Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

249

description

Uno de los libros sobre Zen que mas ha impresionado a los lectores e interesados, por su sencillez y profundidad. De Charlotte Joko Beck. En idioma portugues.

Transcript of Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Page 1: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck
Page 2: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

NNaaddaa ddee EEssppeecciiaall

Vivendo Zen

Charlotte Joko Beck

Editora Saraiva 1ª edição, 1994

Page 3: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ORELHAS: 4 PREFÁCIO 5 I. LUTA 7

RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS 7 O CASULO DA DOR 14 SÍSIFO E O FARDO DA VIDA 20 RESPONDENDO ÀS PRESSÕES 27 A BASE DE APOIO 33

II. SACRIFÍCIO 41 SACRIFÍCIO E VÍTIMAS 41 A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA 45 JUSTIÇA 52 PERDÃO 53 A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR 54 O OLHO DO FURACÃO 64

III. SEPARAÇÃO E VÍNCULOS 68 PODE ALGUMA COISA NOS FERIR? 68 O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO 77 INTEGRAÇÃO 85 OS TOMATEIROS RIVAIS 89 NÃO JULGAR 95

IV. MUDANÇA 102 PREPARO DO TERRENO 102 EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS 106 O DIVÃ DE GELO 110 DERRETENDO OS CUBOS DE GELO 120 O CASTELO E O FOSSO 126

V. PERCEPÇÃO CONSCIENTE 134 O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE 134 RECOBRANDO O JUÍZO 143 ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO 152 FALSAS GENERALIZAÇÕES 158 OUVINDO O CORPO 165

VI. LIBERDADE 169 OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA 169 CURIOSIDADE E OBSESSÃO 175 TRANSFORMAÇÃO 184 O HOMEM NATURAL 190

VII. DESLUMBRAMENTO 201 A QUEDA 201 O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA 207 CONTENTAMENTO 211 CAOS E DESLUMBRAMENTO 219

VIII. NADA ESPECIAL 225 DO DRAMA AO NÃO-DRAMA 225 MENTE SIMPLES 232 DOROTHY E A PORTA TRANCADA 234 PEREGRINAR NO DESERTO 243 A PRÁTICA É DAR 247

Page 4: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Orelhas:

Viver o zen n ã o é n a da de especial: é a pen a s a vida com o ta l. O zen é a vida em s i, n a da m a is . Qu a n do bu s ca m os n o zen (ou em qu a lqu er ca m in h o es p ir itu a l) a rea liza çã o de n os s a s fa n ta s ia s , separamo-n os da ter ra e do céu , dos n os s os s eres a m a dos , de n os s o cora çã o, pois ta is fa n ta s ia s n os coloca m n u m is ola m en to tem porá r io. A rea lida de, n o en ta n to, s e in s in u a de m il m a n eira s , e a n os s a vida s e torn a u m a cor rer ia des en frea da , u m des es pero m u do, m elodra m a s con fu s os . Dis t ra ídos e obceca dos , lu ta n do por a lgo es pecia l, bu s ca m os ou tro lu ga r e ou tro tem po: n ã o o a qu i, n em o a gora e ta m pou co o is to

tu do, m en os a vida com u m , esse... nada de especial.

Em Na da de es pecia l, Ch a r lot te J oko obs erva : "As cois a s s ã o sempre o qu e s ã o". Es s e pen s a m en to n ã o é u m con s elh o de des es pero, m a s u m con vite a o con ten ta m en to. Viven do a pa r t ir do qu e s om os , s a ím os de u m a vida cen tra da em n ós pa ra u m a vida centrada n a rea lida de. Aba n don a n do os pen s a m en tos m á gicos , desperta n do pa ra a m á gica do m om en to a tu a l, da m o-n os con ta da graça do nada de especial... o zen vivido.

As reflexões de J oko Beck s obre tóp icos com o lu ta , s a cr ifício, s epa ra çã o e vín cu los , m u da n ça , con s cien t iza çã o, liberda de e des -lu m bra m en to revela m de qu e m a n eira a verda deira es p ir itu a lida de n ã o im plica u m a vida reclu s a , s epa ra da , m a s u m m ergu lh a r n a s vivên cia s d iá r ia s

os s en t im en tos , os rela cion a m en tos , o t ra ba -lho

com con s ciên cia , h on es t ida de e in tegr ida de. Dota da de u m a pers p icá cia e de u m d is cern im en to h oje céleb res , es ta con s a gra da m es t ra ociden ta l con tem porâ n ea a p res en ta n ova s d im en s ões pa ra a s im plifica çã o de n os s o viver . Com is s o Ch a r lot te J oko revela como quando nada é especial tudo pode sê-lo.

Nad a d e es pecial fa la do a tem pora l e do peren e, com m etá fora s s im ples e cla ra s pa ra a s cois a s com u n s e os in ciden tes do d ia -a -d ia , ilu m in a n do com m a ra vilh os o bom s en s o a n os s a vida .

CHARLOTTE J OKO BECK n a s ceu em Nova J ers ey. Só depois dos qu a ren ta e pou co a n os , é qu e in iciou s u a p rá t ica zen , em Los

Page 5: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

An geles . Des de 1983 , m u dou -s e pa ra o Zen Cen ter de Sa n Diego, on de m ora e lecion a n os d ia s de h oje. É a u tora de S em pre z en , pu-blicado pela Saraiva.

Prefácio

O zen vivo n ã o é n a da es pecia l: é a vida com o ta l. O zen é a vida em s i, n a da m a is , "Nã o pon h a u m a ou tra ca beça em cim a d a s u a ", decla rou o m es t re Rin za i. Qu a n do bu s ca m os n o zen (ou em qu a lqu er ca m in h o es p ir itu a l) a rea liza çã o de n os s a s fa n ta s ia s , separamo-n os da ter ra e do céu , dos n os s os s eres a m a dos , de n os s os cora ções e de n os s a s cos ta s qu e doem , da s p rópr ia s s ola s de n os s os pés . Es s a s fa n ta s ia s n os coloca m n u m is ola m en to temporário; no entanto, a realidade insinua-s e de dez m il m a n eiras e n os s a s vida s torn a m -s e cor rer ia s des en frea da s , u m m u do des es pero, m elodra m a s con fu s os . Dis t ra ídos e obceca dos , lu ta n do por a lgo es pecia l, bu s ca m os ou tro lu ga r e ou tro tem po: não o a qu i, não o a gora, não is to. Tu do m en os es s a vida com u m , es s e... n a da especial.

O zen vivo s ign ifica u m a in vers ã o de n os s a fu ga do n a da , u m a a ber tu ra pa ra o va zio do a qu i-a gora . De m a n eira len ta e doloros a recon cilia m o-n os com a vida . O cora çã o es m orece, a es pera n ça m orre. "As cois a s s ã o s em pre o qu e s ã o", obs erva J oko. Es s a ta u tologia va zia n ã o é u m con s elh o de des es pero, m a s u m con vite a o con ten ta m en to. Ao m orrerm os pa ra os s on h os do ego, a o a ba n don a rm os o es forço de ob ter res u lta dos , recu pera m os a s im plicida de da m en te. No ja rd im da s exper iên cia s cot idianas des en ter ra m os tes ou ros in es pera dos . In gen u a m en te, viven do a pa r t ir do qu e s om os , s a ím os de u m a vida cen tra da em n ós pa ra u m a vida cen tra da n a rea lida de e a ber ta a o des lu m bra mento. Aba n don a n do os pen s a m en tos m á gicos , des per ta n do pa ra a m a gia do m om en to a tu a l, da m o-n os con ta , n o va zio d in â m ico, da gra ça do nada em especial... o zen vivo.

Em s u a vida e em s eu s en s in a m en tos , em s u a p rópr ia p re-sença, Joko Beck manifesta a ausência notável que é o zen vivo.

Page 6: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Com o obs erva Len ore Fr iedm a n : "Em s u a n a tu ra lida de absoluta, Joko encarna a qualidade zen do 'nada especial'. Ela está a pen a s a li, em ca da s im ples m om en to" *, A cla reza s em cer im ônia de J oko va i lon ge. Su a s idéia s ecoa ra m n u m n ú m ero in con tá vel de leitores pelo m u n do todo. S em pre z en: Com o in trod uz ir a prática d o z en em s eu d ia-a-d ia t rou xe os en s in a m en tos e a cla reza do zen pa ra a vida d iá r ia n u m a form a s in ton iza da com os r itm os da vida ociden ta l con tem porâ n ea . Nad a es pecial: o z en v ivo a m plia e a p rofu n da os en s in a m en tos de J oko. Su a eleva da m a tu r ida de e bem próxim a a ten çã o da p rá t ica em s i fa zem des te livro u m texto útil não só para aqueles que desejam compreender melhor o zen no Ociden te, com o ta m bém pa ra a qu eles qu e es tã o determ in a dos a transformar suas vidas.

Como a a n ter ior , es ta obra é fru to n ã o s ó da s idéia s de J oko, m a s ta m bém do gen eros o a poio de m u itos de s eu s ded ica dos a m igos e a lu n os . Os leitores en con tra rã o a qu i pa les t ra s qu e es s es a lu n os a m igos t ra n s crevera m ou s u ger ira m qu e fos s em in clu ída s . Sem a a ju da qu e p res ta ra m , es te livro ta lvez n ã o t ives s e s ido con clu ído. J oh n Lou don , ed itor -ch efe da Ha rper em Sa n Fra n s cís co, or ien tou es te p rojeto com in cen t ivos e s a bedoria. Agradeço-lh e por s u a lidera n ça e s en s a tez. Pou cos a u tores e ed itores podem s er m a is a for tu n a dos qu e eu em term os de a s s is -tên cia ed itor ia l: com u m bom h u m or in a ba lá vel, Pa t Pa d illa t ra ba lh ou com ra p idez e p recis ã o em m in h a s gera lm en te des or -denadas revisões. Mais uma vez, colaborar com Joko foi a maior de toda s a s a legr ia s . Com u m a com pa ixã o qu e a s a bedor ia tornou madura, ela continua servindo todas as vidas que toca.

Steve Smith

Claremont, Califórnia

Fevereiro de 1993.

* Meetings with remarkable women: Buddhist teachers in America, Boston: Shambala, 1987, p. 112

Page 7: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

I. Luta

RODAMOINHOS E ÁGUAS PARADAS

Som os bem pa recidos a roda m oin h os n o r io da vida . Em s eu fluxo, o rio ou riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito qu e leva m a o a pa recim en to es pon tâ n eo de roda m oin h os a qu i e a li. A á gu a qu e pa s s a por es s es pon tos ra p ida m en te os a t ra ves s a e s e rein tegra a o r io, poden do m a is a d ia n te en t ra r em ou tro roda m oin h o e p ros s egu ir depois . Em bora por cu r tos per íodos ela pa reça d is t in ta , u m even to s epa ra do, a á gu a do roda m oin h o é apenas o próprio rio. A estabilidade do rodamoinho é temporária. A en ergia do r io da vida form a a s cois a s viva s

o s er h u m a n o, o ga to, o ca ch orro, a s á rvores e a s p la n ta s , e, en tã o, o qu e m a n t in h a o roda m oin h o n o lu ga r s ofre u m a m odifica çã o e a qu ele torvelin h o é des feito e tom a a en t ra r n o flu xo m a ior . A en ergia qu e foi u m cer to roda m oin h o s e d is s olve e a á gu a p ros s egu e, ta lvez pa ra s er n ova m en te ret ida e, por u m m om en to, t ra n s form a r-s e em outro rodamoinho.

Prefer im os n o en ta n to n ã o pen s a r s obre n os s a s vida s des s a m a n eira . Nã o qu erem os n os ver com o u m a form a çã o tem porá r ia e s im ples , u m roda m oin h o n o r io da vida . O fa to é qu e a s s u m imos u m a form a por u m cer to tem po e, qu a n do a s con d ições s ã o p rop ícia s , s a ím os de cen a . Nã o h á n a da er ra do em s a ir de cen a ; é u m a pa r te n a tu ra l do p roces s o. Con tu do, gos ta m os de pen s a r qu e es s es pequ en os roda m oin h os qu e s om os n ã o fa zem pa r te do r io. Qu erem os n os ver com o s eres perm a n en tes e es tá veis . Toda a n os s a en ergia é d ir igida pa ra n os s a s ten ta t iva s de p roteger n os s a s u pos ta rea lida de em s epa ra do. Pa ra p roteger es s a n os s a s epa ra çã o, cr ia m os lim ites fixos e a r t ificia is . Em con s eqü ên cia d is s o, a cu m u la m os exces s o de ba ga gem , cois a s qu e des liza m pa ra o fu n do do roda m oin h o e n ã o podem flu ir de n ovo. As s im , a s cois a s vã o en tu p in do n os s o roda m oin h o e o p roces s o fica con fu s o. O r io p recis a flu ir n a tu ra lm en te, s em em pecilh os . Se o n os s o roda m oin h o pa r t icu la r es tá todo en tu lh a do de cois a s , a cabamos ta m bém preju d ica n do o r io em s i. E le n ã o con s egu irá ir a pa r te n en h u m a . Os roda m oin h os p róxim os terã o m en os á gu a em vir tu de de n os s o a pego des es pera do. O m elh or qu e podem os fa zer por n ós e pela vida é m a n ter a á gu a de n os s o roda m oin h o flu in do e lim pa

Page 8: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa ra qu e a pen a s con t in u e s eu cu rs o. Qu a n do fica rep res a da , criamos problemas mentais, físicos e espirituais.

