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OS DISCURSOS SIGNIFICANTES DO MIDICOM

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Chanceler

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Lauro Kopper Filho

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Porto Alegre, 2014

OS DISCURSOS SIGNIFICANTES DO MIDICOM

ROBERTO RAMOS

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© EDIPUCRS, 2014.

DESIGN GRÁFICO [CAPA] Shaiani Duarte

DESIGN GRÁFICO [DIAGRAMAÇÃO] Thiara Spethl

REVISÃO DE TEXTO PORTUGUÊS Simone Diefenbach

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS

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Ramos, RobertoOs discursos significantes do Midicom [recurso

eletrônico] / Roberto Ramos. – Dados Eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2014.

Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>ISBN 978-85-397-0429-3

1. Comunicação de Massa. 2. Jornalismo. 3. Mídia. I. Título.

CDD 301.161

R175d

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Sumário

7 ���PREFÁCIO

8 ���OLHAR ATENTO AOS DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO MODERNA

Flávio A. C Porcello

11 �AS LINGUAGENS DO ÂNCORA: INFORMAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E OPINIÃO

Roberto Ramos

21 �A PRÁTICA DA ANÁLISE SEMIÓTICA EM ORGANIZAÇÕES FAMILIARES NA PÓS-MODERNIDADE

Fernanda Lopes de Freitas

35 �A ASSESSORIA DE IMPRENSA NA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL ESTRATÉGICA: ANÁLISE COMPLEXA EM UMA AUTARQUIA GAÚCHA

Patrícia Hammes Strelow

61 �A SUBJETIVIDADE DE CLARICE LISPECTOR E A DITADURA MILITAR: REFLEXOS DA ÉPOCA NUM CONTEXTO DE CENSURA

Isabella Smith Sander

75 �UMA CERTA TENDÊNCIA DE UM CINEMA IMPURO: TRUFFAUT, BAZIN

Janaina dos Santos Gamba

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PREFÁCIO

O presente e-book é o resultado do trabalho comprometido com a produ-ção de conhecimento. O grupo de pesquisa Mídia, Discurso e Complexidade (Midicom) tem feito isso há 12 anos. Agora, com uma nova pujança, reúne professores e alunos que, em suas diversidades, possuem uma unidade: o envolvimento com as práticas científicas.

Ao longo de 2013, o Midicom se reuniu, para apresentar os trabalhos dos seus integrantes. Houve uma variedade de produções, sobretudo, que se particularizam entre projetos de tese e de dissertação. Foram acresci-das, também, pela configuração de artigos científicos.

Os assuntos tiveram variações. Preocuparam-se com a Mídia em suas expressões impressa e eletrônica, em seus aspectos organizacionais e profissionais. Tal variedade foi enriquecedora. Ensejou uma pluralidade de olhares a respeito da importância dos fenômenos midiáticos na con-temporaneidade.

Cabe um agradecimento abrangente a todos os participantes, que de-ram as suas respectivas contribuições científicas e intelectuais. Também, vale lembrar, em especial, ao trabalho da doutoranda Fernanda Lopes de Freitas como gestora competente na elaboração deste e-book.

Portanto, desejo a todos uma leitura agradável, estimulante e estimu-ladora das práticas científicas, voltadas para o conhecer.

Professor Ph.D. Roberto Ramos, coordenador do Midicom.

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OLHAR ATENTO AOS DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO MODERNA

Prepare-se para uma agradável viagem pelos caminhos da comunica-ção, prezado leitor, prezada leitora!

Os desafios da vida moderna, a interatividade crescente entre emissor e receptor, a convergência tecnológica, a superposição de mídias, enfim, são tantos os nomes, classificações, definições, que levaríamos um bom tempo aqui só para citá-los, mas eu não quero atrasar o prazer da leitura que você terá nas próximas páginas.

O professor doutor Roberto Ramos, jornalista experiente e atento aos fatos do cotidiano, competente e dedicado pesquisador nos cursos de graduação e pós-graduação, lidera há 12 anos o grupo de pesquisa Mídia, Discurso e Complexidade (Midicom), constituído por professores e alunos da PUCRS que em suas diversidades possuem uma unidade: o envolvimen-to com as práticas científicas. Todos, de alguma forma, possuem um elo – os discursos e a mídia em seus diversos âmbitos, tais como a produção intelectual, as organizações, o perfil profissional e, principalmente, os desafios que precisamos vencer para chegar ao futuro.

E é justamente um pouco dessa produção intelectual que você verá nas páginas seguintes. Roberto Ramos apresenta o artigo “As linguagens do âncora: Informação, Interpretação e Opinião” e seus alunos seguem o caminho do mestre e orientador com olhares múltiplos e diversificados sobre outros aspectos da comunicação, temas de seus projetos de tese de doutoramento e dissertações de mestrado.

A doutoranda Fernanda Lopes de Freitas analisa “A prática da análise semiótica em organizações familiares na pós-modernidade” e os mestrandos completam a coletânea: Patrícia Hammes Strelow dedica-se a examinar outro interessante aspecto da comunicação com o artigo “A assessoria de imprensa na comunicação organizacional estratégica: análise com-plexa em uma autarquia gaúcha”; Isabella Smith Sander apresenta suas reflexões teóricas em “A subjetividade de Clarice Lispector e a ditadura militar: reflexos da época num contexto de censura”; e Janaina dos Santos

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Gamba contribui com o artigo “Uma certa tendência de um cinema impuro: Truffaut, Bazin”.

Como prometi antes, estou sendo breve nessa introdução, pois posso adiantar, leitor, leitora, que cada um de vocês vai querer logo apreciar o resultado das pesquisas do Midicom. E posso afiançar que os jovens e promissores autores que seguem o mestre Roberto Ramos aprenderam com a competência e dedicação dele. Aliás, tenho algo em comum com esses jovens autores reunidos no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS: eu também tive o privilégio de aprender as ricas lições ensi-nadas por Roberto Ramos, meu orientador de doutorado.

Boa leitura!Verão de 2014.

Prof. Dr. Flávio A. C Porcello

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coorde-nador da Rede de Pesquisadores em Telejornalismo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).

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AS LINGUAGENS DO ÂNCORA: INFORMAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E OPINIÃO

Roberto Ramos1

O conceito de Âncora parece permanecer cercado por uma pluralidade de sentido. É entendido de diferentes maneiras. Apresenta uma comple-xidade. Pode dizer muitas coisas, similares e antagônicas, com o uso de somente uma palavra.

A palavra âncora possui a sua referencialidade relacionada com os portos. É um instrumento, com peso e formato adequados, para fixar as embarcações dentro da água, concedendo-lhes estabilidade. Em termos simbólicos, adquire um conjunto de possibilidades de sentido. Caracteriza a base, a firmeza, a solidez. Pode, ainda, emblematizar a credibilidade, a segurança e a fidelidade.

Nos shopping centers, é comum o uso da expressão loja âncora. Refere-se àquela que apresenta uma importância singular em determinado andar ou área. Isso acontece devido à localização, às vezes de um extremo ao outro, ou pelo espaço que ocupa.

Também na internet o termo se reproduz. Qualquer link ou hiperlink recebe, por vezes, o sinônimo de âncora. É o item que remete a um deter-minado texto ou a um determinado conteúdo, ou seja, tem uma noção de alteridade. Refere um outro.

O processo de Ancoragem é uma realidade das Mídias impressa e eletrônica. Encarrega-se da sustentação do sentido, que hierarquiza a mensagem jornalística, dando-lhe uma valoração sobre a sua respectiva importância.

Na Mídia impressa, existem inúmeros recursos de Ancoragem. O título anuncia o sentido da matéria. A legenda singulariza a significação

1 Professor Doutor da PUCRS, atua na Famecos, na Graduação e na Pós-Graduação e possui as seguintes publicações: Futebol: Ideologia do Poder; Grã-finos na Globo; Manipulação & Controle da Opinião Pública; A Máquina Capitalista; A Ideologia da Escolinha do Professor Raimundo; e O Âncora e o Neoliberalismo: A Privatização do Sentido. E-mail: [email protected].

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da fotografia. A localização do texto é importante. As matérias principais estão nas páginas ímpares. As menos prioritárias estão nas páginas pares.

O antetítulo, como título fixo colocado nas páginas, apresenta uma lógica. Informa a temática. Identifica a respectiva editoria, para facilitar a vida do leitor na sua peregrinação por jornais e revistas. Permite a de-vida padronização.

Na Mídia eletrônica, por exemplo, a imagem televisiva oferece uma pluralidade de significação. É quase caótica como mensagem. Necessita do som, que é redutor. Singulariza e afirma o significado. Desempenha, com isso, o papel de ancorar, ou seja, de estipular o sentido.

Tais recursos parecem ganhar mais pertinência com o advento do Jornalismo como atividade empresarial. A crescente padronização expe-rimentada a partir do século XX é validada pelo mercado, com a maior exigência de massificação.

Todo e qualquer recurso que indique o sentido e a valoração da mensa-gem jornalística tem uma lógica. Está associado às práticas de Ancoragem. Contribui para uma melhor compreensão do que está sendo divulgado. Busca facilitar a decodificação do receptor.

Por vezes, se quer dizer algo e o interlocutor pode entender outra coisa, tem outra compreensão sobre o que foi dito. A linguagem convive com as possibilidades comuns de obscuridade. Opera na multiplicidade dos significados, que rodeiam palavras, imagens e gestos.

A Mídia, impressa e eletrônica, nos diversos espaços, convive com uma amplitude de públicos. Precisa disponibilizar um discurso que os interpele, driblando as diversidades culturais. O processo de Ancoragem adquire essencialidade para a produção de sentido.

Squirra (1993) empreendeu um resgate consistente. Traçou as principais características do Telejornalismo norte-americano e brasileiro. Fixou-se sobremaneira nas concepções de Âncora, em seus modelos e em suas respectivas funções. O estudo foi mobilizado por uma lógica de conheci-mento. Voltou-se para discernir as diferentes concepções por intermédio das funções. Foram precisas para revelar uma parte importante, porém deixaram outra sem revelar, isto é, a forma de desempenho funcional.

O termo Âncora adquiriu notoriedade no Telejornalismo norte-ameri-cano. Surgiu identificado com Walter Cronkite, nas convenções partidá-rias de 1952 em Chicago. Ele foi assim denominado pelos seus colegas de CBS. O diretor Sig Mickelson usou o termo referindo-se ao instrumento

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náutico, que dá estabilidade às embarcações. O produtor Paul Levitan o pronunciou considerando o contexto do esporte: é o atleta escolhido para representar uma equipe na corrida de revezamento.

A CBS é uma das principais redes de Televisão dos Estados Unidos. Ao lado da ABC e da NBC, compõe um triunvirato tradicional. Possui um domínio em relação aos canais abertos, considerando-se a audiência e a importância histórica.

Cronkite se notabilizou na CBS, sobretudo no Evening News, a partir de 16 de abril de 1962. Permaneceu até 6 de março de 1981, quando se aposentou, sendo substituído por Dan Rather. Dispunha de um público aproximado de 21 milhões de telespectadores, sendo considerado um dos jornalistas norte-americanos de maior credibilidade.

Há quem diga que Cronkite tinha alguns defeitos vocais específicos. Era meio fanhoso, com uma Voz rouca, e lia demasiadamente devagar. No entanto, isso parece não ter sido o impeditivo para que ele se tornasse uma referência de credibilidade na performance de Ancoragem.

Ainda que não tivesse na questão vocal a sua virtude mais enfática, Cronkite apresentava uma grande capacidade de tratar as questões jorna-lísticas com seriedade. Conseguia possuir uma característica fundamental: a identificação com o telespectador.

Uma grande parcela da História desfilou sob a forma de Notícia no seu Telejornal. Foi o porta-voz de fatos marcantes ao longo dos anos 50, 60 e 70. Contou a chegada do homem à lua, bem como o assassinato do presidente John Kennedy.

Influenciou o pensamento norte-americano sobre a Guerra do Vietnã. Afirmou, em 1968, em Editorial, a impossibilidade de vitória dos Estados Unidos. Sustentou uma oposição nítida e contundente ao confronto bélico, antagonizando-se, no episódio, com as decisões governamentais.

Cronkite (1998, p. 377) reconhece a importância do Âncora e de suas relações com o Poder:

Na elite do Quarto Poder, ninguém é mais elite que os âncoras de telejornal [...]. Os âncoras têm mesmo um extraordinário poder. Na história do jornalismo, nunca vozes isoladas alcança-ram, diariamente, tantas pessoas. Nos telejornais, eles podem incluir ou excluir informações a seu bel-prazer [...].

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Ele era um jornalista que desempenhava duas funções básicas. Tinha o cargo de Editor-chefe, ditando e coordenando dois processos: o de sele-ção – o que deveria ir ao ar – e o de organização – como deveria ir ao ar. Coordenava a edição do telejornal. Como apresentador, ele desenvolvia, prio-ritariamente, duas Práticas Jornalísticas: a Informativa e a Interpretativa. Secundária e esporadicamente, trabalhava a Opinativa, por intermédio de Editorial, com muito conhecimento e desenvoltura.

A Prática Informativa possui como objeto a Notícia como fato atual, de interesse geral. O seu tempo prioritário é o presente. Cultua duas ideias essenciais. Valoriza a Objetividade e a Neutralidade como pressupostos de sua performance.

A Objetividade exige precisão. Contempla o mínimo de palavras, com um máximo de significação. O jornalista tem um dever. Precisa se ater aos fatos como objeto do seu único interesse. É necessário silenciar as reivindicações opinativas e as preferências da subjetividade.

A Neutralidade parece estar conjugada com a Objetividade. É a venda de uma imagem independente de vínculos, preferências e gostos. Ritualiza um desligamento histórico, político e ideológico, para se autolegitimar em sua aptidão jornalística.

Cronkite agenciava os recursos informativos, sobretudo, através de alguns procedimentos básicos. Lia as manchetes e notícias. Ainda, reali-zava entrevistas, como uma de suas possibilidades de resgatar o seu lado de Repórter, que marcou a sua formação profissional.

A Prática Interpretativa talvez seja uma das mais árduas. Reivindica a contextualização do fato noticioso. É preciso decompô-lo na tridimensio-nalidade temporal. Resgatar o passado significa buscar os antecedentes, ampliando o presente. Ainda, há a necessidade de forjar o futuro, através de projeções e de consequências.

O Âncora fazia isso com muita competência. Ele conseguia desdobrar as notícias, estabelecendo as suas relações e inter-relações. Conectava o presente ao passado e ao futuro, configurando a contextualidade dentro da brevidade do tempo televisivo.

O Editorial, agenciado por Cronkite, é um recurso da Prática Opinativa que está centrado e concentrado no juízo de valor. Revela, sem personalis-mos, com impessoalidade, a opinião do programa, ou mesmo da empresa, com uma abordagem institucional.

Cronkite (1998, p. 377) deplorava a Opinião fora do Editorial:

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Se um âncora tentar distorcer as notícias, para propagar um ponto de vista pessoal, ele estará indo, em primeiro lugar, con-tra a ética dos redatores e dos produtores do programa. Se as objeções desses colegas não forem freio suficiente, o âncora precisará encarar a gerência do departamento de jornalismo e, por fim, os executivos da rede [...].

Ele possuía um modo particular para encerrar o Evening News. Usava a frase, criada em 1963, “And that’s the way it is”, ou seja, “E é assim que as coisas são”. Em seguida, emendava a data: “E assim foi o dia tal”. A frase, padronizada, repetida no final de cada edição, tinha uma particularidade: convertia-se em um Bordão – a frase feita, com sabor e cores de Estereótipo.

O uso do Bordão não era uma simples gratuidade. Não significava uma mera obra do acaso. Carregava um objetivo comunicacional. Era a procura de uma maior aproximação com o telespectador, desenvolvendo laços de intimidade.

A lógica do Bordão apresenta algumas características. Pode ser par-ceira dos ditados populares, dos axiomas, das máximas e dos provérbios. Impõe o significado, sem reivindicar reflexão. É o dito pelo dito, sem mais nada a considerar.

O fechamento do significado impõe uma verdade. Tudo já está suficien-temente dito. Não há o que completar. O afirmado é absoluto e imposto, sem deixas para o diálogo. Cabe somente repeti-lo, por ser o saber da verdade suprema.

Tal imposição de linguagem dispõe de um lugar onde o seu saber é valorizado e praticado. É o Senso Comum – o conhecimento, com base na experiência e na concretude dos fatos vividos superficialmente, carecendo de uma reflexão crítica.

Ao repetir o Bordão “E é assim que as coisas são”, Cronkite ratificava o que dissera antes. Tornava-o, de forma determinística, sinônimo da ver-dade, com uma postura absoluta e absolutizante em relação ao que fora informado e interpretado.

O determinismo ia além do conteúdo explícito. Insinuava que os acon-tecimentos que informava e de que era informado existiam à revelia da vontade humana. Evocava implicitamente Deus como uma vontade superior e absoluta, pairando acima de todas as coisas.

Quem evoca Deus, por intermédio da razão ou da fé, faz parte dele. É um dos seus emissários, um dos seus representantes. Assume, ao mes-

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mo tempo, uma síntese humana e divina. Representa o resgate do todo. Cronkite se investia dessa condição. Abrangia as performances humana e divina como símbolo do todo. Era uma espécie de “Hermes midiático”, o tradutor dos fatos reais para os demais humanos – os telespectadores.

Logo, Cronkite materializou o conceito do Âncora Tradicional norte--americano. Fez isso como jornalista, com as funções de Editor-chefe e Apresentador. Desenvolveu, como prioridade, as Práticas de Informação e de Interpretação e, como exceção, de Opinião, via Editorial. Disponibilizou o Bordão, com enfoque determinista, para evocar Deus e, ao mesmo tempo, se evocar como divino, bem ao sabor do Senso Comum.

O ÂNCORA NO BRASIL

O jornalista Boris Casoy, no SBT, começou adotando o modelo do Âncora Tradicional norte-americano. Era o Editor-chefe e o Apresentador, trabalhando as Práticas de Informação, de Interpretação e de Opinião. Chamou para si, todavia, uma terceira função. Autoinvestiu-se na pele de Comentarista, desenvolvendo a produção de Opinião. Em 1988, o SBT contratou Casoy para ancorar o TJ Brasil. Até então, ele tinha feito a sua trajetória, com notoriedade, no Jornalismo impresso. Pediu demissão da Folha de S.Paulo e se lançou em um novo desafio profissional. Começou a se ancorar, para ser um Âncora à imagem e à semelhança de Cronkite.

Fundado em 1981, o SBT tem algumas particularidades. Foi resultado da performance singular de Senor Abravanel – Silvio Santos –, que, de camelô, se tornou um dos mais exitosos empresários da Comunicação. Iniciou, em 1976, com a TVS, no Rio de Janeiro, e, em 1980, ganhou a con-corrência pública da divisão do espólio da Rede Tupi de Televisão. Criou a sua própria rede: o SBT.

O programa Silvio Santos parece ter servido de referencial estético para a rede. Desenhou o perfil da programação, voltada sobremaneira para as classes D e E, usando a interpelação emocional, com tons sensa-cionalistas. Teve como seu principal cenário os programas de auditório.

Até 1988, o SBT obteve uma trajetória admirável. Conquistou o segundo lugar em audiência, perdendo somente para a Globo, uma das principais redes do mundo. O seu crescimento econômico trouxe um impasse. Havia a necessidade, para mantê-lo, de atrair os grandes anunciantes, implicando uma qualificação na grade de programação.

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As contratações do humorista Jô Soares e de Casoy foram referenciais. Aludiram à busca dos grandes anunciantes, com um avanço qualitativo na forma e no conteúdo. Todavia, a interpelação popular continuava sendo prioridade.

Casoy conseguiu uma relação diferenciada junto à emissora. Montou a sua própria equipe, com independência do Departamento de Telejornalismo do SBT. Contou com o espaço devido para conceber o TJ Brasil, com os seus traços e com a sua fisionomia, ao seu jeito.

Até então, o Telejornalismo não era um gênero primordial para a emissora. Não estava no elenco das suas prioridades. Traduzia-se apenas como um acessório, um complemento. Os programas de auditório eram prioritários, agenciando o Entretenimento como forma de espetáculo.

