Ângelo R. T. Magalhães A ERA do CAOSA ERA do CAOS . 2 “A esperança e o amor é o que nos une e...
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Ângelo R. T. Magalhães
A ERA do
CAOS
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“A esperança e o amor é o que nos une e nos move, para sobrevivermos ao
presente e construirmos o futuro.” Ryan Snyder
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Parte1:
A Submissão dos Inocentes
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I - Prólogo
O mundo em que hoje habitamos é pequeno demais para
tamanha maldade e ganância a que assistimos diariamente. As
constantes lutas pelos recursos do planeta e as imensas ações de
imposição das forças por parte de vários países, facilmente quebram
as barreiras do aceitável. Por estas e por muitos outros milhares
de razões, a Terceira Guerra Mundial era inevitável.
A 30 de Julho de 2017, o míssil K200-N1, proveniente da
Coreia do Norte, durante um teste, perdeu o seu rumo e atingiu
violentamente a cidade de Manila, na República das Filipinas. Mais de
vinte mil inocentes perderam as suas vidas.
Desde esse fatídico dia, o mundo ficou dividido em dois: de um
lado, os países que repudiavam o uso de armas químicas e nucleares
e que condenavam o ataque a Manila, pois suspeitavam que aquele
“acidente”, como tinham transmitido os norte-coreanos ao mundo,
tinha sido um ataque planeado com o objetivo de desencadearem a
guerra. Do outro lado, a Coreia do Norte e a Rússia afirmavam que
esse tipo de armas poderiam ser simplesmente uma vantagem nas
batalhas contra os inimigos, uma forma de os intimidarem, mas
também de os alertarem para os seus potenciais. Os países do Médio
Oriente concordavam com o segundo grupo, talvez porque os
Estados Unidos da América e a Europa sempre foram os seus
principais inimigos.
A 21 de Março de 2018, depois de muitas e longas cimeiras
urgentes e ultra-secretas entre os EUA e os seus aliados, mas também
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do outro lado do globo entre os países inimigos, entre dezenas de
reuniões urgentes de Estado, a paciência tinha chegado ao limite.
Os principais jornais mundiais cobriam as primeiras páginas
com títulos destacados em letras grandes e negras, anunciando o pior,
enquanto os canais de televisão, a meio das suas programações diárias,
cortavam as emissões e transmitiam novos detalhes aos cidadãos
sobre o que se estaria a passar. O povo estava assustado. O nosso
planeta, como o tínhamos conhecido, estava prestes a mudar. Um
novo ciclo iria começar. Uma nova porta não se ia abrir, mas sim
fechar. A guerra infelizmente começou, e a Terra parou para assistir.
Nos primeiros dias, milhares de bombas nucleares e químicas
explodiram nas principais cidades europeias e norte-americanas,
criando cogumelos gigantes de nuvens tóxicas que se ergueram até ao
firmamento, visíveis a várias centenas de quilómetros.
Nova Iorque, Washington DC, Las Vegas, São Francisco e
Chicago foram as cidades mais atingidas nos Estados Unidos. No
resto do mundo, Londres, Xangai, Tóquio, Paris, Madrid, Lisboa,
Bruxelas, Amesterdão, Roma, Berlim, Istambul e São Paulo, entre
muitas outras, não resistiram e ficaram reduzidas a escombros. A vida,
nessas cidades, acabara por muitas centenas de anos devido, à elevada
concentração de radiação que aniquilara por completo as suas
populações.
No entanto, o inimigo não tinha ficado impune. Mísseis
teleguiados, mas não nucleares, colidiram com as principais cidades
inimigas. Não houve tempo para evacuações, a guerra tinha
começado num simples piscar de olhos.
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Milhares de outras cidades em redor do globo foram também
violentamente atacadas, sem remorsos. Contavam-se pelos dedos as
cidades intactas. A guerra podia apenas ser entre alguns países, mas
todos pagaram o seu terrível preço.
Conforme os anos passaram, a guerra continuou, e a Terra
tornou-se num lugar hostil para viver. No céu, outrora azul, pairavam
monstruosas e espessas nuvens cinzentas. O elevado fumo
concentrado na atmosfera terrestre cobriu completamente a luz solar.
Os ataques que não atingiam terra firme, embatiam nas águas
profundas dos oceanos e criavam tsunamis que devastaram as zonas
costeiras mais próximas. Alguns portos e cidades costeiras de todo o
mundo ficaram completamente submersos.
As comunicações foram cortadas e, atualmente, só os exércitos
podiam comunicar entre si, por via dos satélites de emergência. Esses
mesmos satélites viriam a falhar, meses depois, devido à falta de
manutenção.
Na vida selvagem, muitas espécies extinguiram-se, outras
sofreram graves mutações devido à radiação e, neste momento,
muitas delas estavam mesmo no topo da cadeia alimentar. O predador
não era mais o ser humano.
Durante os doze anos em que o mundo esteve em guerra,
quatro vulcões entraram em atividade. Etna (Itália), Ojos del Salgado
(Chile), Monte Érebo (Ilha de Ross, Antártida) e Kilauea (EUA). A
destruição que eles proporcionaram jamais se testemunhara em
centenas, ou talvez, milhares de anos. A lava expelida das suas
profundezas queimara tudo aquilo em que tocou, avançando também
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rapidamente pelas encostas, criando drásticas alterações no solo
terrestre. Os vulcões, ainda nos dias de hoje continuam em constante
atividade, libertando milhares de toneladas de fumo para a atmosfera,
transformando-a no purgatório dos sobreviventes e onde os rios de
lava continuam a descer vagarosamente das suas colinas negras a
moldarem novos horizontes. Alguns rumores diziam que eles se
revoltaram quando começara a guerra, outros diziam que as ondas de
choque que as bombas libertavam, ao embater no solo, os acordara,
mas um rumor era inquestionável: Etna, Monte Érebo, Kilauea e
principalmente Ojos del Salado, que se encontrava adormecido há
1300 anos, acordaram todos do sono, com diferença de poucas
semanas. A coincidência, simplesmente, era muita. A Mãe Natureza
revoltara-se.
No dia 6 de Maio de 2030, a Terceira Guerra Mundial
finalmente conheceu o seu fim. Os governos caídos não tinham
ninguém na liderança e os países, assim afetados, caíram em desgraça,
ficando ao abandono. Ninguém se rendeu, ninguém venceu e
ninguém foi vencido. A guerra fora brutal demais e impiedosa e as
baixas foram algo nunca imaginado: cerca de quatro biliões de vidas
perdidas. Quatro biliões! Não havia espaço suficiente nos cemitérios
para os vivos sepultarem os mortos. As valas eram, então, o seu
destino mais comum.
Os poucos milhares de soldados que ainda restavam nos
campos de batalha, retiraram-se, e foram levados para casa, mas já era
tarde demais. Nas suas mentes tinham-se criado raízes negras. Raízes
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que dominaram os seus cérebros, afetando-os para sempre. A guerra
tinha sido algo verdadeiramente traumatizante para eles.
Na América, segundo murmúrios, esses mesmos soldados
foram levados para estabelecimentos secretos, abandonando as suas
famílias misteriosamente. Eram marcas daquela a que se chamou “A
Guerra do Terceiro Fim”. Mas o “Fim” ficara apenas no seu nome.
Milhares de sobreviventes ainda se escondiam em abrigos no subsolo.
Milhares vagueavam agora ao sabor da nova aragem. Milhares entre
milhões tinham sobrevivido.
A Terra tinha persistido, mas uma nova era despertara.
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II
Ryan acordou sobressaltado. O tal sonho, mais uma vez, tinha
voltado para atormentar a sua mente frágil de quem tinha perdido
tudo nos últimos tempos. O sonho era sempre o mesmo; deitado na
sua cama, com os braços cruzados atrás das costas, olhava fixamente
o teto. A luz do candeeiro que, sob a mesa de cabeceira, cobria uma
face da parede, expandia-se, e cobria também metade do rosto e dos
braços de Ryan. A outra metade do seu corpo estava coberta pela
escuridão que pairava no quarto. A certo momento, uma mão, branca
como a primeira neve de inverno, pousava levemente sob o seu peito.
Ryan olhava para ela e sorria.
Subitamente, acordava nesse exato momento. Certas noites ao
acaso, o mesmo sonho voltava sem lhe dar explicações óbvias. Não
era um sonho bom, ele sabia disso, e os seus olhos, com uma leve
sombra negra, eram a prova.
Após lavar a cara e arranjar o seu curto cabelo despenteado nas
águas de um pequeno ribeiro, a pouca distância de onde pernoitara,
os seus olhos cor-de-avelã brilharam como pequenas pedras de
turmalina castanha, que assentavam na perfeição no seu rosto jovem
de dezassete anos. A sombra de um bigode e uma pequena pera de
pelos jovens acabados de brotar, faziam-no parecer mais velho do que
realmente era. A sua camisa azul-marinho com as mangas dobradas
até aos cotovelos e com dois botões desabotoados escondia-lhe os
abdominais e bíceps perfeitos. Afinal, tinha tempo para fazer
exercício. O mundo tinha perdido os seus maiores interesses.
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Após trinta minutos a fazer exercícios para manter a boa forma
e enaltecer o espírito, preparando-se para mais um dia de luta
constante pela sobrevivência e para procurar o seu pai, Ryan
abandonou o seu acampamento noturno e seguiu viagem para este.
Na alça direita da sua mochila encontrava-se presa uma pequena
bússola que o orientava na sua viagem. Dentro da mochila levava
apenas uma camisola para troca, uma navalha pequena, uma garrafa
de água, uma lata de sardinhas, um mapa e um isqueiro, além de um
arquivo. Confirmou. Era o essencial. Se levasse peso desnecessário,
gastava mais energias, se gastasse mais energias ficaria mais fraco, e se
ficasse mais fraco, isso poderia significar o fim da sua viagem e, muito
provavelmente, a sua morte. O mundo, nestes novos tempos, era
muito duro para os mais frágeis e, em qualquer lugar, abandonados,
viam-se corpos que não eram reclamados por ninguém. No entanto,
a inteligência, a audácia e a destreza eram as suas melhores aliadas.
Nos dias de hoje não havia transportes aéreos nem terrestres,
pois a gasolina extinguira-se com a falta de manutenção das
plataformas petrolíferas, e a energia era uma pequena raridade. Os
automóveis, aviões e comboios estavam todos ao abandono,
pressupunha ele. A única solução era mover-se pelos seus próprios
pés. Deslocar-se pelas estradas que uniam as cidades estava fora de
questão, porque se encontravam em mau estado e eram
constantemente vigiadas pelos stalkers. Pelas florestas, bosques e
caminhos de terra alternativos, a segurança aumentava, mas os
perigos espreitavam sempre de todos os lados. Corvos espiavam nos
galhos das árvores, enquanto até o vento tinha ouvidos. Era
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impossível manter-se invisível, mas Ryan sabia fazer bem o seu
trabalho. Ocultara os seus rastos desde o início da viagem. Era um
jovem inteligente, porém ainda muito tenro e emocionalmente
instável.