A m elh or m a n eira de s ervirm os ou tros roda m oin h os é per -m it in do qu e a á gu a qu e en t ra n o n os s o ten h a liberda de pa ra es cor rer a t ra vés dele e ir em fren te s olta e rá p ida , pa ra a t in gir qu a lqu er ou tro pon to qu e p recis e s er m obiliza do. A en ergia da vida bu s ca u m a rá p ida t ra n s form a çã o. Se con s egu irm os ver a vida des s a m a n eira e n ã o n os a pega rm os a n a da , a vida s im ples m en te vem e va i. Qu a n do det r itos ch ega m a o n os s o pequ en o roda m oinho, e s e s eu flu xo for h a rm ôn ico e for te, eles fica m gira n do por a li du ra n te u m cer to tem po e depois s egu em a d ia n te. Nã o é a s s im porém qu e vivem os . Com o n ã o percebem os qu e s om os s im ples roda m oin h os n o r io do u n ivers o, con s ideramo-n os en t ida des s epa -ra da s qu e p recis a m proteger s eu s lim ites . O p rópr io ju lga m en to "Sinto-m e m a goa do" es t ipu la u m lim ite a o n om ea r u m "eu " qu e cobra s er p rotegido. Sem pre qu e a lgu m lixo flu tu a pa ra den tro de n os s o roda m oin h o, fa zem os de tu do pa ra evitá-lo, pa ra expu ls á -lo, ou para, de alguma maneira, controlá-lo.

Noventa por cento da vida é gasta na tentativa de criar limites em torn o do roda m oin h o. Es ta m os con s ta n tem en te n a defen s iva : "Ele ta lvez m e m a goe"; "Is s o pode da r er ra do"; "Nã o gos to dele de jeito n en h u m ". Es s e é u m com pleto m a u u s o da n os s a fu n çã o vita l e, m es m o a s s im , todos n os com por ta m os des s a form a , em m a ior ou menor escala.

As p reocu pa ções fin a n ceira s refletem n os s o es forço pa ra manter limites fixos. "E se o meu investimento fracassar? Talvez eu perca todo o m eu d in h eiro." Nã o qu erem os qu e n a da a m ea ce n os s o s u pr im en to m on etá r io. Todos pen s a m qu e is s o s er ia u m a cois a ter r ível. Sen do p rotetores e a n s ios os , a pega n do-n os a os n os s os bens materiais, entulhamos nossas vidas. A água que deveria estar cor ren do, en t ra n do e s a in do, pa ra poder s ervir , torn a -s e es ta gn a da . O roda m oin h o qu e ergu e u m d iqu e à s u a volta e s e is ola do res to do r io s e torn a es ta gn a do e perde s u a vita lida de. A p rá t ica con s is te em n ã o s e es ta r m a is p res o a o qu e é pa r t icu la r , m a s em en xergá -lo com o rea lm en te é

u m a pa r te do todo. Apes a r d is s o, ga s ta m os a m a ior pa r te de n os s a en ergia cr ia n do á gu a pa ra da . È is s o o qu e a con tece qu a n do s e vive n o m edo. O m edo exis te porqu e o roda m oin h o n ã o en ten de o qu e é

ou s eja , n a da a lém do próprio r io. En qu a n to n ã o t iverm os u m vis lu m bre des s a verda de, toda n os s a en ergia es ta rá in do n a d ireçã o er ra da . Cr ia m os m u itos

Page 9: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pon tos de es ta gn a çã o qu e gera m con ta m in a çã o e doen ça s . Es s es pon tos es ta gn a dos em bu s ca de p roteçã o den tro de d iqu es com eça m a b r iga r u n s com os ou tros . "Você fede. Nã o gos to de você." Águ a s es ta gn a da s ca u s a m m u itos p rob lem a s . O fres cor da vida está perdido.

A p rá t ica do zen a ju da -n os a ver de qu e m a n eira cr ia m os es ta gn a çã o em n os s a vida . "Será qu e eu fu i s em pre tã o za n ga do e nunca repa rei?" As s im , n os s a p r im eira des cober ta n a p rá t ica é recon h ecer n os s a p rópr ia es ta gn a çã o, cr ia da por n os s os pen s a -m en tos cen tra dos em n ós m es m os . Os m a iores p rob lem a s s ã o cr ia dos por a qu ela s a t itu des qu e n ã o con s egu im os en xerga r em nós. A depressão, o medo e a raiva que não são reconhecidos criam r igidez. Qu a n do recon h ecem os a r igidez e a es ta gn a çã o, a á gu a com eça a flu ir de n ovo, pou co a pou co. Sen do a s s im , a pa r te m a is vita l da p rá t ica é o des ejo de s er a p rópr ia vida

qu e é a pen a s o con ju n to da s s en s a ções qu e n os ch ega m

com o a qu ilo qu e cr ia nosso rodamoinho.

Ao lon go de m u itos a n os , t rein a m o-n os pa ra fa zer o opos to: cr ia r pon tos de á gu a es ta gn a da . Es s a é a n os s a fa ls a con qu is ta. Des s e es forço in ces s a n te n a s cem todos os n os s os p rob lem a s e o nosso d is ta n cia m en to da vida . Nã o s a bem os com o s er ín t imos, como ser um fluxo de vida. Um rodamoinho estagnado, com limites defen d idos , n ã o es tá p róxim o de n a da . Pr is ion eiros de s on h os cen tra dos em n ós m es m os , s ofrem os , com o d izem os votos d iá r ios de um de nossos centros de zen *. A prática é a lenta inversão disso. Pa ra a m a ior ia dos es tu da n tes , es s a in vers ã o é t ra ba lh o pa ra u m a vida in teira . A m u da n ça é em gera l doloros a , p r in cipa lm en te n o in ício. Qu a n do es ta m os h a b itu a dos à r igidez e à in flexib ilida de de uma vida defen d ida , n ã o qu erem os da r perm is s ã o pa ra qu e n ova s cor ren tes de en ergia cru zem o es pa ço da con s ciên cia , por m a is rejuvenescedoras que sejam.

A verda de é qu e n ã o gos ta m os m u ito de a r fres co. Nã o gos ta m os m u ito de á gu a lim pa . Leva m u ito tem po a té conseguir-m os en xerga r n os s o s is tem a de defes a e m a n ipu la çã o da vida em n os s a s a t ivida des d iá r ia s . A p rá t ica a ju da -n os a en xerga r ta is m a n obra s com m a is cla reza , e es s a s con s ta ta ções s em pre s ã o

* Os votos são os seguintes: "Preso num sonho autocentrado: somente sofrimento / Apegado a pensamentos autocentrados: exatamente o sonho. / A cada momento, a vida é assim: a única mestra. / Ser somente este momento: o caminho da compaixão"

Page 10: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

des a gra dá veis . Ain da a s s im , é fu n da m en ta l qu e veja m os o qu e estam os fa zen do. Qu a n to m a is tem po p ra t ica rm os , m a is p ron ta -m en te poderem os recon h ecer n os s os pa drões de defes a . O p ro-ces s o n u n ca é fá cil ou in dolor , porém , e a qu eles qu e es tã o es pera n do en con tra r u m lu ga r fá cil e rá p ido pa ra des ca n s a r n ã o deverão embarcar nessa viagem.

Por es s e m ot ivo é qu e n ã o m e s in to à von ta de com o crescimento do Centro Zen em San Diego. Um número excessivo de a pren d izes es tá em bu s ca de s olu ções fá ceis e in dolores pa ra s u a s d ificu lda des . Prefiro u m cen tro m en or , lim ita do à qu eles qu e es tão pron tos e d is pos tos a execu ta r o t ra ba lh o. Cla ro qu e n ã o es pero de p r in cip ia n tes o m es m o qu e de p ra t ica n tes m a is exper ien tes . Es ta m os todos a p ren den do, ca da vez m a is . No en ta n to, qu a n to maior o centro, mais difícil é manter o ensino limpo e rigoroso. Não é im por ta n te o n ú m ero de a lu n os qu e con s egu im os a t ra ir pa ra o centro. Importante é manter forte a prática. Por isso estou exigindo ca da vez m a is n os en s in a m en tos . Es te n ã o é u m lu ga r pa ra qu em es tá in teres s a do n u m a pa z ou n u m es ta do de gra ça a r t ificia is , ou em algum outro estado particular.

O qu e ob tem os efet iva m en te da p rá t ica é torn a rm o-n os m a is con s cien tes , m a is des per tos , m a is vivos . É recon h ecer n ossas ten dên cia s n ociva s tã o bem qu e n ã o ten h a m os n eces s ida de de pô-la s em prá t ica com os ou tros . Apren dem os qu e n u n ca es tá cer to ber ra r com a lgu ém s ó porqu e es ta m os a borrecidos . A p rá tica ajuda-n os a perceber on de n os s a vida es tá es ta gn a da . Dife-ren tem en te dos r ios de m on ta n h a com s u a m a ra vilh os a á gu a percor ren do vá r ios lu ga res , s om os à s vezes leva dos a u m a im o-b iliza çã o com pen s a m en tos do t ipo: "Nã o gos to d is s o... E le de fa to me magoa", ou "Minha vida é tão difícil...". Na realidade, só existe o flu xo in ces s a n te da á gu a . Aqu ilo qu e ch a m a m os de n os s a vida nada mais é que um pequeno desvio, um rodamoinho que se forma para em seguida se desfazer. Às vezes, os desvios são pequeninos e m u ito cu r tos : a vida rodop ia por u m a n o ou dois em u m s ó lu ga r e depois é rem ovida . Ás pes s oa s s e in da ga m por qu e a lgu n s bebês m orrem qu a n do a in da s ã o tã o n ovin h os . Qu em s a be? Nós n ã o s a bem os por qu ê. Fa z pa r te des s e in term in á vel flu xo de en ergia . Qu a n do pu derm os a ceitá -lo, es ta rem os em pa z. Qu a n do todos os nossos esforços vão em direção oposta, não estamos em paz.

ALUNO: Em n os s a vida , é u m a boa idéia es colh er u m a d ireçã o específica e con cen tra r a li n os s a a ten çã o, ou é m elh or a pen a s

Page 11: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a ceita r a s cois a s com o ela s s ã o? Es t ipu la r m eta s es pecífica s pode bloquear o fluxo da vida, não é?

JOKO: O p rob lem a es tá n ã o em term os m eta s , m a s em n os s a rela çã o com ela s . Precis a m os ter a lgu m a s m eta s . Por exem plo, os pa is s e es t ipu la m m eta s , com o orga n iza r s u a s fin a n ça s a n te-cipa da m en te pa ra pa ga r a edu ca çã o de s eu s filh os . As pes s oa s com ta len tos n a tu ra is têm com o m eta des en volvê-los . Nã o h á n a da de er ra do n is s o. Ter m eta s é pa r te de s er h u m a n o. É com o chegamos lá que cria transtornos.

ALUNO: O m elh or ca m in h o é ter a s m eta s , m a s n ã o fica r n a dependência do resultado final?

JOKO: É is s o. A pes s oa s im ples m en te fa z a qu ilo qu e é p recis o pa ra a t in gir s eu ob jet ivo. Qu a lqu er pes s oa qu e s e in teres s e em obter u m gra u a ca dêm ico p recis a m a tr icu la r -s e n u m a es cola e a s s is t ir à s a u la s , por exem plo. A qu es tã o é in cen t iva r o ob jet ivo realizando-o n o p res en te: fa zen do is to, is s o ou a qu ilo, con form e for s e m os tra n do n eces s á r io, a qu i, a gora . Em a lgu m m om en to irem os cola r o gra u , ou o qu e for . Por ou tro la do, s e a pen a s s on h a m os com u m ob jet ivo e deixa m os de p res ta r a ten çã o a o p res en te, é p rová vel qu e n ã o con s iga m os leva r n os s a vida a d ia n te

e fiquemos estagnados.

