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Notas de Mecˆanica dosFluidos Domingos H. U. Marchetti Depto. F´ ısica Geral Email: marchett@if.usp.br Web: http://gibbs.if.usp.br/marchett Ifusp - 2008

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Notas de Mecanica dos Fluidos

Domingos H. U. MarchettiDepto. Fısica Geral

Email: [email protected]

Web: http://gibbs.if.usp.br/∼marchett

Ifusp - 2008

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RESUMO

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Indice

Prologo 5

1 Algumas Consideracoes Gerais 71.1 Funcoes de Estado de um Fluido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.2 Conservacao da Massa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91.3 Conservacao de Momento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111.4 Conservacao de Energia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

2 Equacoes do Movimento 172.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contınuo . . . . . . . . . . . 172.2 Movimento de um fluido Ideal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252.3 Campos Helicoidais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292.4 Decomposicao do Movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

3 Fluidos Ideais: Diversos Resultados 453.1 Equacao da Vorticidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453.2 Teorema da Circulacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473.3 Movimentos Estacionarios Elementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres . . . . 67

4 Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes 754.1 Equacoes de Navier–Stokes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

4.1.1 Escoamento de Poiseuille Entre Dois Planos Paralelos . . . . . . . 774.1.2 Escoamento de Poiseuille em um Tubo Cilındrico . . . . . . . . . 784.1.3 Equacao de Navier–Stokes em Coordenadas Cilındricas . . . . . . 804.1.4 Escoamento de Couette–Taylor entre Dois Cilındros Coaxiais . . . 824.1.5 Formula de Stokes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

4.2 Termohidraulica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

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4 Indice

4.2.1 Aproximacao de Boussinesq . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 924.2.2 Solucao Estacionaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 944.2.3 Forma Adimensional das Equacoes . . . . . . . . . . . . . . . . . 954.2.4 Estabilidade da Solucao Trivial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

4.3 Camada Limite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1014.3.1 Um Exemplo Simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1024.3.2 Interpolacao da Camada Limite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

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Prologo

O Instituto Clay de Matematica, sediado em Cambridge, Massachusetts, instituiu no ano2000 um premio no valor de 1 milhao de dolares a quem resolvesse um dos sete problemasdo milenio que resistem por anos solucao (veja http://www.claymath.org/millennium).Um deles e Provar a existencia e suavidade das solucoes da equacao de Navier–Stokes.

O enunciado surpreende a primeira vista, visto ser as primeiras questoes a serem inves-tigadas de uma equacao. Se nada podemos afirmar sobre sua propria existencia, como uti-lizar a equacao de Navier–Stokes (e equacao de Euler tambem) para descrever fenomenosde escoamento em fluidos?

Deixando de lado os problemas sobre a existencia, as equacoes de Euler e Navier–Stokes tem, nos ultimos dois seculos, sido utilizada para compreender os mais variadosfenomenos em fluidos por intermedio de solucoes analıticas em uma e duas dimensoes,reducao esta devido a simetria do problema, ou por solucoes aproximadas em combinacaocom engenhosos artifıcios ou ainda por intermedio de integracao numerica. Boa partedesta fenomenologia se encontra concisamente apresentada no texto de Mecanica dosfluidos por Landau e Lifshitz.

Os problemas soluveis terao destaque neste curso por seu papel ilustrativo, especi-almente aqueles cuja geometria bidimensional permite empregar a Teoria Potencial defuncoes a variavel complexa. Alem disso, sao importantes pois o escoamento de fluidosincompressıveis com viscosidade proxima a zero comporta–se como um fluido ideal excetonas proximidades de obstaculos e fronteiras, devido a velocidade do fluido se anular ouacompanhar a interface. O estudo das “boundary layers” envolvendo tecnica nao pertur-bativas permite uma abordagem qualitativa de varios fenomenos interessantes.

O presente curso de Mecanica dos Fluidos e uma introducao a Mecanica dos MeiosContınuos e esta dividido em tres partes. Um terco do curso para entender as equacoesdo movimento de um fluido, sua deducao das leis da Mecanica e Termodinamica e a suacinematica. Outro terco sera empregado em aplicacoes. A ultima parte do curso sera reser-vada para o problema da propagacao de chamas em canais. A escolha deste topico reside

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6 Prologo

no fato da Teoria de Darrieus–Landau sobre combustao reduzir equacoes hidrodinamicasem equacoes para o perfil da chama que por sua vez, devido a contribuicao de variosautores, permite um tratamento mais detalhado sobre alguns fenomenos relacionados a“dinamica caotica”.

Nao respeitando a ordem de apresentacao, serao cobertos os seguintes topicos: fluidosideais referenciais Lagrangeanos e Eulerianos equacoes de Euler e Bernoulli fluidoscompressıveis e incompressıveis escoamento rotacionais e irrotacionais escoamentobidimensionais fluidos reais leis de conservacao equacao de Navier-Stokes flui-dos geofısicos ondas superficiais ondas sonoras. Descreveremos as instabilidades deRayleigh–Benard, Taylor–Couette e outros fenomenos associados a camada limite.

Retornando ao problema de existencia e suavidade da solucao de Euler e Navier–Stokes,em duas dimensoes, o problema foi resolvido pela matematica russa Ladyzhenskaya. Emtres dimensoes, a existencia e suavidade e garantida se o campo de velocidades inicial v0

for suficientemente pequeno. Solucoes fracas, satisfeitas pela equacao integrada em umaregiao, foram investigadas por Leray em 1934. Leray mostrou que a equacao de Navier–Stokes em tres dimensoes admite solucoes fracas com certo crescimento mas sua unicidadenao e conhecida. A unicidade da solucao fraca de Euler e falsa. Caffarelli-Kohn-Nirenbergobtiveram os melhores resultados sobre regularidade parcial (a menos de um conjuntosingular que nao contem curvas no espaco × tempo) de solucoes fracas.

O proprio Caffarelli conclui sua apresentacao do problema para Instituto Clay com asseguintes palavras: “... Fluids are important and hard to understand. There are manyfascinating problems and conjectures about the behavior of solutions of the Euler andNavier–Stokes equations. Since we don´t even know whether these solutions exist, ourunderstanding is at a very primitive level. Standard methods from Partial DifferentialEquations appear inadequated to settle the problem. Instead, we probably need somedeep, new ideas”.

Podemos tentar ir um pouco mais longe sobre a necessidade de ideias novas. As equacoesda mecanica dos fluidos nao tem uma natureza fundamental. Sao, em ultima instancia,equacoes fenomenologicas e por esta razao nao se deve exigir muito delas. Porem estasnao devem estar erradas e devemos sempre contrapor as questoes de origem matematicassobre as equacoes com o fenomenos que pretendemos descrever por estas.

Segue uma pequena lista de sugestoes de textos:L. D. Landau e E. M. Lifshitz, Fluid Mechanics, Pergamon Press, 2a impressao 1963R. Teman e A. Miranville, Mathematical Modeling in Continuum Mechanics, Cam-

bridge University Press, 2a edicao 2005A. J. Chorin e J. E. Marsden, A Mathematical Introduction to Fluid Mechanics, Springer-

Verlag, 2a impressao 1984H. Ockendon e J. R. Ockendon, Waves and Compressible Flow, Springer–Verlag 2004Hydrodynamics and Nonlinear Instabilities, Editado por C. Grodreche e P. Manneville,

Cambridge University Press 2005

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1

Algumas Consideracoes Gerais

Mecanica dos fluidos e uma disciplina que tem como escopo descrever o movimento de flui-dos, incluindo nesta categoria lıquidos e gases. Escoamento em tubos, canais ou atraves deobjetos; transferencia e difusao de calor; combustao; propagacao de ondas, som ou chamassao alguns fenomenos que serao abordados nestas notas. Por ser impossıvel e, portanto,irrelevante acompanhar a dinamica dos constituintes de um fluido apenas grandezasmacroscopicas sao utilizadas para descricao destes fenomenos. Destituıdo de seu cara-ter molecular o fluido e idealmente tratado como um meio contınuo.

1.1 Funcoes de Estado de um Fluido

A descricao matematica do estado de um fluido em movimento e feita atraves de funcoesdefinidas no instante t e posicao x = (x1, x2, x3) do espaco. Devido a hipotese do contınuo,xi, i = 1, 2 e 3, sao variaveis reais e t ≥ 0. Se Ω ⊂ R3 denota uma regiao do espacopertinente ao problema, definimos as seguintes funcoes

1. Densidade: ρ : R+ × Ω −→ R+, ρ = ρ (t,x)

2. Temperatura: T : R+ × Ω −→ R+, T = T (t,x)

3. Entropia (por unidade de massa): s : R+ × Ω −→ R+, s = s (t,x)

4. Campo de velocidade: v : R+×Ω −→ R3,v = v (t,x) = (v1 (t,x) , v2 (t,x) , v3 (t,x))

Somente duas funcoes termodinamicas entre as tres primeiras sao independentes devidoa equacao de estado

f(s, T, 1/ρ) = 0 (1.1)

correspondente ao fluido em questao. Para um gas ideal, temos

s = ln(

kT cV /ρR)

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8 1. Algumas Consideracoes Gerais

onde cV e o calor especıfico a volume molar constante, R a contante universal dos gasese k um valor de referencia do estado: s = ln k em T = ρ = 1.

Nota 1.1 Um leitor mais atento pode neste ponto se preocupar com a depedencia tem-poral nas grandezas termodinamicas ρ, T e s. Nao seriam as grandezas volume especıficoV = 1/ρ, temperatura T e, consequentemente, entropia s definidas a partir do equilıbrio?De fato ha aqui diferentes escalas de tempo e espaco envolvidas na dinamica do fluido.Quando tomamos um elemento infinitesimal do fluido ainda assim e grande suficientepara conter um numero de Avogadro de moleculas de tal forma que seu movimento egovernado pela media das velocidades das moleculas no elemento. Da mesma forma,quando tomamos um tempo infinitesimal na dinamica do fluido, ainda assim e grandesuficiente para que as moleculas do fluido termalizem e a nocao de temperatura continueaquela definida pelo equilıbrio termodinamico. Neste limite, as mudancas nas grandezastermodinamicas ocorrem de forma adiabatica.

Ha fluidos cujo unico tipo de forca de coesao exercida por uma parte deste sobre asuperfıcie que o separa do resto e a pressao na direcao normal a superfıcie. A pressao euma funcao escalar p = p (t,x) ∈ R e nem sempre representa todo tipo de esforco que umfluido exerce sobre si mesmo em seu movimento. O efeito da viscosidade, por exemplo,nao pode ser representado por um escalar. Como a forca de atrito, sua acao na direcaodo movimento normal a superfıcie depende da variacao da velocidade sobre a superfıcie.

Introduzimos um tensor (matriz 3 × 3) σ = [σij ]3i,j=1 que descreve a forca df por

unidade de superfıcie que parte do fluido em contato com um elemento de superfıcie dScuja normal e n exerce sobre a parte oposta com respeito a superfıcie atraves da relacao

df = σn dS

isto e,

df1

df2

df3

=

σ11 σ12 σ13

σ21 σ22 σ23

σ31 σ32 σ33

n1

n2

n3

dS

=

σ11n1 + σ12n2 + σ13n3

σ21n1 + σ22n2 + σ23n3

σ31n1 + σ32n2 + σ33n3

dS

O ındice j de σij indica a direcao normal da superfıcie sobre a qual atua a forca emcada uma das direcoes cartesianas i. Assim σ11, σ2,1 e σ31 sao, respectivamente, forcaspor unidade de supefıcie que atuam sobre a superfıcie de normal e1 = (1, 0, 0) na direcaonormal e nas duas outras direcoes sobre a superfıcie (Veja Figura 1.1).

O tensor dos esforcos (ou das tensoes) σ e simetrico pois, caso contrario, o torquesobre a superfıcie de um elemento infinitesimal do fluido, exercido pelo proprio fluido,faria com que este se movesse em rotacao com velocidade angular infinita. O tensor dosesforcos pode depender do tempo e das coordenadas espaciais σ = σ (t,x) pela formafuncional de σ em termos das funcoes de estado p, ρ, T , s, v e derivadas de v comrespeito as coordenadas espaciais. Esta relacao requer consideracoes de natureza fısica

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1.2 Conservacao da Massa 9

FIGURE 1.1. Representacao do tensor dos esforcos

do fluido e da decomposicao do movimento introduzidas no decorrer do curso. Para umfluido estatico

σ = −pI,onde I e a matriz identidade.

Com excessao dos fluidos ideais, cuja a funcao entropia s(t,x) e constante ao longo dofluxo, o calor se propaga atraves de um elemento de superfıcie dS = n dS de normal n

de acordo com a lei de Fourier

dQ = −κ∇T · n dS

onde κ = [κij ] e o tensor de condutividade termica (κ = KI se o fluido for homogeneo).Concluıda a lista das quantidades relevantes para descrever o movimento de um fluido

buscamos as relacoes entre estas grandezas estabelecidas pelas leis da mecanica.

1.2 Conservacao da Massa

Seja Ω0 uma regiao de R3 conexa com superfıcie Γ0 = ∂Ω0 regular fechada. Considereum fluido em movimento em uma regiao que contem Ω0. Se o movimento do fluido forregular, o fluido em Ω0 no instante t = 0 ocupa uma regiao Ωt no instante t com Γt = ∂Ωt

uma superfıcie igualmente regular e fechada. A conservacao da massa implica∫

Ω0

ρ(0,x) d3x =

Ωt

ρ(t,x) d3x (1.2)

para todo t > 0 e toda regiao Ω0 ⊂ Ω.Considere um incremento infinitesimal de tempo t → t + δ. Um ponto x do fluido e

arrastado parax′ = x + v(t,x)δ +O

(

δ2)

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10 1. Algumas Consideracoes Gerais

e, em ordem dominante, a regiao Ωt e transladada na direcao v(t,x) por um incrementoproporcinal a δ:

Ωt+δ = Ωt + v(t,x)δ

O jacobiano desta transformacao de coordenadas

J =

∂x′

∂x

=

∂x′1∂x1

∂x′1∂x2

∂x′1∂x3

∂x′2∂x1

∂x′2∂x2

∂x′2∂x3

∂x′3∂x1

∂x′3∂x2

∂x′3∂x3

e dado por

J = det

(

I +∂v

∂xδ

)

δ= det

(

exp

(

∂v

∂xδ

))

= exp

(

Tr

(

∂v

∂x

)

δ

)

δ= 1 + ∇ · v δ (1.3)

ondeδ= significa igualdade ate primeira ordem da expansao de potencias em δ.

Exercıcio 1.2 Verifique a relacao

detA = exp (Tr (lnA))

para A = [aij] uma matriz n × n real simetrica, aij = aji e positiva: u · Au > 0 paraqualquer u ∈ Rn nao nulo. Esta relacao vale para uma matriz n× n qualquer? Justifiquesua afirmacao.Indicacao: Mostre a relacao para uma matriz diagonal A = diag (α1, . . . , αn) com αi > 0 e,em seguida, use o fato das funcoes det(A) e Tr (A) serem invariantes por transformacoesde similaridade: det (U−1AU) = detA e Tr (U−1AU) = Tr (A). Conclua o argumentopara uma matriz simetrica. Repita o mesmos passos para uma matriz A triangular su-perior e utilize o Teorema de Schur–Toeplitz sobre a reducao de uma matriz qualquer aforma triangular superior por uma transformacao de similaridade unitaria.

Temos∫

Ωt+δ

ρ(t+ δ,x′) d3x′δ=

Ωt

ρ(t+ δ,x + δv) (1 + δ∇ · v) d3x

δ=

Ωt

(

ρ(t,x) + δ

(

∂ρ

∂t(t,x) + v · ∇ρ(t,x)

))

(1 + δ∇ · v) d3x

δ=

Ωt

(

ρ(t,x) + δ

(

∂ρ

∂t(t,x) + v · ∇ρ(t,x) + ρ(t,x)∇ · v

))

d3x

de onde se conclui, juntamente com (1.2),

Ωt

(

∂ρ

∂t(t,x) + v · ∇ρ(t,x) + ρ(t,x)∇ · v

)

d3x = 0

Mas t > 0 e a regiao Ω0 sao arbitrarias e, pela hipotese de regularidade de Ωt, o integrandodeve, necessariamente, ser identicamente nulo.

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1.3 Conservacao de Momento 11

Exercıcio 1.3 Mostre que v · ∇ρ+ ρ∇ · v pode ser escrito como ∇ · (ρv).

A equacao da continuidade

∂ρ

∂t+ ∇ · (ρv) = 0

e a expressao local do conceito de conservacao da massa do fluido em movimento regular.A quantidade j = ρv, denominada fluxo de massa, e a massa do fluido por unidade detempo que flui atraves de uma superfıcie unitaria perpendicular a direcao de escoamento.

1.3 Conservacao de Momento

A quantidade de movimento de um fluido em uma regiao Ωt cuja superfıcie Γt = ∂Ωt eregular e sem borda, e dada por

P (t,Ωt) =

Ωt

ρ(t,x) v(t,x) d3x .

Pela conservacao do momento (Lei de Newton), sua variacao

dP

dt= F Ω + F Γ

e equacionada pela forca total F Ω que age sobre o fluido no interior da regiao Ωt e pelaforca F Γ que atua sobre a superfıcie Γt. Assumindo que a unica forca externa seja devidoa acao da gravidade, temos

d

dt

Ωt

ρ(t,x) v(t,x) d3x =

Ωt

ρ(t,x) g(x) d3x+

Γt

σn dS . (1.4)

Para calcular a derivada, um procedimento analogo ao empregado anteriomente podeser usado a partir da definicao

dP

dt= lim

δ→0

P (t+ δ,Ωt+δ) − P (t,Ωt)

δ. (1.5)

Temos

P (t+ δ,Ωt+δ) =

Ωt+δ

ρ(t+ δ,x′)v(t+ δ,x′) d3x′

δ=

Ωt

ρ(t+ δ,x + δv)v(t+ δ,x + δv) (1 + δ∇ · v) d3x

δ=

Ωt

(

ρv + δ

(

∂ρ

∂t+ v · ∇ρ

)

v + δρ

(

∂v

∂t+ v · ∇v

))

(1 + δ∇ · v) d3x

δ=

Ωt

(

ρv + δ

(

∂(ρv)

∂t+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v

))

d3x

= P (t,Ωt) + δ

Ωt

(

∂(ρv)

∂t+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v

)

d3x

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12 1. Algumas Consideracoes Gerais

de onde se conclui

dP

dt=

Ωt

(

∂(ρv)

∂t+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v

)

d3x . (1.6)

Para o ultimo termo em (1.4), utilizamos o teorema de Green

Γt

σn dS =

Ωt

∇ · σ d3x . (1.7)

Combinando as equacoes (1.4), (1.6) e (1.6), resulta

Ωt

(

∂(ρv)

∂t+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v − ρg −∇ · σ

)

d3x = 0

e como t ≥ 0 e Ω0 sao arbitrarios,

∂(ρv)

∂t+ v · ∇(ρv) + ρv ∇ · v = ρg + ∇ · σ . (1.8)

Note que ∇ · σ e um vetor cuja i–esima componente

(∇ · σ)i =∂σi1

∂x1+∂σi2

∂x2+∂σi3

∂x3.

Exercıcio 1.4 Mostre que o lado esquerdo de (1.8) pode ser escrito como

ρ

(

∂v

∂t+ v · ∇v

)

+

(

∂ρ

∂t+ ∇ · (ρv)

)

v

A primeira equacao cardinal que governa a dinamica do campo de velocidades eobtida de (1.8) juntamente com a equacao da continuidade

∂v

∂t+ v · ∇v = g +

1

ρ∇ · σ . (1.9)

Nestas notas de aula, apenas duas formas do tensor dos esforcos serao utilizadas extensi-vamente. Se processos de dissipacao de energia, que ocorrem em um fluido em movimentodevido a viscosidade e transferencia de calor entre suas partes, puderem ser desprezadosentao o tensor dos esforcos e semelhante a de um fluido estatico. Adotamos a seguinte

Definicao 1.5 Um fluido ideal e um fluido cujo tensor das tensoes satisfaz

σ = −p(t,x)I .

A equacao (1.9) correspondente a um fluido ideal

∂v

∂t+ v · ∇v = g − 1

ρ∇p (1.10)

foi derivada pela primeira vez por Euler em 1775.

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1.4 Conservacao de Energia 13

A outra forma a ser considerada e

σ = −pI + σ′ (1.11)

onde σ′ e a parte do tensor dos esforcos devido a viscosidade cuja forma geral pode serescrita como

σ′ij = η

(

∂vi

∂xj

+∂vj

∂xi

− 2

3∇ · v δij

)

+ ζ∇ · v δij

A primeira parte do tensor tem traco nulo e os coeficientes de viscosidade η e ζ saoconstantes positivas. A equacao (1.9) correspondente,

∂v

∂t+ v · ∇v = g − 1

ρ∇p+ ν∆v , (1.12)

devido a condicao∇ · v = 0 (1.13)

satisfeita por um fluido incompressıvel, e a famosa equacao de Navier–Stokes. ν = η/ρe denominada viscosidade cinematica.

Exercıcio 1.6 Derive a condicao (1.13) para um fluido incompressıvel a partir da con-dicao V (t) = 0, onde

V (t) =

Ωt

d3x

e o volume da regiao Ωt, e da equacao de continuidade.

1.4 Conservacao de Energia

A energia total de um fluido em movimento em uma regiao Ωt regular,

E(t,Ωt) =

Ωt

(

1

2ρ |v|2 + ρε

)

d3x ≡ K (t,Ωt) + U(t,Ωt) (1.14)

e a soma da energia cinetica e energia interna do fluido contida nesta regiao. Por simpli-cidade, usaremos a notacao

u2 = u · uno lugar de |u|2 para o quadrado da norma de um vetor u.

A energia interna por unidade de massa ε pode ser escrita em termos das quantidadesρ, T , s e p usando a lei termodinamica

dε = Tds− pdV = Tds+p

ρ2dρ (1.15)

onde a segunda igualdade segue diferenciando o volume especıfico V = 1/ρ. Tendo emvista que a entalpia por unidade de massa e dada por

h = ε+p

ρ

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14 1. Algumas Consideracoes Gerais

(lembre da relacao dh = Tds + V dp que, juntamente com (1.15), conduz a dh = dε +d (pV )), temos

d (ρε) = εdρ+ ρdε = hdρ+ ρTds (1.16)

que e util na descricao do movimento de um fluido isentropico s(t,x) = s0 (veja Secao2.2).

Similar a conservacao de momento, o balanco energetico na regiao Ωt e dado pelarelacao

dE

dt= WΩ +WΓ +QΓ (1.17)

onde

WΩ =

Ωt

ρ v · g d3x

WΓ =

Γt

v · σn dS

QΓ =

Γt

κ∇T · n dS

sao, respectivamente, o trabalho realizado por unidade de tempo (potencia) pelas forcasque atuam sobre o fluido no interior da regiao Ωt – considerando apenas a forca gravi-tacional, o trabalho por unidade de tempo do esfoco que o fluido exerce sobre si mesmoatraves da superfıcie Γt e a quantidade de calor conduzida para o interior de Ωt atravesda superfıcie Γt. A ultima expressao tambem pode ser escrita como

QΓ =

Ωt

∇ · (κ∇T ) d3x

pelo teorema de Green.Para calcular a derivada da energia, procedemos como no caso do momento (veja (1.5)

e equacoes que a seguem). Temos

K(t+ δ,Ωt+δ)

δ=

1

2

Ωt

ρ(t+ δ,x + δv)v(t+ δ,x + δv) · v(t+ δ,x + δv) (1 + δ∇ · v) d3x

δ=

1

2

Ωt

(

ρv2 + δ

(

∂ρ

∂t+ v · ∇ρ

)

v2 + δρ

(

2v · ∂v∂t

+ v · ∇v2

))

(1 + δ∇ · v) d3x

δ= K(t,Ωt) +

δ

2

Ωt

(

∂(ρv2)

∂t+ v · ∇(ρv2) + ρv2 ∇ · v

)

d3x

de onde se conclui

dK

dt=

1

2

Ωt

(

∂(ρv2)

∂t+ ∇ · (vρv2)

)

d3x . (1.18)

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1.4 Conservacao de Energia 15

A equacao da continuidade e a equacao cardinal (1.9) pode ser utilizada para simplificaresta expressao. Substituindo

∂(ρv2)

∂t= v2∂ρ

∂t+ 2ρv · ∂v

∂t

= −v2∇ · (ρv) + 2ρv ·(

−v · ∇v + g +1

ρ∇ · σ

)

= −v2∇ · (ρv) − ρv · ∇v2 + 2ρv ·(

g +1

ρ∇ · σ

)

= −∇ · (vρv2) + 2ρv ·(

g +1

ρ∇ · σ

)

em (1.18), resulta

dK

dt=

Ωt

ρv ·(

g +1

ρ∇ · σ

)

d3x

=

Ωt

ρv · g d3x−∫

Ωt

Tr (σ∇v) d3x+

Ωt

∇ · (σv) d3x

=

Ωt

ρv · g d3x−∫

Ωt

Tr (σ∇v) d3x+

Γt

v · σn dS (1.19)

onde empregamos na segunda e terceira linhas, respectivamente, integracao por partes eo teorema de Green.