Após quatro horas de caminhada sob um calor abafado, o rapaz
parou num pomar de nogueiras. Podia escolher, entre elas, a que tinha
a maior sombra, mas a maioria já estava despida. Era outono e o
inverno já se avistava no horizonte. As longínquas montanhas, a
norte, trajavam já um branco puro. Pousou a mochila e descansou.
Bebeu um trago de água. Não deixou que nenhuma gota lhe escapasse
da boca, pois a água, nesse momento, era demasiado escassa para tais
gestos consumistas. Subitamente, tirou uma fotografia do bolso
esquerdo da sua camisa e recordou tristemente os últimos momentos
que deram origem à sua demanda.
Dallas, no estado do Texas, tinha sido violentamente
bombardeada. Ryan acordou sobressaltado com o primeiro ataque e,
ainda meio ensonado, estranhou ouvir tanto barulho vindo de fora de
sua casa, mas, dentro dela, um silêncio fora do comum. Levantou-se
e, esfregando os olhos com a palma das mãos, calçou os seus chinelos
aos losangos verdes e castanhos e foi até à janela do seu quarto.
Depois de levantar a persiana, ficou perplexo ao ver a cidade em
alvoroço. Pessoas gritavam, corriam, enchiam os carros de malas e
partiam apressadamente. Perto dali, uma grande nuvem de fumo
elevava-se e escurecia ainda mais o céu repleto de nuvens de todos os
tons de cinza.
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– Pai? – elevou a voz para se fazer ouvir.
Não obteve resposta. Estranhou. Deixou a janela e dirigiu-se ao
quarto do seu progenitor. Abriu a porta e viu a cama por fazer, com
os lençóis remexidos e puxados para trás, como se tivesse saído à
pressa. Ryan começava a ficar preocupado e sobressaltado. Desceu as
escadas e percorreu o resto da casa, não encontrando sinal do seu
progenitor.
– Pai? Pai? – gritou. O seu coração começava a palpitar
freneticamente.
De súbito, o seu telemóvel começou a tocar. Estava no seu
quarto e Ryan imediatamente o escutou, tendo ido num ápice até
onde se encontrava. Provavelmente, seria o seu pai a avisá-lo do que
se estaria a passar. Subiu as escadas e dirigiu-se logo ao seu quarto.
Quando lá chegou, pegou no seu telemóvel, que estava pousado sobre
a mesinha de cabeceira, e viu que não era Jeff, mas sim Elizabeth, a
sua namorada. Andavam juntos na escola e já namoravam há pouco
mais de um ano.
– Beth? O que está a acontecer? – perguntou-lhe.
– Ryan! Os meus pais disseram que a cidade esta a ser atacada.
– disse a rapariga com uma voz delicada, mas ofegante. – Eles vão
agora deixar a cidade e eu vou ter de ir com eles. Por favor, vem
rápido, quero-me despedir de ti. – o choro e o anseio de Beth era
evidente naquele telefonema.
– Já vou para aí. – Ryan desligou a chamada e apressou-se a
vestir umas calças de fato de treino e a calçar o primeiro par de
sapatilhas que lhe apareceram à frente.
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Desceu novamente as escadas e saiu rapidamente até à rua. A
casa de Elizabeth ficava dois quarteirões à frente da sua. Uma sirene
de emergência ecoava por toda a cidade, confirmando o que mais se
temia: Dallas estava a ser atacada.
Enquanto corria desesperado, Ryan podia testemunhar o
pânico que a guerra causara na sua cidade natal. Tinha nascido e sido
criado ali. Conhecia praticamente todas as pessoas na sua zona de
habitação e agora podia vê-las ignorando-o e fugindo, como se não o
conhecessem. Os carros eram sobrelotados com mercadorias, pois
não tencionavam voltar, pelo menos não tão cedo.
A fumaça do primeiro ataque espalhara-se por todas as ruas
como uma névoa mortal. Quando Ry se preparava para entrar na rua
principal, pôde ver a casa de Beth, ao longe. Um som ensurdecedor
fez-se sentir por cima de si, nesse momento, e outro ataque
aconteceu. A bomba embateu no solo, apanhando a casa de
Elizabeth. O chão estremeceu e o impacto foi tão forte que Ryan foi
projetado pela onda de choque alguns metros para trás, ficando
durante um longo período surdo e atordoado, talvez inconsciente.
Destroços caíam perto de si, enquanto outra nuvem de fumo e poeira
escurecia mais o céu, turvando a sua visão.
Ryan levantou-se lentamente e, ainda meio estonteado,
continuou a andar, tapando a boca com a camisola que trazia vestida.
Passou por entre a densa nuvem de poeira, enquanto recuperava,
avistando finalmente a casa de Beth. Estava em ruínas, assim como
as casas e edifícios próximos.
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– ELIZABETH! – gritou em desespero, com o corpo
empoado.
Subiu a um cume de escombros e continuou a gritar pelo seu
nome. As lágrimas, nesta altura, escorriam-lhe pela cara como se de
uma pequena nascente se tratasse.
– ELIZABETH! ELIZABETH! – Começou a levantar
pequenos blocos de betão, na esperança de a encontrar. Quando
sentiu que nada mais podia fazer, deixou-se cair de joelhos e chorou
desesperadamente.
De súbito, ouviu um pequeno monte de pedras rolar pelo cume
abaixo. Viu um pequeno braço ferido, erguido em direção ao céu.
Correu para ele.
– Elizabeth? – um pequeno sorriso moldava-lhe agora os lábios,
conforme as lágrimas continuavam a ceder pelo seu rosto abaixo.
Começou a tirar pedra por pedra ao mesmo tempo que se ia revelando
o rosto de Beth. Estava em mau estado, ensanguentado, pisado e sujo.
A última pedra foi removida dos escombros e Ryan libertou-a,
trazendo-a para a berma da estrada, ao colo. Escutavam-se, não muito
longe dali, sirenes de ambulâncias ao mesmo tempo que os gritos
desesperados das pessoas abafavam o brando vento que se fazia
sentir.
– Elizabeth. Acorda. – Deu-lhe umas suaves palmadas na
bochecha esquerda e Elizabeth, que estava com a cabeça pousada sob
o braço esquerdo de Ryan, começou a abrir seus olhos azuis,
lentamente. Sangrando pela boca e pelo nariz, perguntou:
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– Ry? És tu? – Não lhe restavam muitas forças para além
daquelas que tinha gasto para pronunciar o nome do seu namorado.
– Sim. Estou aqui, meu amor. Vou-te levar para o hospital. –
Tentou pegar nela ao colo, mas Elizabeth recusou-se a receber aquele
gesto.
– É tarde demais, Ryan. – disse – Eu fico aqui. Foge enquanto
podes. – Os seus olhos fechavam-se e abriam-se de vagar
– Não! Por favor, deixa-me fazer alguma coisa por ti – novas
lágrimas limpavam o pó do seu rosto, deixando um rasto, como os
trilhos de um rio árido, vistos do céu.
– Tiraste-me daquele sufoco horrível, e isso já foi uma grande
ajuda. Fizeste tudo o que podias. Amo-te para sempre. – Beth
começou outra vez a fechar os olhos. A lentidão com que eles se
fechavam agora, fazia prever que não se iriam abrir mais.
– Elizabeth? Por favor, não me deixes sozinho. Elizabeth!...
ELIZABETH!!! – Podia gritar o resto do dia, mas a sua alma já partira
para outro lugar. Ryan encostou a cabeça aos seus cabelos dourados,
que brilhavam quando os raios de luz passavam por entre as nuvens
de fumo e de poeira. As lágrimas, que continuavam a escapar dos seus
olhos, escorregavam pela testa de Elizabeth, vagarosamente, e
formavam um novo rasto a partir da sua pálpebra. Os dois, então,
choravam.
Após ficar o resto da manhã abraçado ao corpo da sua
namorada, Ryan acordou daquele momento de dor e carregou o
corpo de Elizabeth, trazendo-o até às traseiras de sua casa, onde tinha
um pequeno jardim. Sepultou-a ali mesmo, para estar perto de si. Não
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tinha intenções de abandonar Dallas. Estava bastante fragilizado e
assustado. Era apenas um rapazinho de quinze anos, que tinha
perdido tudo o que mais amava, num só dia.
Mais dois ataques atingiram nesse mesmo dia a cidade de Dallas.
A casa de Ryan foi uma das que não sofreram danos.
Após a morte de Elizabeth e o desaparecimento do seu
progenitor, Ryan entrou numa depressão profunda, tornando-se
eremita e procurando a solidão. Não sabia qual era a sensação de
perder alguém, desde a morte da sua progenitora, Laura Snyder, que
falecera vítima de uma leucemia, quando ele tinha apenas 11 tenros
anos. Mas esse dia chegara e, desde então, começou a ver o mundo
com outros olhos. Os olhos da dura verdade.
A barba e o cabelo cresciam-lhe a cada dia que passava, ao
mesmo tempo que, aos poucos, se tornava um homem à pressa. Os
seus olhos tornaram-se poços isentos de emoções, de aparência fria e
sem vida. A sua pele tornou-se da cor do pó que, por várias semanas,
pairou no ar.
Durante dois longos anos, todos os dias, Ryan tomava o
caminho, a pé, pelas ruas desertas da sua cidade, revistando casas e
estabelecimentos, à procura de comida e água, procurando
sobreviver.
Enquanto vagueava, cortando ao meio a leve e árida brisa que
sempre se fazia sentir em Dallas, olhava em redor vezes sem conta e
só via devastação. Aquela não era mais a sua cidade natal, a cidade de
que tanto gostava. Apenas os pilares que sustentavam as paredes das
casas e dos edifícios destruídos se mantinham em pé, na zonas de
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impacto. A poeira que pairava no ar tinha assentado sobre todas as
coisas, formando camadas de cisco, e deixando Dallas semelhante a
um deserto. Além das ratazanas, o único ser vivo que vagueava por
entre aquele silêncio mortal era Ryan Snyder.
O sol já não era testemunhado fazia um ano. As nuvens,
provenientes dos vulcões e das fortes poeiras que se fizeram sentir
em todo o mundo, esconderam-no por tempo indeterminado. O
calor, esse, estava bem presente nos poros na sua pele, e o seu
testemunho, o suor, escorria-lhe lentamente pelo pescoço e pela testa,
como leves gotas de orvalho da alvorada, escorrendo pelas pequenas
folhas.
