origem asiática: 162 

(29)

improvável asserção sobre: 150 sg. 

como miragem histórica: 172 (88) 

e Empédocles: 149, 151, 171 (81)  

e Heráclito: 197 (14)  

e Platão: 151, 235 (82)  

e Pitágoras: 147, 152

e Pitagorismo: 152, 173 (95 sg.)

P

pai, imagem de, em sonhos: 114 

como rei: 259 (36) 

ofensas contra: 53 sg. 

como Zeus: 54 sg. 

pais, ofensas contra: 39, 52 sg,, 66 (101) 

paixão, visão grega da: 187 sg. 

em Platão: 215

nos estóicos: 240, 256 (II), 257 (16)  

Pan, causa de distúrbio mental: 83, 100 (89)  

visão de: 121

Panécio: 247, 257 (14) papiros mágicos: 115, 285, 293, 296 sg.,  

303

 PGM vii.505 sg.: 304 (56)

PGM vii.540 sg.: 303 

Parke, H.W.: 80 

“participação”: 46  

pássaros, na magia: 293  

7iaTpaÀ,otaç: 67 (104)

Patara, oráculo de: 76 sg. 

 patriu potestas: 52  Pausânias 8.37.5: 158 

Pearce, Nathaniel: 276  

pecado original: 159 

pecado, sendo de: 43 sg.

Penteu, mito de: 280  

Peregrinus: 253, 267 (100)

Periandro: 116

personalidade, secundária: 73  

Pfeiffer, R.: 271 

Pfister, F.: 44, 51, 

 phthonos, divino: 3739, 48, 5 1. 

origem da crença em: 68 (108) 

paralelo de outras culturas: 58 ( 8 ) 

 Physis, veju Nomos 

Píndaro: 40, 49, 109

vida após a morte: 139, 141 sg.  

e a Musa: 87 sg. 

visão experimentada por: 12 1

frag. 127: 158 sg.Piper Mrs.: 94 (52), 96 (61)

Pitágoras: 115, 147150, 157, 168 sg„ 170 

(75), 248

e “orfismo”: 147, 152, 173 (96)  

como mágico: 169 (64), 263 (70)

Page 322: Os Gregos E O Irracional

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324 Os GREGOS E O IRRACIONAL

Pitagorismo, Alexandre Polistor: 131 (53)  

e astral religioso: 248, 263 (68 ) 

Empédocles e: 146 

e “orfismo” : 152, 173 (95 sg.) 

“científico” e “religioso”: 169 (68 ) 

e xamanismo: 168 (63) 

unidade de alma em: 229 (30)  

 status de mulheres no: 167 (59) 

ver também neopitagorismo  

Pítia, inspiração de: 7782, 92 (41)  

suborno de: 97 (68) 

ver também Delfos 

placas de ouro: 151 sg., 157 

Platão e astrologia: 246, 261 (52 sg.)  

nos ritos Coribânticos: 219 sg. 

daemon do individual em: 49, 215  

em Delfos: 224 sg.

Crátilo 400C: 171 (87) 

 postmortem, culto de: 227 (9) 

e jurisdição familiar: 52 

e “orfismo”: 151, 235 (82) 

e o Iluminismo: 210  

 Epinomis: 234 (70) sobre o mal: 214 sg.

“guardiães” em: 2 1 2 sg., 218  

 Leis 7 0 IC: 158, 178 (132 )

 Leis, 791 A: 102 (10 2), 23 2 (59)

 Leis 854B: 158, 178 (133)

 Leis 887D: 233 (70)

 Leis 896E: 228 (24)

 Leis 904D: 234 (77)

 Leis 90 9B : 223, 235  Mênon 81 BC: 158 sg.

