O TRÁFICO ILEGAL COMO ELEMENTO CENTRAL À HISTÓRIA …...1 O TRÁFICO ILEGAL COMO ELEMENTO CENTRAL...

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1 O TRÁFICO ILEGAL COMO ELEMENTO CENTRAL À HISTÓRIA DO BRASIL IMPERIAL: HISTORIOGRAFIA E CAMINHOS DA PESQUISA 1 Beatriz Gallotti Mamigonian 2 As pesquisas recentes sobre o tráfico ilegal de africanos para o Brasil marcam uma virada importante na historiografia da escravidão. O reconhecimento do volume do contrabando, além da extensão geográfica e das implicações políticas de tal fenômeno impõem uma reinterpretação da história do Brasil imperial. A compreensão das implicações da ilegalidade do tráfico ajuda a reinterpretar as transformações ocorridas no sistema escravista e também na política interna e externa do Brasil, estendendo-se para muito além da data de sua abolição, em 1850. Vários pesquisadores têm se dedicado a tal releitura e essa comunicação busca fazer um balanço de tais trabalhos, das fontes utilizadas e perspectivas adotadas, assim como de sua contribuição para a historiografia brasileira. Nota historiográfica séculos XIX e XX O tema do tráfico de escravos faz parte da escrita da História do Brasil desde a segunda metade do século XIX, quando o embate político em torno da abolição suscitava argumentos embasados em memórias históricas. 3 Na primeira metade do século XX, a história do tráfico foi objeto de interesse algo periférico no debate sobre os problemas nacionais ou mesmo a escravidão, mas rendeu importantes ensaios panorâmicos sobre seu volume e funcionamento e também pontuais, sobre os debates em torno da abolição. Merece grande destaque o livro de Maurício Goulart, publicado originalmente em 1949, que traz uma história do tráfico de escravos para o 1 Texto revisado em relação ao apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Texto ainda preliminar Favor não citar sem autorização da autora . 2 Professora titular do Departamento de História da UFSC e pesquisadora do CNPq. Contato: [email protected] 3 PEREIRA PINTO, Apontamentos para o direito internacional, ou, Collecção completa dos tratados celebrados pelo Brazil com differentes nações estrangeiras, acompanhada de uma noticia historica, e documentada sobre as convenções mais importantes. 4 vol. Rio de Janeiro : F.L. Pinto & C.ª Livreiros-Editores, 1864-1869; ALMEIDA, Tito Franco de. O Brazil e a Inglaterra, ou O tráfico de africanos. Rio de Janeiro: Typ. , 1868.

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    O TRÁFICO ILEGAL COMO ELEMENTO CENTRAL À HISTÓRIA DO

    BRASIL IMPERIAL: HISTORIOGRAFIA E CAMINHOS DA PESQUISA1

    Beatriz Gallotti Mamigonian2

    As pesquisas recentes sobre o tráfico ilegal de africanos para o Brasil marcam uma virada

    importante na historiografia da escravidão. O reconhecimento do volume do contrabando, além da

    extensão geográfica e das implicações políticas de tal fenômeno impõem uma reinterpretação da

    história do Brasil imperial. A compreensão das implicações da ilegalidade do tráfico ajuda a

    reinterpretar as transformações ocorridas no sistema escravista e também na política interna e

    externa do Brasil, estendendo-se para muito além da data de sua abolição, em 1850. Vários

    pesquisadores têm se dedicado a tal releitura e essa comunicação busca fazer um balanço de tais

    trabalhos, das fontes utilizadas e perspectivas adotadas, assim como de sua contribuição para a

    historiografia brasileira.

    Nota historiográfica – séculos XIX e XX

    O tema do tráfico de escravos faz parte da escrita da História do Brasil desde a segunda

    metade do século XIX, quando o embate político em torno da abolição suscitava argumentos

    embasados em memórias históricas.3 Na primeira metade do século XX, a história do tráfico foi

    objeto de interesse algo periférico no debate sobre os problemas nacionais ou mesmo a escravidão,

    mas rendeu importantes ensaios panorâmicos sobre seu volume e funcionamento e também

    pontuais, sobre os debates em torno da abolição. Merece grande destaque o livro de Maurício

    Goulart, publicado originalmente em 1949, que traz uma história do tráfico de escravos para o

    1 Texto revisado em relação ao apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis

    (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Texto ainda preliminar – Favor não citar sem autorização da autora. 2 Professora titular do Departamento de História da UFSC e pesquisadora do CNPq. Contato:

    [email protected] 3 PEREIRA PINTO, Apontamentos para o direito internacional, ou, Collecção completa dos tratados celebrados pelo

    Brazil com differentes nações estrangeiras, acompanhada de uma noticia historica, e documentada sobre as

    convenções mais importantes. 4 vol. Rio de Janeiro : F.L. Pinto & C.ª Livreiros-Editores, 1864-1869; ALMEIDA, Tito

    Franco de. O Brazil e a Inglaterra, ou O tráfico de africanos. Rio de Janeiro: Typ. , 1868.

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    Brasil e a primeira estimativa ponderada a respeito do seu volume.4 Na segunda metade do século

    XX, o tema foi incorporado à agenda de pesquisa de historiadores e cientistas políticos

    profissionais, mas não deixou de ser marginal à historiografia. O tráfico de escravos representava a

    fonte de mão de obra para a economia colonial e imperial, o sustento da escravidão em termos

    demográficos e também sua abolição a fonte de grande conflito diplomático com a Inglaterra, não

    mais.5

    Havia, é importante dizer, quem já pensasse em termos atlânticos na década de 1960, e via o

    tráfico como o fio condutor das relações entre o Brasil e a África, mais do que abastecedor de mão

    de obra para as plantations. Na obra de Pierra Verger, o tráfico foi um verdadeiro mecanismo de

    difusão cultural e criador de laços econômicos, sociais e políticos entre regiões dos dois lados do

    oceano, como eram a Bahia e o Golfo do Benin.6 Mas Verger foi uma exceção: as leituras de cunho

    econômico ou diplomático predominavam.