Após concluir a sua primeira tarefa de rotina diária, regressava
a casa, e aí começava a segunda e mais difícil parte do dia: Ryan dirigia-
se ao escritório do seu pai e sentava-se na sua cadeira de secretária.
Por momentos, fechava os olhos e tentava perceber se o dia seguinte
poderia ser melhor que o presente. Na secretária cor wengue, onde
Jeff realizava os seus trabalhos, ou relaxava após mais um dia de
trabalho, onde a leitura era rainha, Ryan abria a primeira de três
gavetas e retirava do fundo um objeto embrulhado num pano
castanho. Virava os vincos do pano, revelando uma pistola que o seu
pai lá guardava, uma Glock G19. Apenas por questões de segurança,
Jeff mantinha ali a arma. Depois de olhar por um momento para ela,
Ryan apontava-a contra a sua cabeça, fechava os olhos, e inalava
profundamente os ares danosos que naquela casa viviam consigo.
Premia o gatilho da arma com convicção e apenas um som de retorno
se escutava: Clic!
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A arma estava sempre descarregada. Ryan sabia disso e apenas
o fazia, todos os dias, por revolta consigo mesmo; não conseguira
salvar a rapariga que amava, Elizabeth, tal como não sabia do
paradeiro do seu pai. O tormento era quase infinito, pensava ele, mas
toda aquela pressão, por fim, passava e Ryan retomava a sua vida.
Durante a noite, onde não havia nada para testemunhar, adormecia
com dificuldade e apenas podia escutar o vento gélido que descia das
colinas mais próximas.
Tinham passado exatamente 832 dias desde o fatídico
acontecimento. Quando se preparava, mais uma vez, para apontar a
arma à cabeça, Ryan reparou, pela primeira vez, que a última gaveta
tinha uma pequena fechadura. Como não reparei nisto antes? Pensou.
Tentou abri-la, mas sem sucesso. Procurou pela chave que a
fizesse abrir, para desvendar o seu mistério. Procurou, vasculhou e
voltou a procurar. Após uma hora a sondar, a casa sentia-se
incomodada de tanta revista. Voltou à secretária e decidiu procurar
nas prateleiras do seu lado esquerdo. Dezenas de livros ocupavam-
nas de cima a baixo. Nenhum espaço restava para dispor mais um
exemplar. Jeff era apaixonado por livros, era o seu grande hobby. Por
entre estórias de romance, de ficção, de ciência, entre muitas outras,
Ryan procurava incansavelmente a tal chave. Talvez a resposta esteja
dentro daquela simples gaveta, matutou.
Ao fim de tanta procura sem retorno, sentou-se uma vez mais
na cadeira e ficou pensativo. Subitamente, olhou para a fotografia
pousada sobre a lareira, onde estava abraçado ao seu pai e à sua mãe,
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a qual estava já de cabelo rapado e com um lenço a tapar-lhe a cabeça
desnuda, devido aos tratamentos de quimioterapia. Só pode estar ali.
Levantou-se e dirigiu-se à moldura. Retirou-lhe a parte traseira
que a suportava e ali estava a pequena chave, que caiu na soleira da
lareira.
Entusiasmado, pela primeira vez, em muito tempo,
rapidamente pegou nela e dirigiu-se à gaveta. Sentou-se na cadeira e
fez a chave penetrar na fechadura.
– Sim! – a felicidade moldava-se no seu rosto com um grande
sorriso de orelha a orelha.
Atrás de si, um vulto vermelho passou velozmente pela janela.
Ryan viu a luz diurna a esbater-se por um instante e virou-se para trás,
mas já tudo voltara ao normal. Foi espreitar pela janela, contudo não
viu nada. Voltou a sentar-se na cadeira. Ao abrir a gaveta, o seu sorriso
rapidamente se desvaneceu. Apenas um arquivo de papéis bem
organizado jazia lá. Pegou nele, mas as suas mãos tremiam como se
padecesse de Parkinson, e os seus olhos fixavam o nome “Top
Secret” carimbado a encarnado na capa do arquivo. Uma sigla,
“SSD”, estava gravada em tamanho pequeno no canto inferior direito
e, por baixo dela, em letras ainda mais pequenas, o seu significado:
“Secret Science Department”. Vários segundos se passaram e Ryan
finalmente decidiu abrir o arquivo misterioso. Eram cerca de
cinquenta páginas, muitas delas escritas à mão e cheias de desenhos
conceptuais e planos secretos. Ryan perdeu uma tarde para as ler e
reler, tentando perceber tudo aquilo que lá estava escrito.
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Na sua cabeça, vários sentimentos borbulhavam. Estava
confuso, mas uma coisa ele rapidamente percebeu: o seu pai não
trabalhava numa agência bancária como pensava, mas sim como
cientista num departamento secreto do antigo governo, com sede em
Washington, D.C. A sua função era incógnita, mas Ryan chegou à
conclusão que ele tinha sido raptado, talvez por alguém que queria
saber os seus segredos. Enquanto as lágrimas lhe escorriam pela cara
abaixo, pensamentos e sentimentos ambíguos giravam na sua mente
frágil, inundando-o com velhas recordações. Pousou o arquivo sobre
a mesa e olhou para a moldura com a fotografia, que jazia encostada
à parede da lareira. Recostou-se na cadeira com a cabeça para trás,
fechando os olhos, e começou a reviver aquela solene memória que
tivera com os seus pais. Tudo o que estava à sua volta nesse instante
ficara para segundo plano.
Viajou pelas lembranças do passado, enquanto o rude presente
o esperava a qualquer instante. Aquela viagem durou o tempo
necessário, para que Ry voltasse dela transformado. Abriu as
pálpebras já com as lágrimas tão secas como uma poça de água
evaporada num deserto, e o brilho dos seus olhos finalmente
transmitiu vida. Levantou-se e retirou a fotografia da moldura
prateada, guardando-a no bolso traseiro esquerdo das calças de ganga
desgastadas, correndo em direção ao quintal da sua casa.
Ao chegar lá, encaminhou-se para lugar onde tinha sepultado
Elizabeth, no pequeno jardim onde, agora, a relva verdejante
começava a brotar, bem como pequenas flores, com vários tipos de
beleza, que Ryan aí colocava todas as semanas. O exato local
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distinguia-se devido a uma cruz de madeira, feita por ele, cravada na
terra. Ry ajoelhou-se, ficando de frente para o corpo latente de Beth.
Assim esteve, em silêncio, a orar, durante breves instantes. Por fim,
desabafou:
– Elizabeth, tornaste a minha vida num sonho do qual não
queria acordar, e nunca poderei agradecer-te verdadeiramente. Sei que
me podes ouvir e sei que também me consegues ver, por isso, quero-
te dizer que vou partir para te provar, a ti, e a mim mesmo, que sou
mais forte do que aquilo que pareço. – Lágrimas jorraram pelo seu
rosto, sendo embebidas pela sua crassa barba, enquanto sorria. –
Tenho a certeza que me vais ajudar a superar isto. Obrigado por tudo,
meu amor. – Beijou a ponta dos seus dedos, que se uniram para
receberem o toque, e pousou-os levemente sobre a terra que cobria o
corpo da sua namorada.
Antes de partir, prometeu-lhe uma última coisa:
– Quando voltar, prometo que te vou levar para um sítio melhor
do que este. Mereces isso.
Ry ganhava cada vez mais energias para começar a sua longa
jornada, procurando o seu progenitor. As lágrimas foram dando lugar
a uns olhos lúcidos e cheios de vontade de encontrar Jeff Snyder.
Tentou lavar-se o mais que pôde, com uma toalha que
humedecera num dos baldes que deixava todos os dias nas traseiras
de sua casa, para apanhar a água das chuvas, e cortou com uma
tesoura o excesso de cabelo, dando-lhe um ar mais cuidadoso,
aparando também a barba. Pegou numa mochila sua que tinha presa
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na alça direita uma bússola e colocou lá o arquivo do seu pai, uma
navalha, uma garrafa de água, uma t-shirt e um pequeno mapa.
Após abandonar a sua casa, foi à procura, mais uma vez, nas
casas circundantes, de comida para levar na viagem. Deslocou-se até
ao topo de um pequeno monte, de onde conseguia ver aquele deserto
que era Dallas, e observou a cidade, ou o que restava dela.
– Espero que ainda estejas bem, pai. – Apenas o silêncio o
escutava e as nuvens cinzentas o testemunhavam. Olhou uma última
vez para a fotografia de família e guardou-a no bolso esquerdo da
camisa, perto do seu coração, inaugurando a viagem com os primeiros
passos na terra empoeirada, deixando a cidade para trás.
Aquele arquivo era a única evidência que o rapaz tinha sobre o
paradeiro do seu progenitor, mas já era alguma coisa; o seu impulso e
a sua motivação. E seria por aí que Ryan iria começar a procura, a
mais de um milhar de quilómetros de sua casa.
O vulto carmesim vigiava-o de bem longe, sem ele se aperceber,
talhando um simples sorriso no seu rosto de cor lácteo, escondido
atrás de um longo capuz.
Ryan despertou repentinamente das memórias que o fizeram
jornadear nos últimos minutos. Respirou fundo o ar ardente que se
fazia sentir por baixo daquela sombra negra de nogueira e levantou-
se, sacudindo a poeira das suas calças de ganga, como se fizesse
alguma diferença, tal era a sujidade encrustada nelas. Colocou a
mochila às costas e continuou a viagem.
Este era a direção a seguir.
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III
O calor do dia dissipava-se rapidamente e o sol começava a pôr-
se, para dar lugar à noite gélida, enquanto Ryan procurava por um
abrigo seguro. Nem todas as casas abandonadas eram seguras. Nem
todos os destroços criavam um abrigo perfeito para uma noite de
incertezas. Os stalkers estavam em todos os lugares e a morte vinha
sempre com eles.
Esta noite vai ser muito fria, preciso de me aquecer, pensou para
si mesmo, depois de olhar para o céu encoberto, sem estrelas. Foi à
procura de galhos e pinhas num pequeno mato ao lado de um
armazém abandonado, numa zona industrial isolada.