 Phaedo 62B: 173 (95)

na herança de culpa: 41, 60 (32), 223

no hedonismo: 213

no amor: 220, 232

na  psyche: 1 3 9 , 2 1 1 , 2 1 4 2 1 7

e os pitagóricos: 211 sg., 226 (5), 227

(9), 229 (30)

nos ritos coribânticos: 85

na poesia: 88 , 219 sg., 231

na profecia: 78, 94 (46), 218 sg., 231

no renascimento: 154

na magia: 196, 206 (97)

na reforma religiosa: 220225

no sacrifício: 223

e xamanismo: 2 1 1 sg.

influência na religião helenística: 241 

Mazdean influência em (?): 230 (33)233  

(70)

e Sócrates: 199 (33), 210 sg., 214, 217  

sg., 227 (19), 231 (48) 

nos sonhos: 113, 124 

 Eutidemo, 277D: 85, 103 (104)

Um, 536C: 85, 102 (102)

 Fedro, 244AB: 71, 93 (41)

 Fedro, 251B, 255CD: 232 (59)

Gorg. 493AC: 211, 226 (5)

 Protágoras 319A320C: 199 (33) 

 Protágoras 352B: 200 (47)

 Rep. 364B365A: 152, 172 (92) , 223, 

224, 235

Rep. 468E469B: 227 (9)

Sofista, 252C: 94 (49)

Simp. 215C: 102 (102) 

platonismo: 248, 249  

Plinio,  N.H. 11.147: 101 (94)

Plotino, racionalismo de: 247, 265 (78), 

288

evocação de seu demônio: 292295   Emi. 1.9: 305 (26)

 Enn. 5.5.11: 306 (33)

Plutarco: 41, 125, 253  

sobre Delfos: 7981  

def orac. 438BC: 79 sg„ 95 (56)  

poetas, inspiração de: 86 88 , 105, 219 sg.

e vidente: 104 (118) 

poder, comunicação: 1618 

polarização da menta lidade grega: 195, 204  

(87)

Porfírio: 288 sg., 297 sg„ 301 

vit. Plot. 10: 292295  

de abst. 4.16: 293  

de phil. ex orac. 216 sg.: 312 (107) 

Poseidon: 83

Posidônio: 116, 240, 229 (30), 240, 248,

263 (65), 314 (122) 

possessão, origem da crença em: 73 sg. 

como paixão: 188 

Coribântico: 83, 84 

medo de: 252  

pela morte: 89 (14)

Dionisíaca: 82, 272 sg. 

pelas Musas: 86 , 88

profética: 7682

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Í n d ic e   r e m i s s i v o 3 2 5

sonambulismo ou lucidez: 78, 95 (54)  

xamanismo: 77, 93 (43), 144 

unHomeric: 18, 74  

ver também médiuns, transe 

Prince, Morton: 73Proclus, nos Oráculos Caldeus: 286, 291 

teurgia de: 290, 294 sg., 301 sg. 

Procópio de Gaza: 285  

profanação, veja miasma profecia, Dionisíaca: 91 (30)

mais antiga do que adivinhação: 91 (31)

extática, no oeste da Ásia: 76, 91 (31)

oracular: 7682

espontânea: 77

em forma de verso: 97 (70)

visão de Platão de: 219 sg.

 Profeta, em Claros: 97 (70) 

em Delfos: 78 sg„ 80 

profetas, ataques intelectuais: 192 

em Platão: 94 (46), 219, 223, 232 (56)  

e poetas: 87 sg., 104(118) 

zombarias: 184, 191, 192 

progresso, idéia de: 185 

propostas para estabilização: 220225  propriedades ocultas: 247 sg.