Casoy soube aproveitar o espaço de autonomia. Adotou a função de Comentarista com dois objetivos principais. Buscava uma maior identidade com o público-alvo do SBT. Desembarcava, ao mesmo tempo, de um padrão, restrito e circunscrito à hegemonia das práticas informativas.

Com tal estratégia, ele rompeu com a ideia e a imagem de Neutralidade, própria do Jornalismo Informativo. Investiu, pela postura opinativa, na possibilidade de granjear, para si, um perfil crítico que pudesse ensejar uma maior credibilidade.

Casoy procurou se popularizar através da atividade de Comentarista. Emprestou a sua voz e a sua imagem para se tornar e ser tornado um porta-voz do telespectador. Instituiu-se como um protetor dos fracos e dos oprimidos, defendendo, simultaneamente, os pressupostos do Capitalismo.

Os Bordões foram um recurso para configurar a produção opinativa. Ensejaram a possibilidade de interação com as classes, sobretudo D e E, mobilizando a emocionalidade, própria dos discursos e dos hábitos do Senso Comum.

Houve a consolidação de alguns Bordões que marcaram e demarcaram o seu estilo. Foi, sobremaneira, o caso de “Isso é uma vergonha”, “Vai terminar em pizza”, “Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa” e “Vamos passar este país a limpo”.

O “Isso é uma vergonha” foi cunhado, inicialmente, pela Televisão norte-americana, quando do assassinato do presidente John Kennedy em 1963. Casoy o resgatou, com certa espontaneidade, após uma matéria sobre a precariedade da saúde e não o deixou mais. O Bordão, introduzido pelo Pronome Demonstrativo “isso”, serviu para questionar as indigências das

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precariedades brasileiras. Carrega um tom moralista, por intermédio do termo “vergonha”, com um sotaque de pronúncia paternal.

O Âncora começou a fazer experiências. Em algumas edições, opi-nava; em outras, não. O exercício do papel de Comentarista trazia uma repercussão nos telespectadores, mesmo que tivesse encontrado uma resistência inicial por parte dos diretores da emissora. Evidenciava o aumento de audiência.

O “Vai terminar em pizza” tem a sua origem no Futebol. Está vinculado ao Palmeiras, clube com sede no Bairro da Água Branca, em São Paulo. De colonização italiana, as eleições e reuniões do Palmeiras se pautavam por conflitos e brigas, mas tudo tinha um final feliz. Acabava na pizzaria mais próxima, como advertiam os repórteres que faziam a cobertura do clube. A frase também apresentava um contexto político. Foi usada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do impeachment do presidente da República Fernando Collor de Mello, que acabou renunciando em 1992. Casoy a apro-priou-se dela como Bordão, para denunciar e questionar a impunidade.

O “Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa” parece estar comprometido com a noção de esclarecimento. Busca separar as reali-dades, para dar ênfase às suas diferenças. Faz isso afirmando o mesmo pelo mesmo. É uma Tautologia. Tal Bordão pode se alinhar à lógica de alguns axiomas já conhecidos. É o caso de “separar o joio do trigo”, cuja notoriedade foi consagrada pelo texto da Bíblia.

O “Vamos passar este país a limpo” parece ter uma origem escolar. Apresenta, na sua origem, a tarefa de passar o caderno e a lição a limpo. Adquire a mensagem da essencialidade de aprimoramento do Brasil, solucionando os seus impasses. Pode conter um impulso de idealidade.

Os Bordões se pautam por uma abordagem moralista, com um tom paternalista. Representam mais uma afirmação fechada do que uma abertura de questão. Tudo parece se resolver e ser resolvido de maneira automática, sem mais nada a dizer.

Cronkite usava o Bordão no momento conclusivo do telejornal. Casoy os disponibilizava, com insistência, como sustentação de suas Práticas de Opinião. Em geral, ao fazer os Comentários, o plano era um Close-up. Quando ocorriam as Práticas Informativas e Interpretativas, era priorizado o Plano Americano.

Tais mudanças de planos são fundamentais. O mesmo acontece por intermédio da troca de câmera. Uma das características da imagem tele-

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visiva é a sua velocidade. As mudanças de plano e de câmera servem para assinalar as alterações das Práticas Jornalísticas.

Caso não seja feita a utilização desses recursos, haverá uma dificul-dade para o telespectador. Ficará difícil o seu discernimento sobre as alterações entre a Informação, a Interpretação e a Opinião, porquanto a imagem televisiva se caracteriza pela sua rapidez.

O Âncora quebrou vários preconceitos. Rompeu com a ideia hegemônica que existia na época exigindo um padrão de beleza para ser protagonista no vídeo. Ainda que tenha sido Locutor, de Rádio durante 15 anos, não possuía uma bela Voz. Sem corresponder a isso, ele se impôs sobretudo com a sua capacidade jornalística.

Oriundo do Jornalismo impresso, foi preparado para fazer o modelo do Âncora Tradicional norte-americano. Transgrediu o sentido de uma mera cópia. Inovou ao ampliar as práticas de Ancoragem com a adição da perfor-mance de Comentarista, incluindo, em consequência, a Prática Opinativa.

As circunstâncias contextuais colaboraram para que Casoy empreen-desse a sua inovação. O Brasil vivia um período de redemocratização que culminou com a eleição presidencial de Fernando Collor de Mello, com voto direto, em 1989, após 25 anos de Ditadura Militar.

O fato de opinar não significava que ele assumisse posições contrárias ao Capitalismo. Criticava governantes e parlamentares. Não atingia, po-rém, as bases da sociedade capitalista. Defendia a Economia de mercado e a repressão policial, por exemplo, nos episódios de violência.

A Opinião, fechada em Bordões com pronúncia emocional e paterna-lista, inovou. Configurou um modelo e um estilo singulares, consolidando um conceito e um lugar na história midiática. Ampliou as práticas da atividade do Âncora.

Tal conjunto de méritos encontrou uma dificuldade. Parece ter ca-recido de inovações. Ficou restrito, inscrito e circunscrito à repetição dos Bordões. Não se reciclou na convivência e na concorrência de outras ofertas comunicacionais.

Ainda assim, o conceito de Casoy se manteve e recebeu outros estilos através de outros seguidores. Alguns conservavam o uso das Práticas Informativa, Interpretativa e Opinativa, esta sem o uso dos Bordões, pre-servando, em geral, um modo mais comedido e conciso. Um dos maiores reconhecimentos veio dos próprios norte-americanos. A Fox News está adotando o seu conceito.

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Casoy, de uma cópia, fez uma inovação. Criou o seu próprio concei-to. Configurou a atividade do Âncora com três funções: Editor-chefe, Apresentador e Comentarista, agenciando as Práticas Informativa, Interpretativa e Opinativa.

Portanto, Cronkite e Casoy, em suas particularidades discursivas, evidenciam uma convergência. É a presença da interpelação ao Senso Comum. A absolutização do sentido expressa uma das características do Âncora no Telejornalismo massivo.

REFERÊNCIAS

CRONKITE, Walter. Walter Cronkite Repórter – as memórias do maior Âncora da TV americana. São Paulo: DBA, 1998.

SQUIRRA, Sebastião. Boris Casoy – o Âncora no Telejornalismo brasileiro. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

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A PRÁTICA DA ANÁLISE SEMIÓTICA EM ORGANIZAÇÕES FAMILIARES

NA PÓS-MODERNIDADE

Fernanda Lopes de Freitas2

A publicidade tem tomado cada vez mais espaço no cotidiano das pessoas, de toda e qualquer forma estamos sempre sendo fisgados pelos seus estímulos. Na sociedade pós-moderna, o que vemos é um verdadeiro bombardeio de propagandas, principalmente após a popularização das tecnologias da informação, as quais nos permitem estar sempre conec-tados com pessoas, notícias, marcas, empresas, ou seja, com o que puder estar interligado.

A propaganda institucional tem angariado as maiores verbas das empresas no que tange ao âmbito da comunicação, preterindo, inclusive, subáreas como a comunicação interna das organizações. Não obstante, essa técnica vem se aprimorando mormente em seus discursos, que a cada dia parecem adquirir novas entonações.

O SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), no ano de 2013, lançou uma campanha publicitária de cunho institucional sob o slogan #compartilhe, constituída de várias peças veiculadas nos mais diversos meios, como internet, TV, busdoor, outdoor etc. Nos anúncios estão os principais no-mes do SBT – Silvio Santos, Marília Gabriela, Eliana, Ratinho, Roberto Cabrini, entre outros.

Para esse trabalho, analisaremos a campanha #compartilhe, em seu todo, através das peças veiculadas no site da organização. Para efetuar as análises, teremos as seguintes categorias a priori: organizações fami-liares, pós-modernidade, tribalismo, marca, imagem, mito. Teremos como método o paradigma da Complexidade de Edgar Morin em uma pesquisa Semiológica de Barthes.

2 Doutoranda em Comunicação Social e Mestre em Comunicação Social – PPGCOM/PUCRS.

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O corpus, como podemos observar, são publicidades institucionais, as quais procuram não somente propagandear e persuadir seu público através da comunicação, como, sobretudo, investir num novo modo de comunicação, a fim de, além de divulgar sua marca, conquistar um novo nicho de mercado – os mais jovens e ainda os usuários das redes sociais.

Para tanto, cabe-nos, antes de tudo, percorrer a trajetória da publi-cidade no Brasil.

HISTÓRICO DA PUBLICIDADE BRASILEIRA

A publicidade no Brasil tem uma trajetória de mais de 200 anos, o que contribuiu para as inúmeras transformações sociais no país. A propagan-da colaborou inclusive para a educação da população, em casos de saúde pública (campanhas para extermínio de determinadas doenças epidemio-lógicas, campanhas esclarecedoras sobre higiene), direitos e cidadania.

No entanto, não apenas coisas boas vieram com ela, mas também o hiperconsumismo que permeia a sociedade atual. Uma vida estimulada pelo crédito fácil ao alcance de grande parte da população incentiva a compra desenfreada dos mais diversos tipos de produtos.

Determinados setores da sociedade sofreram influências diretas da publicidade, principalmente no que tange à comunicação – a imprensa es-crita, o rádio e a televisão foram os mais afetados. Recentemente temos as tecnologias digitais que não somente foram influenciadas, como também influenciaram o modo de persuasão de seus públicos.

Os meios de comunicação passaram a não apenas dar o “tom” da pu-blicidade, como também foram influenciados proporcionalmente por ela, visto que tiveram de adaptar-se a algumas mudanças, como a inserção de intervalos comerciais no rádio, na TV, entre outros tantos. Mas os anun-ciantes ainda foram propulsores de outras transformações que ficaram implícitas nos formatos dos programas e produtos desses veículos.

Para que possamos entender um pouco mais da relação da publicidade com a sociedade brasileira, devemos observar um pouco da sua trajetória neste país. Segundo Marcondes Filho (2002, p. 14),

A propaganda nasce como expressão de uma necessidade de informação diversa daquela que o jornalismo começava a su-prir tão bem. Comércio, indústria e gente em geral precisavam transmitir a outros comércios, indústrias e gente em geral uma

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série de impressões e informações. O veículo preferencial, além do boca a boca – o mais eficaz veículo de propaganda jamais inventado –, era o jornal. Nele, anunciavam-se escravos e pro-priedades rurais urbanas. Informavam-se leilões e aulas parti-culares. Profissionais independentes, como relojoeiros, guias, escrivães, descreviam suas habilidades. Ou seja, a propaganda nasceu prestando serviços, na forma do que poderíamos chamar de primórdios dos classificados modernos.

Percebemos, contudo, que a publicidade parece ter preservado em seu cerne sua habilidade genuína de prestadora de serviços à sociedade, como desde seu início. Se observarmos a atualidade, o jornal e o boca a boca continuam sendo veículos valiosos para as empresas, mesmo que tenham mudado seus formatos, já que as transformações ocorridas no mercado, bem como na sociedade, acabam refletindo, assim, na comu-nicação e seus processos.

O que tínhamos no final do século XIX eram anúncios que consis-tiam em textos densos, sendo que ainda nessa época começam a surgir as primeiras ilustrações oriundas, sobretudo, dos trabalhos de artistas plásticos, que mais adiante tentarão fazer da propaganda uma arte. Ainda nesse período, os anúncios começam a se transformar e chegam perto dos formatos utilizados hoje, abarcando a qualidade gráfica (MARCONDES FILHO, 2002, p. 17).

A sociedade brasileira nesse momento possuía uma classe média ain-da pequena e estava polarizada entre uma sociedade burguesa e outra proletária. Mesmo assim, a comunicação comercial parece ter um certo crescimento, principalmente nos anúncios de remédios, ou ainda de alimentos, bebidas e alguns serviços. Surge, então, a primeira agência de publicidade do Brasil, chamava-se Eclética e tinha como um dos seus principais clientes a cervejaria Antarctica (MARCONDES FILHO, 2002).

A comunicação mercadológica começa a profissionalizar-se, e outras empresas passam a publicizar suas marcas e seus produtos. Apesar de ter como molde para a sociedade brasileira o modelo americano de publi-cidade, os anúncios continuam crescendo.

Com a chegada do Rádio, uma nova estrutura para os anúncios passa a ser estudada e preparada; surge então os spots, jingles, instrumentos publicitários oriundos dos americanos. A novidade fica por conta da voz humana, que chega às casas através das ondas transmissoras. Famílias inteiras se reúnem para ouvir notícias e posteriormente as radionovelas.

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Ao mesmo tempo da introdução do Rádio no país, a fotografia parece tomar forma especialmente brasileira, com jeitos, caras e cores do Brasil (MARCONDES FILHO, 2002). Até então, o que víamos nas páginas dos jornais e das revistas, bem como em cartazes, eram modelos fortes, másculos, pro-tótipos dos galãs hollywoodianos, pois nessa época as estrelas de Hollywood eram os atores, e não as atrizes; estas eram relegadas a segundo plano.

As grandes empresas estavam falando com o público, e Marcondes Filho (2002, p. 25) pormenoriza:

No rádio as grandes indústrias já presentes na economia brasi-leira encontrariam espaço privilegiado para sua comunicação. Os mesmos nomes encontrados nos jornais e revistas, seguidos de outros que chegaram aos poucos (Coca-Cola, entre eles), estariam também presentes no novo meio, utilizando-se não só dos recém-chegados spots e jingles como também de uma nova modalidade de presença comercial na mídia: o patrocínio.

O rádio, desta forma, foi e é um veículo capaz de trabalhar em rede e, sobretudo, unificar a população, como ocorrido na década de 1940, quando além do governo brasileiro se utilizou desse veículo de maneira política. No mesmo momento, na Europa tivemos o emprego desse meio no intuito de se concatenar a população à ideologia nazista.

O patrocínio, que depois irá delinear também a programação televisiva, foi um dos responsáveis pelas mudanças da cultura da comunicação. Não apenas pela inserção dos comerciais em intervalos de programação, mas também por influenciar, inclusive, na escolha do conteúdo dos programas, tornando-os sinônimos de determinadas marcas, como, por exemplo, o Repórter Esso, o qual unia notícias e a empresa petrolífera, ou ainda a radionovela Gessy, patrocinada pela Gessy Lever.

A sociedade, já acostumada com a cultura sonora, passa na década de 1950 a ter a imagem em movimento, com a chegada da Televisão aos brasileiros, tendo como primeira emissora a TV Tupi, de propriedade dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, que se transformou na mais importante e maior rede brasileira de rádio e jornais. Marcondes Filho (2002, p. 31) conta-nos:

Assim como no rádio, contudo, o início foi apenas experimen-tal, e a propaganda criou uma figura básica de comunicador, a garota-propaganda (sempre mulher, já que as mulheres eram o

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público-alvo preferencial da publicidade em geral), cuja função era demonstrar, como numa conversa doméstica com a consu-midora, as maravilhas dos produtos anunciados.

As propagandas de eletrodomésticos, produtos de higiene e remédios, utilizando um tom quase confidencial entre amigas, tentavam persuadir a dona de casa, a “boa esposa”, aquela que experimentaria enceradeiras, batedeiras, liquidificadores. Nesse momento, o galã hollywoodiano é trocado por uma garota-propaganda, a qual parece ter conhecimento amplo das técnicas domésticas, bem como de produtos de higiene (higiene feminina principalmente) e remédios para as crianças.

Mais tarde, com as transformações sociais ocorridas nos anos de 1960 e 1970, como a pílula anticoncepcional, os movimentos hippies, os movimentos feministas também foram abarcados pela propaganda. Mais uma vez o público feminino é abordado, agora tentando suprir as neces-sidades de uma mulher moderna que, além de cuidar da casa, possui um trabalho, fora de casa.

Nesse mesmo período, instalava-se a ditadura militar no país, e a publi-cidade viria a ter seus anos de ouro, com alta produtividade e faturamento acima do normal. O governo passa a ser um dos maiores anunciantes (se não o maior), propagando, através dos mais diversos meios e veículos, suas ideologias. A criatividade foi amplamente explorada, visto que alguns slogans se tornaram muito conhecidos, como “Pra frente Brasil”, “Brasil. Ame-o ou deixe-o”, entre outros.

Com o término do período ditatorial, a publicidade passa por um período de crise, pois, com a abertura política, alguns problemas acon-teceriam, como uma economia inflacionada, na qual, de um dia para o outro, os preços subiam vertiginosamente. Com isso, a propaganda passa a ser algo dispensável às empresas (a partir da lógica empresarial), o que consequentemente subtraiu o faturamento das agências.

Na década de 1990, contudo, o país assistiu a alguns fatos inusitados, até então, na história nacional, como o impeachment do presidente da República Fernando Collor. Com algumas mudanças econômicas, como a implantação do Plano Real, a publicidade começa a tomar fôlego novamen-te. Cabe salientar, entretanto, que mesmo num período de crise a propa-ganda no Brasil teve um excelente desempenho no que tange à atividade criativa, já que nessa época faturou diversos prêmios, tornando-se uma referência mundial.

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Já nos anos 2000, a propaganda começa a passar por uma reestruturação a partir da entrada de novas tecnologias na comunicação, principalmente com o advento da internet (ou, melhor dizendo, world wide web) populari-zada. Com isso, o processo comunicacional passa por muitas mudanças, mais ainda quando referimos os formatos de anúncios, nos quais temos a inserção de blogs, sites, banners em sites, entre outros muitos.

Assim, ao estudar a trajetória da publicidade, temos a impressão de que ela se confunde com a inserção de novos meios e veículos comunicacionais. A sociedade parece adaptar-se e apropriar-se das características desses meios, em que os sujeitos tornam-se plurais em suas funcionalidades sociais.

ANÁLISE

A análise, como dito anteriormente, terá como corpus a campanha #compartilhe SBT. Uma das peças, a qual está impressa em um fundo amarelo, com letras em vermelho, tendo como personagens da imagem Silvio Santos, Patrícia Abravanel, Celso Portiolli, Ratinho, Eliana e Carlos Alberto de Nóbrega, possui o seguinte texto: “Com 32 anos, Com alegria, Com emoção, Com risadas, Com amigos, Com família, Compartilhe”. Além da foto utilizada como fundo, há ainda o símbolo que alude ao comparti-lhamento nas redes sociais.

Em primeiro lugar, o que percebemos nessas discursividades é a ten-dência da emissora de buscar novos públicos, ou ainda os mapear através das redes sociais, o que até então parecia se esconder através de fluxos de comunicação e discursos mais rígidos, de certa forma, evidenciando um poder patriarcal, um tanto arcaico.

A comunicação nessa campanha aparece em seu sentido etimológico como evidenciado por Morin (2001), no sentido de compartilhar, de ser condição sine qua non de relacionar-se. Quando proposta a ideia de #com-partilhe, percebemos que a organização busca uma troca com seus públicos, bem como necessita que seu conteúdo, que suas discursividades sejam difundidas não apenas nas redes sociais, mas sim para toda a sociedade.

Além disso, o processo comunicacional nessa propaganda traz nos aspectos não verbais significados tão importantes quanto os de nível verbal, como, por exemplo, as cores e as imagens dispostas nas peças. Há uma hibridez entre o arcaico e o tecnológico, o que confere um estilo pós-moderno à marca.