Além de aquecer, de engrandecer a autoestima e de afastar
animais como lobos e raposas famintas e mutantes que pela Terra
agora vagueavam, uma pequena fogueira podia ser a diferença entre a
vida e a morte durante as noites frias e chuvosas do outono. O frio,
no entanto, não tinha atingido o seu zénite. Por outro lado, a fogueira
podia aliciar a atenção dos stalkers. Mas Ryan era cauteloso. Quando
fazia uma pequena fogueira na floresta, rodeava-se a uma pequena
distância numa parede feita de galhos e folhagens para que ninguém,
ao longe, pudesse ver a luz da sua labareda. Quando pernoitava num
lugar abandonado, fazia a fogueira encostada a uma parede de betão
e longe das janelas, para que ninguém detetasse a claridade. Além do
calor ficar concentrado apenas nessa zona, a luz da chama mão se
expandia tanto. Neste segundo caso, montava também armadilhas em
redor dos acessos para, caso alguém entrasse, emitisse um som de
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alarme, tendo assim ter tempo de escapar. Evitava confrontos diretos,
porque a sua missão era procurar o seu pai e não arranjar confusões.
Enquanto caminhava por uma pequena rua deserta, cheia de
lixo, rodeada por uns enormes armazéns, o rapaz ouviu um estranho
som. Parou, para tentar escutar com mais claridade, mas não percebeu
do que se poderia tratar. Pousou os galhos e as pinhas no chão e tirou
a sua navalha de punho preto, com cerca de quinze centímetros de
lâmina, da bolsa exterior da mochila. Abriu-a e decidiu prosseguir a
sua marcha, silencioso como um gato. A noite começava a revelar-se,
mas não havia luz nos postes de eletricidade. Ryan não sabia o que o
esperaria do outro lado da rua. Enquanto se aproximava, conseguia
escutar cada vez melhor: um grunhido abafado e o som de um objeto
metálico a raspar no chão chegavam-lhe agora aos ouvidos. Ouvia, ao
mesmo tempo, uma segunda voz, feminina, igualmente abafada.
Passo a passo aproximava-se cada vez mais da origem do som. Os
grunhidos continuavam, agora com um som mais límpido. Ao virar
numa esquina, no fim da estreita rua, encostou-se com a mochila a
uma parede coberta de graffiti e ocultou-se atrás de uma série de
latões do lixo.
Um stalker, apoiado num joelho, no chão, com um grande
machado na mão, esventrava uma inocente. Uma mulher idosa, talvez
com os seus oitenta anos, toda vestida de preto e xaile na cabeça, da
mesma cor, jazia no chão com a boca tapada pela mão enluvada do
stalker e metade do corpo aberto. Parte das entranhas da velhota
estavam já ao seu lado, enquanto soltava os últimos gemidos
abafados. Estremeceu uma vez e morreu. O inimigo, todo
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ensanguentado, ouviu um pequeno ruído vindo do sítio onde Ryan se
escondera. Olhou ferozmente para trás, fazendo um enorme
grunhido, percetível a dezenas de metros. Ryan escondeu-se
rapidamente atrás dos latões e, encostado à parede, fechou os olhos e
desejou para si mesmo para que o stalker não o tivesse visto. O seu
coração batia descontroladamente e num instante começou a
transpirar, formando-se gotículas de suor na sua testa. O monstro,
que continuava a olhar fixamente para o sítio onde ele estava,
levantou-se.
As suas roupas, velhas, rasgadas e manchadas pelo sangue da
velhota, aliadas à sua grande estatura, assentavam perfeitamente numa
figura assustadora, que metia medo até ao homem mais corajoso.
Começou a caminhar, no seu ritmo lento e possante, em direção à
esquina da rua. Ryan percebeu que ele o ia descobrir. Sentia os passos
cada vez mais nítidos a perfurar os seus ouvidos. Um confronto
adivinhava-se. Entretanto, ouviu-se um novo ruído. O stalker parou.
Estava a três passos de Ryan. Olhou para os latões abarrotados de
lixo. Ryan abriu os olhos e olhou também para lá. Após um longo
momento de ruídos, uma pequena ratazana com um olho enevoado e
coberta de bolhas e pedaços de carne rasgados, saiu por entre dois
latões e mostrou-se ao stalker. Na sua máscara ensanguentada, um
buraco feito à mão apresentava um pupila bugalhuda, preta, que
micava a ratazana. O outro buraco estava escondido por um
dispositivo, colado à máscara, que libertava uma luz azul, imitando
um segundo olho. O seu olhar feroz perseguiu a pobre ratazana vários
segundos até esta desaparecer num buraco feito na parede uns metros
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adiante. Por fim, virou costas à situação e, pegando nas entranhas da
velha que tinha estripado momentos antes, seguiu o seu caminho,
colocando-as ao pescoço como um adorno.
Ouvindo os seus passos cada vez mais longe, Ryan levantou-se
e espreitou cuidadosamente. Viu o stalker a afastar-se na direção
contrária. Tinha o caminho livre. O batimento do seu coração voltou
ao ritmo normal. Limpou o suor da testa e guardou a sua faca no
mesmo bolso de onde a tirara. Pegou novamente nos galhos e seguiu
também o seu caminho pela direção de onde tinha vindo. Em frente
era proibido.
Depois de muita procura, finalmente encontrou um sítio seguro
onde pudesse dormir. Um pequeno anexo, atrás de um armazém, era
o ideal. Tinha ainda o cadeado com as chaves, preso às grades, que
servia para o fechar. Certamente seria para guardar um cão que
outrora vivera ali, pois havia uma casota de porte grande. As fezes
ainda ali permaneciam, encrostadas no chão, e Ryan retirou-as com
um galho. Numa parede que fazia um ângulo reto, começou a
preparar a sua pequena fogueira e fechou o anexo pelo lado de dentro,
com o cadeado, por precaução. Tirou a chave e colocou-a no bolso.
Por esta altura, a noite já era uma senhora. Ry não conseguia
dormir, uma vez mais. Desde a sua partida, cerca de duas semanas
atrás, nunca conseguira dormir uma noite inteira. Os pensamentos
que giravam em torno da sua cabeça não o deixavam pregar olho.
Nuns, aparecia o seu pai, noutros, a sua Elizabeth, mas, na maior parte
das vezes, o assunto que não o deixava pegar no sono eram os
stalkers.
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Mas afinal, quem são eles? perguntava-se constantemente,
ferindo por vezes a sua mente, de tantas vezes que se questionara.
Uma memória recente ocorreu-lhe ao pensamento, quando tentava
adormecer.
Ao terceiro dia da sua viagem, enquanto caminhava ao final da
tarde pelos antigos campos de trigo que rodeavam a cidade de Big
Spring, apreciava ao longe as enormes turbinas eólicas desativadas.
Momentos depois, avistou uma pequena casa no meio de um prado.
Uma casa de camponeses, certamente. As duas pequenas janelas entre
a porta da frente, fechadas, e com cortinas escuras, davam-lhe um ar
sinistro. A escuridão reinava lá dentro. Do lado esquerdo, uma horta
rodeava-a até às traseiras, onde a terra estava sequiosa. Não era
semeado nada ali fazia muito tempo. Do lado contrário, a cerca de
três metros da casa, havia um pequeno estábulo, também ao
abandono. Nenhum som animalesco surgia de lá, mas Ryan reparou
num pormenor que o deixara intrigado: uma corrente abraçava os
puxadores das duas portas para se unir a um grande aloquete
enferrujado. Porquê fechar um estábulo que supostamente está ao
abandono? Questionou-se. Contudo, talvez não estivesse ao
abandono. Talvez algo estivesse lá enclausurado. Talvez não fosse
suposto que o que estivesse lá dentro saísse e visse a luz do dia.
Olhou em volta e não viu nenhum sinal de vida, mas reparou
numa placa em forma de aviso, cerca de 50 metros atrás de si, na rua
de terra que ligava à casa. Não sabia o que dizia, pois não tinha vindo
daquela direção, mas também não estava interessado em saber.
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Deixou-se levar pela curiosidade e foi ao encontro do estábulo. Uma
pequena brisa cruzou o seu caminho, levando consigo poeira,
balançando a erva seca do prado, enquanto os seus passos, à medida
que avançavam, ficavam mais pesados. Os seus pés diziam-lhe, na sua
própria linguagem, para ele não avançar mais, mas o rapaz contrariou-
os. Chegou às portas do estábulo e olhou-as com curiosidade, durante
alguns segundos. Espreitou por entre as frinchas da madeira para
satisfazer a sua curiosidade.
– Se fosse a ti não quereria saber o que há aí dentro. – Disse um
voz rouca.
Ryan virou rapidamente o olhar para a porta que se encontrava
na lateral da casa. Num pequeno degrau que conduzia à porta, um
homem com os seus sessenta e poucos anos, careca, de cigarro na
boca, que mal se notava tamanha era a barba grisalha que surgia da
sua pele sórdida, segurava ao alto uma espingarda modificada.
Nos novos tempos, alterar as armas para as deixar mais
poderosas era uma prática comum contra os novos inimigos que
surgiram. Mas o homem não tinha intenções de usá-la. Estava só a
tentar assustá-lo.
A sua camisola de alças, que outrora tinha sido branca, com a
sujidade natural de vários dias sem ser lavada e com manchas de
sangue e de terra bem evidentes, era agora castanha. Nas suas calças
camufladas de estilo militar, cor de deserto, e com dois bolsos laterais
perto dos joelhos, evidenciava-se um largo cinto preto que prendia a
camisola por dentro. Talvez o homem tivesse sido em tempos um
antigo general. Uma barriga em forma de meia lua perfeita, que lhe
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escondia a vista sobre os pés, e a sua pequena estatura, davam a Ryan
uma sensação estranha de segurança.
– É perigoso andares sozinho por estas terras devastadas. Para
onde vais? – perguntou-lhe o homem sob a sombra do pequeno teto,
feito de troncos de árvores, que cobria a entrada lateral da casa.
– Este. – respondeu Ryan, com um timbre de voz coeso.
– Não há nada a este, rapaz, só morte e destruição – disse o
homem com um pequeno sorriso sarcástico nos lábios.
Pegou na beata do cigarro já extinto e atirou-a para o solo árido
que rodeava a sua casa. Um cemitério de beatas semeava o chão, onde
escassas ramadas de erva seca sobreviviam naquele terreno.
– Entra, vem beber um pouco de água. – proferiu o homem em
voz alta e grave.
Ryan ficou parado a olhar para o homem enquanto ele entrava
para dentro da casa. Sabia que não podia confiar em ninguém e não
iria contar nada sobre a sua missão, senão podia atrair atenções
indesejadas, contudo decidiu entrar. O seu abastecimento de água e
comida estava quase no fim. Foi a única razão que o fez avançar.
Depois entrar e ser atingido pela escuridão da casa, um cheiro a
mofo entranhou-se-lhe no nariz, fazendo-o espirrar por duas vezes
seguidas. O homem, já sentado numa das cadeiras da mesa de madeira
que se centrava na cozinha, com a espingarda pousada sobre ela, e já
com outro cigarro a iluminar parte do seu rosto, disse num tom
moderadamente autoritário:
– Senta-te! – a sua voz grave ecoou por toda a cozinha,
parecendo ainda mais grave do que realmente era.