Equacoes (1.14), (1.17) e (1.19), resultam

dU

dt=

Ωt

(Tr (σ∇v) + ∇ · (κ∇T )) d3x (1.20)

e como t ≥ 0 e Ω0 sao arbitrarios, podemos obter uma equacao de evolucao para densidadede energia interna. Antes disso, devemos notar

dU

dt=

d

dt

Ωt

ρε d3x =

Ωt

(

∂ (ρε)

∂t+ v · ∇ (ρε) + ρε ∇ · v

)

d3x (1.21)

pelo mesmo procedimento empregado na conservacao do momento e energia. Finalmente,utilizando a equacao da continuidade e a equacao (1.15)

∂ (ρε)

∂t+ v · ∇ (ρε) + ρε ∇ · v = ρ

(

∂ε

∂t+ v · ∇ε

)

= ρT

(

∂s

∂t+ v · ∇s

)

+p

ρ

(

∂ρ

∂t+ v · ∇ρ

)

= ρT

(

∂s

∂t+ v · ∇s

)

− p∇ · v .

Equacionando (1.20) e (1.21) e usando a decomposicao (1.11) do tensor dos esforcosjuntamente com a identidade Tr (−pI∇v) = −p∇·v, obtemos uma equacao para entropia

ρT

(

∂s

∂t+ v · ∇s

)

= Tr (σ′∇v) +∇ · (κ∇T ) . (1.22)

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16 1. Algumas Consideracoes Gerais

Para um fluido ideal, σ′ ≡ κ ≡ 0, esta equacao se reduz a

∂s

∂t+ v · ∇s = 0 (1.23)

que expressa a conservacao de entropia ao longo do movimento.

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2

Equacoes do Movimento

As leis de conservacao satisfeitas por um fluido foram examinadas de maneira bastanteampla e com algumas hipoteses sobre a forma do tensor de esforco correspondente. Dedu-zimos como consequencia destas leis varias equacoes que descrevem a evolucao temporaldas funcoes de estado. Estamos em posicao agora de ampliar, em varios aspectos, o en-tendimento do movimento de um fluido.

2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contınuo

Definicao 2.1 Uma trajetoria φ(t; x0), t ≥ 0 de um ponto do fluido em movimentoe uma curva em Ω ⊂ R3 parametrizada por t ≥ 0 cuja tangente a curva no pontox = φ(t; x0) coincidente com a velocidade v(t,x) do fluido:

φ(t; x0) = v(t,φ(t; x0))

com a condicao inicialφ(0; x0) = x0 .

Exemplo 2.2 1. As trajetorias do campo estacionario v(x) = (ax2,−ax1, 0), cujoretrato pode ser visto na Figura 2.1 sao as integrais das equacoes

φ1 = aφ2

φ2 = −aφ1

φ3 = 0

com φ(0) = x0 variando sobre uma regiao Ω0. Escrevendo estas equacoes na formavetorial,

φ =

0 a 0−a 0 00 0 0

φ =

(

A 00 0

)

φ = Bφ (2.1)

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18 2. Equacoes do Movimento

-1 -0.5 0 0.5 1

-1

-0.5

0

0.5

1

FIGURE 2.1. Retrato do campo de velocidades v

e tendo em vista a propriedade

B2 =

(

A2 00 0

)

= −a2

(

I 00 0

)

e consequentemente,

B2n+1 = (−1)na2nB

B2n = (−1)na2n

(

I 00 0

)

para n = 0, 1, 2, . . . , a solucao deste sistema pode ser obtida pela serie formal empotencias

φ = exp (tB) x0

=∞∑

k=0

tk

k!Bkx0

=

(

0 00 1

)

+ cos at

(

I 00 0

)

+1

asin at

(

A 00 0

)

x0

=

cos at sin at 0− sin at cos at 0

0 0 1

x0

= Re3(−at)x0

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2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contınuo 19

com Re(θ) a matriz de rotacao por um angulo θ em torno do eixo e. Escrevendo acondicao inicial em coordenadas esfericas

x0 = (r sin θ cosϕ, r sin θ sinϕ, r cos θ)

temos

x = φ(t; x0) = (r sin θ cos(ϕ− at), r sin θ sin(ϕ− at), r cos θ)

e qualquer regiao Ω0 no instante t = 0 move, acompanhando o campo de velocidadeate a regiao Ωt no instante t, em rotacao no sentido horario de um angulo at emtorno do vetor e3 sobre o eixo 3.

2. Considere as trajetorias do campo vetorial v(t,x) = (ax2,−ax1 + bt, 0) . Devemospara este problema acrescentar a equacao (2.1) um termo nao homogeneo

φ − Bφ = b(t)

onde b = (0, bt, 0). A solucao e dada pela formula da variacao das constantes

x = exp (tB) x0 +

∫ t

0

exp ((t− s)B) b(s)ds

=

cos at sin at 0− sin at cos at 0

0 0 1

x0,1

x0,2

x0,3

+b

∫ t

0

cos a(t− s) sin a(t− s) 0− sin a(t− s) cos a(t− s) 0

0 0 1

0s0

ds

=

x0,1 cos at+ x0,2 sin atx0,2 cos at− x0,1 sin at

x0,3

+b

a2

at− sin at1 − cos at

0

=

x0,1 cos at+ (x0,2 − b/a2) sin at+ bt/a(x0,2 − b/a2) cos at− x0,1 sin at+ b/a2

x0,3

A regiao Ωt move, igualmente, em rotacao no sentido horario de um angulo at emtorno de um vetor e3(t), paralelo ao eixo 3, porem se deslocando linearmente no

tempo com o ponto (bt

a,b

a2, 0). Uma trajetoria descreve uma cicloide de raio b/a2.

3. As trajetorias do campo v(t,x) = a(t) (x,−y.0) para uma funcao a(t) nao–negativasatisfaz as equacoes

φ1 = a(t)φ1

φ2 = −a(t)φ2

φ3 = 0

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20 2. Equacoes do Movimento

com φ(0; x0) = x0, cuja solucao e

x1 = φ1(t; x0) = x0,1 exp

(∫ t

0

a(s)ds

)

x2 = φ2(t; x0) = x0,2 exp

(

−∫ t

0

a(s)ds

)

x3 = φ3(t; x0) = x0,3 .

Note que A(t) =

∫ t

0

a(s)ds e monotona nao–decrescente, por hipotese. As tra-

jetorias satisfazemx1x2 = x0,1x0,2

e, potanto, sao hiperboles, independentemente da funcao A(t), que governa com querapidez as percorre.

-1 -0.5 0 0.5 1

-1

-0.5

0

0.5

1

FIGURE 2.2. Retrato do campo vetorial v

A nocao de trajetoria permite ser um pouco mais preciso sobre a regularidade domovimento do fluido. Para isso, vamos considerar o fluxo FΩ0

de trajetorias com oponto de partida x0 variando sobre um conjunto Ω0 ⊂ Ω.

Regularidade. O movimento do fluido e regular se as seguintes propriedades foremsatisfeitas:

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2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contınuo 21

1. A trajetoria φ(t; x0) e continuamente diferenciavel como funcao de t e x0.

2. O mapa Φt : Ω0 −→ Ωt

x0 7→ Φt (x0) = x = φ(t; x0) (2.2)

que atribui a cada ponto x0 ∈ Ω0 um ponto x ∈ Ωt com t ≥ 0 fixo, e uma bijecao(injetivo e sobrejetivo) e, portanto, Φ−1

t existe.

3. Φ−1t : Ωt −→ Ω0 e uma mapeamento diferenciavel.

Estas hipoteses garantem que as operacoes do calculo feitas ate entao envolvendo de-rivadas e integrais sejam legıtimas. Item 3, alem disso, evita que a matriz derivada de Φt

se anule, devido a relacao

∂Φ−1t

∂x=

(

∂Φt

∂x0

)−1

obtida pela diferenciacao de Φ−1t Φt(x0) = x0. Mas adiante sera necessario enfraquecer

estas hipoteses, permitindo que as trajetorias φ(t; x0) sejam seccionalmente diferenciaveisafim de ser possıvel tratar ondas de choque.

Se f : R+×Ω −→ R e uma funcao diferenciavel, a derivada total de f sobre a trajetoriae, de acordo com as regras do calculo para derivada de uma funcao composta,

d

dtf(t,φ(t; x0)) =

∂f

∂t(t,φ(t; x0)) + φ(t; x0) · ∇f(t,φ(t; x0))

com o vetor tangente φ(t; x) a trajetoria no ponto x = φ(t; x0) coincidente com avelocidade v(t,x) do fluido neste ponto.

Definicao 2.3Df

Dt=∂f

∂t+ v · ∇f

e denominada a derivada material (ou derivada convectiva) de uma funcao f no ponto(t,x) ∈ R+ × Ω.

Demonstraremos em seguida uma relacao envolvendo a derivada material conhecida porteorema do transporte. Por intermedio da seguinte proposicao varias manipulacoesque fizemos na deducao das equacoes do movimento podem ser generalizadas e justificadasapropriadamente.

Proposicao 2.4 Seja f : R+ × Ω −→ R uma funcao diferenciavel, Ω0 ⊂ Ω uma regiaoregular e Ωt = Φt (Ω0) a regiao formada pelo fluxo das trajetorias φ(t; x0) partindo dospontos x0 ∈ Ω0 no instante t. Entao

d

dt

Ωt

ρ(t,x) f(t,x) d3x =

Ωt

ρ(t,x)Df

Dt(t,x) d3x (2.3)

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22 2. Equacoes do Movimento

Segue da equacao (1.4) e Proposicao 2.4 com f(t,x) = e · v(t,x), onde e um vetorqualquer,

Ωt

ρ(t,x) e · Dv

Dt(t,x) d3x =

Ωt

e · (ρg + ∇ · σ) d3x .

Como t ≥ 0, Ω0 e e sao arbitrarios, reobtemos a primeira equacao cardinal de movimentode um fluido

ρDv

Dt= ρg + ∇ · σ .

As outras equacoes podem ser facilmente derivadas por esta proposicao.

Prova. O Jacobiano

J(t,x) =

∂Φt

∂x

do mapeamento Φt : Ω0 −→ Ωt, dado por (2.2) e, pelas hipoteses de regularidade dofluxo, nao nulo. E, mais precisamente positivo pois se negativo fosse haveria mudanca deorientacao em Ωt (mao direita para mao esquerda com respeito aos eixos de referencia)durante o movimento do fluido. Fazendo a mudanca de variavel x = φ(t; x0) no ladoesquerdo de (2.3), resulta em

d

dt

Ω0

ρ(t,φ(t; x0)) f(t,φ(t; x0))J(t,x0)d3x0

=

Ω0

d

dtρ(t,φ(t; x0)) f(t,φ(t; x0))J(t,x0)d

3x0

=

Ω0

(

d

dt(ρf) (t,φ(t; x0)) J(t,x0) + (ρf) (t,φ(t; x0))

∂J

∂t(t,x0)

)

d3x0 (2.4)

onde na segunda linha a troca de ordem entre a derivada e a integracao e permitidapelas hipoteses de regularidade. Note que nao ha mais dependencia em t na regiao deintegracao. Para o primeiro termo do integrando, temos

d

dt(ρf) (t,φ(t; x0)) =

D (ρf)

Dt(t,φ(t; x0)) (2.5)

por definicao de derivada material.O outro termo em (2.4) e controlado por um lema da Algebra Linear. O seguinte

resultado e a versao diferencial da relacao (1.3). Para efeito de comparacao, retomamosa notacao la empregada fazendo a substituicao x0 → x e x → x′.

Lema 2.5∂J

∂t(t,x0) = ∇ · v (t,φ(t; x0)) J (t,x0)

Prova do Lema. Escrevemos a matriz jacobiana em termos dos vetores de suas linhas

∂Φt

∂x0=

∇Φt,1

∇Φt,2

∇Φt,3

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2.1 Derivada Material e Outras Propriedades do Contınuo 23

onde Φt = (Φt,1,Φt,2,Φt,3) com Φt,i(x0) = φi (t; x0) e

∇Φt,i =

(

∂φi (t; x0)

∂x0,1,∂φi (t; x0)

∂x0,2,∂φi (t; x0)

∂x0,3

)

e o gradiente de Φt,i com respeito a variavel x0. Devido a multilinearidade do determi-nante, temos

∂J

∂t(t,x0) = det

∂t∇Φt,1

∇Φt,2

∇Φt,3

+ det

∇Φt,1

∂t∇Φt,2

∇Φt,3

+ det

∇Φt,1

∇Φt,2

∂t∇Φt,3

(2.6)

onde, pela definicao de velocidade φ (t; x0) = v (t,φ(t; x0)) = v (t,x),

∂t∇Φt,i = ∇φi(t,x0) = ∇vi (t,φ(t; x0)) =

3∑

j=1

∇φj(t; x0)∂vi

∂xj(t,φ(t; x0)) . (2.7)

Exercıcio 2.6 Seja A = [aij ] uma matriz n× n cujas entradas aij = aij(t) sao funcoesdiferenciaveis e escreva

A =

A1...An

onde Ai = (ai1 · · ·ain) denota a i–esima linha da matriz. Use a definicao de determinante

detA =∑

π

(−1)s(π) a1π1a2π2

· · ·anπn

onde a soma percorre todas as permutacoes π =

(

1 2 · · · nπ1 π2 · · · πn

)

, para confirmar a

relacao (2.6):

d

dtdetA =

n∑

i=1

A1...

Ai...An

Continuando, cada termo em (2.6) pode ser desenvolvido como

det

∂t∇Φt,1

∇Φt,2

∇Φt,3

=

3∑

j=1

∂v1

∂xjdet

∇Φt,j

∇Φt,2

∇Φt,3

=∂v1

∂x1det

∇Φt,1

∇Φt,2

∇Φt,3

(2.8)

devido a linearidade do determinante com respeito cada uma de suas linhas (primeiraigualdade) e ao determinate de uma matriz com duas linhas iguais ser igual a zero (se-gunda igualdade). Substituindo (2.8) para cada uma das componentes em (2.8), resulta

∂J

∂t(t,x0) = ∇ · v (t,φ(t; x0)) det

∇Φt,1

∇Φt,2

∇Φt,3

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24 2. Equacoes do Movimento

e a prova do lema fica concluıda pela definicao de J(t,x0).2

Substituindo (2.5) e Lema 2.5 na equacao (2.4) retornando, em seguida, as variaveisoriginais, resulta

d

dt

Ωt

ρ(t,x) f(t,x) d3x

=

Ω0

(

D (ρf)

Dt(t,φ(t; x0)) + (ρf) (t,φ(t; x0)) ∇ · v (t,φ(t; x0))

)

J(t,x0)d3x0

=

Ωt

(

D (ρf)

Dt(t,x) + (ρf) (t,x) ∇ · v (t,x)

)

d3x

de onde se conclui a assertiva da proposicao juntamente com

D (ρf)

Dt= ρ

Df

Dt+Dρ

Dtf

= ρDf

Dt+

(

∂ρ

∂t+ ∇ · (ρv) − ρ∇ · v

)

f

= ρDf

Dt− ρf∇ · v

pela equacao da continuidade.2

Observacao 2.7 A equacao da continuidade pode ser deduzida do Lema 2.5 apenas:

d

dt

Ωt

ρ(t,x)d3x =

Ω0

(

d

dtρ(t,φ(t; x0)) J(t,x0) + ρ(t,φ(t; x0))

∂J

∂t(t,x0)

)

d3x0

=

Ω0

(

Dt(t,φ(t; x0)) + ρ(t,φ(t; x0))∇ · v(t,φ(t; x0))

)

J(t,x0)d3x0

=

Ωt

(

∂ρ

∂t(t,x) + ∇ · (ρv) (t,x)

)

d3x . (2.9)

Ao passo que o Teorema 2.4 e consequencia do Lema 2.5 juntamente com a equacao dacontinuidade.

Um fluido e incompressıvel se o volume

V (t) =

Ωt

d3x = V0

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2.2 Movimento de um fluido Ideal 25

de uma regiao Ωt se deslocando com o fluido e constante no decorrer do tempo. Umaimplicacao do Lema 2.5 sobre esta definicao e a seguinte. Temos

0 =d

dt

Ωt

d3x

=

Ω0

∂tJ(t,x0) d

3x0

=

Ω0

∇ · v (t,φ(t; x0)) J (t,x0) d3x0

=

Ωt

∇ · v (t,x) d3x

Como t ≥ 0 e Ω0 sao arbitrarios e o movimento e regular por hipotese, concluımos oseguinte

Criterio 2.8 Um fluido e incompressıvel se e somente se a equacao

∇ · v = 0

for satisfeita para todo (t,x) ∈ R × Ω. Ou, equivalentemente, se e somente se

J (t,x) ≡ 1 .

Usando a equacao da continuidade na formaDρ

Dt+ρ∇·v = 0, o Criterio 2.8 e o fato que

ρ > 0 , um fluido e incompressıvel se, e somente se, a densidade de massa for constanteao longo do movimento

Dt= 0 .

2.2 Movimento de um fluido Ideal

A conservacao de energia fornece a ultima equacao necessaria para determinar o movi-mento do fluido. Nesta secao abordaremos as equacoes do movimento em duas situacoesopostas: para um fluido ideal incompressıvel (que alem da entropia tambem a energia in-terna U(t,Ωt) se mantem constante igual a U0 ao longo do movimento) e para um fluidoideal isentropico.

Para um fluido ideal a conservacao de energia se reduz a (veja (1.17))

dK

dt+dU

dt= WΩ +WΓ (2.10)

com o integrando de WΓ dado por v ·σn = −pv ·n. Proposicao 2.4 e a equacao de Euler(1.10), implicam

dK

dt=

d

dt

Ωt

1

2ρv2d3x =

Ωt

ρv · Dv

Dtd3x = WΩ −

Ωt

v · ∇p d3x . (2.11)

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26 2. Equacoes do Movimento

Note que esta expressao coincide com (1.19) para um fluido ideal porem aqui a derivamosmais brevemente.

Equacao (2.11) e satisfeita inclusive quando Ω0 = Ωt = Ω e a regiao onde o fluidoem movimento esta inteiramente contido. Como o fluido nao pode atravessar a fronteiraΓ = ∂Ω de Ω, a componente normal de v sobre a superfıcie deve se anular:

n · v|Γ = 0

com n o versor normal a Γ. Consequentemente,

WΓ = −∫

Γ

pv · n = 0

e as forcas de coesao atuando sobre Ω atraves de sua borda Γ = ∂Ω nao exercem trabalhopor unidade de tempo sobre a fronteira do fluido.

Por outro lado, se Ω0 e uma regiao regular arbitraria do fluido, integrando a integraldo lado direito de (2.11) por partes aplicando, em seguida, o teorema de Green, temos

Ωt

v · ∇p d3x =

Ωt

∇ · (pv) d3x−∫

Ωt

p ∇ · v d3x

=

Γt

pv · n dS −∫

Ωt

p ∇ · v d3x

= WΓ −∫

Ωt

p ∇ · v d3x

de onde se conclui, juntamente com (2.10) e (2.11),

dU

dt= −

Ωt

p ∇ · v d3x = 0 , (2.12)

devido a condicao ∇ · v = 0, e a energia interna U(t,Ωt) = U0 de um fluido idealincompressıvel e uma constante de movimento.

O movimento de um fluido ideal incompressıvel e descrito pelo seguinte problemade valor inicial e de fronteira (PVIF):

ρDv

Dt= −∇p+ ρg

Dt= 0

∇ · v = 0 (2.13)

para t > 0 e x ∈ Ω, sujeita a condicao de fronteira

n · v|Γ = 0 , t > 0

e condicoes iniciais

ρ(0,x) = ρ0(x)

p(0,x) = p0(x)

v(0,x) = v0(x) .

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2.2 Movimento de um fluido Ideal 27

Note que temos 5 equacoes para 5 incognitas (ρ, p, v1, v2, v3). Devemos ainda impor umacondicao de fronteira sobre a pressao como consequencia da continuidade de σn na fron-teira. Abordaremos esta questao mais adiante.

Observacao 2.9 Um fluido incompressıvel e dito ser homogeneo se ρ(t,x) = ρ0. Amaioria dos lıquidos podem ser tratados como fluidos incompressıveis homogeneos.

Equacao (2.12), definicao de energia interna (1.14) e Proposicao 2.4, implicam

Ωt

(

ρDε

Dt+ ∇ · v p

)

d3x = 0

que devido a t ≥ 0 e Ω0 serem arbitrarios e o movimento ser regular, reduz a

ρDε

Dt+ ∇ · v p = 0 . (2.14)

Em um fluido ideal incompressıvel a energia se conserva ao longo do movimento,Dε

Dt=

0. Em um fluido ideal compressıvel podemos assumir que a dependencia nas variaveis te x da energia interna seja atraves da funcao densidade de massa ρ: ε(t,x) = ε(ρ(t,x)).Pela relacao termodinamica (1.15) esta hipotese significa entropia constante.

Definicao 2.10 O movimento de um fluido e dito ser isentropico se

s(t,x) = s0

for satisfeita para todo t ≥ 0 e x ∈ Ω.

Observe que para um fluido ideal, devido a (1.23), se a entropia e constante no instanteinicial s(0,x) = s0, temos

∂s

∂t= −v · ∇s = 0

e a entropia permanecera constante para t > 0. Devido esta hipotese, temos

Dt= ε′(ρ)

Dt= −ε′(ρ)ρ∇ · v

pela equacao da continuidade, que juntamente com (2.14) resulta

p(ρ) = ρ2ε′(ρ)

A funcao energia e, dessa maneira, obtida por integracao da equacao

dε = p1

ρ2dρ = −p d

(

1

ρ

)

ε(ρ) = ε0 −∫ 1/ρ

1/ρ0

q(υ) dυ′

com a pressao q(υ) = p(1/υ) escrita como funcao do volume especıfico υ = 1/ρ.

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28 2. Equacoes do Movimento

As equacoes de Euler para um fluido ideal isentropico ficam:

Dv

Dt= −∇h + g

Dt= −ρ∇ · v

para t > 0 e x ∈ Ω, sujeita a condicao de fronteira

n · v = 0 , t > 0

em Γ = ∂Ω e condicoes iniciais

ρ(0,x) = ρ0(x)

v(0,x) = v0(x) .

Aqui, a entalpia por unidade de massa h = ε + p/ρ satisfaz a relacao dh = dp/ρ devidoa isentropia: ds = 0 (veja as equacoes que seguem a (1.15)).

Observacao 2.11 Para que o problema de valor inicial e fronteira de um fluido isen-tropico seja bem posto, devemos ter p′(ρ) > 0, compatıvel com nossa experiencia sobreo aumento da pressao com o decrescimo do volume especıfico 1/ρ. Boa parte dos gasespodem ser considerados como fluidos isentropicos, com

p (ρ) = Aργ

com A e γ constantes e γ ≥ 1. Para um gas ideal A = RT , γ = 1 e h = ε + RT =RT ln ρ/ρ0.

Observacao 2.12 A condicao de incompressibilidade e de certa forma oposta a condicaode isentropia. Por exempo, se um fluido e incompressıvel homogeneo ρ(t,x) = ρ0, entaop = p(ρ) nao pode ser inversıvel como funcao de ρ. Entretanto, ρ = ρ0 pode ser vistocomo um caso limite no qual p′(ρ) → ∞.

Exemplo 2.13 Considere um fluido incompressıvel homogeneo em um canal ao longodo eixo 1 cuja fronteira Γ e formada pelos planos x2 = 0 e x2 = a. Devido a geometria,o problema pode ser considerado em duas dimensoes espaciais x = (x1, x2).

Suponha ainda que a pressao α na secao x1 = 0 seja maior que a pressao β na secaox1 = L, de forma que o fluido seja empurrado ao longo do canal. Temos

v(t, x1, x2) = (v1(t, x1), 0)

p(t, x1, x2) = p(x1)

As equacoes de Euler para este problema sao:

ρ0∂v1

∂t= −p′

∂v1

∂x1

= 0 (2.15)

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2.3 Campos Helicoidais 29

para t > 0 e x1 ∈ R. Note que a condicao de fronteira v · n|Γ = v2 = 0 e satisfeitaidenticamente nao somente em Γ mas em toda regiao Ω. Derivando a primeira equacaocom respeito a x1 e usando a segunda (∇ · v = 0), temos

p′′ = −ρ0∂2u1

∂x∂t= −ρ0

∂2u1

∂t∂x= 0

cuja solucao e

p(x) = α +β − α

Lx .

Substituindo na primeira equacao, a solucao geral de

ρ0∂v1

∂t=α− β

L

e dada por

v1(t, x1) = v1,0(x1) +β − α

ρ0Lt

com v1,0(x1) = v1,0 uma constante devido a equacao (2.15).A velocidade do fluido em um canal, sujeita um gradiente de pressao constante, cresce

linearmente com o tempo. Esta patologia e devido ao fato das equacoes de Euler desprezaros efeitos da viscosidade. Veremos que a viscosidade tem o papel de freiar o escoamentoproximo a fronteira e isso impede o crescimento arbitrario da velocidade, atingindo umregime estacionario.

2.3 Campos Helicoidais

O movimento de um fluido e estacionario se a velocidade em cada ponto for indepen-dente do tempo

v(t,x) = v(x) . (2.16)

Dizemos que o movimento de um fluido e rıgido se a regiao Ωt, obtida seguindo astrajetorias de cada ponto x0 de uma regiao Ω0 arbitraria do fluido em t = 0, mantiver asua forma original para t > 0. Faremos a seguir uma breve exposicao sobre as propriedadesdo campo vetorial de velocidades de um fluido em movimento rıgido. Note que o campode velocidade nos Exemplos 2.2 1 e 2 corresponde a um fluido em movimento rıgido,sendo o primeiro tambem estacionario.