    O tráfico de escravos é central à obra de Luiz Felipe de Alencastro, desde seu doutorado. O

    tráfico representa, para o cientista político e historiador, o elemento de articulação dos territórios

    portugueses no Atlântico sul, desde o início da colonização portuguesa, no século XVI.7

    Pioneiramente, Alencastro abordou as implicações políticas da continuação do tráfico, depois da

    independência e dos tratados com a Inglaterra: para ele, a opção por uma monarquia centralizada

    4 ALVES, J.L. Al , “A qu tão do l m to il; xti c ão do t áfico l i d p ão d 1850; lib d d do

    citu o ,” RIHGB tomo especial, 1916, 189-257; MORAES, Evaristo, A escravidão africana no Brasil: das origens à

    extincção. São Paulo: Companhia Editora Nacional,1933, que incorporou o opúsculo Extinção do tráfico de escravos no

    Brasil: Ensaio histórico, Rio d J i o: Typ. M ti d A ujo, 1916; CESARINO J , A. F., “A i t ão d

    Inglaterra na supressão do tráfico d c o f ic o p o B il.” RIHGSP 34 (1938), 145-166; GOULART,

    M u cio. ), d., São ulo: Livraria Martins, 1950. 5 CANABRAVA, Alic . “Um d mb qu cl d ti o d c o m C éi ”. Revista de História, n.1, vol. 1

    (1950); BEIGUELMAN, ul , “A xti ão do t áfico g i o o B il, como p obl m pol tico,” Revista de Ciência

    Política 1 (1967), 13-34; TAVARES, L.H.D., “O p oc o d olu õ b il i o x mplo d xti ão do t áfico

    g i o,” Revista de História 35:72 (1967), 523-537; BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a

    Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos (1807-1869). Rio de Janeiro: Ed. Expressão e Cultura; São

    Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1976; CONRAD, Robert E, Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil.

    Tradução de Elvira Serapicos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. 6 VERGER, Pierre, Flux et reflux de la traite des nègres entre le golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos du XVIIe

    au XIXe siècle, publicado no Brasil como VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de

    Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. São Paulo: Ed. Corrupio,

    1987. 7 ALENCASTRO, Luiz F lip . “L Comm c d Vi t : T it d'E cl t ‘ x Lu it ’ d l'Atl tiqu Sud.”

    (Tese de Doutorado, Université de Paris X, 1986); ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do

    Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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    esteve associada à capacidade de negociação e resistência frente à pressão externa, quando

    repúblicas recém-independentes eram forçadas, uma a uma, a trocar o reconhecimento da

    independência pelo fim do tráfico.8

    A história econômica do tráfico de escravos para o Brasil se desenvolveu nos anos 1980 e

    1990, com pesquisas minuciosas em vasta documentação manuscrita que permitiu não só avançar

    no debate sobre o volume de embarques e desembarques, mas abordar detalhes como o

    financiamento e a montagem das viagens, a identificação dos principais comerciantes e produtos, e

    o cálculo da mortalidade na travessia.9 As pesquisas de Fragoso e Florentino identificaram os

    traficantes como os comerciantes mais importantes da praça do Rio de Janeiro entre 1790 e 1830, e

    demonstraram não só que o comércio se fazia diretamente entre o Rio e Angola, mas que os frutos

    dessa atividade ficavam no Brasil e frequentemente acabavam reinvestidos na atividade agrícola,

    que rendia prestígio social: terras e escravos.10

    É importante ressaltar, no entanto, que a

    investigação do tráfico, por esses autores, não avançou além de 1830, momento em que todo o

    comércio brasileiro se tornou ilegal e as séries documentais oficiais que permitem analisá-lo,

    cessaram ou se transformaram.11

    Notas historiográficas – século XXI

    O trabalho de Jaime Rodrigues marca uma inflexão no tratamento do tema do tráfico de

    escravos na historiografia brasileira. Em seu mestrado, defendido em 1994, e publicado pela Editora

    da UNICAMP em 2000, ele rejeita a armadilh do “ umb g m ”, p opõ i it uma das

    questões mais antigas da historiografia nacional – a da abolição do tráfico, e o faz pelo prisma da

    história social. Deslocando o foco do embate diplomático, explorou a discussão pública acerca da

    8 ALENCASTRO, Luiz Felip , “L t it ég iè t l'u ité tio l b é ili ,” Revue Française d'Histoire d'Outre-

    Mer 66: 244–45 (1979), 395–417. 9 MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1740-1830. Madison, Wis:

    Univ. of Wisconsin Pr, 1988; FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Um Hi t i do T áfico Atl tico d

    E c o t f ic o Rio D J i o : Século VIII I . Rio d J i o: A qui o N cio l, 1995;

    FRA OSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura: Acumul ão Hi qui M c til Do Rio D J i o,

    1790-1830. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. 10

    FRAGOSO, João, e Manolo FLORENTINO. : M c do Atl tico, Soci d d Ag á i

    Elite Mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993. 11

    FRAGOSO, João Luís; FERREIRA, Roberto Guedes. Tráfico interno de escravos e relações comerciais centro-sul

    (séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Ipea/LIPHIS-UFRJ, 2001. [CD-ROM].

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    moralidade do tráfico e dos traficantes, o envolvimento da população litorânea com as operações

    ilegais de preparação das viagens e recepção dos desembarques e ainda o destino dos africanos

    desembarcados clandestinamente, temas que sempre ficaram ofuscados pela atenção a Eusébio de

    Queirós ou aos ministros britânicos.12

    O recurso a uma documentação inédita e muito variada

    aproxima seus trabalhos da historiografia social da escravidão e do trabalho e, ao mesmo tempo,

    serviu de inspiração e base para outras pesquisas sobre o tráfico na sua fase ilegal.13

    Também Roquinaldo Ferreira participou dessa inflexão, engajando-se na investigação do

    funcionamento do tráfico ilegal entre Brasil e Angola e as dinâmicas econômicas e sociais que

    uniam os dois territórios do Atlântico sul, partindo posteriormente para especializar-se na margem

    africana desse intercâmbio muito estreito.14

    O lançamento do Transatlantic Slave Trade Database (TSTD), primeiro em CD-ROM em

    1999, depois online como Slave Voyages, marcou profundamente a historiografia atlântica, e a

    brasileira também. Trazendo, hoje, dados de 36 mil viagens transatlânticas entre 1514 e 1866, com

    nome do navio, proprietário, capitão, bandeira, tamanho da tripulação, porto de embarque, data de

    saída, porto(s) de desembarque e data de chegada, número de africanos transportados (por sexo e

    idade) e eventualmente também informações de ocorrências na viagem como revoltas, ou

    apreensão, o banco de dados permite, por exemplo, traçar as transformações na atividade durante

    esse longo período, calcular a média da duração das viagens conforme a rota, apurar as relações

    comerciais privilegiadas entre determinados portos e a consequente ligação cultural entre as regiões

    dos dois lados do Atlântico, assim como investigar um só navio, proprietário, ou porto.15

    Mesmo

    12

    RODRIGUES, Jaime. : opo t Exp i ci o Fi l do T áfico d Af ic o p o B il,

    1800-1850. Campinas, SP, Brasil: Ed. da UNICAMP, 2000. 13

    Sobre a historiografia social da escravidão e do trabalho, ver CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da.