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– Estou bem em pé. – disse Ryan com desconfiança no olhar.
– Como queiras. Já agora, chamo-me Mick Johnson. – Estendeu
a sua mão, grossa com o tronco de uma árvore, em forma de
cumprimento. Ryan retribuiu.
– Ryan Snyder.
– Prazer em conhecer-te, Ryan Snyder. – esperou alguns
segundos, ao mesmo tempo que, com o olhar, tirava as medidas ao
rapaz. – Que fazes por estes lados, sozinho?
Ryan refletiu em flashes rápidos o que lhe haveria de contar. A
verdade nunca poderia sair da sua boca, isso era certo. O homem não
precisava de saber nada a seu respeito.
– O que tens dentro do estábulo, para estar trancado? –
perguntou com um tom curioso na voz, mudando o tema da
conversa, enquanto olhava suspeitosamente para tudo o que sua vista
alcançava.
– Um stalker. – disse o homem com um ar malicioso, virando
o olhar para a janela de onde conseguia fitar o estábulo.
Ryan mostrou-se curioso.
– Stalker? – perguntou.
– O mundo que conhecíamos desapareceu, rapaz. Eles agora
controlam tudo.
Ryan fixou os seus olhos castanhos nos olhos negros de Mick,
que pareciam ónix lustrado. Nenhuma palavra se libertou da sua
garganta. Johnson, então, prosseguiu:
– A Grande Guerra abriu as portas do submundo. O que está
ali dentro é a prova disso. – indicou com o olhar na direção do
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estábulo. – Nunca vi tal coisa na minha miserável vida. – cuspiu para
o chão com repulsa e virou o olhar, apagando a beata do cigarro na
superfície da mesa. Uma última e pequena nuvem de fumo como um
fantasma desvaneceu-se por entre os seus dedos. O seu rosto voltou
à escuridão.
Ryan nem pestanejava enquanto Mick continuava o desabafo:
– Estes “stalkers”, como as pessoas lá os chamam, para mim
são demónios que ascenderam do inferno depois da guerra acabar.
Algumas pessoas com quem me cruzei, nestes últimos tempos,
também dizem que eles emergiram dos vulcões que entraram em
erupção e das enormes crateras criadas pelas bombas. Talvez eu lhes
dê razão, mas, prefiro acreditar somente na minha própria convicção.
Eles procuram algo... mas ningém sabe o quê.
Nesse instante, Ryan percebeu que Mick não era um homem
lúcido. Nada emerge da lava dos vulcões, nem existe tão pouco um
submundo onde criaturas demoníacas saem de lá.
– Nunca viste nenhum, rapaz? Pareces surpreendido.
– Não – disse Ry com ar abismado. Era a primeira vez que ouvia
falar nesse tal nome. Durante os dois anos em que esteve recluso na
sua solidão, não se confrontou com nenhum, nem sequer tinha
ouvido de tal coisa, por isso, uma ligeira desconfiança pairava no seu
pensamento e no seu olhar. Mick notou.
– Não acreditas. Anda, vem comigo. – ordenou com ar
sombrio. Levantou-se da cadeira, arrastando-a para trás, provocando
um rangido cru. Saiu em passos lentos e robustos, porta fora.
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Uma sensação de medo começou a revelar-se no corpo de Ryan.
Permaneceu estático por vários segundos. Não sabia o que o esperava
do outro lado daquelas portas de madeira velha, que ameaçavam ruír,
mas o medo era um sentimento que nunca poderia sentir durante a
sua longa viagem. Assim percebeu, e finalmente resolveu acompanhar
Mick.
Após chegar às portas da estrebaria, Johnson olhou diretamente
para as pupilas de Ryan, que se dilatavam cada vez mais, ao
aproximar-se dele. Então, num tom brincalhão e com um pequeno
sorriso entre a sua barba espessa, perguntou-lhe:
– Tens os tomates no sítio, rapaz? – A sua “bipolaridade”
notava-se devido às constantes mudanças de humor. – Capturei-o há
cerca de três dias, numa das armadinhas para ursos que tenho em
redor da floresta.
Ryan permanecia calado e impaciente.
Mick observou o silêncio de Ry e pegou nas chaves, fazendo-as
penetrar pela brecha do aloquete enferrujado. O ferro em forma de
“U” desprendeu-se. Mick tirou o aloquete e a corrente, deixando-os
cair ao chão. Uma nuvem de poeira formou-se e elevou-se até se
desvanecer. Por fim, abriu as duas portas ao mesmo tempo. Elas
acusaram dias sem uso, libertando o que se assemelhava a um grito
de dor através das suas perras dobradiças de ferro, e a luz, sem
permissão, entrou e iluminou parcialmente o interior do pequeno
estábulo.
Dentro dele, em ambos os flancos, havia apenas uma divisória,
alta, com dois portões que outrora serviam para separar os vários
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tipos de animais de criação. Uma área pequena, mas ampla, seguia-se
depois das esquinas dos separadores e, no seu término, medas de
palha retangulares e perfeitas erguiam-se até ao teto. Várias
ferramentas de cultivo encontravam-se encostadas à lateral esquerda
do estábulo, já oxidadas devido à falta de uso. Pequenos feixes de luz
surgiam por entre as fendas da construção do estábulo, embatendo
nos dois pilares de madeira maciça que se encontravam no centro.
Ryan observou tudo atentamente. Reparou num pequeno rasto
de sangue que seguia desde a porta, pelo chão térreo de cimento e
com restos de palha, até ao canto dos separadores do lado esquerdo.
Ali, o trilho de sangue terminava e um cheiro a morte pairava no ar.
– Ele está ali. – proferiu Mick, escondendo o seu pequeno
sorriso. Avançou e Ryan avançou logo atrás dele, copiando-lhe os
passos, mas com mais lentidão.
Ao chegar ao ponto de interesse, Mick parou e esperou que
Ryan chegasse ao seu encontro.
– Aqui está o filho da puta. – disse com cara enrugada, bulindo
as sobrancelhas para baixo e apontando com o polegar.
No chão, estendia-se o corpo do stalker, abatido com dois tiros
de caçadeira e com o seu pé direito desfeito pela armadilha. As suas
roupas, esfarrapadas e ensanguentadas pelos orifícios das balas
certeiras, evidenciavam um pequeno corpo, que não tinha mais de um
metro e cinquenta de altura. Uma máscara de ferro velho, feita à mão,
escondia a sua verdadeira face e envolvia toda a sua cabeça. Na
máscara, dois pequenos orifícios paralelos, deixavam outrora os olhos
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presenciarem o que estava além dela. Não havia mais nenhum orifício
para inalar o ar, naquele disfarce enferrujado sarapintado de sangue.
Ryan observava, incrédulo, aquela criatura que tinha mais traços
de humano do que de monstro, e questionou Mick:
– Tu pensas que isto seja um demónio? – questionou com ar
casto. – Talvez seja uma simples pessoa. – opinou.
Johnson deu dois passos em frente e, baixando-se, abduziu com
uma certa violência a máscara da face do stalker, atirando-a em
seguida para o chão. Ryan bradou, perplexo.
– Meu Deus! – enrugou a face numa expressão de nojo.
Bolhas enormes de pus enodoavam praticamente toda a face do
stalker, algumas já com crateras profundas, em carne viva. Veias
negras trepavam desde o pescoço até às finas pontas pretas de cabelo
da sua calva cabeça. Um dos seus dois olhos, já sem a pálpebra, cegara
há muito tempo, tal era o estado de decomposição do seu globo
ocular, amarelado e cheio de pus. O outro olho estava em perfeitas
condições, apenas cerrado devido ao facto de ter sucumbido. A sua
pele rasgada e podre, no lado esquerdo, exibia o seu maxilar, sorrindo
para quem o fitava. Sangue e mais pus ressequido manchavam
igualmente o seu rosto nefasto. No centro do rosto não havia nariz,
mas sim um buraco negro, em forma de coração invertido, com a pele
enrugada à sua volta.
– Ainda achas isto um ser humano, Ryan Snyder? – perguntou
Mick em tom irónico, abrindo o seu mar de barba para exibir mais
uma vez um pequeno sorriso sarcástico.
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– Nunca vi na minha vida algo parecido com isto. – disse Ryan,
ainda perplexo. Ficara em choque.
– Deus certamente não pôs isto no nosso mundo, rapaz. Foi o
Diabo. Esta guerra abriu as portas do submundo, e aqui está a prova
disso. – apontou o polegar, num gesto bruto, para o stalker.
– Achas que eles são perigosos? Perguntou inocentemente
Ryan.
– Ah! Ah! Ah!!!! – Mick riu-se numa voz gutural que fez
estremecer cada pelo da sua barba. – Aconselho-te a nunca ficares
frente a frente com um monstro destes. A sua força consegue ser
maior do que a de um leão e não são nada amigáveis, porque, segundo
dizem, mas nunca presenciei, eles comem de tudo, até carne humana.
O pior de tudo é que eles estão em toda a parte e têm espiões em todo
o lado.
Ryan começara a questionar-se, no seu íntimo, se valia a pena o
risco, com estes monstros sempre por perto e prontos a matarem
tudo o que respirasse e lhes aparecesse à frente. Mas a sua vontade
própria prevalecia sobre o que a sua mente cogitava. Aquela situação
toda tinha-o deixado perturbado. Mudou, então, o rumo à conversa:
– Já vi o suficiente. Podes encher a minha garrafa com água, por
favor? – Abandonou o estábulo. Os seus olhos tinham presenciado
que chegasse, por aquele dia. Naquele momento só queria arranjar
abrigo para passar mais uma noite.
– Ainda agora chegaste, rapaz. Descansa um pouco. –
aconselhou Mick, pressentindo o cansaço nos seus olhos. – E, olha!
– indicou para o stalker. – Temos aqui carne. Ah! Ah! Ah! – riu-se da
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sua triste piada. Tossiu, e aglomerando uma bola de muco na boca,
expeliu-a para cima do stalker.
– Não preciso. Só quero água, se ma puderes dar, claro. – pediu
Ry, com uma enorme vontade de sair daquele lugar.
– Ok, rapaz, espera aqui. – disse Mick sisudo, abandonando
também o estábulo para ir buscar água a sua casa.
Após alguns momentos, Mick voltou com a garrafa cheia de
água e com uma lata de feijão branco.
– Aqui tens. Pega também comida, pareces esfomeado. – deu
para as mãos do rapaz a água e o enlatado.
