O Século de Borges, Eneida Maria de Souza

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O SÉCULO DE BORGES

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Crítica literária. Crítica cultural. Jorge Luis Borges.

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  • O SCULO DE BORGES

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  • Eneida Maria de Souza

    O SCULO DE BORGES

    2a edioRevista e ampliada pela autora.

    1 edio, de 1999, publicadacom a Contra Capa Livraria.

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  • Copyright 1999 by Eneida Maria de Souza

    CAPA

    Christiane Costa(Sobre imagem de Horacio Villalobos/CORBIS)

    REVISO

    Carolina Lins Brando

    EDITORAO ELETRNICA

    Waldnia Alvarenga Santos AtadeTales Leon de Marco

    EDITORA RESPONSVEL

    Rejane Dias

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    Revisado conforme o Novo Acordo Ortogrfico.

    Souza, Eneida Maria deO sculo de Borges / Eneida Maria de Souza. 2. ed. rev. conforme

    novo acordo ortogrfico. Belo Horizonte : Autntica Editora, 2009.

    ISBN 978-85-7526-379-2

    1. Borges, Jorge Luis, 1899-1986 - Crtica e interpretao 2. Escritoresargentinos - Biografia I. Ttulo.

    09-01059 CDD-ar868.4

    ndices para catlogo sistemtico:1. Argentina : Sculo 20 : Escritores : Crtica e

    interpretao ar868.42. Escritores argentinos : Sculo 20 : Crtica e

    interpretao ar868.4

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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  • 1899 24 de agosto, por escassssima margem, per-tence ao sculo XIX. De tantos smbolos tramados eentretramados ao redor da vida de Jorge Luis Borges,no existe um mais surpreendente que este: seu nasci-mento na iminncia de uma morte, a do sculo. Clausu-rar um tempo e abrir outro, o passado e o presente, osantepassados e o porvir de uma literatura. Melhor dir-se-ia de uma escrita e sua contrapartida, a leitura.

    Enrique Foffani

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  • SUMRIO

    Minha terra tem palmeiras ................................... 9

    Borges entre dois sculos ......................................19

    Lo cercano se aleja ..................................................33

    Um estilo, um aleph ................................................47

    Fices e paradigmas .............................................55

    Histrias de famlia na Amrica ............................65

    A letra e o nome .................................................69

    A Borges o que de Borges ................................75

    A morte e o sonho heroico ..................................79

    Genebra, 14 de junho de 1986 ............................85

    O verbete Borges ...............................................97

    Referncias ............................................107

    Nota.........................................................111

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    A comemorao do centenrio de Borges nessefinal de milnio une as pontas de dois sculos, comose a literatura do sculo XX coincidisse com o nasci-mento do escritor. Curiosamente, Oscar Wilde umdos autores mais prximos de Borges morre desco-nhecido em 1900, num hotel de Paris, abrindo o novosculo para as geraes vindouras e marcando o fimdo culto da personalidade literria. A partir da, aconsagrao autoral passar por momentos de crise,graas ao reconhecimento de ser a criao um gestomltiplo e descoberta do inconsciente por Freud,que abalaria o estigma da racionalidade positivista dosculo XIX. A Interpretao dos sonhos, obra inauguralda cincia onrica, acende as luzes do sculo XX, as-sim como libera o incontrolvel processo de associa-o das imagens, pelo qual a literatura se exercita eatua como referncia. Proliferam as exploraes dotema do duplo, do destino e do acaso, bem como dojogo de espelhos e de simulaes causado pelo des-conhecimento do sujeito de suas aes, da cada noabismo e do brinquedo com o labirinto.