Seja qu a l for a n os s a es colh a , o res u lta do n os s ervirá como u m a liçã o. Se es t iverm os a ten tos e des per tos , a p ren derem os o qu e é n eces s á r io fa zer em s egu ida . Nes s e s en t ido, n ã o h á decis ã o er ra da . No m in u to m es m o em qu e tom a m os u m a decis ã o, s om os con fron ta dos com n os s o p róxim o p rofes s or . Podem os fa zer es -colh a s qu e n os deixem in com oda dos . Podem os ter rem ors o por cer ta s cois a s qu e fa zem os

e a pren der com es s a s exper iên cia s . Por exem plo, n ã o exis te u m a pes s oa idea l pa ra s e ca s a r , n em u m m eio idea l de s e viver . No in s ta n te em qu e n os ca s a m os , es ta m os com todo u m n ovo con ju n to de opor tu n ida des in éd ita s de a p ren -d iza gem , com bu s t ível pa ra p rá t ica . Is s o va le n ã o a pen a s pa ra ca s a m en tos , m a s pa ra qu a lqu er rela çã o. En qu a n to es t iverm os p ra t ica n do com o qu e ch ega a n ós , o res u lta do fin a l s erá qu a s e sempre recompensador e terá valido a pena.

ALUNO: Qu a n do es t ipu lo u m a m eta pa ra m im , m in h a ten dên cia é u s a r o es t ilo "rá p ido e em fren te", ign ora n do o flu xo do rio.

Page 12: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Qu a n do o roda m oin h o ten ta torn a r -s e in depen den te do r io, com o u m torn a do qu e rodop ia e s a i do con trole, ele pode ca u s a r m u itos es t ra gos . Mes m o qu e pen s em os n o ob jet ivo com o u m cer to es ta do fu tu ro a s er a lca n ça do, a verda deira m eta é s em pre a vida des te m om en to. Nã o h á com o em pu rra r o r io pa ra o la do. Mes m o qu e ten h a m os con s t ru ído u m d iqu e à n os s a volta e ten h a m os n os torn a do u m la go de á gu a es ta gn a da , a lgu m a cois a a con tecerá qu e n ã o h a vía m os p revis to. Ta lvez é a a m iga e s eu s qu a tro filh os qu e s e con vida pa ra vir n os vis ita r por u m a s em a n a . Ou m orre a lgu ém . Ou o t ra ba lh o m u da de repen te. A vida pa rece n os a p res en ta r ju s ta m en te a qu ilo qu e s er ia p recis o pa ra m ovi-mentar o lago.

ALUNO: Em termos da analogia dos rodamoinhos e do rio, qual é a diferença entre vida e morte?

JOKO: O roda m oin h o é u m vór t ice, e em torn o de s eu cen tro a á gu a gira . Con form e a vida da pes s oa va i p ros s egu in do, o cen tro a os pou cos va i fica n do ca da vez m a is fra co. Qu a n do en fra qu ecer o s u ficien te, des fa z-s e e a á gu a s im ples m en te s e torn a de n ovo pa r te do rio.

ALUNO: Des s e pon to de vis ta , n ã o s er ia m elh or s er s em pre apenas parte do rio?

JOKO: Nós s em pre s om os pa r te do r io, s en do roda m oin h os ou n ã o. Nã o h á com o evita rm os s er pa r te do r io. Nã o s a bem os d is s o, porém , porqu e tem os u m a form a delim ita da e n ã o en xergamos além dela.

ALUNO: Por ta n to é u m a ilu s ã o qu e a vida s eja d iferen te da morte?

JOKO: Em s en t ido a bs olu to is s o é verda de, em bora de n os s o pon to de vis ta s eja m m om en tos d is t in tos . Em n íveis d iferen tes , a m ba s a s percepções s ã o verda deira s : n ã o exis te vida e m or te e exis te vida e m or te. Qu a n do s ó con h ecem os es s a s egu n da pers pect iva , a pega m o-n os à vida e tem em os a m or te. Qu a n do vemos as duas, o aguilhão da morte é muito mais tênue.

Se es pera rm os o ba s ta n te, todos os roda m oin h os a ca ba rã o desfazendo-s e com o tem po. A m u da n ça é in evitá vel. Com o vivo em Sa n Diego h á m u ito tem po, ten h o obs erva do os pen h a s cos de La Jolla há anos. Eles estão mudando. A linha costeira que existe hoje n ã o é a m es m a qu e eu con tem pla va h á t r in ta a n os . Acon tece o

Page 13: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

mesmo com os rodamoinhos: eles também mudam e, com o tempo, vã o en fra qu ecen do. Algo cede en fim , a á gu a flu i n u m a corredeira e está tudo certo.

ALUNO: Qu and o en fim m orrem os , re tem os a lgu m a cois a do qu e fomos ou tudo se acaba?

JOKO: Nã o vou res pon der a es s a pergu n ta . Su a p rá t ica irá proporcionar-lhe um certo entendimento dessa questão.

ALUNO: Algu m a s vezes você des creveu a en ergia da vida com o u m a in teligên cia n a tu ra l qu e n ós s om os . Es s a in teligên cia ter ia algum tipo de limite?

JOKO: Nã o. In teligên cia n ã o é u m a cois a ; n ã o é u m a pes s oa . Nã o tem lim ites . No in s ta n te em qu e es ta belecem os lim ites pa ra u m a cois a , n ós a rein s er im os n a es fera fen om ên ica da s cois a s , como um rodamoinho que se enxerga separado do rio.

ALUNO: Um de n os s os votos com u n s n o Cen tro Zen fa la de u m "ilim ita do ca m po de ben es s es " *. Is s o é o m es m o qu e o r io, qu e a inteligência natural que nós somos?

JOKO: Sim . A vida h u m a n a é a pen a s u m a form a tem porá r ia que essa energia toma.

ALUNO: Apes a r d is s o, em n os s a s vida s exis te de fa to a necessidade de lim ites . Ten h o u m a gra n de d ificu lda de em ju n ta r isso com o que você está dizendo.

JOKO: Algu n s lim ites s ã o s im p les m en te in eren tes a o qu e s om os ; por exem plo, todos tem os u m a qu a n t ida de lim ita da de en ergia e de tem po. Precis a m os recon h ecer n os s a s lim ita ções n es s e s en t ido. Ma s is s o n ã o qu er d izer qu e ten h a m os de es ta belecer lim ites a r t ificia is e defen s ivos qu e b loqu eia m n ossas vida s . Mes m o qu a n do s om os a in da pequ en os roda m oin h os podem os já recon h ecer qu e s om os pa r te do r io

e n ã o fica m os estagnados.

* Francis Dojun Cook, How to raise an ox: Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e s.

Page 14: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

O CASULO DA DOR

Qu a n do n os in clin a m os n o zen do, o qu e es ta m os h on ra n do? Uma maneira de responder a essa pergunta é indagar o que de fato h on ra m os em n os s a vida e qu e t ra n s pa rece n a qu ilo qu e pen s a m os e fa zem os . E a verda de des s a qu es tã o é qu e, em n os s a vida , n ós n ã o h on ra m os a n a tu reza bu da , n em o Deu s qu e en globa toda s a s cois a s , in clu s ive a vida e a m or te, o bem e o m a l, todos os opos tos . A verda de é qu e n ã o es ta m os in teres s a dos n is s o. É cer to n ã o qu ererm os h on ra r a m or te, a dor e a perda . O qu e fa zem os é er igir um falso deus. A Bíblia diz: "Não tens outros deuses antes de mim". Mas fazemos justamente isso.

Qu a l é o deu s qu e con s t ru ím os ? O qu e de fa to h on ra m os , a qu e da m os rea lm en te a ten çã o, de m om en to a m om en to? Pode-r ía m os ch a m á -lo de o deu s do con for to, da s a m en ida des e da s egu ra n ça . Qu a n do reveren cia m os es s e deu s , des t ru ím os a n os s a vida . Qu a n do reveren cia m o deu s do con for to e da s a m en ida des , a s pes s oa s litera lm en te s e m a ta m , com droga s , á lcool, cor r ida s de a u tom óveis , ra iva , im pru dên cia s . As n a ções reveren cia m es s e deu s n u m a es ca la m u ito m a ior e des t ru t iva . En qu a n to n ã o en xergarmos de form a h on es ta qu e é d is s o qu e n os s a vida t ra ta , n ã o s erem os capazes de descobrir quem somos de fato.

Tem os m u ita s m a n eira s de lida r com a vida , m u ita s m a n eiras de reveren cia r o con for to e a s a m en ida des . Toda s ela s ba seiam-se n a m es m a cois a : o m edo de depa ra r com qu a lqu er t ipo de incômodo. Se devem os ter ordem e con t role a bs olu tos , es ta mos ten ta n do evita r toda e qu a lqu er fon te de in côm odo. Se con s egu im os fa zer com qu e a s cois a s s eja m do jeito qu e qu eremos e fica m os za n ga dos qu a n do is s o n ã o a con tece, en tã o pen s a mos qu e podem os s obreviver e deixa r de la do n os s a a n s ieda de a res peito da m or te. Se con s egu im os a gra da r a toda s a s pes s oa s , en tã o im a gin a m os qu e a s cois a s des a gra dá veis n ã o en tra rã o em n os s a vida . Es pera m os qu e, s en do a es t rela do es petá cu lo, res -p la n decen te, m a ra vilh os a e eficien te, terem os u m a p la téia tã o em bevecida qu e n ã o p recis a rem os s en t ir n a da . Se con s egu irm os n os a fa s ta r do m u n do e en treter-n os a pen a s com n os s os p rópr ios s on h os , fa n ta s ia s e d is tú rb ios em ocion a is , pen s a rem os qu e con -s egu im os n os fu r ta r a os in côm odos . Se con s egu irm os p rever tu do a n tes , s e con s egu irm os s er tã o es per tos qu e n os s eja pos s ível

Page 15: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

en ca ixa r tu do em a lgu m p la n o ou ordem , form u la n do u m en ten d im en to in telectu a l com pleto, en tã o ta lvez n ã o s eja m os ameaça dos . Se con s egu irm os n os s u bm eter a a lgu m a a u tor ida de, fazê-la d ita r -n os com o a gir , en tã o poderem os en trega r a ou trem a res pon s a b ilida de por n os s a vida e n ã o terem os m a is qu e n os in cu m bir dela . Nã o terem os de s en t ir a a n s ieda de de tom a r u m a decis ã o. Se viverm os a lu cin a da m en te cor ren do a t rá s de toda s a s sensações a gra dá veis , de toda s a s excita ções , de toda s a s form a s de d ivers ã o, en tã o ta lvez n ã o ten h a m os de s en t ir dor . Se con s e-gu irm os d izer a os ou tros o qu e fa zer , m a n ten do-os bem s ob con trole, s ob n os s os pés , ta lvez eles n ã o con s iga m n os fer ir . Se conseguirmos "via ja r" n u m êxta s e qu a lqu er , s e con s egu irm os s er u m "bu da " in con s eqü en te, n ã o terem os de a s s u m ir a res pon -s a b ilida de pelos in côm odos do viver . Poderem os a pen a s rela xa r e ser felizes.

Toda s es s a s s ã o vers ões do deu s qu e rea lm en te reveren cia -m os . É o deu s do n en h u m des con for to e do n en h u m in côm odo. Sem exceçã o, todo s er n a Ter ra tem es s a a t itu de, em m a ior ou m en or gra u . En qu a n to a a lim en ta m os , perdem os o con ta to com o qu e n a verda de é. Nes s a fa lta de con ta to, n os s a vida des ce em es p ira l. E a qu eles m es m os in côm odos qu e ta n to des ejá va m os evitar conseguem, tomar-nos de assalto.

Tem s ido es s e o p rob lem a da vida h u m a n a des de o in ício dos tem pos . Toda s a s filos ofia s e religiões têm s ido ten ta t iva s va r iá veis de lida r com es s e m edo bá s ico. Apen a s qu a n do es s a s ten ta t ivas n os fa lh a m é qu e fica m os p ron tos pa ra in icia r u m a p rá t ica s ér ia . E ela s de fa to fa lh a m . Porqu e os s is tem a s qu e a dota m os n ã o s e ba s eia m n a rea lida de, n ã o podem da r cer to, a pes a r de todos os n os s os m a iores es forços . Ma is cedo ou m a is ta rde, con s ta ta m os que está faltando algo.

In felizm en te, n ós m u ita s vezes a pen a s a u m en ta m os o n os s o er ro con t in u a n do com a s m es m a s ten ta t iva s ou reves t in do n os s o velh o e déb il s is tem a com u m ou t ro n ovo, ta m bém déb il. É s edu tor , por exem plo, en t rega rm o-n os a a lgu m a fa ls a a u tor ida de ou a u m preten s o gu ru , qu e irá a dm in is t ra r a n os s a vida por n ós , enquanto ten ta m os en con tra r a lgo ou a lgu ém fora de n ós qu e s e in cu m ba de nosso medo.