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O aspecto de organização familiar é ressaltado em quase todas as peças, tendo na figura de Silvio Santos (o fundador) o grande apelo. No nível verbal, a palavra família aparece em alguns casos, como quando é dito “compartilhar com a família”, e na imagem temos o fundador e sua filha, também apresentadora da emissora.

Para Pimenta (2008, p. 32), organização familiar é

um tipo especial de organização, que se origina de vínculos fami-liares e se configura em um complexo sistema político, no qual as relações entre os atores abrangem um conjunto de variáveis onde se cruzam racionalidades, conflitos, interesses, afetividade e sentimento. Nela estão presentes também todos os sistemas da vida organizacional, com as perspectivas de estratégia e de competitividade; estabelecem-se pressões e alianças, inserções nos mercados em lógicas diferenciadas; quando mudanças e transformações são impostas por fatores endógenos e exógenos, privilegiando inovações, defrontam-se com forças opostas que procuram preservar a tradição e o conhecido.

O barroco, característica essencial da pós-modernidade, parece per-mear as organizações familiares, como visto através da conceituação de Pimenta, na qual o paradoxo é constituinte das relações da organização, assim como o imbuir do arcaico no tecnológico.

Observamos que as organizações familiares geralmente são estereotipa-das a partir da ideia de poder patriarcal e de uma racionalidade funcional triunfante. No entanto, o que vemos a partir das discursividades é que nem sempre as mesmas se configuram dessa forma. No caso do SBT, por meio dessa campanha o que lemos em seus discursos é uma abordagem emocional e, mais do que isso, percebemos o apelo à utilização das redes sociais para o estar junto com a empresa. Maffesoli (2001) corrobora essa ideia quando esclarece que dentro da cultura pós-moderna a comunicação passa a ser o cimento social entre os sujeitos.

Em #compartilhe, o que podemos notar é a abordagem emocional, típica marca da emissora, a qual parece estar atrelada à alegria e, acima de tudo, à família. Esse fato pode ser percebido não apenas por ser uma empresa familiar, mas sim por a organização procurar frisar essa carac-terística em seus discursos verbais, assim como nos não verbais, visto que temos a imagem de Silvio Santos e de Patrícia Abravanel, sua filha.

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A cultura organizacional é evidenciada através dessas discursividades, pois, indissociável da comunicação, serve de espelho. Por isso, empresas que possuem relações de poder rígidas têm discursos iguais e o mesmo acontece no caso das empresas familiares, as quais procuram expor em suas falas seus integrantes e a importância que o público interno possui, parecendo integrar o clã empresarial.

A comunicação, nesse caso, é a representação, o reflexo dos sujeitos e suas culturas, do clima da empresa, isto é, da cultura organizacional. Bueno (1989, p. 77) afirma: “Cada vez mais, fica evidente que as manifes-tações no campo da comunicação empresarial estão atreladas à cultura da organização e que cada indivíduo, cada fluxo ou rede, cada veículo ou canal de comunicação molda-se a esta cultura”.

Percebemos através da comunicação verbal de #compartilhe que a ideia central dessa peça é buscar o compartilhamento não apenas da marca SBT, mas sim das características que a permeiam, como a alegria, a família, os amigos, ou seja, há uma valorização dos públicos organizacionais, desde seus funcionários, como os que aparecem na propaganda, quanto aos te-lespectadores e demais sujeitos que são persuadidos por esses discursos.

A comunicação na pós-modernidade passa a ter uma nova estética atribuída não apenas à emocionalidade, que nos faz integrantes de uma socialidade triunfante, mas, sobretudo, ao tribalismo, que faz com que vivamos em grupos com identificações plurais. Maffesoli (2003, p. 16) acrescenta que o aspecto tribal é a dimensão pós-moderna do fenômeno da comunicação, na qual “informação e comunicação, no sentido da partilha de emoções e de sentimentos, só podem dirigir-se a tribos que comungam em torno de um totem”.

O totem, neste caso, pode ser considerado a figura do fundador da or-ganização, pois ele geralmente aparece nas peças, assim como é lembrado quando pronunciada a marca SBT, que acaba por ser atrelada à imagem pessoal do empresário. O sentimento em torno dele e dos discursos orga-nizacionais é relacionado aos estereótipos culturais dos públicos consumi-dores da emissora. A comunicação, portanto, para o autor, seria “a forma contemporânea de exprimir esta velha forma arquetípica de comunhão em torno de um totem e descreveria, junto com a informação, o modus vivendi característico da pós-modernidade” (MAFFESOLI, 2003, p. 14).

Observamos que na pós-modernidade as tribos acabam se organizando em torno desses totens, pois estes fazem com que indivíduos consigam criar seus elos entre si. No caso das organizações familiares, mesmo aqueles

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sujeitos que não fazem parte do clã reverenciam determinadas figuras, que geralmente são os fundadores dessas empresas.

No SBT essa relação de adoração é relacionada a Silvio Santos, que, além de ser o patriarca da família Abravanel e fundador da emissora, é também uma figura mítica para seus telespectadores e até mesmo para outros “consumidores” da marca. Há uma relação aparente de fidelização e consagração da emissora pelos seus stakeholders, como um diferencial estratégico, inclusive na comunicação dela.

Para Semprini (2006, p. 220), a marca pós-moderna é “[...] sustentada por seu próprio desenvolvimento e por sua potência”. Ou seja, além de ser um motor semiológico, como o autor a define, neste período em que estamos vivendo, ela é importante para despertar a produção de sentido estética, pois o emocional move as tribos e seus relacionamentos. O teórico complementa essa ideia quando diz:

As marcas desempenham um papel muito importante tanto para semantizar novos produtos quanto para re-semantizar produtos envelhecidos, à procura de um novo alento. Mas, no contexto do consumo contemporâneo, esta missão de semantização das marcas conquista um novo sentido, de ordem ainda mais geral (SEMPRINI, 2006, p. 51).

Esse conceito percebemos no SBT, quando lança essa campanha ten-tando se adaptar a um novo momento vivido não apenas pelo mercado, mas por toda a sociedade. Os apresentadores e demais “personagens” da emissora buscam representar a seriedade, a alegria, o profissionalismo, a família e a magia de fazer parte dessa organização, o que nos remete ao barroco, através da composição elaborada por sentimentos e sensações opostas, ou, pelos menos, aparentemente opostas, como seriedade e alegria.

O barroco, representado pelas contradições entre o arcaico e o con-temporâneo, pelos sentimentos opostos apresentados nas discursividades, evidencia o quanto a organização familiar para permanecer no mercado necessita ser pós-moderna e resiliente. Se antes a comunicação do SBT era somente para cumprir um “contrato psicológico” com seus telespecta-dores, agora se reinventa tentando compartilhar com eles algo mais que somente sua marca, ou seja, uma troca de sentidos.

O tribalismo, uma das características essenciais da pós-modernida-de, é demonstrado e mostrado através do apelo #compartilhe, no qual

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compreendemos o aspecto de comunidade, do estar junto dos públicos e da emissora. Maffesoli (2012) nos remete à ideia de que saímos de uma comunicação massificada para uma comunicação segmentada, na qual o sujeito não é mais um indivíduo homogêneo dentro de uma sociedade, mas sim um público segmentado a partir de suas identificações com outrem.

As organizações familiares parecem constituir ao menos duas tribos que se entrelaçam pelo cotidiano, sendo uma a família e outra seus pú-blicos, tanto internos quanto externos à organização, não constituintes do clã. No entanto, dentro dessas tribos, ainda existem outras, que são as identificações que os sujeitos encontram em seu cotidiano, tornando as relações ainda mais complexas e híbridas, condição indissociável do viver pós-moderno.

O estar junto, outra característica tribal e, sobretudo, da socialidade na pós-modernidade, é evidenciado através das discursividades, como podemos perceber por meio do próprio slogan #compartilhe, o qual só é possível através da convivência, seja ela real ou virtual. Esse discurso nos contempla com uma representação do nosso cotidiano, já que estamos inseridos em uma cultura voltada a uma economia da velocidade, na qual convivemos com o individualismo de nossas ações, mas, ao mesmo tempo, procuramos em outros indivíduos nossas identificações e através destas nos tribalizamos.

Morin (2001) nos diz que, para que possamos ter nossa existência con-firmada, necessitamos da presença de outrem, o que corrobora a ideia do parágrafo anterior. Na vida organizacional, o mesmo acontece, visto que as organizações são espaços de trocas entre os indivíduos. Para Maffesoli (1995, p. 54), essa situação de troca configura-se no estar junto, o qual busca, “[...] no quadro reduzido das tribos, encontrar o outro e partilhar com ele algumas emoções e sentimentos comuns. No balanço cíclico dos valores sociais, assiste-se ao retorno do ideal comunitário, em detrimento do ideal societário”.

O partilhar está em todas as peças analisadas, juntamente com valores emocionais como a alegria, um dos principais aspectos predominantes do SBT em suas discursividades (inclusive ao longo da sua trajetória, tendo sido também parte de outro slogan: “A TV mais feliz do Brasil”). Nessa publicidade, o que percebemos é o encontro do arquétipo moderno com uma linguagem pós-moderna, não apenas por estimular o uso das tecno-logias, mas pelo barroquismo discursivo.

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Concomitantemente temos imagens contraditórias, como a família em seu sentido mais arcaico – de um poder patriarcal –, assim como um novo discurso, utilizando uma estética contemporânea, pós-moderna, com jo-gos de cores e tecnologias. Maffesoli (1995, p. 11) trata a estética em seu sentido mais amplo: “[...] o da empatia, do desejo comunitário, da emoção ou da vibração comum”.

A vibração comum e a emoção nessa publicidade parecem ser inerentes à organização, visto que estão presentes em todas as peças. O desejo de compartilhamento com o público evidencia o fato, há um segmento envol-vido, um desejo comunitário, como lembrado por Maffesoli (1995), o qual é bem delineado pelos telespectadores da emissora em hipoteticamente compartilhar o que há de melhor em conteúdos.

Para Lipovetsky (2000, p. 13),

A pós-modernidade encarna, aparentemente, apenas o superfi-cial. Mas, ao mesmo tempo, representa o contrário: obrigação de rentabilidade, competição, performance, ser operacional, ter sucesso. Significa também inquietude com o futuro, com a saúde, angústia provocada pela insegurança e pelo desamparo.

Essa inquietude comum à pós-modernidade, bem como a economia da velocidade, faz com que empresas, consumidores e sujeitos em geral estejam sempre em busca de algo novo, como uma nova linguagem, uma nova tecnologia, novas relações, isto é, há uma angústia pelo desconhecido e pela performance perfeita. Por outro lado, temos a insegurança também como aspecto característico desse tempo, o que nos leva a querer retornar à segurança do passado, ou seja, do já experimentado, como o exemplo do compartilhamento tribal, de passar as experiências de geração para geração, como podemos notar nas imagens das peças, nas quais estão integrantes do SBT das mais variadas idades.

A sociedade pós-moderna por vezes parece desumanizada, no sentido de que as concorrências econômicas em que somos postos à prova nos fazem de alguma forma mais alheios aos sujeitos com que interagimos. Porém, procuramos nos agregar a outrem para que nossas emoções possam ser compartilhadas. Maffesoli (2006, p. 85) aponta que “A desumanização real da vida urbana produz agrupamentos específicos com a finalidade de compartilhar a paixão e os sentimentos”.

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Esses agrupamentos, entretanto, podem ser segmentos de consumo, como no caso dos telespectadores do SBT, que são fidelizados ainda mais através do compartilhamento de informações e imagem da organização. A emissora busca, através dessa publicidade, chegar mais próximo de seus públicos e daqueles que ainda podem ser persuadidos. Para isso é condi-ção sine qua non ter uma linguagem afim, um socioleto – o qual pode ser entendido, segundo Barthes (1988), como linguagem social.

Barthes (1988, p. 110) propõe: “Todos entendemos o que ouvimos em comum, mas nem todos falamos a mesma coisa que ouvimos; os gostos estão divididos de maneira oposta e até inexorável”. Assim per-cebemos que essas linguagens sociais são adaptadas a cada contexto que vivemos, e o mesmo acontece no Tribalismo, no qual a busca pela identificação é muito forte.

A publicidade mais do que nunca precisa estar alinhada aos seus públicos e para isso mapeia os consumidores e um pouco das suas cultu-ras, a fim de que assim possa falar diretamente com quem lhe interessa e, o mais importante, ser entendida, obtendo uma comunicação efetiva. Barthes subdivide os socioletos em duas formas distintas – o Encrático e o Acrático –, pormenorizando assim:

Ora a linguagem encrática (aquela que se reproduz e se espalha sob a proteção do poder) é estatutariamente uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são má-quinas respisadoras: a escola, o esporte, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a figura principal da ideologia (BARTHES, 1975, p. 55).

Sendo assim, o socioleto Acrático é aquele que age por sujeição, por meio do qual os grupos reagem a alguma imposição, alguma forma de Poder autoritária. Nessa publicidade o que nos parece evidente é o uso do socioleto Encrático, estipulado através da publicidade, a qual procu-ra reprisar o cotidiano pós-moderno, ligado aos valores mais arcaicos como a família, bem como com aspectos mais contemporâneos como a tecnologia evidenciada através do discurso de compartilhamento nas redes sociais.

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PRINCIPAIS EVIDÊNCIAS SEMIÓTICAS

No decorrer deste artigo procuramos compreender e explicar, a partir das análises semióticas da campanha, como as organizações familiares estão buscando uma identidade pós-moderna através de seus discur-sos. Para tanto, utilizamos como categorias de análise Comunicação, de Morin; Organizações Familiares, de Pimenta; Marca, de Semprini; Pós-modernidade, de Maffesoli e Lipovetsky; Tribalismo, de Maffesoli; e Socioleto, de Barthes.

O que percebemos ao longo deste trabalho é que a pós-modernidade tem modificado os comportamentos sociais. Há uma socialidade instaurada em nosso tempo, na qual as emoções permeiam nossas relações, sejam elas da esfera que forem, como na própria família, como em termos comerciais.

A emoção não é abordada somente nas palavras alegria, família, ou então quando o discurso diz: “compartilhar um abraço”; ela está nas en-trelinhas, que dão significação à marca pós-moderna, tornando-a potente frente aos seus concorrentes.

Há um tribalismo evidente, um retorno ao sentimento de grupo, no qual a busca pela identificação é o que move. Cada vez mais temos, a partir das novas tecnologias da comunicação, a possibilidade de estar junto, de nos comunicar e compartilhar com outros sujeitos, surgindo assim uma nova estética comunicacional e social, que agrega através do Socioleto os indivíduos em tribos específicas, em torno de marcas e organizações.

O SBT nessa campanha parece ter buscado conquistar novos consu-midores, novos públicos, e, mais do que isso, chegar o mais perto possível deles, bem como mapear o comportamento e as principais características dessas tribos para melhor comunicar-se com elas.

O que vemos então, a partir dessa análise, é que mesmo sendo essa emissora uma organização familiar com aspectos arcaicos, como eviden-ciado pelos discursos, tanto verbais quanto não verbais, pretende uma adaptação às novas tecnologias e à nova socialidade contemporânea, ou, melhor dizendo, pós-moderna.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Para/ou onde vai a literatura. In: VÁRIOS. Escrever... para quê? Para quem? Lisboa: Edições 70, 1975.

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OS DISCURSOS SIGNIFICANTES DO MIDICOM

______. Elementos de semiologia. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

MAFFESOLI, Michel. A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comuni-cação). Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 20, p. 13-20, abr. 2003.

______. A Contemplação do Mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

______. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

______. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, c2012.

______. Sobre o nomadismo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo: Discurso Editorial, 2002.

MORIN, Edgar. As duas globalizações. Porto Alegre: Sulina, 2001.

SEMPRINI, Andrea. El Marketing de La Marca. Buenos Aires: Paidós, 2006.

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A ASSESSORIA DE IMPRENSA NA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL ESTRATÉGICA: ANÁLISE COMPLEXA EM UMA AUTARQUIA GAÚCHA

Patrícia Hammes Strelow3

INTRODUÇÃO

As mudanças econômicas, culturais, sociais e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas têm demandado a adoção de estratégias capazes de promover o equilíbrio das organizações no complexo cenário globalizado. Na medida em que aumenta a necessidade de adaptação das instituições a esse novo contexto, cresce também a demanda pela adoção de estra-tégias de comunicação capazes de dar efetivo suporte à nova realidade das organizações. O modelo de repasse unilateral de informações da direção/comunicadores para os diferentes públicos, sem diálogo, identi-ficação de demandas e busca por soluções, está superado. Torna-se cada dia mais indispensável para as instituições que os profissionais ligados à comunicação promovam um esforço conjunto e estratégico de busca por caminhos capazes de contribuir de forma efetiva para a consolidação do projeto institucional. Torquato (2010, p. 11) reafirma essa rejeição às atuações baseadas em análises simplistas: “Um dos mais imperiosos desafios do profissional reside na capacidade de saber ler os cenários e projetar situações”.

Essa perspectiva vem sendo abordada academicamente nos últimos anos por autores como Margarida Kunsch. Ela enfatiza a tendência recente de estudos que defendem uma visão abrangente da comunicação nas e das organizações, “considerando todos aqueles aspectos relacionados com a complexidade do fenômeno comunicacional (natureza das organizações, relacionamentos interpessoais, função estratégica instrumental etc.)” (KUNSCH, 2011, p. 79).

3 Mestranda do PPGCOM da PUCRS. E-mail: [email protected].

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Mas qual o cenário local? Esse modo estratégico e integrado de trabalhar a comunicação guia também as ações das empresas gaúchas? Esse foi o questionamento inicial que despertou o desejo de formatar o presente estudo. A opção pela administração pública como objeto de estudo deu-se pelo fato de que, na esfera pública, a comunicação supera o aspecto mercadológico para se apresentar como recurso fundamental para garantir o acesso dos cidadãos à informação. A transparência é um dever das organizações públicas, e a mídia é um meio para atingir esse fim. Assim, o fomento à comunicação entre governo e imprensa atende ao compromisso democrático de informar a sociedade, e a assessoria de imprensa assume o papel de facilitadora desse fluxo. Conforme explica Wels (2008, p. 78), as assessorias de comunicação dos órgãos governamentais, assim como acontece nas instituições privadas, são responsáveis por “manter um canal permanente de comunicação entre as organizações e os diferentes públicos com os quais se relacionam”. Ao intermediar o relacionamento com a mídia, os profissionais envolvidos com a atividade promovem a prestação de contas dos órgãos públicos à população, ao mesmo tempo em que fazem chegar até o governo as demandas da comunidade.

Considerando a relevância da comunicação pública para a sociedade, o presente trabalho se propõe a analisar o processo de produção das políticas comunicacionais pelos assessores de imprensa das autarquias ligadas ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, no contexto es-tratégico da comunicação organizacional. O Estado do Rio Grande do Sul conta hoje com nove autarquias, mas a análise limita-se a um caso, optando-se pela autarquia com maior número de profissionais atuando no setor de comunicação. Com base nesses critérios, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) foi a instituição selecionada para cons-tituir o corpus do estudo.

Assim, buscaremos compreender e explicar quais são os critérios adotados pelos assessores de imprensa do Detran na definição de seus procedimentos e métodos de trabalho, em que medida atuam de forma estratégica e integrada a um planejamento de comunicação organizacional e de que maneira a cultura organizacional influencia na construção dessas políticas de comunicação.

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OPÇÕES METODOLÓGICAS

Adotaremos como metodologia neste trabalho o Paradigma da Complexidade, de Edgar Morin, na busca por promovermos uma análi-se transdisciplinar sobre o tema estudado. Para Morin, o universo está conectado, como as tramas de uma tapeçaria. Diversos nós ligam uns pontos a outros, formando uma rede de interações e interconexões que se influenciam mutuamente. A aplicação do paradigma complexo proposto por Morin implica a passagem de um padrão linear de pensamento para uma estrutura transdisciplinar, em rede. Trata-se de um modelo sistêmico que diz não ao reducionismo e busca ligar conhecimentos antes dispersos, promover o diálogo entre simples e complexo, entre ordem e desordem. Para guiar essa busca pelo conhecimento adotando-se o método complexo, Morin propõe sete princípios-chave.