Protágoras: 185187

ação judicia l de: 191, 202 (6 3, 66) 

Pselus, Michael: 285287, 291, 295, 300  

Script. Min. 1.262.19, 446.26: 305 (18) 

 psyche, em Homero: 24 sg., 140143 

em poetas jonianos: 142 

nos escritores áticos do séc. V a.C.: 142 sg.  

poderes ocultos de: 122125, 136 (104), 

139retorno para o éter incandescen te: 176 

( 112)

em Empédocles: 157

em Platão: 214217

com o eu apetitivo: 142 sg., 162 (26)

às vezes como residindo no sangue: 162

(27)

como nome de cães: 162 (26)

como eu oculto de origem divina: 143

sg., 212 sg., 214

unitária e tripartida: 214 sg., 228 (24),  

229 (30)

ver também vida após a morte, renasci-

mento, alma

psiquiatra, antigos: 84 sg.

como filosofia: 265 (79)

Ptoan, oráculo: 95 (60)  

pureza, ritual e moral: 44, 62 (47), 244  

como ponto capital da salvação: 157  

purificação, ver  catarse 

puritanismo, Grécia: 143 sg., 152 sg., 157 

159, 176 sg., 214 sg. 

e cultura da culpa: 155

R

racionalismo grego: 9, 254

realizações de: 41, 120125, 182187,  

237239de Platão: 210 sg., 214, 218220  

de filosofia helenística: 239242  

declínio: 248254  

ver também Iluminismo 

“recordação”, Pitágoras dist. platônico: 

155, 175 (107), 212  

religião, apolínea dist. dionisíaco: 75 sg., 

82, 158

na era arcaica: 3556  

helenística: 24 1244  Homérico: 1026, 42, 50 sg. 

minóica, sobrevivência: 22 sg., 65 (91), 

96 (62), 146, 150 

e paradoxos morais: 69 (112)  

moralização: 3943  

e morais: 38

racionalismo crítico de: 182184  

regressão de, no séc. V tardio: 193196  

ver também daemons, deuses, “orfismo” 

religião egípcia, conhecimento de Plotino 

da: 288

renascim ento, na forma de animal: 157, 

217, 230 (43)

de Epimênides e Pitágoras: 147 sg. 

de origem não egípcia: 162 (29) 

ausência de epitáfios: 258 (29)  

crença na relação da Grécia e índia: 162 

(29), 174 (97)

ensino de poemas órficos: 152como privilégio de xamãs: 147. 154, 167

(58)

porque alguns gregos aceitaram: 153 

156

responsabilidade, medo da: 83, 102 (98),

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3 2 6 O s GREGOS E O IRRACIONAL

247, 253 . 255  

riqueza, Homero e arcaicas atitudes para:

52 , 66 (95)

ritos de enterro, sobre gastos: 161 (9 ) Heraclito sobre: 183 sg. 

pitagórico: 227 (9) 

imitação: 308 (66 )

Rohde: 15. 72, 75, 143, 153  

Rose, H.J.: 109, 111

S

Sabázio: 195. 277, 283 (42, 44). 

sacrifício: 223sacrifício dos dedos: 120, 133 (79)

Sarapis: 113 

segunda visão: 77  

Semonides de Amorgos: 37, 142 

Sêneca: 249

sentim ento de culpa na era Arcaica: 43 sg.,

53, 54, 154, 159

no inundo GrecoRomano: 133 (79),

252 sg.

abreação: 6 8 ( 1 1 0 ) 

servas em forma de cisne: 164 (37)  

sexo. purítanismo grego e: 157 sg„ 177  

(122 sg.) , 20 0(4 3)  

troca de: 144, 163 (32)

Shackleton, Sir Ernest: 122 

Sibila, a: 78

Sidgwick, Mrs. Henry: 301 

"simpatias”, ocultas: 247, 248, 295 sg. 

