O Samurai Olvidado - Biografia de Mestre Murakami

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  • 7/17/2019 O Samurai Olvidado - Biografia de Mestre Murakami

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    O Samurai Olvidado

    Biografia de Mestre Tetsuji Murakami

    Jos Patro

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    Edio do autor.

    Impresso e Encadernao: Livraria Peninsular

    Tiragem: 100 exemplares

    Depsito Legal:

    ISBN: 978-989-95302-0-1

    Copyright 2006, Jos Antnio Gomes Patro

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    Memria de Mestre Tetsuji Murakami

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    O homem verdadeiramente superior deve ser capaz de dar a paz.

    Tetsuji Murakami

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    Agradecimentos:

    O autor deseja agradecer s seguintes pessoas e entidades pela colaborao prestada na

    preparao deste livro, pois sem a sua ajuda graciosa jamais esta obra poderia ter vindo a

    pblico: Rosa Brites, pela transcrio paciente de centenas de pginas de manuscritos, de

    transcries de entrevistas e outro material de base nas mais diversas lnguas; Mestre

    Humberto Heyden pelo trabalho de aconselhamento geral e traduo para lngua espanhola;

    Mestre Mrio Rebola pela realizao da Introduo deste livro e pela reviso do texto dos

    primeiros captulos e aconselhamento acerca de expresses em lngua japonesa; Alexandre

    Gueifo pelo grande apoio prestado a nvel editorial e histrico relativamente gnese do

    karate em Portugal; Dr. Georges Krug pelo enorme apoio prestado a nvel anmico e pela

    permanente disponibilidade para realizar todos os tipos de contactos institucionais e de

    carcter prtico; Jos Pascoalinho Pereira pelos contactos efectuados junto de antigos alunos

    do Mestre em Paris e pela orientao prestada elaborao dos captulos relativos ao perodo1970-1974; Fernando Neto pela disponibilidade para prestar informaes sobre a vertente

    Kendo do Mestre e pelos contactos institucionais realizados em Paris junto de antigos alunos

    do Mestre; Manuel Ceia pelo enorme apoio a nvel de disponibilizao de textos e material

    fotogrfico desde o incio do karate em Portugal, passando pelos tempos em que treinou e

    conviveu com Mestre Murakami em Frana e depois novamente em Portugal; Jos Manuel

    Arajo pela disponibilizao de informao relativa histria da Academia deBudo e pela

    disponibilidade para reviso de material escrito, traduzido de portugus para italiano; Teresa

    Laura Serafim pela transcrio e traduo de entrevistas de italiano para portugus; Miguel

    Castro Caldas pelo aconselhamento literrio e pela colaborao prestada na realizao dasentrevistas realizadas em Paris e Tournon; Lus Quilh pelo apoio prestado na filmagem e

    gravao das entrevistas realizadas em Paris; Miguel Rocha pelo apoio prestado na filmagem

    e gravao das entrevistas realizadas em Belgrado; Goran Sovtic pela traduo para

    portugus do material escrito nas lnguas srvia e croata; Nuno Figueiras e Neuza Polido

    pela traduo de material escrito das lnguas inglesa e francesa para portugus e pela reviso

    final do texto; Pedro Gueifo pelo trabalho de paginao e composio deste livro; e

    finalmente, mas no por fim, a Jorge Costa pelo apoio a nvel de design de todo o material

    grfico associado publicao e divulgao da presente obra.

    O autor deseja tambm agradecer encarecidamente aos seguintes discpulos directos do

    Mestre que se dignaram conceder e proceder posterior reviso de entrevistas e todo o tipo

    de apoio sob a forma de material escrito e fotogrfico que constituram contribuies

    preciosas para o rigor histrico e qualidade do presente livro, tornando o relato da vida do

    Mestre mais humano: Antonio Maltoni, Claudio Vacchi, Enzo Cellini, Marco Forti, Mauro

    Ferrini e Giorgio Vecchiet da Itlia; Lus de Carvalho, Pierre Jean Boyer, Patrick Herbert e

    Yves Ayache na Frana; Yves Thlen na Blgica; Bosko Milojevic, Ratko Jokknovic, Safet

    Ganibegovic, Zvonco Baretic, Zvonco Jacovljevic e Nada Nakic na Srvia.

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    O autor deseja ainda agradecer esposa de Mestre Murakami Madame Nieves a generosa

    ateno que quis dedicar a este humilde discpulo do seu falecido marido durante os

    contactos que com ela efectuou e famlia de Mestre Egami, nomeadamente sua falecida

    esposa Chiyoko Egami seus filhos e, bem assim, aos seus alunos directos com quem teve

    oportunidade de contactar em Itlia nomeadamente os Mestres Ariga, Nakano, e Nakagawa pela informao disponibilizada atravs de contacto directo e obras escritas.

    Postumamente o autor deseja agradecer ao saudoso Michiomi Hakamada Sensei, professor

    de lngua e cultura japonesa do Centro de Artes Orientais, recentemente falecido, o enorme

    apoio e encorajamento concedidos ao autor durante os anos de trabalho que esta obra levou

    a realizar e pelas inmeras tradues de livros, revistas e material avulso que constituram

    preciosas contribuies para a compreenso da histria e cultura japonesas nomeadamente

    em tudo o que aoBudo diz respeito.

    Cmara Municipal de Grndola o autor manifesta aqui o seu pblico agradecimento pelagentil cedncia do auditrio da Biblioteca Municipal para o pr-lanamento desta obra e o

    apoio prestado divulgao da mesma durante a Feira do Livro de Grndola.

    Finalmente a todos os Membros do Centro de Artes Orientais e aos Corpos Gerentes da

    Associao Shotokai de Portugal, bem como a inmeros praticantes que, anonimamente,

    quiseram contribuir humildemente com pequenas tarefas de suporte realizao desta obra

    e ao seu lanamento o autor envia um enorme abrao de agradecimento por todo o apoio

    recebido.

    JP

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    Gichin Funakoshi O-Sensei

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    Shigeru Egami Sensei

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    Tetsuji Murakami Sensei

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    Mestres Murakami e Egami

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    O estrangeiro disse:

    - A verdade encontra-se na sinceridadeTodo aquele que no sincero no pode agir sobre os outros...

    S a verdade interna permite ao esprito agir no exterior;

    ali que forja o valor da verdade.

    A sua utilidade consiste em colocar

    Cada coisa no seu lugar.

    Tchouang Tseu

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    13Introduo

    Introduo

    Porqu um livro sobre o Mestre Tetsuji Murakami? Poderia dizer-se que os seus alunos mais

    antigos quiseram fazer perdurar a sua recordao e escolheram este meio, e isso no andaria

    longe da verdade.

    Mas, mais do que isso, uma homenagem, ao seu Mestre, dos alunos que mais tempo e mais

    de perto privaram com ele, homenagem ao homem, ao tcnico, ao pioneiro do karate-d na

    Europa.

    No menos motivador deste empreendimento, difcil e delicado, dada a diversidade de fontes

    de informao, foi o facto de outros j terem escrito e falado sobre T. Murakami e dele terem

    dado uma imagem negativa, deturpada e, nalguns casos, pura e simplesmente falsa, do

    homem e do tcnico.

    O que os moveu um problema que cada um deles ter que resolver com a sua conscincia.

    O que nos move, alm do desejo de transmitir aos mais jovens o retrato, tanto quanto

    possvel fiel, do criador da ASP, o sentimento de fazer justia, tanto a T. Murakami comoa ns prprios.

    Com o material disperso disponvel e os testemunhos procurados exaustivamente (trabalho

    a ser creditado ao Eng Jos Patro, autor do texto e principal obreiro desta iniciativa), surgiu

    a pequena biografia de um homem que, do anonimato de uma pequena cidade japonesa, se

    tornou conhecido, no seio das Artes Marciais, em meia Europa.

    Mrio Rebola

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    14 Introduo

    Agosto de 1969. Um pequeno grupo espera, no trio das Chegadas, o voo da Air France

    vindo de Paris. Um certo nervosismo visvel no rosto de cada um, que se vai disfarando

    com uma graola ou um comentrio vindo a propsito, cada um ensaiando mentalmente a

    vnia que ir fazer ao Mestre japons que fora convidado a dirigir um estgio na Academia

    de Budo. Ao fim de algum tempo depois da chegada do vo, caminhando com um ar

    desenvolto e decidido e arrastando uma mala, aparece-nos uma figura franzina de homem,

    de baixa estatura, que, medida que vai correspondendo aos cumprimentos, com um forte

    aperto de mo, afasta a melena que, de vez em quando, lhe cai para a testa.

    Desde o primeiro contacto, sentimos como, daquele corpo pequeno e seco, se desprende uma

    energia invulgar, que nos impregna de imediato, e que, misturada com uma atitude frontal e

    decidida nos gestos e na maneira de se dirigir s pessoas, nos fez sentir que estvamos

    perante uma personalidade muito forte, que se impunha naturalmente. Enfim, desde esse

    momento, vimos nele o Mestre, o dirigente.

    Logo de incio, tambm, sentimos que o seu vontade e o seu ar decidido provinham no de

    qualquer atitude de displicncia em relao aos outros, mas dum carcter forte e honesto, que

    radica na razo e no valor moral das suas convices.

    O futuro no me desiludiu. Todas essas primeiras impresses se revelaram justas e, assim,

    nunca tive que agir de maneira hipcrita ou falsamente subserviente para com o Mestre T.

    Murakami, sem nunca deixar de lhe pagar o tributo de gratido, pelo professor que foi, a

    admirao pelo extraordinrio executante que tambm foi e o respeito (algumas vezes

    crtico) que, no s a sua posio, mas tambm a sua honestidade moral e intelectual sempre

    me mereceram.

    Tetsuji Murakami era um homem de convices fortes. Naquilo em que acreditava, era

    irredutvel. Mas bastava reconhecer razo a uma opinio contrria, para rever o seu

    posicionamento. Um simples exemplo, entre muitos:

    Um certo dia, depois da morte do Mestre Shigeru Egami, disse-me que eu devia escrever um

    artigo sobre ele, para ser publicado num livro de homenagem, editado pela Nihon Karate-D

    Shtkai.

    Eu escrevi um curto texto, que continha o que se poderia esperar de algum que se tinha

    encontrado uma nica vez com o homenageado e enviei-o para a NKS.

    O Mestre Murakami, ao ver o tamanho do texto, exclamou: Mas isto demasiado pequeno!

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    15Introduo

    Voc devia ter escrito uma coisa mais longa.

    Quando, por altura do estgio seguinte, voltou a Portugal, sem que o assunto viesse baila,

    disse-me, de rompante: Voc tinha razo, disseram-me que o meu artigo era demasiado

    longo.

    Tetsuji Murakami era um homem honesto, daquela honestidade intrnseca, inata, que alguns

    confundem com ingenuidade. Da, talvez, o ter sido algumas vezes enganado, outras,

    mesmo, vigarizado. Um dia conheci um vietnamita que vivia em Frana, onde praticava e

    dava aulas de karate, a quem perguntei a opinio que tinha sobre o Mestre Murakami.