    1900 registra ainda a morte de Nietzsche, vti-ma da demncia, abrindo o sculo para uma de suasmais ousadas vertentes filosficas, responsvel pelo

    BORGES ENTRE DOIS SCULOS

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    rompimento dos conceitos de genealogia e de ori-gem e pela transformao espacial da inveno do sen-tido, envolto na transparncia da superfcie e longeda seduo enganosa da profundidade. A data demorte do filsofo inaugura o sculo que ir faz-loum de seus mais significativos emblemas, assim comoacompanhar os passos tortuosos da fico de Borges.O desprezo do autor de O Aleph por Freud e sua pre-ferncia por Jung, os pr-socrticos, os budistas eSchopenhauer, no eliminam as inmeras coincidn-cias da potica borgiana com o pensamento freudia-no: ambos se pautam pela desconfiana em relaoao controle do sujeito ante o discurso e se valem doestatuto da fico como poder criador. Mas Nietzs-che quem mais sopra no ouvido do escritor, seja pararomper as barreiras interdiscursivas, seja para acenar inveno de realidades como mola condutora do pen-samento moderno, seja para endossar a morte do hu-manismo como categoria filosfica e crist.

    Ainda que tenha nascido no apagar das luzes dosculo XIX, Borges imprime no sculo XX o seutrao ficcional, tornando-o borgiano, da mesma for-ma que Foucault lanou a previso filosfica a prop-sito de Deleuze, ao afirmar que este sculo seriadeleuziano. Percebe-se que o fascnio de Borges incalculvel quando se analisam os diferentes legadosdesse pensamento no Ocidente, vinculados linha-gem da crtica literria, voltada para o culto da lin-guagem como um fim em si ou para a abordagem detemas caros s Cincias Humanas, tais como: a ques-to da falta como mobilizao do vazio da lingua-gem; a existncia da verdade esttica como correlata tica discursiva; a reflexo sobre o fim do aspectoreferencial dos discursos, e sobre o fim da histria. Ocarter artificial da construo artstica, levada a seu

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    mximo pela potica borgiana, por meio da noo ilu-sria dos acontecimentos e do pastiche de textos dabiblioteca mundial, responde pelo grau de virtualida-de instaurado na esttica e na cincia contemporneas.

    As imagens emblemticas da biblioteca de Ba-bel criadas por Borges se articulam com a lgica serialdo universo, por conterem e ao mesmo tempo dis-solverem qualquer sentido de propriedade do sujeitoperante os objetos, perdendo-se, enfim, na impesso-alidade e no absurdo. A irrupo desse sujeito no uni-verso de tinta e de papel a grande metfora da literaturase expande para a da fico permite encar-lo comorepresentante do mundo de faz-de-conta, fruto da in-finita montagem e desmontagem da verdade e damentira dos livros e dos catlogos. Pela exausto desaberes contidos na biblioteca, o vazio a instaladotorna-se cada vez mais visvel na sequncia desorde-nada dos comentrios e na imbricao de livros unssobre os outros.

    O artigo de Beatriz Sarlo Borges, crtica y teo-ra cultural, que assinala a participao do autor emrelao s revolues culturais processadas nas primei-ras dcadas do sculo XX, entre elas a da indstriacultural, torna-se imprescindvel para que se com-preenda a posio de Borges como intelectual argen-tino. Segundo a ensasta, os intelectuais das elitesletradas no permanecem indiferentes nem margemdessas transformaes de ordem cultural. Mantm-se ora como produtores da cultura de massa, por in-termdio da qual Borges publica, na revista Crtica,os relatos da Historia universal da infmia, ora como osque reconsideram o lugar em que se encontra a altaliteratura, no marco de um mundo simblico cada diamais estratificado (SARLO, 1999). Ainda que Borges se

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    mantenha afastado das grandes correntes tericas destesculo, como a psicanlise, o marxismo, o existen-cialismo e a fenomenologia, Sarlo admite que no menos verdadeiro que o escritor revele-se sensvelaos problemas que emergem da conjuntura ideolgicae que afetam o imaginrio coletivo:

    As democracias de massa, o carter plebeu das socie-dades que se modificam no primeiro ps-Guerra, oconflito entre elites tradicionais e intelectuais de novotipo o marco de suas intervenes apenas aparente-mente literrias. (SARLO, 1999, p. 10)

    Com base na estreita relao entre os princpioscomuns do imaginrio filosfico moderno e ficcio-nal, a presena de Borges nessa rede interdisciplinar einterdiscursiva funciona, contudo, como outra vozque se integra s demais. importante reconhecerque a mquina produtora de fices permeia as disci-plinas e no constitui privilgio apenas da literatura,entendida como a ocupante de um lugar especial ehegemnico. A diluio do conceito de um sparadigma norteando o pensamento contemporneo de extrema importncia para se refletir sobre a rela-o de superfcie e de horizontalidade existente entreas diferentes disciplinas. impossvel pensar, a partirdessa reviravolta conceitual, no estabelecimento dearticulaes hierrquicas e verticalizadas na relaoentre os discursos. Nesse sentido, o sculo XX passa,inevitavelmente, por explicaes que vo da filosofia fico, permeadas por inseres de natureza histri-ca, psicanaltica, antropolgica e poltica.