Sinésio: 301 Small, H.A.: 7 

Snell. B.: 24

“sobredeterminação”: 15,25, 37 sg., 58 (10) 

sobrevivente, ver vida após a morte 

sociedade "aberta”: 23 8,2 53 ,25 4,2 55 (1), 

269 (107)

sociedade “fec had a” : 218, 238,244, 255 

(I), 269 (107),

Sócrates, sobre areie: 185 sg.ação judicial de: 190 sg.. 194, 203 (74) 

crença nos oráculos: 98 (71), 186, 199 

(36)

duemonium de: 121, 187, 192, 203 (74)  

em qual senso racionalista: 186 sg. 

prática de retiro mental: 226 (6 ) 

participa dos ritos coribânticos: 85

paradoxos de: 25 

sonhos de: 112, 187 

ver também Platão 

Sófocles. expoente de visão de mundo arcaica: 55  

 Ajax 243 sg.: 91 (24)

 Arit. 176: 143 

 Ant. 1075: 29  

 Ant. 583 sg.: 5657  

 El. 62 sg.: 145, 165 (39)  

corpo e alma em: 142 

em Eros: 48

 status de homem em: 58 (6) 

em  plithonos: 58 (12)

O.C. 964 sg.: 59 (25)

O.T. 1258: 91 (25) 

solidariedade da cidadeEstado: 193, 236  

(87)

da família: 41 sg., 53 sg„ 82, 114, 153  

Solon, poemas de: 37, 40  

legislação de: 52, 141 

sonambulismo: 73, 89 (14)  

sonhador, privilegiado: 129 (35) sonho de ansiedade: 1 1 1

sonho de Édipo: 53, 67 (105)  

mito de: 43  

sonhos: 107138 

ansiedade: 1 1 1

aportes em: 1 11

clarividência ou telepatia: 1 1 2 , 1 22 sg.,

137 (116)

aprisionado em imagens: 296 sg. antigas classificações de: 1 1 2

influên cia do padrão de cultura: 108, 

113 sg., 117, 119, 130 (52)  

“daemônicos”: 124, 137 (112) 

dedicações prescritas em: 297  

sobre daemons: 64 (70) 

sobre a morte: 123, 130 (52) 

dos mortos: 116 

oferendas prescritas nos: 113 

“divino”: 113115, 122125, 129 (37)  

imagem do pai no: 114 

interpretação do: 135 (99). Ver também 

livro dos sonhos  

em Homero: 109112  

e mito: 109, 131 (58)  

objetivo: 109111

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Í n d ic e   r e m i s s i v o 3 2 7

Édipo: 53, 67 (105)  

prescrições dadas no: 120 sg. 

técn icas para provocar: 114, 297  

como excursões psíquicas: 139, 174 (97)  

cirurgia no: 119, 132 (72)  

simbólico: 109, 111 sg., 114, 123 sg. 

medo de: 253, 268 (105) 

não teoria do renascimento em : 162 (29) 

como sintomas: 123, 136 (102) 

com o realização de desejo: 111 sg., 123 

ver também corpo e alma 

Sorano: 86

sorte: 49

Sparagmox: 158, 277280  

Spengler, O.: 268 (106) sublimação: 219, 220, 229 (26)

0 U|aPoXa: 295 sg., 298 sg. 

superego: 49

superstição, Teofrasto e Plutarco: 253  

ocwxaatç, na magia: 305 (20), 306 (34)

T

Taghairm: 129 (43)

amuletos: 297

Tomeivoç: 216, 230 (39)

tambor: 84,

xapacroeiv: 57 (3)tatuagem, sagrada: 146, 165 (43)

telepatia, nos sonhos: 123, 125, 137 (116)

xeXecmKn: 295299, 308 (67)

tempo: 25 sg., 39, 176 (113)

Tennyson, Lord: 185 

Teoclimenos: 77 

Teofrasto: 85, 238, 253  Teógnis: 37, 40, 46, 48 sg.