    “Suj ito o imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cad. AEL

    (Campinas), v.14, n.26, 2009. p. 16-45. 14

    FERREIRA, Roquinaldo. “B il A gol o T áfico Il g l d E c o ”, i PANTOJA, Selma e SARAIVA, José

    Flávio Sombra (eds.) Brasil e Angola nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999, pp. 143-194;

    FERREIRA, Roquinaldo. “Tráfico Ilegal e Revoltas de Escravos em Angola entre 1830 e 1860”. Afro-Ásia (Salvador),

    n. 21/22 (1998-1999), 9-44; FERREIRA, Roquinaldo. Dos Sertões ao Atlântico: Tráfico Ilegal de Escravos e Comércio

    Lícito em Angola, 1830-1860. Luanda: Kilombelombe, 2012 (originalmente dissertação de mestrado defendida na UFRJ

    em 1996); FERREIRA, Roquinaldo. “The suppression of the slave trade and slave departures from Angola, 1830s-

    1860s”, História Unisinos (São Leopoldo) (2011), n. 15, v. 1, pp. 3-13. 15

    ELTIS, David et al. The Transatlantic Slave Trade: A Database on CD-ROM. Cambridge: Cambridge University

    Press, 1999; Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database, https://www.slavevoyages.org/ (acessada em

    15/02/2019).

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    com algum sub-registro das viagens destinadas ao Brasil, sobretudo anteriores ao século XIX, o

    banco de dados deu concretude às estimativas já compiladas por Philip Curtin em 1969, e viabilizou

    tanto estudos microscópicos como grandes panoramas antes mais difíceis.16

    Uma ferramenta indispensável para africanistas que se debatem com a escassez de fontes

    sobre o tráfico na África, o TSTD/Slave Voyages também beneficiou enormemente as pesquisas

    desenvolvidas no Brasil onde, é notório, há documentação abundante e ainda inédita. Isso porque o

    banco de dados abre um caminho então pouco explorado para a investigação do tráfico ilegal: o das

    fontes produzidas durante a campanha de repressão liderada pelo governo britânico.

    Sabia-se que o tráfico ilegal para o Brasil havia sido muito grande. Desde o século XIX, as

    memórias citavam os dados dos Parliamentary Papers, de que dezenas de milhares de africanos

    foram importados por ano no fim da década de 1840. O TSTD/Slave Voyages retomou a série de

    dados compilados durante a campanha abolicionista britânica e permitiu uma comparação do

    volume do tráfico para o Brasil e para as outras regiões das Américas, com as variações no tempo e

    divisões por regiões de embarque e desembarque. Com dados mais precisos acerca dos

    desembarques, ano a ano, a extensão do tráfico ilegal para o Brasil ficou evidente.

    Tabela 1: Desembarques de africanos no Brasil no século XIX

    Amazônia Bahia Pernambuco Sudeste

    Região

    desconhecida Total

    1801-1805 17.603 46.555 23.965 65.540 5.336 158.999

    1806-1810 14.335 55.378 29.904 75.320 7.212 182.149

    1811-1815 8.507 56.561 37.213 107.289 4.398 213.968

    1816-1820 12.722 58.776 44.247 115.872 5.493 237.110

    1821-1825 6.136 38.998 34.687 135.545 5.169 220.535

    1826-1830 5.640 58.928 34.405 202.343 2.450 303.766

    1831-1835 701 16.700 8.125 57.800 0 83.326

    16

    CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison: University of Wisconsin Press, 1969; ELTIS,

    David; RICHARDSON, David (eds.), Routes to Slavery: Direction, Ethnicity and Mortality in the Transatlantic Slave

    Trade. Hoboken : Taylor and Francis, 2013 (foi anteriormente um número especial da revista Slavery & Abolition

    (18:1), 1997); ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven: Yale

    University Press, 2015. Não cabe aqui inventariar a recente literatura sobre o comércio atlântico de escravos, mas dizer

    que é extensa e instigante.

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    1836-1840 1.584 17.433 27.033 208.109 697 254.856

    1841-1845 2.110 19.296 12.202 99.215 2.645 135.468

    1846-1850 59 45.725 7.273 208.899 2.591 264.547

    1851-1855 0 981 350 5.248 0 6.579

    1856-1860 0 0 0 320 0 320

    Total

    69.397

    [28.952]

    415.331

    [256.837]

    259.404

    [54.983]

    1.281.500

    [579.591]

    35.991

    [5.933]

    2.061.623

    [926.296]

    Obs.: As células em cinza e os dados entre colchetes marcam o período e o volume estimado do

    tráfico ilegal. Fonte: Transatlantic Slave Trade Database (Estimates):

    https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates (consulta: 10/02/2019).

    Na Tabela 1, os dados das estimativas do Slave Voyages (não do total de viagens

    efetivamente documentadas) são de que dois milhões de africanos teriam desembarcado no Brasil

    no século XIX. A partir dessas estimativas, considerando as datas e as regiões, calculo que cerca de

    900 mil africanos tenham sido trazidos por contrabando. Isso inclui aqueles importados do norte do

    Equador a partir de 1816, e todo o tráfico entre 1830 e o início dos anos 1850. Apenas 11 mil deles

    foram apreendidos. Os outros foram mantidos em escravidão ilegal, se considerarmos a validade da

    lei de 1831.17

    Esses fatos distanciam a escravidão brasileira daquela de outras regiões do Atlântico.

    O único paralelo razoável, e ainda assim com ressalvas, é com Cuba.

    Novos sub-temas, novas abordagens

    Se o recurso ao Slave Voyages beneficiou toda a historiografia atlântica do tráfico com

    estimativas mais precisas de volume, origens e destinos, a brasileira tem um traço distintivo: a

    abordagem do tráfico ilegal se deu, inicialmente, a partir da história social, e com alguma ênfase no

    di ito. A public ão do do i “ i gl ? R i it do L i d 1831” m 007 iu d

    marco a essa nova historiografia, ao desdobrar o problema da ilegalidade do tráfico em várias

    17

    MAMI ONIAN, B t iz . “O di ito d f ic o li : o c o i t p t õ d l i d 1831”. I :

    LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli M. (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social.

    Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2006.

    https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates

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    temáticas e demonstrar o potencial analítico dessa nova perspectiva.18

    É importante dizer que as

    fontes dos arquivos brasileiros, para isso, são indispensáveis.

    Na última década, o tráfico ilegal no Brasil tem sido interrogado por vários ângulos.