    Com o gradativo declnio do paradigma cient-fico, os estudos literrios tambm foram impelidos areformular conceitos e metodologias, na esteira deposies ps-estruturalistas. Entre as inmeras portas

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    abertas pelos tericos, algumas persistiram na linhaanaltica de base imanentista e textualista com forteinfluncia dos princpios prprios semiologia, psi-canlise e filosofia e outras partiram para o resgateda Histria e do contexto polticossocial. A impor-tncia atribuda fico como categoria que percorreos variados discursos e teorias recebe tratamento di-ferenciado e depende da funo a ela atribuda. Oequvoco cometido por algumas posies metodo-lgicas exercidas na atualidade consiste em conside-rar o estatuto da fico segundo critrios essencialistas,descontextualizando diferentes manifestaes liter-rias e artsticas em defesa de uma pretensa ontologia.

    Se o texto literrio de Borges uma refernciaimprescindvel para se repensar o sculo XX comodominado pelo paradigma da fico e, mais precisa-mente, pela ausncia de limites entre a realidade e asua construo virtual, os defensores de uma tica li-terria e histrica no se contentam em aceitar taisprovocaes. Os princpios da esttica ps-moderna,considerados pela crtica tradicional como desnorte-adores e inconsequentes, seriam os responsveis pelaatual ausncia de critrios na avaliao dos distintosdiscursos que integram o pensamento contempor-neo. Dentre esses princpios, citem-se o exerccio dopastiche como resposta criatividade neovanguardista,a concepo do discurso histrico como construoartificiosa, a desconfiana em relao veracidade dosdocumentos e a relatividade dos valores como resul-tado da diluio de textos considerados hegemni-cos. A censura a esses pressupostos feita em nomeda defesa da tica e da ideologia de determinados gru-pos. A crtica literria se posiciona, portanto, ora comvistas preservao dos valores literrios canonizadospelo alto modernismo, ora aceitando esses princpios

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    como marca borgiana por excelncia de um modode pensar a literatura e os sujeitos que a interpretam.Outra vertente, de natureza hermenutica, voltadapara a diferena entre o pacto ficcional e o biogrfico,tende a separar rigidamente os acontecimentos entreaqueles reais e aqueles inventados, o documento his-trico da fico.

    Como leitor da tradio de escritores considera-dos clssicos, Calvino escolhe Borges como um dosnomes para constar de sua biblioteca, composta, nasua maioria, de autores europeus. O escritor argenti-no responde pela esttica da brevidade e pelo apuroda geometria, parmetros literrios caros ao escritoritaliano e marcas registradas da potica moderna. Ograu de potencialidade representado pela obra de Bor-ges reside na fabulosa metfora da literatura, levada ensima potncia e compartilhada por Calvino, prin-cipalmente quando este entende ser tal qualidade oque torna a obra de arte liberta das prises causalistasda Histria e aberta aos infinitos jogos de significao:

    O que mais me interessa anotar aqui que nasce comBorges uma literatura elevada ao quadrado e ao mes-mo tempo uma literatura como extrao da raiz qua-drada de si mesma: uma literatura potencial, para usarum termo que ser desenvolvido mais tarde na Frana,mas cujos prenncios podem ser encontrados em Fic-ciones, nos estmulos e formas daquelas que poderiamter sido as obras de um hipottico Herbert Quain.(CALVINO, 1993, p. 249)

    Com o intuito de esclarecer o lugar ocupado pelafico de Borges no interior das Cincias Humanas, aescolha de trs ensaios, cujo objeto de anlise a suaobra, pretende examinar diferentes posies relativasaos trs tericos escolhidos. Dentre essas, duas so