O primeiro princípio é o Sistêmico ou Organizacional, que relaciona as partes com o todo. Através deste, Morin defende que a reunião de partes fragmentadas resulta em algo novo e maior do que a soma de suas unida-des, ou seja, o todo é maior que a soma das partes. Simultaneamente ele propõe o princípio Hologramático, segundo o qual uma pequena parte possui a essência do todo, ao mesmo tempo em que o todo contém as par-tes. Aplicado a uma organização, esse princípio chama a atenção para o fato de que o todo institucional é formado pela soma de todos os setores e áreas, mas, da mesma forma, cada unidade contém o todo organizacional em sua essência. A Assessoria de Imprensa é uma das partes que formam o Detran, e o órgão como um todo está também, de certa forma, represen-tado na Assessoria de Imprensa.

O princípio do Anel Retroativo exclui a linearidade da relação entre causa e efeito. Segundo essa concepção, há um processo circular de autor-regulação entre ambos: a causa determina o efeito, mas o efeito também acaba agindo sobre a causa. Uma única causa pode resultar em diferentes efeitos, assim como um único efeito pode decorrer de inúmeras causas. O sucesso na divulgação de um evento empresarial em determinado veículo de comunicação, por exemplo, pode ser fruto da combinação de múltiplos fatores, tanto internos quanto externos à organização: desde um texto bem elaborado pela assessoria de imprensa até a receptividade do jornalista que analisa o material, passando pelo espaço disponível naquele dia em determinada editoria. Da mesma forma, uma única ação da assessoria de imprensa pode resultar em efeitos diversos, como a solicitação de outras

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informações adicionais por determinado veículo de comunicação, a qual por sua vez vai demandar novas ações do setor, num processo não linear de causa e efeito.

O princípio do Anel Recursivo nos leva a compreender que, na mesma medida que alguém produz algo, ele também acaba sendo impactado por esse produto, ou seja, a causa age sobre o efeito assim como o efeito age sobre a causa. Aplicando-se esse princípio ao nosso objeto de estudo, po-demos inferir que, ao produzirem as políticas de comunicação do Detran, os Assessores de Imprensa do órgão também são impactados pelos resul-tados desse trabalho.

O quinto princípio proposto por Morin é o da Auto-eco-organização, que sustenta a conexão entre dependência e autonomia existente na reali-dade social complexa. Ao mesmo tempo em que é autônomo, o ser humano depende do contexto social onde está inserido, e a sociedade depende de aspectos físicos universais. Aplicado à organização, significa dizer que os profissionais possuem liberdade de atuação, mas dependem de fatores externos a eles para usufruir dessa autonomia, ou seja, sua autonomia está diretamente relacionada à sua dependência. Conforme alerta Morin (2011, p. 88), nos sistemas complexos a parte está no todo e o todo está na parte: “Isso é verdade para a empresa que tem suas regras de funcionamento e no interior da qual vigoram as leis de toda a sociedade”.

O princípio Dialógico chama a atenção para o fato de que o diálogo é possível e necessário mesmo entre conhecimentos contraditórios, pois eles dispõem, sim, de possibilidades de cruzamentos. A realidade é construída a partir da contraposição entre forças contrárias que se complementam. Ou seja, é possível associar lógicas antagônicas, mantendo-se a “dualida-de no seio da unidade” (MORIN, 2011, p.74). No processo de construção do conhecimento, esse princípio implica a aceitação da desordem e do antagonismo. Elimina a necessidade de se buscar uma resposta única e fechada para os questionamentos propostos e aceita que lógicas opostas podem combinar-se na construção do real.

Por último, Morin aponta como um dos sete princípios fundamentais para a compreensão do paradigma complexo o da Reintrodução. Esse princípio entende o conhecimento como fruto de um processo de recons-trução operado por sujeitos inseridos em uma cultura específica. Esse conhecimento é sempre provisório, contempla certezas e incertezas e é resultado de um processo dialógico entre sujeito e objeto.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O estudo será fundamentado a partir de uma base referencial de conhecimento formada por quatro categorias a priori. Empregaremos as noções de Edgar Morin para delimitarmos a categoria organização e de Margarida Kunsch para a categoria comunicação organizacional. Com base em nosso objeto de estudo, propomos a categoria planejamento estratégi-co, aplicando os conceitos de Margarida Kunsch. Por fim empregaremos a categoria cultura organizacional, delimitada com base no pensamento de Marlene Marchiori.

Organização

Aspectos sociais, políticos e econômicos provocaram ao longo de sé-culos progressivas reconfigurações na estrutura das organizações, até o surgimento das grandes corporações globalizadas do mundo contempo-râneo. Edgar Morin, ao aplicar o pensamento complexo à atual realidade organizacional, destaca que as organizações não podem ser estudadas de forma isolada, mas devem ser entendidas como organismos vivos em contínuo processo de interação com seu entorno e, consequentemente, vivem uma busca incessante pelo equilíbrio. Sob essa perspectiva, é pre-ciso considerar todos os elementos que formam o sistema organizacional, bem como a realidade de que ele faz parte – as relações humanas são in-separáveis da realidade produtiva da empresa e da situação do mercado no qual ela se insere.

A sobrevivência das organizações está baseada na produção de ele-mentos e serviços externos a elas. Assim, as organizações são sistemas vivos que produzem a si mesmas, responsáveis ainda por buscar o equi-líbrio entre ordem e desordem dentro de seus próprios sistemas. “Como organismo vivo a empresa se auto-organiza e faz a sua autoprodução. Ao mesmo tempo, ela faz a auto-eco-organização e a auto-eco-produção” (MORIN, 2011, p. 87). O pensamento complexo alerta para a necessidade de se compreender a mutabilidade das situações e a incapacidade de se prever os acontecimentos, e as organizações precisam buscar a sobrevi-vência nesse mundo em constante transformação.

A busca permanente pela reinvenção e pelo equilíbrio coloca o conceito de estratégia como base para a sobrevivência das organizações, opondo-se à ideia de programa. Enquanto este só funciona em uma situação perfeita,

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estanque, a estratégia possui a capacidade de se adaptar às mudanças constantes ocorridas dentro e fora do ambiente organizacional. A estra-tégia, o espaço para a desordem, para as iniciativas individuais, isto é, a flexibilidade e a abertura, são para a Complexidade instrumentos que auxiliam no crescimento e – apesar de parecer contraditório – na própria manutenção do equilíbrio organizacional.

Ao fundamentarmos a categoria Organização no Paradigma Complexo de Morin, não podemos deixar de apontar sua compreensão sobre a relação entre o todo e as partes. Para o autor, o todo é ao mesmo tempo maior e menos do que a soma de suas partes. “Estamos diante de sistemas extre-mamente complexos, onde a parte está no todo e o todo está na parte” (MORIN, 2011, p. 88). Isso significa que um estudo que leve em conside-ração as partes pensando em compreender o todo estará incompleto. Da mesma forma, é impossível conhecer as partes através da mera análise do conjunto. Aplicando-se esse pensamento ao nosso objeto de estudo, isso significa que não poderemos compreender como atua um determinado setor se não estudarmos o funcionamento da organização em sua totalidade, a forma como está inserida no mercado e o relacionamento entre esse setor e as demais partes da organização. Do mesmo modo, não é possível com-preender a complexidade organizacional pelo simples estudo da empresa como instituição única sem uma análise das partes que a compõem.

Comunicação Organizacional

Para Margarida Kunsch (2011), é preciso que a comunicação organi-zacional seja compreendida sob uma perspectiva ampla e complexa, o que implica conceber a relação direta entre ambos os conceitos: organização é indissociável de comunicação. A Organização comunica permanente-mente, esteja ela consciente ou não desse fato: desde o instante em que um potencial cliente recebe uma informação publicitária, passando por sua experiência dentro do estabelecimento até o momento em que busca trocar uma mercadoria, ou efetuar uma reclamação; no minuto em que um fornecedor entrega um produto; quando um funcionário assiste com a família a uma entrevista concedida por sua chefia; nos diálogos internos entre os empregados. Todas as interações de alguma maneira relacionadas à Organização devem ser caracterizadas como comunicação organizacional.

Fica claro, assim, que esse é um processo impossível de ser plenamente controlado, conforme afirma Kunsch (2011, p. 70):

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As organizações em geral, como fontes emissoras de informações para seus mais diversos públicos, não devem ter a ilusão de que todos os seus atos comunicativos causam os efeitos positivos desejados ou que são automaticamente respondidos e aceitos na forma em que foram intencionados. É preciso levar em con-ta os aspectos relacionais, os contextos, os condicionamentos internos e externos, bem como a complexidade que permeia todo o processo comunicativo.

Essa concepção supera o padrão funcionalista da comunicação. Scroferneker (2008, p. 26) destaca que “os espaços organizacionais deixam de ser lineares, colocando em xeque o modelo informacional simplificador, tecnicista e instrumental”. Para apresentar resultados frente à realidade cada vez mais complexa, é imprescindível que os comunicadores adotem ações estratégicas que levem em conta as múltiplas interações dos diversos stakeholders com a Organização. Esse desafio não pode ser enfrentado através de ações isoladas, mas demanda a adoção de uma política única integrada por todos os profissionais ligados à área.

Isso significa que deve haver total integração entre a comu-nicação interna, a institucional e a de negócios na busca da eficácia, eficiência e efetividade organizacional em benefício dos públicos e da sociedade como um todo, e não só da empresa isoladamente (KUNSCH, 2011, p. 80).

A implementação dessa perspectiva estratégica demanda a efetiva integração de todas as subáreas da comunicação a um mesmo projeto. No presente trabalho, vamos focar o estudo de uma dessas subáreas, a asses-soria de imprensa, para tentar entender de que forma esses profissionais estão inserindo sua atuação no planejamento estratégico de comunicação organizacional. Na definição de Duarte (2008, p. 24; p. 96), o Assessor de Imprensa é o profissional responsável pela “produção e disseminação da notícia institucional” e pela “administração dos fluxos de informação e relacionamento entre fontes e jornalistas”.

As atividades clássicas de produção de conteúdo institucional e inter-mediação do relacionamento entre assessorado e mídia ainda se constituem na base da assessoria de imprensa, mas esta assume novos desafios no momento em que se percebe como parte do amplo e complexo cenário da comunicação organizacional. Como aponta Duarte (2008, p. 96), esse pro-cesso amplia as oportunidades dos Assessores de Imprensa e a necessidade

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de “estabelecerem relacionamentos e sistemas de informação eficientes para seus públicos”. Em vez de mero caráter burocrático relacionado à atividade em sua fase inicial, hoje esses profissionais assumem uma pos-tura estratégica no planejamento de suas atividades, na forma como lidam com a informação, na adoção de novos canais de comunicação e no rela-cionamento que estabelecem com todos os stakeholders da Organização.

A atuação com base na cultura, nos interesses e nos objetivos organizacionais, e a educação interna para a valorização do compromisso social da instituição, para a compreensão das características e dos interesses dos meios de comunicação, para a necessidade de informação do público interno são ape-nas algumas das tarefas que se tornaram comuns (DUARTE, 2008, p. 24).

Assumir essa perspectiva implica reconhecer que a simples execução das tarefas clássicas pelo Assessor de Imprensa não é mais suficiente. A produção de releases e o atendimento à imprensa somam-se a novos desafios, como a administração de redes sociais, a elaboração de sites interativos e com disponibilidade imediata de conteúdos úteis para a imprensa, a criação de canais que fomentem e qualifiquem o fluxo interno de informações, o apoio às políticas de gestão, o media training, ou seja, um amplo leque de novas possibilidades e responsabilidades, todas elas dialogando com um planejamento complexo de comunicação organizacional estratégica.

Planejamento Estratégico

Na terceira categoria a priori de estudo vamos recorrer às noções de Margarida Kunsch para definirmos as bases para o estudo do planejamen-to estratégico. De maneira geral, o planejamento é definido por ela como um instrumento racional e inteligente de busca de eficiência nas ações organizacionais, materializado na construção de projetos documentais, mas que implica uma série de outros elementos além dos meramente técnicos, como as decisões políticas e os aspectos relacionais subjetivos. Na configuração atual do mercado globalizado mundial, trata-se de uma ferramenta imprescindível para a sobrevivência e para o crescimento das organizações. A autora diferencia três níveis de planejamento: o estratégi-co, aquele de longo prazo, responsável por formatar as grandes decisões

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de gestão; o tático, que responde a demandas urgentes; e o operacional, dedicado a registrar documentalmente as ações a serem empregadas.

O Planejamento Estratégico, alvo deste estudo, é aquele voltado à re-dução de “ocorrência de riscos para o entorno e a incerteza no processo de formulação de decisões estratégicas a partir da análise de cenários e das oportunidades e ameaças advindas do macroambiente” (Kunsch, 2011, p. 110-111). Esse processo começa pelo diagnóstico da situação, com identificação dos pontos fortes e fracos internamente, e das ameaças e oportunidades externas. Baseando-se nessa análise, é possível traçar os objetivos e definir as estratégias da Organização para alcançá-los. No âm-bito da comunicação organizacional, o planejamento estratégico demanda antes de tudo, na visão de Kunsch (2011, p. 110), uma compreensão ampla da comunicação, capaz de integrar todas as suas subáreas:

Planejar e administrar a comunicação hoje, no contexto de uma sociedade complexa diante de um ambiente de mercado alta-mente competitivo, requer do gestor responsável conhecimentos em planejamento, gestão e pensamentos estratégicos e bases científicas da própria área da Comunicação que ultrapassem o nível das técnicas e de uma visão linear, cujos roteiros muitas vezes ignoram condicionamentos externos e possíveis conflitos.

Desta forma, todas as ações comunicativas de setores tão diversos como marketing, publicidade, assessoria de imprensa, gestão de redes sociais ou de mídias digitais precisam ser norteadas por um único pla-nejamento estratégico integrado, estruturado de forma a agregar valor à organização, “[...] devendo ajudar as organizações no cumprimento de sua missão, na consecução dos objetivos globais, na fixação pública de seus valores e nas ações para atingir seu ideário de visão no contexto de uma visão de mundo” (KUNSCH, 2011, p. 115). Um planejamento estra-tégico que não leve em conta esses aspectos, ou que não abranja todas as áreas relacionadas à comunicação, provavelmente não apresentará resultados efetivos.

É preciso considerar ainda a transitoriedade que permeia o ambiente organizacional. Entendidas como sistemas abertos e complexos, as or-ganizações estão em constante processo de mutação, o que implica uma permanente adaptação dos profissionais. Justamente por isso se destaca a importância da constituição não de planos de gestão, mas de planejamen-tos estratégicos capazes de se adaptar ao dinâmico desafio de alinhar a

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comunicação organizacional aos desafios e objetivos da instituição, seja ela privada, pública ou do terceiro setor.

O planejamento estratégico aplicado à comunicação organizacional demanda antes de tudo a adoção de um olhar amplo, complexo e aberto. É preciso levar em conta a missão, a visão, os valores e os objetivos da organização como um todo em sua concepção. Simultaneamente, é impres-cindível que esse planejamento envolva todos os setores e profissionais ligados à comunicação, integrando-os sob um amplo e único direcionamento.

Cultura Organizacional

A cultura organizacional é o conjunto de valores compartilhados por um grupo de indivíduos inseridos em uma mesma organização. Marchiori (2009, p. 294) entende que o processo de criação de significados que origina a cultura ocorre através da interação entre esses sujeitos: “Objetivamente, a cultura se forma pela atuação dos grupos e fomenta o que se pode cha-mar de ‘personalidade da organização’. Os grupos relacionam-se, desen-volvendo formas de agir que vão sendo incorporadas”. Ao longo do tempo certas concepções e comportamentos acabam tornando-se naturais em cada espaço organizacional.

Marchiori (2009, p. 294) destaca que esse processo ocorre através da comunicação entre os sujeitos: “Cultura e comunicação têm uma das relações mais íntimas do mundo humano do conhecimento”. Da mesma maneira que a cultura influencia a construção e os resultados da comu-nicação organizacional, a eficiência do processo comunicacional acaba por influir também na cultura da instituição. Daí por que os profissionais de comunicação precisam trabalhar a cultura organizacional de forma estratégica.

Se cultura é aperfeiçoamento, enriquecimento do homem, e comunicação é construção de significado e inter-relação, cultura e comunicação são, com certeza, recursos indissociáveis, estra-tégicos e responsáveis pelo desempenho das organizações. É preciso olhar para cultura e comunicação como um processo de desenvolvimento das organizações (MARCHIORI, 2009, p. 295).

A identificação de problemas e de oportunidades, a construção de novos canais que viabilizem um fluxo horizontal de comunicação e o estímulo ao diálogo e à qualificação do processo comunicacional produzem de forma

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gradual positivas consequências sobre a cultura das organizações. Trata-se de procedimentos com efeitos, em geral, em longo prazo, mas com gran-de capacidade de influência na melhora do desempenho organizacional. “Afirmo que a dimensão da comunicação é estratégica porque envolve, afeta e constrói a realidade de uma organização” (MARCHIORI, 2009, p. 294).

É preciso considerar, entretanto, que não existe uma cultura única. Enquanto alguns valores e referências são partilhados por todos, outros podem ocorrer apenas em pequenos grupos. Ao mesmo tempo, dentro de uma mesma empresa pode haver entendimentos contraditórios, ambíguos, compreensões que se contrapõem dependendo dos sujeitos e grupos. A adoção de estratégias de ação capazes de qualificar o fluxo comunica-cional pode ser um caminho para qualificar a construção permanente da cultura das organizações.

ASSESSORIA DE IMPRENSA NA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL DO DETRAN

O Departamento Estadual de Trânsito é uma autarquia vinculada à Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Foi criado em 1996 para “gerenciar, fiscali-zar, controlar e executar, em todo o território do Estado, as atividades de trânsito, nos termos da legislação própria”4 e, na condição de autarquia, possui quadro de pessoal próprio, além de autonomia administrativa e fi-nanceira. Sua gestão está a cargo da presidência, da Junta Administrativa de Recurso de Infrações (Jari), do Conselho Consultivo e do Conselho de Administração.

A Assessoria de Comunicação Social é subdividida nas atividades de Assessoria de Imprensa, Relações Públicas e Publicidade e conta com oito servidores efetivos selecionados através de concurso público – o que resulta em baixa transitoriedade de pessoal na equipe –, além de três estagiários.

Para o estudo de caso que embasa este artigo, foi realizada uma en-trevista individual semiaberta em profundidade com a coordenadora de comunicação do Detran. As perguntas basearam-se em um roteiro semies-truturado, mas, seguindo o procedimento-padrão desse tipo de entrevista, foram adaptadas e alteradas conforme as respostas fornecidas. O objetivo principal era buscar respostas para os cinco questionamentos principais

4 Disponível em: <http://www.detran.rs.gov.br>. Acesso em: 2 maio 2013.

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deste estudo: como os assessores de imprensa inserem-se no novo contexto complexo das organizações globalizadas? De que forma ocorre o processo de produção das políticas comunicacionais pelos assessores de imprensa do Detran? Como são definidas as principais técnicas, procedimentos e métodos de trabalho? De que maneira as assessorias de imprensa inte-gram suas estratégias de trabalho ao planejamento de comunicação or-ganizacional? Como a cultura organizacional é influenciada e influencia a construção das estratégias de assessoria de imprensa?

A conversa ocorreu no dia 29 de maio de 2013, na sede do órgão. Participaram apenas a pesquisadora e a entrevistada, que, para fins de preservação de sua identidade, chamaremos aqui de Maria. As informações coletadas na entrevista serão analisadas a partir das quatro categorias definidas a priori – organização, comunicação organizacional, planejamento estratégico e cultura organizacional.

Organização

A primeira categoria proposta é organização, amparada em Edgar Morin, através da qual procuramos estudar como os Assessores de Imprensa inserem-se no novo contexto complexo das organizações globalizadas. No caso estudado, o Detran é uma autarquia e, portanto, ao mesmo tempo em que possui liberdade para se autogerir, desfrutando de relativa autonomia para encontrar os caminhos que melhor convêm às suas necessidades, também responde política e administrativamente ao Governo do Estado. Na prática, isso significa que o setor de Comunicação realiza reuniões semanais com a Secretaria Estadual de Comunicação para alinhar suas políticas às empregadas pelo Governo, ao mesmo tempo em que busca fora desse âmbito soluções para seus problemas de comunicação.