0EO7tE|i7iTOÇ, significad o de: 135 (97 ) 

teologia astral: 220 sg., 233, 234, 246,  

24 7

e pitagorismo: 248, 263 (68 ) 

teurgia: 285315  

bibliografia da: 285  

elementos iranianos em: 294  

origem da: 285288  

e mágica: 287, 290, 293 sg.  e neoplatonismo: 287292  

modus operandi da: 294303  

Theoris: 205 (95), 206 (98)

Theoteknos: 298

Thesiger, Ernest: 278

Thomas, H. W.: 151

thumos: 24, 142 sg„ 188, 229 (32)

Tibet, animação de imagens em: 309 (72) 

Timo: 47

tímpanos: 85, 274  

Tuxri: 65 (80)

culto de: 243, 260 (37)  

tradição e o individual: 238 sg., 242 sg. 

transe coribântico: 84, 101 (94) 

indução de: 79, 94 (52)  

de Pitia: 78, 92 (41), 94 (53), 95 (55)  

voz ouvida em: 118 

troca de voz em: 96 (61), 301 

xamanístico: 144147, 163 (31), 166  (46)

teúrgico: 298303  

ver também médiuns, possessão  

rpiETT^iÕEç: 271, 280 (2) 

transmigração de alma, ver renascimento  

tributo lócrida: 44  

Tylor, E. 117

U

ubiqüidade: 144, 148 unio mystica, dist. teurgia: 288 

upanichades: 159 

Urano: 53, 67 (103)

 V

vegetarianismo, origem de: 157, 177 (121) 

Velho Testamento, crença divina no: 58 ( 8) 

culpa herdada no: 60 (26) 

vida após a morte, idéia da antigüidade: 140 

divinização, na: 147 sg„ 227 (9) 

e epitáfios: 242, 258 (29)  

medo da: 161 (13)

recompensa e punição: 42, 73 sg., 84 sg.,  

2 1 1 sg., 2 2 2 .

ver também Hades, renascimento 

vinho, ate causada por: 13, 45  

e poética: 105 (124) 

uso da religião: 76  

virtude, ver aretevisões, hipnopômpica: 127 (24), 132 (62) 

vigília: 113, 121 sg., 132(62), 134 (82), 

135

Viza, comportamento: 277

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3 2 8 O s GREGOS E O IRRACIONAL

vontade, conceito deficiente na Grécia an-

tiga: 15, 34 (105)

“voz direta”: 314 (122)

X

xamanismo, definição de: 144 

dist. religião dionisíaca: 146 

dist. possessão: 77, 93 (43), 144 

TráciosCítios: 144 sg.

Grego: 144151, 152 sg., 163 (32)  

transposição em Platão: 211 sg. 

bibliografia de: 163 (30) 

xamanístico uso de flechas: 164 (34)  

ubiqüidade: 144 sg., 148 

poder sobre pássaros e animais: 150, 170 

(75)

troca de sexo: 144, 163 (32)

adivinhação: 144 sg.

 jejum: 1441 46

comidastabus: 177 (121)

viagem ao espírito do mundo: 144, 147

sg., 150, 154, 212

uso da música: 150, 176 (119)

excu rsão psíqu ica: 1431 47, 152, 163(31)

purificações: 176(116), 176 (118) 

reencarnação: 147, 156, 167 (56)  

“recuo”: 144, 146, 152, 212

tatuagem: 146

transe: 144146, 163 (31), 166 (46), 

Xenócrates e mito do Titã: 159, 178 (133), 

179 (134)

frag. 7: 147, 167 (55)  frag. 23:

Xenofonte, na psyche: 139  

 Anab. 7.8.1: 135 (99)

 Mem. 1.6.13: 135 (100)

Xenófanes, racionalismo de: 122, 182 sg. 

influênc ia de: 184 

frag. 23: 197 (9)

W

Weinreich, O.: 73, 117 

Whitehead, A. N.: 181, 244  

Wilamowitz, U. von: 80, 151, 158. 184,  

193, 195

Z

Zalmoxis: 148, 168 (60), 168 (61), 176

(119)

Zenão: 238241

Zeus: 11 sg., 14, 26, 36, 37, 49, 113, 241 

com pai celestial: 54 sg. 

como agente de justiça: 3841 

capacidade de piedade em Homero: 42

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PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA

 Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.)