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    contrrias ficcionalizao do universo borgiano, ope-rao entendida segundo um critrio universalizanteque atinge outras reas; a terceira mostra-se favorvel posio da obra do escritor ante as demais discipli-nas, sendo interpretada como emblema desta era.Nos dois primeiros casos, representados pelos ensai-os de Luiz Costa Lima (1998) Aproximao de Jor-ge Luis Borges e de Roland Quilliot (1988) Lafascination moderne de limpersonnel, so discuti-das as diferentes acusaes de a obra borgiana ser con-siderada uma das referncias para balizar o grau deficcionalizao dos conceitos que integram o univer-so terico do sculo XX. O texto de Lisa Block deBehar A inveno terica do discurso crtico latino-americano defende o princpio de ser a imaginaointelectual de Borges capaz de antecipar e de con-densar a fico e o conhecimento de, pelo menos,meio sculo (BEHAR, 1998, p. 15).

    O texto de Luiz Costa Lima consiste na reflexo,em contraponto, sobre a teoria por ele desenvolvidaacerca do controle do imaginrio exercido pelos discur-sos religiosos e polticos perante o discurso literrio, no-tadamente em pocas histricas marcadas pela censura.Na anlise que realiza de certa parcela da crtica literriadirigida obra de Borges, o ensasta denuncia outra mo-dalidade de controle, o do ficcional, ao se impor comohegemnico e ilimitado ante os demais discursos. O ar-gumento se baseia na tendncia dessa postura crtica denegar as fronteiras discursivas, o que resulta em conside-rar a obra literria dotada de poderes excepcionais quesuplantariam os textos considerados fechados de outrasreas, por exemplo, das Cincias Humanas.

    Se a Histria ocupou no sculo XIX o lugarde destaque e de controle em relao literatura, a

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    lingustica passou a ter no sculo XX, com o estrutu-ralismo, a funo de detentora da chave que abriria ointercmbio disciplinar. Neste final de milnio, a fic-o estaria atuando como a mola mestra do saber. Seos dois primeiros exemplos o paradigma histrico eo lingustico traduzem a subordinao disciplinar eo racionalismo cientfico que marcaram o pensamen-to moderno, o terceiro revela o poder da imaginaocomo possibilidade de sada para o convvio entre ateoria e a fico. Movida ainda por princpios hierar-quizantes e verticalizados quanto ao exerccio da in-terdisciplinaridade, a crtica literria estaria cometendoo mesmo equvoco das anlises anteriores, ao esco-lher um determinado discurso como aglutinador ecapaz de condensar os demais:

    Se, no sculo passado, o romance tinha de imitar a Histriapara se legitimar, Borges contribuiu decisivamente para o modoinverso: o historiador, seno o filsofo ho de se tornar ficcio-nistas. Este monismo do ficcional no menos autoritrio econtrolador quanto qualquer outro. certo que o ficcionalno pode se considerar a si mesmo depositrio da verdade,porque seria negar seu prprio estatuto. Ou seja, o limite parao germe controlador que encontramos em Borges, constitu-do pelo fato de que no pretenda ser seno um ficcionista.(LIMA, 1998, p. 301)

    Colocando-se partidrio da pluralidade discursi-va, o terico discorda ao mesmo tempo da posiomonista dos controladores da fico e do imagin-rio e daqueles que se inclinam a reduzir todas asmanifestaes discursivas inveno ficcional. A cul-pa, portanto, deixa de ser apenas de Borges, emboraeste se comporte como o grande inventor de fices.A culpa tambm daqueles que se apropriam desseuniverso metafrico, alando-o categoria de um

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    modelo ideal, possvel de se adequar a qualquer ou-tro. Na condio de fabricante de fices, torna-seevidente que o lugar ocupado pelo escritor na cadeiados discursos de outra ordem. Por essa razo, noentender de Luiz Costa Lima, seria por demais desa-conselhvel interpretar a obra de Borges segundo umvis exclusivista.