Proposicao 2.14 A condicao necessaria e suficiente para que v = v(t,x), x ∈ Ωt, sejaum campo de velocidades de um fluido em movimento rıgido e

(x − x′) · (v(t,x) − v(t,x′)) = 0 (2.17)

para cada x e x′ em Ωt e para cada t > 0. Alternativamente, v = v(t,x) descreve ummovimento rıgido de um fluido, se e somente se, para cada instante t, existir um vetorb = b(t) e uma matriz B = B(t) real antisimetrica (BT = −B) tais que

v(t,x) = Bx + b (2.18)

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30 2. Equacoes do Movimento

onde

B =

0 −ω3 ω2

ω3 0 −ω1

−ω2 ω1 0

.

O campo vetorial pode tambem ser escrito com

v(t,x) = ω × x + b (2.19)

com ω = (ω1, ω2, ω3) um vetor de R3.

Prova. Sejam x0 e x′0 dois pontos em Ω0 e x = φ(t,x0) e x′ = φ(t,x′

0) suas imagenspor Φt em Ωt. Temos

|x − x′|2 = |φ (t; x0) − φ (t; x′0)|

2

que, em vista da hipotese sobre a rigidez do movimento, mantem–se constante para t > 0.Portanto

0 =d

dt|x − x′|2

= 2 (φ (t; x0) − φ (t; x′0)) ·

(

φ (t; x0) − φ (t; x′0))

= 2 (x − x′) · (v (t; x) − v (t; x′)) .

Por outro lado, pelas mesmas equacoes percorridas no sentido inverso, se (2.17) for sa-tisfeita para qualquer dois pontos x e x′ em Ωt, entao a distancia entre estes dois pontosnao e alterada ao longo do tempo e o movimento e rıgido.

Vamos agora mostrar que a condicao (2.17) e equivalente a (2.18).Primeiramente, (2.18) e (2.19) sao equivalentes se

ω × x = Bx (2.20)

para todo x ∈ Ωt. O conjunto das matrizes reais antisimetricas

A =

B : R3 −→ R

3 : BT = B

forma um espaco vetorial: B = α1B1 +α2B2 ∈ A se B1, B2 ∈ A e α1 e α2 reais, isomorfoa R3. De fato, ha apenas tres entradas independentes pois B tem diagonal nula e asentradas na parte triangular superior e inferior diferem por um sinal. Podemos entaoestabelecer uma relacao 1 para 1 entre vetores ω = (ω1, ω2, ω3) ∈ R3 e matrizes

B =

0 −ω3 ω2

ω3 0 −ω1

−ω2 ω1 0

atraves da relacao (2.20). Note que o lado esquerdo de (2.20)

ω × x =

e1 e2 e3

ω1 ω2 ω3

x1 x2 x3

= (ω2x3 − ω3x2)e1 + (ω3x1 − ω1x3)e2 + (ω1x2 − ω2x1)e3 (2.21)

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2.3 Campos Helicoidais 31

coincide com o lado direito desta equacao:

0 −ω3 ω2

ω3 0 −ω1

−ω2 ω1 0

x1

x2

x3

=

−ω3x2 + ω2x3

ω3x1 − ω1x3

−ω2x1 + ω1x2

para qualquer x ∈ Ωt.Basta entao mostrar que a condicao (2.17) e equivalente a (2.19). Supondo (2.19),

temosv(t,x) − v(t,x′) = ω × (x − x′)

e, consequentemente,

(x − x′) · (v(t,x) − v(t,x′)) = (x − x′) · ω × (x − x′) = ω · (x − x′) × (x − x′) = 0

pela definicao (2.21) de produto vetorial.Para a implicao no outro sentido, seja v(t,x) tal que (2.17) e satisfeita para todo x e

x′ em Ωt. Suponha, sem perda de generalidade, que 0 ∈ Ωt e v(t, 0) = b. Entao,

v(t,x) = v(t,x) − v(t, 0) = v(t,x) − b

satisfazx · v(t,x) = 0 (2.22)

para todo x ∈ Ωt, por hipotese. Temos, tambem por hipotese,

(x − ei) · (v(t,x) − v(t, ei)) , ∀x ∈ Ωt

que, escrita como(x − ei) · (v(t,x) − v(t, ei)) , ∀x ∈ Ωt

juntamente com (2.22), implica

ei · v(t,x) = −x · v(t, ei), ∀x ∈ Ωt , i = 1, 2 e 3 . (2.23)

Expandindo v(t,x) na base Cartesiana canonica, temos

v(t,x) =

3∑

i=1

ei · v(t,x) ei

= −3∑

i=1

x · v(t, ei) ei

= −3∑

i=1

eiv(t, ei)T x

onde yT denota a matriz 1 × 3 formada pelas componentes de y, de onde se conclui que

B = −3∑

i=1

eiv(t, ei)T = −

v1(t, e1) v2(t, e1) v3(t, e1)v1(t, e2) v2(t, e2) v3(t, e2)v1(t, e3) v2(t, e3) v3(t, e3)

e antisimetrica: vi(t, ei) = 0 devido a (2.22) e vi(t, ej) = −vj(t, ei) por (2.23).2

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32 2. Equacoes do Movimento

Observacao 2.15 Existe uma unica escolha de b = b(t) e ω = ω(t) para cada campovetorial de velocidades v(t,x) de um fluido em movimento rıgido. Note que

ω × x + b = ω′ × x + b′ , ∀x ∈ Ωt

implica b = b′ se x = 0 e, consequentemente, (ω − ω′) × x = 0 e valido para todo x

somente se ω = ω′.

Definicao 2.16 Denomina–se campo vetorial helicoidal (CVH) o campo vetorial develocidades v(t,x) de um fluido em Ωt em movimento rıgido .

Equivalentemente, v(t,x) e um CVH se puder ser escrito na forma (2.19) para algumvetor b = b(t) de translacao e rotacao em torno de ω = ω(t). b = v(t, x) e o momento docampo helicoidal em algum ponto x de referencia e ω e denominado resultante do campovetorial helicoidal v. O CVH v(t,x) e inteiramente caracterizado pelo par (b(t),ω(t)):

v(t,x) = v(t, x) + ω(t) × (x − x) , ∀x ∈ Ωt (2.24)

Note que, para t fixo, v(t,x) e constante ao longo do eixo de rotacao ω(t) passando porx.

Os dois exemplos mais simples de campos helicoidais sao: (i) campo uniforme ω = 0(v(t,x) = v(t,x′) , ∀x,x′ ∈ Ωt) e (ii) campo torque v(t,x) · ω(t) = 0 (como nosExemplos 2.2.1 e 2.). De um modo geral, se o CVH nao for uniforme, entao existe umunico eixo ao longo do qual v(t,x) e paralelo a ω(t). Para um campo torque, v(t,x) = 0ao longo do eixo passando por x na direcao de ω(t).

Outras propriedades do campo vetorial helicoidal sao:

1. Os conjunto dos CVH forma um espaco vetorial (isomorfo a R6): se v1(t,x) ev2(t,x) sao dois campos vetoriais helicoidais e α1 e α2 sao escalares, entao

v(t,x) = α1v1(t,x) + α2v2(t,x)

= α1 (ω1(t) × x + b1(t)) + α2 (ω2(t) × x + b2(t))

= (α1ω1(t) + α2ω2(t)) × x + (α1b1(t) + α2b2(t))

≡ ω(t) × x + b(t)

2. Relacao similar e satisfeita para derivada com respeito a t,

∂v

∂t(t,x) = ω(t) × x + b(t)

O centro de massa x(t,Ωt) de uma regiao Ωt se deslocando com o fluido e definido por

x(t,Ωt) =

Ωtxρ(t,x)d3x

Ωtρ(t,x)d3x

e e independente do sistema de referencia adotado para descrever seu movimento.

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2.3 Campos Helicoidais 33

O centro de massa nao segue necessariamente uma trajetoria de algum ponto do fluidomas definimos sua velocidade e aceleracao de maneira usual

v (t,Ωt) =d

dtx(t,Ωt)

a (t,Ωt) =d2

dt2x(t,Ωt) =

d

dtv (t,Ωt)

Como a massa

m = m(t,Ωt) =

Ωt

ρ(t,x)d3x

em Ωt e uma quantidade conservada pelo movimento:d

dtm(t,Ωt) = 0 (veja (1.2)) temos,

pela Proposicao 2.4,

v (t,Ωt) =1

m

d

dt

Ωt

xρ(t,x)d3x

1

m

Ωt

Dx

Dtρ(t,x)d3x

=1

m

Ωt

(

∂x

∂t+ v · ∇x

)

ρ(t,x)d3x

=1

m

Ωt

v(t,x)ρ(t,x)d3x (2.25)

e, analogamente,

a (t,Ωt) =1

m

Ωt

a(t,x)ρ(t,x)d3x

onde

a(t,x) =Dv

Dt(t,x) =

(

∂v

∂t+ v · ∇v

)

(t,x) (2.26)

e a aceleracao φ(t,x0) de um ponto x = φ(t,x0) do fluido em sua trajetoria.Estas expressoes permitem entender um pouco melhor as equacoes do movimento do

fluido que derivamos no capıtulo anterior. Primeiramente, notamos que tanto v (t,Ωt)como a (t,Ωt) definem um campo vetorial helicoidal. Para o primeiro, introduzimos aquantidade de movimento linar e angular da regiao Ωt no instante t:

P (t,Ωt) =

Ωt

v(t,x)ρ(t,x)d3x

L(t, x) =

Ωt

(x − x) × v(t,x)ρ(t,x)d3x .

Devido a equacao (2.25), o momento linear satisfaz a relacao

P (t,Ωt) = m(t,Ωt)v (t,Ωt)

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34 2. Equacoes do Movimento

correspondente ao momento de uma partıcula de massa igual a massa do fluido em Ωt,concentrada no centro de massa x, se deslocando com velocidade v. Em um ponto x′

qualquer, temos

L(t,x′) = L(t, x) + P (t) × (x′ − x)

=

Ωt

((x − x) × v(t,x) + v(t,x) × (x′ − x)) ρ(t,x)d3x

=

Ωt

(x − x′) × v(t,x)ρ(t,x)d3x

pela propriedades a × b = −b × a do produto vetorial. Logo L e um campo vetorialhelicoidal.

Analogamente,

P (t) ≡ d

dtP (t,Ωt) =

Ωt

a(t,x)ρ(t,x)d3x

L(t, x) =

Ωt

(x − x) × a(t,x)ρ(t,x)d3x

definem um campo vetorial helicoidal associado com o momento dinamico (torque)

L(t,x′) = L(t, x) + P (t) × (x′ − x)

=

Ωt

(x − x′) × a(t,x)ρ(t,x)d3x .

Na Secao 1.3 sobre a conservacao do momento vimos que as forcas que atuam sobre aregiao Ωt do fluido sao de duas naturezas: as forcas externas F Ωt (acao da gravidade, porexemplo) e a forca que a regiao complementar a Ωt exerce sobre Ωt atraves da superfıcieF Γt . Usando o teorema de Green, as duas contribuicoes podem ser escritas como

F (t,Ωt) = F Ωt + F Γt =

Ωt

f(t,x)d3x

ondef (t,x) = ρ(t,x)g + ∇ · σ(t,x)

A identificacao do campo helicoidal de momento dinamico L(t,x′) com o campo helicoidaldas forcas, definido por

ϕ(t,x′) =

Ωt

(x − x′) × f ext(t,x)d3x+

Γt

(x − x′) × f con(t,x)dS (2.27)

onde

f ext(t,x) = ρ(t,x)g

f con(t,x) = σn

sao, respectivamente, a forca externa e a forca exercida sobre a superfıcie Γt, reproduzde uma so vez duas leis: a lei de conservacao de momento linear

d

dtP (t,Ωt) = F (t,Ωt)

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2.3 Campos Helicoidais 35

e de momento angular

d

dtL(t, x) =

Ωt

(x − x) × f ext(t,x)d3x+

Γt

(x − x) × σndS (2.28)

Observe que em um sistema de referencia inercial, na ausencia de forcas o centro demassa x(t,Ωt) se desloca em movimento retilıneo uniforme, como por exemplo em umfluido ideal a pressao constante.

Para aprofundar nosso entendimento da forca no segundo termo de (2.27), faremos umpequeno aparte.

Tensor das Tensoes de Cauchy. Cauchy introduziu algumas hipoteses para modelara forca de coesao exercida sobre uma regiao Ω do fluido pelo seu complemento Ω′ atravesda fronteira comum Γ.

H1 A forca de coesao e exercida por contato.

H2 Existe um vetor T = T (t,x; n) dependente de t do ponto x na superfıcie Γ e danormal n a superfıcie no ponto tal que

f con(t,x) = T (t,x; n) .

H3 (t,x) 7−→ T (t,x; n) e uma funcao contınua.

Por intermedio destas hipoteses e possıvel mostrar, equilibrando a forca de contatosobre o tetraedro

Th =

x = (x1, x2, x3) ∈ R3 : x1, x2, x3 ≥ 0 e x1 + x2 + x3 ≤ h

no limite h → 0, que o tensor das tensoes e um transformacao linear atuando sobre anormal n. Escolhendo uma base e1, e2, e3 para representa-la, temos

T

(

t,x;

3∑

i=1

niei

)

=

3∑

i,j=1

σij(t,x)njei .

Este calculo pode ser encontrado na maioria dos textos de mecanica dos fluidos e seraomitidos nestas notas. Daremos mais detalhes sobre o tensor σ na secao a seguir.

A equacao (2.28) permite tambem concluir que o tensor das tensoes σ e represen-tado por uma matriz simetrica: σij = σji. Substituindo a equacao cardinal (1.9) no ladoesquerdo de (2.28) aplicando, em seguida, o Teorema de Green, resulta

0 =

Ωt

((x − x) × (∇ · σ))i d3x−

Γt

((x − x) × (σn))i dS

=

Ωt

((x − x) × (∇ · σ))i d3x−

Ωt

j,k,l

εijk∂

∂xl

(

(x − x)j σkl

)

d3x

= −∫

Ωt

j,k

εijkσkjd3x

=1

2

Ωt

j,k

εijk (σjk − σkj) d3x

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36 2. Equacoes do Movimento

valida para qualquer componente i, instante t e regiao Ω0, de onde se conclui a afirma-tiva.Na segunda linha usamos a definicao

(a × b)i =

3∑

j,k=1

εijkajbk

com εijk o tensor totalmente antisimetrico:

ε123 = ε231 = ε312 = −ε213 = −ε132 = −ε321 = 1

e εijk = 0 se houver coincidencia de algum par de ındices. Na ultima igualdade, usamosεijk (σjk + σkj) /2 = 0 devido a antisimetria do tensor εijk pela troca de qualquer par deındices.

Algumas vezes e conveniente fixar o sistema de referencia na regiao Ωt com a origem emx(t,Ωt). Neste sistema nao–inercial atuam sobre Ωt forcas adicionais devido a aceleracaoa (t,Ωt) do centro de massa.

Representamos um ponto x do fluido, sua velocidade v e aceleracao a, em uma basee1(t), e2(t), e3(t) fixa em Ωt por

x = x +3∑

i=1

Xiei

v = v +

3∑

i=1

(

Xiei +Xi

.

ei

)

a = a +

3∑

i=1

(

Xiei +Xi

..

ei + 2Xi

.

ei

)

onde X = (X1, X2, X3) sao as coordenadas do ponto no sitema fixo em Ωt. Vamosconsiderar o movimento rıgido de um fluido. Neste caso Xi = Xi = 0 (velocidade e

aceleracao relativa nulas) e existe ω ∈ R3 tal que.

ei = ω × ei. Logo,

v = v + ω × (x − x)

= v +

3∑

i=1

Xi ω × ei

= v + ω × X

e

a = a +

3∑

i=1

Xi

..

ei

= a +

3∑

i=1

Xi (ω × ei + ω × (ω × ei))

= a + ω × X + ω × (ω × X) (2.29)

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2.3 Campos Helicoidais 37

Para uma aplicacao deste formalismo vamos determinar o perfıl da superfıcie livrede um fluido ideal, incompressıvel e homogeneo, em um balde cilındrico de raio R emmovimento circular uniforme, com velocidade angular ω = −ae3, sob acao da gravidade.Supondo que o movimento tenha atingido o regime estacionario, o campo de velocidadese dado pelo Exemplo 2.2.1. As equacoes de Euler para este movimento sao dadas por(2.13). Temos que a unica contribuicao para aceleracao no referencial que acompanha omovimento do fluido

a =∂v

∂t+ v · ∇v = ω × (ω × X) (2.30)

e devido a forca centrıfuga, pois o centro de massa x = 0 permanece imovel e a velocidadeangular ω e constante.

Usando a identidadea × (b × c) = (a · c) b = (a · b) c (2.31)

escrevemos o lado direito de (2.30) como

ω × (ω × X) = a2 (e3 × (e3 × X))

= a2 (X3e3 − X)

= −a2 (X1e1 +X2e2) .

Note que obtemos o mesmo resultado se aplicarmos a derivada material D/Dt = ∂/∂t+v · ∇ ao campo de velocidades do Exemplo 2.2.1:

Dv

Dt= a

(

x2∂

∂x1− x1

∂x2

)

(ax2,−ax1, 0)

= −a2 (x1, x2, 0)

As equacoes de Euler

ω × (ω × X) = −1

ρ∇p− ge3

escritas em componentes

1

ρ

∂p

∂X1

= a2X1

1

ρ

∂p

∂X2= a2X2

1

ρ

∂p

∂X3

= −g

pode ser resolvida para p por separacao de variaveis: p(X1, X2, X3) = P1(X1)+P2(X2)+P3(X3):

p(X1, X2, X3) = P0 +1

2ρa2(

X21 +X2

2

)

− ρgX3 .

Em coordenadas cilıdricas

X1 = r cos θ

X2 = r sin θ

X3 = z

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38 2. Equacoes do Movimento

temos

p(r, z) = p0 +1

2ρa2r2 − ρg(z − z0)

com a independencia em θ devido a simetria do problema. Note que o campo vetorial doExemplo 2.2.1 satisfaz as condicoes de fronteira

v · n|Γ

sobre a superfıcie lateral do cilındro, pois

n = er =1

x21 + x2

2

(x1, x2, 0)

e ortogonal a v. Tambem satisfaz a condicao de fronteira na base inferior em z = 0. Asuperfıcie superior do fluido S = (r, θ, z) : z = z(r) , 0 ≤ r ≤ a e 0 ≤ θ < 2π esta emcontato com a atmosfera a uma pressao p0 constante. Pela continuidade da pressao nainterface entre os dois fluidos (o que se encontra no balde e a atmosfera), temos

p(r, z(r)) = p0 , 0 ≤ r ≤ a .

Concluımos a partir da solucao que a superfıcie S de contato do fluido com a atmosferasatisfaz a equacao de um paraboloide de revolucao

1

2a2r2 = g(z(r) − z0)

com o ponto mınimo e maximo, (rmin, zmin) = (0, z0) e (rmax, zmax) =

(

R, z0 +a

2gR2

)

,

na superfıcie lateral do cilındro.

2.4 Decomposicao do Movimento

O proposito desta secao e decompor o movimento de um fluido na soma de uma translacao(rıgida), uma deformacao e uma rotacao (rıgida) em torno de um vetor ξ. Sera necessariointroduzir algumas nocoes basicas antes de enuncia-la mais precisamente. Convem, porem,enfatizar que esta decomposicao e independente das caracterısticas do fluido bem comode sua dinamica, dizendo respeito apenas ao carater vetorial do campo de velocidadesv = v(t,x).

O mapa Φt, definido por (2.2) para um tempo t fixo, e denominado mapa de deformacaoda regiao Ω0 no instante t e a matriz Jacobiana

F (t,x0,x) :=∂Φt

∂x0

tem um papel destacado no estudo das distorcoes locais de distancias e angulos.Seja, como anteriormente, x0 e x′

0 dois pontos em Ω0 e x = Φt(x0) e x′ = Φt(x′0) suas

imagens por Φt em Ωt. Se a distancia entre os pontos for de ordem ε, isto e |e0| = O(ε)

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2.4 Decomposicao do Movimento 39

onde e0 = x′0 − x0, temos

e = x′ − x

= Φt(x′0) − x

= Φt(x0) +∂Φt

∂x0

(x′0 − x0) +O(ε2) − x

= Fe0 +O(ε2)

e, na ordem dominante,

|e|2 ε= Fe0 · Fe0 = e0 · F TFe0 ≡ e0 · Ce0

onde C e uma matriz 3 × 3 real simetrica:

CT =(

F TF)T

= F TF = C.

Considere um outro ponto x′′0 ∈ Ω0, cuja diferenca e′

0 = x′′0 − x0 tenha norma de

ordem ε, e respectivas imagens x′′ = Φt(x′′0) e e′ = Φt(e

′0). Tendo em vista que o angulo

θ formado pelos vetores e e e′ satisfaz

cos θ =e

|e| ·e′

|e′|temos, analogamente,

e · e′ ε= Fe0 · Fe′

0 = e0 · F TFe′0

de onde se deduz que a matriz C mede tambem a variacao de angulos no movimento dofluido.

Observacao 2.17 1.

2. A matrixC = C(x0) = F TF

alem de ser real simetrica, e tambem positiva definida:

y · Cy = Fy · Fy = |Fy|2 > 0,

e satisfeita para todos os vetores y 6= 0. Esta matriz e denominada matrix dedeformacao a direita de Cauchy–Green e, de maneira analoga, a matriz dedeformacao a esquerda e definida por B = FF T .

3. No caso de Ωt ser um deslocamento rıgido de Ω0, tanto as normas

|e| = |e0||e′| = |e′

0|

como o anguloe · e′ = e0 · Ce′

0 = e0 · e′0 ,

de dois vetores quaisquer sao preservados e, consequentemente,

C = I .

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40 2. Equacoes do Movimento

4. Denotando por u = x − x0 o vetor deslocamento, a matriz Jacobinana e escrita

como F = I +∂u

∂x0e

C =

(

I +∂u

∂x0

)T (

I +∂u

∂x0

)

= I +∂u

∂x0+

(

∂u

∂x0

)T

+

(

∂u

∂x0

)T∂u

∂x0.

Estas observacoes sugerem a seguinte

Definicao 2.18 A diferenca da matriz C e a identidade mede o quanto a regiao Ωt edeformada em seu movimento. Denominamos

X =1

2(C − I)

e

D =1

2

(

∂u

∂x0+

(

∂u

∂x0

)T)

respectivamente, tensor de deformacao e tensor de deformacao linearizado.

Considere agora a deformacao de Ωt por um incremento de tempo da ordem δ pequeno.Cada ponto x′ ∈ Ωt+δ, da forma

x′ = φ(t+ δ; x0)

pode ser atingido pela trajetoria φ(δ; x) partindo de x ∈ Ωt por um tempo δ comx = φ(t; x0). Denotando por

F (t+ δ,x,x′) =∂x′

∂x

a matriz Jacobiana desta transformacao, temos

limδ→0

F (t+ δ,x,x′) = F (t,x,x) = I . (2.32)

Vamos mostrar que X e de fato responsavel pela deformacao do movimento. Pelasdefinicoes, temos

dX

dt=

1

2

dC

dt=

1

2

d

dtF TF =

1

2

(

(

dF

dt

)T

F + F T dF

dt

)

e tomando o limite δ → 0 nesta equacao, tendo em vista (2.32),

limδ→0

dF

dt=

d

dt

∂x′

∂x

δ=0

=∂

∂xφ(t+ δ,x′)

δ=0

=∂v

∂x(t,x)

e expressao analoga para (dF/dt)T , conclui–se

dX

dt= D(t,x)

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2.4 Decomposicao do Movimento 41

onde

D(t,x) :=1

2

(

∂v

∂x(t,x) +

(

∂v

∂x

)T

(t,x)

)

(2.33)

Como D e uma matriz simetrica, existem autovalores λ1, λ2 e λ3 reais e autovetorescorrespondentes f1, f 2 e f3 mutualmente ortogonais tais que

f i ·dX

dtf i = λi |f i|2

Portanto, nestas direcoes a matriz de deformacao expande ou contrai dependendo se λi

for maior ou menor que 0.Podemos agora enunciar a seguinte

Proposicao 2.19 Seja v = v(t,x) um campo de velocidades e h um vetor com h =√h · h da ordem ε. Entao,

v(t,x + h) = v(t,x) +D(t,x)h +1

2ξ(t,x) × h +O(h2) (2.34)

onde D(t,x) eξ(t,x) = ∇× v(t,x) (2.35)

sao, respectivamente, o tensor de deformacao (2.33) e o campo de vorticidade associadosa v(t,x).

Prova. Pelo teorema de Taylor,

v(t,x + h) = v(t,x) +∂v

∂x(t,x)h +O(h2) .

Escrevendo a matriz Jacobiana como uma soma de duas matrizes

∂v

∂x= D + S

onde D e a matriz simetrica de deformacao (2.33) e

S =1

2

(

∂v

∂x−(

∂v

∂x

)T)

(2.36)

a parte antisimetrica da matriz Jacobiana, a prova da proposicao se reduz a representara matriz antisimetrica S por uma matriz da forma

S =1

2

0 −ξ3 ξ2ξ3 0 −ξ1−ξ2 ξ1 0

(2.37)

para algum vetor ξ = (ξ1, ξ2, ξ3) tal que

Sh =1

2ξ × h (2.38)

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42 2. Equacoes do Movimento

(veja (2.20) e equacoes a seguir). Pelo isomorfismo entre A e R3 esta representacao eunica e, por comparacao das duas expressoes de S, (2.36) e (2.37), temos

ξ1 =∂v3

∂x2

− ∂v2

∂x3

ξ2 =∂v1

∂x3

− ∂v3

∂x1

ξ3 =∂v2

∂x1

− ∂v1

∂x2

de onde se conclui

ξ =

e1 e2 e3

∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3

v1 v2 v3

= ∇× v ,

e a prova da proposicao.2

Observacao 2.20 O movimento Ωt de uma regiao Ω0 do fluido e rıgido se difere de Ω0

apenas por uma translacao e uma rotacao. O campo v(t,x) de velocidades neste caso eum campo helicoidal e a decomposicao na Proposicao 2.19 e localmente da forma (2.24)com ξ no lugar de ω (Dh = 0). Se o movimento e rıgido o volume de Ωt e preservado e oJacobiano da transformacao J(t,x0) = 1. O termo Dh na expressao (2.34) e responsavelpelas mudancas na forma de Ωt. Partindo do ponto inicial x′

0, um ponto x′ ∈ Ωt com x

fixo pode ser escrito como x′ = x + h(t). Entao, por definicao,

d (x + h)

dt= v(t,x + h)

e movendo para um referencial fixo em Ωt com origem em x de tal forma que os termosda expansao (2.34) ate primeira ordem, com excessao do termo do tensor de deformacao,sao todos nulos, resulta

dh

dt= Dh .