    Assumindo os riscos da simplificação, vou tratar por temas: política, diplomacia, geografia do

    tráfico, economia, demografia e trajetórias.

    O estudo da política imperial pela perspectiva da história do tráfico ilegal nos faz reler os

    arquivos, os debates parlamentares e as memórias para compreender todos os movimentos no

    Parlamento, no governo, no Conselho de Estado e em outros espaços da política que tenham

    resultado nesse volume impressionante de 900 mil pessoas importadas e mantidas em escravidão

    ilegal. Alguns trabalhos notáveis seguem o caminho aberto por Luiz Felipe de Alencastro e Ilmar

    Rohloff de Mattos e explo m o co flito t o g upo pol tico qu ult m o “ g o” d

    1837, isto é, a tomada de poder pelo grupo conservador ligado aos cafeicultores escravistas do Rio

    de Janeiro. Esse foi o momento de virada, em que o governo brasileiro passou a praticar o que

    T mi o ch mou d “pol tic d c idão”, i to é, u t t ão o t áfico cl d ti o p

    garantir a manutenção da escravidão e, depois de 1850, uma defesa incondicional da escravidão

    mesmo sem o tráfico.19

    Dale Graden explorou os fatores internos, como a resistência escrava e os

    surtos de epidemia, que impactaram os anos cruciais da pressão britânica sobre Brasil e Cuba.20

    Marcus Carvalho e Thiago Campos Pessoa exploraram as ligações abertas e camufladas do

    contrabando com a política local em Pernambuco e no Rio de Janeiro respectivamente: o poder

    quase completo dos grandes negociantes sobre as autoridades encarregadas da vigilância (incluindo

    a polícia e os funcionários da Alfândega) ou dos procedimentos judiciais, e também a seletividade

    da repressão, segundo os grupos detentores da administração.21

    Já Sidney Chalhoub denunciou a

    18

    GRINBERG, Keila e MAMIGONIAN, Beatriz G. (orgs),“ ê V ?”: R L 1831. Dossiê

    especial da Revista de Estudos Afro-Asiáticos 29:1-3 (2007) (Rio de Janeiro), 85-340. 19

    PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização

    Brasileira, 2011. 20

    GRADEN, Dale. Disease, Resistance and Lies: The Demise of the Transatlantic Slave Trade to Brazil and Cuba.

    Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2014. 21

    CARVALHO, Marcus. “A p ão t áfico tl tico d c o di put p tidá i p o ci : o t qu o

    desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848”. Tempo (Niterói), v. 27 (2009), p. 151-167;

    CARVALHO, Marcus J. M. “O d mb qu p i : o fu cio m to do t áfico d c o d poi d 1831”,

    Revista de História (São Paulo), n. 167 (2012), 223-260; CARVALHO, M cu J. M. “O p t cho o id ci , um

    navio negreiro: política, justiça e redes depois da lei antitráfico d 1831”. Varia História (Belo Horizonte), v. 30 (2014),

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    cumplicidade geral do Estado imperial e todas as suas autoridades com o tráfico clandestino,

    argumentando que o perigo da (re)escravização ilegal recaía sobre todas as pessoas de origem

    africana no Brasil.22

    Em Africanos livres, a releitura da política entre o final da década de 1840 e o início da

    década de 1850 me permitiu identificar a variedade de forças em jogo: um abolicionismo quase

    clandestino entre os liberais, os africanos livres em busca do fim da tutela e os diplomatas britânicos

    que articulavam com a poderosa Royal Navy as apreensões de navios negreiros em águas territoriais

    brasileiras são algumas delas. Eusébio de Queirós, o poderoso ministro da justiça e o voto pela

    abolição do tráfico parecem, nesse contexto, uma imensa conquista política. Acompanhei também,

    em vários momentos do século XIX, o tratamento político do problema da escravidão ilegal, isto é,

    o debate sobre a aplicação da lei de 1831, que destaca claramente a renovação do pacto de defesa da

    escravidão ilegal a cada crise: 1850, 1871 e também nos anos 1880.23

    Trabalhos clássicos da historiografia brasileira abordam a diplomacia anglo-brasileira acerca

    do tráfico de escravos: de Pierre Verger, Leslie Bethell, Robert Conrad e Luis Henrique Tavares.24

    A nova geração de pesquisadores o faz com um olhar mais interessado às consequências sociais das

    negociações diplomáticas, e também atenta às trajetórias das pessoas escravizadas. O meu próprio

    trabalho serve aqui, novamente, de exemplo. Pesquisei a correspondência diplomática e persegui a

    trajetória de africanos que tiveram as vidas tocadas pelos acordos diplomáticos sobre o tráfico, sem

    deixar de mapear as mudanças de política, do lado britânico, ou brasileiro, com relação ao grupo.25

    p. 777-806; PESSOA, Thi go C mpo . “O comé cio g i o cl d ti id d : f z d d c p ão d f ic o

    d f m li Souz B u c ti o ”, Afro-Ásia (Salvador), n. 47 (2013). Ver t mbém COSTA, Al x A. “O ju z

    de paz são todos uns ladrões? Autoridades públicas e o tráfico de escravos no interior da província da Bahia (c. 1831 –

    c. 1841), Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 32 (2019), p. 123-141. 22

    CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia

    das Letras, 2012. 23

    MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Companhia

    das Letras, 2017. 24

    Ver notas 1 e 2; ver ainda TAVARES, Luís Henrique Dias. O comércio proibido de escravos. São Paulo: Ática, 1988. 25

    MAMIGONIAN, B t iz . “I th N m of F dom: Sl T d Abolitio , th L w d th B zili B ch of

    the African Emigration Scheme (Brazil-British West Indies, 1830s-1850 )” Slavery & Abolition v. 30 n.1 (2009), pp.

    41-66; foi public do m po tugu como “Em om d lib d d : boli ão do t áfico d c o , o di ito o mo

    brasileiro do recrutamento de africanos (Brasil - Caribe Britânico, 1830-1850).” Revista Mundos do Trabalho, v. 3 n. 6

    (2011), 67-92; MAMIGONIAN, Beatriz G. “Jo é M jojo F ci co Mo mbiqu , m i h i o d ot tl tic :

    ot ob co titui ão d t j t i d d boli ão.” Topói 11 (2010), 75-91.

