o Retorno Do Real
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que indicar igualmente esse real.30 Tais analogias entre o discurso psicanal ít ico
e as artes visuais valem pouco, se nada fizer a mediação ent re os dois. Porém,
aqui , tanto a teoria quanto a arte relaciona a repetição à questão da visual idade
e do olhar (g a z e ).
Mais ou menos contemporâneo à divulgação do pop e ao nasc imento do
super-realismo, o seminário de Lacan sobre o olhar sucede àquele sobre o rea l;
ele é muito cit ado, mas pouco compreendido. É possível que haja um olhar
masculino e que o capi tal ismo esteja voltado para o sujeito masculino , mas
esses argumentos não encontram sustent ação nesse seminário de Lacan, para
quem o o lhar não está incorporado a um sujeit o, pelo menos numa primeira
instância. Numa certa medida, à semelhança de Jean-Paul Sartre, Lacan distingue
entre o ver (ou o olho) e o olhar, e em certa medida, como Merleau-Ponty, ele
sit ua esse olhar n o m un do .31 Em Lacan, o que ocorre com a l inguagem também
ocorre com o olhar: ele preexiste ao sujeit o, que, “olhado por todos os lados”,
não é ma is do que uma “mancha” no “espetáculo do mundo”. Portanto,
posicionado, o sujeito tende a sent ir o olhar como uma ameaça, como se oquestionasse, e é por isso que, de acordo com Lacan, “o olhar, q u a ob j e t a , pode
vir a simbolizar essa fal ta central expressa no fenômeno da castração”.
Ainda mais do que Sartre e Merleau-Ponty, portanto, Lacan desaf ia o velho
privi légio do sujeito na visão e na autoconsc iência (o v e j o - m e v e n do a m i m
m e s m o que fundamenta o sujeito fenomenológico), assim como o velho domínio
do suj ei to sobre a represent ação (“esse aspecto de pertença a mim da
representação, tão sugestivo de propriedade”, que imbui o sujeito cartesiano depoder). Lacan subjuga esse sujeito na famosa anedot a da la ta de sardinha que
boiava no mar, brilhando ao sol, parecendo olhar para o jovem Lacan que estava
30 Como veremos, esse ponto t r o u mático podeser associado com o ponto central na perspectivalinear, a partir do qual omundo retratado retribuio olhar do observador. A pintura de perspectiva
tem formas di ferentes de sublimar esse buraco:em pinturas rel igiosas o ponto freqüentementerepresenta a infinidade de Deus (na Ú l t i m a C e i a ,de Leonardo ele toca o halo de Cristo), na pinturade paisagem, a infinidade da natureza (existemmuitos exemplos americanos no século XVIII), eassim por diante. A pintura super-real ista, eusugiro, sel a ou mistu ra esse ponto com asup er f í c ie , enquanto mu i to da ar t econtemporânea procura apresentá-lo dessa forma
– ou ao meno s op or-se a sua forma desublimação tradicional .31 Lacan apóia-se, em particular, no Sartre deB e i n g a n d N o th i n g n e ss (1943) e noMerleau-Pontyde The P h e n o m e n o l o gy o f Pe r c e p t i o n (1945) .
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44 Rosal ind Krauss concebe, em C i n d y S h e r m a n ,
ess a dessub l imação como um a t aque àverti cal idade sublimada da imagem artí sti catradi c ional (New York : Rizzol i , 1993). El aigualmente discute a obra numa relação com odiagrama da visual idade de Lacan. Ver também adiscussão de Sherman em Kaja Silverman, T h e T h r e s h o l d o f th e V i s i b le W o r l d (New York: Routledge,
1996), que apareceu tarde demais para que eu o
pudesse consultar.
45 Ver Julia Kristeva, P o we r s o f H o rr o r , trad.
Leon S. Roudiez (New York: Columbia UniversityPress, 1982).
arte com uma galeria de horríveis aristocratas (em uma substituição de tipos do
renasc iment o, barroco, rococó e neoclass ic ismo, com alusões a Rafael,
Caravaggio, Fragonard e Ingres). A brincadeira torna-se perversa quando, como
em algumas fotograf ias de moda, a distância entre o corpo imaginado e o corpo
real torna-se psicótica (um ou dois modelos não parecem ter qualquer percepção
egóica) e quando, em algumas fotograf ias da história da arte, a desidealização
é levada a ponto de dessublimação: com sacos marcados por cicatrizes no lugar
de bustos e furúnculos no lugar de narizes, esses corpos rompem os limit es da
representação com propriedade, rompem, de fa to, com a própria subjetividade.