On tem u m a borboleta en t rou voa n do pela por ta de m in h a ca s a e ficou es voa ça n do pela s a la . Algu ém a a pa n h ou e a s oltou lá

Page 16: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

fora . Fiqu ei pen s a n do n a vida de u m a borboleta . E la com eça com o u m a la ga r ta , qu e s e des loca m u ito deva ga r e n ã o con s egu e enxergar muito longe. Depois de um certo tempo, ela faz um casulo e n a qu ele es pa ço es cu ro e s ilen cios o perm a n ece m u ito tem po. Por fim , depois do qu e deve pa recer u m a etern ida de de t reva s , ela emerge como uma borboleta.

A h is tór ia de vida da s borboleta s é s em elh a n te à n os s a p rá t ica . Tem os a lgu n s p recon ceitos a res peito de a m ba s , porém . Podem os im a gin a r , por exem plo, qu e s en do a s borboleta s s eres lin dos , s u a vida n o ca s u lo, a n tes de s e torn a rem borboleta s , ta m bém é lin da . Nã o percebem os tu do o qu e a la ga r ta deve s u por ta r pa ra torn a r -s e u m a borboleta . Da m es m a form a , qu a n do com eça m os a p ra t ica r , n ã o n os da m os con ta da lon ga e pen os a t ra n s form a çã o a qu e s om os s olicita dos . Tem os de en xerga r a t ravés de n os s a bu s ca de cois a s extern a s , dos fa ls os deu s es do p ra zer e da s egu ra n ça . Tem os de pa ra r de devora r is s o e pers egu ir a qu ilo com n os s a vis ã o m íope e s im ples m en te rela xa r den tro do ca s u lo, nas trevas da dor que é a nossa vida.

Es s a p rá t ica exige a n os e a n os . Divers a m en te da s borboletas, n ã o em ergim os de u m a s ó vez. En qu a n to gira m os den t ro do ca s u lo de dor , podem os ter vis lu m bres fu ga zes da vida , com o u m a borboleta es voa ça n do a o s ol. Nes s es m om en tos , s en t im os o a bs olu to des lu m bra m en to do qu e é n os s a vida

a lgo qu e n u n ca con h ecem os com o la ga r t in h a s a ta refa da s , p reocu pa da s a pen a s com n ós p rópr ia s . Com eça m os a con h ecer o m u n do da borboleta apen a s pelo con ta to com n os s a p rópr ia dor , o qu e s ign ifica n ã o reveren cia r m a is o deu s do con for to e da s a m en ida des . Tem os de des is t ir de n os s a s ervil obed iên cia a qu a lqu er s is tem a qu e evite a dor qu e ten h a m os ela bora do, con s ta ta n do qu e n ã o podem os n os es qu iva r do in côm odo s im ples m en te cor ren do m a is depres s a e ten ta n do m a is u m pou co. Qu a n to m a is depres s a n os a fa s ta m os de n os s a dor , m a is ela s e a podera de n ós . Qu a n do n ã o fu n cion a m a is a qu ilo de qu e depen d ía m os pa ra da r s en t ido à n os s a vida , o qu e fazer?

Algu m a s pes s oa s ja m a is des is tem des s a fa ls a bu s ca . Com o tem po podem a ca ba r m orren do de u m a overdose, litera l ou figu ra t iva m en te. No es forço de a dqu ir ir con trole m ovem o-n os cada vez m a is rá p ido, da m os tu do o qu e tem os , ten ta m os com m a is em pen h o, es p rem em os a s pes s oa s a o m á xim o, es p rem em os n ós mesm os a o m á xim o. No en ta n to, a vida n u n ca poderá s er de fa to

Page 17: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s u bm et ida a u m con trole tota l. Qu a n to m a is fu gim os da rea lida de, mais a dor aumenta. Essa dor é nossa mestra.

A p rá t ica s en ta da n ã o t ra ta de en con tra r u m es ta do feliz de gra ça e n ele s e es qu ecer . Es s e es ta do pode in clu s ive ocorrer n a p rá t ica s en ta da , qu a n do já h ou verm os viven cia do n os s a dor vá rias vezes s egu ida s , de m odo qu e depois s ó res ta o en t rega r -s e. Es s a en t rega a es s a a ber tu ra pa ra a lgo n ovo e virgem é a con s eqüência de s e viver a dor , n ã o o res u lta do de s e en con tra r u m lu ga r on de podemos deixar a dor do lado de fora.

Sesshin * s en ta do e a p rá t ica d iá r ia s ã o u m a qu es tã o de n os embrulharmos naquele casulo de dor. Não o faremos senão de bom gra do. Pr im eiro podem os ter a pen a s u m a pequ en a fa ixa atando-n os , e en tã o n os livra m os dela . Ou tra vez a en rola m os à n os s a volta e m a is u m a vez n os s olta m os , Depois de u m tem po, s en t im o-n os d is pos tos a s en ta r com u m a pa rcela de n os s a dor du ra n te a lgu m tem po. En tã o depois , ta lvez, d is pom o-n os a tolera r du a s ou t rês fa ixa s n os a per ta n do. Con form e n os s a vis ã o va i fica n do m a is cla ra , podem os s im p les m en te s en ta r den tro de n os s o ca s u lo e descobrir que é o único espaço sossegado que já tivemos na vida. E, qu a n do es t iverm os d is pos tos a es ta r a li

em ou tra s pa la vra s , qu a n do es t iverm os des eja n do qu e a vida s eja o qu e ela é, en globa n do ta n to a vida com o a m or te, ta n to o p ra zer com o a dor , ta n to o bem com o o m a l, s en t in do con for to em s er a s du a s coisas , então o casulo começa a desfazer-se.

Diferen tem en te da borboleta , a ltern a m os en tre o ca s u lo e a borboleta muitas vezes. Esse processo se mantém por toda a nossa vida . Toda vez qu e depa ra m os com á rea s n ã o res olvida s dd n os s a vida , tem os qu e con s t ru ir u m ou tro ca s u lo e repou s a r n ele em s ilên cio a té qu e ten h a s e com pleta do o per íodo de a p ren d iza gem . Toda vez qu e o ca s u lo s e rom pe e n ós da m os m a is u m pequ en o passo, estamos um pouco mais livres.

O p r im eiro e es s en cia l pa s s o pa ra n os torn a rm os u m a bor-boleta é recon h ecer qu e n ã o ch ega rem os lá s en do la ga r ta s . Temos que enxergar mais além de nossa busca pelo falso deus do conforto e do p ra zer . Tem os qu e form u la r u m a n ít ida im a gem des s e deu s . Tem os de a b r ir m ã o de n os s a n oçã o de qu e tem os d ireitos , de qu e a vida n os deve is to ou a qu ilo. Por exem plo, tem os de a ba n don a r a

* Retiro para meditação zen intensiva.

Page 18: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n oçã o de qu e con s egu im os força r os ou t ros a n os a m a r fa zen do cois a s pa ra eles . Tem os de recon h ecer qu e n ã o tem os con d ições de m a n ipu la r a vida pa ra n os s a t is fa zer e qu e en con tra r os defeitos em n ós ou n os ou tros n ã o é u m ca m in h o efica z pa ra s e a ju da r qu em qu er qu e s eja . Aos pou cos va m os a ba n don a n do n os s a arrogância básica.

A verda de é qu e a vida den tro do ca s u lo é fru s t ra n te e dói m u ito e n u n ca fica in teira m en te pa ra t rá s . Nã o es tou d izen do qu e da m a n h ã a té a n oite s en t im os a lgo com o "Es tou en volvido pela dor". Es tou d izen do qu e es ta m os s em pre a corda n do pa ra o qu e de fato nos sentimos atraídos, para aquilo que estamos fazendo com a n os s a vida rea lm en te. E o fa to é qu e is s o é doloros o. Nã o exis te possibilidade de liberdade, porém, sem essa dor.

Ou vi h á pou co tem po u m a decla ra çã o de u m a t leta p rofis -s ion a l: "Am or n ã o é p ra zer com pa r t ilh a do. É dor repa r t ida ". E is u m a boa percepçã o. Sem dú vida podem os gos ta r m u ito de pa ssear com nosso marido ou namorado, por exemplo, quando saímos para ja n ta r ju n tos . Nã o es tou qu es t ion a n do o va lor do p ra zer com pa r t ilh a do. Ma s , s e qu erem os u m a rela çã o m a is p róxim a e a u tên t ica , p recis a m os com pa r t ilh a r com n os s o com pa n h eiro a qu ilo qu e m a is n os a s s u s ta fa la r pa ra ou tra pes s oa . Qu a n do fa zem os is s o, en tã o o ou tro tem a liberda de de fa zer a m es m a cois a . Em vez d is s o, qu erem os fica r m a n ten do a n os s a im a gem , p r in cipa lmente para alguém a quem estamos tentando impressionar.

Compartilhar nossa dor não significa ficar informando o outro de qu e m a n eira ele n os ir r ita . Ser ia u m a ou tra m a n eira de lh e es ta r d izen do "Es tou com ra iva de você". Is s o n ã o n os a ju da a qu ebra r n os s o fa ls o ídolo, n em a n os a b r ir pa ra a vida com o u m a borboleta . O qu e de fa to n os a b re é fa la r de n os s a s vu ln era b ilida des . Às vezes vem os u m ca s a l qu e vem fa zen do es s e á rdu o t ra ba lh o du ra n te toda s u a vida . Ao lon go des s e tem po, en velh ecera m ju n tos . Podem os s en t ir o im en s o con for to, a qu a -lida de recíp roca de bem -es ta r en t re os dois . É m a ra vilh os o e m u ito ra ro. Sem es s a qu a lida de de a ber tu ra e vu ln era b ilida de, os pa res n ã o fica m s e con h ecen do de verda de; s ã o u m a im a gem viven do com outra imagem.

Ta lvez ten tem os n os es qu iva r do ca s u lo da dor m ergu lh a n do n u m es ta do n ebu los o e m a l foca liza do, com o u m boia r levemente a gra dá vel qu e pode du ra r h ora s . Qu a n do n os da m os con ta de qu e

Page 19: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

é is s o qu e es tá a con tecen do, qu a l s er ia u m a boa pergu n ta pa ra s e fazer?

ALUNO: "O que estou evitando?"

ALUNO-. Eu poderia perguntar: "O que estou vivenciando neste exato momento?".

JOKO: Es s a s s ã o du a s boa s pergu n ta s pa ra s e fa zer . O cu r ios o é qu e d izem os qu e qu erem os con h ecer a rea lida de e ver a n os s a vida com o ela é; e, n o en ta n to, qu a n do com eça m os a p ra t ica r , ou freqüentamos os sesshin, encontramos imediatamente maneiras de evitar a realidade, refugiando-nos nesse estado nebuloso, sonhador. Es s a é a pen a s u m a ou tra form a de reveren cia r o fa ls o deu s do conforto e do prazer.

ALUNO: Nã o é u m cer to des equ ilíb r io bu s ca r o s ofr im en to e concentrar nele a atenção?

JOKO: Nã o tem os qu e ir bu s cá -lo, ele já es tá em n os s a s vida s . A ca da cin co m in u tos en t ra m os n u m a es pécie de d ificu lda de. Toda n os s a "bu s ca " é pa ra evitá -lo. Exis tem in con tá veis m a n eira s pa ra s e ten ta r es ca pa r dele, ou pa ra coloca r u m a con ch a de p roteçã o a n os s a volta . Apes a r de todos os n os s os es forços , es s a con ch a s e rom pe. En tã o fica m os m a is des es pera dos e n os es força m os m a is . Va m os t ra ba lh a r e des cobr im os qu e o ch efe teve u m a n oite d ifícil, ou qu e nos s o filho acab a de liga r d izen do qu e es tá com prob lem a s n a es cola . A con ch a es tá s en do o tem po todo in va d ida . Nã o exis te m a n eira de n os a s s egu ra rm os de qu e ela perm a n ecerá in ta cta . Nos s a s vida s s e des m oron a m porqu e n ã o con s egu im os tolera r nenhuma oposição ao modo como queremos que as coisas saiam.

A dor es tá con s ta n tem en te em n os s a s vida s . Sen t im os n ã o s ó a n os s a p rópr ia dor , m a s a da s pes s oa s a o n os s o redor . Ten ta m os erguer um paredão mais sólido que o anterior, ou evitar as pessoas qu e es tã o s ofren do; con tu do, a dor s em pre es tá p res en te, s eja como for.

ALUNO: Va m os s u por qu e es tou p ra t ica n do e qu e n ã o es tou sofren do. Na verda de, es tou m e s en t in do m u ito bem . É ú t il lembrar de m om en tos doloros os pelos qu a is já s e pa s s ou , ou retorn a r a s itu a ções qu e fica ra m s em res olver e ten ta r t ra ba lh a r com essas coisas?