– Obrigado. – disse Ryan, guardando na sua mochila a comida
e a água. – Vou andando, ainda tenho de encontrar abrigo. – concluiu.
– Tenho uma cama extra, se quiseres. – disse Johnson,
colocando outro cigarro na boca, do maço de tabaco que escondia
num dos bolsos traseiros das calças.
– Agradeço, mas já vi que por estes lados tens visitas
inesperadas. – proferiu Ryan, talhando um ligeiro sorriso sarcástico.
Mick retribuiu. Estendeu a mão num gesto de despedida e Ry
comprimiu também a sua num aperto forte.
– Boa sorte, para onde quer que vás, Ryan Snyder – desejou-lhe
Mick, agora com o rosto sério.
Ryan apenas acenou e seguiu logo caminho. Após andar meia
dúzia de passos na direção por onde tinha vindo, Mick clamou:
– Ryan!
Ryan virou-se e os seus olhos cruzaram-se com os de Mick.
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– Espera. – Entrou apressadamente para dentro de casa,
demorando uns segundos, e saiu com um objeto de plástico preto,
com a tinta descascada, com uma antena e um pequeno ecrã no
centro. Dizia por cima do visor “RadDetect”. Atirou-o ao rapaz.
– O que é isto? – perguntou Ry.
– É um dispositivo que deteta radiação. Usa isso para detetares
os stalkers. Eles libertam uma pequena quantidade de radiação
quando estão próximos.
– Obrigado, Mick. – agradeceu Ryan. Levantou-lhe a mão em
forma de agradecimento e prosseguiu a sua viagem.
Mick Johnson sorriu e retribuiu o gesto, seguindo com o olhar
o rapaz a afastar-se cada vez mais até este desaparecer entre a floresta
circundante, que ladeava a estrada em direção à sua casa.
O brilho da lua cheia iluminava o dorso das nuvens que a
cobriam, deixando ver unicamente, na sua frente, a forma de uma
pequena bola esbranquiçada. Sons de animais noturnos regozijando-
se, envolviam o armazém onde Ry pernoitara. Nisto, já Ryan
adormecera, durante a sua longa lembrança. A noite era uma dama,
mas envolta em mistério.
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38
IV
Luas e sóis ocultados por nuvens elevaram-se e esconderam-se
durante três semanas, desde que Ryan deixara Dallas para trás e se
apercebera da dimensão da destruição que a Terceira Grande Guerra
causara. A sua motivação, porém, permanecia intacta enquanto
continuava o seu longínquo caminho até Washington DC.
Provavelmente ele não estará lá, considerou a respeito de seu pai, Jeff.
Talvez estivesse a fazer aquele percurso todo para, no fim,
receber em troca uma grande desilusão. Porém, a fotografia que trazia
consigo era a sua fonte de inspiração para se locomover, e se Jeff não
estivesse lá, ele arranjaria outra solução e continuaria à procura do seu
pai, nem que tivesse de percorrer o país de lés a lés.
Caminhando sobre os vastos terrenos alagados do estado do
Luisiana sob o confinado calor afável da manhã, uma pequena mata
surgiu assim que Ryan se aproximou do declive de um monte
íngreme. As árvores, pequenas e muito próximas uma das outras, sob
um olhar distante, davam a sensação de que se uniam. Um pequeno
rio que vinha do norte, dividia a mata da pequena vila de River Ridge.
Casas abandonadas e alagadas descreviam essa pequena cidade
assombrada. Talvez ali encontre mantimentos, pensou Ry,
esfomeado.
A sua última refeição decente, constituída por duas simples
laranjas, tinha sido consumida na tarde anterior. O seu estômago
implorava por algo que o pusesse em completa função.
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39
Num horizonte muito, muito mais distante, Ryan conseguia
vislumbrar enevoadamente, parte da grande cidade de Nova Orleães
sob uma enorme coluna de fumo negro, elevando-se da cidade em
direção à atmosfera. Era um mau presságio. Assim sendo, teria de
fazer um desvio ainda maior, ladeando a zona da cidade, o que lhe
custaria mais alguns dias de viagem por terreno incerto.
Deslizando entre as assimétricas rochas da fraga, chegou ao seu
término todo empoeirado, onde se sacudiu. Dos joelhos para baixo,
devido à humidade das poças de água que encontrara pelo caminho,
uma papa arenosa agarrara-se às suas calças. Em frente a si
encontrava-se a tal mata, coberta além de árvores silvestres, de silvas
e outras ervas daninhas. Pegou do chão um galho grosso de madeira
e começou a desbastar mato em direção às casas do outro lado do
riacho. Conseguia escutar, pela primeira vez em algum tempo, o canto
de vários pássaros que habitavam naquele pequeno mato. Tentou
apanhar um esquilo, atirando-lhe pedras, mas o animal era mais
rápido, ágil… e talvez mais esperto do que ele. Desistiu facilmente
para não gastar mais energias. Continuou a marchar, com River Ridge
do outro lado do rio.
Por entre árvores e silvas, que sussurravam quando o vento lhes
tocava, um pequeno acampamento surgiu no seu caminho. Alguém
tinha passado ali a noite, pois a erva daninha à sua volta tinha sido
oprimida com o peso de um corpo. O mais evidente eram os
remanescentes de uma pequena fogueira que ainda libertava os seus
últimos suspiros de fumo.
-
40
Ryan sabia que alguém vagueava ali perto, certamente um só
indivíduo, já que os rastos e pegadas apontavam para isso, e
seguramente não era um stalker. Stalkers não fazem fogueiras,
ensinara-lhe Mick.
Um analista em sobrevivência, enfim, tinha sido descoberto
dentro de si. Ryan Snyder, de seu nome. A sua sobrevivência dependia
destes pequenos pormenores e ele entendia isso melhor do que
ninguém. Estava agora a poucos metros do rio e podia escutar o
sereno correr da água doce que lhe atestaria a garrafa vazia que trazia
na mochila. Quando chegou, presenciou o maior banquete de água
que vira desde a partida de Dallas. Bebeu dois goles pelas próprias
mãos, em forma de taça, e de seguida atestou a garrafa.
A única ponte que unia a mata a River Ridge estava em ruínas,
restando apenas a solução de ir a nado. O rio tinha pouco mais de
sete metros de largura, uma distância segura para se cruzar. A corrente
estava estável, quase parada, e Ryan aproveitou a deixa para refrescar
o corpo e passar a roupa por água para suavizar o cheiro a
transpiração.
Do outro lado, à sua frente, permanecia River Ridge, intacta,
mas parcialmente alagada. Não havia caminho alternativo para ladear
a água que lhe marcava pelos joelhos. Começou a revistar cada casa,
em busca de mantimentos e roupas novas para se mudar. Numa delas,
num cadáver de um home que se encontrava estendido sobre uma
mesa, encontrou um lenço para colocar ao pescoço. Daria jeito para
o aquecer à noite e nos dias de frio que se avizinhavam. Servia
também para cobrir a boca e o nariz em caso de necessidade. Noutra
-
41
casa, apenas encontrou uma lata de conserva alimentar, mas nada de
roupas. Após a vistoria a dezenas de outras habitações e até a um
pequeno supermercado totalmente vazio, Ryan ficou intrigado
quando viu um bar ao fundo da última rua da cidade. A água que
transbordara do rio após as inundações já não o alcançava, estando
portanto a rua completamente seca. Caminhou até ao tal bar, de nome
“The Hell Pub”, decidindo entrar pela porta principal, toda ela
empoeirada. A faca que empunhava de prevenção podia até queixar-
se, se tivesse boca, tamanha era a força com que Ryan a segurava.
O bar estava vazio e não havia sinais de vida. A luz entrava
apenas pela porta, mas pequenos feixes escapavam pelas brechas das
ripas de madeira, pregadas nas duas janelas laterais do bar. Ryan
avançou, explorando o pequeno bar.
Clic!
O som da patilha de segurança de uma arma fez-se ouvir junto
à sua cabeça. Snyder estagnou de imediato.
– Quem és tu? – perguntou uma voz atrás da porta, escondendo
a sua face entre a escuridão que se alastrava pela divisória do bar com
o salão de jogos.
– Não sou um stalker. – respondeu Ry.
– Se fosses um stalker tinha-te estourado os miolos.
O homem baixou o braço com a arma em punho e revelou-se
entre os feixes de luz; por entre o seu grande cabelo castanho, com
severas marcas de estar a anos-luz de um banho e de um champô,
olhos de águia fitavam Ryan de cima a baixo. Os seus olhos negros
provavelmente já tinham testemunhado cerca de cinquenta
-
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primaveras. Uma pequena cicatriz com ligeira inclinação cortava a sua
sobrancelha em duas, fazendo pausa no seu olho esquerdo,
terminando um pouco acima da bochecha. Aquela marca de guerra
aliada ao seu aspeto, conferia-lhe um ar mórbido, sendo que até o
nome do bar fazia jus ao seu aspeto. Um colar discreto mas
perceptível que usava sobre o pescoço esquelético, exibia um
pentagrama. O homem dirigiu-se ao balcão central do bar sem dizer
mais uma palavra, arrastando os chinelos que usava pelo chão
revestido a madeira. Ryan acompanhou-o, ficando do lado de fora do
balcão, observando tudo ao seu redor.
– Chamo-me Samael, viajante. – proferiu em voz baixa e
roufenha.
– Ryan Snyder. – respondeu o rapaz com boa educação.
– É muito perigoso uma criança andar assim sozinha por estas
bandas. – disse Samael.
– Estou só de passagem, não te preocupes – retribuiu Ry,
descansando a curiosidade do velho mórbido.
– Queres algo para beber? Bem, acho que ainda tenho para aqui
algo decente. – começou a procurar por baixo do balcão onde Ryan
permanecia de pé, com a sua faca ainda empunhada na mão. – Ah!
Aqui está! Uma boa vodka pura, pronta para ser estreada. – riu-se
discretamente, o suficiente para exibir os seus dentes amarelos e
cobertos de restos de comida. Uma escova de dentes não os escovava,
fazia, talvez... anos.
– Não tenho dinheiro para te pagar isso. – atirou de imediato o
rapaz.
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– Esta é por conta da casa, já que nestes últimos tempos os
clientes têm sido poucos. – riu-se mais uma vez num tom sarcástico.
Dentes cróceos.
– Obrigado. – agradeceu Ryan. Bebeu o presente numa golada.
Pousou o copo em cima do balcão. A sua garganta pegou fogo, mas
Ryan soube disfarçar o ardor. Bebia até mais, se Samael lho
oferecesse, mas ele guardou a garrafa logo de seguida. Preferia bebê-
la sem companhia.
– És o único que vive aqui? – perguntou Ry.