  • 9

    Gilberto Guizelin, por sua vez, revisita as relações internacionais brasileiras e joga nova luz sobre

    novos temas associados à abolição do tráfico, como a representação brasileira em Luanda.26

    Dois outros temas da diplomacia que tocam o da escravidão e da abolição do tráfico são o

    das fugas de escravos para os países vizinhos onde a escravidão havia sido abolida, e o do sequestro

    de negros livres nesses países vizinhos e escravização deles no Brasil. Silmei Petiz, Rafael Peter de

    Lima, Jonatas Caratti, Karl Monsma e Thiago Araújo discutiram vários desses casos da fronteira

    brasileira com o Uruguai e a Argentina, e os problemas políticos e diplomáticos decorrentes.27

    Keila

    Grinberg, por sua vez, demonstra que a política da escravidão, considerando também a defesa da

    escravidão ilegal, era central à diplomacia brasileira durante o século XIX e guiava, entre outras

    negociações, as de tratados de limites e extradição.28

    Ainda no campo da diplomacia, mas também das trocas culturais, devo mencionar o trabalho

    importante de Nicolau Parés sobre as cartas trocadas entre os reis do Daomé e a corte portuguesa,

    entre o fim do século XVIII e o início do XIX, que faz parte de uma retomada da investigação das

    relações entre o Brasil e a África, em sendas abertas por Pierre Verger e José Honório Rodrigues.29

    26

    GUIZELIN, Gilberto da Sivl . “D poi do io g i o : c i ão do Co ul do B il i o m Lu d

    relações do Império com a colônia portuguesa de Angola, 1822-1860”. T d Douto do m Hi t i . og m d

    Pós-Graduação em História da UNESP-Franca, 2016. 27

    PETIZ, Silmei d S t’A . Buscando a Liberdade: as fugas -

    fronteira (1815-1851). Passo Fundo, Editora da Universidade de Passo Fundo, 2006; LIMA, R f l t d . “‘A

    N f d i t i d C Hum ’: E c iz õ Il g i R l õ ol tic F o t i do Brasil Meridional

    (1851-1868)”. Di t ão d M t do m Hi t i . og m d -Graduação em História da UFRGS, 2010; LIMA,

    R f l t d . “Diplom ci m x qu : Di ito d t c idão g d bil t l B il-Uruguai (1847-

    1869)”, Hi t ia e Cultura, v. 4 n. 1 (2015); CARATTI, Jonatas. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e

    do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense no contexto das leis abolicionistas uruguaias (1842-1862). São

    Leopoldo: Oikos, 2003; ARAÚJO, Thiago Leitão. “D fi do c idão: fugiti o i u g t g o pol tic

    da liberdade nas fronteiras do Rio da Prata (Brasil e Uruguai, 1842-1865). Tese de Doutorado em História. Programa de

    Pós-Graduação em História da UNICAMP, 2016; MONSMA, Karl; FERNANDES, V lé i Do l “F gil Lib ty:

    The Enslavement of Free People in the Borderlands of Brazil and Uruguay, 1846-1866”, Luso-Brazilian Review (2013),

    v. 50, p. 7-25. 28

    RINBER , K il . “Th Two E l m t of Rufi : Sl y, I t tio l R l tio s and Human Trafficking on

    th South Bo d of B zil i th 19th C tu y”, Hispanic American Historical Review, vol. 96, May 2016. 29

    VERGER, Fluxo e refluxo; RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Civilização

    Brasileira, 1961; ARES, Lu Nicol u. “C t do D omé: um i t odu ão”. Afro-Ásia (Salvador), v. 47 (2013), p.

    295-395, 013; ARES, Lu Nicol u. “Lib to f ic o , comé cio tl tico c domblé: A hi t i d um c t qu

    ão ch gou o d ti o”. R i t de História (São Paulo), n. 179 (2019), p. 1-34; ARES, Lu Nicol u. “E t B hi

    Co t d Mi , lib to f ic o o t áfico il g l”. I : iu ppi RA I; João FI UEIRÕA-REGO; Roberta

    STUMPF (Orgs.). Salvador da Bahia. Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador: Edufba-CHAM,

    2017, p. 13-50; SANTOS, Flávio Gonçalves dos. Economia e Cultura do Candomblé na Bahia: o comércio de objetos

    litúrgicos afro-brasileiros - 1850/1937. Ilhéu : Editu , 013; CASTILLO, Li E l. “M ppi g th ineteenth-century

  • 10

    Sobre a geografia do tráfico, tivemos grandes avanços nas duas últimas décadas: José

    Augusto Leandro expôs o funcionamento do tráfico ilegal na baía de Paranaguá (então 5ª comarca

    da província de São Paulo); Marcus Carvalho apontou para o uso das praias de Pernambuco,

    território dominado por senhores de engenho, nos negócios clandestinos; Priscila Alonso trabalhou

    com os desembarques clandestinos no litoral paulista; Daniela Yabeta e Thiago Pessoa investigaram

    as minúcias do funcionamento do tráfico no litoral sul do Rio de Janeiro. Além disso, Paulo

    Moreira e Vinicius Oliveira pesquisaram os desembarques pós-1850 no Rio Grande do Sul, assim

    como Ubiratan Araújo e Paulo Oliveira Jesus trataram do cenário baiano.30

    Tais pesquisas partem

    dos dados da base Slave Voyages e aprofundam a pesquisa na documentação britânica e/ou

    complementam com documentação brasileira. Assim, as relações comerciais com os

    correspondentes africanos e as condições políticas para o desenvolvimento do comércio clandestino

    são conhecidas em mais detalhe, com identificação de locais de aparelhamento de navios e

    desembarque, de proprietários de navios, mestres e capitães e episódios específicos de travessias e

    desembarques.31

    As consequências econômicas da proibição e do tráfico ilegal têm recebido renovada

    atenção. Leonardo Marques investigou em grande detalhe o envolvimento norte-americano no

    comércio de escravos, incluindo o Brasil, e Jaime Rodrigues abordou um tema pouco estudado até

    aqui, da concorrência entre comerciantes baseados em Portugal e comerciantes baseados no Brasil,

    Brazilian returnee movement: Demographics, life stories and the question of slavery.” Atlantic Studies, v. 13 (2016), p.

    25-52. Sobre a experiência e a logística das travessias, é incontornável o livro de RODRIGUES, Jaime. De costa a

    costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro, 1780-1860. São Paulo:

    Cia das Letras, 2005. 30

    LEANDRO, Jo é Augu to. “Em águ tu : io g i o b d guá”. Esboços (Florianópolis), n. 10

    (2003), p. 99-117; de Marcus Carvalho ver artigos citados na nota 18; ALONSO, i cil Lim . “O Vale do Nefando

    Comércio: O Contrabando de Escravos no Vale do Paraíba Paulista entre 1850-1860”. Di t ão d M t do m

    História. Universidade de São Paulo, 2006; MORAES, D i l i Y b t d , “A c pit l do com d do : Audito i

    l d M i h o julg m to ob lib d d do f ic o p dido Ilh d M mb i (1851)”,

    Dissertação de Mestrado em História, UNIRIO, 2009; PESSOA, Thiago Campos. O império da escravidão: o complexo

    Breves no Vale do Café (Rio de Janeiro, c.1850-1888). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018; MOREIRA, Paulo R.