Page 20: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Nã o é n eces s á r io. Se es t iverm os a ler ta s pa ra o qu e es tá s e pa s s a n do em n os s os pen s a m en tos e em n os s o corpo n es te m o-mento, teremos mais do que o suficiente com que trabalhar.

Qu a n do es ta m os p len a m en te des per tos , n es te m om en to, a p rá t ica ta m bém pode s er a gra dá vel. Ma s n ã o devem os ir em bu s ca d is s o e ten ta r es ca pa r da dor , pois a s s im es ta r ía m os t ra zen do pa ra a p rá t ica o fa ís o deu s e n os recu s a r ía m os a des per ta r pa ra s u a verdadeira natureza.

ALUNO: Com o tem po des cobr i qu e o qu e com eça a a pa recer du ra n te a p rá t ica n ã o é ta n to p ra zer ou dor , n em a lgo en tre es s es dois , m a s a pen a s in teres s e. A vivên cia pode s er vis ta com o u m a espécie de curiosidade,

JOKO: Sim, bem lembrado.

ALUNO: Es ta m os fa la n do da d iferen ça en t re o a bs olu to e o relativo? Podemos dizer que o absoluto é prestar atenção em tudo e qu e o rela t ivo é ir a pen a s a t rá s de p ra zer e con for to? Rela xa r n o casulo da dor seria então um meio de se chegar ao absoluto?

JOKO; Eu n ã o d ir ia qu e é "u m m eio de ch ega r a o a bs olu to", pois s em pre es ta m os n ele. Porém , es colh em os n ã o p res ta r a ten çã o n o fa to de es ta rm os n ele e deixa rm os de la do pa r te de n os s a s vivência s . O a bs olu to s em pre en globa a dor e o p ra zer . Nã o h á n a da de er ra do com a dor em s i: n ós a pen a s n ã o gos ta m os dela . Nã o exis te a lgo ch a m a do a bs olu to qu e s eja m a ior do qu e o rela t ivo. São os dois lados de uma mesma moeda. O mundo fenomênico das pes s oa s , da s á rvores e dos ta petes e o m u n do a bs olu to do pu ro n a da in cogn os cível, da en ergia , s ã o a m es m a cois a . Em vez de ir em bu s ca de u m idea l u n ila tera l, p recis a m os n os cu rva r d ia n te do a bs olu to n o rela t ivo, a s s im com o do rela t ivo n o a bs olu to. Devem os honrar todas as coisas.

SÍSIFO E O FARDO DA VIDA

A m itologia grega fa la de Sís ifo, rei de Cor in to, con den a do pelos deu s es a o Ha des em pu n içã o etern a . Pa ra s em pre ele tem qu e em pu r ra r u m roch edo im en s o, colin a a cim a , e, qu a n do ch ega a o a lto, o roch edo rola pa ra ba ixo. E le s e es força pa ra em pu rra r a

Page 21: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pedra im en s a colin a a cim a a pen a s pa ra vê-la des cer tu do de n ovo, interminavelmente, eternidade afora.

Com o todos os m itos , es s a h is tór ia con tém u m en s in a m en to. Como vocês vêem esse mito? Do que ele trata? Como um koan, tem muitos aspectos.

ALUNO: O m ito s u gere pa ra m im qu e a vida é u m ciclo. Exis te um começo, um meio e um fim e então começa tudo de novo.

ALUNO: Is so m e fa z pen s a r n a p rá t ica de fica r lim pa n do e limpando o es pelh o. Tem os de fa zê-lo a té des is t ir e viver o momento presente.

ALUNO: O ca s t igo de Sís ifo é h or r ível s ó s e ele es pera qu e u m dia termine.

ALUNO: Es s e m ito m e recorda a a çã o obs es s iva , qu a n do es tou preso num ciclo repetitivo de comportamentos e pensamentos.

ALUNO: Sís ifo pa rece u m a pes s oa qu e es tá lu ta n do com a vida e seus fardos, tentando livrar-se deles.

ALUNO: Es s a h is tór ia pa rece a n os s a p rá t ica . Se vivem os ca da m om en to, s em o pen s a m en to de a lgu m a m eta , ou de ch ega r em a lgu m lu ga r ou de fin a lm en te ob ter a lgu m a cois a , en tã o n ós a pen a s vivem os . Fa zem os o qu e h á em s egu ida : em pu rra r a roch a , ela rolar, e então empurrar de novo.

ALUNO: Pen s o qu e a h is tór ia de Sís ifo rep res en ta a idéia de que não existe esperança.

ALUNO: A n a tu reza de m in h a m en te é n ã o fica r s a t is feito com m eu s p róp r ios feitos e ter m a is in teres s e n o des a fio de ch ega r em a lgu m lu ga r . As s im qu e con s igo a lgo, ele n ã o m e d iz m a is m u ita coisa.

ALUNO: Sís ifo é qu em eu s ou . Som os todos Sís ifos , ten ta n do fa zer a lgu m a cois a com n os s a s vida s e d izen do "Nã o pos s o". O próprio rochedo é o "Não posso".

JOKO: A qu es tã o qu e eu gos ta r ia de coloca r é o qu e qu er d izer fazer o mal? É interessante que alguém tenha julgado Sísifo por ele ter feito o m a l e qu e ten h a s ido con den a do a u m loca l es pecia l ch a m a do Ha des . Deixa n do porém es s a s qu es tões de la do, s e pu derm os ver qu e s ó exis te es te m om en to, en tã o em pu rra r a pedra colin a a cim a ou vê-la rola r pa ra ba ixo s ã o, em cer to s en t ido, a

Page 22: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

mesma coisa. Nossa interpretação comum é que a tarefa de Sísifo é d ifícil e des a gra dá vel. Con tu do s ó o qu e a con tece é em pu rra r a pedra e vê-la volta r , u m m om en to depois do ou tro. Com o Sís ifo, estamos todos apenas fazendo o que estamos fazendo, de momento a m om en to. Acres cen ta m os ju lga m en tos a es s a s a t ivida des , con tu do, a cres cen ta m os -lh es idéia s . O in fern o n ã o es tá em em pu rra r a pedra , m a s em pen s a r n is s o, em cr ia r idéia s de es pera n ça e des a pon ta m en to, em in da ga r -s e s e u m d ia s erá pos s ível fin a lm en te fa zer com qu e a pedra fiqu e lá em cim a . "Trabalhei tanto! Talvez desta vez a pedra fique."

Nossos esforços de fato fazem com que as coisas aconteçam e, fa zen do com qu e ela s a con teça m , ch ega m os a o s egu n do s egu in te. Ta lvez a pedra fique n o a lto por u m cer to tem po; ta lvez n ã o. Nenhum dos dois acontecimentos é, em si, bom ou mau. O peso da pedra , 0 fa rdo, é o pen s a m en to de qu e n os s a vida é u m a lu ta , de qu e dever ia s er d iferen te do qu e é. Qu a n do ju lga m os o fa rdo com o a lgo des a gra dá vel, p rocu ra m os m eios pa ra es ca pa r . Ta lvez u m a pes s oa s e em bebede pa ra es qu ecer do qu e é em pu rra r a pedra . Ou tra m a n ipu la a s pes s oa s pa ra a ju dá -la com is s o. Mu ita s vezes tentamos em pu rra r es s a ca rga pa ra u m a ou tra pes s oa , pa ra fugirmos do trabalho.

Qu a l poder ia s er o es ta do ilu m in a do pa ra o rei Sís ifo? Se ele em pu rra r a pedra a lgu n s m ilh a res de a n os , o qu e por fim irá compreender?

ALUNO: Ser uno com o ato de empurrar, a cada momento.

JOKO: Sim ples m en te em pu rra r a pedra e a ba n don a r a es pera n ça de qu e s u a vida s erá ou tra cois a . A m a ior ia de n ós im a gin a qu e o es ta do ilu m in a do s erá a lgo m u ito m a is a gra dá vel do qu e em pu rra r pedra s ! Algu m a vez você já a cordou pela m a n h ã res m u n ga n do: "Nã o qu ero n em pen s a r em toda s a s cois a s qu e ten h o pela fren te h oje'' ? Ma s a vida é com o ela é. E n os s a p rá t ica t ra ta n ã o de fa zer a vida s er gos tos a , m es m o qu e es s a s eja u m a es pera n ça m u ito h u m a n a . Todos gos ta m os da s cois a s qu e n os fa zem s en t ir bem . Gos ta m os em es pecia l dos com pa n h eiros qu e n os fa zem s en t ir bem . Se is s o n ã o a con tece, con clu ím os qu e a s cois a s p recis a m s er m u da da s , qu e ele ou ela p recis a m u da r! Por s erm os h u m a n os , pen s a m os qu e n os s en t ir bem é o ob jet ivo da vida . Ma s , s e a pen a s em pu rra rm os n os s a pedra a tu a l e p ra t ica rm os pa ra tom a r con s ciên cia do qu e a con tece em n ós

Page 23: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

en qu a n to a em pu rra m os , len ta m en te irem os n os t ra n s form a r . O que significa transformar?

ALUNO: Ma is a ceita çã o, m en os ju lga m en tos , m a is descontração diante da vida, abertura para a vida.

JOKO: Abertu ra para a v id a e aceitação es tã o u m pou co fora do a lvo, em bora s eja d ifícil en con tra r pa la vra s exa ta m en te cor reta s .

ALUNO: A ilu m in a çã o tem a lgo qu e ver com ch ega r a o zero, a o "não-Iugar".

JOKO: Mas o que significa para um ser humano o "não-Iugar"? O que é esse "não-Iugar"?

ALUNO: O agora, o já.

JOKO: Sim , m a s com o o vivem os ? Va m os s u por qu e a cordo de m a n h ã com u m a for te dor de ca beça e qu e ten h o u m a a gen da lota da . Todos tem os d ia s a s s im . O qu e s ign ifica "es ta r n o zero" diante disso?

ALUNO: Sign ifica es ta r a li com todos os m eu s s en t im en tos e com todos os m eu s pen s a m en tos

s im ples m en te es ta r a li, s em acrescentar mais nada extra.

JOKO: Sim , e m es m o qu e a cres cen tem os a lgo ext ra is s o ta m bém fa z pa r te do pa cote, pa r te da vida com o ela é n es te m om en to. Pa r te do pa cote é: "Eu s im ples m en te n ã o qu ero fa zer tu do des te d ia ". Qu a n do es s e pen s a m en to é o qu e recon h eço com o presente, en tã o es tou a pen a s em pu rra n do a m in h a pedra . Pa s s o por esse dia difícil e o que me resta para o dia seguinte? De alguma form a o roch edo des lizou de volta pa ra ba ixo en qu a n to eu es ta va dorm in do, de m odo qu e lá vou eu de n ovo: em pu rra r , em pu rra r , em pu rra r . "Eu detes to is s o... s im , eu s ei qu e detes to. Gos ta r ia qu e t ives s e u m jeito de s a ir , m a s n ã o tem ou pelo m en os eu n ã o enxergo nenhum agora." Perfeito sendo como é.

Qu a n do n ós vivem os de verda de ca da m om en to, o qu e a con tece com o fa rdo da vida ? O qu e a con tece com n os s a pedra ? Se form os tota lm en te o qu e s om os , a ca da s egu n do, com eça m os a s en t ir a vida com o a lgo feliz. En tre n ós e u m a vida feliz es tã o n os s os pen s a m en tos , n os s a s idéia s , n os s a s expecta t iva s , n os s a s es pera n ça s e n os s os receios . Nã o é qu e ten h a m os qu e ter u m a com pleta boa von ta de com res peito a em pu rra r a pedra . Podemos ter m á von ta de des de qu e recon h eça m os n os s a m á von ta de e

Page 24: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s im ples m en te a s in ta m os . Má von ta de n ã o é p rob lem a . Um a pa r te fu n da m en ta l de toda p rá t ica s ér ia é "Nã o qu ero fa zer is s o". E n ã o fa zem os . Ma s , qu a n do n os s a m á von ta de é ca r rega da pelos es forços pa ra es ca pa r , a qu es tã o é ou tra . "Bom , vou com er ou tra fa t ia des te bolo de ch ocola te. Ach o qu e s obrou u m a "; "Vou telefon a r pa ra m in h a s a m iga s e fa la r de com o tu do é ter r ível"; "Vou m e en fia r n u m ca n to pa ra poder rea lm en te fica r m e p reocu pa n do com minha vida horrível e com toda a pena que sinto de mim". Que outras maneiras existem para se escapar?

ALUNO: Ficar muito ocupado até me esgotar.

ALUNO: Ficar adiando.

ALUNO: Fazer planos e então refazê-los sem parar.

ALUNO: Meu jeito é ficar doente algum tempo.

JOKO: É verda de, cos tu m a m os fa zer is s o: fica r res fr ia dos, torcer o tornozelo, pegar gripe.