    Sintomaticamente, a resposta foi, depois de uma leve hesitao: Un peu trop naif (Um

    bocado ingnuo). Ser til dizer que, quem assim falou, tinha fama de pouco ingnuo

    O drama de T. Murakami foi o drama de todos os desenraizados. Arrancado, quase sem aviso

    prvio, a uma cultura e um modo de vida, cujos hbitos e normas existiam h sculos e se

    mantiveram com a fora do isolamento duma sociedade fechada, para um meio

    completamente diferente, desde o talher da mesa observncia dos valores morais e

    espirituais, podemos vagamente imaginar o choque que ter sido o primeiro contacto e a sua

    adaptao posterior a um pas ocidental como a Frana.

    Nunca lhe ouvi referncia nenhuma a essas dificuldades, que so conhecidas graas a alguns

    dos alunos mais antigos que o acompanharam nessa poca, excepo dum pequeno

    incidente, numa das demonstraes que, logo chegada a Marselha, lhe foram impostas.

    Contou-me ele que, quando se preparava para actuar, foi abordado por um francs que se

    apresentou como jogador de boxe e o desafiou para um combate.

    Pelas palavras do Mestre Fiquei surpreendido e sem saber o que fazer, pois no era eu

    quem estava em jogo, mas o prestgio do karate. Por isso, disse-lhe que sim, mas s depois

    da minha demonstrao (deKata). No fim da demonstrao, procurei em vo o boxeur, mas

    ele tinha desaparecido.

    O presente livro relatar as dificuldades deste perodo, cuja superao foi feita ao jeito de

    Murakami: com estoicismo e coragem nos momentos muito difceis, com determinao

    quando era necessrio pr em prtica uma deciso tomada.

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    16 Introduo

    A deciso de T. Murakami de continuar e, provavelmente, acabar a sua vida no seu pas de

    acolhimento, a Frana, iniciou todo um processo de adaptao cultural de que nos fomos

    dando conta por pequenos pormenores.

    Assim, a nossa (minha) surpresa ao ouvi-lo dizer que tinha abraado a religio catlica (a

    esposa professava essa religio), dando como justificao a tolerante e ecumnica explicao

    de que todas as religies, por caminhos diversos, conduzem ao mesmo fim.

    Ou como, no bistrot que existia perto do dj da Rue Mercoeur, pedia, com uma pronncia

    notvel, Un caf bien serr, sil vous plat!

    Ou ainda, quando comeou a aparecer com o Le Monde debaixo do brao. Sabendo ns

    das dificuldades que o Mestre tinha com o francs, foi explicando: Compro o Le Monde

    uma vez por semana e vou tentando ler e compreender os artigos. Sinto que, pouco a pouco,

    tenho melhorado os meus conhecimentos da lngua. E, de facto, assim era. Nos seus ltimos

    anos de vida, ele falava vontade de qualquer assunto, notando-se j a preocupao na

    procura da palavra ou expresso correctas.

    Contudo, esta adaptao no era incondicional. Tanto no treino como na vida, o Mestre

    continuou a guiar-se e a guiar-nos pela via do Bud, cujos valores, no plano moral, eram

    parte integrante do seu ser, eram a sua maneira natural de agir em sociedade.

    At ao seu ltimo momento, foi igual a si prprio.

    Mrio Rebola

    5 Dan Nihon Karate-do Shotokai

    Presidente do Conselho de Graduaes da ASP

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    Confucius fez uma visita a Lao Tseu. Este acabara precisamente de lavar os seuscabelos e secava-os ao sol. E dir-se-ia que o seu corpo, sentado imvel, estava comomorto. Confcio esperou um pouco, seguidamente aproximou-se e disse:

    - Ser que os meus olhos me enganam ou estais mesmo aqui? Vs tendes o ar de umarvore morta e nada em Vs mostra o estado de vivo.

    - Eu quedo-me no no-nascido, respondeu Lao Tseu.- Que quer isso dizer? perguntou Confcio.- O meu esprito est em beatitude e no sei o que dizer. A minha boca est muda e

    no pode exprimir-se. Mas vou tentar aproximar-me da verdade: o perfeitoprincpio negativo (Yin) est majestosamente passivo. O perfeito princpiopositivo (Yang) est fortemente activo. Um vem do cu, o outro da terra. A osmoseentre os dois cria esta harmonia pela qual todas as coisas so produzidas. Htalvez uma primeira causa mas nunca se vislumbra a sua forma que todavia

    preenche o espao. H a luz, h a obscuridade. Os dias vm, escoam-se os meses.A criao est incessantemente trabalhando. A vida vem de algum lugar e a morteconduz-nos para algum lugar. Incio e fim seguem-se incessantemente e nosabemos quando tal terminar. Se isto no o resultado de uma primeira causa, oque ser ento?

    - Mas, disse Confcio, o que quer dizer: quedar-se no no-nascido?- Perfeita bondade e perfeita quietude. Quem tal atinge um ser humano perfeito.

    Tchouang Tseu

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    19Prembulo

    Prembulo

    Imaginemos um homem eterno, com uma memria perfeita, vindo no se sabe de onde.

    Chamemos-lhe (porque no?)Bodhidarma. No, no estamos na ndia. Estamos hoje e aqui,

    num pequeno dojo de uma qualquer sociedade recreativa. O homem , segundo se diz,

    Mestre de Artes Marciais, em especial o karate. Ser?...

    Um dia, o seu nico aluno decide pedir-lhe que lhe descreva todo o percurso daquilo a que

    chamamos hoje Karate-do. Ele decide aceitar mas com uma condio: o aluno ter de

    treinar um ano inteiro, de Janeiro a Dezembro, todos os dias, sem qualquer falha nem

    interrupo. Se assim fizer, no final de cada aula sentar-se-o ambos no centro do dojo e o

    Mestre contar-lhe- uma pequena parte da histria. O aluno aceita o desafio com entusiasmo.

    Chegado o primeiro dia de Janeiro, o Mestre comea por alertar que no lhe vai contar a

    histria de todas as Artes Marciais tarefa certamente interminvel mas sim e apenasaquelas que se referem ao Do O aluno fica sem perceber o que ele quer realmente dizer,

    mas decide no o interromper logo na primeira descrio que, ao que parece, se refere a uma

    forma de luta indgena de certa regio da ndia, h mais de 1500 anos.

    No primeiro dia da semana seguinte a descrio inicia-se com uma fantstica viagem atravs

    dos Himalaias at corte de Wu, imperador de Liang em Canto, na China. Logo de seguida

    a aco transfere-se para um mosteiro mais a Norte na provncia de Honan, do Imperador

    Hsiao Ming. O nome desse mosteiro parece soar como Shaolin. Tanto quanto o aluno julga

    Jos Patro

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    20 Prembulo

    entender, aps um correcto adestramento fsico e mental, os pacficos monges budistas que

    desse mosteiro partem, em pregao, acabam por se tornar conhecidos pela eficcia dos seus

    punhos.

    Os dias passam, as semanas tambm e depois os meses. Metodicamente, o Mestre vai

    ilustrando a transmutao dessa tcnica com descries das caractersticas peculiares das

    formas de luta de povos diversos da China e depois Coreia. H um, em particular, que ele

    repete vrias vezes e que soa como Shang Wu, e que, segundo ele, estaria na origem de outras

    artes mais recentes de nomes to esquisitos como: Tai Chi ePa-kua.

    Com o incio da Primavera, tendo-se j estabelecido uma relao de amizade e respeito entre

    professor e aluno, este pergunta-lhe e, em vez do nome Bodhidarma que se torna

    extremamente difcil de pronunciar, o professor no se importaria que ele usasse um

    diminutivo podes chamar-me Darma, que mais simples, responde, com um sorriso,

    Afinal, at era assim que os habitantes de Ryukyu me chamavam E, adivinhando a

    pergunta do aluno passa a explicar: Ryukyu era um pequeno arquiplago independente, a

    Sul da Japo, coincidente com o que se chama hoje Prefeitura de Okinawa. A regio estava

    separada em trs reinos Chuzan, Nanzan, e Hokuzan desde h muito envolvidos em

    guerra civil.

    Darma vai prosseguindo a descrio da vida conturbada dos Ryukyu, nessa poca,

    perpassada por combates de extrema violncia e crueldade. Por vrios dias o aluno sai do

    dojo com as pernas a tremer, tal o realismo das descries. Chega um dia, porm, em queDarma refere o aparecimento de um certo rei Sho-Hashi, de Chuzan, que acaba por dominar

    os outros dois pases, impondo em todo o territrioRyukyu um regime feudal onde o uso de

    armas passa a ser reservado s classes de nvel superior.

    Chega o Vero. Os quentes fins de tarde, aps o treino, so de grande serenidade. Durante os

    meses de Julho, Agosto e tambm Setembro fora, o Mestre entrega-se descrio da vida

    calma dos camponeses de Ryukyu. As referncias s Artes Marciais so raras e subtis. Ali

    um humilde aldeo que, provocado por dois Samurai fortemente armados, recorre a um

    pequeno malho de descasque de arroz, conseguindo matar um deles e ferir fortemente ooutro. Todas as tentativas para encontr-lo so infrutferas Acol, um homem j idoso

    acorre em defesa de um amigo e consegue defender-se habilmente da terrvel lmina de um

    sabre, com o cabo de madeira de uma pequena m. Levado presena das autoridades no

    se consegue provar que tenha feito uso de armas

    Num dos regressos a casa depois da costumeira aula, o aluno desvia-se um pouco do

    caminho habitual procurando a frescura de um pequeno lago. Passeando o olhar por uns

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    pequenos remoinhos que agitam a gua, interroga-se: O que ser que vive por baixo do

    espelho?. E eis que inesperadamente, j no final de Setembro,Darma deixa o seu jovem

    amigo sem pinta de sangue com a mais viva e sentida das descries de batalha que jamais

    ouvira. Trata-se da invaso dosRyukyupelo cl Shimazu a fora de guerra que domina j

    um vasto territrio em Kyu-Shu e que decide agora anexar as ilhas mais a Sul. Uma data ficaa soar 1609 ano do assalto frontal dos Samurai porta deNaha. A feroz resistncia dos

    locais surpreende a poderosssima fora que h pouco chegara a fazer tremer a prpria

    autoridade imperial. O ataque porta de Naha prontamente repelido. Mas o desequilbrio

    de foras tremendo, nem todas as entradas podem ser defendidas, Unten o ponto fraco

    por onde o Shimazu consegue penetrar e osRyukyus em breve ficam merc dos Satsuma.

    A interdio do uso de armas agora reforada passando a aplicar-se a toda a populao

    local. Cai o Outono. A caminho do dojo o aluno de novo atrado pela tonalidade cinzenta

    da superfcie do lago, agora batida pelo vento. Pela melancolia das palavras do Mestredescrevendo a profunda tristeza dos Ryukyu pressente-se uma agitao crescente. Em

    reaco opresso dos suseranos Satsuma, reforam-se as ligaes tradicionais ao

    continente e, por detrs de aparentes misses de intercmbio cultural, esconde-se a

    aprendizagem de secretas formas de defesa sem armas, desenvolvidas pelos monges de

    Shaolin e sucessivamente melhoradas por geraes de Mestres chineses. Em Okinawa, essas

    formas so ento transmitidas no mais rigoroso segredo a um crculo muito restrito de

    alunos. Estes, por seu lado, como artfices diligentes, tratam de as aprimorar e aperfeioar.