 Do gozo criador, Carlos D. PérezO manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. MelloO psicanalista e seu ofício, Conrad Stein

 Elementos da interpretação, Guy Rosolato A pulsão de morte, André Green et al.

 Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Ber-linck (orgs.)

 Família e doença mental, Isidoro Berenstein

 Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green As Erínias de uma mãe, Conrad Stein Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando BauleoTrauma, amor e fantasia, Franklin GoldgrubClínica psicanalítica: estudos, Pierre Fédida

 Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck O acalanto e o horror, Ana Lucia C. Jorge

 A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos NicolaidisO desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald

Meltzer 

 Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond OrtiguesComunicação e representação, Pierre Fédida (org.)

 Ensaios de psicanálise e semiótica, Miriam Chnaiderman Freud e o problema do poder, León Rozitchner  Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.) Figurações do feminino, Danièle Brun14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.)

 Introdução à psicanálise, Luis HornsteinO aprendiz de historiador e o mestrefeiticeiro, Piera Aulagnier O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de Melanie Klein, D.

Meltzer 

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Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Binnan ( org.)

 A construção do espaço analítico, Serge VidermanUm intérprete em busca de sentido I, Piera Aulagnier Um intérprete em busca de sentido —II, Piera Aulagnier Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morei

 A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico, Claude Le

GucnO inconsciente: várias leituras, Felicia Knobloch (org.) Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.)

 História da histeria, Etienne Trillat A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A CASA

(org.) A clínica freudiana, Isidoro VeghO título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-LabartheQuando a primavera chegar, M. Masud R. KhanO Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanálise e representação do mal, 

Mareio Pcter de Souza Leite e Jacques Cazotte As bases do amor materno, Margarete Hilferding, Teresa Pinheiio e He

lena B. ViannaTransferências, Abrão Slavutzky Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Freud, Hervé HuotO sentimento de identidade, Nicole BerryGigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué Freud e o homem dos ratos, Patrick J. Mahony

 Nome, figura e memória, Pierre Fédida A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et alii.O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal (org.)

 Perturbador mundo novo, SBPSP (org.)Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-ed.Edunicamp)Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.)

 Mancar não é pecado, Lucien IsraelCrônicas científicas, Anna Verônica Mautner 

 Penare, Celia Eid e Maria Lucia Arroyo A histérica, o sexo e o médico, Lucien IsraelOlho d'água. Arte e loucura em exposição, loão Frayze-PereiraVida bandida, Voltaire de Souza

 Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp) Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok 

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 Ah! As belas lições!, Radmila ZygourisSigmund Freud. O século da Psicanálise (3 vol.), Emilio Rodrigué

 A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões A interpretação, Elisabeth Saporiti Fato em psicanálise, IJPAO corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e 

 Horkheimer, Paulo Ghiraldelli Jr.Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha Gomes de Sou-

za-Dias IsaiasMelsohn. A psicanálise e a vida, Bela Sister e MarilsaTaffarel (orgs.),

Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanálise, Cláudio BastidasO sítio de estrangeiro, Pierre Fédida Psicoterapia breve psicanalítica, Haydée C. KahtuniO processo analítico, IJPA

 Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalítica, Paulina Cymrot A linguagem dos bebês, Marie-CIaire BusnelUma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro, Mauro P. Meiches

 Freud. Um ciclo de leituras, Silvia Leonor Alonso e Ana Maria SiqueiraLeal (orgs.)

Cadernos de Bion 1, Júlio C. Conte (org.)O estrangeiro, Caterina Koltai (org.)

 Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, Liana Albernaz de M.Bastos

 Diálogos, Gilles Delcuze e Claire ParnetO sintoma da criança e a dinâmica do casal, Isabel Cristina Gomes

 A escuta, a transferência e o brincar, IJPA Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera)

 A prova pela fala , Roland Gori (Co-ed.UCG)O instante de dizer, Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG)O desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion, Donald

Meltzer  Achados chistosos da psicanálise nas crônicas de José Simão, Jane de

Almeida (Co-Educ) A história de Tobias. Um estudo sobre o animus e o pai, Fabíola Luz Freud e a consciência, Oswaldo França Neto

 Pulsões de vida, Radmila Zygouris Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio FigueiredoTransferência, sedução e colonização, IJPA

 Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin

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A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, Gina K. Levinzon Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres

Cadernos de Bion II, Júlio César Conte (org.) Memórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg Ética e técnica em psicanálise, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr. arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sonia Alem Marrach Educação para o futuro . Psicanálise e educação, M. Cristina M.

Kupfer  Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai Nas encruzilhadas do ódio, Micheline Enriquez

 Aids. A nova desrazão da humanidade, Henrique F. CarneiroO problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho RibeiroCatástrofe e representação, Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Sil-

va (orgs)Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, IJPAÂ histérica entre Freud e Lacan, Monique David-MénardComo a mente humana produz idéias, J. Vasconcelos

 Mulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, Marisa Belém

 A clínica conta histórias, Lucia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.)O olhar do engano. Autismo e outro primordial, Lia Ribeiro Fer

nandes Doença ocupacional, Marina DurandOs avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Corrêa

(org.) Abertura para uma discoteca, Roland de Candé A conversa infinita —L A palavra plural, Maurice Blanchot A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino RochaCenários sociais e abordagem clínica, José Newton Garcia de Araújo

e Teresa Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec)O que é diagnosticar em psiquiatria, Jorge J. Saurí constituição do inconsciente em práticas clínica na França do sécu-

lo XIX, Sidnei José Cazeto Narcisismo, superego e o sonhar, IJPA Psicofarmacologici e psicanálise,

Maria Cristina Rios Magalhães (org.) Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de Formação 19331953.  Depoimentos, íris Kantor, Débora A. Maciel, Júlio Assis Simões(orgs.)

 Linha de horizonte por uma poética do ato criador, Edith Derdyk 

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 Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossomática para a prá-tica clínica, Susana de Albuquerque Lins Serino

O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico, Ines LoureiroO conceito de repetição em Freud, Lucia Grossi dos Santos (co-Fu-

mec) Driblando a per\>ersão. Psicanálise, futebol e subjetividade brasileira, 

Cláudio BastidasO cálculo neurótico do gozo, Christian Ingo Lenz Dunkcr  Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches Espinosa. Filosofia prática, Gilles Dcleuze

COLEÇÃO —  BIBLIOTECA DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL

 Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.) Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.) Autismos, Paulina S. Rocha (org.) Depressão, Pierre Fédida

 Pânico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.) Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.)Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho

 Diferenças sexuais, Paulo Roberto CeccarclliOs destinos da angústia na psicanálise freudiana, Zeferino Rocha

 Hysteria, Christopher Bollas Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck 

Culpa, Urania T. Peres (org.) A paixão silenciosa, Maria Helena de Barros e SilvaClínica da melancolia, Ana Cleide G. Moreira (Co-Edufpa)

 Depressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya Hipocondria, M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.) Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia, Pierre FédidaSuperego, Marta Rezende Cardoso

 Angústia, Vera Lopes BessetCOLEÇÃO — PSICANÁLISE DE CRIANÇA

 Rumo à palavra. Três crianças autistas em psicanálise, M.-ChristineLaznik-Penot

Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz

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 A criança e o infantil em psicanálise, Silvia Abu-Jamra Zornig A história da psicanálise de crianças no Brasil, J orge Luís Ferreira Abrão

O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal deRosemberg

COLEÇÃO — O SEXTO LOBO

 Hello Brasil!, Contardo CalligarisClínica do social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.)