Qu a n do rotu la m os n os s os pen s a m en tos , fica m os con s cien tes de com o es ca pa m os . Com eça m os a ver a s m il e u m a form a s pela s qu a is ten ta m os es ca pa r de viver es te m om en to, de em pu rra r a n os s a ped ra . Des de o m om en to em qu e n os leva n ta m os pela m a n h ã a té a h ora em qu e va m os dorm ir , es ta m os fa zen do a lgu ma cois a ; em pu rra m os a n os s a pedra o d ia in teiro. É o n os s o ju lga m en to a res peito do qu e es ta m os fa zen do qu e ca u s a a n os s a in felicida de. Podem os n os ju lga r vít im a s : "Es tou t ra ba lh a n do com alguém que não é justo comigo1';' 'Não consigo me defender''.

Nos s a p rá t ica é ver o qu e es ta m os em pu rra n do

ch ega r nesse fato básico. Ninguém se dá conta disso o tempo todo; eu com cer teza n ã o. Ma s repa ro qu e a s pes s oa s qu e es tã o p ra t ica n do já h á a lgu m tem po com eça m a ter u m cer to s en s o de h u m or a res peito de s u a ca rga . Afin a l de con ta s , a idéia de qu e a vida é u m fa rdo é s ó u m con ceito. Es ta m os s im ples m en te fa zen do a qu ilo qu e es ta m os fa zen do, s egu n do a s egu n do. A m edida de u m a p rá t ica fru t ífera é s en t irm os qu e a vida é m en os u m fa rdo e m a is u m m ot ivo de con ten ta m en to. Is s o n ã o s ign ifica qu e n ã o exis te t r is teza , m a s a vivên cia da t r is teza é o qu e ju s ta m en te t ra z con ten ta m en to. Se n ã o perceberm os es s a m u da n ça depois de a lgu m tem po de p rá t ica , en tã o a in da n ã o terem os en ten d ido o qu e é a p rá t ica ; es s a mudança é um barômetro muito confiável.

Page 25: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Os fa rdos s em pre es tã o a pa recen do em n os s os ca m in h os . Por exem plo, va m os s u por qu e p recis o pa s s a r u m cer to tem po com a lgu ém de qu em n ã o gos to, e is s o m e pa rece u m fa rdo. Ou ten h o u m a s em a n a d ifícil pela fren te e fico des a n im a da com es s a pers pect iva . Ou a s tu rm a s qu e ten h o n es te s em es tre s ã o de a lu n os des prepa ra dos . Cr ia r filh os pode n os fa zer s en t ir s obreca r rega dos . Doen ça s , a ciden tes , qu a is qu er obs tá cu los qu e n os ven h a m pela fren te podem s er s en t idos com o fa rdos . Nã o podem os viver com o s eres h u m a n os sem en con tra r d ificu lda des , qu e podem os res olver chamar de "fardos". A vida então começa a ser tão pesada.

ALUNO: Aca bei de m e lem bra r de u m con ceito da ps icologia que fala da "querida carga".

JOKO: Sim , em bora a "qu er ida ca rga " n ã o pos s a perm a n ecer a pen a s em n os s a s ca beça s ; ela deve t ra n s form a r-s e em n ós . Exis -tem m u itos con ceitos e n oções m a ra vilh os os , m a s s e eles n ã o s e torn a rem n ós , com o s om os , podem torn a r -s e os fa rdos m a is h os t is de todos . En ten der u m a cois a in telectu a lm en te n ã o ba s ta ; à s vezes é pior do que não entender nada.

ALUNO: Es tou com d ificu lda de pa ra com preen der a idéia de que estamos sempre empurrando a pedra colina acima. Talvez por-que neste momento as coisas todas parecem estar a meu favor.

JOKO: É pos s ível. Às vezes a s cois a s rea lm en te vã o a o n os s o en con tro. Podem os es ta r viven do o a u ge de u m n ovo e m a ra vilh os o rela cion a m en to. O n ovo em prego con t in u a excita n te. Ma s h á u m a d iferen ça en t re a s cois a s n os s erem fa vorá veis e o verdadeiro con ten ta m en to. Va m os s u por qu e es ta m os n u m des s es belos per íodos em qu e tem os u m bom rela cion a m en to ou u m bom em prego, e tu do es tá u m a m a ra vilh a . Qu a l é a d iferen ça en t re es s a s en s a çã o boa , qu e s e ba s eia em circu n s tâ n cia s , e o con ten ta m en to? Como saber?

ALUNO: Tememos que possa acabar.

JOKO: E como esse medo se manifestaria?

ALUNO: Em alguma tensão corporal.

JOKO: A ten s ã o corpora l s em pre es ta rá p res en te s e n os s a s en s a çã o boa for a pen a s a qu ela felicida de com u m , cen tra da em s i m es m a . O con ten ta m en to n ã o tem ten s ã o, porqu e a ceita tu do qu e é com o é. Às vezes , em pu rra n do a pedra colin a a cim a , terem os

Page 26: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m es m o a s s im u m a fa s e boa . Com o é qu e o con ten ta m en to a ceita essa sensação boa?

ALUNO: Simplesmente como é.

JOKO: Sim . Sem s om bra de dú vida , s e es t iverm os n u m bom per íodo de n os s a s vida s , va m os des fru tá -lo, m a s s em n os a pega r -m os a is s o. Nos s a ten dên cia é p reocu pa rm o-n os com s eu fim e então tentaremos nos agarrar a ele.

ALUNO: É , eu percebo qu e, en qu a n to es tou s im ples m en te viven do e des fru ta n do is s o, es tou bem , E qu a n do eu pa ro e pen s o "Is s o es tá ót im o" qu e eu com eço a m e p reocu pa r com "Qu a n to tempo isso ainda vai durar?".

JOKO: Nen h u m de n ós es colh er ia s er Sís ifo, m a s , em cer to sentido, todos somos.

ALUNO: Todos temos pedras na cabeça.

JOKO: Sim . Qu a n do n os en t retem os com a pedra qu e es tá s obre n os s a ca beça , o roch edo da vida pa rece pes a do. Ma s , por outro lado, nossas vidas são apenas aquilo que estamos fazendo. O m odo de fica rm os m a is con ten tes em s ó viver n os s a vida com o ela é, em só tornar mais leve o fardo de cada dia, é ser essa vivência de con s ta n te a livia r . Es s a é a form a de con h ecim en to qu e vem da experiência, e o entendimento intelectual pode decorrer dela.

ALUNO: Se eu s ou bes s e qu e a pedra ia des cer toda s a s vezes eu poderia pensar: *'Bom, vamos ver com que rapidez consigo levá-la a té o a lto des ta vez. Ta lvez eu pos s a m elh ora r m eu tem po". Eu t ra n s form a r ia is s o n u m jogo ou cr ia r ia a lgu m a es pécie de significado em minha mente.

JOKO: Ma s s e es ta m os fa zen do is s o des de s em pre, ou m esmo du ra n te u m a vida in teira , o qu e a con tecerá com o s ign ifica do qu e cr ia rm os ? Es s a s erá u m a cr ia çã o pu ra m en te in telectu a l; m a is cedo ou m a is ta rde, ca irá por ter ra . Es s e é o p rob lem a do "pen samento pos it ivo" e da s a firm a ções : n ã o podem os m a n tê-la s fu n cion ando para sempre. Esses esforços nunca são o caminho da liberdade. Na rea lida de, n ós já s om os livres . S ís ifo n ã o era p r is ion eiro n o Ha des , viven do em etern o ca s t igo. E le s em pre es ta va livre porqu e es ta va fazendo o que estava fazendo.

Page 27: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

RESPONDENDO ÀS PRESSÕES

Antes do serviço, recitamos o verso do Kesa: "Vasto é o manto da liber ta çã o, o ca m po in form e de ben efícios . Vis to o en s in a m en to u n ivers a l, s a lva n do todos os s eres s en s íveis " *. A fra s e "ca m po in form e de ben efícios " é pa r t icu la rm en te evoca t iva ; t ra z à tona qu em s om os e qu a l é a fu n çã o de u m s erviço religios o. O pon to da p rá t ica do zen é s erm os qu em s om os

u m ca m po in form e de

ben efícios . Es s a s pa la vra s pa recem m u ito bela s , m a s vivê-la s em nossa própria vida é difícil e confunde.

Con s iderem os de qu e m a n eira lida m os com a p res s ã o ou o es t res s e. Aqu ilo qu e pa ra a lgu ém é p res s ã o pa ra ou tro n ã o é. Pa ra u m a pes s oa t ím ida , p res s ã o poder ia s er a t ra ves s a r u m a fes ta a p in h a da de gen te. Pa ra ou tra , p res s ã o poder ia s er fica r s ozin h a , ou cumprir prazos. Há indivíduos para quem pressão seria ter uma vida lenta, monótona, sem nenhum prazo a cumprir. Um novo filho, u m n ovo n a m ora do, u m n ovo a m igo podem s er focos de p res s ã o. O s u ces s o ta m bém . Há pes s oa s qu e lida m bem com o fra ca s s o, m a s n ã o com o s u ces s o. Pres s ã o é a qu ilo qu e n os fa z fica r ten s os , qu e nos desperta a ansiedade.

Tem a s , d iferen tes es t ra tégia s . pa ra . res pon dera p res s ões . Gurdjieff, in térp rete do m is t icis m o s u fi, ch a m a va n os s a es t ra tégia de "a s pecto p r in cipa l" **. Precis a m os a pren der qu a l é o n os s o a s -pecto p r in cipal

a m a n eira m a is com u m de lida rm os com pres s ões . Qu a n do es tá s ob p res s ã o, u m a pes s oa ten de a recu a r , ou t ra s e es força pa ra s er per feita ou pa ra s er m a is es t rela a in da . Há qu em res pon de à p res s ã o t ra ba lh a n do m a is , e h á os qu e en tã o t ra ba lh a m m en os . Algu n s fogem , ou tros ten ta m dom in a r . Há os qu e s e ocu pa m e fa la m ba s ta n te; e h á os qu e s e torn a m m a is calados do que o habitual.

Descobre-s e qu a l é o a s pecto p r in cipa l obs erva n do-s e qu a n do s e es tá s ob p res s ã o. Todo d ia qu a n do a corda m os , é p rová vel qu e h a ja a lgu m a cois a a d ia n te n a qu ele d ia qu e irá n os ca u s a r a lgu m a

* Francis Dojun Cook, How to raise an ox. Zen master Dogen's Shobogenzo, including ten newly translated essays, Los Angeles: Center Publications, 1978, p. 24 e S. ** Para maiores comentários sobre o conceito de um "aspecto central" ver Don Richard Riso, Personatity types: Using the enneagram for self-discovery, Boston: Houghton Mifflin, 1987.

Page 28: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pres s ã o. Qu a n do a s cois a s es tã o d ifíceis , n ã o h á s en ã o p res s ã o em n os s a vida . Em ou tra s época s exis te m u ito pou ca p res s ã o e en tã o pen s a m os qu e a s cois a s es tã o in do bem . Ma s a vida s em pre n os pressiona de alguma maneira.

Nos s o pa drã o t íp ico de res pon der a p res s ões é cr ia do bem n o in ício de n os s a s vida s . Qu a n do en fren ta m os d ificu lda des n a in fâ n cia , o m a cio tecido da vida com eça a form a r p rega s . É com o s e es s a s p rega s form a s s em u m a pequ en a bols a qu e u s a m os pa ra es con der n os s o m edo. O m odo com o es con dem os n os s o m edo

es s a pequ en a bols a , qu e é n os s a es t ra tégia pa ra da r con ta da situação

é n os s o a s pecto p r in cipa l. En qu a n to n ã o en fren ta rm os n os s o "a s pecto p r in cipa l" e viven cia rm os n os s o m edo, n ã o conseguirem os s er a qu ela tota lida de con t ín u a , o "ca m po in form e de ben efícios ". Em vez d is s o es ta m os todos rep letos de p rega s , de calombos.

Ao lon go de u m a vida in teira de p rá t ica , o a s pecto p r in cipal da pes s oa m u da qu a s e qu e in teira m en te. Por exem plo, eu costumava ser tão tímida que, se tivesse de comparecer a uma sala on de es t ives s em dez ou qu in ze pes s oa s , por exem plo, ou a u m coquetel para pouca gente, eu levaria uns quinze minutos andando de u m la do pa ra ou tro lá fora a n tes de con s egu ir reu n ir a cora gem necessá r ia pa ra en t ra r . Hoje, n o en ta n to, em bora eu n ã o p refira gra n des fes ta s , s in to-m e à von ta de n ela s . Exis te u m a gra n de d iferen ça en t re s en t ir ta n to m edo qu e m a l s e con s egu e en tra r n a s a la e s en t ir -s e à von ta de n es s a s itu a çã o. Nã o es tou qu eren do d izer qu e a pers on a lida de bá s ica da pes s oa m u de. Eu n u n ca s erei ''a a lm a da fes ta '', m es m o qu e viva a té os 110 a n os . Gos to de olh a r pa ra a s pes s oa s qu e es tã o n u m a fes ta e de con vers a r com a lgu m a s delas; esse é o meu jeito.