    St udt, “Bo i m lu go m t d b co : ot ci ob o último d mb qu d c o o Rio d do

    Sul” i V Lúci M. BARROSO (o g.) Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: EST, 2000, 215-

    235; OLIVEIRA, Vinicius Pereira, De Manoel Congo a Manoel de Paula: Um africano ladino em terras meridionais.

    Porto Alegre: EST Edições, 2006; ARAÚJO, Ubi t C. “1846:Um o ot B hi L go . N g cio , goci t

    out o p c i o ”. Afro-Asia (Salvador), v. 21/22 (1999); JESUS, Paulo C. Oliveira. “Not ci d um p qu o t fic t

    ilegal na Bahia (1837-1855)”, Ap t ão o Simp io N cio al de História, São Paulo, 2011. 31

    CARVALHO, Marcus J. M. Trabalho, cotidiano, administração e negociação numa feitoria do tráfico no rio Benim

    em 1837, Afro-Ásia (Salvador), v. 53 (2016), p. 227-273.

  • 11

    demonstrando o impacto das medidas regulatórias e repressivas do início do XIX sobre a

    atividade.32

    A transferência das operações complexas de preparação das viagens e estruturas de

    desembarque para longe dos portos das capitais também vem sendo estudada. O trabalho de Thiago

    Pessoa sobre os irmãos Breves demonstrou, em minúcias, as estruturas físicas e o enraizamento

    político para promover e sustentar o tráfico para o litoral sul do Rio. Para além disso, Walter Mattos

    Pereira e Silvana Andrade dos Santos estão testando a conhecida hipótese de que a intensificação

    dos investimentos depois de 1850 pode ter tido relação com a liberação de capitais antes engajados

    no tráfico: investigam a implantação de manufaturas e investimento em obras de infra-estrutura no

    norte do Rio e sul do Espírito Santo e no sul da Bahia. A identificação das pessoas – sobretudo os

    grandes comerciantes – engajadas no tráfico vai certamente nos levar a novas descobertas sobre

    seus investimentos.33

    A história das localidades sofre uma releitura a partir dessa pesquisa sobre o tráfico ilegal

    assim como a biografia de várias personalidades. Tomo o exemplo do Marquês de Paraná, Honório

    Hermeto Carneiro Leão, ministro e conselheiro de Estado que também era cafeicultor, dono de

    algumas centenas de pessoas escravizadas, além de detentor de uma ou duas dezenas de africanos

    livres. Em 1855, ele admitiu, em discurso no Parlamento, que sua fortuna provinha do dote de sua

    mulher, mas também do trabalho dos africanos livres e dos primeiros africanos (provavelmente

    ilegais) na implantação dos cafezais de sua fazenda Lordelo (em Sapucaia, Rio de Janeiro).34

    Como

    ele, centenas de pessoas próximas ao governo imperial e aos governos proviciais receberam a

    32

    MARQUES, Leonardo. The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776–1867. Yale U.

    , 017; MARQUES, L o do. “Um último t i gulo ot io: co t b di t po tugu , ho cub o

    portos norte-americanos na fase final do tráfico transatlântico de escravos, 1850-1867”, Af o-Ásia (Salvador), v. 53

    (2016); RODRI UES, J im . “'N t t áfico ão há lug do': t fic t po tugu o comé cio d f ic o

    p o B il t 1818 18 8”. História - São Paulo (Franca), v. 36 (2017), p. 1-18. Ver também JESUS, Paulo C.

    Oli i , “Mantendo o curso: restrições, subterfúgios e comércio da escravatura na Bahia (1810-1817)”. Tese de

    doutorado em História. Universidade Federal da Bahia, 2017. 33

    PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil, a afirmação é atribuída ao Barão de Mauá; SANTOS, Silvana

    A d d . “N t co t tão l g : O t áfico t tl tico d c iz do di miz ão d co omi gio i o

    Brasil (c. 1831 - c. 1850)”, Revista de História (São Paulo), n. 177 (2018); EREIRA, W lt L. C. d M tto . “Jo é

    Gonçalves da Silva: traficante e tráfico de escravos no litoral norte da Província do Rio de Janeiro, depois da lei de

    1850”. Tempo (Niterói), v. 16 (2011), p. 285-312. 34

    Ver EL-KAREH, Almi Ch ib , “O M qu d á: o pol tico o f z d i o” i Luiz Felipe Seixas CORRÊA

    et alii, O Marquês de Paraná, Brasília: FUNAG, 2004, pp. 15-30; Ric do SALLES, “A águ do Niág . 1871: c i

    d c idão o oc o qu m ” i K il RINBER Ric do SALLES (o g .), O B il Imp i l, ol. 3. Rio d

    Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 39-82; MAMIGONIAN, Africanos livres, 144-149.

  • 12

    concessão de africanos livres, e portanto se beneficiaram do trabalho não remunerado, mas também

    milhares de fortunas, grandes e pequenas, em todo o país, foram constituídas ou consolidadas a

    partir do envolvimento com o comércio ilegal ou da compra e exploração do trabalho de africanos

    clandestinos, que deveriam ser livres. A partir dessa releitura, a história do tráfico passa a ser

    inscrita na história dos lugares e nas biografias das pessoas com vínculos inegáveis a tal atividade

    ilegal.35

    Por outro lado, há um bom número de estudos sobre aqueles que lutaram contra a

    escravização ilegal e pela liberdade destes africanos, como foi o caso de Luiz Gama, o abolicionista

    negro atuante em São Paulo entre as décadas de 1860 e 1880. Trata-se de pontuar, em tais

    biografias, que lutar pela aplicação da lei de 1831 fazia parte do programa do abolicionismo radical,

    e que foram poucos os que o adotaram. Destaco a importância dos trabalhos de Elciene Azevedo

    sobre a luta de Luiz Gama e Antônio Bento nos tribunais, assim como de Ricardo Caíres Silva sobre

    os abolicionistas da Bahia ou ainda de Noemi Silva sobre o José Cleto da Silva, de Paranaguá.36

    Nessa extensa bibliografia, talvez a seção mais vasta seja a dos trabalhos que buscam

    identificar os sujeitos de origem africana cujas vidas foram marcadas pelo tráfico. Foram homens e

    mulheres que fizeram a travessia escravizados e muitas vezes conseguiram se alforriar. Cabe pensar

    aqui naqueles que viveram no período do contrabando e que de alguma forma se envolveram ou

    foram afetados por ele, como o caso de Rufino, africano que viveu como escravo na Bahia e no Rio