A entrevistada relata que a necessidade permanente de reinvenção, especialmente na formulação de estratégias de prevenção a acidentes de trânsito, faz com que o setor estude modelos adotados por organizações de outros países, como França, Espanha e Argentina. Ou seja, ao mesmo tempo em que possui uma forte ligação local, busca crescer através da inspiração e do estabelecimento de parcerias com instituições de diversos países.

Esse fato pode ser observado no próprio site do órgão (http://www.de-tran.rs.gov.br/), onde são replicadas campanhas educativas e ações promo-vidas por organizações de diversas partes do mundo, como a Sussex Safer Roads, do Reino Unido, o Ministério dos Transportes da República Tcheca

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e os Carabineiros do Chile. A troca com essas e várias outras instituições agregou novos conhecimentos e ideias, entre elas a reinvenção da relação com os veículos de comunicação através da formulação de parcerias para a concretização de campanhas próprias de prevenção a acidentes.

No cenário das organizações globalizadas, mesmo instituições de ca-ráter local, como é o caso do objeto deste estudo, que é responsável pela gestão do trânsito do Estado do Rio Grande do Sul, estão de alguma for-ma conectadas com instituições do mundo todo. O Detran, apesar de não estar diretamente inserido no mercado econômico mundial, relaciona-se com organizações de diversas outras partes do globo. Os assessores de imprensa e demais profissionais da comunicação observam as práticas executadas, trocam experiências e estabelecem parcerias a fim de quali-ficar o trabalho realizado e perseguir a missão institucional.

Comunicação Organizacional

Na segunda categoria do estudo, analisaremos de que forma ocorre o processo de produção das políticas comunicacionais pelos assessores de imprensa do Detran e como são definidas as principais técnicas, procedi-mentos e métodos de trabalho.

A primeira frase dita pela entrevistada, em resposta à questão inicial proposta (quais os principais procedimentos empregados pelos assessores de imprensa?), já reflete um dos aspectos abordados constantemente ao longo da conversa: a preocupação de se realizar um trabalho conjunto entre todos os setores. Maria diz que, “na verdade, como contamos com profissionais das três áreas, acabamos fazendo um trabalho superintegra-do”. Essa resposta, especialmente por ter sido dada de forma introdutória a uma pergunta que não se referia especificamente ao tema – além de ter sido um ponto abordado várias vezes –, indica que a prática de um traba-lho conjunto não apenas é uma realidade no cotidiano do setor, como está entre os grandes norteadores na definição dos procedimentos de trabalho e das políticas de comunicação de forma geral.

Apesar dessa constatação inicial, algumas ações são relatadas como sendo de responsabilidade específica da equipe de Assessoria de Imprensa, entre as quais o atendimento às demandas dos meios de comunicação e a produção e o envio de releases. Esta última, segundo a entrevistada, é realizada com base em demandas do público e da direção (diretor-pre-sidente, diretor administrativo e financeiro e diretor técnico) e outras

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necessidades que surgem no dia a dia da organização. Conforme explica, “a pauta é diária, depende do que está acontecendo. Eventos, nova legis-lação, alguma medida que o Detran está implantando”. Outra ferramenta citada por Maria como empregada de forma indicativa da necessidade de produção de releases é a Assessoria de Atendimento ao Cidadão. “O recebimento de um volume expressivo de dúvidas em áreas determinadas, por exemplo, sobre habilitação para motociclistas, nos alerta para que façamos um trabalho nessa área.”

Assim, pode-se perceber que a produção e a difusão de informações por meio de releases e sugestões de pautas aos veículos de comunicação não seguem diretamente um planejamento estratégico de longo prazo, mas encontram-se mais ligadas às necessidades e às demandas diárias do órgão. Porém, ao realizar a divulgação e a cobertura de eventos e de campanhas institucionais, a Assessoria de Imprensa acaba por se integrar ao planejamento global da Assessoria de Comunicação, ou seja, mesmo que não realize um planejamento estratégico de longo prazo para a produção de releases, seu trabalho acaba indiretamente sendo pautado por aconte-cimentos e campanhas que norteiam de forma mais ampla as estratégias de comunicação do órgão.

O fato de seguir uma pauta diária, de acordo com as demandas de todos os funcionários e setores do órgão, do público externo, pautas impostas pela mídia, enfim, provenientes dos mais diversos públicos, sugere ainda que a Assessoria de Imprensa realiza uma troca constante com o meio onde está inserida. Os diferentes setores da instituição pautam a Assessoria de Imprensa, esta fornece pautas aos veículos de comunicação ao mesmo tempo em que é pautada por eles – indagações ou sugestões de jornalistas podem acabar gerando um release, por exemplo.

Esse fato pode ser explicado através de dois dos princípios propostos por Morin: do Anel Retroativo e do Anel Recursivo. O princípio do Anel Retroativo diz que causa e feito agem constantemente um sobre o outro. No caso estudado, poderíamos exemplificar com a seguinte situação hipotética, mas que reflete o dia a dia do setor. Um servidor técnico em trânsito alerta a Assessoria de Imprensa sobre a necessidade de divulgar uma operação de prevenção a acidentes. O causador, o funcionário, provoca como efeito a produção de um release pela Assessoria, mas este acaba transformando-se em causa no momento em que os assessores enviam o texto à imprensa, e o efeito é sua publicação em um jornal local. Causa e efeito trocam constantemente de posição, e um efeito (a publicação do

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texto no jornal) pode se transformar em um causador de diversos outros efeitos (como o atendimento de solicitações de entrevistas por outros veículos de comunicação informados a partir da matéria publicada ou a produção de matéria que esclareça novos pontos de dúvidas levantados pelos veículos de comunicação).

O princípio do Anel Recursivo possui matriz similar à do Anel Retroativo, mas volta-se especialmente à questão da produção, defendendo que a causa produz um efeito, que acaba por produzir uma causa. Quando um Assessor de Imprensa produz um texto, por exemplo, ele também é “produzido” por esse texto, ou seja, esse material o impacta e o transforma, num processo circular de autoprodução e auto-organização. Acontece o mesmo se ob-servarmos o setor como um todo: o trabalho de desenvolvimento de ações comunicativas para um órgão cuja missão é a educação dos cidadãos para o trânsito acaba transformando as políticas de comunicação do setor em ações de “defesa da vida”, como afirma a entrevistada.

Outro ponto importante que pode ser observado a partir da constatação de que a produção de releases pelos jornalistas está ligada à constante troca de informações com os diversos públicos é que a atividade possui múltiplas finalidades, desde elucidar dúvidas dos motoristas até promover a conscientização sobre a segurança no trânsito, passando pela constru-ção de imagem organizacional positiva. Essa postura está de acordo com o modelo de comunicação organizacional defendido por Kunsch (2011, p. 115), que persegue um objetivo maior do que a mera propaganda institu-cional: “[...] as ações comunicativas precisam ser guiadas por uma filosofia e uma política de comunicação integrada que considerem as demandas, os interesses e as exigências dos públicos estratégicos e da sociedade”.

Além das ações já citadas, atendimento à imprensa e produção de releases, segundo a entrevistada a Assessoria de Imprensa é responsável também pela captura e pelo arquivamento de fotografias, atualização do site do órgão e de todos os meios digitais, como página no facebook, fanpage e twitter da Balada Segura, blog da Década Mundial das Campanhas de Segurança no Trânsito, produção de material para a Intranet. Promove ainda a clipagem de revistas e dos principais jornais impressos da capital e do interior, além da Folha de São Paulo e do Estadão, internet, rádio e televisão. O clipping impresso é arquivado, digitalizado e disponibilizado para consulta externa no site do órgão. A clipagem é ainda avaliada com o intuito de se detectar as reportagens positivas e as negativas publicadas em relação ao órgão, assim como as editorias onde foram disponibilizadas.

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Ao ser questionada sobre o processo de seleção dessas ferramentas, ou seja, o porquê de se empregar especificamente esses procedimentos, Maria relatou que foi uma das primeiras profissionais da área a ingressar no Detran. “Eu e a Eunice, que fomos as primeiras a chegar, praticamente implantamos a Assessoria de Imprensa, com base em nosso conhecimento, até porque para o concurso tivemos que estudar o assunto”. A resposta indica uma escolha natural, com base nas principais técnicas sugeridas pelos teóricos para a área, sem nenhuma pesquisa, seleção ou planejamen-to em função dos objetivos e características específicas da organização.

Da mesma forma, a realização de um trabalho integrado entre jornalis-tas, publicitários e relações públicas parece ter suas raízes na montagem do setor e nas demandas que surgiram no período. “Como temos as três áreas, acabamos trabalhando também com organização de eventos, na parte de publicidade”, relatou, num indício de que a integração entre as áreas remete à história de constituição do setor.

A entrevistada defende, entretanto, que elencar os itens acima não é suficiente para compreender todo o trabalho executado pela Assessoria de Imprensa, justamente porque há uma atuação conjunta entre os setores em todas as ações desenvolvidas. Para exemplificar esse fato, fala sobre a campanha Balada Segura, iniciada no mês de junho de 2013 e prevista para se estender até janeiro de 2014: “Tenho uma profissional do núcleo de jornalismo e outra do núcleo de publicidade destacadas exclusivamente para trabalhar com esse projeto. Então a assessoria de imprensa vai além dessas atividades”.

Planejamento Estratégico

Através da terceira categoria a priori proposta, Planejamento Estratégico, em Margarida Kunsch, buscamos compreender de que maneira a Assessoria de Imprensa integra suas estratégias de trabalho a um planejamento de comunicação organizacional. A defesa de uma atuação integrada entre os profissionais das três áreas que compõem a Assessoria de Comunicação do Detran – Relações Públicas, Assessoria de Imprensa e Publicidade – é constantemente abordada no decorrer do diálogo. O primeiro apontamento da entrevistada refere-se a esse fato, e ela torna a citar a questão como crucial em vários momentos, inclusive quando perguntada sobre o que significa, em sua concepção, trabalhar a comunicação de forma estratégica responde: “É colocar todo o teu staff, os

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diferentes entendimentos, as diferentes vivências, com um único foco”. Em outro momento, as perguntas sobre as funções da Assessoria de Imprensa suscitam a seguinte resposta:

É difícil para mim falar só na Assessoria de Imprensa, porque está tudo tão imbricado. Uma matéria que a gente faz tem uma implicação, um viés. Às vezes vou revisar uma matéria que alguém fez e tenho que conversar com a publicitária. Então é muito difícil falar só da Assessoria de Imprensa.

Essa postura adotada pelo setor de promover a troca constante entre os profissionais é corroborada por Kunsch, que tem entre os preceitos básicos de sua obra a disseminação de políticas de comunicação organi-zacional integradas. A autora, entretanto, vai além, ao dizer que “o que defendemos é a adoção, por parte das organizações, de uma filosofia da ‘comunicação integrada’, ou seja, a não fragmentação dessa comunicação em suas subáreas” (KUNSCH, 2011, p. 79). Essa perspectiva de eliminação completa das subáreas, contudo, ainda parece distante da realidade das organizações brasileiras.

Cada instituição possui uma situação distinta, seja em número de pro-fissionais, formações ou responsabilidades. No caso estudado, a estrutura do setor segue o modelo básico sedimentado na cultura das instituições, em que as três formações da Comunicação Social – jornalistas, relações-públi-cas e publicitários – atuam juntas em um mesmo setor ou departamento, chamado de Coordenadoria de Comunicação, Assessoria de Comunicação ou outros termos semelhantes. Mas, apesar de ligados a um mesmo setor, cada profissional ou grupo possui uma série de tarefas e funções espe-cíficas bem definidas. Em linhas gerais, o contato com a imprensa fica a cargo dos jornalistas, os publicitários lidam com a veiculação de mídia paga e aos relações-públicas cabe intermediar o relacionamento entre os stakeholders da instituição.

Esse cenário repete-se no Detran, onde cada área e profissional pos-suem responsabilidades específicas, ou seja, há uma divisão fundamental de responsabilidades, e o Departamento ainda não encontrou caminhos para promover a não fragmentação defendida por Kunsch, apesar de bus-car constantemente a integração. A entrevistada exemplifica esse fato ao citar a montagem de campanhas de comunicação:

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A agência apresenta uma campanha, a campanha acaba circu-lando nos três núcleos, e cada um coloca seu olhar sobre ela. Eu vou olhar como jornalista, o publicitário vai ter um outro olhar, o relações-públicas, outro. [...] Por exemplo, semana passada fizemos uma reunião de brain5 com todos para pensar o conceito da próxima campanha, da Operação Viagem Segura.

Essa procura pela conexão parece ocorrer também com os demais se-tores do Detran, conforme detalharemos na próxima categoria analisada, a cultura organizacional, e com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Como se trata de uma autarquia pública, o órgão está submetido às políticas de comunicação governamentais. Quando questionada sobre a integração entre a política de comunicação do Detran e a do Governo do Estado, Maria conta que “hoje a relação entre a Assessoria de Comunicação do Detran e a Secretaria de Comunicação está totalmente integrada”. Para exemplificar como ocorre na prática esse relacionamento, diz:

Todas as nossas reuniões semanais com a agência contam com um representante da Secretaria de Comunicação. Se temos um projeto a implementar, buscamos a Secom para trocar ideias, conversar se está de acordo com a política de comunicação da Secretaria. Então existe uma troca de ideias constante.

Assim, através dos aspectos abordados pela entrevistada, podemos inferir que há uma preocupação intensa pela promoção de políticas de comunicação integradas, tanto entre os profissionais que trabalham di-retamente com a comunicação quanto entre estes e demais funcionários, Governo do Estado, imprensa, população e outros públicos da autarquia. Há uma busca pela construção conjunta de estratégias através do diálogo.

Essas políticas de comunicação são construídas de forma permanente, de acordo com o dia a dia do setor, mas não obedecem diretamente a um planejamento estratégico, que, conforme a definição de Kunsch, seria o responsável por formatar as grandes decisões de gestão em longo prazo. A única ferramenta de longo prazo mencionada durante a entrevista é a produção de relatórios semestrais, posteriormente reunidos em um relatório anual entregue à direção, com uma descrição detalhada sobre

5 Brainstorm é um processo através do qual um grupo determinado de pessoas se reúne para expor seus pensamentos, com o intuito de gerar ideias inovadoras para um projeto.

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as principais ações realizadas. Na avaliação da entrevistada, esse do-cumento valoriza a Assessoria de Comunicação junto à direção, mede a necessidade ou não de incremento no número de profissionais e é capaz de indicar áreas do Detran sobre as quais “é preciso aumentar o número de matérias, de informações para a sociedade; nos traz um indicativo de onde precisamos trabalhar mais”.

Assim, o documento viabiliza uma avaliação de um período anterior e apoia a projeção de iniciativas para o próximo ano, mas não resulta em um planejamento estratégico nos moldes da compreensão de Kunsch. A autora defende que esse planejamento seja dividido em etapas, que vão do diagnóstico, com a avaliação dos pontos fortes e fracos e das ameaças e oportunidades externas, passando pela definição dos objetivos, até chegar às estratégias que serão adotadas para se atingir os objetivos propostos.

Quando questionada sobre as principais dificuldades enfrentadas para concretização de um planejamento estratégico de comunicação, a coordenadora cita as questões sobre as quais não se tem controle, as chamadas crises organizacionais. “Muitas coisas não estão no alcance da Comunicação”, diz. Ela resgata um fato ocorrido na semana anterior à realização da entrevista, quando o corregedor-geral do órgão foi autu-ado pela Brigada Militar por dirigir embriagado. Na ocasião, a autarquia divulgou uma nota oficial em que confirmou o afastamento do servidor do cargo, reprovou sua conduta e concluiu afirmando que “O Detran/RS seguirá trabalhando em sua premissa, que é a defesa da vida. O fato re-gistrado no sábado (18) não representa a postura dos demais servidores, comprometidos com a missão da autarquia”.

Na avaliação da coordenadora, situações de crise como a citada são as mais complicadas de lidar porque fogem a qualquer planejamento estratégico que possa vir a ser elaborado. “Repercutiu negativamente em toda a imprensa, mas tu não tens ingerência sobre isso, a não ser dar uma resposta firme, de afastamento da pessoa do cargo. [...] Você não tem ingerência sobre a vida particular das pessoas, mas a repercussão é negativa para o Detran.”

Para Kunsch, entretanto, a necessidade de se contar com um plane-jamento de longo prazo surge não apenas como uma ferramenta para se ampliar a efetividade das ações comunicativas, mas também como um meio de redução das incertezas através de uma atitude proativa de prevenção.

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Cultura Organizacional

A última categoria de análise é a cultura organizacional, em Marlene Marchiori. Essa categoria busca a compreensão de como a cultura orga-nizacional é influenciada e influencia a construção das estratégias de assessoria de imprensa.

Nesse aspecto, é importante analisar a relação existente entre os Assessores de Imprensa e os demais funcionários da instituição. A coor-denadora relata que os colegas procuram de forma costumeira o setor, a fim de narrar fatos ocorridos ou previstos sob suas respectivas alçadas que, acreditam, deveriam receber um tratamento dos profissionais da comunicação. “Os diretores e os colegas já estão atentos à necessidade de passar para a Comunicação determinada novidade, determinada alteração. Os setores já contam com o nosso apoio”, diz Maria.

Isso mostra que está solidificada no órgão a cultura do diálogo entre os Assessores de Imprensa e os demais funcionários. Para a entrevistada, o fato de a Assessoria ter conquistado o que ela chama de “um espaço sólido dentro do Detran” é interpretado de forma positiva, pois, em suas palavras, “isso é uma demonstração de valorização da área”. Além disso, significa que ocorre uma relação aberta de diálogo com os demais setores da instituição.

Através da entrevista realizada, podemos inferir ainda que no Detran há uma relação íntima entre a missão do órgão, de “Promover a gestão do trânsito com qualidade, ética e transparência, educando os cidadãos e fazendo cumprir as normas em defesa da vida”, e o trabalho dos servidores da área de comunicação. Quando questionada sobre o objetivo final da Assessoria de Imprensa e de Comunicação como um todo, a entrevistada responde: “Como a própria marca do Detran diz, é a Defesa da Vida e a prestação de serviço”.

Essa motivação final parece estar plenamente imbuída na cultura orga-nizacional e transpassa todas as ações do órgão, especialmente na área da comunicação. Ao longo da entrevista, a coordenadora defende a busca pela segurança no trânsito de forma enfática, inclusive deixa transparecer que essa cultura ultrapassa a questão profissional e acaba transformando-se também em uma motivação pessoal. Ela diz que “trabalhar no Detran é uma coisa que vicia” e “o trabalho é recompensador”.

Aponta ainda que “é um trabalho incansável, que não tem fim, há uma necessidade de reinvenção a cada dia, a cada campanha, tens que criar

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coisas novas”. Ela cita como exemplo a ação realizada no último verão, quando o órgão propôs que cada veículo de comunicação elaborasse uma campanha própria de segurança no trânsito, que seria apoiada com verba pelo órgão. “É o veículo de comunicação falando para seus ouvintes, seus leitores, seus telespectadores, a empresa toda se envolvendo no projeto”, comenta.

Hoje sentimos os veículos de comunicação mais engajados. Temos um forte apoio editorial. A rádio Gaúcha vai ter o repórter Balada Segura, da meia-noite às quatro da manhã, de quarta a sábado, dando notícias da noite. Escolhemos um veículo de cada grupo. Teremos um fórum de debate a cada 15 dias na rádio Guaíba. Queremos levar um pai, um garoto de 19 anos, para debater com especialistas na área de trânsito, de saúde. Mas quem co-mandará o fórum são jornalistas da grade de programação da rádio. Eles estão realmente envolvidos no projeto. Chamamos os jornalistas para uma tarde de imersão nas questões de trânsito e a ideia é evoluir com isso.

A cultura organizacional e a missão do órgão como um todo, ao estarem intimamente ligadas com o trabalho do setor de Comunicação, acabam sendo levadas até o público através de parcerias inovadoras desenvolvidas com os veículos de comunicação. “Acreditamos que só a veiculação de campanhas publicitárias, a compra de mídia avulsa para veiculação das campanhas, não basta, então estamos trazendo os veículos de comunicação para dentro da causa”, diz. Ou seja, a cultura organizacional de promoção de campanhas de conscientização não apenas permeia o trabalho de todos os funcionários do órgão, integrando-os a um grande objetivo final, como ultrapassa as barreiras institucionais para embeber também a relação com os públicos externos.