 Exílio e tortura, Maren e Marcelo Vinar  Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot

 Alcoolismo, delinqüência, toxicomania. Charles Melman Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles

Melman Fantasia de Brasil, Octavio Souza Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis Cláudio Figuei

redo (Co-Educ) A face e o verso. Estudos sobre o homoerotismo II, Jurandir Freire

Costa

O que é ser brasileiro? Carmen BackesCOLEÇÃO — ENSAIOS

 MerleauPonty. Filosofia como corpo e existencia, Nelson Coelho Ji.e Paulo Sérgio do Carmo

O inconsciente como potência subversiva, Alfredo Naffah NetoO pensamento japonês, Hiroshi OshimaComunicação e psicanálise, Jeanne Maric Machado de FreitasClarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann

 A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman Escutar, recordar, dizer, Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ)Sintoma social dominante e moralização infantil, Heloísa Fernandez

(Co-Edusp) Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.) Estadosdaalma da psicanálise, Jacques Dcrrida

COLEÇÃO — TÉLOS

 Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier  A formação do psicanalista, François Perrier  Afeto e linguagem nos prim eiros escritos de Freud, Monique Sch-

neider 

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Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.)

COLEÇÃO — LINHAS DE FUGA

 A invenção do psicológico. Quatro séculos de subjetivação (1500 1900), Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-Educ)

 Limiares do contemporâneo, Rogério da Costa (org.) A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ) As árvores de conhecimentos, Pierre Lévy e Miehel Authier  As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-Educ)

COLEÇÃO — TRANSVESSIAS

O corpo erógeno. Uma introdução à teoria do complexo de Edipo, SergeLeclaire

COLEÇÃO — PLETHOS

 A palavra insensata. Poesia e psicanálise, Eliane FonsecaContratransferência, Suzana Alves Viana

 Poética do erótico, Samira Chalhub

 A Escola. Um enfoque fenomenológico, Vitória Helena Cunha Espósito Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flávio Carvalho Ferraz A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Maria Loffredo (esg.) Pacto ReVelado. Psicanálise e clandestinidade política, Maria Auxi

liadora de Almeida Cunha Arantes A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, Guaraciaba Micheletti Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio

Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit A cientificidade da psicanálise. Popper e Peirce, Elisabeth Saporiti A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Coelho Junior Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A. MuylaertCrianças na rua, Ana Carmen Martin dei ColladoUm olhar no meio do caminho, Sônia Wolf 

 Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Ávila.Os clizeres nas esquizofrenias. Uma cartola sem fundo, Mariluci No

vaes

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Título 

 Projeto gráfico 

 Diagramação 

 Revisão 

 Formato  

Tipologia  

 PapeI 

 Número de páginas 

Tiragem 

 Impressão

Os gregos e o irracional  

Editora Escuta  

Araide Sanches 

Aracy S. Grijota 

14 x 21 cm

Times New Roman 10,5/12,5  

Cartão Royal 250g/nr (capa) 

O ff set 75g (miolo)

336  

1.500  

BookRJ

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questão. No terceiro capítulo,toma como questão a frase dePlatão no  Fedrc: “Nossas maiores

 bênçãos vêm a nós através daloucura”. No quarto, denominado“Padrão de sonhos e padrão decultura”, parte da observação deo ser humano dividir, comalguns outros poucos mamíferos,o privilégio de possuir cidadaniaem dois mundos distintos. Elagoza, em diária alternância, dedois tipos de experiência -“visão de realidade” e “sonho”,como os gregos as chamavamcada qual com sua lógica e limitações próprias. Em “Os xamâsgregos e a origem do puritanis-mo” Dodds observa que, ao ladoda velha crença em m ensageirosdivinos que se comunicam comos homens através de sonhos evisões, surge também, em algunsescritores do período clássico,uma nova crença, relacionada aexperiências de um poder humano, oculto e inato e examinaessa manifestação com grandeacuidade.

Esta breve amostra do conteúdo deste livro fascinante ésuficiente para provocar aindamais a curiosidade nascida quando o leitor tomou-o da estanteonde repousava. Resta, agora,depois de passar  os olhos porestas despretensiosas orelhas,mergulhar no texto propria-mente dito onde encontrará umagrande riqueza de idéias sobre oâmago da natureza humana.