A variacao do volume de um paralelepıpedo formado pelos eixos principais de D

h(t) =3∑

i=1

hi(t)f i

|f i|

e dada por (lembre que os eixos principais sao ortogonais)

d

dth1h2h3 = h1h2h3 + h1h2h3 + h1h2h3

= (λ1 + λ2 + λ3) h1h2h3

= TrD h1h2h3

= ∇ · v h1h2h3

como no Lema 2.5. Note que em um fluido incompressıvel a soma dos autovalores enula, podendo haver direcoes contrativas e expansivas mantendo, porem, o volume doparalelepıpedo constante.

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2.4 Decomposicao do Movimento 43

Examinemos alguns exemplos de movimento.

Exemplo 2.21 1. O campo de vorticidade dos Exemplos 2.2.1 e 2 na Secao 2.1 econstante igual a

ξ = ∇× v =

e1 e2 e3

∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3

ax2 −ax1 + bt 0

= −2ae3

e do Exemplo 2.2.3 e nulo.

2. O campo de vorticidade de um fluxo estacionario na direcao e1 dado por

v(x) = (bx2, 0, 0)

e igualmente constante na direcao do eixo 3: ξ = −be3. Mesmo mantendo a direcaoconstante, a variacao da intensidade de v com respeito a x2 produz vortices.

3. O tensor de deformacao no Exemplo 2.2.3 e dado por

D =

a(t) 0 00 −a(t) 00 0 0

O fluido expande a uma taxa a(t) na direcao e1 e contrai com a mesma taxa nadirecao e2. Note que o movimento correspondente a este campo de velocidades e deum fluido incompressıvel (∇ · v = TrD = 0).

Tensor das Tensoes de um fluido Newtoniano. σ deve ser uma funcao invariantepor mudancas de referenciais inerciais e por translacoes e rotacoes espaciais. O tensor dedeformacao D(t,x) possui tais propriedades e nao ha outra quantidade que atenda todosos requisitos necessarios para compor o tensor das tensoes. Logo,

σ = f (D)

Em um fluido viscoso Newtoniano, f e uma funcao linear dada por (1.11), isto e,

f(D) = [(ζ − 2

3η)TrD − p]I + 2ηD

com η e ζ positivos.

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44 2. Equacoes do Movimento

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3

Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Nesta capıtulo serao considerados apenas fluidos ideais incompressıveis homogeneos efluidos ideais isentropicos. Em ambos os casos a forca de contato por unidade de massa

1

ρf con = −1

ρ∇p

pode ser escrito como um gradiente: −∇ (p/ρ0) para o fluido incompressıvel e −∇h, com ha entalpia, para um fluido isentropico (veja Secao 2.2). Para simplificar a notacao, vamosdenotar tambem pela letra h a funcao p/ρ0 e dependendo do contexto h assumira um ououtro significado. O proposito e estabelecer uma serie de resultados classicos envolvendoo campo de vorticidade ξ = ∇× v. Daremos em seguida varias aplicacoes.

3.1 Equacao da Vorticidade

Iniciaremos escrevendo a aceleracao (2.26) de um ponto do fluido em uma forma maisapropriada. Para isso, as passagens da demonstracao da Proposicao 2.19 sao de grandeutilidade. Substituindo em (2.38) h por v, temos

(∇× v) × v =

(

∂v

∂x−(

∂v

∂x

)T)

v

= v · ∇v − 1

2∇ (v · v)

de onde se conclui

a =∂v

∂t+ v · ∇v

=∂v

∂t+ (∇× v) × v +

1

2∇v2

com v2 = |v|2 = v · v.

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46 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Escrevendo a forca gravitacional por unidade de massa igualmente como um gradiente

1

ρf ext = −∇V = g

a equacao de Euler (1.10), devido a equacao que acabamos de obter, pode ser escritacomo

∂v

∂t+ (∇× v) × v = −∇H (3.1)

onde

H = V + h +1

2v2

e uma funcao escalar.Antes de escrever a equacao satisfeita para o campo de vorticidade ξ = ∇ × v, a

seguinte observacao e pertinente. Pela definicao de produto vetorial, temos

∇×∇H =

e1 e2 e3

∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3

∂H/∂x1 ∂H/∂x2 ∂H/∂x3

=1

2

i,j,k

εijk

(

∂2H

∂xj∂xk

− ∂2H

∂xk∂xj

)

ei = 0

Tomando o rotacional da equacao (3.1) juntamente com a definicao (2.35), resulta

∂ξ

∂t+ ∇× (ξ × v) = 0 . (3.2)

Observacao 3.22 O termo ∇× (ξ × v) difere se a dimensao efetiva no movimento deum fluido incompressıvel for d = 2 ou d = 3. Por uma identidade analoga a (2.31), temos

∇× (ξ × v) = v · ∇ξ − ξ · ∇v

Se v(t,x) = (v1(t, x1, x2), v2(t, x1, x2), 0) entao a vorticidade ξ(t,x) = (0, 0, ξ3(t, x1, x2))esta na direcao e3 e

∇× (ξ × v) =

e1 e2 e3

∂/∂x1 ∂/∂x2 ∂/∂x3

−v2ξ3 v1ξ3 0

=

(

∂(v1ξ3)

∂x1

+∂(v2ξ3)

∂x2

)

e3

=

(

v1∂ξ3∂x1

+ v2∂ξ3∂x2

)

e3 = v · ∇ξ

devido a condicao de incompressibilidade

∇ · v =∂v1

∂x1

+∂v2

∂x2

= 0 .

Para d = 2 temos ξ · ∇v = 0 e, neste caso, a equacao da vorticidade fica

∂ξ

∂t+ v · ∇ξ = 0 . (3.3)

A vorticidade de um fluido ideal incompressıvel cujo movimento e bidimensional e, por-tanto, conservada ao longo do movimento.

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3.2 Teorema da Circulacao 47

3.2 Teorema da Circulacao

No regime estacionario v(t,x) = v(x), ∂v/∂t = 0 e a equacao de Euler (3.1) para umfluido ideal (incompressıvel homogeneo ou isentropico) pode ser escrita como

(∇× v) × v = −∇H .

Tomando o produto interno em ambos os lados desta equacao com v, tendo em vista

v · (∇× v) × v = (∇× v) · v × v = 0

e H nao depender explicitamente do tempo, devido a estacionaridade, temos

0 = v · ∇H =DH

Dt

de onde se conclui

Proposicao 3.23 (Regime estacionario) Para um fluido ideal incompressıvel homo-geneo ou isentropico em regime estacionario

H = V + h+ 12v2

e uma constante do movimento.

O movimento de um fluido e dito ser irrotacional se ξ = ∇×v se anular identicamente.Para um movimento irrotacional temos a seguinte implicacao

∇× v = 0 ⇐= v = ∇ϕ . (3.4)

De fato ∇× v = 0 se e somente se

∂vi

∂xj=∂vj

∂xi(3.5)

for satisfeita para todo i 6= j. Seja ϕ uma funcao potencial de v da classe C2 (duas vezescontinuamente diferenciavel) em Ω: v = ∇ϕ. Entao

∂vi

∂xj=

∂2ϕ

∂xj∂xi=

∂2ϕ

∂xi∂xj=∂vj

∂xi

e, portanto, ∇×v = 0 e uma condicao necessaria para que v seja um campo de velocidadesgradiente. O seguinte exemplo mostra que a condicao (3.5) nao e suficiente.

Exemplo 3.24 O campo vetorial v = (v1, v2, v3) definido por

v1(x1, x2, x3) =x2

x21 + x2

2

v2(x1, x2, x3) =−x1

x21 + x2

2

v3(x1, x2, x3) = 0

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48 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

no domınio Ω = (x1, x2, x3) ∈ R3 : r2 < x21 + x2

2 < R com 0 < r < R < ∞ satisfaz∇ × v = 0 em Ω mas nao e um campo gradiente. Note que a integral de linha de v aolongo da curva fechada C = x2

1 + x22 = ρ2, x3 = z

C

v · dx =

∫ 2π

0

1

ρ(sin θ,− cos θ, 0) · ρ (− sin θ, cos θ, z) dθ

= −∫ 2π

0

(

sin2 θ + cos2 θ)

dθ = −2π

nao e nula e contradiz a propriedade

C

v · dx = 0 para toda curva fechada C em Ω

satisfeita por um campo gradiente.

A condicao necessaria e suficiente para que v seja um campo gradiente e ∇×v = 0 emuma regiao simplesmente conexa Ω.1 Substituindo v = ∇ϕ na equacao (3.1), resulta

∇(

∂ϕ

∂t+H

)

= 0

de onde se conclui

Proposicao 3.25 (Movimento Irrotacional) Se ∇×v = 0, entao existe uma funcaoϕ = ϕ(t,x) da classe C2definida em uma regiao simplesmente conexa Ωt tal que

v(t,x) = ∇ϕ(t,x)

e∂ϕ

∂t+H = C (3.6)

com C = C(t) dependente apenas de t.

Observacao 3.26

1. Podemos sempre escolher uma funcao potencial da velocidade ϕ tal que (3.6) esatisfeita com C = 0. Para isso, basta tomar

ϕ′ = ϕ+

∫ t

t0

C(s)ds .

Note que ∇ϕ′ = ∇ϕ = v.

2. Se o movimento de um fluido e irrotacional e estacionario entao H e constante emuma regiao simplesmente conexa Ωt.

Para um fluido incompressıvel temos, alem disso,

1Uma regiao Ω e conexa se quaisquer dois pontos de Ω puder ser ligado por uma linha poligonal, inteiramente contidaem Ω, formada por um numero finito de segmentos de reta. Uma regiao Ω e simplesmente conexa se quaisquer duaslinhas poligonais ligando dois pontos, inteiramente contidas em Ω, puderem ser continuamente deformadas uma na outra.

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3.2 Teorema da Circulacao 49

Proposicao 3.27 (Bernoulli) Se o movimento de um fluido ideal incompressıvel forirrotacional, entao a funcao potencial do campo de velocidade ϕ satisfaz a equacao deLaplace

∆ϕ = 0

isto e, ϕ e uma funcao harmonica.

Prova. Um fluido ideal e irrotacional em uma regiao Ω simplesmente conexa satisfazv = ∇ϕ. Se, alem disso, o fluıdo for incompressıvel, temos ∇ · v = 0 e

0 = ∇ · v = ∇ · ∇ϕ = ∆ϕ .

2

O seguinte resultado e conhecido por teorema da circulacao.

Teorema 3.28 (Kelvin) Seja C0 uma curva fechada em Ω0 e denote por Ct a curva emΩt obtida pelo movimento do fluido de cada ponto x0 ∈ C0 em t = 0. Suponha um fluidoideal satisfazendo a equacao (3.1) (imcompressıvel homogeneo ou isentropico). Entao acirculacao de v(t,x) ao longo de Ct

Ct

v(t,x) · dx

permanece constante no tempo. Se Σt e uma superfıcie em Ωt cuja borda e Ct entao ofluxo de vorticidade atraves de Σt

Σt

ξ(t,x) · ndS

permanece constante.

Prova. Primeiramente, vamos mostrar uma igualdade semelhante a (2.9):

d

dt

Ct

v · dx =

Ct

Dv

Dt· dx . (3.7)

Para isso, e conveniente parametrizar a curva em t = 0

C0 = x0 = x0(s), 0 ≤ s ≤ 1 : x0(0) = x0(1)

A curva Ct no instante t, obtida seguindo as trajetorias φ(t; x0) dos pontos x0 ∈ C0, e,desta forma, parametrizada pelos parametros (t, s):

Ct = x = x(t, s) = φ(t; x0(s)), 0 ≤ s ≤ 1 : x(t, 0) = x(t, 1)

Por esta escolha, um elemento dl de integracao ao longo da curva Ct e escrito como

dx =∂

∂sφ(t; x0(s))ds .

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50 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Temos

d

dt

Ct

v · dx =

∫ 1

0

d

dtv(t,φ(t; x0(s))) ·

∂sφ(t; x0(s))ds

+

∫ 1

0

v(t,φ(t; x0(s))) ·∂

∂t

∂sφ(t; x0(s))ds

e para obter (3.7), basta empregar a regra da cadeia na primeira e mostrar que a segundaintegral se anula. Invertendo a ordem de derivacao na segunda integral e usando φ(t; x0) =v(t,φ(t; x0)) concluimos∫ 1

0

v(t,φ(t; x0(s))) ·∂

∂t

∂sφ(t; x0(s))ds =

∫ 1

0

v(t,φ(t; x0(s))) ·∂

∂sv(t,φ(t; x0(s)))ds

=1

2

∫ 1

0

∂sv2(t,φ(t; x0(s)))ds

=1

2

(

v2(t,x(t, 1)) − v2(t,x(t, 0)))

= 0

pelo teorema fundamental do calculo e devido a curva Ct ser fechada.

Devido as hipoteses sobre o fluido,Dv

Dte o gradiente da funcao F = H − v2/2 e a

conclusao da prova da primeira parte do teorema segue da igualdade∫

Ct

Dv

Dt· dx =

Ct

∇F · dx =

dF = 0 . (3.8)

Para a segunda parte, basta empregar o Teorema de Stokes∫

Ct

v(t,x) · dx =

Σt

(∇× v) (t,x) · ndS =

Σt

ξ(t,x) · ndS

juntamente com (3.7) e (3.8).2

Uma consequencia do teorema de Kelvin e a seguinte. Se

ω(t,x) =1

ρξ(t,x)

e o campo de vorticidade por unidade de massa, entao ω e carregado pelo fluido em seumovimento:

ω(t,φ(t; x0)) =∂Φt

∂x0

ω(0,x0) (3.9)

onde Φt e o mapeamento que leva um ponto x0 em Ω0 no instante t = 0 ao ponto x

em Ωt no instante t e∂Φt

∂x0

denota a matriz Jacobiana deste mapa. Daremos uma breve

demonstracao deste fato a seguir. E importante notar que a transformacao linear (3.9) esatisfeita para um vetor qualquer arrastado pelo movimento. Se y0 for um vetor em x0

no instante t = 0, entao

y = limε→0

1

ε(φ(t; x0 + εy0) − φ(t; x0)) =

∂Φt

∂x0

y0

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3.2 Teorema da Circulacao 51

e um vetor em x = φ(t; x0) no instante t (note que y0 = limε→0((x0 + εy0) − x0)/ε).

Prova da igualdade (3.9). O lado esquerdo de (3.9) satisfaz

Dt=

1

ρ

Dt− ξ

ρ2

Dt

=1

ρ

Dt+

ξ

ρ∇ · v

pela equacao da continuidade. Substituindo a equacao (3.2) juntamente com a identidade

∇× (ξ × v) = ξ∇ · v − ξ · ∇v − v∇ · ξ + v · ∇ξ (3.10)

resulta

Dt=

1

ρ

∂ξ

∂t+

1

ρv · ∇ξ +

ξ

ρ∇ · v

= −1

ρ∇× (ξ × v) +

1

ρv · ∇ξ +

ξ

ρ∇ · v

ρ· ∇v +

1

ρv∇ · ξ

= ω · ∇v (3.11)

pois ∇ · ξ = ∇ · ∇ × v = 0. Note que a derivada material de ω no ponto (t,x) coincidecom a derivada total, com respeito ao tempo, de ω(t,φ(t; x0)).

Exercıcio 3.29 Verifique a identidade (3.10).

Denotando por G = (G1, G2, G3) o lado direito de (3.9):

G(t,x0) = ∇φ(t; x0) ω(0,x0)

e usando φ(t; x0) = v(t,φ(t; x0)), temos exatamente como em (2.7)

∂Gi

∂t= ∇φi(t; x0) ω(0,x0)

= ∇vi(t,φ(t; x0)) ω(0,x0)

=

3∑

j=1

∂vi

∂xj(t,φ(t; x0))∇φj(t; x0) ω(0,x0)

de onde se conclui que G satisfaz a mesma equacao linear (3.11) satisfeita por ω emx = φ(t; x0):

∂G

∂t= G · ∇v

sujeita a mesma condicao inicial

G(0,x0) = ω(0,x0) .

Por um resultado geral em equacoes diferenciais, se ∇v e uma funcao contınua de t(condicao esta satisfeita pela hipotese de regularidade do movimento), entao existe umaunica solucao desta equacao e, portanto, vale a igualdade (3.9).

2

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52 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Observacao 3.30 Por definicao, uma linha ou superfıcie de vortices e uma linha ousuperfıcie tangente a ξ em cada um dos seus pontos. Por exemplo, qualquer linha cujatangente em cada ponto aponta na direcao e3 e uma linha de vortices no Exemplo 2.2.1(veja tambem Exemplos 2.21). A equacao (3.9) juntamente com a conservacao de massa,escrita na forma

ρ(t,x) = J(t,x0)ρ(0,x0) ,

onde J(t,x0) = |∂Φt/∂x0| e o Jacobiano de Φt, implica que linhas ou superfıcies devortices sao preservadas ao longo do tempo. Este resultado tambem pode ser obtido peloteorema da circulacao, Teorema 3.28.

Observacao 3.31 No movimento bidimensional de um fluido, v = (v1, v2, 0) e o campode vorticidade ξ = ∇ × v = (0, 0, ξ3) aponta na direcao e3 (veja Exemplos 2.2 e 2.21).Como a matriz Jacobiana ∂Φt/∂x0 atua como identidade na direcao e3: (∂Φt/∂x0) e3 =e3 (veja Exemplo 2.2.1), a equacao (3.9), nestes casos, reduz a

ω(t,x) = ω(0,x0) . (3.12)

Em outras palavras, ω(t,x) = ξ(t,x)/ρ(t,x) se propaga pelo fluido como um escalar.A conservacao da vorticidade (3.12) pelo movimento e um instrumento util na prova de

existencia e unicidade das equacoes de Euler (Navier–Stokes, igualmente) para um fluidoideal em movimento bidimensional. A falta de uma equacao similar para o movimentogeral e o maior obstaculo para se compreender as propriedades mais essenciais da solucaodas equacoes de Euler.

Considere o movimento bidimensional de um fluido ideal incompressıvel. De acordocom a Observacao 3.22 sobre a equacao para vorticidade do fluido, temos

∇× v = ξ

∇ · v = 0Dξ

Dt= 0

sujeita a condicao de impenetrabilidade

n · v|Γ = 0 (3.13)

na fronteira Γ = ∂Ω de uma regiao simplesmente conexa Ω que contem o fluido.Considerando apenas as variaveis independentes x = (x1, x2) e as componentes nao–

nulas da velocidade v(t,x) = (v1(t, x1, x2), v2(t, x1, x2)), a vorticidade e um escalar ξ =ξ(t, x1, x2). Pela equacao de incompressibilidade

∂v1

∂x1= −∂v2

∂x2(3.14)

juntamente com a hipotese de simples conectividade de Ω, existe uma funcao ψ =ψ(t, x1, x2) tal que

v1 =∂ψ

∂x2

v2 = − ∂ψ

∂x1(3.15)

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3.2 Teorema da Circulacao 53

Definicao 3.32 Uma linhas de corrente associadas ao campo v(t,x) e uma solucao(x(s), y(s)) parametrica da equacao diferencial

x′ = v1(t, x, y)

y′ = v2(t, x, y)

para t fixo, com (x(0), y(0)) = (x0, y0).

Segue da definicao que as linhas de corrente sao curvas de nıvel de ψ:

d

dsψ (t, x(s), y(s)) =

∂ψ

∂x1

x′(s) +∂ψ

∂x2

y′(s)

= −v2v1 + v1v2 = 0

e, sempre mantendo t fixo,ψ (t, x(s), y(s)) = const

ao longo das linhas de corrente.Em particular, a curva Γ que delimita a regiao Ω que contem o fluido e uma curva de

nıvel de ψ. Note que, pela Definicao 3.32, (v1, v2) e tangente a linha de corrente em cadaponto desta. Porem, devido a condicao (3.13), (v1, v2) e tangente a curva Γ e, como umalinha de corrente e uma curva de nıvel de ψ, concluimos que Γ e uma curva de nıvel.Podemos sempre ajustar ψ de tal forma que

ψ(t, a1, a2) = 0

para todo (a1, a2) ∈ Γ e essa condicao determina univocamente ψ. Note que esta condicaoe satisfeita para cada t.

Observacoes importantes: (i) Γ nao precisa ser uma unica linha de corrente, podendoser composta por varias destas linhas separadas por pontos de estagnacao, que saozeros da funcao velocidade, isto e, as solucoes para x da equacao implıcita

v(t,x) = 0 ;

(ii) No regime estacionario as trajetorias das partıculas do fluido coincidem com as linhasde corrente e, pela Proposicao 3.23 H e constante ao longo destas.

Exercıcio 3.33 Verifique que

ψ(t, x1, x2) =

∫ x2

a2

v1(x1, x′2)dx

′2 −

∫ x1

a1

v2(x′1, a2)dx

′1

e a solucao do sistema de equacoes (3.15) sujeita a condicao (3.14) com (a1, a2) ∈ Γ .

Em vista das equacoes (3.15), o escalar vorticidade ξ satisfaz

ξ =∂v2

∂x1− ∂v1

∂x2

= −∂2ψ

∂x21

− ∂2ψ

∂x22

= −∆ψ

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54 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

em Ω sujeita a condicao de Dirichlet de fronteira

ψ (t, a1, a2) = 0 , ∀ (a1, a2) ∈ Γ

A equacao

∆ψ = −ξjuntamente com (3.15) e

∂ξ

∂t+ v · ∇ξ = 0 (3.16)

determinam o movimento do fluıdo: dado ξ, resolvemos a equacao de Poisson paraψ(t,x; ξ) e derivamos em seguida a velocidade do fluido v = v(t,x; ξ). Substituindoem (3.16) resulta em uma equacao para a dinamica da vorticidade escalar.

Comentario. A seguinte observacao e util nas aplicacoes.

v · ∇ξ = v1∂ξ

∂x1+ v2

∂ξ

∂x2

=∂ψ

∂x2

∂ξ

∂x1− ∂ψ

∂x1

∂ξ

∂x2

=

∂ξ

∂x1

∂ξ

∂x2∂ψ

∂x1

∂ψ

∂x2

= J(ξ, ψ)

e o Jacobiano de ξ e ψ. Assim, o movimento e estacionario se e somente se ξ e ψ forem fun-cionalmente dependentes e, consequentemente, se a dependencia funcional for verificadaem algum instante e verificada para os todos instantes.

Suponha, por exemplo, que no instante t = 0 a funcao ψ(t, x1, x2) dependa apenas dadistancia radial r =

x21 + x2

2. Neste caso as linhas de corrente sao cırculos concentricos.Escrevendo

χ(t, r) = ψ(t, x1, x2)

e assumindo que ∂χ/∂r > 0, temos

v1(t, x1, x2) =∂χ

∂r

∂r

∂x2

=x2

r

∂χ

∂r

v2(t, x1, x2) = −∂χ∂r

∂r

∂x1

= −x1

r

∂χ

∂r

que tambem pode ser escrito como

v(t, x1, x2) =∂χ

∂reθ

com eθ o versor tangente aos cırculos. Alem disso,

ξ = −∆ψ = −1

r

∂r

(

r∂χ

∂r

)

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 55

e uma funcao de r que, por sua vez, pode ser escrita, pelo teorema da funcao implıcita,como uma funcao de χ devido a hipotese ∂χ/∂r > 0: r = r(χ). Concluımos que

ξ = ξ(ψ)

consequentemente,

J(ξ, ψ) =

∂ξ

∂x1

∂ξ

∂x2∂ψ

∂x1

∂ψ

∂x2

=∂ξ

∂ψ

∂ψ

∂x1

∂ψ

∂x2∂ψ

∂x1

∂ψ

∂x2

= 0

e o movimento bidimensional do fluido em cırculos concentricos e uma solucao estacionariada equacao de Euler para um fluido ideal incompressıvel.

3.3 Movimentos Estacionarios Elementares

Definicao 3.34 O movimento de um fluido e π planar se o campo de velocidades as-sociado for paralelo ao plano π em cada ponto e invariante por translacao na direcaoperpendicular a π.

Na maioria dos casos escolhemos o plano π12 formado pelos eixos e1 e e2 para descrevero movimento π planar, como temos feito ate agora. Dizemos, nestes casos, simplesmenteque o movimento e planar, sem referencia do plano ao qual o campo e paralelo.

Nesta secao o movimento planar e irrotacional de um fluido ideal incompressıvel serainvestigado. As condicoes ∇ · v = 0 (incompressibilidade) e ξ = ∇× v = 0 (irrotaciona-lidade), escritas na forma das equacoes de Cauchy–Riemann

∂v1

∂x1= −∂v2

∂x2

∂v1

∂x2=

∂v2

∂x1, (3.17)

sao necessarias e suficientes para que a funcao f : C −→ C dada por

f(t, z) = v1(t, x1, x2) − iv2(t, x1, x2)

seja analıtica na variavel z = x1 + ix2 com (x1, x2) no domınio Ω.