44
Essa virada em direção ao grotesco é acentuada nos contos de fada e
imagens de desastres, alguns dos quais mostram terríveis acidentes de nascimento
e aberrações da natureza (uma jovem mulher com nariz de porco, uma boneca
com cabeça de um velho homem imundo). Aqui , como ocorre freqüent ement e
em filmes de terror e histórias de ninar, o horror significa, em primeiro lugar e
acima de tudo, horror à maternidade, ao corpo da mãe tornado estranho, mesmo
repulsivo, na repressão. Esse corpo é igualmente a cena primária do ab j e t o , uma
categoria do (não)ser def inida por Julia Kristeva como nem sujeito, nem objeto,
mas antes de se tornar o primeiro (antes da int eira separação da mãe) ou depois
que se tornou objeto (como um cadáver entregue à condição de objeto) .45 Essas
condições extremas são sugeridas por algumas das cenas de desastres, infiltradas
como estão de significantes de sangue menstrual e descarga sexual , vômit o e
Cindy Sherman. S e m t í tu l o s (#2 e #153) ,1977 e 1985
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merda, decadência e morte. Tais imagens evocam o corpo virado ao avesso, o
sujeito lit eralmente abjetado, jogado fora. Mas também evocam o fora tornado
dent ro, o sujeito-como-figura invadido pelo olhar-do-objeto . A essa al tura,
algumas imagens passam para além do abjeto, que freqüentemente se relaciona
com substâncias e significados não só em direção ao i n f o r m e – uma condição
descrita por Bataille, em que a forma significativa se dissolve porque a distinção
fundamental ent re figura e fundo ou eu e out ro se perde –, mas também em
direção ao ob sc e n o , em que o olhar-do-objeto é apresentado c o m o s e n ão h o u v e ss e
u m a c e n a pa r a e n c e n á - l o , n e nhu m a m o l d u r a r e p r e s e nt a t i v a pa r a c o nt ê - l o , n e nhu m
a nt e pa r o .46
Esse também é o universo das obras pós-1991, as imagens da guerra civi l ede sexo, pontuadas por c l o s e - u p s em corpos e /ou partes de corpos simuladamente
deformados e /ou mortos. Às vezes o anteparo parece tão rasgado, que o olhar-
do-objeto não só invade o sujeito-como-figura, mas o domina. E em algumas
imagens de desastres e guerra civi l intuí mos o que seria ocupar a terceira posição
impossível no diagrama lacaniano, receber o o lhar pulsante e mesmo tocar o
objeto obsceno, sem a proteção do anteparo. Em uma de suas imagens, Sherman
fornece a esse olho mau sua própria visada terrificante.
Nesse esquema, o impulso para destruir o sujeit o e rasgar o anteparo levou
Sherman de seus primeiros trabalhos, em que o sujeit o é captado no olhar, via
trabalhos intermediários, em que ele é envolvido pelo olhar, até os mais recentes,
em que ele é obliterado pelo olhar, apenas para retornar como partes de bonecos
desconjuntados. Mas esse ataque duplo sobre o sujeit o e sobre o ant eparo não
ocorre apenas com Sherman; acontece em várias frentes na arte contemporânea,
nas quais ele é colocado, quase abertamente, a serviço do rea l.
Esse trabalho evoca o rea l de di ferent es formas. Começarei com duas
abordagens que beiram o ilusionismo. A primeira envo lve um ilusionismo
prati cado menos em imagens do que em objetos (se ele se relaciona com o
super-real ismo, é então referindo-se às figuras de Duane Hanson e John de
Andrea ). Essa arte faz de forma in tencional o que alguma arte super-rea lista e
app r op r i a t i o n a r t faziam de forma inadvertida, ou seja, empurra o ilusionismo até
o ponto do rea l. Aqui , o i lusionismo é usado não para encobrir o rea l com uma
superfí cie de simulacro, mas para d e s cobri- lo em coisas misteriosas, que são
freqüentemente também incluídas em p e r f o r m a n c e s . Com esse fim, alguns artistas
provocam o estranhamento com relação a objetos cotidianos relacionados com
o corpo ( como os urinóis selados e as pias esticadas de Robert Gober, a mesa
com natureza-morta que recusa ser morta, de Charles Ray, e os aparatos quase
atlé ti cos, desenhados como el ementos de p e r f o r m a n c e por Mat thew Barney) .