    Grande do Sul e depois, liberto, se engajou como cozinheiro em navios da rota entre o Rio e a

    África Centro-Ocidental e ainda teve passagem por Serra Leoa, onde defendia os interesses dos

    proprietários do navio apreendido pelos britânicos e aproveitou para se aperfeiçoar nos estudos do

    Islã. Ou também casos de africanos ilegalmente escravizados, como Manoel Congo, que fazia parte

    de um dos últimos carregamentos do litoral do Rio Grande do Sul e foi escravizado por mais de

    35

    EREIRA, W lt L. C. d M tto ; ESSOA, Thi go C mpo . “Sil cio tl tico : uj ito lug p i i o o

    tráfico ilegal de africanos para o Sudeste brasileiro (c.1830 - c.1860). Estudos históricos (Rio de Janeiro), v. 32 (2019),

    p. 79-100. 36

    AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imeprial cidade de São Paulo. Campinas:

    Editora da Unicamp, 1999; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos. Lutas jurídicas e abolicionismo em São Paulo.

    Campinas: Editora da Unicamp, 2010; SILVA, Ricardo Caíres. “M m i do t áfico il g l d c o õ d

    liberdade: Bahia, 1885-1888.” Afro-Asia (Salvador), v. 35 (2007), p. 37-8 ; SILVA, Ric do C . “O gate da Lei

    d 7 d o mb o d 1831 o co t xto do bolicio i mo b i o”. E tudo Af o-Asiáticos (Rio de Janeiro), v. 29

    (2007), p. 301-340; SILVA, Noemi S. “Abolicio i mo m guá: po t m to p ti d t j t i d um

    p of o público”, A i do XV Encontro Regional de História. Curitiba, julho de 2016.

  • 13

    uma década antes de ter seu estatuto de africano livre reconhecido. Os trabalhos sobre trajetórias

    têm se multiplicado.37

    Não poderia deixar de mencionar ainda o conjunto de trabalhos que se ocupa dos africanos

    emancipados por consequência dos tratados bilaterais ou pela legislação de abolição do tráfico, o

    grupo qu fo mou c t go i mb gu d “ f ic o li ”. A t , tigo c p tulo ob o

    africanos livres são muito numerosos desde 2000 e justamente fazem a ponte entre a literatura do

    tráfico ilegal e a da escravidão e da liberdade.38

    A memória do tráfico de escravos foi capturada de maneira atenta por Ana Lugão Rios em

    sua pioneira pesquisa sobre o pós-abolição, e vem sendo objeto de trabalho original e instigante de

    Hebe Mattos e Martha Abreu sobre comunidades de remanescentes de quilombos no litoral sul do

    Rio de Janeiro. Tal iniciativa vincula o problema da ilegalidade do tráfico às políticas de reparação,

    tanto por meio de titulação de terras, quanto de reconhecimento do patrimônio cultural.39

    37

    REIS, João J.; Flávio S. GOMES e Marcus J. M. CARVALHO, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no

    Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Penso também, por exemplo, no trabalho de

    RADEN, D l JESUS, ulo C. Oli i . “Th B ll Miqu li ff i : Th t tl tic slave trade, British

    upp io d o Af ic ’ qu t fo lib ty i th B y of All S i t , S l do , B zil i 1848”, Atlantic Studies:

    Global Currents, v. 14, n. 2 (2017), p. 196-215. 38

    RODRI UES, J im , “F o, t b lho co flito: o f ic o li Fáb ic d Ip m ”, História Social

    (Campinas), n. 4-5 (1998), pp. 29-4 ; FLORENCE, Afo o B., “R i t ci E c m São ulo: A luta dos escravos

    da Fábrica de Ferro São João de Ipanema, 1828-184 ”, Afro-Ásia (Salvador), n. 18 (1996), pp. 7-32; Alinnie Silvestre

    Mo i , “Lib d d tut l d : o f ic o li l õ d t b lho Fáb ic d l o d E t l . S d

    Estrela - RJ (c. 1831- c. 1870)”, Di t ão d M t do m Hi t i Soci l, U i id d E t du l d C mpi ,

    2005; BERTIN, Enidelce. Os meias-caras. Africanos livres em São Paulo no século XIX. Salto, SP: Schoba, 2013;

    SOUSA, Gustavo P. Africanos livres. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013; MOURA, Zild A. “Do tõ d f ic p

    os do Brasil: os africanos livres da Sociedade de Mineração de Mato Grosso (Alto Paraguai-Diamantino, 1851-1865)”,

    Tese de doutorado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 2015; CAVALHEIRO, D i l C. “Af ic o

    Li o B il: t áfico il g l, id tut l d xp i ci col ti o éculo I ”, Di t ão d M t do m

    História. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2015; SILVA, Moisés S. “Af ic o livres em Alagoas: tráfico

    ilegal, escravidão, tutela e liberdade (1849-1864)”, Di t ão d M t do m Hi t i . U i id d F d l d

    Bahia, 2017; RIBEIRO, Mariana A. P. Schatzer, Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos

    livres na Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema- Sorocaba- SP (1840-1870). São Paulo: Alameda Editorial,

    017; VIEIRA, Jof T. “E t lib d d c idão: xp i ci do f ic o li o C á (1835-1864)”,

    Tese de doutorado em História. Universidade Federal do Ceará, 2017, além do já citado MAMIGONIAN, Africanos

    livres. 39

    RIOS, A Lugão. “Não qu c um l f t : Not ob o último f ic o m m i d’ f ic o V l do

    b .” I : João FRAGOSO; Manolo FLORENTINO; Antônio Carlos Jucá SAMPAIO; Adriana CAMPOS. (Orgs.).