    Aos rumores de uma tal mo de Shuri e mo de Naha, que se agrupavam no chamado

    Okinawa-te, ou Mo de Okinawa, junta-se agora uma misteriosa To-de, associada s formas

    chinesas. Mas, por mais estratagemas que inventem, os espies do cl Satsuma no logram

    penetrar no hermetismo de tais prticas.

    Ao som das palavras do Mestre os anos voam lestos como folhas que o vento frio volteia,

    mas um ano sobressai 1853 quando uma enorme fora armada americana reclama entrada

    no Castelo de Shuri. Os guarda-costas do rei que, durante sculos tinham ganhado a justa

    fama de conseguir destroar em poucos segundos qualquer grupo de assaltantes armado que

    ousasse penetrar as muralhas do castelo, preparam-se para o pior... Os ecos das palavras etradues no rompem o enorme silncio que pesa nesse breve momento em que os dois

    hemisfrios se tocam. Nos dias seguintes ao rei pouco mais resta que suicidar-se. Mal sabem

    os seus carrascos passivos que essa morte prenuncia a queda em cascata do universo

    samurai.

    Certo dia, no final de um treino aparentemente igual a tantos outros, o Mestre informa: Hoje

    no haver palestra!. O discpulo no compreende e comea a esboar um protesto: Mas

    Darma. Este porm interrompe-o bruscamente dizendo-lhe: O meu nome a partir de

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    22 Prembulo

    agora passa a ser Shoto, se me chamares de outra forma no te responderei. Em seguida

    assegura-se de que a porta do dojo est fechada, pede-lhe que tome muita ateno aos nomes

    que vai ouvir e que, sobretudo, no os confunda. Nesse dia no se sentam no centro do dojo,

    como habitualmente, mas sim um em cada extremo da sala. Durante largos minutos

    permanecem, frente a frente, contemplando-se em silncio. Ento, o Mestre levanta-se eexclama: Tekki-Shodan!. Executa uma srie de impressionantes movimentos plenos de

    energia, curtos e fortes, deslocando-se para um e outro lado, mas sem avanar. De seguida

    volta a sentar-se e a aula termina assim. Despedem-se com uma saudao, sem uma palavra.

    O aluno interroga-se acerca do significado desta brusca mudana de atitude e tambm da

    funo daqueles estranhos movimentos. No entanto em quase todos eles, julga encontrar

    longnquas semelhanas com os quatro ou cinco movimentos bsicos que, ao longo de todo

    o ano, lhe tm vindo a ser ensinados, e com grande curiosidade que se dirige para o dojo.

    Nos dois dias seguintes, quer o nome, quer o esquema dos movimentos, apresentam notrias

    parecenas com os do primeiro dia: Tekki-Nidan. Tekki-Tekki-Sandan. No quarto dia o

    Mestre executa todos os trs, um a seguir ao outro informando no final que estas formas que

    ele designa genericamente porKata, pertencem escola Shorei-ryu.

    No dia subsequente, a apresentao continua, com uma Kata denominada Taikyoku

    Shodan. O aluno fica contentssimo, reconhecendo de imediato todos os movimentos. As

    Katas dos dias seguintes: Taikyoku Nidan, Taikyoku Sandan apresentam-se como

    pequenas variaes da primeira, incorporando igualmente tcnicas que ele conhece muito

    bem. Mas, na essncia, em nada diferem da primeira Taikyoku.

    De novo a caminho de casa presta pouca ateno chuva e ao frio do Inverno que se

    aproxima. O que o intriga so as profundas diferenas entre estes dois grupos de Kata. E

    reflecte de si para si: Os movimentos das Taikyoku so leves, rpidos e profundos; os

    outros, por contraste, so como o prprio nome Tekki, mais forte, mais curto, mais pesado.

    As deslocaes em todas as direces das Taikyoku fazem lembrar o voo livre de uma ave,

    sem limites; nas Tekki, porm, as deslocaes so muito limitadas como se o movimento

    estivesse restrito a uma direco. Ser que as Taikyoku so originrias de uma outra escola,

    um outroRyu?

    Confirmando a sua suspeita, no final do treino seguinte o Mestre revela-lhe que, de facto, as

    trs Taikyoku foram uma criao sua inspirados nas Kata da escola Shorin-ryu. Nesse

    momento, o Mestre apercebe-se, pelo brilho dos olhos do seu aluno, de que ele compreendeu

    a mensagem. Abraa-o com amizade, dizendo-lhe que, da em diante, quando outrasKata lhe

    forem apresentadas, no precisa de se preocupar em decorar-lhes os nomes, apenas procure

    sentir o timbre dos movimentos e identificar a que escola pertencem.

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    23Prembulo

    O dia seguinte o primeiro de Dezembro. No fim da aula professor e aluno voltam a sentar-

    se no centro doDojo. Shoto explica que chegou a altura da divulgao, da abertura para o

    exterior: O mundo acha que tudo tem que ter um nome, por isso vamos chamar-lhe Karate-

    do. Abre ento de par em par a porta do dojo e deixa entrar um bando de midos, que j h

    alguns instantes se acumulavam ruidosamente junto entrada, espreitando. Ao princpio ascrianas invadem caoticamente toda a sala, observando com curiosidade todos os detalhes,

    mexendo nos cintos e rindo baixinho dos trajes esquisitos dos dois homens. Cria-se uma

    enorme confuso e o aluno faz um ar carrancudo. Shoto, por seu lado parece felicssimo,

    deixando-se rodear pelas crianas. Aos poucos, porm vai-os encaminhando para um dos

    lados da sala e, ento num repente, com uma voz forte e determinada manda-os alinhar,

    pondo o seu aluno direita. Os midos, apanhados de surpresa pela sbita mudana,

    obedecem de imediato, ficando em quase completo silncio. O Mestre demonstra ento uma

    srie deKataBassai,Kanku,Empi, Gankaku. E depois, aps uma pausa,Jutte,Hangetsu,Jion. O aluno reconhece facilmente o primeiro grupo como Shorin-ryu, e o segundo como

    Shorei-ryu. Os vidos olhos das crianas, porm so atrados apenas pelo espectculo, riem

    e aplaudem os saltos e pontaps e, quando o movimentos so lentos e concentrados,

    suspendem-se na respirao profunda do Mestre. No final da aula quase todos pedem a Shoto

    que lhes ensine karate (como crianas que so, esquecem o Do) e, para desespero do seu

    aluno, o Mestre aceita. Da para a frente as aulas enchem-se de crianas traquinas que a todo

    o momento pedem: Shoto, faz aquele salto! Shoto ensina-nos outro truque! Shoto, podemos

    fazer um jogo a ver quem ganha?. No final de cada aula, depois de todos sarem, continuam

    a sentar-se no centro do dojo, mas so os protestos do aluno que se fazem ouvir:

    - No compreendo. Voc prometeu-me que me daria aulas durante um ano

    - E estou a cumprir.

    - Mas as crianas perturbam o nosso trabalho!

    - Meu caro, se eu as mandasse embora ento sim, estaria a falsear tudo.

    - Como assim?

    - Assim, como assim, eles fazem parte do caminho, fazem parte da histria

    Decorre o ltimo dia do Ms de Dezembro. Est muito frio. Em cada um dos ltimos dias o

    caminho para oDojopareceu-lhe mais e mais longo. Sente-se doente, doem-lhe as pernas,

    todo o corpo lhe di. Enquanto caminha penosamente encontra mais uma vez o velho lago:

    J no h nada por baixo do gelo, est tudo morto, pensa, e uma lgrima escorre-lhe pela

    face.

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    24 Prembulo

    Contudo, ao chegar porta do dojo algo de inslito se passa. Nem gritaria, nem correrias

    Onde esto as crianas? Espreita pela porta e v um grande grupo de pessoas em karate-gi.

    Os olhares dirigem-se para ele os rostos so-lhe estranhamente familiares. No sabe o que

    h-de dizer: Hum... Boa tarde, o meu nome Ol, Mestre. Chegou atrasado hoje.

    Estamos h que tempos espera.

    Como um autmato dirige-se para o vestirio e pega no karate-gi. Mete de novo a mo

    direita no saco para retirar o cinto branco mas o que sai um cinto de cor preta. Larga-o

    bruscamente e esfrega a mo como se o cinto a tivesse queimado. Repara ento que as mos,

    as suas prprias mos esto diferentes, mais speras maisvelhas. Prostrado, deixa-se cair

    sobre o banco, apoia os cotovelos no colo e tapa os olhos, mas no rosto sente estranhas

    rugas. Tenta controlar-se. Recorda o ensinamento do Mestre e endireita as costas. O seu

    Mestre... onde estar? Darma, Shoto, nomes que lhe soam distantes, nomes longnquos

    da sua juventude.

    Repentinamente levanta-se, como se tivesse apanhado uma bofetada. Veste o karate-gi,

    coloca o cinto negro. Vai para o dojo. Atrs de si est a foto de um homem sentado

    serenamente na areia de uma praia. Senta-se. Os alunos imitam-no. Viram-se todos para a

    foto. Ao fundo as guas, j no do lago, mas do prprio mar, ondulam vivas. Quando se

    curva para a saudao apenas um nome invade a sua memria: Murakami.

    J.P.

    (Extrado do livro ASP 25 Anos. Verso revista)

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    Um dia eu, Tchouang Tseu, sonheiQue era uma borboleta voando por aqui e por aliHaurindo, satisfeito com a minha sorte e ignorandoO meu estado humano.Subitamente despertei e dei comigo,Surpreso de mim mesmo.

    Actualmente j no sei se sou um homemSonhando que uma borboletaOu se sou uma borboleta que sonha que um homem.Entre a borboleta e eu existe uma diferena: o que se chama a mutao constante.

    Tchouang Tseu

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    27Anjos de Ferro (1927-1957)

    Captulo 1 Anjos de Ferro (1927-1957)

    Os raios vermelhos do Sol nascente tentam romper a nvoa espessa e fria, mas as pernas sub-

    mersas at ao joelho, continuam enregeladas e dormentes.

    - Schlack! o golpe na testa apanha o rapaz desprevenido de tal jeito que cai desampara-

    do na gua fria.

    - Ah! Ah! Ah! Pobre diabo! Estavas a dormir em p, ou qu? Foi s para te matar um mos-

    quito que te estava a a morder na cabea.

    Mas j se lhe embarga o riso pois o jovem Tetsuji, apesar dos seus magros 14 anos, salta que

    nem um gafanhoto sobre o seu agressor, decidido a salvar a honra da famlia.

    - Pobre diabo, eu!? J te disse que ns os Murakami no consentimos

    Hoje, porm, a costumeira briga matinal s para aquecer est destinada a ser curta, o

    rugido ensurdecedor de uma esquadrilha de caas zero corta bruscamente a contenda. Em

    menos de um segundo todos os camponeses esto de mos postas e de cabea baixa, alguns

    ajoelhados com gua fria at cintura, dignos que no so de olharem de frente os divinos

    reflexos do Sol nascente nas poderosas asas daqueles Kami, anjos de ferro do seu divino

    Imperador.