Nota 3.35 Uma funcao f e analıtica no ponto z0 = x0,1 + ix0,2, com (x0,1, x0,2) perten-cente a um conjunto aberto Ω, se o limite

limz→z0

f(z) − f(z0)

z − z0= lim

ε→0

f(z0 + εeiθ) − f(z0)

εeiθ

existe e independe de θ. Na segunda equacao representamos o incremento em coordenadaspolares: z − z0 = εeiθ. Escolhendo as direcoes θ = 0 e θ = π/2 o limite converge se esomente se as equacoes de Cauchy–Riemann (3.17) forem satisfeitas.

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56 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Pela Proposicao 3.27 e equacoes (3.15), existem duas funcoes ϕ = ϕ(t, x1, x2) e ψ =ψ(t, x1, x2), harmonicas

∆ϕ = 0

∆ψ = 0 (3.18)

tais que

v1 =∂ϕ

∂x1

, v2 =∂ϕ

∂x2

v1 =∂ψ

∂x2

, v2 = − ∂ψ

∂x1

. (3.19)

Consequentemente, estas tambem satisfazem as equacoes de Cauchy–Riemann

∂ϕ

∂x1=

∂ψ

∂x2,

∂ϕ

∂x2= − ∂ψ

∂x1

e definem uma funcao W : C −→ C na variavel z = x1 + ix2,

W (t, z) = ϕ(t, x1, x2) + iψ(t, x1, x2)

analıtica no domınio Ω.As funcoes f e W sao, respectivamente, a velocidade e o potencial complexo do

movimento de um fluido e estao relacionadas por

Proposicao 3.36∂W

∂z= f . (3.20)

Prova. Para deduzir esta relacao, escrevemos

x1 = x1 (z, z) =z + z

2

x2 = x2 (z, z) =z − z

2i

com z = x1 − ix2 o complexo conjugado de z. Aplicando

∂z=∂x1

∂z

∂x1+∂x2

∂z

∂x2=

1

2

(

∂x1− i

∂x2

)

sobre a funcao W = ϕ+ iψ:

1

2

(

∂x1

− i∂

∂x2

)

(ϕ+ iψ) =1

2

(

∂ϕ

∂x1

+∂ψ

∂x2

)

− i

2

(

∂ϕ

∂x2

− ∂ψ

∂x1

)

= v1 − iv2

obtemos, em vista das equacoes (3.19), o lado direito de (3.20) .2

Devemos ainda impor condicoes de fronteira sobre as funcoes potenciais na borda Γda regiao Ω que contem o fluido, devido a impenetrabilidade. Em alguns exemplos que

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 57

daremos a seguir Ω e o complemento de um obstaculo a ser contornado pelo fluido. Se oobstaculo e fixo, (3.13) e equivalente a

n · ∇ϕ|Γ = 0

τ · ∇ψ|Γ = 0

onde n denota a normal a curva Γ que separa o obstaculo do fluido e τ e o versor tangentea Γ. Lembre que ψ(t, x1, x2) = const. sobre a curva Γ (composta por linhas de corrente)e, portanto, a derivada de ψ ao longo da curva se anula.

As curvas determinadas pelas equacoes

ϕ(t, x1, x2) = c

ψ(t, x1, x2) = d

com c e d constantes reais, sao, respectivamente, equipotenciais e linhas de corrente epossuem a propriedade de serem ortogonais entre si. No caso do movimento de um fluidoser estacionario, v (t,x) = v(x), ambas as funcoes ϕ e ψ sao independentes do tempo eas linhas de corrente coincidem com as trajetorias do fluido.

Daremos a seguir exemplos de movimento planar estacionario irrotacional. Em vistada linearidade das equacoes de Laplace (3.18), alguns destes serao construıdos por super-posicao de movimentos mais elementares.

a) Movimento Estacionario Uniforme. Temos

W (z) = v0ze−iα

= v0 (x1 + ix2) (cosα− i sinα)

com v0 e α reais, esta definida no plano inteiro (x1, x2) ∈ R2 e tem parte real e imaginaria

ϕ(x1, x2) = v0 (x1 cosα + x2 sinα)

ψ(x1, x2) = v0(x2 cosα− x1 sinα)

As linhas de corrente satisfazem a equacao

x2 = c+ tanα x1 , c ∈ R

de uma reta com inclinacao α e as equipotenciais sao tambem retas, porem com inclinacaoα + π/2. O campo de velocidade e constante:

v(x1, x2) = (v0 cosα, v0 sinα) .

b) Fontes e Sorvedouros. Em coordenadas polares z = x1 + ix2 = reiθ,

W (z) =D

2πln z

=D

2π(ln r + iθ)

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58 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-1 -0.5 0 0.5 1

-1

-0.5

0

0.5

1

FIGURE 3.1. Campo de velocidade uniforme.

com D real. A parte real e imaginaria de W satisfaz

ϕ(x1, x2) =D

4πln(

x21 + x2

2

)

ψ(x1, x2) =D

2πarctan

x2

x1.

As linhas de corrente sao retas que cruzam a origem e as equipotenciais cırculos concen-tricos. A origem e uma fonte se D > 0 e um sorvedouro se D < 0.

O campo de velocidade

v(x1, x2) =

(

D

2πrcos θ,

D

2πrsin θ

)

esta definido em todo plano com excessao da origem.

c) Movimento Dipolar.

W (z) =−K2πz

=−K2πr

e−iθ

com K real, tem parte real e imaginaria

ϕ(x1, x2) =−K4πr

cos θ

ψ(x1, x2) =K

4πrsin θ

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 59

-1 -0.5 0 0.5 1

-1

-0.5

0

0.5

1

FIGURE 3.2. Campo de velocidades de uma fonte.

com r2 = x21 + x2

2 e tan θ = x2/x1. As linhas de corrente sao cırculos centrados sobre oeixo e2 e tangentes ao eixo e1. As equipotencias sao, analogamente, cırculos centradossobre o eixo e1 e tangentes ao eixo e2. Note que, a equacao de um cırculo de raio Rcentrado em (R, 0):

(x1 −R)2 + x22 = R2

e equivalente a

x21 + x2

2 = 2Rx1

r2 = 2Rr cos θ

que, por sua vez, coincide com a equacao da equipotencial ϕ(x1, x2) = −K/(8πR).Este movimento pode ser obtido como um limite em h→ 0 de uma fonte na origem e

um sorvedouro em (h, 0) de intensidades D = K/h, vindo daı o nome dipolar para estemovimento. Temos

W (z) = limh→0

Dh

(

ln z − ln (z + h)

h

)

= −W ′b(z) =

−K2πz

.

d) Vortice.

W (z) =γ

2πiln z

=−iγ2π

(ln r + iθ)

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60 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-2 -1 0 1 2

-2

-1

0

1

2

FIGURE 3.3. Linhas de corrente de um movimento dipolar.

tem parte real e imaginaria

ϕ(x1, x2) =γ

2πθ

ψ(x1, x2) =−γ2π

ln r .

Comparado as fontes e sorvedouros, as equipotenciais e linhas de corrente para estemovimento tem seus papeis trocados. As equipotenciais e linhas de corrente sao, respec-tivamente, retas que cruzam a origem e cırculos centrados na origem.

O campo de velocidades

v(x1, x2) =

(−γ2πr

sin θ,γ

2πrcos θ

)

esta definido em R2\(0, 0) e o movimento e invariante por rotacao. Note que, diferen-

temente do Exemplo 2.2.1, este campo diverge na origem e tem vorticidade

ξ = −∆ψ = −1

r(rψ′)

′= 0

em todos os pontos com excecao da origem. O movimento conserva o volume mas nao erıgido como no referido exemplo.

O Exemplo 3.24 e de um campo vetorial de um vortice com γ = −2π. Este campo emuma regiao Ω contendo a origem nao e potencial. A circulacao do campo de vortice em

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 61

-2 -1 0 1 2

-2

-1

0

1

2

FIGURE 3.4. Linhas de corrente de um vortice.

uma circunferencia C centrada na origem∫

C

v · dx =γ

2πr

∫ 2π

0

(− sin θ, cos θ) · (− sin θ, cos θ) rdθ = γ . (3.21)

e) Movimento Espiralado. Combinando linearmente uma fonte (ou sorvedouro) comum vortice,

W (z) =D

2πln z +

γ

2πiln z =

1

(

D +γ

i

)

ln z

resulta

ϕ(x1, x2) =1

2π(D ln r + γθ)

ψ(x1, x2) =1

2π(Dθ − γ ln r)

e as linhas de corrente sao espirais de Bernoulli.

f) Movimento Contornando Objeto Agudo.

W (z) =1

2az2 =

1

2ar2e2iθ

tem parte real e imaginaria dada por

ϕ(x1, x2) =1

2a(

x21 − x2

2

)

=1

2ar2 cos 2θ

ψ(x1, x2) = ax1x2 =1

2ar2 sin 2θ

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62 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-1 -0.5 0 0.5 1

-1

-0.5

0

0.5

1

FIGURE 3.5. Campo vetorial de um vortice na origem.

Tanto as equipotenciais como as linhas de corrente sao hiperboles sendo as primeirasassintoticas aos eixos cartesianos e as segundas assintoticas as bissetrizes. O campo develocidades neste caso e

v(x1, x2) = (ax1,−ax2)

Note que as linhas de corrente, que coincidem com as trajetorias devido ao movimentoser estacionario, sao dadas pelo Exemplo 2.2.3. Restrito ao semiplano superior de C, omovimento do fluido, que se aproxima do plano x2 = 0 vindo de x2 = ∞ uniformementena direcao −e1, e desviado por um objeto agudo localizado na origem.

Faremos uma pausa nos exemplos afim de verificar a seguinte propriedade satisfeitapelas curvas analıticas.

Ortogonalidade das Linhas de Corrente e Equipotenciais. Seja C : ϕ(x1, x2) =ℜe(W ) = c e D : ψ(x1, x2) = ℑm(W ) = d uma equipotencial e uma linha de correntetracadas no plano complexo z = x1 + ix2 e seja z0 = x1,0 + ix2,0 um ponto de interseccaoentre elas. O angulo θ entre as tangentes a cada curva no ponto z0 e dado por (veja pag.43 de “The Schwarz function and its applications” por Philip J. Davis)

tan θ = iS ′(z0) − T ′(z0)

S ′(z0) + T ′(z0)(3.22)

onde z = S(z) e z = T (z) sao, respectivamente, as funcoes de Schwarz associadas ascurvas C e D obtidas resolvendo para z as equacoes ϕ(x1, x2) = c e ψ(x1, x2) = d com

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 63

-2 -1 0 1 2

-2

-1

0

1

2

FIGURE 3.6. Movimento de um fluido em espiral.

x1 =z + z

2e x2 =

z − z

2i. Note que S ′(z0) e a inclinacao λS = tan θS da tangente a curva

C no ponto z0 estao relacionados por

S ′(z0) =dz

dz=dx1 − idx2

dx1 + idx2

=1 − idx2/dx1

1 + idx2/dx1

=1 − iλS

1 + iλS

(3.23)

O angulo θ entre as tangentes as curvas C e D no ponto z0 satisfaz

tan θ = tan (θS − θT ) =λS − λT

1 + λSλT

devido a identidade trigonometrica tan(α+β) = (tanα + tanβ) /(1− tanα tan β). Subs-tituindo a inversa de (3.23)

λS = −i1 − S ′(z0)

1 + S ′(z0)

λT = −i1 − T ′(z0)

1 + T ′(z0)

obtem-se a equacao (3.22).Usando W (z) = W (z),2 temos

W (z) + W (S(z))

2= c (3.24)

2Se f(z) = u(z) + v(z) e uma funcao analıtica com u e v funcoes reais, f(z) = u(z) − iv(z).

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64 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

e satisfeita para z sobre a curva C e, analogamente,

W (z) − W (T (z))

2i= d (3.25)

e satisfeita para z sobre a curva D. Logo

S(z) = W−1 (2c−W (z))

T (z) = W−1 (W (z) − 2id)

e diferenciando (3.24) e (3.25) juntamente com a regra da cadeia e a definicao da funcaode Schwartz, resulta

S ′(z) =−W ′(z)

W ′(z)= −T ′(z) (3.26)

no ponto z = z0 de interseccao das curvas. Substituindo este resultado em (3.22), con-

cluimos θ =π

2e as curvas C e D se interceptam ortogonalmente.

2

g) Movimento Contornando Objeto Circular. Sobrepondo um movimento uniformea um dipolar, o potencial complexo e dado por

W (z) = v0

(

z +a2

z

)

= v0r

(

eiθ +a2

r2e−iθ

)

= v0r

(

1 +a2

r2

)

cos θ + iv0r

(

1 − a2

r2

)

sin θ

em coordenadas polares z = reiθ. As linhas de corrente sao solucoes implıcitas da equacao

v0r

(

1 − a2

r2

)

sin θ = d (3.27)

com d reais. O movimento do fluido no domınio Ω = (x1, x2) ∈ R : x21 + x2

2 > a2 e dadopor um campo de velocidade assintoticamente uniforme na direcao do eixo e1 e as linhasde corrente contornam o obstaculo circular de raio a em sua proximidade. Note que que acircunferencia de raio r = a e a direcao do eixo e1 satisfazem a equacao (3.27) com d = 0e sao linhas de corrente. Note ainda que (±a, 0) sao pontos de estagnacao do movimento:v (±a, 0) = 0.

h) Movimento Contornando Objeto Circular na Presenca de Vortice. Sobre-pondo o movimento uniforme, a um dipolar e um vortice, resulta no seguinte potencialcomplexo

W (z) = v0

(

z +a2

z

)

2πilnz

a

= v0r

(

1 +a2

r2

)

cos θ +γ

2πθ + i

(

v0r

(

1 − a2

r2

)

sin θ − γ

2πlnr

a

)

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3.3 Movimentos Estacionarios Elementares 65

-2 -1 0 1 2

-2

-1

0

1

2

FIGURE 3.7. Fluido atraves de um obstaculo circular.

com z = reiθ. As linhas de corrente

v0r

(

1 − a2

r2

)

sin θ − γ

2πlnr

a= d

com d reais, sao deformadas com respeito ao caso anterior. Embora a circunferencia deraio a continua sendo uma linha de corrente dada pela equacao ψ(x1, x2)|x2

1+x2

2=a2 = 0

o eixo na direcao e1 nao se encontra mais sobre uma curva de nıvel de ψ. Podemos, noentanto, descrever qualitativamente a deformacao com respeito ao exemplo g) das linhasde correntes calculando os pontos de estagnacao. Os pontos de estagnacao sao os zerosda velocidade f(z) = W ′(z). Temos

W ′(z) = v0

(

1 − a2

z2

)

2πiz= 0

e equivalente a equacao de segundo grau

z2 +γ

2πv0iz − a2 = 0

cujas solucoes

z± =−γ

4πv0i±√

a2 − γ2

16π2v20

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66 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

-2 -1 0 1 2

-1

0

1

2

FIGURE 3.8. Fluido atraves de um obstaculo circular na presenca de um vortice na origem.

se encontram no cırculo de raio a se a2 ≥ γ2/(16π2v20). Note que |z|2 =

γ2

16π2v20

+ a2 −γ2

16π2v20

= a2. Parametrizando as solucoes

z± = ±a exp (±iφ) = a (i sinφ± cos φ) ,

obtemossinφ =

γ

4πv0a. (3.28)

A velocidade sobre a fronteira Γ do obstaculo circular e tangente a circunferencia de raioa. Podemos calcula-la escrevendo o potencial ϕ do campo de velocidades em coordenadaspolares. Temos

ϕ(r, θ) = v0r

(

1 +a2

r2

)

cos θ +γ

2πθ

e a componente tangencial da velocidade sobre a circunferencia

τ · v(a, θ) =∂ϕ

∂θ(a, θ) = −2v0a sin θ +

γ

A velocidade e maxima, em valor absoluto, para θ = −π/2 se γ > 0 e para θ = π/2 seγ < 0. Na figura (3.8) acima a vorticidade γ e negativa.

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3.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres 67

3.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres

Utilizaremos os resultados estabelecidos nas subsecoes anteriores para o calculo da forcade suspensao exercida sobre um obstaculo pelo movimento de um fluido ideal incom-pressıvel e irrotacional. Este movimento e denominado nos livros textos de fluxo poten-cial, em referencia ao potencial do campo de velocidades. Para que a forca de suspensaotenha uma dependencia nao trivial da forma, e necessario considerar obstaculos gera-dos por uma transformacao conforme singular e ajustar o fluxo potencial de maneira asatisfazer a condicao de Kutta–Joukowski.

Considere um fluido ideal e incompressıvel contornando um obstaculo O ⊂ R2. A forcaexercida sobre O pelo fluido em Ω = R2\O atua, de acordo com Cauchy, por contato nasuperfıcie Γ:

F = −∫

Γ

pn dS (3.29)

onde n e a normal a superfıcie Γ de O (apontando em direcao ao fluido). Veremos queesta forca pode ser calculada em termos do potencial complexo W correspondente aomovimento em Ω.

Lema 3.37 (formula de Blasius)

F =iρ0

2

Γ

(

dW

dz

)2

dz

onde F = F1 − iF2 com Fi a i–esima componente do vetor F = (F1, F2).

Prova. De acordo com a formula de Bernoulli para o movimento estacionario de umfluido incompressıvel homogeneo (na ausencia de forcas externas),

H =1

ρ0

p+1

2v2

e constante em uma linha de corrente L. Escolhendo a linha L que termina em um pontoxO de estagnacao no obstaculo O, e denotando por pmax o valor da pressao neste ponto,temos

pmax = p +ρ0

2v2

= p +ρ0

2|W ′(z)|2

onde usamos v2 = v21 + v2

2 = |f |2, Proposicao 3.36 e as funcoes p e v2 calculadas sobre L.A borda Γ do obstaculo e tambem uma linha de corrente contendo xO e esta expressaoe igualmente valida sobre Γ.

Parametrizando Γ pelo comprimento de arco: z(s) = x1(s) + ix2(s), 0 ≤ s ≤ l, comz(0) = z(l) e |z′(s)| = 1, o versor normal n = (n1, n2) e dado por

n(s) = (x′2(s),−x′1(s))

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68 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

devido sua ortogonalidade com o versor tangente τ = (x′1, x′2) a curva Γ: n · τ = n1x

′1 +

n2x′2 = 0. Escrevemos a seguir o versor normal na forma complexa n = n1 − in2,

n(s) = x′2(s) + ix′1(s) = idz

ds.

Substituindo estes resultados em (3.29), resulta

F = −∫

Γ

pn ds

= −∫

Γ

(

pmax −ρ0

2|W ′(z)|2

)

idz

=iρ0

2

Γ

W ′(z)W ′(z)dz

pois pmax e uma constante e

Γ

dz(s) = z(l) − z(0) = 0. Usando a relacao (3.26) para a

funcao de Schwarz z = T (z) associada a Γ e W ′(z) = W ′(z), concluımos

F =iρ0

2

Γ

W ′(z)W ′(z)T ′(z)dz

=iρ0

2

Γ

(W ′(z))2dz .

2

Observacao 3.38 O mesmo procedimento pode ser aplicado para calcular o momentoexercido pela forca de contato sobre obstaculo O

M =

Γ

x × (−pn) dS =

Γ

p (−x1n2 + x2n1) e3dS

Se M denota a intensidade do momento na direcao ortogonal ao plano π12, entao

M =

Γ

p (x1x1 + x2x2) ds

=

Γ

(

pmax −ρ0

2|W ′(z)|2

)

ℜe

(

zdz

ds

)

ds

=−ρ0

2ℜe

Γ

z (W ′(z))2dz .

A forca exercida pelo fluido sobre o obstaculo circular de raio a nos exemplos g) e h)pode ser calculada pela formula de Blasius. Temos, repectivamente,

W ′(z) = v0

(

1 − a2

z2

)

W ′(z) = v0

(

1 − a2

z2

)

2πiz

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3.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres 69

ambas expressoes convergindo, quando z → ∞, para o campo de velocidades uniformev0 na direcao e1. Escrevendo um ponto z = aeiθ de Γ em coordenadas polares, temosdz = iaeiθdθ e

F =iρ0

2

Γ

(W ′(z))2dz

= −ρ0v0

2

∫ 2π

0

(

1 − e−2iθ)2aeiθdθ

= −ρ0v0a

2

∫ 2π

0

(

eiθ − 2e−iθ + e−3iθ)

dθ = 0

para o exemplo g) devido a integral

∫ 2π

0

eikθdθ =1

ik

(

e2πik − 1)

se anular para todo k inteiro difrente de 0.Para o exemplo h) temos

F =iρ0

2

Γ

(W ′(z))2dz

= −ρ0

2

∫ 2π

0

(

v0

(

1 − e−2iθ)

2πiae−iθ

)2

aeiθdθ

= −ρ0v0γ

2πi

∫ 2π

0

dθ = iρ0v0γ

e, como ρ0, v0 e γ sao constantes reais, existe uma forca atuando sobre o objeto circularna direcao e2 de intensidade −ρ0v0γ. Se a circulacao γ do campo de vortice for positiva(negativa) e v0 > 0, entao o fluido exerce sobre o objeto uma forca para baixo (cima)sendo esta perpendicular a direcao assintotica do campo de velocidades. Esta ultimapropriedade e um caso particular do seguinte

Teorema 3.39 (Kutta-Joukowski) Considere um fluido ideal incompressıvel homo-geneo e irrotacional contornando um obstaculo O ⊂ R

2. Assumindo que o campo develocidade v = (v1, v2) e tal que a velocidade complexa f = u1 − iv2 seja uma funcaoanalıtica em Ω = R2\O e que convirja a um campo uniforme v0 = v0 (cosα, sinα) noinfinito, a forca exercida sobre O pelo fluido e dada por

F = −ρ0v0γ (− sinα, cosα)

onde γ =∫

Γv · dx e a circulacao do campo e e perpendicular a v0.

Prova. Pelas hipoteses, f pode ser expandida em uma serie de Laurent

f(z) = v0e−iα +

γ

2πiz+

∞∑

n=2

an

zn

convergente fora de um disco D de raio R centrado na origem tal que contenha O. Noteque f tende para v0e

−iα no infinito e, sendo uma funcao limitada para |z| ≥ R, nenhum

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70 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

termo de potencia positiva de z pode aparecer nesta expansao. A serie e uniforme eabsolutamente convergente em |z| ≥ R e |an| ≤ KRn

0 e satisfeita para alguma constanteK com R0 o menor R tal que o O ⊂ D.

A integral sobre um contorno C, contendo D em seu interior e dada por

C

f(z)dz =

C

(

v0e−iα +

γ

2πiz+

∞∑

n=2

an

zn

)

dz = γ ,

pelo teorema dos resıduos. Pela analiticidade de f em R2\O e o teorema de Cauchy, ovalor da integral nao se altera se substituirmos C pelo contorno Γ formado pela borda∂O do obstaculo. Temos

γ =

Γ

f(z)dz =

Γ

(v1 − iv2) (dx1 + idx2) =

Γ

(v1dx1 + v2dx2) =

Γ

v · dx

devido a condicao de fronteira v · n = 0, concluindo que γ coincide com a circulacao dev. Note que n = (x′2(s),−x′1(s)) e dx = (x′1(s), x

′2(s)) ds sao ortogonais e isso implica no

cancelamento dos termos cruzados da integral:

v1dx2 − v2dx1 = (v1x′2 − v2x

′1) ds = (v · n) ds = 0 .

Quadrando a serie de Laurent obtemos uma serie de Laurent para f 2 do mesmo tipo

(f(z))2 = v20e

−2iα +γv0e

−iα

πiz+

(

v0a2e−iα − γ2

4π2

)

1

z2+ · · ·

onde os termos de potencia de 1/z de ordem superior a 1/z2 foram omitidos por naoserem relevantes ao que vem a seguir. Note que a serie de f 2

∞∑

j=0

aj

zj

2

≤∞∑

n=0

1

|z|nn∑

j=0

(

n

j

)

|aj| |an−j | ≤ K2∞∑

n=0

1

|z|n (2R0)n

converge uniforme e absolutamente, pelo menos, para |z| > 2R0.Aplicando o lema de Blasius, o teorema de Cauchy e o teorema dos resıduos, obtemos

(para algum contorno C ′ contendo o disco D′ de raio 2R0 centrado na origem)

F1 − iF2 =iρ0

2

Γ

(f(z))2 dz

=iρ0

2

C′

(f(z))2 dz

= iρ0γv0e−iα 1

2πi

C′

dz

z

= iρ0γv0e−iα = −ρ0γv0 (− sinα+ i cos θ)

de onde se conclui o resultado.2

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3.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres 71

Observacao 3.40 As componentes paralela e perpendicular ao campo de velocidades noinfinito da forca exercida sobre o obstaculo O pelo fluido sao denominadas, respectiva-mente, forca de arrastamento e forca de suspensao. Em desacordo com os fatosexperimentais, um fluido ideal incompressıvel, pelo Teorema de Kutta–Joukowski, naoexerce forca de arrastamento sobre obstaculos. Veremos adiante que o acrescimo de umapequena viscosidade ao fluido permite corrigir este problema. Pior que a ausencia de ar-rastamento e a dependencia da circulacao γ, introduzida arbitrariamente no Exemplo h)da Secao 3.3 pela inclusao de um vortice a origem, sem nenhuma relacao com o obstaculo.Para que haja suspensao, γ deve ser negativa (vorticidade no sentido horario).