Muitas vezes cometemos o erro de supor que podemos apenas n os ret rein a r a t ra vés de es forços e a u to-a n a lis e. Podem os pen s a r n a p rá t ica zen com o u m es tu do de n ós m es m os , pa ra poderm os a pren der a pen s a r de m a n eira d iferen te, da m es m a form a com o poder ía m os a p ren der xa drez ou cu lin á r ia fra n ces a . Ma s n ã o é is s o. A p rá t ica zen n ã o é com o a pren der h is tór ia da a n t igü ida de, m a tem á t ica ou cu lin á r ia refin a da . Es s es t ipos de a p ren d iza do têm s eu lu ga r , s em dú vida , porém qu a n do s e t ra ta de n os s o a s pecto principal

o m odo com o m a is com u m en te lida m os com a pressão

é n os s o m a u u s o da m en te in d ividu a l qu e cr iou a con tra çã o em ocion a l. Nã o podem os u s á -la pa ra s e cor r igir ; n ã o

Page 29: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

podemos usar nossa pequena mente para corrigir a pequena mente. É u m prob lem a form idá vel: a qu ilo m es m o qu e es ta m os in ves t iga n do é ta m bém o n os s o m eio ou in s t ru m en to de investigação. A distorção em nosso modo de pensar distorce nossos esforços para corrigir a distorção.

Nã o s a bem os com o a ta ca r o p rob lem a . Sa bem os qu e a lgo em n ós n ã o va i bem porqu e n ã o es ta m os em pa z; ten dem os a exper im en ta r toda s a s es pécies de fa ls a s s olu ções . Um a des s a s "s olu ções " é n os t rein a r a pen s a r de m odo pos it ivo. Es s a é a pen a s u m a m a n obra da pequ en a m en te. Qu a n do n os p rogra m a m os pa ra ter pen s a m en tos pos it ivos a in da n ã o ch ega m os rea lm en te a n os com preen der e s en do a s s im con t in u a m os a en t ra r em d ificu lda des . Se cr it ica m os n os s a m en te e n os d izem os : "Você n ã o pen s a m u ito bem , en tã o n ã o vou forçá -la a pen s a r", ou "Você a lim en tou todos es s es pen s a m en tos des t ru t ivos ; a gora você deve ter pen s a m en tos a gra dá veis , pen s a m en tos pos it ivos ", a in da es ta m os u s a n do n os s a m en te pa ra t ra ta r de n os s a m en te. Es s e pon to é s obretu do d ifícil pa ra os in telectu a is a bs orverem , u m a vez qu e pa s s a ra m s u a vida in teira u s a n do a m en te pa ra res olver p rob lem a s e, é n a tu ra l, in icia m s u a p rá t ica zen do m esmo m odo. (Nin gu ém m elh or qu e eu pa ra s a ber com o é a s s im !) A es t ra tégia n u n ca deu cer to e n u n ca dará.

Existe uma única maneira de se escapar a esse laço fechado e n os en xerga r com cla reza : tem os de da r u m pa s s o a lém do a lca n ce de n os s a pequ en a m en te e obs ervá -la . Es s a qu e obs erva n ã o é pen s a m en to porqu e o obs erva dor pode obs erva r o pen s a mento. Tem os de obs erva r a m en te e repa ra r n o qu e ela es tá fa zen do. Tem os de n ota r com o a m en te p rodu z es s es en xa m es de pen s a m en tos a u tocen tra dos e cr ia , des s a m a n eira , a ten são corporal. O processo de dar um passo atrás não é complicado, mas s e n ã o es ta m os h a b itu a dos a ele pa rece n ovo e des con h ecido e talvez assuste. Com persistência, torna-se mais claro.

Va m os s u por qu e perdem os o em prego. Os pen s a m en tos in u n da m a n os s a m en te, cr ia n do em oções va r ia da s . Nos s o a s pecto p r in cipa l ir rom pe em cen a , en cobr in do n os s o m edo pa ra qu e n ão precis em os en fren tá -lo d ireta m en te. Se perdem os n os s o em prego, a ú n ica cois a a fa zer é p rocu ra r ou tro, s u pon do qu e p recis a m os de d in h eiro. Con tu do, em gera l n ã o é is s o qu e fa zem os . Ou , s e es ta m os p rocu ra n do ou tro t ra ba lh o, podem os n ã o a gir com

Page 30: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

eficiên cia porqu e fica m os m u ito ocu pa dos com o n os s o a borre-cimento e com o transtorno causado pelo aspecto principal.

Va m os s u por qu e a lgu ém n os cr it icou . De repen te s en t im os a p res s ã o. Com o lida r com is s o? Nos s o a s pecto p r in cipa l a pa rece n o m es m o in s ta n te. Us a m os qu a lqu er t ru qu e m en ta l qu e con s e-gu im os en con tra r : p reocu pa ções , ju s t ifica t iva s , recr im in a ções . Po-dem os ten ta r es qu iva r -n os do p rob lem a pen s a n do em a lguma cois a in ú t il ou ir releva n te. Podem os u s a r a lgu m a d roga pa ra silenciá-lo.

Qu a n to m a is obs erva rm os n os s os pen s a m en tos e a ções , m a is n os s o a s pecto p r in cipa l ten derá a des a pa recer . Qu a n to m a is s e des fa z, m a is s en t im o-n os d is pon íveis pa ra viven cia r o m edo que apareceu antes de tudo. Durante muitos anos, a prática refere-se a for ta lecer o obs erva dor . Com o tem po, es ta rem os d is pon íveis pa ra fa zer o qu e es t iver pela fren te, s em res is tên cia , e es s e obs erva dor des a pa recerá . Nã o p recis a rem os en tã o do obs erva dor pa ra m a is n a da ; podem os s er a p rópr ia vida . Qu a n do es s e p roces s o es t iver com pleto, a pes s oa s erá u m s er p len a m en te rea liza do, u m bu da

em bora eu a in da n ã o ten h a con h ecido n in gu ém cu jo p roces s o tenha ficado completo.

Sen ta r pa ra a p rá t ica é com o n os s a vida d iá r ia : o qu e a pa rece qu a n do n os s en ta m os é o pen s a m en to a qu e qu erem os n os a pega r , o n os s o a s pecto p r in cipa l. Se gos ta m os de fu gir da vida , en con tra rem os em n os s a p rá t ica s en ta da u m a m a n eira de n os es qu iva r do s en ta r . Se gos ta m os de n os p reocu pa r , fica rem os preocu pa dos ; s e gos ta m os de fa n ta s ia r , irem os fa n ta s ia r . Aqu ilo qu e fa zem os em n os s a p rá t ica s en ta da é com o o m icrocos m o do res to de n os s a s vida s . Nos s a p rá t ica s en ta da m os tra -n os com o es ta m os leva n do n os s a vida e n os s a vida m os tra -n os o qu e fa ze-mos quando nos sentamos para a prática.

A t ra n s form a çã o n ã o com eça com a pes s oa d izen do pa ra s i m es m a : "Ten h o qu e s er d iferen te". A t ra n s form a çã o com eça com a com preen s ã o do qu e es tá d ito n o vers o do Kesa: "Va s to é o ca m po da liber ta çã o". Nos s a s p rópr ia s vida s s ã o u m va s to ca m po de liber ta çã o, u m ca m po in form e de ben efícios . Qu a n do ves t im os os en s in a m en tos da vida , obs erva n do n os s os pen s a mentos, viven cia n do a s s en s a ções qu e recebem os a ca da s egu n do, en tã o es ta m os n os ded ica n do a n os s a lva r e a s a lva r todos os seres sensíveis; apenas sendo quem somos.

Page 31: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Meu "a s pecto p r in cipa l" pa rece m u da r con form e a s i-tu a çã o. Sob p res s ã o em gera l s ou con trola dor , dom in a dor e Fico com ra iva . Em ou tra s itu a çã o, n o en ta n to, pos s o torn a r -m e ret ra í-do e calado.

JOKO: Mes m o a s s im , pa ra ca da pes s oa , com por ta m en tos diferentes em res pos ta à p res s ã o a dvêm da m es m a a borda gem bá s ica d ia n te do m edo, em bora pos s a m pa recer d iferen tes . Exis te um padrão intrínseco que está sendo expresso.

ALUNO; Qu a n do m e s in to p res s ion a do

em es pecia l qu ando

m e s in to cr it ica do , dou du ro e ten to fa zer bem a s cois a s ; ten to n ã o s om en te revida r , m a s s en ta r -m e n a a n s ieda de e n o m edo. No a n o pa s s a do, porém , ch egu ei à con s ta ta çã o de qu e, qu a n do m e s in to cr it ica do, por t rá s de m eu s es forços pa ra a gir de form a cor reta es tá u m a ra iva en orm e. O qu e rea lm en te qu ero é a ta ca r ; sou um tubarão assassino.

JOKO: Es s a ira es teve a li o tem po todo; s er u m a boa pes s oa e u m bom p rofis s ion a l é s eu d is fa rce. Exis te u m tu ba rã o a s s a s s in o em todo m u n do. E é o m edo qu e n ã o s e viven ciou . Seu m odo de encobri-lo é pa recer s er tã o boa pes s oa , fa zer ta n ta s cois a s e s er tão maravilhoso que ninguém jamais consiga ver quem você de fato é

a lgu ém m or to de m edo. Con form e va m os des en ter ra n do es s a s ca m a da s de fú r ia , é im por ta n te n ã o deixá -la va za r pa ra n os s a s con du ta s ; n ã o devem os in fligir n os s a fú r ia a os ou tros . Na p rá t ica gen u ín a , n os s a fú r ia é a pen a s u m es tá gio qu e pa s s a . Porém , por a lgu m tem po, s en t im o-n os m u ito m a is in com oda dos do qu e qu a n do com eça m os . Is s o é in evitá vel; es ta m os n os tornan do m a is h on es tos e n os s o fa ls o es t ilo s u per ficia l es tá com eça n do a s e d is s olver . O p roces s o n ã o du ra pa ra s em pre, m a s com cer teza é m u ito des a gra dá vel en qu a n to du ra . De vez em qu a n do podem os a té exp lod ir , m a s is s o é m elh or do qu e fu gir ou m a s ca ra r n os s a reação.

ALUNO: Freqü en tem en te, con s igo en xerga r os pa drões da s ou tra s pes s oa s com m u ito m a is ra p idez do qu e o m eu . Qu a n do ela s s ã o im por ta n tes pa ra m im , s in to a ten ta çã o de lh es d izer o qu e vejo. Sin to-m e com o s e es t ives s e ven do u m a m igo s e a foga r e n ã o lh e dou u m s a lva -vida s . Qu a n do de fa to in ter firo, porém , em gera l m e dá a s en s a çã o de qu e es tou m e in t rom eten do em s u a s vidas, o que não é em absoluto da minha conta.

Page 32: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: É im por ta n te es s e pon to. O qu e s ign ifica s er u m ca m po in form e de ben efícios ? Todos vem os a s pes s oa s fa zen do cois a s qu e evidentemente lhes são prejudiciais. O que devemos fazer?

ALUNO: Não basta estar consciente e ser presente para elas?

JOKO: Sim , es s a é em gera l a m elh or res pos ta . De vez em qu a n do a s pes s oa s n os pedem a ju da . Se s eu ped ido for s in cero, es tá cer to res pon der . Ma s podem os n os a foba r m u ito, n os a t ir a r em con s elh os . A m a ior ia de n ós s e com põe de con s er ta dores . Um a a n t iga m á xim a zen a con s elh a a n ã o res pon der en qu a n to n ã o n os tiverem s olicita do t rês vezes . Se a pes s oa rea lm en te qu er s u a op in iã o in s is t irá . Ma s a p res s a m o-n os em da r op in iões qu a n do ninguém as quer. Eu sei: eu era assim.

O obs erva dor n ã o tem em oções . É com o u m es pelh o. Tu do a pen a s pa s s a à s u a fren te. O es pelh o n ã o ju lga . Sem pre qu e ju lga m os , a cres cen ta m os u m ou tro pen s a m en to qu e n eces s ita s er rotu la do. O obs erva dor n ã o cr it ica . J u lga r n ã o é a lgo qu e o obs erva dor fa ça . E le s im ples m en te obs erva ou reflete, com o u m es pelh o. Se pa s s a lixo à s u a fren te, ele reflete lixo. Se pa s s a m ros a s à s u a fren te, ele reflete ros a s . O es pelh o con t in u a s en do u m es pelh o, u m es pelh o va zio. O obs erva dor n em m es m o a ceita ; s ó observa.