    Todo o arrozal agora um imenso templo.

    Nesse distante Outono do 15 Ano da Graa de sua Divindade o Imperador Hirohito (1941)

    longe estava o jovem Tetsuji Murakami de imaginar que a dura faina sazonal de remexer o

    fundo dos canteiros para que a semente lanada pelos experientes semeadores ficasse depois

    coberta pelo assentar do lodo, seria afinal um paraso, comparado com o inferno da guerra

    que, nos anos seguintes, depois de ter alastrado inexorvel e imperialmente sobre a China, e

    outros pases circundantes, haveria de se abater agora, qual tsunami retornante, sobre o

    prprio Japo. Quatro anos depois, na sua querida Shizuoka, a cidade de onde se podia admi-

    rar a majestade doFujisan, no haveria de sobrar pedra sobre pedra, tronco sobre tronco.Um dia, deambulando pelas ruas, atordoado pelo cheiro a madeira queimada, deu com uma

    cena impressionante:

    - Fora! Ia! Cuidado com essa viga, deixem-na cair est demasiado calcinada! Cuidado

    com aquela ali!

    Um grupo de meia dzia de jovens, homens e mulheres, liderados por um homem de meia-

    -idade, com vestes de Samurai, procurava remover, mo, os escombros do que parecia ter

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    28 Anjos de Ferro (1927-1957)

    sido um velho dojo de artes marciais.

    - Quem ser este homem que se atreve poucos meses depois daquela vergonhosa rendio

    do nosso Imperador, a vestir-se em plena rua como um Samurai? pensava Tetsuji

    Ser que no teme ser encarcerado pelos Americanos que decretaram o encerramento

    de todas as escolas de Artes Marciais?

    Observando osKanji escritos na placa pendendo sobre a entrada, soletrou:

    - Yoseikan! Yoseikan dojo.

    Nessa noite o jovem no conseguia dormir e foi procurar oshinaipara lembrar os gloriosos

    tempos da escola em que, comoKendo-deshi tinha atingido o 2 Dan:

    -Men! Men! Men! Do! Do! Do! Kote!

    - Tetsuji! Pra imediatamente com isso ests a acordar os teus irmos diz-lhe a me, e

    ele pra.

    Mas no seu ntimo a deciso est tomada e murmura:

    - Um dia hei-de ser aluno do Yoseikan!

    Todavia, o jovem irrequieto que, nos tempos de escola se apaixonara peloKendo e at pelo

    Sumo, e que nos anos negros da guerra e do ps-guerra se tentara manter sempre em forma

    praticando natao e corrida, teria ainda de percorrer um longo caminho antes de ser formal-

    mente aceite. Em breve o fascnio pelo perigo que envolvia o Karate conhecido em todo o

    Japo como uma arte perigosa, mas que Funakoshi Sensei lograra apresentar s foras de

    ocupao americanas como um sucedneo das suaves artes chinesas o levaria a pedir o

    Foto 1 -Dojo Yoseikan, Japo (aspecto actual)

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    29Anjos de Ferro (1927-1957)

    ingresso na escola de Mestre Masaji Yamaguchi, cujo pequeno dojo tambm tinha sido

    destrudo durante a guerra e que, falta de melhor, ensinava agora ao ar livre nas ruas de

    Shizuoka.

    -Jyu-kumite! exclamou o Mestre, logo na primeira aula em que Murakami, foi auto-

    rizado a participar experincia. E o jovem nos seus 19 anos pensou ptimo, com-

    bate livre, vai ser como nos arrozais, com os meus colegas de pancadaria!.

    Mal sabia o que o esperava. Nessa noite, entrou sorrateiro em casa e, sem levantar a cabea

    para que no lhe vissem os olhos pisados e o nariz a sangrar, foi direito para o quarto e cor-

    reu o biombo. Mas no conseguia dormir. As costelas partidas no o deixavam sossegar em

    posio alguma.

    O pai antes de adormecer, escutando os seus gemidos abafados esboou um sorriso. Toda a

    gente na cidade se orgulhava do dojo fundado h 20 anos atrs por Minoru Mochizuki Sensei

    aluno directo de duas das maiores autoridades vivas doBudo: Gigoro Kano o fundador do

    Judo e Morihei Ueshiba o fundador do Aikido.

    - O meu filho conseguiu entrar no dojo de Yamaguchi Sensei que foi aluno de Funakoshi

    O-Sensei cogitava ele quem sabe, talvez um dia seja recomendado para o Yoseikan.

    Seria uma grande honra para a famlia.

    No dia seguinte, fingindo que no coxeava, voltou ao dojo e o Mestre mal o viu:

    Foto 2 -Dojo Yoseikan, Japo (aspecto original, por altura da sua inaugurao em 1931). MinoruMochizukiSensei o primeiro direita, na primeira linha. Na linha central podem ver-se Morihei Ueshiba

    SenseiNoriaki InoueSensei, respectivamente o 4 e o 5 a contar da esquerda

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    30 Anjos de Ferro (1927-1957)

    - Ah Murakami-San! Teve a coragem de voltar? Hoje dia de makiwara!

    Desta vez no teve iluses: iria ser terrvel! E de facto na hora e meia seguinte limitou-se a

    golpear incessantemente o makiwara com os ns dos dedos. A carne inchou, e ele continu-

    ou. A carne rasgou-se mas ele no se deteve. O sangue comeou a manchar a palha de arroz

    e a pingar no cho mas ele tinha de prosseguir. Quantas semanas tero passado at que os

    ns dos dedos criassem calos suficientes para que a dor se tornasse suportvel?

    Ao fim de trs anos experincia foi-lhe autorizado o ingresso formal no dojo, sendo lhe

    concedido o ttulo de 1 Dan e, enquanto a disciplina dura do Karate ia impregnando o seu

    corpo, a sua mente, o seu esprito, ia-se tornando evidente para si prprio e para os colegas

    que o rodeavam que estava destinado a ser esse o caminho da sua vida.

    Tirando isso a sua vida no ter sido muito diferente dos outros rapazes dessa poca, durs-

    sima, que foi o Japo da guerra e do ps-guerra e que o impediu de prosseguir os seus estu-dos para alm da escola secundria, tendo de lutar arduamente no s ao lado de seu pai, no

    ofcio de comerciante, mas em todas as humildes e espinhosas tarefas que a reconstruo de

    todo um pas impunha.

    A maturidade precoce e o elevado senso de responsabilidade familiar, justamente relevados

    pela carta de apresentao do jovem Tetsuji formalmente entregue pela famlia Murakami

    famlia da sua futura noiva, Yoshi tero sido determinantes na sua aceitao como futuro

    esposo.

    Foto 3 - Mestres Tetsuji Murakami ( esq) e Masaji Yamaguchi, em Shizuoka, no Japo

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    31Anjos de Ferro (1927-1957)

    O casamento no lhe fez esfriar a manifesta paixo pelas disciplinas do Budo, cuja prtica

    fervorosa lhe ocupava grande parte do tempo ps-laboral. E, claro est, que eram todos cole-

    gas de prtica os amigos que o rapaz de 24 anos quis convidar para a festa que se seguiu ao

    Miyamairi * do seu primeiro filho Yukitoshi. No ano seguinte a sua esposa daria luz

    outro rapaz Mitoshi e, nessa altura a festa j contaria com a presena de colegas de prti-

    ca doDojo Yoseikan.

    Alis, a sua devoo peloBudo ter sido vista por ambas as famlias como algo bastante mais

    digno e prefervel que as ocupaes degradantes centradas no lcool e outros vcios a que

    tantos homens de ento se dedicavam, perdido o rumo militarista que o Japo de antes da

    guerra lhes incutira.

    Num tempo em que muita gente no Japo vivia j o fascnio da cultura ocidental, cada vez

    mais dominante, Tetsuji coleccionava armaduras militares antigas que lhe permitiam treinar,

    com os colegas, formas mais eficazes de golpear. Talvez por isso quando foi desafiado pelo

    campeo do clube de boxe local, tenha acabado por derrot-lo, sem usar as pernas, com um

    shuto-uchi.

    Ter-se tornado discpulo do Mestre Mochizuki acabara, afinal, por ser uma sequncia natu-

    ral da sua dedicao ao esprito doBudo e aps vrios anos de contacto directo com vrios

    * Miyamairi um ritual xintosta: um ms aps o nascimento de uma criana, os seus pais e avs levam-

    -na a um santurio para mostrar gratido e pedir ao clrigo que reze pela boa sade e felicidade da criana.

    Foto 4 Armadura de Samurai

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    32 Anjos de Ferro (1927-1957)

    instrutores do Yoseikan e com o prprio Mestre Mochizuki, no admira que, no momento em

    que foi preciso escolher algum que pudesse apresentar directamente aos europeus a essn-

    cia da tcnica e do esprito doBudo, essa escolha tivesse recado sobre o virtuoso jovem.

    - Murakami-San ouviu chamar do outro lado do biombo faa favor de entrar.

    Ergueu-se de um pulo, ajeitou o traje de cerimnia que s vestira no casamento e julgou-se

    preparado para o que ia encontrar.

    Afinal j tinha escutado os conselhos do seu av, que tinha feito uma longa dissertao sobre

    Miyamoto Musashi, de seu pai que lhe tinha contado a histria do velho Samurai e dos seus

    trs filhos Ateno ao que tens por cima, ou para l, da porta quando entrares! e at

    julgava ter entendido a aluso indirecta da sua esposa nessa noite ao grou do Japo inspi-

    rao milenar de artistas marciais, mas tambm o smbolo do acasalamento por toda uma

    vida. Sim, julgava-se preparado. Mas quando correu a porta e viu alinhado sua frente o

    Conselho de Ancies do Yoseikan, com Mochizuki Sensei sentado ao centro sobre umzafu

    que o colocava um pouco elevado em relao aos restantes, Yamaguchi ao seu lado direito,

    e tantas outras caras que mal conhecia, nesse momento os tendes de ao das suas pernas,

    temperados por uma dcada de esforo, pareceram perder, subitamente toda a fora.

    Aproveitou para fazerZa-rei o que, embora fosse um pouco excessivo para a ocasio, no

    era incorrecto e, sobretudo, lhe permitiria recuperar a compostura.

    Foto 5 -Dojo Yoseikan, Japo (aspecto actual)

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    33Anjos de Ferro (1927-1957)

    S quando levantou o tronco se apercebeu da presena simptica do jovem Hiroo Mochizuki

    que esboava um leve sorriso tranquilizador.

    Apesar da diferena de idades Hiroo tinha nessa altura 21 anos e Tetsuji 30 e do estatu-

    to social o jovem Mochizuki tinha regressado recentemente de uma estadia de quase um

    ano em Frana onde tinha simultaneamente aperfeioado os seus estudos de medicina vete-

    rinria e ensinado na j prestigiadaAcadmie Franaise des Arts Martiaux AFAM, em

    Paris apesar dessas diferenas, germinava entre eles uma simpatia e uma admirao mtuas

    que haveriam de florescer numa amizade que perduraria ao longo de toda a vida de ambos.