Observacao 3.41 Um movimento estacionario de um fluido ideal incompressıvel, as-sintoticamente uniforme, contornando um obstaculo esferico O (ou de qualquer outraforma tridimensional) nao exerce forca de arrastamento nem de suspensao. Este feno-meno, conhecido por paradoxo de D’ Alembert, e devido a regiao Ω = R

3\ |x| ≤ aser simplesmente conexa e, consequentemente, a circulacao do campo γ =

Cv · dx = 0

para qualquer contorno contido em Ω.

Para que o Teorema de Kutta-Joukowski seja util ao calculo da forca de suspensaode um aerofolio, e necessario relacionar γ com alguma propriedade de O. O seguinteprocedimento faz uso das transformacoes conforme.

Considerez = h(ζ)

uma funcao holomorfica bijetiva (bi–holomorfica)3 que leva cada ponto ζ de um disco

D(ζ0, a) = |ζ − ζ0| < a

de cento ζ0 e raio a em um ponto z do interior do domınio DO do obstaculo O:

h : D(ζ0, a) −→ DO

Por ser uma funcao um–para–um, h′ nao se anula em D(ζ0, a) e a inversa h−1 esta bemdefinida em todo domınio DO. Note que (h−1)

′= 1/h′ existe e h−1 e analıtica em DO.

Utilizaremos uma funcao bi–holomorfica h para transformar uma funcao analıtica fdefinida no domınio formado pelo complemento do discoD(ζ0, a) em uma funcao analıticag definida no complemento do domınio DO por composicao:

g(ζ) = f h(ζ) ≡ f (h(ζ)) .

Do ponto de vista da teoria das funcoes analıticas, as funcoes f e g sao indistinguıveisuma vez que g satisfaz as equacoes de Cauchy–Riemann no domınio complementar aDO, se f as satisfaz no donınio complementar a D(ζ0, a), pela regra da cadeia. Porum resultado de Caratheodory h−1 pode ser extendida aos pontos da fronteira Γ dodomınio DO como uma funcao contınua de Γ a valores na circunferencia |ζ − ζ0| = a,contanto que Γ seja uma curva contınua fechada simples (curva de Jordan). Esta condicaosera respeitada pelos obstaculos considerados, exceto no caso que trataremos a seguir.

3Uma funcao e holomorfica se satisfaz as equacoes de Cauchy Riemann sendo, portanto, sinonimo de analıtica.

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72 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

Contudo, para que o Teorema de Kutta-Joukowski seja empregado de maneira nao trivial,h−1 nao deve ser diferenciavel em um ponto z da curva Γ.

O aerofolio mais simples e obtido da seguinte maneira. Considere a transformacaoconforme

h(ζ) =a

2

(

ζ

a+a

ζ

)

(3.30)

que leva o disco D(0, a) em um segmento de reta de comprimento 2a duplamente per-corrido. h tambem leva o complemento |ζ | > a do disco D(0, a) no plano complexo como segmento de −a a a recortado: C\ [−a, a]. Note que a imagem z = h(aeiθ) = a cos θda circunferencia ζ = aeiθ, 0 ≤ θ < 2π, e o segmento [−a, a] percorrido de a para −aquando 0 ≤ θ < π e de −a para a quando π ≤ θ < 2π. Note ainda que h(ζ) tende ainfinito quando ζ → ∞.

Considere agora um fluido incompressıvel e irrotacional passando atraves de um obs-taculo circular com velocidade uniforme assintotica de inclinacao α e vorticidade γ (vejaexemplos a) e h)):

W (ζ) = v0

(

ζe−iα +a2eiα

ζ

)

2πilnζ

a. (3.31)

Para obter o fluido passando por um aerofolio fino formado pelo segmento [−a, a], com-pomos W com a inversa de h:

ζ = h−1(z) = z +√z2 − a2

onde o sinal positivo da raiz foi escolhido de maneira tal que ζ tenda a infinito quandoz → ∞. O potencial complexo associado ao aerofolio achatado e dado por

Wfolio(z) = W h−1(z)

= v0e−iα

(

z +√z2 − a2 +

a2e2iα

z +√z2 − a2

)

2πilnz +

√z2 − a2

a

O ponto importante e que as extremidades do aerofolio sao singularidades para omovimento. Calculando a velocidade a partir do potencial do aerofolio:

ffolio = W ′folio = W ′ h−1 ·

(

h−1)′

= W ′ h−1 · 1

h′ h−1

pela regra da cadeia, temos que

1

h′ h−1(z)=

1

h′(ζ)= 2

(

1 − a2

ζ2

)−1

diverge para ζ = ±a. Para sanar este problema, fixamos o unico parametro livre domovimento, a vorticidade, de forma que o campo de velocidades

W ′ h−1(z) = W ′(ζ) = f(ζ)

associado ao potencial do movimento contornando o cırculo, cancele a singularidade noponto a:

W ′(a) = v0

(

e−iα − a2eiα

ζ2

)

2πiζ

ζ=a

= v0

(

e−iα − eiα)

2πia= 0

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3.4 Aplicacao a Teoria dos Aerofolios e Problemas de Fronteira Livres 73

de onde se concluiγ = −4πv0a sinα .

Esta condicao, devido a Kutta-Joukowski, permite calcular a circulacao de um aerofolio.Note que a condicao de Kutta-Joukowski, obtida por um criterio matematico de can-celamento de uma divergencia, e tambem uma condicao fısica pois ajusta as linhas decorrente passando o aerofolio de tal maneira que a extremidade posterior do aerofolio sejauma delas.

O aerofolio fino continua tendo, mesmo depois da condicao de Kutta-Joukowski, a ve-locidade divergindo na extremidade frontal em −a. Este problema pode talvez ser contor-nado com a inclusao de outro vortice. Uma maneira pratica e mais realıstica, no entanto,consiste em ”arredondar”a parte frontal do aerofolio mantendo a cauda na forma de umacuspe. A funcao h com estas caracterısticas e construıda pelo seguinte procedimento.Primeiramente, substituiremos a em (3.30) por uma constante real l independente:

h(ζ) =1

2

(

ζ +l2

ζ

)

(3.32)

A funcao (3.30) possuia pontos fixos sobre a circunferencia de raio a em ζ = ±a. Vamosagora considerar h : D(ζ0, a) −→ C como uma mapa do cırculo de raio a centrado em ζ0com um ponto fixo dado pelo ponto mais a direita de intersecao da circunferencia de raioa com o eixo e1. Temos

h(ζ) =1

2

(

ζ +l2

ζ

)

= ζ

implica ζ∗ = ±l e, escrevendo ζ0 = ρeiβ e tomando a raiz positiva, obtemos o ponto deintersecao

ζ∗ = ζ0 + aeiθ = l (3.33)

resultando

l = ρ cosβ + a cos θ

0 = ρ sin β + a sin θ .

O potencial complexo para um fluido contornando um disco de raio a deslocado por ζ0com angulo α de insidencia e dado por:

W (ζ) = v0

(

(ζ − ζ0) e−iα +

a2eiα

ζ − ζ0

)

2πilnζ − ζ0a

e compondo com h−1, temos

Wfolio(z) = v0

(

(

z +√z2 − l2 − ζ0

)

e−iα +a2eiα

z +√z2 − l2 − ζ0

)

2πilnz +

√z2 − l2 − ζ0a

.

A velocidade complexa do aerofolio

ffolio(z) = W ′folio(z) = W ′(ζ)

1

h(ζ)

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74 3. Fluidos Ideais: Diversos Resultados

diverge em ζ = l a menos que W ′(ζ) cancele a divergencia neste ponto. A condicao deKutta-Joukowski e escrita como

W ′(l) = v0

(

e−iα − a2eiα

(ζ − ζ0)2

)

2πi(ζ − ζ0)

ζ=l

= v0

(

e−iα − a2eiα

(ζ − l + aeiθ)2

)

2πi(ζ − l + aeiθ)

ζ=l

= v0

(

e−iα − ei(α−2θ))

+γe−iθ

2πia

= v0e−iθ(

e−i(α−θ) − ei(α−θ))

2πia= 0

de onde se concluiγ = −4πv0a sin(α− θ) (3.34)

coincidente com o resultado do aerofolio achatado quando o disco e centrado na origem(θ = 0). Usando (3.33) podemos escrever a vorticidade em termos das coordenadas de ζ0:

γ = −4πv0a (sinα cos θ − cosα sin θ))

= −4πv0 (sinα(l − ρ cosβ) + ρ cosα sin β))

Interpretacao: Em um fluido ideal a vorticidade e conservada. Porem, se admitirmosuma pequena viscosidade ao fluido, as linhas de corrente obtidas pelas curvas de nıvelde ψfolio = ℑm (Wfolio) nao sao alteradas fora de uma pequena vizinhanca do aerofolio.O campo de velocidades na camada limite ajusta o flux potencial na parte exteriorcom a condicao de fronteira v(t,x)|Γ = 0. Na transicao a componente tangencial davelocidade ao longo de Γ varia com respeito a direcao normal dando origem a circuitacao∫

C

v · dx < 0 nao–nula e, consequentemente, uma vorticidade residual γ < 0 que nao

desaparece no limite de viscosidade ν → 0.

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4

Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

O objetivo aqui e estabelecer diferencas e similaridades do movimento de um fluido viscosoquando comparado a um fluido ideal. As equacoes de Euler diferem das de Navier–Stokesnao somente pelo acrescimo de um termo proporcional a viscosidade ν mas tambem pelacondicao de nao deslizamento do fluido junto a fronteira. A mudanca na condicao defronteira faz com que o movimento seja distinto do caso ideal em uma estreita camada daordem

√ν proximo a fronteira. A tecnica de limite de camada sera introduzida em alguns

exemplos elementares. Examinaremos tambem alguns movimentos estacionarios simplese a sua estabilidade com respeito a pequenos e grandes desvios dos referidos movimentos.Devido a exiguidade de tratamentos analıticos e propriedades gerais, esta secao sera maisvoltada a aplicacoes. Faremos uma breve excursao ao problema de Rayleigh–Benard emtermohidraulica e da propagacao de chamas em canais.

4.1 Equacoes de Navier–Stokes

Em um fluido ideal a forca que uma regiao deste exerce sobre a superficie S que separaa regiao complementar se da somente na direcao normal a S. De acordo com a teoriacinetica, as moleculas constituintes do fluido em agitacao termica “colidem” com S vindode todas as direcoes resultando uma pressao normal a superfıcie.

Considere agora duas regioes do fluido em movimento cujas respectivas superfıcies Se S ′ se encontram em contato em um dado instante e suponha que a normal a interfacede contato Γ = S ∩ S ′ seja perpendicular ao movimento. Embora idealmente nao hajatransferencia de momento de uma a outra regiao, se a velocidade do fluido variar brus-camente atraves de Γ, as moleculas da regiao mais rapida que penetram na regiao maislenta por difusao podem acelerar esta ultima e, vice-versa, as moleculas vindas da regiaomais lenta podem atuar como um freio a regiao mais rapida. A equacao de movimentoconsiderada ate o momento nao leva em consideracao a dissipacao de energia que ocorreem processos cujos efeitos devido a friccao e conducao termica tornam–se importantes.

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76 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

A equacao de Euler deve, nestes casos, ser modificada pela adicao de um termo que deconta destes efeitos no tensor dos esforcos.

Neste capıtulo, adotaremos a forma do tensor das tensoes σ introduzida na Secao 2.4do Capıtulo 2 para um fluido viscoso Newtoniano

σ = −pI + σ′

σ′ = 2ηD + (ζ − 2

3η)TrD I

onde I e D sao, respectivamente, a matriz identidade e o tensor das deformacoes, dadopela simetrizacao da matriz Jacobiana da velocidade (veja eq. (2.33)). Os elementos dematriz deste tensor sao

σij = −pδij + η

(

∂vi

∂xj+∂vj

∂xi− 2

3∇ · v δij

)

+ ζ∇ · v δij (4.1)

com os coeficientes de viscosidade η e ζ constantes positivas tais que ζ > 2η/3, devido adissipacao de energia e monotonicidade da entropia: o termo

Tr (σ′∇v) = Tr

(

(2ηD + (ζ − 2

3η)TrD)(D + S)

)

= 2ηTr(D2) + (ζ − 2

3η)(TrD)2

e responsavel pelo decrescimo de energia cinetica em (1.19) e acrescimo de entropia em(1.22), por unidade de tempo. Para esta expressao, usamos a decomposicao ∇v = D+Sda matriz jacobiana, com DT = D e ST = −S, e a propriedade TrDS = 0 devido ao fato

TrDS = Tr(DS)T = TrSTD = TrDST = −TrDS.

As equacoes de Navier–Stokes em uma regiao Ω de R3

ρ0

(

∂v

∂t+ v · ∇v

)

= ρ0g −∇p + η∆v

∇ · v = 0 (4.2)

descrevem o movimento de um fluido real incompressıvel (homogeneo) que e regido pelaequacao cardinal (1.9) com tensor das tensoes (4.1) e equacao da continuidade. Observeque a forca causada pela viscosidade se reduz a um unico termo

(∇ · σ′)i =

3∑

j=1

∂xj

(

η

(

∂vi

∂xj+∂vj

∂xi− 2

3∇ · v δij

)

+ ζ∇ · v δij

)

= η

(

∆vi +1

3

∂xi∇ · v

)

+ ζ∂

∂xi∇ · v = η∆vi

devido a condicao ∇ · v = 0.Devemos acrescentar as equacoes (4.2) condicoes de fronteira. Se Γ denota a fronteira

de um recipiente em repouso com interior Ω, devemos impor a condicao de Dirichlet emΓ:

v|Γ = 0 . (4.3)

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 77

Esta condicao resulta de duas outras condicoes. Em analogia ao fluido ideal, a condicaode impenetrabilidade das paredes do recipiente requer

n · v|Γ = 0

com n o versor normal a superfıcie Γ. Por razoes de origem experimental e a exigencia dehaver tantas condicoes quanto a ordem das equacoes de Navier–Stokes, devemos impor,em adicao, a condicao de nao–deslizamento

τ · v|Γ = 0

onde τ e o versor tangente ao movimento na superfıcie Γ. O movimento na superfıcie etangencial e o fluido nao deve deslizar em qualquer direcao do plano tangente permane-cendo, portanto, em repouso quando em contato com a superfıcie.

Se Γ e uma fronteira livre como, por exemplo, a interface de dois fluidos imissıveis,temos

n ·(

v1 − v2)∣

Γ= 0

(

σ1n − σ2n)∣

Γ= 0 .

A condicao (4.3) e necessaria para que as equacoes de Navier–Stokes sejam um pro-blema bem posto, isto e, uma unica solucao destas equacoes existe e depende continua-mente com respeito as condicoes iniciais. Ainda e um problema aberto em mecanica dosfluidos se a solucao das equacoes de Navier–Stokes existe para todo t > 0.

Em alguns casos especiais e possıvel obter uma solucao estacionaria das equacoes (4.2).A seguir daremos alguns exemplos.

4.1.1 Escoamento de Poiseuille Entre Dois Planos Paralelos

Considere um fluido incompressıvel viscoso em movimento estacionario entre dois planosparalelos infinitos em x2 = ±h. Se o movimento do fluido e planar na direcao e1, entao

0 = ∇ · v =∂v1

∂x1

(4.4)

pois v2 ≡ v3 ≡ 0, implicav(x) = v1(x2)e1

e, consequentemente,

v · ∇v = v · ∇v1e1 = v1∂v1

∂x1e1 = 0 . (4.5)

As equacoes de Navier–Stokes para este problema se reduzem a

− 1

ρ0

∂p

∂x1+ ν

∂2v1

∂x22

= 0

− 1

ρ0

∂p

∂x2

= 0

− 1

ρ0

∂p

∂x3= 0

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78 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

de onde se conclui p = p(x1) e a separacao de variaveis da primeira equacao

η∂2v1

∂x22

=∂p

∂x1= −K (4.6)

com K uma constante positiva. Note que o lado esquerdo na primeira igualdade dependesomente da variavel x2 enquanto que o lado direito depende somente da variavel x1. Noteque o gradiente da pressao apontando na direcao oposta a e1, o fluido e empurrado paradireita na direcao e1.

Integrando a equacao (4.6), resulta

p(x1) = p0 −Kx1

e

v1(x2) = −K

2ηx2

2 + ax2 + b

onde a e b sao determinados pelas condicoes de contorno

v1(±h) = −K

2ηh2 ± ah+ b = 0 .

Subtraindo as duas equacoes, obtemos a = 0 e b = K/η, concluindo

v1(x2) =K

(

h2 − x22

)

4.1.2 Escoamento de Poiseuille em um Tubo Cilındrico

O movimento estacionario de um fluido incompressıvel viscoso em um tubo cilındrico deraio h e obtido de maneira semelhante ao movimento entre dois planos paralelos. Supondoo movimento do fluido e o eixo do cilındro ambos na direcao e1, temos

v(x) = v1(x2, x3)e1

com a dependencia em x1 omitida devido a equacao da continuidade (4.4). A equacao(4.5) e igualmente valida para esta geometria e as equacoes de Navier–Stokes reduzem–sea

− 1

ρ0

∂p

∂x1+ ν∆v1 = 0

− 1

ρ0

∂p

∂x2= 0

− 1

ρ0

∂p

∂x3= 0

onde

∆v1 =∂2v1

∂x22

+∂2v1

∂x23

.

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 79

Conclui–se, de maneira analoga, que a pressao depende apenas da variavel x1, p = p(x1)e

η∆v1 =∂p

∂x1= −K

com K uma constante positiva. A equacao para p resulta,

p(x1) = p0 −Kx1

e v1 satisfaz a equacao de Poisson

∆v1 = −Kη

(4.7)

no disco D = x22 + x2

3 < h2 com condicao de fronteira

v1(x2, x3) = 0 em C =

x22 + x2

3 = h2

Em coordenadas cilındricas, a parte radial do operador de Laplace e dada por

∆|radial =1

r

∂r

(

r∂

∂r

)

=∂2

∂r2+

1

r

∂r

e escrevendo a funcao v1(x2, x3) = u(r), devido a simetria do problema, a equacao (4.7)reduz–se a

1

r(ru′)

′= −K

η.

A solucao geral desta equacao pode ser obtida por integracao:

ru′ = −K

2ηr2 + a

u(r) = −K

4ηr2 + a ln r + b .

Impondo as condicoes u(h) = 0 e u(r) regular na origem, resulta

u(r) =K

(

h2 − r2)

e, consequentemente,

v1(x2, x3) =K

(

h2 − x22 − x2

3

)

.

Observacao 4.42 O nome para este escoamento e devido a Jean Louis Marie Poiseuille(1797 - 1869), medico e fisiologista frances com formacao em Fısica e Matematica pelaEcole Polytechnique de Paris. Poiseuille escreveu sua tese de mestrado sobre escoamentosanguıneo em tubos estreitos. Entre 1838 e 1846 formulou e verificou experimentalmente alei de Hagen–Poiseuille sobre escoamento estacionario laminar de um fluido viscosoincompressıvel em tubos cilındricos. O fluxo em uma secao tranversal do tubo

φ =

D

v1(x2, x3)dx2dx3 = 2π

∫ h

0

u(r)rdr =Kπ

∫ h

0

(

h2 − r2)

rdr =Kπh4

e proporcional ao gradiente de pressao K e a quarta potencia do raio h do tubo.

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80 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

4.1.3 Equacao de Navier–Stokes em Coordenadas Cilındricas

No exemplo anterior, foi vantajoso escrever as equacoes de movimento em coordenadasque respeitavam as simetrias do problema. Tendo em vista aplicacoes menos elemen-tares que o problema anterior, escreveremos as proprias equacoes de Navier–Stokes emcoordenadas cilındricas. Isto e mais que necessario ao que temos em vista, porem a pre-sente subsecao pode servir como ilustracao e um roteiro para a transformacao em outrossistemas de coordenadas.

O sistema Cartesiano de coordenadas e formado por um ponto O (origem) de referenciae uma base canonica (e1, e2, e3) de versores de forma que, qualquer vetor neste espacopode ser representado pelas coordenadas na base. Um ponto no espaco e o vetor velocidadeno ponto, por exemplo, sao representados por

x = x1e1 + x2e2 + x3e3

v(x) = v1e1 + v2e2 + v3e3

com as componentes v1, v2 e v3 de v dependentes das coordenadas (x1, x2, x3) do pontox.

Representaremos agora um vetor qualquer em termos de uma nova base (er, eθ, ez)dada pelas relacoes

er = cos θe1 + sin θe2

eθ = − sin θe1 + cos θe2

ez = e3 (4.8)

com a origem O′ desta nova base no ponto x = (x1, x2, x3) cujas coordenadas cilındricas(r, θ, z) satisfazem as relacoes

x1 = r cos θ

x2 = r sin θ

x3 = z

Temosv(x) = vrer + vθeθ + vzez

com as coordenadas vr, vθ e vz de v na nova base depedentes das coordenadas (r, θ, z) dex. Note que os versores er e eθ tambem dependem da coordenada θ do ponto x. Noteainda que os versores (4.8) sao ortogonais, independentemente do ponto x de referencia.

Representemos agora o operador diferencial Laplaceano

∇ = e1∂

∂x1+ e2

∂x2+ e3

∂x3

em coordenadas cilındricas. Primeiramente, pela regra da cadeia,

∂x1

=∂r

∂x1

∂r+

∂θ

∂x1

∂θ+

∂z

∂x1

∂z=

∂r

∂x1

∂r+

∂θ

∂x1

∂θ∂

∂x2

=∂r

∂x2

∂r+

∂θ

∂x2

∂θ+

∂z

∂x2

∂z=

∂r

∂x2

∂r+

∂θ

∂x2

∂θ∂

∂x3

=∂r

∂x3

∂r+

∂θ

∂x3

∂θ+

∂z

∂x3

∂z=

∂z

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 81

Para calcular as derivadas de r e θ com respeito a x1 e x2, vamos utilizar as relacoesinversas

r =√

x21 + x2

2

tan θ =x2

x1

Temos

∂r

∂x1=

x1

r= cos θ

∂r

∂x2=

x2

r= sin θ

sec2 θ∂θ

∂x1=

∂ tan θ

∂x1= −x2

x21

= − sin θ

r cos2 θ

sec2 θ∂θ

∂x2=

∂ tan θ

∂x2=

1

x1=

1

r cos θ

de onde se conclui,

∂x1= cos θ

∂r− sin θ

r

∂θ∂

∂x2= sin θ

∂r+

cos θ

r

∂θ

que juntamente com (4.8) e a ortogonalidade dos versores, resulta

∇ = er (er · ∇) + eθ (eθ · ∇) + ez (ez · ∇)

= er∂

∂r+ eθ

1

r

∂θ+ ez

∂z(4.9)

Seja f = f(x) uma funcao escalar. De (4.9) e a ortogonalidade dos versores, temos

v · ∇f = (vrer + vθeθ + vzez) ·(

er∂f

∂r+ eθ

1

r

∂f

∂θ+ ez

∂f

∂z

)

= vr∂f

∂r+ vθ

1

r

∂f

∂θ+ vz

∂f

∂z(4.10)

Para calcular o termo v·∇v da derivada material na equacao de Navier–Stokes devemostomar cuidado com a aplicacao de ∇ sobre v. Note que, devido a (4.8),

∂er

∂θ= − sin θe1 + cos θe2 = eθ

∂eθ

∂θ= − cos θe1 − sin θe2 = −er

e, consequentemente,

v · ∇v =

(

v · ∇vr −v2

θ

r

)

er +(

v · ∇vθ +vrvθ

r

)

eθ + v · ∇vzez

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82 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

onde v ·∇vα, α = r, θ e z, e dado por (4.10) com f substituido pela respectiva componentede v. Note que o termo vθ (1/r) (∂eθ/∂θ) vθ, apesar de envolver a componente θ de ambosv’s, aponta na direcao er e, semelhantemente, vθ (1/r) (∂er/∂θ) vr aponta na direcao eθ.

Um pouco mais de trabalho e necessario para calcular o termo ∆v = ∇ · ∇v. Asequacoes de Navier–Stokes para um fluido incompressıvel (na ausencia de forcas externas)em coordenadas cilındricas tem a seguinte forma

∂vr

∂t+ v · ∇vr −

v2θ

r= − 1

ρ0

∂p

∂r+ ν

(

∆vr −2

r2

∂vθ

∂θ− vr

r2

)

∂vθ

∂t+ v · ∇vθ +

vrvθ

r= − 1

ρ0

∂p

∂θ+ ν

(

∆vθ −2

r2

∂vr

∂θ− vθ

r2

)

∂vz

∂t+ v · ∇vz = − 1

ρ0

∂p

∂z+ ν∆vz (4.11)

onde

∆f =1

r

∂r

(

r∂f

∂r

)

+1

r2

∂2f

∂θ2+∂2f

∂z2(4.12)

e

∇ · v =1

r

∂r(rvr) +

1

r

∂vθ

∂θ+∂vz

∂z. (4.13)

Por completeza, calculemos o Laplaceano de uma funcao escalar (4.12) em coordenadascilındricas. Pela equacao (4.9) e ortogonalidade dos versores, temos

∇ · ∇f =

(

er∂

∂r+ eθ

1

r

∂θ+ ez

∂z

)

·(

er∂f

∂r+ eθ

1

r

∂f

∂θ+ ez

∂f

∂z

)

=∂2f

∂r2+ eθ ·

∂er

∂θ

1

r

∂f

∂r+

1

r2

∂2f

∂θ2+∂2f

∂z2

=∂2f

∂r2+

1

r

∂f

∂r+

1

r2

∂2f

∂θ2+∂2f

∂z2

de onde se conclui (4.12).