    No extremo oposto ao pensamento do tericobrasileiro embora insistindo na metfora da ficocomo trao diferenciador da obra borgiana o textodo filsofo francs Quilliot tem como argumento dedefesa os princpios humanistas que por muito tem-po nortearam a crtica literria e a prpria literatura.Diante da desconstruo estruturalista do sujeito e daao igualmente desmitificadora da fico moderna,responsveis pelo desaparecimento de categoriasidentitrias, racionalistas e essencialistas, o filsofo en-contra em Borges a ilustrao literria mais fascinantedesse estado de coisas. A fico borgiana apresenta-secomo a grande causadora da instaurao da morteno interior de um universo de tinta e papel, resul-tando no endosso do desaparecimento da figura dosujeito em um universo dominado por um enredotraado pelo destino literrio.

    Mas o que se torna alvo das inquietaes do fil-sofo a impossibilidade de a obra de Borges conser-var a perspectiva realista do mundo. Preso ao maisdetestvel princpio esttico negado pela potica bor-giana o realismo esse texto consegue apontar ooutro lado da moeda, a teoria neo-humanista que pre-tende controlar o ficcional com base em premissasfortemente ligadas liberdade, ao livre arbtrio e salvao do homem. Nesse sentido, Borges repre-sentaria o lado obscuro e pessimista da poca moderna,

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    por construir fices que desmoronam as certezas in-ventadas pela metafsica ocidental: nenhuma lucidez possvel, o homem destinado a uma cegueira ra-dical.1 O discurso filosfico neo-humanista estariaassim cumprindo a tarefa de ser o guardio do sabermoderno, insurgindo-se contra aqueles que contrariamas leis por ele defendidas. Na encruzilhada do final desculo, torna-se igualmente inaceitvel a imposiode um discurso frente aos outros, principalmente seele se refere ao ficcional, que, em princpio, no sereduz a redimir os males da humanidade.

    Em posio marcadamente contrria do filso-fo francs e de Luiz Costa Lima, Lisa Block de Beharconstata que, na metade do sculo XX, filsofos, es-critores e crticos partem das consideraes e da fic-o de Borges para a elaborao das teorias e dosparadigmas do pensamento contemporneo. A ima-ginao racionalizada da potica borgiana seria umadas razes pelas quais tanto fascnio ela exerce no ima-ginrio crtico desta poca, em que as fronteiras dis-ciplinares deslizam entre teoria e poesia, histria efico, viglia e sono, realidade e representao. Nes-sa esttica sem limites de Borges, comprova-se o de-saparecimento das oposies que definiam as diferenassistemticas de doutrinas mais rgidas, assim como origor dos sistemas e o otimismo neopositivista dos mo-delos cientficos (BEHAR, 1998, p. 16-17).

    1 Cet aveuglement est tellement profond quil rend impossible de conserverune perspective raliste sur le monde. Renonant notre matrialismespontan, qui prssupose une foi minimale dans les pouvoirs de lintellectrationnel, Borgs prfre adopter une hypothse audacieusement idaliste:celle, on la dit que le monde possde un ordre que nous ignorons, tout fait diffrent de sa rationalit apparente, ordre qui assigne tout venmentune fonction prcise et ncessaire (QUILLIOT, 1988, p. 297).

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    Depois de dados abundantes reunidos por Emir Ro-drguez Monegal em Borges par lui-mme, primeiro, eem outros livros, depois, j resultaria redundante fazerconstar que M. Blanchot, M. Foucault, J. Derrida, G.Genette, tambm J. Baudrillard, H.R. Jauss, E. Levi-nas, J. Barth, P. de Man, H. Bloom, G. Vattimo, J. L.Lyotard, U. Eco, e tantos outros pensadores, escritorese realizadores desta segunda metade do sculo partemdas consideraes e das fices de Borges. Tudo passapor Borges, ele passagem obrigatria, o trnsito e acausa inicial. Tantos poetas, tantos tericos e crticosse ocupam da imaginao de Borges, que a imaginaode Borges ocupou o mundo. No em vo, um crticonorte-americano propunha nominar Borges o em-blema desta era. Eu acrescentaria ao emblema a inscri-o ante litteram, mas essa outra histria. (p. 15)