    Murakami-San a voz rouca de Mochizuki Sensei ampliava ainda mais a solenidade do

    acto o meu aluno Jim Alcheik formalizou recentemente, aqui no Yoseikan, um convite da

    parte do Sr. Henry Ple que pretende encontrar um professor deBudopara dar continuidade

    ao trabalho que eu e o meu filho inicimos na Europa. O Conselho dos Ancios do Yoseikan

    decidiu convid-lo a si para essa tarefa. Caso aceite aviso-o desde j que ter de se preparar

    para uma ausncia de um ano, no estrangeiro, absolutamente s, a qual ser precedida de um

    estgio de algumas semanas com os Sempai de Funakoshi O-Sensei, em Tquio, para aper-

    feioamento tcnico e pedaggico. Est disposto a aceitar?

    - Um ano pensou Murakami 12 meses, longe da minha mulher e dos meus filhos

    pequenos. Em Frana, absolutamente s, sem saber uma palavra de francs ou qualquer

    outra lngua ocidental. No esperava que fosse tanto tempo

    Foto 6 - Mestre Masaji Yamaguchi e Jim Alcheik no Japo

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    34 Anjos de Ferro (1927-1957)

    Os segundos de hesitao impacientaram Mochizuki que vociferou:

    - Hesita? Talvez no esteja preparado para um desafio deste calibre?

    - No Mestre! Eu aceito! na precipitao de responder fitou os olhos de Mochizuki

    Sensei o que, naquelas circunstncias, era pouco menos que um acto de insubordinaoinaceitvel.

    Incmodo como um vento frio pressentiu-se um tremor percorrendo os corpos de todos os

    membros do Conselho, ainda que nem um nico msculo se movesse. Mas Mochizuki no

    pareceu demasiado incomodado com o olhar de desafio, alis prontamente baixado por

    Murakami.

    - Hummm! Yamaguchi-San ainda ter de ensinar um pouco mais de cortesia e boas

    maneiras ao seu aluno e depois de uma breve pausa concluiu mas para o nvel deeducao dos ocidentais o seu nvel de rei deve bastar! Ah! Ah! Ah!

    As gargalhadas receberam eco fraco dos ancios, que no compreendiam exactamente aonde

    osensei queria chegar, sendo a Frana um pas to evoludo face ao Japo de ento.

    - Ter de escrever mensalmente uma carta ao seu Mestre, detalhando todas as evolues

    dos seus alunos e todos os acontecimentos importantes advertiu Mestre Mochizuki

    Yamaguchi-San reportar-me- se achar necessrio.

    Dirigiu ento o olhar para o jovem Hiroo e rematou a conversa dizendo:

    - Hiroo, apesar da sua inexperincia de vida, esteve alguns meses em Paris. Transmita o

    que aprendeu dos estranhos hbitos e costumes dessa gente a Murakami!

    Hiroo fez uma vnia ao pai ocultando um sorriso de satisfao por lhe ter sido confiada uma

    tarefa importante.

    Quanto a Murakami podemos apenas imaginar como tero sido as semanas seguintes a essa

    breve conversa.

    Estamos no dia da despedida. Amparada pelo pequeno abrao dos seus dois filhos Yukitoshi e Mikoshi de 6 e 5 anos enquanto acena tristemente para a figura que se desta-

    ca, pela impassvel verticalidade, na amurada do gigantesco navio, a sua esposa Yoshi

    Murakami, de mo erguida no ar, interroga-se a medo Qual das duas facetas do grou ir

    prevalecer?.

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    35Anjos de Ferro (1927-1957)

    Foto 7 - Mestre Tetsuji Murakami durante a viagem Japo-Marselha, 1957

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    No se pede opinio a um cegoSobre uma pintura,No se convida um surdo para um concerto.Mas a cegueira e a surdez no so

    Apenas fsicas.Elas podem atingir o espritoE eu temo que sejais atingidos por tal.

    Tchouang Tseu

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    39Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    Captulo 2 Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    Durante as longas semanas da viagem martima Japo-Frana Murakami viajou na compa-

    nhia de Mitsuhiro Kondo, um jovem judoca que pretendia instalar-se em Genebra na Sua,

    e de um francs que servia de intermedirio. Para alm do treino dirio e das leituras de

    alguns clssicos doBudo especialmente o seu preferido O Tratado das Cinco Rodas de

    Miyamoto Musashi todo o restante tempo tinha-o gasto na aprendizagem dos costumes

    europeus. Para tal tinham sido de grande utilidade para alm do seu colega de viagem

    francs, os poucos turistas ocidentais que viajavam a bordo do navio japons. Coisas peque-

    Foto 8 - Mestre Murakami pouco depois da sua chegada a Frana

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    40 Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    nas como o uso de todos aqueles instrumentos metlicos de cirurgia a que os ocidentais

    chamam talheres, a colocao do guardanapo no peito ou sobre as pernas, ou outros

    hbitos ainda mais estranhos e absolutamente inaceitveis como assoar-se a um leno de

    pano, tudo isso tinha sido analisado, dissecado e mesmo treinado frente ao espelho do seu

    exguo camarote, com a mesma seriedade com que se dedicara tantos anos ao estudo dos

    kata. Corria o dia 3 de Novembro de 1957. Muitas horas antes de o navio acostar ao cais do

    porto de Marselha, j Murakami se tinha vestido a rigor com o seu melhor fato, colocado a

    gravata, cujo n no se atrevera a desfazer desde Tquio, e deixado a refulgir os sapatos

    negros que tanto lhe apertavam os ps.

    - Bonjour Monsieur Murakami disse simpaticamente o Sr. Ple, ao mesmo tempo que

    fazia uma vnia profunda.

    - Bonjour Monsieur Ple retorquiu o Mestre.

    Apercebendo-se da razovel pronncia Ple assumiu que o seu interlocutor afinal percebia

    um pouco de francs e prosseguiu:

    - Como est Mochizuki Sensei?

    - Eeto!... Mochizuki Sensei?...Genki-desu! Arigatoo-gozaimasu!

    O dilogo directo ficou por ali, claro est e foi com muita dificuldade que o tradutor lhe con-

    seguiu explicar, durante a viagem de txi subsequente, que o seu anfitrio lhe pedia para reti-rar j de seguida o seu belo fato de cerimnia e vestir o karate-gi, agendada que estava j

    uma srie de demonstraes em Marselha e nas cidades circundantes de Toulon, Avignon e

    Ciotat.

    - Lamento muito, mas no estou disponvel! Contendo a clera crescente, Murakami

    procurava ser o mais cordial possvel, lembrando-se dos conselhos recebidos no Japo

    acerca dos estranhos costumes deste povo Lamento muito, mas estou fatigado pela

    viagem e no foi para isto que eu vim!

    - O qu, o que diz ele? perguntava nervosamente o Sr. Ple ao tradutor Est a dizer

    que no quer? Explique-lhe que as demonstraes esto a ser publicitadas na imprensa

    desde h vrias semanas. So compromissos inadiveis. Est muito dinheiro em jogo!

    Graas paciente diplomacia do tradutor e aps longos minutos de tremenda tenso,

    Murakami acabou por perceber que no tinha outra sada seno prestar-se de imediato a esse

    primeiro e inesperado servio.

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    41Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    A ss no balnerio do pavilho, escutando os aplausos da multido com o anunciar do seu

    nome naquela lngua esquisita carregada de rrs Madames et Messieurs au nom de

    lAcadmie Franaise des Arts Martiaux jai lhonneur de vous prsenter un des plus

    Grands Matres du Karate japonais, Tetsuj Murrakam, 3me Dan Yoseikan Budo, dis-

    ciple du lgendaire Minorru Mochizuk. Mais, avant a, nous vous prsenterons

    enquanto ia desapertando, contrafeito, o n da gravata e os cordes dos sapatos, crescia-lhe

    a sensao de que o primeiro combate estava j perdido. Subestimara o adversrio. Deixara-

    -se surpreender. Mas um combate apenas um combate. A tarefa da missionao da essn-

    cia do Karate-do em terras da Europa afigurava-se afinal uma batalha de propores muito

    maiores do que pudera alguma vez imaginar, quando aceitara o desafio de Mochizuki Sensei

    no Japo. Quando terminou de vestir o karate-gi sentiu as suas mos apertarem com energia

    o n do seu cinto preto e apercebeu-se de que o tinha feito de forma correcta, sem o mnimo

    pensamento ou hesitao. Contemplou por instantes os ns dos dedos calejados por tantos

    anos de makiwara Como um Samurai que contemplasse marcas deixadas no seu sabre por

    anteriores duelos, endireitou as costas e disse para si mesmo:

    - Gambate! [Coragem]

    E deixando as mos balanar descontradas e aparentemente inofensivas ao lado do corpo,

    dirigiu-se com um passo elstico para o recinto onde uma pequena multido ululante o espe-

    rava. Ao chegar ao recinto deparou-se com uma tbua suspensa que teve de partir, con-

    seguindo-o apenas segunda tentativa. Alguns anos mais tarde confidenciaria a ManuelCeia, o seu primeiro aluno portugus Foi melhor assim, porque os espectadores ficaram

    com a certeza de que era real.

    Mas no foi esse o nico episdio interessante dessas primeiras demonstraes, como

    podemos julgar pelas palavras do prprio Mestre 1:

    [] aconteceu algo de interessante: foi em Avignon. Depois de uma demonstrao um

    homem jovem questionou-me: Que kata acabou de executar? Eu respondi: Heian Yodan,

    mas porqu?. Porque eu tambm conheo bem o Kata Sandan mas completamente dife-

    rente do seu. Soube ento, aps essa discusso que para ele, o Kata Shodan era Sambon-oi--zuki com Gedan-barai recuando (encadeamento de tcnicas chamado, em geral de Sanbom-

    -kumite). O kata Nidan era com Chudan-uchi-uke, Sandan com Jodan-age-uke e o kata

    Godan era Gohon-kumite. De qualquer modo ele no lhes chamava Heian. Isso surpreendeu-

    -me e eu disse Oh!. Mais tarde, encontrei um livro sobre o Karate e tive a minha segunda

    surpresa.