– Sim, depois do enorme tsunami ter atingido Nova Orleães, o
rio triplicou o seu caudal e inundou River Ridge. Felizmente o meu
bar e umas poucas casas safaram-se, mas decidi ficar aqui. Esta foi a
terra onde nasci e só saio daqui com uma bala na cabeça.
– Tens visto alguém passar por aqui, ultimamente? – perguntou
Ry, deitando os olhos discretamente a um copo vazio que estava a
alguns lugares ao seu lado. A pergunta, no entanto, tinha dois
sentidos: era sobre a pessoa que usara aquele copo e sobre o seu pai,
pois poderiam ter sido os seus raptores que tivessem passado ali.
– Não. – respondeu Samael num ápice, escondendo os olhos
por entre os seus cabelos riçados.
– E stalkers?
– Eles perderam o interesse nesta terra. Pensam que já não vive
aqui ninguém, e ainda bem que assim é. Estou bem sozinho. – disse
Samael, prosseguindo de imediato. – Mas ouvi um rumor, vindo do
oeste, de que os filhos da puta agora controlam Nova Orleães. –
proferiu com repúdio.
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– Quem é a voz desse rumor? – interrogou Ryan, uma vez mais,
abelhudo, tentando apanhá-lo numa armadilha mordaz.
– Isso fica só para mim. – respondeu Samael, com astúcia. –
Bem... esta na hora de te ires embora, viajante. Tenho coisas mais
importantes para fazer do que estar aqui a falar o dia todo. – o seu
mau feitio era igual à sua cara: deprimente e feia.
– Obrigado pela bebida. – agradeceu Ryan, saindo logo depois
pela porta por onde entrara.
Aquele homem certamente não sabia de nada, mas Ryan tinha
uma certeza garantida e entranhada nas profundezas da sua mente:
mais alguém, além de Samael, tinha estado ali. Agora todo o cuidado
seria pouco, visto que Ryan não sabia que tipo de pessoa podia
eventualmente encontrar. Nestes novos tempos, sem regras nem leis,
cada um apenas seguia os seus próprios interesses, e esses mesmos
interesses poderiam ir desde os mais banais, aos mais mortais.
À sua frente, uma pequena estrada marcava a entrada e a saída
de River Ridge. Numa vista mais distanciada, uma enorme
autoestrada, sustentada por enormes pilares de betão, ligava várias
cidades das redondezas a Nova Orleães. Um desvio tinha de ser feito
para evitar aquela cidade e as estradas infestadas de stalkers.
Após um momento de reflexão, pensando nas alternativas que
lhe restavam, Ry bebeu um pequeno trago de água. A vodka tinha-lhe
feito sede. Seguiu depois caminho por um terreno sem proveito que
se ligava, mais à frente, a um imenso bosque.
As horas, naquela abafada tarde que se fazia sentir, caminhavam
lado a lado com Ryan, enquanto ele se aproximava do bosque. O
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vento não queria saber daquele lugar e as nuvens eram estáticas e gris
como uma parede de betão. A autoestrada, várias dezenas de metros
acima de si, permanecia de pé, apenas dividida em duas com uma
fenda de largos metros, talvez feita de propósito para evitar entradas
em terreno alheio. Ryan estava prestes a passar por baixo dela. A dada
altura, de súbito, ouviu o som de um tiro de pistola que entoou por
todo o terreno que o circundava. Ryan baixou-se rapidamente e
correu para trás de um pequeno rochedo, ocultando-se. O som tinha
vindo de cima da estrada, mais propriamente da brecha. Gritos
ecoaram novamente no ar circundante. Eram gritos femininos. Ryan
olhou então para cima, mas não via nada. Esperou inquieto por algo.
Dois stalkers apareceram, segurando de cada lado os braços de
uma pobre mulher de cor parda, já sangrando de um pé, após ser
arrastada vários metros com eles ao léu. Sem misericórdia, os stalkers
lançaram a mulher pela fenda, em direção ao chão. Ryan virou o olhar
nesse instante. A mulher gritou uma última vez, à medida que
tombava em direção à morte.
Aaaahhhhh!
Um som compacto ecoou, por fim, por aquelas terras estéreis.
Rugidos fizeram-se ouvir do cimo da rodovia. Ryan observou os
monstros, tentando não ser observado, até que um deles, que se
identificava pelo enorme dispositivo cilíndrico em forma de luneta na
sua máscara, olhou na sua direção. Ry sentiu o seu olhar mordê-lo, e
escondeu-se rapidamente por trás do pequeno rochedo. Ficara
assustado.
Será que ele me viu?, perguntou a si mesmo.
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Momentos depois, decidiu, prudentemente, colocar um olho
fora da rocha, mas os stalkers já ali não estavam. Virou-se de costas
para o rochedo, suspirando de alívio, com um rosto sem expressão.
Mas não lhe servia de nada lamentar a morte de quem tinha morrido.
A vida era dura nestes novos tempos, e não havia nada que Ry
pudesse fazer para mudar isso. A sua viagem esperava-o, conforme a
tarde avançava a passos largos rumo a uma noite que se adivinhava
chuvosa e trovejante, onde nuvens sólidas como rochas, negras, com
enormes raios azuis-violeta a iluminarem os céus de Nova Orleães, se
encaminhavam rapidamente na sua direção.
Ryan levantou-se e prosseguiu. Pouco depois de retomar o
caminho, um cheiro ativo a putrefação invadiu-lhe as narinas,
provocando-lhe, por breves instantes, uma enorme vontade de
regurgitar. Controlou-a, franzindo as sobrancelhas num gesto de
repulsa, ao mesmo tempo que colocava o lenço camuflado que
encontrara em River Ridge, sobre a boca e o nariz. Assim continuou,
até encontrar, por trás de um terreno rochoso e de densa vegetação,
uma pilha de cadáveres, mesmo por baixo da brecha da autoestrada.
Os seus olhos esbugalharam-se e, num gesto atónito, disse, por baixo
do lenço que lhe abafava a voz:
– Meu Deus!
A pilha de cadáveres era uma vala a céu aberto. Milhares de
moscas mutantes, com o dobro do seu tamanho normal, e
deformadas, zumbiam e dançavam umas entre as outras, felizes por
verem aquele banquete gratuito onde poderiam colocar as suas larvas.
No mesmo lugar, dezenas de corvos estavam empenhados a
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manducar, dando bicadas na carne putrefacta daquele festim
enquanto olhavam atencioso em todas as direções. A alguns metros
deles, dois abutres-barbudos lutavam entre si por uma cabeça
decepada que rolara até ao chão. As suas cabeças brancas, com duas
listras de cor negra que se erguiam do bico até ao crânio, eram como
uma máscara que se tornava ainda mais assustadora quando os seus
olhos cor de ouro, cingidos por um círculo de maquilhagem vermelha,
fixavam um alvo. Uma ave que prestava vassalagem à morte… ou a
morte a ela.
A mulher que fora lançada pelos stalkers, momentos antes,
permanecia no topo da montanha, com alguns membros partidos, e
já defunta. Alguns corvos voaram até à nova refeição, grasnando com
uma entoação digna de um coro lírico.
Uma ira enorme começou a crescer pelo corpo de Ry, enquanto
crispava o seu olhar e cerrava os pulsos. Aquela situação não podia
ficar impune devido à vontade da sua mente de evitar os stalkers. Ele
exercia controlo sobre ela. Ele decidia por ela.
Decidira que, a partir daquele momento em diante, vingaria
cada alma inocente que jazia ali, naquele sepulcro. Um assassino
também começava a eclodir dentro de si… ou assim pensava ele.
Talvez a sua mente lhe pregasse algumas partidas que nem ele mesmo
conhecia. O rapaz retomou de imediato a marcha já que não havia ali
mais nada para ser testemunhado.
Avante algumas centenas de metros, chegou às portas do
bosque. Uma vegetação vadia de variadas plantas e ervas silvestres
anunciava a presença dos enormes pinheiros bravos que se estendiam
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por vários quilómetros. Um trilho recente e a sua intuição indicavam
a Ryan que a pessoa que provavelmente teria estado a beber antes de
si no bar de Samael, também teria seguido por aquele bosque. Ry
decidiu seguir esse trilho, e entrou naquele imenso bosque, rumo ao
desconhecido.
A luz era pouca, por baixo da copa dos enormes pinheiros.
Feixes de diferentes diâmetros iluminavam o trilho por onde Ryan
copiava os passos de quem já por ali caminhara. A luz, refletida nas
várias poças de água, criava uma fonte natural de brilho, que
encandeava quem pela sua frente passava. O bosque estava vivo e
pleno de sons de diferentes animais. Uma leve brisa percorreu a pele
de Ryan, refrescando-o depois de algumas horas de viagem. Sob a
aragem seca dos prados, as suas roupas ainda húmidas, secavam, após
a travessia do rio que fizera em River Ridge. Aqui, porém, o rapaz
notou que o ar se tornava mais frio conforme avançava. A luz, essa,
também se desvanecia rapidamente e Ry ainda procurava um sítio
para passar a noite. Parou numa área ampla, sem grande vegetação,
apenas com pinheiros para lhe fazerem companhia, e decidiu acampar
ali mesmo. Pousou a mochila e sentiu uma pequena consolação
enquanto o suor lhe colava a camisa às costas.
Procurou, nas redondezas, por toros e acendeu uma pequena
fogueira. A luz que a língua de fogo emitiria, somente poderia
iluminar o seu rosto e pouco mais. Ele sabia.
Fez uma cama de vegetação, próxima do calor das brasas, e
construiu um pequeno teto para proteger a labareda e a si mesmo da
chuva que, provavelmente, iria cair de noite. Tirou da mochila a
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conserva de comida que tinha encontrado em River Ridge. Era um
enorme júbilo para ele, aquele manjar. Sardinhas, o peixe que mais
gostava, mas que era raro ser consumida para os lados de Dallas.
Jantou e, posteriormente, deitou-se e adormeceu quase de imediato.
Nenhum sonho o atormentara nessa noite e o ardor da fogueira
acalorou-o até perder o fulgor, poucas horas depois. Entretanto, a
chuva começou a cair dos céus negros enquanto as nuvens lutavam
entre si, criando enormes rugidos e clarões que se faziam sentir a
quilómetros de distância. Eram as noites que antecediam a chegada
do inverno.
Dois dias se passaram e Ry ainda não tinha visto sinais do
homem desconhecido, além do trilho que ele continuava a criar entre
a vegetação pouco densa do bosque. Na manhã do terceiro dia,
apenas a poucos instantes de fazer os seus habituais exercícios
matinais e de retomar a sua caminhada, Ryan encontrou um pequeno
ribeiro que serpenteava timidamente entre arbustos e pedras.