EVIDÊNCIAS PROVISÓRIAS

As organizações do século XXI foram confrontadas com a necessi-dade de abandonar modelos funcionalistas de gestão para sobreviver no mundo econômica e culturalmente globalizado. A conexão em rede proporcionada pelas novas tecnologias informacionais ampliou os ca-nais de troca e elevou o potencial de comunicação a uma escala global, conferindo ainda mais poder aos cidadãos. Da produção acadêmica ao

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mercado corporativo é difundida a ideia de que as organizações precisam se adaptar com urgência a essa nova e dinâmica realidade mundial. A comunicação, mais do que mera ferramenta, é parte fundamental nesse processo, já que é um dos elementos responsáveis pela própria composi-ção das organizações – para Kunsch (2011), os conceitos de comunicação e de organização são indissociáveis.

Ver a comunicação organizacional de forma abrangente significa entender que ela está presente em todas as ações, gestos, números, discursos, até mesmo no silêncio, ou seja, em todas em interações ocor-ridas entre os diversos públicos da organização – seus stakeholders. Essa compreensão implicou uma reconstrução das ações adotadas pelas em-presas, que passaram a imprimir uma visão estratégica à comunicação organizacional, integrando as diversas áreas na construção de políticas conjuntas de solidificação de uma identidade e em sua projeção na forma de uma imagem favorável.

Essa busca pela construção integrada de políticas comunicacionais es-tratégicas nas organizações é uma necessidade defendida por pesquisadores e profissionais do mercado ao redor do mundo e aplica-se aos contextos mais diversos. Na presente análise, estudamos como os Assessores de Imprensa das organizações públicas do Estado do Rio Grande do Sul estão respondendo a essa demanda. Para isso, foi realizada uma pesquisa de campo com o Detran-RS, através de uma entrevista em profundidade com a coordenadora da Assessoria de Comunicação dessa entidade autárquica.

A Assessoria de Imprensa do Detran, constituída por três jornalistas e dois estagiários, é responsável pela realização de tarefas como aten-dimento à imprensa, produção e distribuição de releases, atualização de redes sociais, fotografia e clipping. São ações-padrão da atividade, realizadas na esfera pública com o intuito principal de manter um canal de comunicação entre o Governo e a mídia, com o objetivo de informar a sociedade sobre os atos levados a cabo pelo serviço público. A definição pela escolha da realização dessas ações em detrimento de outras ocorreu ao longo do tempo seguindo os procedimentos usuais da atividade. Ou seja, as principais técnicas, procedimentos e métodos de trabalho empregados não foram definidos com base em estudos específicos sobre a realidade da autarquia e não obedecem a um planejamento estratégico com base em suas demandas e objetivos, mas foram empregados com o passar do tempo baseados nos conhecimentos teóricos preliminares dos responsáveis e na observação das práticas adotadas por profissionais de outras organizações.

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Apesar de as atividades clássicas estarem presentes no dia a dia do setor, o órgão parece ter superado a visão funcionalista de uma Assessoria de Imprensa engessada, responsável apenas pela transferência de infor-mações. Os jornalistas atuam de forma integrada com os publicitários e os relações-públicas, além de promoverem uma troca contínua com os demais públicos estratégicos, como funcionários, condutores de veículos e imprensa. As diversas partes interagem, num processo contínuo e mútuo de constitui-ção de uma política global focada na missão central da autarquia, a “defesa da vida”, e a comunicação é empregada como uma ferramenta estratégica para se atingir esse objetivo. As políticas comunicacionais empregadas pelos assessores de imprensa do Detran são construídas com base em demandas diárias e ações planejadas a curto e médio prazo, mas focando-se sempre no cumprimento da missão e na solidificação da identidade do órgão.

A missão do Detran de “promover a gestão do trânsito com qualidade, ética e transparência, educando os cidadãos e fazendo cumprir as normas em defesa da vida” está impregnada na cultura organizacional e influencia diretamente a construção dessas estratégias de Assessoria de Imprensa. A autarquia realiza ações informativas e de fiscalização de forma a pro-mover a conscientização sobre as regras de trânsito e reduzir acidentes. Essas iniciativas orientam o trabalho dos Assessores de Imprensa, que é definido com base em ações de outros departamentos, como as operações de fiscalização, ou de dentro da própria Assessoria de Comunicação, como campanhas educativas de conscientização. Estas são planejadas através de interações frequentes e espontâneas entre todos os funcionários, numa relação aberta de troca e diálogo que faz com que a comunicação organi-zacional seja influenciada pela cultura local.

Assim são produzidas campanhas, reportagens são publicadas em veículos de comunicação, informações são divulgadas via Intranet, enfim, uma série de ações comunicativas são desenvolvidas e impactam os funcio-nários, produzindo novas atitudes, alterando sua percepção da empresa e modificando a relação com os colegas. Ou seja, não apenas a cultura induz a comunicação organizacional, mas as ações comunicativas acabam influen-ciando a cultura organizacional, numa relação recursiva: a cultura produz a comunicação organizacional ao mesmo tempo em que é produzida por ela.

Conforme expomos anteriormente, a integração do trabalho da três áreas que compõem a Assessoria de Comunicação do Detran é uma das diretrizes principais do setor e efetivamente ocorre através do desenvolvi-mento conjunto de ações. Mas a transdisciplinaridade, a não fragmentação

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da comunicação em subáreas, ainda parece muito distante, inclusive utópica se confrontada com a realidade atual. Existem três áreas compostas por profissionais de distintas formações, cada uma com habilidades e respon-sabilidades específicas, mas que trabalham juntas com um único intuito final, que é a concretização de ações comunicativas voltadas à promoção da missão do órgão, de defesa da vida e prestação de serviços.

Essa integração entre profissionais ultrapassa os muros locais e leva os comunicadores a buscar novos conhecimentos em iniciativas desenvol-vidas ao redor do mundo. Campanhas de educação no trânsito voltadas à prevenção de acidentes desenvolvidas em outros países da América Latina, América do Norte e Europa inspiram ações locais. Por mais que o Detran seja uma autarquia de caráter local e não esteja economicamente ligado ao mercado mundial, está conectado com o resto do mundo através de re-des de comunicação que permitem a troca de ideias e projetos. Assim, os Assessores de Imprensa do órgão estão culturalmente inseridos no novo contexto complexo das organizações globalizadas, através do estabeleci-mento de relações com instituições distantes fisicamente e da adaptação de conceitos e iniciativas à realidade local.

O trabalho dos assessores de imprensa do Detran é orientado por ações de curto e médio prazo, com campanhas e operações de fiscalização diri-gidas a promover os valores do órgão e apoiar seus objetivos. Ferramentas como o relatório anual de atividades da Assessoria de Comunicação via-bilizam uma avaliação do trabalho realizado, assim como pesquisas de trânsito e registro das demandas via Assessoria de Atendimento ao Cidadão permitem identificar pontos que precisam ser mais bem trabalhados pela comunicação. Há um processo de diagnóstico contínuo da situação através de uma série de ferramentas. Não existe, entretanto, um único Planejamento Estratégico de Comunicação que promova um diagnóstico formal e amplo da situação atual, pontos fortes e fracos, bem como dirija a definição de metas e estratégias comunicacionais de longo prazo.

Assim, os Assessores de Imprensa do órgão atuam de forma conjunta com os demais profissionais de comunicação e de outros setores. Apesar de o setor ser fragmentado em subáreas, possui uma política integrada, há um envolvimento de todos em torno da missão em comum de defesa da vida e prestação de serviços. Conta com relativo planejamento estra-tégico de Comunicação Organizacional, na medida em que reúne todas as forças organizacionais em torno de objetivos comuns, mas não há um planejamento estratégico formal e amplo de longo prazo.

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REFERÊNCIAS

DUARTE, Jorge. (Org.). Assessoria de Imprensa e Relacionamento com a Mídia. Teoria e Técnica. São Paulo: Atlas, 2008.

KUNSCH, Margarida M. Krohling. (Org.). Comunicação Organizacional. São Paulo: Saraiva, 2011.

MARCHIORI, Marlene. As interconexões entre cultura organizacional e or-ganizações. In: KUNSCH, Margarida M. Krohling. (Org.). Comunicação Organizacional. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2. p. 293-320.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2011.

SCROFERNEKER, Cleusa Maria de Andrade. O Diálogo Possível - Comunicação Organizacional e Paradigma da Complexidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.

TORQUATO, Gaudêncio. Tratado de Comunicação Organizacional e Política. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

WELS, Ana Maria Córdova. As assessorias de comunicação social dos órgãos públicos. In: SCROFERNEKER, Cleusa Maria de Andrade. O Diálogo Possível - Comunicação Organizacional e Paradigma da Complexidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 69-106.

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A SUBJETIVIDADE DE CLARICE LISPECTOR E A DITADURA MILITAR: REFLEXOS DA ÉPOCA NUM

CONTEXTO DE CENSURA

Isabella Smith Sander6

INTRODUÇÃO

Ao se refletir sobre o que foi escrito dentro da área jornalística duran-te a ditadura militar no Brasil, pensa-se logo nos periódicos alternativos, expondo os problemas e a censura da época e, na outra ponta, na grande mídia calando quanto a tudo o que estava acontecendo. Entretanto, é de se imaginar que não existiam apenas esses dois lados opostos: as limitações quanto ao que escrever eram sentidas em todos os setores do jornalismo – inclusive na grande mídia.

Este trabalho visa realizar uma análise das crônicas Medo da liberta-ção e Esboço do sonho do líder, ambas publicadas por Clarice Lispector em sua coluna no Jornal do Brasil em 31 de maio de 1969. Utilizando como método o Paradigma da Complexidade, de Edgar Morin, e como técnica a Semiologia, de Roland Barthes, a intenção é revelar de que forma a escritora manifestava o que sentia quanto ao momento vivido pelo país à época e quais os reflexos desse momento na sua escrita, levando em conta o seu estilo subjetivo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A escolha das crônicas selecionadas para este trabalho deu-se através de pré-análise. Foram buscadas influências da época da ditadura militar nos textos publicados por Clarice Lispector e, por fim, foi determinada uma coluna que contemplasse esse viés de forma mais clara.

6 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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Os conceitos analisados a priori dentro das crônicas da autora são a Crônica, sob a ótica de Jorge de Sá; o Poder e a Cultura, ambos na concepção teórica de Roland Barthes; e a Ideologia, pela abordagem de Edgar Morin.

A palavra crônica origina-se do grego chronikós e do latim chronica, que significa narração em ordem cronológica (MARTINS, 1984, p. 5). Os registros nomeados assim surgiram no início da era cristã e eram listas ordenadas de ocorrências. Só com o advento dos periódicos os aconteci-mentos começaram a ser aprofundados e analisados. A crônica é o espaço literário dos jornais e das revistas; é uma forma de continuar falando sobre os acontecimentos, porém com um estilo mais artístico.

Até as reportagens – quando escritas por um jornalista de fôlego – exploram a função poética da linguagem, bem como o silêncio, em que se escondem as verdadeiras significações daquilo que foi verbalizado. Na crônica, embora não haja a densidade do conto, existe a liberdade do cronista (SÁ, 1985, p. 9).

O desafio do cronista é transformar situações cotidianas em diálogos sobre a complexidade do ser humano, que, por si só, tem conflitos internos e anseia discuti-los. Vem daí a identificação e a proximidade do leitor com o escritor da crônica. O sucesso do gênero no Brasil deve-se, em grande parte, a isso e à leveza das crônicas. Trata-se de um estilo muito aberto à personalidade de cada autor, pois o único preceito é lidar com o circuns-tancial. Porém, o conceito de circunstancial também é relativo, levando-se em conta que muitos assuntos discutidos são atuais e nunca o deixarão de ser: o trejeito do garçom, a reação arrogante da madame, o jeito de caminhar do homem gordo. Há situações que farão parte do cotidiano do leitor mesmo que a crônica seja vislumbrada anos após sua publicação original. Para ser chamada de literatura, a crônica deve cumprir os prin-cípios básicos da arte de escrever: ensinar, comover e deleitar.

Além de Clarice, muitos outros escritores consagrados escreveram e escrevem, até hoje, crônicas em jornais e revistas. “Amoldá-la [a crônica] à obra literária até a literariedade tem sido o desempenho de expressivos cronistas brasileiros que entrelaçam o fazer jornalístico com o lirismo, a linguagem coloquial com a palavra poética” (MARTINS, 1977, p. 10).

O Poder está automaticamente ligado a qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder, segundo Barthes (1978). O Poder é um objeto não somente político como também ideológico, pois

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aparece em qualquer situação, nas instituições, no ensino. Ele apresenta diferentes manifestações e é, também, uma realidade cultural, porque está presente nos mecanismos do intercâmbio social.

“Plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico” (BARTHES, 1978, p. 12), já que se uma forma de Poder é extinta aparece outra no lugar – não há registro de épocas em que não havia nenhum tipo de poder. O motivo desse ciclo inacabável de poderes é um aspecto inalterável ao longo do tempo: a expressão obrigatória do poder é a linguagem.

Na visão barthesiana, o Poder é conceituado como a Libido Dominante, a energia prazerosa que há no ser humano. É um instinto e está presente em todas as ações das pessoas.

Conforme Barthes (1978, p. 12), não se vê o Poder que reside na língua porque se esquece “que toda língua é uma classificação, e que toda classi-ficação é opressiva”. O semiólogo considera que a língua não é reacionária nem progressista, mas fascista, porque obriga a dizer.

Na língua, portanto, servidão e poder se confundem ineluta-velmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também, e sobretudo, a de não sub-meter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem (BARTHES, 1978, p. 15-16).

Não há como se libertar das correntes da língua, que sempre exerce uma forma de Poder. A sugestão de Barthes (1978) é trapacear. Essa trapa-ça, que permite que se ouça a língua fora do Poder, chama-se Literatura.

A Cultura analisada por Barthes influencia a sociedade em todos os senti-dos – são todas as formas de comunicação, falada, vista ou escrita. “O banco das influências, das fontes, das origens, ao qual se faz comparecer uma obra, um autor” (BARTHES, 1974, p. 94), que o estudioso chama de intertexto.

Na categoria Cultura, é observada pelo semiólogo a ascendência das experiências vividas por cada um no entendimento de mensagens verbais e não verbais. A Cultura é, sob todos os aspectos, uma língua, considerando-se que possui um sistema geral de símbolos, regido pelas mesmas operações.

De acordo com Edgar Morin, a relação das Ideologias com as pessoas que as pregam é mútua: ocorre uma identificação de determinada Ideologia com todo o contexto de vida do reprodutor daqueles ideais, suas necessi-dades, aspirações e experiências. Portanto, quando alguém a ataca, está

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atacando tudo a ela atrelado, e por isso há tanto fervor em defender ideias. Entretanto, ao mesmo tempo em que alguém defende suas ideologias, estas se defendem por seu intermédio (MORIN, 1986, p. 91).

Todo sistema – inclusive o de ideias – tende a degradar-se com o passar do tempo. As ideologias costumam fechar-se e petrificar-se, o que gera seu fim. Contudo, se há um movimento de autorrevisão e auto-organização, dialogando com outros sistemas de ideias, as ideologias podem tornar-se teorias, abrindo-se, mesmo que parcialmente.

Dentro desse contexto, Morin diferencia racionalidade de racionalização. Ele alega que a razão, ou racionalidade, não é natural do Homo sapiens, mas sim a aplicação de princípios de coerência à experiência que se tem. “A racionalidade pode evoluir segundo os dados e segundo os princípios organizadores do discurso (paradigmas)” (MORIN, 1986, p. 135). Ela está na abertura do diálogo da experiência com o mundo exterior. A verdadeira racionalidade, segundo Morin, supõe que o saber nunca está completo e que uma informação nova sempre poderá modificá-lo. Já a racionalização seria fechada para a novidade, pois pode torná-la vulnerável: é a coerência lógica construída “a partir de premissas incompletas ou erradas e/ou a partir de um princípio discursivo mutilador (o paradigma de disjunção--redução)” (MORIN, 1986, p. 137). A racionalização simplifica o real, ao procurar que este obedeça a estruturas predeterminadas.

OPÇÕES METODOLÓGICAS

O método utilizado neste estudo, será o Paradigma da Complexidade, de Edgar Morin, em que se considera a importância de analisar o todo e suas partes, utilizando-se, para isso, da Transdisciplinaridade, ou “além das disciplinas”. Esse termo surgiu com Jean Piaget, em 1970, referente à inclusão do sujeito e à interação sujeito-objeto. A Transdisciplinaridade não prega o domínio sobre as outras disciplinas, mas a abertura de todas elas ao que as atravessa e ultrapassa. Segundo Morin (2003, p. 28), é ne-cessário recusar um conhecimento geral, pois este “escamoteia sempre as dificuldades do saber, ou seja, a resistência que o real impõe à ideia: ele é abstrato, pobre, ‘ideológico’, ele é sempre simplificador”.

A incerteza torna-se socorro: a dúvida sobre a dúvida dá à dúvida uma dimensão nova, a da reflexão; a dúvida através da qual o sujeito se interroga sobre as condições de emergência e

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de existência de seu próprio pensamento constitui, a partir de agora, um pensamento potencialmente relativista, relacionista e autoconhecedor. Enfim, a aceitação da confusão pode se tornar um meio de resistir à simplificação mutiladora (MORIN, 2003, p. 29).

Os sete princípios do Paradigma da Complexidade são o Princípio Sistêmico ou Organizacional – que relaciona o conhecimento das partes com o do todo –; o Princípio Hologramático – inspirado no holograma, cada ponto possui quase toda a informação do objeto –; o Princípio do Anel Retroativo – a causa age sobre o efeito, que age sobre a causa e gera uma autorregulação –; o Princípio Auto-eco-organizacional – os seres vivos se auto-organizam, mas na dependência da cultura em que estão –; o Princípio do Anel Recursivo – ocorre uma autoprodução e uma auto-organização no momento em que o indivíduo produz a sociedade a partir de interações, mas a sociedade, ao mesmo tempo, produz esses mesmos indivíduos, apor-tando-lhes linguagem e cultura –; o Princípio Dialógico – a dialógica entre a ordem e desordem e a organização permite assumir noções contraditó-rias e conceber um fenômeno complexo. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos, que tendem a se excluir –; e o Princípio da Reintrodução daquele que conhece em todo conhecimento – todo conheci-mento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo (MORIN, 1999, p. 34).

Quanto à técnica, optou-se por utilizar a Semiologia, sob a ótica de Roland Barthes, que é concebida como a ciência geral dos signos.

A Semiologia é a ciência geral dos signos. É mais abrangente do que a Linguística, que estuda apenas a linguagem, porque o termo signos pode se referir também a imagens, gestos, vestuários, ou seja, a qualquer coisa que possa significar algo.

O objetivo da pesquisa semiológica é reconstituir o funciona-mento dos sistemas de significação diversos da língua, segundo o próprio projeto de qualquer atividade estruturalista, que é constituir um simulacro dos objetos observados (BARTHES, 1964, p. 103).

A Literatura e a Semiologia conjugam-se e corrigem-se uma a outra, de acordo com Barthes (1978). Por um lado, esmiuçar o texto obriga a perceber as diferenças e impede de generalizar o que não é geral. No entanto, ao mesmo tempo, o olhar semiótico força a recusar o mito da

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criatividade pura. “O Mito deve ser pensado – ou repensado – para que melhor se decepcione” (BARTHES, 1978, p. 36).

Dentro da Semiologia, há três termos: o significante, que é o relato nu e cru da imagem ou texto; o significado, que é a interpretação dessa imagem ou texto; e o signo ou significação, que é a junção do significante com o significado. São essas três instâncias que compõem a análise.

Será feita uma Pesquisa Qualitativa. Conforme Godoy (1995, p. 62), para que um trabalho seja considerado qualitativo, é necessário haver nele as seguintes características: o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como fonte fundamental; o caráter descritivo; o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador; e o enfoque descritivo.