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    42 Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    Dentre o pequeno conjunto de entusiastas que assistiram s primeiras aulas que Mestre

    Murakami deu na AFAM, estava Bui Xun Quang, de origem vietnamita, que relata daseguinte forma esses tempos hericos 2:

    (...)quando o Mestre Murakami veio para o n 34 rua da Montagne Sainte Genevive, em

    Novembro de 1957, eu fui dos que assistiam sua chegada. Era o que podemos apelidar hoje

    de poca herica". Um dia H. Ple anunciou-nos a chegada de um mestre japons de vinte e

    nove anos: Murakami. Foi para mim uma grande alegria: trabalhar sob a direco de um

    "verdadeiro" mestre. O homem no traiu a reputao j formada no meu esprito: primeiro,

    falava apenas japons, depois tinha msculos e "kento" sobre-desenvolvidos, seguidamente o

    corte do cabelo, o bigode, o kimono.. Tudo me deleitava.... Ao fim de alguns dias, como no

    parava de fazer-nos trabalhar o kihon, os ippon e sambon kumit, arrisquei uma palavra:

    "kata". Mestre Murakami: "kata?" - "kata, sim, kata". Foi no final de uma aula, ele ps os

    seus zooris, retornou ao centro da sala e executou para ns o Heian Nidan. Que tcnica. Que

    preciso. Foi a primeira vez que vi Mestre Murakami executar um kata. Como era estudante,

    Foto 9 - Mestre Murakami nos primeiros tempos em Frana, Cidade de Toulouse

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    43Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    no sonhava seno com a quinta-feira tarde. Durante os feriados escolares passava todo o

    dia na sala e frequentava todos as aulas de manh noite excepto a aula "para professores

    e futuros professores" de sexta-feira tarde - alis, apesar da denominao pomposa, esta

    aula assemelhava-se s outras, com algumas variaes suplementares: oi-zuki com salto etc...

    Os adultos, conscientes do seu futuro, frequentavam esta aula; Cocatre, Hoang Nam..., mas

    usavam cintos brancos.

    Antes de Mestre Murakami, ns praticvamos regularmente combate livre no final de cada

    aula, mas aps a sua chegada, nada. Ns ramos to pacientes como podamos com dezas-

    sete anos, mas ao fim de dois meses, ou seja vrias semanas aps o famoso "kata", Nguyn

    Van Nam pediu a Mestre Murakami, com um sorriso to simptico quanto possvel: "jiyu

    kumite". Perante os meus olhos desenrolou-se ento o primeiro combate de um de ns com

    Mestre Murakami. De facto, foi uma corrida contnua em redor da sala e, no fim, Nam

    voltava simplesmente as costas para correr melhor. Face ao riso dos alunos, Mestre

    Murakami perdeu a sua seriedade e desatou a rir connosco.

    Foto 10 - Mestre Murakami nos primeiros tempos em Frana, Cidade de Toulouse

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    44 Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    Henry Ple decidiu abrigar o seusensei, consciente do bem precioso que tinha entre mos,

    na sua prpria casa, fazendo-o assinar um contrato (em lngua francesa, sem traduo) de

    exclusividade de ensino na AFAM.

    Ouamos o relato do Mestre acerca desse perodo 1:

    Desde que me instalei em Paris concentrei-me no treino de Kihon e dos Kata. Durante o

    primeiro ano isso no foi muito agradvel para mim. Tinha demasiados pequenos problemas

    pessoais. Mas no que respeita ao karate foi bom, pois havia bastantes programas bem estru-

    turados e estgios com praticantes do mundo inteiro Blgica, Alemanha, Itlia, Sua,

    Marrocos medida que eles iam voltando para os seus pases, iam desenvolvendo a oKarate. Vrios anos mais tarde o Karate desenvolveu-se bem em toda a Europa graas a

    esses praticantes e aos seus esforos. Eram todos Karatecas de Shotokan. Essas pessoas

    deixaram-me uma doce recordao.

    Um dos pontos altos desse ano de 1958 ter sido o First Karate Union Meeting em que

    todas as aulas foram orientadas por Mestre Murakami. Nesse estgio que se realizou em

    Agosto, em Paris participaram muitos pioneiros do Karate Europeu entre os quais Georges

    Shiffelers, Vernon Bell, Jrgen Seydel, Vladimiro Malatesti, Guilletan, os introdutores do

    Foto 11 - A Acadmie Franaise des Arts Martiaux, Paris, 2002

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    45Uma Estranha Recepo (1957-1958)

    Karate respectivamente na Blgica, Gr Bretanha, Alemanha Itlia e Sua.

    Foi s com o aproximar do final do ano de 1958 que Murakami tomou conscincia da clusu-

    la especfica do contrato que referia ser-lhe interdito continuar a ensinar Karate na Europa

    da em diante. A esse respeito Murakami Sensei escreveu 1:

    Estava bem explcito que o Sr. Murakami no poderia fazer Karate na Europa, aps a expi-

    rao desse contrato. At esse instante nunca imaginei que me tornaria um profissional do

    Karate, nem que permaneceria em Frana aps esse ano. Mas por causa dessa palavra espec-

    fica interdito nesse contrato, fiquei descontente e foi talvez essa clusula que me pressio-

    nou a tomar a deciso de permanecer em Frana. Podereis ser levados a pensar que sou cas-

    murro. Mas eu no podia fazer mais nada e tambm no podia sequer trabalhar.

    H um ditado japons que diz. Quando os kami querem preparar um homem para um

    grande empreendimento, primeiro temperam-lhe duramente o seu corao. Bem pesada foi

    a mo do ferreiro, bem rduo foi o fogo que temperou, esse sabre. Quem poderia supor ao

    deparar-se com essa figura escanzelada deambulando pelas ruas de Paris, alimentando-se dos

    restos que lhe eram deixados nas traseiras de um restaurante chins, nos melhores dias,

    porque nos dias maus tinha de comer po com manteiga, e isso quando muito, quem pode-

    ria sequer imaginar que essa insignificante e annima figura viesse a tornar-se, 15 anos

    depois, o representante para a Europa da Associao fundada por Funakoshi O-Sensei?

    Como foi isso possvel? por essas curvas do destino que eu vos convido a caminhar. Se

    vos aprouver acompanhem-me, pois, e no h que hesitar visto que os nossos guias sero

    exactamente aqueles que o Mestre guiou desde esse distante ano de 1959 at ao seu faleci-

    mento em 1987.

    -Ikimashou! [Venham da!]

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    Toda a gente discute e emiteCategorias de opostos.Gostaria de ouvir um discursoQue no entrasse em qualquer categoria.Se existe um comeo do mundoEnto existe um tempo antes desse comeoE um tempo antes desse tempo anterior.

    Se a existncia existeExiste tambm a no-existnciaE um tempo antes do nascimento.No h nada de mais vasto sob o cuQue a ponta duma espiga de outonoE uma grande montanha algo pequeno face ao firmamento.Nada h de mais idoso que uma criana morta.

    Tchouang Tseu

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    48 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

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    49Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Captulo 3 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    J antes muitas vezes se aventurara a franquear as portas da AFAM para passear pelas

    avenidas, de olhos deslumbrados pelas montras coroadas de non O homem atrado por

    tudo o que brilha e pelo seu recheio voluptuoso: casacos de peles mal tapando manequins

    seminus adornados por jias cintilantes, limusinas de luxo com cromados refulgentes, core-

    tos de rua a abarrotarem de instrumentos espelhados, emitindo sons cmicos e pouco melo-

    diosos para os seus ouvidos de japons.

    Sim, j antes se deixara inebriar um pouco pela Cidade Luz, mas agora, deambulando com

    fome e frio pelas ruas e becos de Paris, sem ter um dojo, um pedacinho do seu Japo, onde

    aportar ao cair da noite, agora, as sombras da Cidade Luz que lhe toldavam o olhar pareci-

    am crescer e tornar-se maiores e mais escuras noite aps noite. E depois, havia aquele maru-

    lhar permanente, nas ruas, nos cafs, nas estaes de Metro, aquele rudo de fundo formado

    por milhares de vozes falando aquela estranha lngua, repleto de uivos suaves e de agrestes

    rrs. Quanto mais observava os transeuntes, as pessoas correndo para o trabalho de manh

    e para casa tardinha, os namorados passeando no parque aos domingos, as senhoras com

    as mos repletas de sacos de papel lustroso, quanto mais os observava mais incompreen-

    sveis lhe pareciam as razes da cultura daquele povo. Os magnficos monumentos, as impo-

    nentes esttuas, o culto do bem vestir e do bem cheirar contrastavam, afinal, com a rudeza

    dos hbitos dirios a ausncia de vnias, o deixar os animais defecar no passeio e depois

    Foto 12 - Um coreto na Place dItalie, Paris

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    50 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    a escassez de uniformes que ajudassem um pobre forasteiro a distinguir funes entre a mul-

    tido annima. Ah, mas pior do que isso, a maior e mais incmoda de todas as incomodi-

    dades era a completa ausncia de locais de sento [banho pblico] onde um pobre japons

    pudesse, j no cumprir o ritual de purificao dirio mas ao menos relaxar os msculos,

    semanalmente que fosse, com um bom banho quente.

    No meio de tanta diferena e diversidade procurava desesperadamente uma ponte que lhe

    permitisse franquear o rio de dissemelhanas entre os seus costumes e os daquele povo.

    Afinal essa ponte acabaria por encontr-la da mais inesperada maneira.

    O Inverno de 1959 talvez se aproximasse do fim, j no o sabia. Os jornais que o vento das

    ltimas semanas levantara para as suas mos tinham sempre cabea fotografias de Charles

    de Gaulle o novo imperador daquelas gentes. Mas, nascera fria e hmida aquela manh de

    Domingo e nem uma brisa ajudara o Sol a dissipar o nevoeiro denso. Ia j a meio do percur-

    so ritual que iniciava sempre no Palcio de Tquio, atravessando pela Ponte dIna, em

    direco Torre Eiffel percorrendo todo o Campo de Marte e inflectindo depois em direco

    aos Campos Elsios. Porm, de repente, a meio da Ponte da Concrdia deteve-se, aperceben-

    do-se de que o ar hmido lhe trazia um repicar longnquo de sinos que apelavam grave e

    solenemente aos fiis. De alguma forma esse som confortou-lhe o corao, de to seme-

    lhante que era com o gongo do templo Budista de Shizuoka onde costumava contemplar a

    admirvel esttua de Ieyasu, o fundador do Shogunato Tokugawa. Agilmente, no seu passo

    elstico, subiu pela margem esquerda, numa direco que geralmente por instinto evitava,

    reconhecendo do outro lado do Sena a fachada do Louvre. Em breve o magnificente pincu-

    lo da Notre Dame comeou a tornar-se-lhe visvel, depois a imponente viso das torres

    gmeas, finalmente a lindssima roscea

    Ao atravessar o Sena pela Ponte do Double

    sentiu que o corao se lhe apertava Seria

    correcto um budista entrar naquele grande

    templo cristo?. Mas a atraco do som

    grandioso do rgo impeliu-o para o interior

    da catedral.

    Foto 14 - A Catedral de Notre Dame de Paris(vista exterior)

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    51Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Apesar dos muitos turistas que ali estavam, o

    ambiente de devoo era esmagador. A cele-

    brao atingia o auge, de modo que ningum

    pareceu notar a, qui desadequada, mas mui

    respeitosa, saudao do pequeno oriental:

    -Kamiza-ni Rei! murmurou, curvando-se

    numa vnia respeitosa na direco do altar.