Outros artistas tornam estranhos alguns objetos infant is retornados do passado,
freqüentemente distorcidos em escala ou proporções, com um toque de sinistro
(como nos pequenos caminhões ou nos enormes ratos de Katarina Fritsch) ou de
46 Com respe i to a essas di ferenças, ver :“Conversations on the In form and the Abject ,”O c t ob e r 67 (Wint er 1993) .
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nós”, responde o coelho .
80 Porém seria esse ponto niil ista a epítome do
empobrecimento, que o poder não pode penetrar? Ou seria ele um lugar de onde
emana o poder em uma forma nova? Será a abjeção uma recusa do poder, o seu
estratagema, ou sua reinvenção?81 Finalmente, seria a abjeção um espaço-tempo para além da redenção? ou o caminho mais rápido em direção à graça
para estrategistas-santos contemporâneos?
Por meio das culturas artí sti ca, teórica e popular (no SoHo, em Yal e, na
Oprah) , há uma tendência a redef in ir a experiência, individual e histórica, em
termos do trauma. De um lado, na arte e na teoria, o discurso sobre o t rauma
continua a cr í ti ca pós-estrutural ista do suj ei to , por outros meios, poi s,
novamente, num registro psicanal ít ico, não existe o sujeito do trauma: a posiçãoé evacuada, e nesse sentido a crít ica do sujeito é, aqui , a mais radical . De outro
lado, na cultura popular, o trauma é tratado como um acont ecimento que
garante o sujeito, e nesse registro psicologizante, o sujeito , por mais perturbado,
retorna como testemunho, atestador, sobrevivente. Aqui se encontra de fato um
sujeito traumáti co, e ele tem autoridade absoluta, pois não se pode desaf iar o
trauma do outro, só se pode acreditar nele , até mesmo ident ificar-se com ele , ou
não. N o d i sc u r s o s ob r e o t r a u m a , po r t a nt o , o s u j e i t o é ao m e s m o t e m po e v a c u ado e ele v ado . E dessa forma, o discurso do trauma resolve magicamente dois imperativos
contraditórios da cultura hoje: anál ise desconstrutivista e polít ica de identidade.
Esse estranho renasc imento do autor, essa condição paradoxal de autoridade
ausente, é uma virada significativa na arte contemporânea e na polít ica cultural .
Aqui o retorno do real converge com o retorno do referencial , e agora voltar-me-
ei para esse ponto.
82
80 Kelley, cit ado em Sussman (org.), C a th o l i c T a s t e s , 86.
81 “O autodesinvestimento nesses artistas étambém uma renúncia de autoridade cultural”,
escreveram Leo Bersani e Ulysse Dutoit sobreSamuel Beckett , Mark Rothko e Ala in Resnais,
em Ar t s o f I m po v e r i s h m e nt (Cambridge: HarvardUni vers i ty Press , 1993). No ent ant o, el esperguntam: “Haverá, talvez um ‘poder’ nessaimpotência?” Se positivo, ela não deveria ser,por sua vez, questionada?82 Alguns comentários suplementares: (1) Se
há , como observaram alguns, uma vi radaautobiográf ica na arte e na crít ica, ela é sempreum gênero paradoxal , pois é possível que nãoexista um “eu” lá . (2) Da mesma forma que odepressivo é duplicado pelo agressivo, tambémo traumat iz ado pode to rnar-se host i l , e oviolado, por sua vez, violar. (3) A reação contrao pós-estrutural ismo, o retorno do real , tambémexpressa uma nostalgia por categorias universaisde ser e de experiência. O paradoxo é que esserenasc imento do humani smo ocorrer ia noregistro do traumático. (4) Em alguns momentosdeste capítulo, permit i que os conceit os de
trauma e abjeto se tocassem,
como ocorre nacultura, ainda que sejam teoricamente distintos,
desenvo lvidos em di fe rent es corrent es dapsicanál ise.