Este ensaio busca responder às seguintes questões: de que modo Clarice Lispector atua dentro das características próprias das crônicas? De que maneira o Poder se situa na coluna analisada? De que forma as crônicas da autora se inserem no contexto histórico, especificamente da ditadura militar, em que foram escritas? E como a Ideologia se manifesta na produção jornalística/literária da colunista? Com base nessas questões, o objetivo geral é estudar as crônicas da escritora, a fim de entender como o contexto histórico-cultural em que eram escritas a influenciava e, em âmbito particular, compreender e explicar como a ditadura militar no Brasil afetava a produção jornalística/literária da autora e, também, de que forma ela lidava com a censura que lhe era imposta.

ANÁLISE

Neste momento do trabalho, será realizada a análise de duas crônicas de Clarice Lispector publicadas em uma só coluna. As quatro categorias a priori selecionadas – Crônica, Poder, Cultura e Ideologia – serão utiliza-das como base, para qualificar a pesquisa. Os textos serão comparados com as características de cada uma dessas categorias, a fim de que haja melhor compreensão deles.

As crônicas Medo da libertação e Esboço do sonho do líder foram pu-blicadas em 31 de maio de 1969, no Jornal do Brasil. A primeira fala sobre o quadro Paysage aux Oiseaux Jaunes, de Paul Klee, enfocando o medo da liberdade que essa pintura traz. Já a segunda é uma história fictícia sobre um pesadelo recorrente de um líder: ele sonha com olhos inexpressivos mirando-o, e, a cada sonho, o número de olhos aumenta, o que lhe dá pavor.

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Medo da libertaçãoSe eu me demorar demais olhando Paysage aux Oiseaux Jaunes (Paisagem com Pássaros Amarelos, de Klee), nunca mais poderei voltar atrás. Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante. Assusta a visão talvez irremediável e que talvez seja a da liberdade. O hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro. A covardia nos mata. Pois há aqueles para os quais a prisão é a segurança, as barras um apoio para as mãos. Então reconheço que conheço poucos homens livres. Olho de novo a paisagem e de novo reconheço que covardia e liberdade estiveram em jogo. A burguesia total cai ao se olhar Paysage aux Oiseaux Jaunes. Minha coragem, inteiramente possível, me amedronta. Começo até a pensar que entre os loucos há os que não são loucos. E que a possibilidade, a que é verdadeiramente, não é para ser explicada a um burguês quadrado. E à medida que a pessoa quiser explicar se enreda em palavras, poderá perder a coragem, estará perdendo a liberdade. Les Oiseaux Jaunes não pede sequer que se o entenda: esse grau é ainda mais liberdade: não ter medo de não ser compreendido. Olhando a extrema beleza dos pássaros amarelos calculo o que seria se eu perdesse totalmente o medo. O conforto da prisão burguesa tantas vezes me bate no rosto. E, antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava – só para não ser livre.

Esboço do sonho do líderO sono do líder é agitado. A mulher sacode-o até acordá-lo do pesadelo. Estremunhado, ele levanta-se, bebe um pouco de água, vai ao banheiro, onde se vê diante do espelho. O que vê ele? Um homem de meia-idade. Ele alisa os cabelos das têmporas, volta a deitar-se. Adormece e a agitação do mesmo sonho recomeça. “Não, não!”, debate-se com a garganta seca.É que o líder se assusta enquanto dorme. O povo ameaça o líder? Não, pois se foi o povo que o elegeu como líder do povo. O povo ameaça o líder? Não, pois escolheu-o no meio de lutas quase sangrentas. O povo ameaça o líder? Não, porque o líder cuida do povo. Cuida do povo?

Sim, o povo ameaça o líder do povo. O líder revolve-se na cama. De noite ele tem medo. Mesmo que seja um pesadelo sem histó-ria. De noite vê caras quietas, uma atrás da outra. E nenhuma expressão nas caras. É só este o pesadelo, apenas isso. Mas cada noite, mal adormece, mais caras quietas vão-se reunindo às outras, como na fotografia em branco e preto de uma mul-tidão em silêncio. Por quem é este silêncio? Pelo líder. É uma

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sucessão de caras iguais como numa repetição monótona de um rosto só. Parece uma terrível fotomontagem onde a inexpressão das caras dá-lhe medo. Nesse painel monstruoso, caras sem expressão. Mas o líder se cobre de suores porque os milhares de olhos vazios não pestanejavam. Eles o haviam escolhido. E antes que eles enfim se aproximassem definitivamente, ele gritou: sim, eu menti! (LISPECTOR, 1999, p. 198-199).

O espaço das crônicas nos periódicos existe para tirar um pouco o foco da objetividade e oferecer algo de viés mais literário e opinativo aos leito-res. O foco normalmente são acontecimentos do cotidiano, mas contados de outras formas. Em Medo da libertação, Clarice conta que sentimentos lhe passam quando ela observa o quadro Paysage aux Oiseaux Jaunes. Essa pintura é do artista Paul Klee, conhecido – possivelmente não por todos – do público-alvo da cronista em sua coluna. Relatando o que sente ao ver essa obra, a colunista transforma algo presente no cotidiano em um diálogo a respeito da complexidade humana, seus medos e sua neces-sidade de liberdade. A vontade de ser mais livre, mas o receio de o ser é uma sensação muito conhecida das pessoas: todo mundo já a sentiu. A referência ao estilo de vida burguês também traz um extra de sentimento de aproximação com o texto por parte de quem o lê. Dessa forma, ocor-rem a identificação e a proximidade do leitor com o texto, características apontadas por Jorge de Sá como necessárias na crônica.

A crônica, como já foi dito antes, precisa seguir os preceitos básicos da arte de escrever, caso queira ser considerada literatura. São eles: ensinar, comover e deleitar. Comover e deleitar são duas características que já estão implícitas nessa crônica e também na outra, Esboço do sonho do líder, em função do estilo de escrita empregado pela autora, muito emotivo e no qual há preocupação com a estética do texto. Quanto a ensinar, Clarice procura aguçar a curiosidade do leitor a respeito da arte, através de uma análise de um quadro; assim, quem a lê pode empregar os conceitos utilizados por ela para compreender melhor outras obras de arte.

A segunda crônica dessa coluna é um texto, aparentemente fictício, sobre um sonho de um líder, sem definir qual tipo de liderança ele tem – é sabido, apenas, que é um líder eleito pelo povo. Levando em consideração a época em que essa história foi escrita, 1969, pode-se imaginar que é uma referência aos governantes da época da ditadura militar, em especial após o decreto do Ato Institucional nº 5, em 1968, o mais severo dos atos do regime militar.

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O líder aparece, aqui, como uma pessoa comum, que dorme e tem pesa-delos. Essa aproximação da realidade do líder com a do povo gera melhor compreensão das pessoas quanto à situação. A educação, da tríade “educar, comover e deleitar”, citada anteriormente, é para o entendimento do poder do povo: Clarice deixa explícito que o povo que elege o líder possui o poder de cobrar dele as ações que ele prometeu, e que o povo unido possui mais força. Esse quesito será tratado em seguida, na categoria Poder.

É possível considerar o Poder como tema principal das duas crônicas analisadas. Em Medo da libertação, a colunista mostra a sensação que tem de opressão ao falar que as pessoas têm o hábito de “olhar através das grades da prisão” e sobre o “conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro” (LISPECTOR, 1999, p. 198). Ela não especi-fica quem construiu essas metafóricas grades, mas enfatiza que conhece poucos homens livres: a maioria aceita suas amarras.

A burguesia, que possuía mais dinheiro e, por consequência, mais Poder, para Clarice também perde o Poder no sentido da libertação: de-terminadas atitudes e comportamentos são esperados por alguém que pertence à burguesia e, dessa forma, é necessário ter mais coragem para ultrapassar essas expectativas externas. Além disso, nesse jogo de poder, o burguês se afasta do imprevisível e, assim, compreende menos o que é a liberdade e como ela pode ser.

Em Esboço do sonho do líder, o Poder é ambíguo: ao mesmo tempo em que o líder tem um poder oficial em relação ao povo, quem perde o sono por medo é o líder, que se apavora com o poder que o povo possui em relação a ele. A escritora sugere que o hipotético líder está cada vez mais preocupado, pois sonha com rostos inexpressivos e em silêncio que, no entanto, são cada vez mais numerosos e se aproximam mais. O líder procura acalmar-se, pensando que foi o povo que o elegeu e que ele cuida do povo. Contudo, fica a pergunta no ar: “Cuida do povo?” (LISPECTOR, 1999, p. 198), e, ao final, a exclamação: “Sim, eu menti!”

O líder, ao longo do texto, vai sentindo-se enfraquecido, pois vai ques-tionando suas convicções e vai vendo a quantidade de pessoas a lhe olhar aumentando. O poder do povo, de acordo com Clarice, seria, então, a sua união: quanto maior a união, mais força para lutar e para cobrar um líder que não corresponde às suas expectativas.

Levando em conta a categoria Cultura, como qualquer forma de co-municação, falada, vista ou escrita, e relacionando-a com as influências, fontes e origens de uma obra ou autor, pode-se afirmar que o regime mi-

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litar que o Brasil vivia naquele momento histórico possuía uma influência definitiva nos textos da autora.

A ditadura militar ocorreu de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985, tendo sua época mais severa com o AI-5, de 13 de dezembro de 1968 a 1º de janeiro de 1979. Em 1969, quando a coluna foi publicada, era muito forte a censura por parte do governo ao que era dito em peças de teatro, filmes, músicas, jornais e revistas.

Esse incômodo com a censura e com a própria situação de regime autoritário pode ser percebido nos dois textos analisados. A divagação da escritora a respeito desse jogo entre coragem e covardia – utilizando-se da reflexão sobre um quadro como justificativa – possivelmente era um assunto muito tratado naqueles dias, mesmo que de maneira clandestina, em função da censura.

O distanciamento da burguesia quanto aos problemas do mundo e a aceitação das amarras que lhe eram impostas demonstram um desconten-tamento com a situação. “A covardia nos mata”, segundo Clarice (1999, p. 198). Paysage aux Oiseaux Jaunes, de Paul Klee, retrata passarinhos ama-relos pousados em árvores e em nuvens, estando um de cabeça para baixo, o que rompe com as expectativas lógicas de como e onde um passarinho deve estar pousado. Essa liberdade de pousar onde e como quiser não poderia ser compreendida por burgueses, na opinião da cronista, e mesmo quem tentasse explicar poderia perder a coragem e, assim, a liberdade. Entretanto, ao mesmo tempo em que a escritora alerta para o perigo de não ter coragem, ela também inveja aqueles que não aprenderam a ser livres e vivem no conforto da prisão burguesa, porque eles tudo aguentam, justamente para não serem livres.

Quanto à segunda crônica, a insatisfação com o momento vivido pelo país é demonstrada de um jeito ainda mais claro, ao ser relatado o pesadelo de um líder. A união popular é reconhecida pela colunista como uma arma, um poder que o povo tem, para controlar e exigir o que deseja do líder que foi eleito. Apesar de escolhido pela população, o líder – que, no caso, poderia ser Costa e Silva, presidente em exercício no Brasil na época e considerado um dos mais rígidos de toda a ditadura militar – possivelmente se sente em dívida com a população, pois teme os olhos desta no sonho. E, apesar de calados – o que pode ser uma metáfora para a censura que os brasileiros viviam naquele momento –, vão aproximando-se, ameaçando o líder, podendo rebelar-se a qualquer momento. O levante popular era abafado e controlado, mas o perigo rondava. Clarice, assim, demonstrava

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seu descontentamento com o silêncio imposto às pessoas, mas também crença em que o povo iria unir-se e levantar-se contra o líder.

Na categoria Ideologia, Medo da libertação traz a diferenciação entre racionalidade e racionalização em seu próprio assunto: a crônica aborda a questão da coragem e da covardia em relação à liberdade. A escritora mostra que seu ideal é a liberdade, que a atrai, mas que teme essa liber-tação, retratada no quadro Paysage aux Oiseaux Jaunes: segundo ela, se olhar durante muito tempo para essa obra, nunca mais poderá voltar atrás (LISPECTOR, 1999, p. 198).

Clarice não apresenta um pensamento fechado; inclusive, exalta a ca-pacidade de cada um de questionar o conforto de não enxergar as grades da sua própria prisão: da prisão que é a falta de liberdade. Ela questiona até mesmo o seu próprio conforto de burguesa, que reconhece sua pos-sibilidade de coragem, o que, por isso mesmo, a amedronta. O interesse pelo desconhecido é explícito: a escritora diz que aprendeu a ser livre – e não demonstra arrependimento, apesar de reconhecer o conforto que a ignorância trazia – e que suas amarras anteriores eram tão fortes que tudo ela aguentava, para que não fosse livre. Assim, a cronista deixa claro que, mesmo com medo de ser ainda mais livre do que já é, a liberdade, após conquistada, compensa. Aplica-se, então, o princípio de racionalidade.

O ideal apresentado em Esboço do sonho do líder é o do Poder da união popular, como contraponto ao poder do líder, que, nesse texto, representa qualquer governante. Aqui também se pode utilizar a ideia de racionali-dade, pois a colunista questiona, através de uma história, o poder fechado do líder: não é porque ele tem a autoridade oficial, que a terá sempre. A Ideologia, aqui, é que o líder deve respeitar o povo, cuidar dele e realizar o que lhe é solicitado e, também, temer a população: caso contrário, esta pode voltar-se contra ele e mostrar que, unida, possui muito mais força do que um cargo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As crônicas Medo da libertação e Esboço do sonho do líder apresen-taram, ambas, características intrínsecas às esperadas por uma crônica. Dessa forma, é possível constatar que a questão levantada no início desta pesquisa – de que modo Clarice Lispector atua dentro das características próprias das crônicas? – pôde ser contemplada: os textos da escritora transformam algo presente no cotidiano do leitor, um quadro, no caso,

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em um diálogo a respeito da complexidade humana, tratando de dilemas emocionais. Além disso, em função desses dilemas, há identificação e proximidade por parte de quem lê, que são outras características desse gênero jornalístico/literário.

Inclusive, podem-se considerar os textos analisados como literários – e não somente jornalísticos –, pois eles atingem os objetivos que uma obra literária tem: ensinar, comover e deleitar; a primeira crônica, porque traz conhecimentos sobre a arte e reflexões sobre a burguesia, e a segunda, porque incita o leitor a pensar a respeito da força que o povo tem quando está unido, muito maior do que a força de um líder eleito.

A categoria Poder esteve muito presente em ambos os textos. Em Medo da libertação, há o Poder como energia prazerosa, no momento em que a escritora diz que, se ela demorar-se demais olhando para o quadro analisado, não poderá “voltar atrás” (LISPECTOR, 1999, p. 198). Apesar da sensação de temor, a liberdade, que é representada pela obra, lhe traz fascinação e atração. Sair da zona de conforto que é ter as suas amarras e ir à busca da liberdade, segundo a autora, dá medo. Entretanto, com-pensa, já que ela termina assim: “E, antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava – só para não ser livre” (LISPECTOR, 1999, p. 198).

Já na segunda crônica, é o Poder, em sua definição mais conhecida – direito de deliberar, agir e mandar –, que está empregado. Há uma ambi-guidade no momento em que o poder determinado do líder é enfraquecido pela possibilidade de poder do povo. Não há ação nem força, nem mesmo objetivos concretos: apenas o sentimento de vulnerabilidade do líder frente a olhos inexpressivos e calados, mas que vão ficando numerosos e se aproximando. O poder é figurado, mas o texto demonstra de maneira clara a ideia de que esse poder existe, sim, quando a quantidade de olhos reprovando o líder aumenta e se une.

A maior influência reconhecida nas duas crônicas analisadas, no quesito Cultura, é a do contexto histórico. A ditadura militar que o Brasil vivia na época afetava os escritos de Clarice, que publicava em um jornal que passava por censura prévia. A liberdade de falar o que pensava, de questionar, de gritar, pode ser o que levou a cronista a escrever Medo da libertação. Ela, uma mulher divorciada e mãe de dois filhos, possivelmente se sentia mais temerosa do que muita gente em ser presa ou demitida. Suas amarras a impediam de ser livre – entretanto, não a impediam de reconhecer a liberdade.

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Outro sentimento relacionado ao regime autoritário que dominava o país aparece na segunda crônica. Em Esboço do sonho do líder, surge, então, a sensação de vulnerabilidade do povo em relação ao(s) seu(s) líder(es). Entretanto, esta aparece de uma forma oposta: é o líder que é descrito, um homem de meia-idade tendo um pesadelo. Essa visão desmistifica a imponência do líder. Então, o líder demonstra medo do povo. Por fim, o povo domina, o povo demonstra sua força: o povo se une, se aproxima e percebe que tem mais poder do que o líder. Essa força popular era algo muito discutido e levantado na época pela oposição, a fim de que a popu-lação não se resignasse.

Dois tipos de ideal diferentes aparecem nos dois textos analisados, ambos relacionados ao Conceito Geral de Ideologia – uma visão de mundo – e ambos através da racionalidade. A visão de mundo da primeira crôni-ca é a do ideal da liberdade; Clarice reconhece as dificuldades e a falta de comodidade que há em ser livre e, inclusive, admite ter medo dessa liberdade. Porém, não deixa de vê-la com fascínio e, por fim, demonstra que vale à pena.

Já na segunda crônica, a visão apresentada é a de que, unida, a popu-lação é mais forte do que o líder. Há uma aparente esperança e confiança da escritora no futuro, se for levado em conta o contexto histórico da dita-dura militar. Ela mostra a crença de que se deve ser paciente e aguardar o tempo que o povo precisa para se unir e agravar as suas críticas – para, por fim, fortalecer-se em relação ao líder e iniciar a revolução.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1964.

______. A Aula. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.

______. Mitologias. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1980.

GODOY, Arilda S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, p. 57-63, mar./abr. 1995.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

MARTINS, Dileta Silveira. História e tipologia da crônica no Rio Grande do Sul. 1984. 360 p. Tese (Doutorado em Letras), Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1984.

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MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, Francisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da. (Org.). Para navegar no século XXI: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina/EDIPUCRS, 1999.

______. O Método 1: a natureza da natureza. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003.

______. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1985.

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UMA CERTA TENDÊNCIA DE UM CINEMA IMPURO: TRUFFAUT, BAZIN

Janaina dos Santos Gamba7

INTRODUÇÃO

Nos anos 1950, uma verdadeira revolução cinematográfica se deu com a chegada de uma nova vanguarda estética, a Nouvelle Vague, capitaneada por Jean-Luc Godard e François Truffaut. Ambos os jovens diretores foram, durante certo tempo, ensaístas da aclamada revista crítica de cinema Cahiers du Cinéma, idealizada e editada por André Bazin, que foi mentor e um grande apoiador desses jovens cineastas.

O presente trabalho tem por objetivo tentar estabelecer uma rela-ção entre os textos Uma certa tendência do cinema francês, de François Truffaut, e Por um cinema impuro, de André Bazin, ambos escritos na dé-cada de 1950, no que se refere às adaptações cinematográficas oriundas de obras literárias. Para tanto, pretendemos trazer aqui as ideias centrais de cada texto para um melhor entendimento de ambos e da analogia que pretende ser feita.

TRUFFAUT

Truffaut abre seu artigo publicado em janeiro de 1954 na Cahiers du Cinéma tendo por objetivo inicial tentar definir o que seria uma tendência cinematográfica francesa à época conhecida como “Realismo Psicológico”.

Na visão de Truffaut, aquele período era insípido cinematograficamen-te, pois, das centenas de títulos franceses lançados todos os anos, apenas dez ou 12 valiam a atenção de fato. Essa “pequena dezena”, como pode-mos bem assim chamar, constituía a chamada “Tradição de Qualidade” do cinema francês. O pós-Segunda Guerra havia aberto as portas para o

7 Mestranda em Comunicação Social pela PUCRS. Bolsista Capes II.

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Realismo Poético, que sempre prezava em manter certo naturalismo lite-rário em relação aos seus personagens, mas que logo se viu substituído pelo Realismo Psicológico.