    O servio religioso decorria na serena lentido

    que lhe era prpria. Fechou os olhos para sen-

    tir melhor, nos ecos do cntico gregoriano, as

    similitudes com as rcitas budistas. E por ali,

    abrigado por uma das fortssimas colunas, se

    foi deixando ficar discretamente, at ao final

    da cerimnia, esperando pacientemente que o

    ltimo fiel sasse. S depois se ajoelhou, dis-

    cretamente, emseiza e, assim que os seus joe-

    lhos tocaram o cho, deixou os lbios pronun-

    ciarem um pequenosutra. No grandioso templo cristo, Murakami o budista pedia fer-

    vorosamente ao poderoso kami daquele lugar que lhe concedesse um pouco da sua divina

    misericrdia. Ao encaminhar-se para a porta ia magicando Quanto tempo demorar uma

    prece a ser ouvida num templo catlico?. No Japo, na sua juventude, tinha ouvido os mais

    supersticiosos falarem de milagres instantneos, que se consumavam ao queimar de uma

    vela, mas a razo dizia-lhe que os grandes milagres eram aqueles que se iam consumando

    com o queimar da chama de uma vida inteira. Ainda assim, depois de se erguer, deixou o

    olhar prolongar-se pela luz tnue que perpassava pelos vitrais e pensou: Quanto tempo mais

    ainda terei de esperar por uma luz que me conduza para fora deste tormento? Lembrando a

    solido, o frio e a fome dos ltimos meses, sem autorizar que essas dificuldades o conduzis-sem para o caminho do desespero, concedeu a si prprio um suspiro de pena por si prprio.

    Mas logo endireitou as costas para saudar uma ltima vez o altar e, usando o ventre movi-

    mentou sem esforo a pesada porta da catedral.

    Ao sair procura no bolso o cachimbo, h muito vazio, e prepara-se para o colocar nos lbios

    quando um latido roufenho o faz virar a cabea. Pelo ar triste e abandonado, adivinha que

    aquele pedido de ajuda j foi repetido muitas vezes ao longo dos ltimos dias

    Foto 13 - A Catedral de Notre Dame de Paris(vista interior)

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    52 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    - Fraco poder o teu, Kami ironiza Murakami virando o olhar para o cu cinzento

    isto que me ds? Um rafeiro abandonado?

    Dobrando os joelhos, afaga meigamente o pelo castanho-avermelhado do cozito e apercebe-

    -se, pelo contacto sedoso, que um co de estimao. Este retribui-lhe o gesto com duas ou

    trs lambidelas amigveis nas mos. H um riso que se mistura com um latido de felicidade.

    Contemplando os seus olhos meigos e profundos, por um momento, pensa:

    - Quem sabe se no preferiste o frio e a fome da rua trela do teu dono?...

    Ali porta da Notre Dame de Paris, sela-se um pacto de amizade e dos melhores, sem

    palavras! Murakami solta uma sonora gargalhada:

    - Ah, ah, ah! Vou chamar-te Shiba! e continuando a cofiar-lhe o pelo O teu pelo tem

    a cor do Outono japons! apropriado! Shiba Inu! Ah, ah, ah!...

    As paredes macias da catedral devolvem-lhe o eco do seu riso. Lembrando-o h quanto

    tempo no escutava de si prprio uma gargalhada sonora e sentida como aquela.

    Foto 15 - A Catedral de Notre Dame de Paris (aquando da visita do autor a Paris para a realizao deentrevistas aos antigos alunos do Mestre), 2001

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    53Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Levantando-se lentamente, esboa uma vnia na direco do edifcio. Afinal talvez viesse a

    ficar em dvida para com aqueleKami. Pelo sim, pelo no, doravante aNotre Damepassaria

    a fazer parte do seu percurso matinal de Domingo.

    - Shiba! Ikimashou!

    O co ganhara um dono extremoso e dedicado, mesmo que no o pudesse abrigar na exi-

    guidade do seu quarto. Murakami muito mais! O seu sexto sentido tinha apercebido um

    sinal: a sua sorte iria mudar. Tinha agora um ouvinte perfeito, um confidente com quem

    desabafar as mgoas, sem risco de ser mal interpretado. Alm disso, nos dias piores seria

    menos humilhante pedir, nas traseiras dos restaurantes chineses, um pouco de comida para o

    co, do que para si prprio

    Foi a esse companheiro que, em demorados passeios ao longo das noites seguintes, resolveu

    confidenciar as ntimas reflexes sobre Gichin Funakoshi O-Sensei o Mestre que nuncachegara a conhecer e que morrera h pouco mais de um ano. Quo grande sentia o paralelo

    das suas vidas: ambos desconsiderados como raa inferior pelos senhores da terra e

    lanados na misria, ambos desterrados para longe da famlia e da ptria por amor ao Karate,

    por quanto tempo? Um ano? Uma dcada, uma vida?...

    - Ah, Shiba, querer o destino que eu venha a fazer brilhar na Europa uma centelha que

    seja do enorme fogo de alma que Funakoshi O-Sensei ateou no Japo?...

    Foto 16 - Rua tpica de Paris com a Catedral do Sacr Coeur ao fundo (2001)

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    54 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Por sorte o Shiba, embora obediente a todos os comandos do seu dono Senta! Deita! D

    a patinha! tinha ganho uma independncia muito prpria durante as semanas de

    vagabundagem. Era, pois, difcil de dizer quem seguia quem. E foi assim que certa noite se

    deixou levar pelo seu vadio cachorro at uma rua desconhecida do Quartier Latin, uma zona

    que h vrios meses evitava, por lhe ser de to m memria a Rue de La Montagne Sainte

    Genevive onde se situava a AFAM. Mas foi em boa hora que se perdeu, porque ao dobrar

    de uma esquina:

    - Murakami Sensei!... Ser possvel!?

    Nenhum dos dois homens queria acreditar nos seus olhos.

    O aluno, cujo nome se perdeu na nvoa do tempo, esse estava de lgrimas nos olhos. Ao fim

    de um ano, tal era a dedicao que tinham para com o seu Mestre que, ao saber que o Sr. Ple

    se recusara a dar continuidade ao contrato de Murakami, a maioria deles tinha decidido afas-

    tar-se em definitivo da AFAM. Porm, embora tivessem decidido em conjunto procurar um

    dojopara o Mestre, a verdade que tinham acabado por perder o contacto com ele. Nos lti-

    mos meses muitos tinham procurado uma pista sua na AFAM mas a resposta invarivel era:

    - Voltou para o Japo!

    J lhes tinha mesmo ocorrido contactar oDojo Yoseikan em Shizuoka, mas tambm esse con-

    tacto estava absolutamente reservado AFAM.

    Quanto a Murakami dominava no peito um sentimento contraditrio: imensamente feliz por

    reencontrar um dos seus antigos alunos mais dedicados, bastante envergonhado porque os

    seus trajes e at a magreza do seu rosto no lhe permitiam esconder a m sorte que tombara

    sobre ele nos ltimos meses.

    - Nem acredito que mesmo o Mestre!? Que maravilha t-lo encontrado! Nem sabe quan-

    to temos procurado por si! Bem me parecia que a AFAM no estava a dizer toda a ver-

    dade. J encontrou um dojo? Tem muitos alunos?

    Murakami no conseguia acompanhar o ritmo frentico da conversa do seu aluno, mas

    percebeu a ltima pergunta:

    - Dojo? Deshi?... Humm Hitori! disse sorrindo um pouco enquanto lanava um olhar

    de soslaio para o seu co

    - O qu?Hitori!? Um aluno s!? No possvel! Consta que vrios dos seus alunos, no

    s de Frana mas da Inglaterra, Alemanha, Itlia, continuam a enviar cartas AFAM a

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    55Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    perguntar por si, solicitando estgios.

    O ritmo da conversa estava novamente demasiado rpido para que fosse inteligvel:

    -Deshi?Itaria? Wakarimasen! (no compreendo)

    - Mestre, escute: ns estamos a procurar um dojo para podermos recomear os nossos

    Keiko!!!

    - EetooDojo?...

    Murakami estava de novo um pouco embaraado. O rapaz sentiu que tinha de explicar mais

    vagarosamente:

    - Mestre, venha da vamos tomar um caf?

    -Iie, iie, Sumimasen! Recusou delicadamente, enquanto o brilho dos seus olhos o traa.

    A perspectiva de poder confortar o estmago com um caf o primeiro desde h muitas se-

    manas era algo de tentador, mas o seu orgulho foi mais forte do que o aroma que exalava

    da pastelaria ali ao lado.

    - Iie! Sumimasen!... O co no pode entrar

    - Ah!?... O cozito seu? E no tem trela no ? retorquiu o rapaz, apercebendo-se

    subitamente que a situao financeira do Mestre era capaz de ser bem mais grave do

    que imaginara Nesse caso combinamos aqui amanh mesma hora! O que acha?

    - Amanh. Aqui! Wakarimasu! Domo.

    -Doo-itashimashite. Sayoonara Sensei!

    - Sayoonara!

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    Nessa noite, no minsculo quarto onde se abrigara nos ltimos meses, no qual apenas cabi-

    am um colcho e muito arrumados os seus preciosos livros, Murakami Sensei, que normal-

    mente dormia profundamente, no conseguia adormecer. De modo que j pela madrugada,

    para se acalmar, resolveu retomar a sua prtica habitual de makiwara contra a parede do

    quarto protegida por uma pequena toalha:

    - Bum!... Bum!...

    As pancadas surdas desta vez s terminariam com o nascer do Sol. S muitos meses mais

    tarde os restantes inquilinos viriam a desvendar o misterioso rudo que, pela noite fora tanto

    fazia tremer as paredes do prdio, ao tomarem conhecimento que aquele japons, magro e

    discreto, era afinal um Mestre de Karate.

    Quanto ao seu fiel deshi atarefara-se at altas horas da noite em telefonemas para os seus

    colegas mais prximos Claude Hamot, Jacques Fonfrde, Bernard Durand para lhes con-

    tar da boa-nova acerca do seu encontro com o Mestre e para pedir novidades acerca de umdojopara treinarem. Hamot, tinha boas notcias: o seu amigo judoca Jean Plusquellec esta-

    va disposto a acolher a classe de Karate numa sala que tinha alugado na cave do n 109 da

    Boulevard Auguste Blanqui.

    Na manh seguinte lanou o habitual assobio. Mas de Shiba nem sombras. tarde, cami-

    nhando ao encontro do aluno, apalpou no bolso a trela que improvisara a partir de um cinto

    velho e sorriu - Ah! O kami de Notre Dame tambm no gosta de trelas!. No mais o veria.

    Quanto ao seu deshi, tambm se antecipara face hora combinada de modo que ao fim da

    Foto 17 - Rua Tpica de Paris (2001)

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    57Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    tarde j estava de volta. O sorriso aberto prenunciava boas notcias.

    - Sensei! gritou, deixando as formalidades de lado, e agarrando fortemente a mo di-

    reita de Murakami com as suas J temos umDojo! Um bomDojo!

    Quando Murakami entrou na cave da Boulevard Blanqui, deparou-se com salas onde fun-cionavam, separadamente, vrios tipos de artes marciais. De facto era ali que ensinavam os

    famosos Mestres de Judo Shozu Awazu e Mikonosuke Kawaishi. E tambm ali estava sedea-

    do o clube de boxe do treinador Philippe Filippi, managerdo famoso Marcel Cerdan junior

    e, tambm, de Patrick Baroux que, anos mais tarde, viria a fazer parte, da seleco nacional

    francesa de Karate.