Exercıcio 4.43 Deduza a relacao (4.13) para o divergente de v.

4.1.4 Escoamento de Couette–Taylor entre Dois Cilındros Coaxiais

Considere um fluido viscoso incompressıvel (homogeneo) entre dois cilındros coaxiaisde raios R1 e R2, R2 > R1, que se encontram em movimento de rotacao em torno doeixo comum com velocidade angular ω1 e ω2, respectivamente. Desejamos descrever omovimento estacionario deste fluido.

Se o eixo dos cilındros aponta na direcao e3, devido a simetria do problema, o mo-vimento e planar no plano gerado por e1 e e2 e o campo de velocidades do fluido e daforma

v(x) = vrer + vθeθ

com vr = vr(r) e vθ = vθ(r) coordenadas polares de v. Analogamente, a pressao tambemdepende apenas de variavel radial, p = p(r).

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 83

Inicialmente, vamos mostrar que a componente radial da velocidade vr e nula. Pelaequacao da continuidade

∇ · v =

(

er∂

∂r+ eθ

1

r

∂θ+ ez

∂z

)

(vrer + vθeθ)

=∂vr

∂r+

1

rvr = 0

Considerando que vr depende apenas da variavel r, temos

1

r(rv′r)

′= 0

cuja solucao geral e

vr(r) = c ln r + d

com c e d constantes a serem fixadas pelas condicoes de impenetrabilidade

vr(R1) = c lnR1 + d = 0

vr(R2) = c lnR2 + d = 0

Subtraindo uma equacao da outra, resulta

c lnR1

R2

= 0 =⇒ c = 0

pois R1 6= R2 por hipotese e, consequentemente, d = 0 tambem, de onde se conclui quevr(r) ≡ 0.

Pelas equacoes de Navier–Stokes em coordenadas cilındricas (4.11), temos

−1

rv2

θ =−1

ρ0p′

0 = ν

(

1

r(rv′θ)

′ − vθ

r2

)

. (4.14)

Usando a identidade

(rvθ)′′ = (rv′θ)

′+ v′θ

na segunda equacao, resulta

0 = (rv′θ)′ − vθ

r

= (rvθ)′′ − v′θ −

r

= (rvθ)′′ − 1

r(rvθ)

cuja solucao da equacao

w′ − 1

rw = 0

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84 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

para w = (rvθ)′ e

w = w0r .

Integrando a equacao

(rvθ)′ = w0r

temos

vθ(r) =w0

2r + t0

1

r

com w0 e t0 constantes a serem fixadas pelas condicoes de fronteira de nao deslizamento

vθ(R1) =w0

2R1 + t0

1

R1

= ω1

vθ(R2) =w0

2R2 + t0

1

R2

= ω2 .

Subtraindo a primeira equacao multplicada por R2 (R1) da segunda equacao multiplicadapor R1 (R2), resulta

t0 =−R1R2

R22 − R2

1

(ω1R2 − ω2R1)

w0

2=

ω2R2 − ω1R1

R22 −R2

1

(4.15)

de onde se conclui

vθ(r) =1

R22 −R2

1

(

(ω2R2 − ω1R1) r − (ω1R2 − ω2R1)R1R2

r

)

.

Substituindo este valor na primeira equacao de Navier–Stokes (4.14),

1

ρ0

p′ =1

r

(

w0

2r + t0

1

r

)2

=w2

0

4r +

w0t0r

+t20r3

e integrando de R1 ate r, com R1 ≤ r ≤ R2, obtemos

p(r) = p0 + ρ0

(

w20

8s2 + w0t0 ln s− t20

2s2

)∣

r

R1

= p0 + ρ0

[

w20

8

(

R21 − r2

)

+ w0t0 lnr

R1

+t202

(

1

R21

− 1

r2

)]

com w0 e t0 dados por (4.15) e p0 a pressao na superfıcie cilındrica de raio R1.

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 85

4.1.5 Formula de Stokes

Comentamos no capıtulo anterior que um fluido incompressıvel ideal passando por umobstaculo esferico nao exerce qualquer forca sobre este (veja Observacao 3.41 sobre oparadoxo de D’Alembert e comentarios ao final desta subsecao). Nesta subsecao calcu-laremos a forca de arrastamento sobre uma esfera exercida por um fluido incompressıvelno regime em que o termo de inercia do fluido v · ∇v e dominado pelo termo ν∆v deviscosidade.

Com a finalidade de comparar a relevancia dos termos da equacao de Navier–Stokes econveniente introduzir quantidades dimensionais que caracterizam o problema.

Um fluido incompressıvel de viscosidade cinematica ν = η/ρ0 move, quando distantedo obstaculo, com uma velocidade uniforme constante U na direcao do eixo 1:

lim|x|→∞

v(x) = Ue1 .

O fluido passa atraves de uma esfera de raio a centrada na origem e as quantidadesenvolvidas (ν, U, a) tem as seguintes dimensoes

[ν] = L2/T

[U ] = L/T

[a] = L

Uma grandeza R adimensional formada por estas quantidades satisfaz

[ν]α [U ]β [a]γ =L2α+β+γ

T α+β= 1 .

Fazendo γ = 1 em

2α + β + γ = 0

α + β = 0

resulta β = 1 e α = −1. O numero de Reynolds

R =aU

ν

e, por conseguinte, a unica quantidade adimensional associada a este problema.O movimento estacionario do problema em questao e descrito pelas equacoes de Navier–

Stokes

v · ∇v = − 1

ρ0∇p+ ν∆v

∇ · v = 0 (4.16)

sujeita as condicoes lim|x|→∞ v(x) = u0 e v|Σ = 0 assintotica e de nao–deslizamento nasuperfıcie Σ da esfera. Em coordenadas esfericas

x1 = r cos θ

x2 = r sin θ cosϕ

x3 = r sin θ sinϕ

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86 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

estas condicoes sao dadas por

limr→∞

v(r cos θ, r sin θ cosϕ, r sin θ sinϕ) = Ue1

v(a cos θ, a sin θ cosϕ, a sin θ sinϕ) = 0

para todo 0 ≤ θ < π e 0 ≤ ϕ < 2π.Vamos considerar as equacoes no limite em que o numero de Reynolds tende a 0. Neste

regime temos, tipicamente,

[v · ∇v]

[ν∆v]=

U2/a

νU/a2= R ≪ 1

e o termo nao–linear da equacao pode ser desprezado.Tomando o rotacional da primeira equacao em (4.16) (com v · ∇v = 0), resulta

∆ξ = 0 (4.17)

para o campo de vorticidade ξ = ∇ × v. Usamos, para isso, ∇ × ∇p = 0 e assumimosregularidade do campo vetorial necessaria para que a ordem de derivacao seja trocada.Esta hipotese, que sera adotada em varias passagens a seguir sem mencao, pode serverificada posteriormente.

Faremos outras hipoteses a respeito do movimento. Escrevendo

v = u0 + u (4.18)

onde u0 = u0(x) denota o campo uniforme Ue1, vamos assumir, pela simetria do pro-blema, que u = u(x) dependa apenas da variavel radial r e das direcoes radial x/r edo movimento no infinito u0 e seja tal que limr→∞ u(r; x/r,u0) = 0. Como u tende azero no infinito, todas as suas derivadas tenderao igualmente para zero. u e o campo develocidades de uma esfera se deslocando na direcao −e1 em um fluido que se encontraem repouso no infinito. Note que o sistema de referencia escolhido, cuja origem coincidecom o centro da esfera, continua a acompanhar a esfera em movimento uniforme devidoa transformacao (4.18).

As equacoes (4.16), segundo estas consideracoes, ficam

∇p = η∆u

∇ · u = 0 (4.19)

sujeitas as condicoes u(a) = −u0 e u(∞) = 0.A condicao de incompressibilidade ∇ · u = 0, implica que

u = ∇× A (4.20)

para algum potencial vetor axial A, isto e, para um (pseudo–)vetor que nao troca o sinalquando o sistema de cordenadas e refletido ej → − ej , j = 1, 2 e 3.

Como u depende apenas de r, x/r e u0, A e da forma

A = ∇f × u0 (4.21)

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 87

para uma funcao f = f(r). Note que, pela regra da cadeia,

∇f = f ′∇r = f ′x

r(4.22)

aponta na direcao do versor radial n =x

r(normal a esfera). A e um vetor axial pois

resulta do produto vetorial n × u0 de dois vetores n e u0 que trocam de sinal quando osistema de coordenadas e refletido. A dependencia em u0 em (4.21) e devido a linearidadedas equacoes de movimento e da condicao de fronteira em r = a, esta ultima tambemlinear com respeito a u0. Note que A, e consequentemente u, tende a 0 quando u0 → 0.

Terminada estas consideracoes, passemos a solucao da equacao (4.17). Faremos, paraisso uso da identidade

∇× (∇× A) = ∇∇ · A − ∆A (4.23)

(os dois primeiros termos da igualdade (3.10) com ξ substituıdo por ∇).De (4.21) e propriedade cıclica do produto misto, temos

∇ · A = ∇ · ∇f × u0 = u0 · ∇ × ∇f = 0

devido a u0 ser constante, de onde se conclui

ξ = ∇× v = ∇× u = ∇× (∇× A) = −∇∆f × u0

e, consequentemente,∆ξ = −∇∆2f × u0 = 0

se a equacao∆2f = c (4.24)

for satisfeita para uma constante de integracao c que deve ser escolhida igual a 0 pois u

e suas derivadas tendem a 0 no infinito.Escrevendo

g = ∆f (4.25)

a solucao geral da equacao de Laplace ((4.24) com c = 0)

∆g = 0 ,

para uma funcao g = g(r) dependente somente de r:

1

r2

(

r2g′)′

= 0

e

g(r) =b

r+ d

com d = 0, pela mesma consideracao utilizada para escolha de c = 0 em (4.24).A solucao geral da equacao (4.25):

1

r2

(

r2f ′)′ =b

r

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88 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

e

f(r) =b

2r + d

1

r+ e . (4.26)

Pelo fato de u0 ser constante, (4.21) pode ser escrita como

A = ∇f × u0 = ∇× fu0

e fazendo uso novamente de (4.23), temos

u = ∇× (∇× fu0)

= ∇ (∇ · fu0) −∇ · ∇fu0

= ∇ (u0 · ∇f) − ∆fu0 . (4.27)

Calculamos o primeiro termo desta expressao utilizando (4.26), a regra da cadeia e (4.22):

u0 · ∇f = u0 · ∇(

b

2r + d

1

r+ e

)

=

(

b

2

1

r− d

1

r3

)

u0 · x

e, consequentemente,

∇ (u0 · ∇f) =

(

b

2

1

r− d

1

r3

)

u0 −(

b

2

1

r3− 3d

1

r5

)

(u0 · x)x

=

(

b

2

1

r− d

1

r3

)

u0 −(

b

2

1

r− 3d

1

r3

)

(u0 · n)n .

Para o segundo termos, usamos a equacao (4.25):

∆f =b

r

Juntando as duas contribuicoes, concluımos

u =−b2

(u0 · n)n + u0

r+ d

3(u0 · n)n − u0

r3(4.28)

Note que u satisfaz a condicao de fronteira no infinito. Para fixar as constantes b e d,impomos a condicao de fronteira em r = a. A equacao

u(a) =−b2

(u0 · n)n + u0

a+ d

3(u0 · n)n − u0

a3= −u0

sendo satisfeita para n qualquer e equivalente a

b

2a+

d

a3= 1

b

2a− 3d

a3= 0

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 89

resultando em b = 3a/2 e d = a3/4. Substituindo em (4.28) e (4.18), obtemos o campode velocidades do fluido passando pela esfera

v = u0 −3a

4

(u0 · n)n + u0

r+a3

4

3(u0 · n)n − u0

r3

Obtemos a pressao do fluido p = p(r; n,u0) a partir das equacoes (4.19) e (4.27):

∇p = η(∇∆ (u0 · ∇f) − ∆2fu0)

= η∇∆ (u0 · ∇f)

pois ∆2f = 0, de onde se conclui, juntamente com ∆f = b/r = 3a/(2r), a regra da cadeiae ∇r = n,

p = p0 + ηu0 · ∇∆f

= p0 −3

2ηa

u0 · nr2

. (4.29)

Exercıcio 4.44 Tomando o divergente da primeira equacao em (4.19), juntamente coma equacao da continuidade, resulta

∆p = 0 .

Mostre que a expressao (4.29) satisfaz a equacao de Laplace com p(∞) = p0 e

p(a) = p0 −3ηU

2acos θ. (4.30)

Calculemos a seguir a forca exercida pelo fluido sobre a esfera

F =

Σ

σn dS

onde Σ e a superfıcie da esfera e σ = −pI + σ′ o tensor das tensoes Newtoniano:

σ′ = η

(

∂u

∂x+

(

∂u

∂x

)T)

e, consequentemente,

σn = −pn + η ((n · ∇)u + ∇(u · n)) .

Devido a simetria do problema somente a componente F1 de F = (F1, F2, F3) e nao nulae, usando a regra da cadeia, temos

F1 =

Σ

(−pe1 · n + η ((n · ∇)u1 + e1 · ∇(u · n))) dS

=

Σ

(

−p cos θ + η∂

∂r(u1 + (u · n) cos θ)

)

dS

onde (e1 · ∇)r = e1 · n = x1/r = cos θ nas coordenadas esfericas adotadas.

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90 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

Substituindo u0 = Ue1 em (4.28), temos

u · n = U

(

1 − 1

2

(

3a

r− a3

r3

)

cos θ

)

e∂

∂r(u · n)

r=a

=3U

2

(

a

r2− a3

r4

)∣

r=a

cos θ = 0

A derivada radial da componente 1 da velocidade u:

u1 =aU

4

(

−3cos2 θ + 1

r+ a23 cos2 θ − 1

r3

)

e, na superfıcie da esfera, dada por

∂u1

∂r

r=a

=3aU

4

(

cos2 θ + 1

r2− a2 3 cos2 θ − 1

r4

)∣

r=a

=3U

2a

(

1 − cos2 θ)

=3U

2asin2 θ .

Substituindo esta expressao, juntamente com (4.30), na componente F1 de F

F1 =

Σ

(

−p0 cos θ +3ηU

2a(cos2 θ + sin2 θ)

)

dS

=3ηU

2a

Σ

dS =3ηU

2a· 4πa2

resulta a conhecida formula de Stokes

F = 6πηaUe1 .

Note que∫

Σ

−p0 cos θdS = −2πa2p0

∫ π

0

sin θ cos θdθ

= −πa2p0 sin2 θ∣

π

0= 0 .

Solucao para um fluido ideal e comentarios comparativos. Para efeito de com-paracao, vamos calcular o movimento de um fluido ideal incompressıvel irrotacional pas-sando por uma esfera Σ de raio a.

Pelas Proposicoes 3.25 e 3.27, o campo de velocidades v deste fluido pode ser escrito,analogamente, como

v = u0 + u

com u = ∇φ (pois ∇ × v = ∇ × u = 0) o gradiente de um potencial φ satisfazendo aequacao de Laplace

∆φ = 0

sujeita as condicoes lim|x|→∞ φ(x) = 0 e n · u|Σ = − n · u0|Σ.

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4.1 Equacoes de Navier–Stokes 91

Para acomodar a condicao de fronteira em Σ admite–se, desta vez,

φ = φ(r; n,u0) = u0 · ∇φ0 (4.31)

onde φ0 = A/r e a solucao da equacao de Laplace que decai no infinito. Temos

φ =a3

2r2u0 · n

u =a3

2r3(u0 − 3 (u0 · n)n)

e a pressao em Σ e dada pela equacao de Bernoulli (veja Proposicao 3.25)

1

ρ0p0 =

1

ρ0p+

1

2|u|2 +

∂φ

∂t

onde∂φ

∂t= u0 · ∇φ =

−1

2

(

3 (u0 · n)2 − |u0|2)

(4.32)

em Σ (do ponto de vista do campo de velocidades u, uma esfera se deslocando comvelocidade −u0 com referencial fixo em seu centro satisfaz Dφ/Dt = ∂φ/∂t−u0 ·∇φ = 0)e

1

2|u|2 =

1

8

(

3 (u0 · n)2 + |u0|2)

(4.33)

em Σ, de onde se conclui que a forca exercida pelo fluido sobre a esfera

Σ

−pndS = −2πa2e1

∫ π

0

(

p0 +1

8ρ0U

2(

9 cos2 θ − 5)

)

cos θ sin θdθ

devido a∫ π

0

cos2n−1 θ sin θdθ = − cos2n θ

2n

π

0

= 0

e identicamente nula.Teceremos alguns comentarios sobre a solucao das equacoes de Euler e de Stokes para

o problema em questao.Apesar da nao linearidade das equacoes de Euler, o campo de velocidades u, sendo o

gradiente de uma funcao harmonica φ, satisfaz uma equacao linear de Laplace sujeita acondicao nao-homogenea em Σ. Para contornar a dificuldade com a condicao de fronteira,adotou–se um potencial φ (veja (4.31)) de maneira tal que

u = ∇ (u0 · ∇)φ0 (4.34)

e a solucao da equacao de Laplace com n · u|Σ = − n · u0|Σ. A pressao e, devido a(4.32), a unica quantidade afetada pelo termo nao–linear de inercia e, apesar disso, pisoladamente nao contribui para a forca de arrastamento. Os demais termos, p0 e (4.33),da equacao de Bernoulli para p nao contribuem igualmente, de maneira que a ausencia daforca de arrastamento nao resulta de um cancelamento mas e uma simples consequenciada solucao harmonica.

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92 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

As equacoes de Stokes (4.19), por outro lado, sao lineares por hipotese do numero deReynolds R ser desprezivelmente pequeno. A linearizacao das equacoes de Navier–Stokes∆u = ∇p/η, no entanto, nao implica em um campo de velocidades u harmonico e aequacao de Laplace e satisfeita pelo campo de vorticidade (veja (4.17)). O campo de ve-locidade, por sua vez, deve necessariamente ser escrito como o rotacional de um potencialvetor A (pois ∇ ·u = 0), escolhido da forma (4.21) para facilitar a condicao de fronteiranao–homogenea em Σ. A escolha u = ∇ × A com A dado por (4.21) poderia ser feitaigualmente para o fluido ideal bastando, para isso, substituir f pela funcao harmonica φ0.Neste ultimo caso, como ∆φ0 = 0, restaria apenas o primeiro termo da equacao (4.27) eo campo u escrito desta forma coincide exatamente com a forma (4.34) adotada anteri-ormente. Por estas consideracao, podemos concluir que a forca de arrastamento, expressapela formula de Stokes, e essencialmente nao nula devido ao fato da funcao f em (4.21)nao ser harmonica mas satisfazer ∆2f = 0.

4.2 Termohidraulica

Nesta secao examinaremos a instabilidade de Rayleigh–Benard no problema de Benardpara um fluido incompressıvel, porem nao homogeneo, em um recipiente com um gra-diente da temperatura na direcao da acao da gravidade. A instabilidade tem origem nacompeticao entre duas forcas. Por um lado o fluido mais denso na superfıcie superiortende se mover, pela acao da gravidade, em direcao a superfıcie inferior onde o fluido emais rarefeito. Do outro lado, a viscosidade e a difusao do calor no fluido atuam de modoa impedir o movimento. Para descrever o fenomeno escreveremos as equacoes de Navier–Stokes na aproximacao de Boussinesq e introduziremos quantidades adimensionais emtermos das quais a estabilidade de uma solucao estacionaria por perturbacoes pode serexaminada.

4.2.1 Aproximacao de Boussinesq

Lidamos ate o momento com fluidos reais incompressıveis cujo movimento e regido pelasequacoes (4.2):

ρDv

Dt= ρg −∇p+ η∆v

∇ · v = 0

Para o problema em questao devemos acrescentar as equacoes de Navier–Stokes umaequacao, fornecida pela conservacao de Energia, que leve em conta os efeitos de dissipacaodevido a viscosidade e propagacao de calor pelo meio. Pelas equacoes (1.20) e (1.14), aenergia interna ε por unidade de massa satisfaz

Dt= Tr (σ∇v) + ∇ · (κ∇T ) (4.35)

onde σ = −pI + η(

∇v + (∇v)T − 2∇ · vI/3)

+ ζ∇ · vI e o tensor das tensoes de umfluido Newtoniano, ∇v e a matriz jacobiana do campo das velocidades e κ e a matriz dedifusao, isotropica para os devidos fins: κ = κ0I com ρκ0 a condutibilidade termica.

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4.2 Termohidraulica 93

A temperatura do movimento que pretendemos descrever varia muito pouco e a densi-dade do fluido tem uma variacao igualmente pequena, embora suficiente para que a acaoda gravidade atue como agente neste fenomeno. Vamos, portanto, asumir as seguinteshipoteses:

O termo devido a viscosidade em (4.35) e desprezıvel comparado com o termo deconducao do calor:

[Tr (σ∇v)]

[∇ · (κ∇T )]≪ 1 ;

A energia interna ε satisfazε = cυT

onde cυ e a capacidade calorıfica do fluido a volume especıfico υ = 1/ρ constante.

Aproximacao de Boussinesq A densidade ρ em todos os termos das equacoes de mo-vimento do fluido e constante igual a ρ0 com excecao do termo devido a forcagravitacional, para o qual assumimos a seguinte forma

ρ = ρ(T ) = ρ0 − α(T − T0)

onde α/ρ0 e o coeficiente de expansao volumetrica do fluido com relacao a umatemperatura T0 de referencia.

O movimento de um fluido de Boussinesq, satisfazendo as hipoteses acima, e governadopelas seguintes conjunto de equacoes

Dv

Dt= (1 − α

ρ0(T − T0))g − 1

ρ0∇p+ ν∆v

DT

Dt= χ∆T

∇ · v = 0 (4.36)

onde D/Dt = ∂/∂t + v · ∇, ν = η/ρ0 e χ = κ0/cυ sao, respectivamente, a derivadamaterial, a viscosidade cinematica e a difusibilidade termica.

No experimento de Benard, observa–se o movimento de um fluido viscoso, contido emum recipiente Ω na forma de um paralelepıpedo retangular de dimensoes L1 (largura),L2 (altura) e L3 (profundidade), com o plano da base x2 = 0 e o plano superior x2 = L2

em contato com reservatorios termicos mantidos, respectivamente, a temperatura T1 eT2, T1 > T2:

T (t, x1, 0, x3) = T1

T (t, x1, L2, x3) = T2 (4.37)

t ≥ 0, 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3, e as demais faces Γ′ = Γ\ x2 = 0, x2 = L2 doparalelepipedo, isoladas termicamente:

n · ∇T |Γ′ = 0 . (4.38)

O campo de velocidades satisfaz, alem da impenetrabilidade, a condicao de nao–deslizamento na fronteira Γ:

v|Γ = 0 . (4.39)

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94 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

4.2.2 Solucao Estacionaria

Vamos procurar uma solucao independente do tempo v(x), T (x) e p = p(x) das equacoes(4.36) em Ω com condicoes de fronteira em Γ = ∂Ω dadas por (4.37), (4.38) e (4.39). Amais simples solucao consiste em considerar

v = v(est) ≡ 0.

Esperamos que esta solucao permaneca estavel por perturbacoes se o gradiente de tem-peratura T1 − T2 for pequeno comparado com o produto da viscosidade e difusibilidadeνχ, em unidades convenientes. Examinaremos a estabilidade em detalhes mais adiante.

Pela simetria do problema, T = T (x2) mantem–se constante em cada plano

(x1, x2, x3) , 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3

e as equacoes (4.36) ficam

−(

1 − α

ρ0(T − T0)

)

g − 1

ρ0

∂p

∂x2= 0

− 1

ρ0

∂p

∂x1= 0

− 1

ρ0

∂p

∂x3= 0

χT ′′ = 0 (4.40)

com T (0) = T1 e T (L2) = 0.A solucao da ultima equacao e

T (est)(x2) =x2

L2T2 +

(

1 − x2

T2

)

T1 . (4.41)

As duas equacoes do meio implicam p = p(x2) e substituindo (4.41) na primeira equacao,resulta

p′ = − (ρ0 + α(T1 − T0)) g −α

L2

(T1 − T2)x2

cuja solucao e dada por

p(est)(x2) = p0 − (ρ0 + α(T1 − T0)) gx2 −α

2L2(T1 − T2)x

22 (4.42)

E conveniente reescrever as equacoes (4.36) em torno da solucao estacionaria v =v(est) ≡ 0, p = p(est) e T = T (est). Fazendo a substituicao de variaveis

u = v − v(est)

q = p− p(est)

θ = T − T (est)

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4.2 Termohidraulica 95

em (4.36), levando em consideracao que as equacoes (4.40) e condicoes de fronteiras,satisfeitas por

(

p(est), T (est))

, sao lineares, resulta

Du

Dt=

αg

ρ0

θe2 −1

ρ0

∇q + ν∆u

Dt= χ∆θ +

T1 − T2

L2e2 · u

∇ · u = 0 (4.43)

com

u|Γ = 0

n · ∇θ|Γ′ = 0

θ(t, x1, 0, x3) = θ(t, x1, L2, x3) = 0 (4.44)

t ≥ 0, 0 ≤ x1 ≤ L1 e 0 ≤ x3 ≤ L3. Para a segunda equacao de (4.43), note que

DT

Dt=

Dt+ u · ∇T (est)

=Dθ

Dt+ e2 · uT (est)′

=Dθ

Dt+T2 − T1

L2e2 · u = χ∆θ = χ∆T .