Essa nova corrente tinha nomes como Claude Autant-Lara, Jean Delannoy, René Clement, Yves Allégret e Marcel Pagliero, e Truffaut classificava as obras desses diretores como “estritamente comerciais”, pontuando o fracasso ou o sucesso delas pela escolha dos roteiristas e dos temas. Entretanto, é uma crítica sagaz aos roteiristas, Jean Aurenche e Robert Bost, mais precisamente, que Truffaut leva adiante ao longo de todo seu texto. Ele nos contextualiza acerca do início de carreira de ambos: Aurenche havia se especializado em adaptações, enquanto Bost publicava novelas por uma editora francesa.

O diretor, que na época era apenas crítico cinematográfico, inicia então sua dura crítica ao acusar Aurenche e Bost de subverter a ideia de tal maneira que, a partir de então, ser fiel a uma adaptação literária era o que poderia se considerar como uma alta traição. Para Truffaut, esses roteiristas estariam praticando o que ele chamou de “equivalência”, que partiria do princípio de que, no romance adaptado, haveria cenas filmáveis e cenas não filmáveis e estas últimas poderiam muito bem ser substituídas por cenas equivalentes, como se o autor do romance as tivesse feito para uma possível adaptação cinematográfica. Aurenche e Bost jamais haviam admitido serem estritamente fiéis às adaptações e estariam então, de acordo com suas ideias, inventando novas cenas sem trair aquilo que eles acreditavam ser a essência da obra.

Esses roteiristas tinham a capacidade de adaptar obras dos mais diver-sos autores e estilos, ao mesmo tempo em que colaboraram com os mais diversos diretores. Porém, havia duas coisas que incomodavam Truffaut profundamente: a primeira era ele não ter plena convicção de que um romance teria cenas consideradas infilmáveis, e a segunda era que nem todas as cenas consideradas não filmáveis seriam não filmáveis para todos.

Os filmes adaptados pelos roteiristas e diretores (estes últimos tam-bém são culpados pelos maus resultados) dessa corrente estariam fazendo verdadeiras equações em que personagens, roteiros e outros elementos seriam recombinados de tal forma a sempre se encaixar no que era aceito como a tal “tradição de qualidade”. Deste modo, para Truffaut, por mais que Aurenche e Bost fossem talentosos, eles estariam, com suas adapta-ções, sempre menosprezando e subestimando o cinema. Em seu texto, Truffaut traz uma citação de Delannoy em que este acaba por dizer que

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os escritores que então passaram a escrever para o cinema estariam o fazendo como se fosse um ato degradante e, de modo a não compromete-rem seu talento, se certificariam de ser sempre compreendidos por baixo. Truffaut vai mais além: “Sob o véu da literatura – e, claro, da qualidade –, oferece-se ao público sua dose habitual de perfídia, de não conformismo, de audácia fácil”.

Já ao final do curto, porém vigoroso texto, Truffaut, que dizia não acreditar na existência pacífica da “tradição da qualidade” e do “cinema de autor”, coloca que o objetivo de seu texto não era escandalizar, mas ele estava convencido de que a longa vida desse Realismo Psicológico se devia ao fato de que o público era incapaz de compreender obras inovadoras.

BAZIN

Já Bazin parece ter escrito sua defesa à adaptação um pouco escanda-lizado com as palavras de seu pupilo Truffaut, porém nem por isso menos diplomático e polido. Ele abre seu texto em defesa da adaptação expondo que não é de hoje que o cinema se utiliza de recursos literários e teatrais, mas não o faz mais da mesma maneira. Muitas vezes, romances excelentes são adaptados, mas tratados meramente como sinopses bem desenvolvi-das. Personagens de uma intriga, um clima poético, ou uma atmosfera é o que o cineasta procura ou deveria buscar num romancista. Bazin também coloca que alguns romances policiais no estilo noir são visivelmente es-critos com a finalidade de serem, posteriormente, adaptados às telas de cinema. Quando Robert Bresson tentou adaptar ipsis litteris um romance para o cinema, novos valores nasceram aí. O cineasta já não estaria mais contente em apenas plagiar, assim como fizeram alguns antes dele, mas se propõe a transcrever para a tela uma obra cuja transcendência ele conhece em princípio.

Bresson, aliás, é um dos poucos diretores contemporâneos que Truffaut parece ter defendido em seu texto. Truffaut se coloca terminantemente contra alguns filmes largamente elogiados por Bazin, como Sinfonia pas-toral, dirigido por Jean Delannoy.

A adaptação seria, de qualquer modo, o quebra-galho vergonhoso da crítica moderna, mas é uma constante na história da arte. A crítica cine-matográfica deplora frequentemente os empréstimos que o cinema faz da literatura. Porém, legitima o romance contemporâneo americano, quando este diz ter sofrido influência do cinema. As novas técnicas de cinema, de

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acordo com Bazin, ajudaram o romancista a renovar seus acessórios técni-cos. Essas referências acrescentam-se ao aparato de procedimentos com os quais o escritor constrói o universo particular. Por mais que o cinema tenha desviado o romance da sua gravitação estética, a influência que o teatro exerceu sobre a literatura no século XIX foi maior.

Bazin vai mais além ao dizer que a influência do cinema sobre o ro-mance moderno pode iludir os críticos. Isso se daria porque o romancista adota o que Bazin (1991, p. 91) chama de “valorização dos fatos”. O cine-ma reuniria em si várias outras formas de expressão artística, contudo o romance teria ido além no que diz respeito ao estilo. Porém, de acordo com Manevy (2012, p. 226), a noção de estilo era muito mais importante para os “jovens turcos” (que defendiam um cinema autoral) do que para Bazin, como veremos mais adiante.

É claro que não sabemos se algumas obras literárias teriam sido muito diferentes sem o cinema, mas o fato é que sabemos que alguns grandes clássicos do cinema jamais seriam os mesmos se não fosse a literatura. As adaptações, para Bazin, são pelo menos a garantia de um possível fator de progresso do cinema.

No que parece totalmente contrapor o texto de Truffaut, Bazin (1991, p. 93) diz que, em se tratando de adaptações, o drama principal é aquele que ele chama de “vulgarização”. Às vezes, por mais que uma obra cinemato-gráfica não seja fiel à sua adaptação literária, ela tem o mérito de muitas vezes atrair novos leitores. Ele coloca que é absurdo se indignar com as adaptações que algumas obras literárias ganham nas telas. Por mais que essas adaptações sejam sofríveis, para Bazin elas não teriam o poder de causar grandes danos às obras originais, pelo menos junto àqueles que conhecem e apreciam as obras.

Porém, mais adiante, Bazin concorda com a ideia de Truffaut ao dizer que o cineasta só tem a ganhar com a fidelidade nas adaptações literárias. O romance teria como vantagens dirigir-se a um público relativamente culto e exigente, trazendo ao cinema personagens mais complexos e uma sutileza com a qual o cinema e consequentemente o público não estariam acostumados. É evidente que isso se daria sempre com obras literárias de boa qualidade, e, nesse sentido, dois empregos seriam possíveis: pri-meiramente, as diferenças de nível e prestígio artístico da obra original serviriam como reservatório de ideias e garantia de qualidade e, em se-gundo lugar, os cineastas se esforçariam de modo genuíno para que o filme

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fosse equivalente ao livro, não mais se inspirando nele, mas realmente adaptando sua linguagem para a tela de cinema.

Bazin nos alerta para o não apedrejamento daqueles que seriam fabri-cantes de imagens que “adaptam” simplificando, pois, novamente, a lite-ratura nada teria a perder com isso. Parecendo citar diretamente o texto de Truffaut no que este diz: “Não se roda mais um filme na França em que os autores não julguem estar refazendo Madame Bovary”, Bazin aponta que quando se filma algo no nível de Madame Bovary em Hollywood, por mais que exista uma diferença estética entre livro e cinema, o resultado é sempre um filme americano padrão que só tem, afinal, o mal-estar de também se chamar Madame Bovary.

É claro que Bazin preferiria que todos os diretores fossem geniais, assim nunca mais haveria problemas com as adaptações, mas ele considera já de bom tamanho o fato de um crítico de cinema poder contar com algumas delas. A fidelidade a algumas obras literárias obrigaria os roteiristas a propor personagens mais complexos e, ao mesmo tempo, incitaria esses mesmos roteiristas a quebrar convenções morais do espetáculo cinema-tográfico ao expor os preconceitos do público.

Seria errôneo apresentar a fidelidade à obra como uma sujeição às leis estéticas alheias. O romance teria seus próprios meios, e sua influência sobre o leitor isolado certamente não é a mesma que a do filme sobre os espectadores na sala escura. E são exatamente essas diferenças de estrutura que tornariam mais delicada a procura por equivalências. As equivalências requerem ainda mais invenção e imaginação do cineasta que almeja alcançar a semelhança. Bazin acredita poder afirmar que, no domínio da linguagem e do estilo, a criação cinematográfica é diretamente proporcional à fidelidade. Contudo, ao mesmo tempo, para ele a tradução literal não vale nada, e a tradução que é demasiado livre também lhe pa-rece condenável. Porém, aquilo que ele considera ser uma intimidade com a língua e a genialidade seriam merecedores de tradução.

Bazin parece tentar “bater de frente” com Truffaut ao afirmar que al-guns aspectos presentes nas obras literárias muitas vezes não encontram o equivalente na mise-en-scène. Uma das maiores críticas de Truffaut se referia ao fato de Aurenche e Bost frequentemente se utilizarem das chama-das “equivalências” para todas as cenas que ambos consideravam, na sua visão de roteiristas, como não filmáveis. Seriam estas então as cenas que, na concepção de Bazin, Aurenche e Bost, jamais poderiam ser transpostas às telas? Podemos crer que Bazin, ao fazer a defesa do cinema impuro e

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ao entrar na “era dos roteiristas” (MANEVY, 2012, p. 233), apresentaria sempre um diálogo favorável entre literatura e cinema sempre que este gerasse obras que ele considerasse como sendo de qualidade. A partir disso, “Verifica-se a possibilidade de agregar outros valores à história contada e desenvolvê-la utilizando elementos específicos do meio do qual se utiliza ao explorar a trilha sonora e os aspectos visuais, por exemplo” (SCHLÖGL, 2011, p. 3).

Para tentar articular uma relação presente entre os dois textos, é necessário retomar aquilo que Truffaut e os outros cineastas da Nouvelle Vague entendiam como sendo o “cinema de autor”, ou “política de autor”.

De acordo com Bernardet (1992), a proposta dos diretores expoentes da Nouvelle Vague com o que eles chamavam de “política de autor” não somente chocou nomes do meio cinematográfico, mas também o próprio Bazin, que acabou por escrever um artigo irônico para a Cahiers intitulado Como é possível ser hitchcocko-hawskiano?, em que ele se coloca contra a opinião dos jovens turcos. O que chocou não foi o uso da expressão “ci-nema de autor”, visto que esta já era amplamente utilizada pelo crítico e cineasta Jean Epstein ainda na década de 1920, mas o fato de os jovens aplicarem esse termo justamente ao cinema norte-americano, do qual a França mantinha largo protecionismo desde, pelo menos, a Segunda Guerra.

A ideia de autoria como pertencente ao diretor cinematográfico tem forte enraizamento cultural na França, e uma aplicação a favor dos nor-te-americanos vem com a proposta lançada por Truffaut em Uma certa tendência do cinema francês. Se nesse primeiro artigo ele abre as portas contra aquilo que era considerado uma tradição de cinema de qualidade, fortemente calcado em diretores/roteiristas franceses, a proposta feita pelos jovens turcos vem de modo a assentar a ideia de Truffaut verdadeiramente.

A abertura da importação de filmes americanos na França, mesmo que fraca de início, jamais deixou de empolgar os jovens turcos, apesar de terem o conhecimento de que isso implicaria baixas, em todos os aspectos, ao cinema francês. E, ainda que os jovens turcos nunca tenham produzido um artigo sequer em que deixassem claro aos seus leitores o que poderia ser definido como “política de autor”, fica muito claro que, para eles, a noção de autor nasce realmente do sentido literário, o que nos permitiria, mais uma vez, tentar construir uma relação entre os textos de Bazin e Truffaut.

O cineasta era, para esses jovens, visto como um escritor, e seu filme, como uma obra literária. Vale lembrar que, apesar de algumas divergên-cias de ideias que posteriormente ocorreram entre os jovens e Alexandre

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Astruc, este, em 1948, já havia proposto algo nesse sentido em seu artigo A câmera-caneta. A câmera-caneta seria o modo de expressão do autor/cineasta, que teria a possibilidade de criação de uma nova linguagem cinematográfica, que escreveria com sua câmera, do mesmo modo que escreveria com uma caneta:

Depois de ter sido sucessivamente uma atracção de feira, um divertimento semelhante ao teatro de boulevard ou um meio de conservação das imagens de época, torna-se, pouco a pouco, numa linguagem. A saber, uma forma, na qual e pela qual um artista pode exprimir o seu pensamento, por mais abstracto que ele seja, ou traduzir as suas obsessões, exactamente como se passa hoje com o ensaio e o romance. É por isso que chamo a esta nova época do cinema a Camera-stylo (ASTRUC, 1999, p. 320).

Essa forte aproximação de diretores franceses com a tradição literária não era recente, de modo que não somente os jovens turcos, mas também diretores como Bresson e Fellini realizavam verdadeiras metáforas ao se referir aos filmes como “páginas em branco” ou ao falar sobre a possibilidade da realização de um filme do mesmo modo pelo qual um escritor escreve um livro (BERNARDET, 1992, p. 14-15). Contudo, é necessário lembrar que nem sempre, na tradição francesa, autor era designado como realizador, e sim como roteirista, aquele que concebe a história escrita. Mais tarde, em uma perspectiva diferente, há a ideia de que não era o diretor quem deveria passar a escrever os filmes que realizaria, mas o argumentista era quem deveria passar a ser o realizador de suas histórias.

No entanto, mesmo com a forte tradição literária francesa nas adapta-ções cinematográficas, o que tinham de tão valoroso os filmes norte-ame-ricanos, que eram capazes de prender mais a atenção dos jovens turcos do que o próprio cinema nacional? A resposta pode vir de Chabrol e Rohmer, que não apenas consideravam importantes os aspectos estéticos das obras, mas iam além, ao compararem elementos estilísticos e técnicos das obras cinematográficas aos elementos que também estariam presentes nas obras de alguns imortais da literatura – o que não dizia respeito, necessariamen-te, à adaptação. Isso, talvez em parte, venha a explicar a ânsia que esses diretores tinham em ver o cinema como livre da quase nociva influência da literatura, de modo que eles tinham a necessidade de ver o cinema se utilizar das expressões de linguagem que lhe seriam particulares.

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Haveria aí uma contradição não contraditória, como coloca Bernardet (1992, p. 18):

Em realidade, talvez não haja tanta contradição quanto pode parecer. Quando não se quer que a literatura macule o cinema, de que literatura se fala? Basicamente das histórias que conta a literatura, do caráter narrativo da literatura. São filmes que valorizam o enredo, que são feitos para desenvolver a trama e que, nesse desenvolvimento, apelam para uma explicitação verbal da evolução das situações e das relações entre persona-gens, não recorrendo a valores plásticos, encenação, olhares, composição de quadros, etc. [...]a política dos autores implica uma necessária desvalorização dos enredos. Quando, ao con-trário, o relacionamento da literatura com o cinema é feito, não através do enredo, mas de valores outros, a literatura torna-se dignificante.

De modo semelhante, o que parece haver é sempre um abraço/rejeição forte à literatura. Da mesma maneira que desta parece ter nascido tudo aquilo que para os jovens turcos era considerado como cultura de quali-dade, os jovens pareciam propor um mínimo de radicalidade e negação própria daquilo tudo que estavam vivendo. Ribeiro (2012) coloca Truffaut não apenas como um homem que amava o cinema, mas também como um homem que amava os livros (talvez daí resulte sua frustração ao ver nas telas romances tão insipidamente adaptados). “Por que não popularizar, com a ajuda do cinema, bons títulos literários?”, teria dito o diretor na época da adaptação para o cinema de Fahrenheit 451, baseada na obra apocalíptica de Ray Bradbury, em que o estado totalitário, assim como fizeram os nazistas, mandava queimar seus livros, símbolos máximos de toda uma cultura.

Quando os críticos, teóricos e cineastas da década de 1920 atrelavam o cinema à literatura, não o faziam propriamente pelo fato de o cinema, desde seu nascimento, ter se valido de adaptações (assim como fez Méliès com as obras de Júlio Verne), mas porque o cinema poderia se validar ao procurar na literatura a maneira de construir sua própria linguagem e esta, com o passar do tempo, se tornaria complexa.

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CONSIDERAÇÕES

“O autor é um cineasta que se expressa, que expressa o que tem dentro dele” (BERNARDET, 1992, p. 22). Antes de existir o realizador, o filme era apenas palavra e, no momento em que a palavra se torna ima-gem, o realizador deve imprimir nas telas todas as suas características, expressões e estilo.

Parece haver algo no meio da proposta feita pelos jovens turcos que podemos tomar como lição: os jovens viam em Hitchcock um dos deuses de seu Olimpo cinematográfico particular. O cineasta, em sua primeira incursão por Hollywood, filma Rebecca, a mulher inesquecível, adaptado do romance de Daphne du Maurier. Hitchcock, seja por quais motivos, não é 100% fiel em sua adaptação, mas, ainda assim, é um diretor admirado pelos jovens, que levam em conta seu modo de expressão nas telas, a ex-ploração de seus temas, a maneira como ele resolve conflitos.

Se Truffaut se queixava que as adaptações de Aurenche e Bost peca-vam ao trair tudo aquilo que ele acreditava ser a essência da obra, para Bazin, por mais que a traição se fizesse evidente e o cinema se utilizasse da literatura e do teatro como um par de muletas, isso serviu positivamente como uma conquista de repertório para o cinema. Este se tornou tribu-tário ao teatro e à literatura no que diz respeito não somente à evolução de sua linguagem, que o diferenciaria dos dois e o legitimaria também como arte, o que seria “um modo de dizer não apenas que o cinema era tão bom quanto as outras artes, mas também que deveria ser julgado em seus próprios termos, com relação a seu próprio potencial e estética” (STAM, 2003, p. 49-50).

O que parece, de fato, diferenciar um autor de outro é a hipervaloriza-ção dada por Truffaut aos aspectos fílmicos, à mise-en-scène. “A política valoriza a mise-en-scène porque é através dela que o cinema pode diferen-ciar-se da literatura. Mais expressiva a mise-en-scène, menos necessários serão os recursos advindos do romance” (BERNARDET, 1992, p. 58). Otto Preminger teria uma vez dito que a mise-en-scène seria uma espécie de exteriorização das visões do diretor em relação à vida, e seria de tal modo subjetiva que jamais poderia ser expressa de maneira literária. Talvez estivesse faltando, na visão de Truffaut, aos então diretores do Realismo Psicológico francês uma exteriorização que poderia, sim, ser fruto das adaptações, mas que fosse feita com um mínimo de qualidade e sem de-turpar as obras originais.

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REFERÊNCIAS

ASTRUC, Alexandre. Nascimento de Uma Nova Vanguarda: A “Camera Stylo”. In: OLIVEIRA, Luis Miguel. (Org.). Nouvelle Vague. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1999. p. 319-325.

BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BERNARDET, Jean-Claude. O Autor no Cinema – A Política dos Autores: França, Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense, 1992.

MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague. In: MASCARELLO, Fernando. (Org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2012.

RIBEIRO, Milton. François Truffaut, o Homem que Amava o Cinema. Sul21, Porto Alegre, 14 fev. 2012. Disponível em: <http://miltonribeiro.sul21.com.br/2012/02/14/francois-truffaut-o-homem-que-amava-o-cinema/>. Acesso em: 20 jun. 2013.

SCHLÖGL, Larissa. Bazin e o Cinema Impuro: Uma Análise Teórica sobre as Adaptações no Cinema. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, 12º, 2011, Londrina. Comunicação audiovisual. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2011/resumos/R25-0139-1.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2013.

STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas: Papirus, 2003.

TRUFFAUT, François. Uma Certa Tendência do Cinema Francês. Disponível em: <http://designvisualuff.files.wordpress.com/2011/08/franccca7ois-truffau-t-uma-certa-tendecc82ncia-do-cinema-francecc82s.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2013.

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