    O nmero reduzido de praticantes levaria a que as dificuldades financeiras se tivessem de

    prolongar ainda por muitos meses, mas a sorte de Murakami tinha comeado a mudar: no

    s tinha um dojo onde ensinar, com fiis alunos a seu lado, como tambm, e no menos

    importante que isso, tinha uma morada para onde os seus alunos de outros pases da Europa

    o poderiam contactar.

    Foto 18 - Tetsuji MurakamiSenseinos primeiros anos em Frana

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    58 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Estava porm bem consciente da enorme barreira que o desconhecimento da lngua france-

    sa constitua para o seu sucesso, de modo que o primeiro dinheiro que conseguiu juntar usou-

    -o para ingressar na Alliance Franaise. Contudo, nenhuma das palavras francesas que ia

    aprendendo cole, gymnase lhe soava bem para intitular o seu primeiroDojo. Assim,

    decidiu pr-lhe o premonitrio nome deRenseikan (Clube da Prtica Correcta) e, medi-

    da que os antigos alunos da AFAM iam passando palavra entre si, o pequeno dojo comeou

    a encher-se de alunos ansiosos por desfrutar das suas aulas de Karate-do,Kendo e Aikido...

    No primeiro lote desses alunos incluam-se nomes como Claude Hamot, Jacques Fonfrde,

    Michel Hsu, Bernard Durand, Cocatre, Hoang Nam, Maquin, Morgan, Bassesse, Jean Terraz.

    Dentre esses alunos, destacava-se Claude Hamot que haveria de ter um lugar proeminente

    no panorama do Kendo francs e que nos relata outra faceta de Tetsuji Murakami a de

    introdutor doKendo em Frana e, por consequncia, na Europa 3:

    Foto 19 - Tetsuji Murakami Sensei na sua faceta de Kendoca

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    59Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Eu estava, nessa poca, muito ligado ao Mestre, as nossas idades diferiam apenas de alguns

    dias. Pelo convvio que tive com ele transmitiu-me, a mim e aos outros, um pouco da sua rec-

    tido e do seu sentido profundo da relao Mestre-discpulo na qual ele reflectia bem ambos

    os aspectos.

    Alguns de ns ainda compartilhamos a lembrana daquelas demonstraes na provncia ou

    no estrangeiro onde, com o Mestre e diferentes parceiros, praticvamos no mesmo dia, ou na

    mesma noite, vrias disciplinas.

    A fora de vontade do Mestre era inesgotvel, parecia-nos infatigvel de corpo e esprito;

    tinha tambm a sensibilidade para sentir, bem antes de ns, os ambientes e agir consequente-

    mente, assim no pretendeu que participssemos no que foi chamado o primeiro Campeonato

    da Frana de Kendo; ns obedecemos-lhe.

    A partir de 1961/ 1962, o Mestre no teve mais ocasio de praticar Kendo connosco e ns

    atravessmos sem ele um longo perodo de cinco anos pouco activo na prtica do Kendo mas,

    ns, que no praticvamos o karate, continumos-lhe fiis, na esperana de retomarmos um

    dia com ele.

    Quando inicimos o segundo perodo do Kendo em Frana, em 1966/1967 com Tadakatsu

    Shiga, o Mestre observava-nos, veio assistir primeira competio europeia em Paris em

    Maio de 1968, deu-nos alguns conselhos e ficou feliz de ver Bernard Durand, 1 Dan,

    vencer, na final, um 4 Dan. Para ele, o Kendo era isso: o esprito que luta e que ganha.

    Atravs da prtica ulterior, aqueles dos seus alunos que continuaram o Kendo conservaram

    em si uma parte desse esprito do Mestre; que , muito para alm da tcnica do Kendo, uma

    mensagem de vida que ele nos transmitiu, e que faz com que para ns o Mestre no tenha

    desaparecido.

    No Outono de 1959 comeariam a chegar aoRenseikan os primeiros convites para estgios

    internacionais. Porm, ainda antes do grande impulso para esse novo e decisivo captulo da

    sua vida, Murakami tinha conscincia de um importante dever: libertar de toda a respon-

    sabilidade o seu Mestre Yamaguchi Sensei. Numa carta pequena, franca e simples infor-

    mou-o de que tomara a deciso de se desvincular em definitivo da AFAM, que iria trabalhar

    em prol do Karate na Europa por sua prpria conta e risco e, que, para no comprometer de

    alguma forma o bom-nome do seu Mestre, se desvinculava dele como discpulo, em defini-

    tivo.

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    60 Sombras da Cidade Luz (1958-1959)

    Entregando-se desta forma ao sabor dos ventos e correntes do destino, sem amarras com o

    passado, o pequeno karate-ka de Shizuoka tinha plena conscincia que, segundo o cdigo do

    Bushido,passaria a ser desconsiderado por muitos dos seus conterrneos e talvez at pelo

    nico homem em Frana em quem, segundo o seu Mestre Mochizuki, poderia depositar

    inteira confiana Jim Alcheik. A assinatura que quisera pr naquela carta, sabia-o bem, sen-

    tenciara o fiel Samurai ao estatuto de um aventureiroRonin. E, no entanto, de todas as suas

    preocupaes essa era uma das menores, pois que na sua conscincia sentia-se fiel misso

    de um Mestre maior Funakoshi recentemente falecido. E no tinha o prprio Miyamoto

    Musashi recebido tambm o mesmo epteto!

    Outra carta, porm, teria ainda de escrever. Essa bem mais dolorosa e difcil porque no se

    situava no slido terreno da honra, bem mais acessvel ao seu carcter, mas nos movedios

    domnios do afecto e do sentimento. A carta que teria de escrever sua esposa e aos seus

    dois filhos haveria de descrever as vidas das gentes deste pas distante onde as pessoas vivi-

    am rodeados de confortos e bens materiais? Ou de um templo grandioso habitado por um

    kami generoso? Ou talvez de um casal de grous cantando em unssono ainda que sepa-

    rados por uma eternidade de mar?

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    Admirando os gestos harmoniosos do seu talhante e o ritmo musical da sua faca nas car-

    caas que desmanchava, o prncipe Mui louvou a habilidade da sua arte.O talhante respondeu-lhe:

    A minha habilidade vem do facto de eu seguir o Tao. No princpio da minha carreiraeu via apenas o boi. Aps anos de prtica j no me preocupo com o animal inteiro etrabalho deixando-me guiar pelo meu esprito mais do que pelos meus olhos. Adapto--me constituio natural do animal e o fio da minha faca segue os interstcios eintromete-se nas cavidades. No corto nem msculos nem nervos e muito menos osossos. Um bom talhante muda a sua faca todos os anos porque trincha, um talhantecomum todos os meses porque corta. Quanto a mim, sirvo-me da mesma faca desdeh dezanove anos e embora tenha desmanchado milhares de carcaas, dir-se-ia que oseu fio acabou de ser afiado. A finura da lmina introduz-se nos espaos das articu-

    laes e das fibras e eu oriento a minha faca com destreza nos espaos vazios que,assim, vou alargando. Concentro a minha ateno sobre as dificuldades especficasencontradas em cada instante, ajo lentamente, e as partes separam-se por elas mes-mas,como um punhado de terra que se esboroa. Ento retiro a minha faca, ergo-me,respiro fundo e arrumo-a.

    Bem, disse o prncipe, as palavras deste talhante ensinam-me a arte de conduzir aminha vida.

    Tchouang Tseu

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    63Anos de Missionao (1959-1966)

    Captulo 4 Anos de Missionao (1959-1966)

    No destino de Murakami continuavam presentes os anjos de ferro que na sua juventude

    sobrevoavam os arrozais de Shizuoka mas, agora, chegara a sua vez de viajar no ventre des-

    ses ruidosos kami, para vrias cidades da Europa.

    Todavia essas viagens seriam tudo menos turismo. Em cada local em que poisava espe-

    ravam-no gigantes musculados muitos deles com considervel experincia em Judo e ou-

    tras artes marciais que procuravam ocultar, por debaixo das vnias respeitosas, o desejo

    secreto de mostrar aos colegas de quimono que eram capazes de dar um bom murro, ou

    aplicar uma boa projeco, naquele minsculojapons.

    Poderemos ns imaginar a extrema dureza fsica desses recontros com Judocas habituados a

    lutas corpo a corpo, indivduos com uma estatura e peso prximas do dobro dos modestos

    atributos fsicos de Murakami (pouco mais de 1.50 m, menos de 50 kg)? A flexvel, rpida e

    incisiva linha Shuri-te da Arte de Okinawa aquela a que o seu corpo esguio e flexvel mais

    se adaptava iria agora ser confrontada com a tremenda fora de braos e de tronco dos oci-

    dentais. Compreende-se que essa absoluta necessidade de se sobrepor, fsica, tcnica e men-

    talmente acabasse por marcar muito do estilo duro de ensino, dentro do dojo, que o Mestre

    viria a adoptar durante as prximas duas dcadas.

    Foto 20 - MurakamiSensei, tempos de Shotokan

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    64 Anos de Missionao (1959-1966)

    E no entanto, fora do dojo, em contraste com o rigor tcnico e a dureza extrema dos treinos,

    Murakami revelava-se, muito mais do que um fabuloso tecnicista, um homem de grande pro-

    fundidade e sensibilidade. Ele enfatizava sempre o primado da mente sobre o corpo e era,

    como poderemos comprovar por muitos dos relatos seguintes dos seus discpulos prximos,

    uma pessoa extremamente gentil e interessada no conhecimento da personalidade dos seus

    alunos e na cultura e tradies dos pases e locais que visitava.

    Alis, esse contraste de atitudes foi, desde sempre, uma das principais marcas pedaggicas

    do seu ensino, uma maneira de ser e de estar que quase sempre cativava para o resto da vida

    aqueles que tinham a coragem de oferecer o seu corpo ao cortante cinzel daquele mestre

    escultor, que esculpia no em pedra, mas em corpos vivos. Nesses que conquistavam a honra

    de desfrutar com ele o convvio mais prximo, mesmo que o destino os tivesse afastado h

    muito do Karate, descubro nos seus olhos uma centelha de entusiasmo, logo moderada pelo

    respeito sua memria, quando me relatam hoje, comovidamente, os momentos em que pri-

    varam com o Mestre.

    De certo modo ele considerava-nos a todos ns, os seus alunos, como seus filhos, como se

    ilustra pela seguinte cena que se passou no final do treino quando um aluno j bastante gra-

    duado e que costumava assumir o papel de assistente do Mestre nos estgios depois de ter

    sido sujeito a uma sesso de treino extremamente dura, desabafou nos seguintes termos

    Eu vou parar, voc no tem o direito de me bater desse modo! ao que o Mestre retorquiu

    Mas eu comporto-me consigo como um pai com os seus filhos. E, noutra ocasio, falan-do da educao dos filhos, dizia: Um bom pai no pode dar apenas amor aos seu filhos, tam-

    bm tem de lhes dar disciplina.

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    65Gr-Bretanha e Irlanda

    Gr-Bretanha e Irlanda

    Ainda em 1959, Mestre Murakami dirige no Royal British Legion Hall, em Upminster,

    Essex, o primeiro estgio fora de Frana