    A posio radical da ensasta diante do papel fun-dador da fico borgiana em face dos demais discur-sos merece ser discutida, considerando-se o prprioconceito de fundao e a temerria ideia de perten-cer a imaginao ficcional a um s autor ou a umdiscurso propenso a abarcar o mundo. A eleio doescritor argentino como precursor do iderio ficcio-nal da modernidade contradiz a potica borgiana, poistorna-se inadmissvel aceitar que princpios causalis-tas promovam a existncia de teorias. Com a conhe-cida frase de Borges o escritor que cria os seusprecursores, abole-se a dimenso temporal das rela-es afetivas e instaura-se o livre trnsito de emprs-timos, sem a adoo de um paradigma especfico.Corre-se ainda o risco de transformar a fico borgianaem categoria absoluta e mundializada, capaz de pe-netrar em todos os ramos do saber e de abrir as portasda literatura de todos os tempos. O antdoto para adesmesura e a infinita potncia desse discurso proce-der com cautela, utilizando as prprias limitaes

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    histricas que os conceitos e as metforas sofrem nointerior do discurso crtico-terico.

    Antolgica tornou-se a apresentao de As pala-vras e as coisas, de Michel Foucault, em 1966, na qualBorges o nome que convida reflexo filosfica domomento, com a citao da inusitada Enciclopdiachinesa, capaz de embaralhar os princpios nortea-dores do pensamento ocidental. Esse marco histri-co da episteme estruturalista representa o incio doolhar desarmado do europeu frente Amrica Lati-na, que passa a rever os diferentes tipos de racionali-dades com a ajuda do imaginrio presente nos textosde Borges. Embora a lgica inusitada permita a cons-tatao de lugares heterotpicos, da presena do Outrodiante da supremacia europia do Mesmo, o sorrisode espanto de Foucault, no entender de Silviano San-tiago, duplica tanto antigas leituras europias dasculturas colonizadas, quanto modernas leituras lati-no-americanas das culturas colonialistas. Nesse sen-tido, Borges torna-se exportador de exotismo,re-alimentando o esgotamento cultural e artsticodo Ocidente europeizado. De que forma Foucaultse apropria da realidade latino-americana descritametaforicamente por Borges? Ao descobrir l naFrana que a China aqui na Amrica Latina e acol,na sia. Ao descobrir que tudo familiar (SANTIAGO,1998, p. 34-35).

    Compartilhar a posio de Lisa Block de Beharde ser o discurso ficcional borgiano contaminado poringredientes tericos que o colocam no mesmo pa-tamar dos textos representativos do saber contem-porneo por no mais sustentarem os antagonismosentre criao e crtica, obra de imaginao e obraintelectual significa acreditar no carter inventivoda teoria e na fora terica da fico. Mas entre a defesa

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    da fico fundadora de Borges, no espao interdisci-plinar dos discursos das Cincias Humanas, e a suacondenao realizada pelo filsofo, ou a cautela de-monstrada por Costa Lima diante do valor essencialatribudo a esse discurso, a sada conseguir articularo conceito de fico com o da Histria, assim comoo estatuto da esttica borgiana com outras manifesta-es discursivas. Se a acusao de ter sido o saber tericoda modernidade dominado por critrios universalis-tas e pela autoridade terica dos conceitos, a outraface da moeda no poder se manter ilesa, por defen-der a autonomia de um discurso que j nasceu hbri-do e multifacetado. importante ainda apontar oslimites que a leitura dos tericos franceses revela so-bre a obra de Borges, pois ao lado da dvida para comesse universo ficcional, refora-se o desconhecimen-to do imaginrio latino-americano.

    Ao se propor o desafio de que Borges emblema-tiza, com seu nascimento em 1899, a morte do scu-lo XIX e a vida do XX, no de se estranhar que suaobra tenha cumprido o destino de uma abertura parao futuro. Na virada do sculo, constata-se o poder deuma literatura que se notabilizou pelo altssimo graude potencialidade e de desapego aos marcos histri-cos, ao retraduzir poticas narrativas que pertencemtanto ao sculo passado quanto ao atual. Se ainda aesttica de fin de sicle vale-se da indefinio de esti-los e da releitura dos vazios da modernidade, Borgespermanece, inevitavelmente, como uma das agudasvozes do presente.

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