4.2.3 Forma Adimensional das Equacoes

Sejam L, V , τ , e Q quantidades de dimensao de comprimento, velocidade, tempo epressao, nao necessariamente independentes, que caracterizam o problema, e considereas seguintes mudancas para variaveis adimensionais

x = Lx′

u = Uu′

t = τt′

q = Qq′

Multiplicando a primeira equacao em (4.43) por L/U2 = τ 2/L, obtemos

Du′

Dt′=

α

ρ0θ′e2 −∇′q′ + ν ′∆′u′

onde

1 =L

U2g

ν ′ =1

LUν =

1

R

1 =Q

ρ0U2.

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96 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

O numero de Reynolds R foi introduzido na Subsecao 4.1.5 como o parametro que es-tabelece quando a viscosidade e a inercia do fluido sao comparaveis. No experimentode Benard, L2 e um comprimento caracterıstico e devemos usar a primeira relacao paraestabelecer uma escala de velocidade:

U2 =√

gL2 .

Com isso, o numero de Reynolds e as escalas de tempo e pressao ficam determinados por

ν ′ =1

R=

ν√gL

3/22

τ =

L2

g

Q = ρ0gL2 .

Outra quantidade adimimensional, relacionada a conducao do calor pelo fluido, dependedo gradiente T1 − T2 de temperatura entre os planos inferior e superior de Ω. Definindo,

θ = (T1 − T2)θ′

α′ =α

ρ0(T1 − T2)

χ′ =χ

√gL

3/22

temos que as equacoes de Navier–Stokes, na aproximacao de Boussinesq, escrita em quan-tidades adimensionais sao dadas por

D′u′

Dt′= α′θ′e2 −∇′q′ + ν ′∆′u′

D′θ′

Dt′= χ′∆′θ′ + e2 · u′

∇′ · u′ = 0 (4.45)

sujeitas as condicoes de fronteira (4.44) com u e θ substituidos por u′ e θ′.Para abreviar a notacao, daqui para frente omitiremos as linhas em todas as quantida-

des adimensionais nestas equacoes com excessao das constantes α′, ν ′ e χ′ que determi-nam, de fato, o regime do movimento do fluido. Convem ainda introduzir alguns numerosconvencionalmente utilizados na descricao de fenomenos em termohidralica:

Gr =

(

1

ν ′

)2

numero de Grashof

Pr =ν ′

χ′ =ν

χnumero de Prandtl

Ra =1

ν ′χ′ numero de Rayleigh

Finda estas consideracoes, passemos para a questao de estabilidade da solucao tri-vial ( u, q, θ) = (0, 0, 0) correspondente a ausencia de desvio da solucao estacionaria(v(est), p(est), T (est)).

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4.2 Termohidraulica 97

4.2.4 Estabilidade da Solucao Trivial

Para analisar a estabilidade de uma solucao estacionaria deve–se investigar em quaiscondicoes as solucoes dependentes do tempo de uma dada equacao sao levadas ao estadoestacionario desejado. E, em geral, mais facil estudar a estabilidade por pequenos desviosdo que a partir de uma condicao inicial arbitraria. O objetivo de uma analise dita localconsiste em encontrar as direcoes e correspondentes taxas de convergencia para a solucaoestacionaria. Em uma linguagem mais tecnica, traduzimos como encontrar as autofuncoese respectivos autovalores das equacoes linearizadas em torno da solucao estacionaria. Asdificuldades inerentes ao carater vetorial das equacoes (4.45), nos obrigam a postergareste tipo de analise. E, no entanto, instrutivo investigar a estabilidade global da solucaotrivial, mesmo que para isso faz–se necessario recorrer a uma desigualdade para se esta-belecer a dominancia da matriz Jacobiana ∇u do campo de velocidades sobre o campode velocidades u.

Multiplicando a segunda equacao em (4.45) por θ, integrando em seguida sobre Ω,somos levado a igualdade

Ω

(

∂θ

∂t+ u · ∇θ

)

θd3x =

Ω

(χ∆θ + u2) θd3x (4.46)

que deve ser trabalhada com a finalidade de se investigar a estabilidade. Comecando pelolado esquerdo desta equacao, temos

Ω

∂θ

∂tθd3x =

1

2

Ω

∂tθ2d3x =

d

dt

1

2

Ω

θ2d3x

e, usando a incompressibilidade (terceira equacao em (4.45)) e o teorema da divergencia,

Ω

(u · ∇θ) θd3x =1

2

Ω

u · ∇θ2d3x

=1

2

Ω

∇ ·(

θ2u)

d3x− 1

2

Ω

(∇ · u) θ2d3x

=1

2

Γ

θ2u · ndS = 0

devido a condicao de fronteira u|Γ = 0. Para o primeiro termo do lado direito de (4.46),por uma estrategia similar, temos

Ω

(∆θ) θd3x =

Ω

(∇ · ∇θ) θd3x

=

Ω

∇ · (θ∇θ) d3x−∫

Ω

∇θ · ∇θd3x

=

Γ

θn · ∇θdS −∫

Ω

|∇θ|2 d3x

= −∫

Ω

|∇θ|2 d3x (4.47)

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98 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

pois, pelas condicoes de fronteira (4.44), θ = 0 nas faces inferior e superior de Γ en·∇θ = 0 nas demais faces laterais. Neste ponto faremos uso da desigualdade de Poincare

Ω

θ2d3x ≤∫

Ω

|∇θ|2 d3x

valida para toda funcao θ = θ(t,x) definida em R+ × Ω a valores reais, continuamente

diferenciavel e tal que

Ω

θd3x = 0.

Substituindo estes resultados em (4.46), obtemos

d

dt

1

2

Ω

θ2d3x ≤ −χ′∫

Ω

θ2d3x+

Ω

u2θd3x . (4.48)

Tomando, agora, o produto interno da primeira equacao em (4.45) por u, integrandoem seguida sobre Ω, obtemos uma igualdade similar a (4.46)

Ω

(

∂u

∂t+ u · ∇u

)

· ud3x = α′∫

Ω

u2θd3x+

Ω

(−∇q + ν ′∆u) · ud3x (4.49)

cujo lado esquerdo pode ser tratado de maneira analoga a integral anterior:∫

Ω

∂u

∂t· ud3x =

1

2

Ω

∂t|u|2 d3x =

d

dt

1

2

Ω

|u|2 d3x

e∫

Ω

(u · ∇u) · ud3x =1

2

Ω

u · ∇ |u|2 d3x

=

Ω

∇ ·(

|u|2 u)

d3x−∫

Ω

(∇ · u) |u|2 d3x

=

Γ

|u|2 u · ndS = 0

devido a condicao de fronteira u|Γ = 0. Para o segundo termo do lado direito de (4.49),temos

Ω

∇q · ud3x =

Ω

∇ · (qu) d3x−∫

Ω

q (∇ · u) d3x

=

Γ

qu · ndS = 0

devido a u|Γ = 0. Empregamos para o ultimo termo um procedimento analogo a (4.47):∫

Ω

(∆u) · ud3x =

Ω

(∇ · ∇u) · ud3x

=

Ω

∇ · ((∇u)u) d3x−∫

Ω

(∇u) · (∇u) d3x

=1

2

Γ

n · ∇ |u|2 dS −∫

Ω

|∇u|2 d3x

= −∫

Ω

|∇u|2 d3x ≤ −∫

Ω

|u|2 d3x

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4.2 Termohidraulica 99

devido a u|Γ = 0 e pela desigualdade de Poincare com

Ω

ud3x = 0. Substituindo estes

resultados em (4.49), resulta

d

dt

1

2

Ω

|u|2 d3x ≤ −ν ′∫

Ω

|u|2 d3x+ α′∫

Ω

u2θd3x (4.50)

Combinando as desigualdades (4.48) e (4.50) com uma desigualdade elementar

Ω

u2θd3x ≤

Ω

|u| |θ| d3x

(note, para isso, que |u|2 = u21 + u2

2 + u23 ≥ u2

2) concluimos

d

dt

Ω

1

2

(

θ2 + |u|2)

d3x ≤∫

Ω

(

−χ′θ2 − ν ′ |u|2 + (1 + α′) |u|2 |θ|)

d3x . (4.51)

Introduzindo o vetor

Θ =

(

|θ||u|2

)

Θ2 = Θ · Θ = θ2 + |u|2

e a matriz

A =

−χ′ 1 + α′

21 + α′

2−ν ′

a desigualdade (4.51) pode ser reescrita em uma forma mais compacta

d

dt

Ω

1

2Θ2d3x ≤

Ω

Θ · AΘd3x

e juntamente com o seguinte resultado em algebra linear

Proposicao 4.45Θ · AΘ ≤ λ+Θ · Θ

onde

λ± =−1

2(χ′ + ν ′) ± 1

2

(χ′ − ν ′)2 + (1 + α′)2 (4.52)

sao os autovalores de A.

obtemos para a funcao (funcional de Lyapunov)

U(t) :=

Ω

1

2Θ2d3x =

Ω

1

2

(

θ2 + |u|2)

d3x

uma cota superior para sua variacao

U ≤ 2λ+U (4.53)

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100 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

pela qual pode–se deduzir condicoes para que a solucao trivial seja estavel.

Prova da Proposicao. A e uma matriz real simetrica e, portanto, diagonalizavel poruma transformacao de similaridade ortogonal. Os autovalores e autovetores sao obtidosda equacao

−χ′ 1 + α′

21 + α′

2−ν ′

(

1a

)

= λ

(

1a

)

que e equivalente ao par de equacoes

−χ′ +1 + α′

2a = λ

1 + α′

2− ν ′ = λa (4.54)

Resolvendo a equacao para a:

a2 − 2(χ′ − ν ′)

1 + α′ a− 1 = 0

resulta

a± =χ′ − ν ′

1 + α′ ±

(

χ′ − ν ′

1 + α′

)2

+ 1

que ao substituir na primeira equacao em (4.54) leva a (4.52) (note que λ− ≤ λ+).Definimos, em seguida, a matriz ortogonal X = [x+x−] com os vetores

x± =1√

1 + a±

(

1a±

)

formando as colunas de X. Pode–se verificar que XT = X−1 e

D =

(

λ+ 00 λ−

)

= X−1AX .

Definindo Θ′ = X−1Θ, temos

Θ · AΘ = XΘ′ ·AXΘ′

= XΘ′ ·XDΘ′

= Θ′ ·XTXDΘ′

= Θ′ ·DΘ′

= λ+ (Θ′1)

2+ λ− (Θ′

2)2

≤ λ+Θ′ · Θ′ = λ+Θ · Θ

2

Passemos a integracao da desigualdade (4.53). Assumindo U 6= 0, a equacao (4.53)pode ser dividida por U e integrando ambos os lado, resulta

∫ t

0

U/U ds ≤ 2λ+

∫ t

0

ds

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4.3 Camada Limite 101

Note que a desigualdade e preservada devido a U ser positivo. A desigualdade e tambempreservada tambem por exponenciacao:

exp

(

∫ U(t)

U(0)

dU/U

)

≤ exp (2λ+t) ,

de onde se concluiU(t) ≤ U(0)e2λ+t

e a funcao U(t) tende a zero quando t→ ∞ se λ+ for negativo.O autovalor λ− e, em vista da expressao (4.52), claramente negativo enquanto que o

autovalor λ+ e negativo se, e somente se,

(χ′ + ν ′)2 − (χ′ − ν ′)

2> (1 + α′)

2

ou, equivalentemente, se e somente se

(1 + α′)2

4χ′ν ′< 1 . (4.55)

Resta–nos concluir que a solucao u(t,x) e θ(t,x) das equacoes (4.45) sujeitas ascondicoes de fronteira (4.44) e inicial u(0,x) = u0(x) e θ(t,x) = θ0(x) arbitrarias con-verge, sob a condicao (4.55), para a solucao trivial u = 0 e θ = 0. Admitindo que assolucoes sejam regulares para todo t ≥ 0 (continuamente diferenciaveis o numero de vezesexigido pelas equacoes), temos

limt→∞

U(t) = limt→∞

Ω

1

2

(

θ2 + |u|2)

d3x = 0

e o integrando de uma integral de funcoes positivas tendendo a 0 se anula no limite:

limt→∞

|θ| = 0, limt→∞

|u| = 0

por continuidade.

4.3 Camada Limite

Considere as equacoes de Navier–Stokes para um fluido incompressıvel homogeneo (comρ0 = 1) escrita em quantidades adimensionais:

Dv

Dt= −∇p +

1

R∆v

∇ · v = 0 (4.56)

em um domınio Ω de R3, com v|Γ = 0 na fronteira Γ de Ω, quando o numero de ReynoldsR e muito grande. Perguntamos como difere o movimento de um fluido governado por(4.56) de um governado pelas equacoes de Euler para um fluido ideal (com ρ0 = 1):

Dv

Dt= −∇p

∇ · v = 0 (4.57)

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102 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

no mesmo domınio Ω, sujeita a condicoes de fronteira (n · v) |Γ = 0.Se em t = 0 o campo de vorticidades ξ = ∇×v = 0 para todo x ∈ Ω, o movimento de

um fluido ideal permanece irrotacional para t > 0, e o fluxo (de trajetorias das partıculasdo fluido) gerado pelo campo de velocidades v e, consequentemente, um fluxo potencial:v = ∇ϕ para uma funcao ϕ harmonica (veja Proposicao 3.27). Tomando o rotacional de(4.56), obtemos, de maneira analoga a (3.2), uma equacao para vorticidade

∂ξ

∂t+ ∇× (ξ × v) =

1

R∆ξ (4.58)

de um fluido real incompressıvel em Ω. Note que ξ ≡ 0 e uma solucao de (4.58) parat ≥ 0, porem a equacao (4.56) e parabolica (primeira ordem em t e elıptica na variavelx) e, como veremos no exemplo a seguir, a condicao de fronteira v|Γ = 0 e, de certamaneira, incompatıvel com um campo de velocidades irrotacional na vizinhanca de Γ.

Argumentaremos a seguir que a presenca do termo1

R∆v em (4.56), e a mudanca na

condicao de fronteira, afeta

1. o movimento governado por (4.57) drasticamente em uma regiao cuja distancia aΓ e menor que δ = O(1/

√R);

e esta regiao modificada, tambem denominada camada limite,

2. pode separar da fronteira Γ e

3. atua como fonte de vorticidade.

Embora a camada limite torna-se arbitrariamente pequena com o aumento de R, osefeitos 2. e 3. persistem mesmo no limite.

4.3.1 Um Exemplo Simples

Considere um movimento planar no semi–plano Ω = −∞ < x1 <∞, 0 < x2 <∞ esuponha que Γ = x2 = 0 seja uma fronteira rıgida e a velocidade em x2 = ∞ paralelaao eixo 1:

limx2→∞

v(t, x1, x2) = v0e1

Tentaremos encontrar uma solucao em Ω da forma

v(t, x1, x2) = (v1(t, x1, x2), 0)

p(t, x1, x2) = p0

A unica solucao v(E) das equacoes de Euler (4.57) de acordo com estas exigencias euniforme:

v(E)(t, x1, x2) = v0e1

Note que n · v|Γ = v2(t, x1, 0) = 0 e satisfeita por hipotese e esta condicao basta para asequacoes (4.57).

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4.3 Camada Limite 103

Pela equacao da continuidade,

∇ · v =∂v1

∂x1= 0

v1 = v1(t, x2) independe de x1 e as equacoes (4.56) se reduzem a equacao do calor

∂v1

∂t=

1

R

∂2v1

∂x22

(4.59)

em t > 0 e 0 < x2 <∞ sujeita a condicao de fronteira

v1(t, 0) = 0

v1(t,∞) = v0 .

Vamos usar o fato que a equacao (4.59) e invariante pela mudanca de variaveis

t′ =t

T

x′2 =x2

L

se T = L2. Escrevendo v′1(t′, x′2) = v1(t, x2), temos

∂v′1∂t′

=1

R

∂2v′1∂x′22

e a solucao de (4.59) e uma funcao de x2/√t:

v1(t, x2) = v0f(η)

η = x2

R

2t.

Aplicando a regra da cadeia,

∂v1

∂t=

−η2tv0f

1

R

∂2v1

∂x22

=1

2tv0f

′′

a equacao (4.59) pode ser escrita como uma equacao ordinaria

f ′′ + ηf ′ = 0 (4.60)

satisfazendo f(0) = 0 e f(∞) = 1. Integrando duas vezes, temos

f ′(η) = B exp

(−η2

2

)

f(η) = f(0) +B

∫ η

0

exp

(−ξ2

2

)

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104 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

onde B e fixado por

B

∫ ∞

0

exp

(−ξ2

2

)

dξ = B

π

2= 1

de onde se conclui que B =√

2/π e

v1(t, x2) = 2v0erf

(

x2

R

2t

)

com a funcao erro definida por1

erf (η) =1√2π

∫ η

0

exp

(−ξ2

2

)

dξ .

A largura δ da camada limite deste problema para t fixo e obtida observando, peladefinicao e tabela a seguir,

2erf (1) = 0.682 69

2erf (2) = 0.954 50

2erf (3) = 0.997 3...

2erf (∞) = 1

que a funcao erro converge muito rapidamente para o ponto de saturacao. Excluindo umavizinhanca da fronteira de largura δ = O(1/

√R), v1(t, x2) e praticamente igual a v0 e

nao se distingue de v(E) (veja Figura 4.1).A largura δ pode tambem ser estimada pela derivada da inversa v−1

1 de v1 em v1 = 0:

∂v−11

∂x2(t, 0) = 1

/

∂v1

∂x2(t, 0) =

1

v0f ′(0)

2t

R=

1

v0

πt

R.

Separacao da fronteira. Explicaremos por um argumento intuitivo os mecanismos quelevam a camada limite a separar–se da fronteira Γ pela acao da viscosidade.

Considere o movimento irrotacional de um fluido ideal passando por um cilındro naorigem de raio a com o campo de velocidades distante da origem uniforme. Na repre-sentacao planar do movimento a superfıcie do cilındro e uma circunferencia Γ formadapor duas linhas de correntes (semi–cırcunferencia superior e inferior) divididas por doispontos de estagnacao A e C.

De acordo com a equacao de Bernoulli (com ρ0 = 1), a quantidade

H = p+1

2|v|2

1Note que a funcao erro adotada difere um pouco da definicao mais comumente encontrada nos textos erf(η) =`

1/√

π´

Z η

0

exp`

−ξ2´

dξ.

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4.3 Camada Limite 105

0.2 0.4 0.6 0.8 1v1v0

0.5

1

1.5

2

x2!!!!!!!!!!!!!!2 t R

FIGURE 4.1. Perfil do campo de velocidades proximo a fronteira Γ.

e mantida constante ao longo das linhas de corrente. Aplicando esta equacao em Γ, umapartıcula do fluido partindo do ponto de estagnacao A com velocidade 0 e pressao p0,atinge um ponto intermediario B sobre a circunferencia com velocidade maxima v1 epressao mınima p1 retornando, em seguida, ao ponto de estagnacao C com velocidade 0e pressao p0. Sua trajetoria se assemelha a de uma partıcula sujeita a um potencial cujoperfil e uma senoide, movendo–se entre dois maximos consecutivos.

Considere agora o movimento de um fluido real passando pelo mesmo cilındro. Devidoao efeito da viscosidade e mudanca na condicao de fronteira, esperamos que este movi-mento, com excecao de uma camada limite formada na proximidade de Γ, se assemelheao de um fluido ideal irrotacional. Ocorre, porem, que ao formar–se a camada limite estaacaba favorecendo a separacao da fronteira na parte posterior do cilındro. O argumentopara isso e o seguinte.

Primeiramente, notamos que o ponto de estagnacao C antecede o ponto diametralmenteoposto a A. Fazendo uso da analogia de uma partıcula sujeita a um potencial senoidal, apresenca da viscosidade no fluido acrescenta um termo dissipativo de friccao e a energiacinetica maxima da partıcula no ponto B nao e mais suficiente para leva–la ao segundomaximo da senoide, antecipando o ponto de estagnacao C. A camada limite separa dafronteira neste ponto, pois o fluxo de partıculas do fluido na camada logo acima do arcoAC segue uma trajetoria para o infinito, evitando a regiao posterior do cilındro.

O argumento capaz de descrever intuitivamente o efeito de separacao nao e matema-ticamente correto. A presenca da viscosidade nao somente freia as partıculas proximasa fronteira Γ como tambem destroi a validade do Teorema de Bernoulli! Como os fa-tos experimentais confirmam a separacao da camada limite, deve ter algo que possa seraproveitavel.

Vorticidade. E facil de se convencer que a circulacao γC =

C

v · dx e estritamente

negativa em qualquer circuito C na camada limite do exemplo da Subsecao 4.3.1. Devido

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106 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

ao gradiente nao nulo do campo de velocidade na direcao paralela ao eixo 2, a contribuicaopara a circulacao e maior nas partes de C mais afastadas de Γ do que na partes maisproximas a Γ. Pelo mesmo motivo, a circulacao γC e nao nula na camada limite formadaproxima a fronteira Γ do cilındro tendo o sinal negativo na parte superior e positivo naparte inferior.

Considere no lugar do cilındro um obstaculo aerodinamico como, por exemplo, o foliocujo perfil Γ e a imagem da circunferencia pelo mapa conforme (3.32). Na Teoria deKutta–Joukowski ajustamos a singularidade do mapa exatamente sobre o ponto de es-tagnacao C posterior. Este ajuste faz com que a linha de corrente partindo de C para oininito divida as partıculas fluindo acima e abaixo desta linha e a velocidade do fluidoem Γ seja praticamente igual a velocidade maxima v1 por toda cauda do folio.

O argumento utilizado para a camada limite separar da fronteira em um fluido realpassando por um obstaculo nao se aplica ao folio pois a presenca da viscosidade naodivide e traz para frente o ponto de estagnacao C como anteriormente.

Permanecendo a camada limite proxima a Γ, procuramos entender a origem da forca F

de sustentacao exercida por um fluido ideal sobre um folio, dada pela formula de Blassius,como um processo limite. Pelo Teorema 3.39 F e proporcinal a circulacao γ e para haversustentacao γ deve ser negativa. Na Teoria de Kutta–Joukowski γ depende do angulo deataque α (veja equacao (3.34)) de tal forma que se α > 0 o comprimento de arco ACentre os pontos de estagncao medido por cima do folio e maior que o comprimento dearco por baixo. A camada limite da origem, desta maneira, a um excesso de circulacaonegativa que persiste mesmo no limite R→ ∞ e coincide com γ.

4.3.2 Interpolacao da Camada Limite

Dado que o movimento de um fluido real em Ω difere do movimento de um fluido idealem uma camada limite proxima a fronteira Γ, e considerando que sao raras as solucoesexatas das equacoes (4.56), a pergunta natural a fazer e se nao poderiam ser obtidasdas equacoes de Euler por perturbacao. Nao ha esperanca de poder aplicar uma teoriaperturbativa usual visto que o termo de perturbacao a (4.57) muda de primeira parasegunda ordem estas equacoes. Nesta subsecao empregaremos a tecnica de perturbacaosingular em um exemplo simples de equacao diferencial ordinaria.

Considere a equacaoεu′′ + xu′ − xu = 0 (4.61)

no domınio 0 < x < 1 com condicoes de fronteira

u(0) = 0

u(1) = e .

A teoria de perturbacao usual recomenda procurar uma solucao na forma

u(x) = u0(x) + εu1(x) + · · ·Substituindo na equacao, temos

u′0 − u0 = 0

u′′0 + xu′1 − xu1 = 0... =

...

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4.3 Camada Limite 107

cuja solucao e

u0(x) = Aex

u1(x) = (B − A lnx) ex

... =...

Notamos que nao e possıvel impor as condicoes de fronteira na ordem dominante. Ouu0 satisfaz u0(1) = e com A = 1 ou satisfaz u0(0) = 0 com A = 0, sendo a segundasolucao identicamente nula e, portanto, sem interesse.

Afim de tratar a equacao na vizinhanca da origem, devemos estabelecer uma escala ltal que o primeiro termo da equacao seja da ordem do segundo termo. Temos

u′ ∼ u(l) − u(0)

l=

1

lu(l)

u′′ ∼ u(l)/l − u(0)/l

l=

1

l2u(l)

e, portanto, os dois primeiros termos se comparam

εu′′ ∼ ε

l2u(l) = l

1

lu(l) ∼ xu′

se l = O(√ε). Note que o terceiro termo e desprezıvel nesta escala

xu ∼ lu(l) = O(√ε)

Definindo

φ(y) = u(x)

para y = x/√ε a equacao (4.61) reduz a

φ′′ + yφ′ −√εφ = 0 (4.62)

que pode ser tratada por perturbacao. Substituindo

φ(y) = φ0(y) +√εφ1(y) + · · ·

em (4.62), temos

φ′′0 + yφ′

0 = 0

φ′′1 + yφ′

1 − yφ0 = 0... =

...

A equacao do termo dominate sujeita a φ0(0) coincide com (4.60) e, portanto,

φ0(y) = B

∫ y

0

exp

(−ξ2

2

)

Page 108: Notas de Mecˆanica dos Fluidos - USPfig.if.usp.br/~marchett/fluidos/mecflu-08.pdfno fato da Teoria de Darrieus–Landau sobre combust˜ao reduzir equac¸˜oes hidrodinˆamicas em

108 4. Fluidos Reais: Algumas Aplicacoes

onde B e uma constante a ser fixada pela seguinte condicao

c = limy→∞

φ0(y) = limx→0

u0(x) = 1

de onde se conclui que B =√

2/π e a solucao interpolante de ordem mais baixa e dadapor

u(interp)0 (x) = u0(x) + φ0(x/

√ε) − c

= ex + 2erf

(

x√ε

)

− 1