    Nas Rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes, 2006, p. 645-

    670. MATTOS, Hebe M.; ABREU, Martha. Passados Presentes. Memória Negra no Sul Fluminense. 2012. Vídeo.;

    MATTOS, Hebe M.; ABREU, M th . “Lug do T áfico, Lug d M m i : o o quilombo , p t imô io

    cultu l di ito à p ão”. I : H b MATTOS. (O g.). Diáspora Negra e Lugares de Memória. Niterói: EDUFF,

    2013, p. 109-122; MATTOS, Hebe M.; ABREU, M th . “A hi t i como p fo m c : jo go , quilombo

  • 14

    A demografia da escravidão, por sua vez, vem incorporando lentamente, a meu ver, as

    questões associadas às flutuações do tráfico e às implicações do contrabando. A idade dos homens e

    mulheres nos registros revelam se provinham do comércio clandestino ou não. Se pensamos que

    uma parte dos 900 mil africanos vendidos ilegalmente (300 mil deles eram mulheres) tiveram

    crianças, as consequências do contrabando ficam ainda mais evidentes. Carlos Lima é um dos que

    tem levado as flutuações e a ilegalidade do tráfico em consideração.40

    Considerações finais

    Essa releitura da história da escravidão no século XIX pressupõe uma periodização que leve

    em consideração os marcos temporais próprios da história do tráfico ilegal. Uma primeira fase

    estaria compreendida entre a assinatura do Tratado Anglo-Português de 1815 (e a Convenção

    adicional de 1817) e entrada em vigor do Tratado Anglo-Brasileiro de 1826, em 1830. Nesse

    período, o tráfico do norte do Equador foi proibido, implicando sobretudo aquele dirigido à Bahia, e

    resultando, segundo estimativas do TSTD, na importação ilegal de 160 mil africanos. Incluído

    nessa fase está o período imediatamente anterior à entrada em vigor do Tratado, entre 1826 e 1830,

    em que o fornecimento (legal) de africanos se acelerou, em antecipação da abolição. Uma segunda

    fase abrange o período entre a entrada em vigor do tratado, em março de 1830 e da lei de 7 de

    novembro de 1831 e o ano de 1835 aproximadamente, fase em que o tráfico esteve todo proibido e

    o governo imperial implicado na sua repressão, resultando em baixa nas importações. O super

    abastecimento da fase anterior teria influenciado a queda. De 1835 em diante, a terceira fase é

    marcada pela retomada das importações, com a formulação de um entendimento político de que o

    governo não se engajaria na repressão. Nesse período, o tráfico atingiu volume recorde. O

    funcionamento das comissões mistas anglo-brasileiras no Rio e em Serra Leoa foi marcado por

    grande disputa e seu fechamento, em 1845, foi seguido da edição do Ato Aberdeen que autorizou a

    m m i do t áfico il g l d c iz do f ic o ”. História Pública no Brasil. Sentidos e Itinerários. São Paulo:

    Letra e Voz, 2016, p. 221-236. 40

    FLORENTINO, Manolo G.; José Roberto GÓES. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio

    de Janeiro, c. 1790 – c. 1850, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; LIMA, C lo A.M. “F o t i , c

    tráfico: escravidão, doenças e mortes em Capivari, SP, 1821-1869”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Rio de

    Janeiro), v. 22 (2015), p. 899-919; LIMA, C lo A. M.. “C f iculto , p oduto d úc t áfico d c o

    província de São Paulo (1825-1850)”. Revista de História Comparada (Rio de Janeiro), v. 6 (2012), p. 168-199.

  • 15

    Royal Navy a apreender navios em águas territoriais brasileiras e levar os navios apreendidos para

    tribunais britânicos. A quarta fase, inaugurada pela aprovação da Lei Eusébio de Queirós em

    setembro de 1850, foi marcada pela repressão ao tráfico e aos traficantes por parte do governo

    brasileiro (até os últimos desembarques, ocorridos em 1856) e por articulações pela manutenção da

    escravidão. Estende-se até a Questão Christie, entre 1863-65 e envolve conflitos diplomáticos em

    torno da liberdade dos africanos livres e da escravidão ilegal dos africanos importados por

    contrabando. Na quinta fase, da Questão Christie em diante, a pressão diplomática diminuiu muito,

    mas o governo brasileiro esteve engajado em garantir a propriedade ilegal sobre os africanos

    contrabandeados e evitar qualquer questionamento vindo dos militantes abolicionistas que se

    articulavam. Um marco importante foi a Lei do Ventre Livre, de 1871, que através da matrícula dos

    escravos simulou uma legalização da escravidão daqueles importados por contrabando desde 1831.

    O tráfico ilegal marcou o debate sobre a abolição da escravidão no Brasil até o fim, assim como a

    vida dos escravos, libertos e africanos livres.

    Esse entendimento da política de defesa do tráfico e da manutenção da escravidão provoca a

    narrativa de fundo abolicionista de que a escravidão teria desaparecido gradualmente no Brasil

    oitocentista, e que as sucessivas leis formariam um movimento em direção à abolição. Tal

    interpretação não se sustenta mais. Sob a nova perspectiva que reconhece a centralidade do tráfico,

    ganha relevo a compreensão de como operavam as forças conservadoras, de defesa da escravidão.

    Esta historiografia nos impele a reinterpretar a lei de 1831, que não foi para inglês ver, mas também

    a lei de 1850, a de 1871 e o movimento abolicionista. Ela nos provoca a investigar como foi

    possível manter tanta gente escravizada ilegalmente, por tanto tempo, e a reler as histórias de

    resistência e de violência entre senhores, feitores e escravos.

    A memória da escravidão, sendo formulada pelos abolicionistas, e sobretudo pelos mais

    conservadores durante a república, não levou o tráfico em conta. É compreensível. A história do

    tráfico revela o funcionamento do Estado brasileiro para reter na escravidão ilegal cerca de um

    milhão de pessoas, em nome de defender a propriedade. Ela revela o funcionamento do direito, do

    sistema judiciário para sustentar esta propriedade ilegal, e os nomes dos agentes do Estado que

    foram operadores e cúmplices da ilegalidade. Ela revela também uma multidão de pessoas que se

    beneficiaram economicamente e socialmente do crime. Sabemos seus nomes e seus endereços. A

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    história do tráfico ilegal e de suas consequências também nos dá a felicidade de saber que havia

    resistência por parte das próprias pessoas escravizadas e de militantes que se opunham a este estado

    de coisas e o prazer de conhecer seus discursos e estratégias. No contexto presente, de agrupamento

    e fortalecimento das forças conservadoras, de ataques a direitos dos trabalhadores, de recuo na

    condenação da escravidão contemporânea, creio que os estudos do tráfico ilegal no Brasil se

    fortalecerão, pois propõem uma reavaliação das consequências econômicas, políticas, culturais e

    sociais da escravidão na nossa história. Como formulou Luiz Felipe de Alencastro, o silêncio sobre

    a escravização ilegal de quase um milhão de pessoas é o pecado original de nossa sociedade e da

    ordem jurídica brasileira. Esse argumento dá a base, hoje, para a defesa das políticas de inclusão

    dos indivíduos de origem africana e de defesa de seus direitos. Continuar a estudar a escravidão e o

    tráfico ilegal é uma forma de sustentar a construção de uma sociedade igualitária, solidária,

    democrática e soberana, capaz de superar, finalmente, as consequências do tráfico e da escravidão.