Aproveitou para atestar a garrafa de água e para se lavar. Ajoelhou-se
para retirar a água com as mãos em forma de taça e, sem que nada o
fizesse prever, sentiu um objeto frio como gelo e aguçado encostar-
se à sua garganta.
– Quieto ou morres. – disse uma voz grave.
Ry percebeu de imediato que era o homem desconhecido.
– Ando-te a seguir o rasto desde River Ridge. – revelou-lhe
Ryan, de pescoço erguido, mas sem ver o rosto do homem e sem
receio daquela situação de desvantagem. Fazia-se forte, contudo,
engolira várias vezes em seco.
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– Eu sei. Tens feito, nestes últimos dois dias, fogueiras muito
luminosas, até um stalker cego as consegue ver a dezenas de metros.
– disse o homem, ainda com a faca a beijar a garganta de Ryan.
– Também me andas a seguir? – questionou Ry, tentando forçar
o olhar para trás, tentando ver a cara do homem, mas sem sucesso.
– Pensava que eras tu que me andavas a seguir. – atirou nesse
instante, com ironia, o homem desconhecido.
– E o que estás a fazer? – perguntou Ryan, ainda na mesma
posição. Os seus joelhos já acusavam fadiga, por receberem tanto
tempo o peso do seu corpo.
– Já vais saber. – nesse instante, o homem acotovelou em cheio
a cabeça de Ryan com violência, fazendo-o desmaiar.
Momentos depois, atordoado pela pancada, Ryan abriu os olhos
lentamente e viu-se sentado no chão e atado a uma árvore, ao mesmo
tempo que o homem desconhecido esfolava um pequeno esquilo de
costas para si. Ao lado do homem desconhecido, as brasas de uma
pequena fogueira esperavam pelo animal, para o brindarem com cor
e sabor.
– Já acordaste? – perguntou o homem, lançando-lhe um olhar
de soslaio.
– Desata-me. – ordenou Ry num tom zangado, queixando-se
também da pancada que sofrera.
– Tem calma. Não te vou fazer mal, só quero que me respondas
a algumas perguntas. – disse o homem, virando-se e exibindo um
sorriso duvidoso.
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O seu sorriso, porém, exibia pequenas rugas que sugeriam ser
já um quarentão. Os seus olhos verde-esmeralda e a sua barba grisalha
de três dias, que condizia com o seu curto cabelo, davam-lhe um ar
charmoso, contrastando com as suas roupas: calças de ganga sujas e
rotas nos joelhos e uma camisola de alças, preta. Uma tira de tecido
vermelho envolvia uma ferida na zona do bíceps esquerdo, onde o
sangue ainda permanecia ressequido em algumas zonas à volta do
ferimento. A cicratização, no entanto, estava quase concluída.
– Que andas a fazer por estes lados sozinho? – perguntou o
homem enquanto espetava o esquilo num galho para o colocar sobre
a labareda. Elas esperavam impacientemente, crispando a lenha e
libertando faúlhas.
– Não é da tua conta. – respondeu imediatamente Ry, olhando
para o esquilo com água na boca. A sua última refeição tinha sido a
lata de sardinhas, três noites atrás. Caçar animais não era o seu forte
e até hoje comera apenas os frutos que encontrara das árvores no
bosque.
– Se não me responderes, vais continuar aí sentado e amarrado,
asseguro-te disso. – o homem pôs o esquilo sobre o fogo.
– Porque é que te interessa isso? – questionou-o Ryan,
percebendo que finalmente teria de contar toda a verdade.
– Porque talvez te possa ajudar. – disse o homem. – O meu
nome é Matthew Harris. – apresentou-se. – Mas podes-me chamar
simplesmente Matt.
– Ryan Snyder. – identificou-se o rapaz, num tom forçado de
educação, olhando de soslaio para o seu raptor.
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Matthew sentou-se à sua frente, apoiado num joelho. Atrás de
si, a pele do esquilo começava a borbulhar sobre o calor.
– Então, Ryan, porque não me contas o motivo para andares
sozinho por estes lados? – perguntou Matt com a curiosidade
expressa nos seus olhos de cor viva. – Não é costume ver rapazes da
tua idade vaguearem por aí de mochila às costas feitos aventureiros.
– Só te conto se me soltares. – negociou Ryan, com ar sisudo,
olhando fixamente para Matthew.
Matthew fitou por alguns segundo as profundezas dos olhos de
Ry e levantou-se, libertando-o das cordas que o prendiam ao pinheiro.
Ryan sentiu-se aliviado. Esticou os braços, mas deixou-se estar no
mesmo lugar.
– Então, o que queres tu saber? – perguntou.
– Porque me andavas a seguir este tempo todo? – interrogou
Harris.
– Por vezes damos por nós a vaguear sem rumo e esquecemo-
nos da verdadeira tarefa a que nos propusemos a fazer. – mentiu o
rapaz.
– Hum... – suspeitou Matthew. – E porque andas por aqui
sozinho? – a curiosidade instalou-se-lhe.
Ryan olhou-o minuciosamente. Suspirou uma vez. A verdade
seria finalmente revelada.
– Tenho de chegar a Washington DC.
– Washington DC? A Capital, dizes tu? O que há lá de especial
para teres de fazer esse percurso todo? – perguntou Harris, girando o
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rosto e deitando levemente os olhos ao esquilo. A carne começava a
ganhar uma cor caramelizada.
– Preciso encontrar uma pessoa. – disse Ry, olhando também
para o pequeno-almoço.
– Estás maluco? Dizem que aquilo está um caos. – advertiu
Matt.
– Neste momento, tudo está um caos. – corrigiu Ryan.
– Mas o que vais lá fazer? – perguntou Harris. Esperava com
espectativa a resposta.
– Não é suposto contar-te isto – disse Ryan. – Mas também não
vejo porque não o posso fazer. Preciso de desabafar. – Matt esboçou
um pequeno sorriso, agradecendo certamente a confiança que lhe fora
depositada. – No dia 6 de maio de 2030, acordei sobressaltado com o
som dos ataques à minha terra, Dallas. Quando procurei pelo meu
pai, ele tinha desaparecido misteriosamente sem dar rasto. Procurei
por ele em todas as casas e estabelecimentos da cidade e não o
encontrei em lado algum. A única pista que tenho é apenas um
arquivo da SSD, um departamento secreto do governo onde ele
trabalha, o que eu desconhecia, pois pensava que ele trabalhasse num
banco.
Ryan finalmente revelara a sua missão. Tinham sido,
provavelmente, as palavras que mais lhe custaram a pronunciar nos
últimos tempos. Meras palavras que, entretanto, lhe aliviaram a alma,
mas que preferia não ter libertado. Ry gostava de guardar os seus
problemas para si mesmo, tentando não incomodar os outros.
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– Ele desapareceu no dia em que a guerra acabou. – constatou
Matt, perplexo com o que acabara de ouvir.
– Sim, penso que sim. – respondeu Ry, não estando certo acerca
desse facto.
– Tu és tolo. Não conseguirás atravessar o país. Aliás, nem sei
como chegaste até aqui vivo. – Harris estava um pouco surpreso com
aquela coragem.
– Eu sei que sou tolo, mas não fazias o mesmo pelo teu pai?
Uma pergunta, entretanto, que foi de fácil resposta para Matt.
– Claro que não! – disparou de imediato, bruscamente. – O meu
pai foi o pior sacana que conheci em toda a minha vida. Ainda bem
que já não anda por este mundo. Teve o que mereceu. – uns olhos
cheios de raiva surgiam no rosto de Matt.
Ryan ficou pasmado. Não estava à espera de uma resposta
daquelas, mas tentou tranquilizá-lo.
– Não vale de nada ficares assim, agora.
– Eu sei. – respondeu o homem grisalho, encolhendo os
ombros, baixando a cabeça de seguida.
Um súbito silêncio planou entre os dois, naquele instante, até
que Ryan resolveu fazer um reparo inteligente.
– Acho que o esquilo já te chama. – o animal apresentava já
uma coloração perfeita, entre o cru e o tostado e o aroma era
fabuloso.
Harris levantou-se e foi buscar a iguaria.
– Já está no ponto. – confirmou, depois de farejar o odor
gorduroso que o esquilo libertava.
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– Tem bom aspeto. – disse inocentemente Ryan, esperando um
bocado, com o seu estômago a trovejar.
Matt partiu o esquilo com as mãos e deu metade ao rapaz.
– Deves estar faminto. – disse-lhe, percebendo o olhar que Ry
fazia ao esquilo que ainda libertava fumaça da pele levemente tostada.
– Na verdade, estou. Já não como uma refeição há três dias.
Não tenho jeito para caçar animais. – confirmou, rasgando a pouca
carne que o esquilo possuía, gozando cada trinca daquele petisco
suculento enquanto pingas de gordura gotejavam sobre o chão e as
suas calças.
– Talvez possa ir contigo e até te ensino umas coisas. – opinou
Matt, cortando também a carne do esquilo com os dentes, olhando
ao mesmo tempo na direção de Ry, para ver a sua reação.
Ryan parou de mastigar e ficou a pensar, para dentro de si, se a
companhia de Matt lhe traria alguma vantagem na sua jornada.
– Isto não tem nada a ver contigo. Este cargo cabe-me só a
mim. – disse Ry, quase em voz baixa, conforme o encarava e mascava
a carne.
– O que achas que estou aqui a fazer no meio deste bosque
contigo? – perguntou-lhe Harris. – Achas que estou a tentar
sobreviver no meio desta desordem? Não! Estou a tentar
simplesmente adiar a minha morte. – o seu olhar mostrava
descontentamento e os seus olhos pareciam brilhar sobre aquelas
densas sombras das árvores do bosque. Continuou, aumentando cada
vez mais a voz. – Não me resta mais família além daquela que perdi,
Ryan. Uma mulher e duas filhas. Foram-me tiradas pelos stalkers. Mas
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o que posso fazer além de matar cada um que vejo na estrada? Elas
não voltarão para mim por fazer isso. Tenho simplesmente que seguir
com a minha nova vida sem elas. Estou aqui simplesmente à espera
de morrer, e se tiver de morrer a ajudar alguém, que seja alguém que
realmente precise da minha ajuda. – finalizou. – E tu pareces ser uma
pessoa que precisa de ajuda, mesmo que não o admitas.
A comida de Ryan arrefecia enquanto Matt lhe pregava a oração
resumida da sua vida. Todas aquelas palavras tinham sentido e Ry
percebeu isso. Sentiu pena dele por instantes.
– Tudo bem, Matthew. Se quiseres vir comigo, estás à vontade
e serás uma grande ajuda. – come