ALUNO: O observador não é de fato parte da pequena mente?

JOKO: Nã o. O obs erva dor é u m a fu n çã o da percepçã o con s cien te qu e s ó s u rge qu a n do tem os o a pa recim en to de u m ob jeto em n os s a vivên cia n o m u n do fen om ên ico. Se n ã o a pa rece u m ob jeto (por exem plo, n o s on o p rofu n do), o obs erva dor n ã o es tá a li. O obs erva dor fin a lm en te m orre qu a n do s om os apenas a percepção consciente e não precisamos mais dele.

Nu n ca con s egu im os en con tra r es s e obs erva dor , por m a is qu e o procuremos. No entanto, apesar de nunca conseguirmos localizá -lo, é óbvio qu e podem os obs erva r . Poder ía m os d izer qu e o obs erva dor é u m a d im en s ã o d iferen te da m en te, m a s n ã o um a s pecto da pequ en a m en te, qu e exis te n o n ível lin ea r com u m . Nós s om os percepçã o con s cien te. Nin gu ém ja m a is obs ervou a percepçã o con s cien te, n o en ta n to é is s o qu e s om os

u m "ca m po informe de benefícios".

ALUNO: Pa rece qu e u m a s en s a çã o des a gra dá vel con s egu e m e ancorar no presente e focalizar minha atenção no aqui-agora.

Page 33: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Tem os o a n t igo d ita do s egu n do o qu a l n a ú lt im a es s ên cia do h om em es tá a opor tu n ida de pa ra Deu s . Qu a n do a s cois a s s ã o a gra dá veis , ten ta m os n os a pega r à s a m en ida des . Em n os s a ten ta t iva de reter o p ra zer , n ós o des t ru ím os . Quando es ta m os s en ta dos n a p rá t ica e verda deira m en te pa ra dos , porém , o desconfor to e a dor n os rem etem de volta a o p res en te. A pos tu ra s en ta da torn a m a is óbvio n os s o des ejo de es ca pa r ou de fu gir . Qu a n do es ta m os p ra t ica n do bem , n ã o h á ou tro lu ga r a on de ir . Nos s a ten dên cia é n ã o a p ren der is s o a m en os qu e s in ta m os des con for to. Qu a n to m a is con s cien tes es t iverm os de n os s o des -con for to e de n os s os es forços pa ra es ca pa r , m a is t ra n s torn os s erã o cr ia dos n o m u n do fen om ên ico: des de gu er ra s in tern a cion a is a té discussões pes s oa is e b r iga s em n os s o ín t im o; todos es s es p rob lem a s s u rgem porqu e n os s epa ra m os de n os s a s vivên cia s . O des con for to e a dor n ã o s ã o a ca u s a de n os s os p rob lem a s ; a ca u s a é que nós não sabemos o que fazer com essas sensações.

ALUNO: Até m es m o n o p ra zer tem u m elem en to de des con for to. Por exem plo, é u m pra zer ter u m pou co de pa z e s ilên cio, m a s logo s in to u m cer to in côm odo a o pen s a r qu e o ba ru lh o e o a la r ido podem recomeçar a qualquer instante.

JOKO: Pra zer e dor s ã o a pen a s pólos opos tos . O contentamen to es tá em s er d is pon ível pa ra qu e a s cois a s s eja m com o s ã o. Com con ten ta m en to, n ã o h á pola r ida de. Se o ba ru lh o com eça , ele com eça . Am bos s ã o con ten ta m en to. Um a vez qu e qu erem os n os a pega r a o p ra zer e a fa s ta r a dor , porém , des en volvem os u m a es t ra tégia de es ca pe. Qu a n do a lgu m a cois a des a gra dá vel n os a con tece en qu a n to s om os cr ia n ça s , des en volvem os u m s is tema

u m a s pecto p r in cipa l pa ra lida r com a s cois a s des a gra dáveis

e vivem os des de en tã o com ba s e n is s o em vez de ver a vida como ela é.

A BASE DE APOIO

Na vida cot id ia n a es ta m os m u n idos do qu e podem os ch a m a r de u m a ba s e de a poio im a gin á r ia : é elét r ica e n os a r rem es s a pa ra cim a toda vez qu e tem os pela fren te a lgo qu e n os pa rece u m prob lem a . Podem os im a gin a r qu e tem m ilh ões de pon tos de s a ída , todos a o n os s o a lca n ce. Toda vez qu e n os s en t im os a m ea ça dos ou

Page 34: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a borrecidos , a cion a m os es s e d is pos it ivo e rea gim os à s itu a çã o. Es s a ba s e de a poio rep res en ta n os s a decis ã o fu n da m en ta l a res peito do qu e tem os de s er pa ra s obreviver e ob ter da vida a qu ilo qu e qu erem os . Ain da qu a n do éra m os cr ia n ça s des cobr im os qu e a vida n ã o era s em pre do jeito qu e qu er ía m os qu e fos s e e qu e a s cois a s m u ita s vezes da va m er ra do, do n os s o pon to de vis ta pes s oa l. Nã o qu er ía m os qu e n in gu ém n os con t ra r ia s s e, n ã o qu er ía m os viven cia r cois a s des a gra dá veis e, a s s im , cr ia m os u m a rea çã o defen s iva pa ra b loqu ea r a pos s ível in felicida de. Es s a rea ção defen s iva é n os s a ba s e de a poio. Es ta m os liga dos n ela , m a s damos-Ih e u m a a ten çã o es pecia l em per íodos de es t res s e e a m eaça. Tom a m os u m a decis ã o a res peito da vida cot id ia n a

a vida com o ela é rea lm en te: ela é in a ceitá vel. E ten ta m os n os con tra por a o qu e está acontecendo.

Tu do is s o é in evitá vel. Nos s os pa is n ã o fora m s eres per fei-ta m en te ilu m in a dos , n em bu da s , m a s ou tros s eres e circu n s tâ n -cia s ta m bém con tr ibu íra m . Qu a n do éra m os cr ia n ça s pequ en a s , n ã o t ín h a m os s u ficien te m a tu r ida de pa ra n os h a ver com eles de m a n eira s á b ia . Por is s o a cion á va m os n os s a ba s e de a poio e t ín h a m os a ces s os de b ir ra , fa zía m os es câ n da los , ta lvez ficá va mos ret ra ídos . Des s a época em d ia n te, a vida n ã o foi m a is vivida pelo p ra zer de s e es ta r vivo, m a s pa ra a s s egu ra r n os s a ba s e de a poio. Parece bobagem, porém é isso que fazemos.

As s im qu e a ba s e de a poio es t iver con s t ru ída , s em pre qu e a lgo des a gra dá vel n os a t in gir

m es m o qu e s eja s ó u m olh a r u m pou co a t ra ves s a do de a lgu ém , n ós a cion a rem os es s a ba s e. E la pode con ter u m n ú m ero in fin ito de tom a da s de a cion a m en to e, du ra n te o d ia , podem os a cion á -la in fin ita s vezes . Com o res u ltado, des en volvem os u m a vis ã o m u ito es t ra n h a da n os s a vida . por exem plo, s u pon h a m os qu e Glor ia fa lou com igo com m u ita arrogância. Os fatos em si sã o ela ter dito uma coisa para mim. Ela e eu podem os ter u m a pequ en a d is cu s s ã o pa ra res olver , m a s a verda de da qu es tão é qu e ela s im ples m en te d is s e a lgo. Na h ora , n o entanto, s in to-m e s epa ra da de Glor ia . No qu e m e d iz res peito, tem a lgo de er ra do com ela . "Afin a l de con ta s , veja só o qu e ela fez! E la realmente é u m a pes s oa des a gra dá vel!" Agora es tou com ra iva dela . A verdade, porém, é que minha diferença não é com Gloria; ela n ão tem n a da qu e ver com is s o. Em bora s eja verda de qu e ela ten h a d ito a lgo, m eu a borrecim en to n ã o vem dela , m a s de ter a cion a do m in h a ba s e de a poio. Viven cio es s a ba s e com o u m a es pécie de

Page 35: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

tensã o, qu e é des a gra dá vel. Nã o qu ero ter n a da qu e ver com es s a sensa ção, en tã o en t ro em gu er ra com Glor ia . Toda via é a m in h a base de apoio que está causando o meu incômodo.

Se o in ciden te for ba n a l, n u m tem po rela t iva m en te cu r to eu o terei es qu ecido e a cion a rei m in h a ba s e de a poio a res peito de a lgu m a ou tra cois a . Se o in ciden te for s ign ifica t ivo, n o en ta n to, pos s o tom a r u m cu rs o d rá s t ico de a çã o. Lem bro-m e de u m a m igo da fa m ília , du ra n te a Gra n de Depres s ã o, qu e foi des ped ido do em prego em qu e s e h a via m a n t ido por qu a ren ta a n os . Correu pa ra o telh a do, a t irou -s e e a s s im s e m a tou . Ele n ã o en ten d ia s u a vida . Algo t in h a ocorr ido, é verda de, m a s n ã o era ca s o pa ra s u icíd io. E le es ta va com s u a ba s e de a poio fu n cion a n do a todo va por e s eu sofrimento era tão intenso que não conseguiu suportá-lo.

Sem pre qu e a lgo rep res en ta t ivo a con tece em n os s a vida , leva m os u m in ten s o ch oqu e de n os s a ba s e de a poio. Nã o s a bemos o que fazer com esse choque. Embora tenha vindo de dentro de nós, pen s a m os qu e vem de fora , "de lá ". Algu ém ou a lgo n os t ra tou m u ito m a l. Som os vít im a s . Com Glor ia , m e pa rece óbvio: o p rob lem a é Glor ia . "Qu em m a is poder ia s er? Nin gu ém m a is m e in s u ltou h oje. Tem de s er ela ." Pa ra revida r , com eço a p la n eja r : "Com o pos s o da r -lh e o t roco? Ta lvez eu n ã o fa le com ela n u n ca m a is . Se ela va i fica r fa zen do is s o, eu n ã o qu ero qu e ela s eja m a is m in h a a m iga . J á ten h o p rob lem a s s u ficien tes . Nã o p recis o de Gloria". Na realidade, a verdadeira fonte de meu aborrecimento não é Glor ia . E la fez u m a cois a de qu e eu n ã o gos tei, m a s s eu comportamento não é a fonte de minha dor. A fonte de minha dor é minha base de apoio fictícia.

Quando nos sentamos para a prática, gradualmente tornamo-n os m a is con s cien tes de n os s o corpo e percebem os qu e es tá o tempo todo contraído. Em geral a contração é muito discreta e sutil, in vis ível pa ra a s ou tra s pes s oa s . Qu a n do fica m os de fa to a borrecidos , a con tra çã o a u m en ta . Algu m a s pes s oa s es tã o tã o for tem en te con tra ída s qu e is s o s e tom a eviden te pa ra os ou tros . Depen de da h is tór ia pa r t icu la r de ca da u m . Mes m o qu e a pes s oa ten h a t ido u m a vida rela t iva m en te fá cil e feliz, a con tra çã o es tá sempre lá, como uma tensão marginal.

O qu e podem os fa zer com es s a con tra çã o? A p r im eira cois a é tomar consciência de que ela existe. Isso leva em gera] alguns anos de prática. Nos primeiros anos em que nos sentamos para praticar,

Page 36: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

lidamos em gera l com os pen s a m en tos m a is os ten s ivos qu e ru m in a m os a res peito dos a pa ren tes p rob lem a s qu e tem os com o u n ivers o. Es s es pen s a m en tos m a s ca ra m a con tra çã o s u b jacente. Tem os de lida r com eles e a ca lm a r n os s a s vida s a té qu e n os s a s rea ções em ocion a is n ã o s eja m tã o des t ra m belh a da s . Qu a n do n os s a s vida s t iverem s e torn a do u m pou co m a is a s s en ta da s e n orm a is , irem os n os con s cien t iza r da con tra çã o m a rgin a l s u b ja -cen te qu e s em pre es teve a li, o tem po todo. A pa r t ir de en tã o, podem os n os torn a r con s cien tes da con tra çã o com m a is in ten s i-dade do que quando algo dá errado do nosso ponto de vista.

A p rá t ica n ã o d iz res peito a os even tos tem porá r ios de n os s a vida . E la s e refere à n os s a ba s e de a poio. Es ta regis t ra os eventos tem porá r ios . Depen den do dos even tos e de com o n os s a ba s e de a poio os regis t ra , ch a m a m os n os s a s rea ções de a borrecim en to, ra iva , depres s ã o. Es s e t ra n s torn o n ã o é pelos even tos , m a s por n os s a ba s e de a poio. Por exem plo, s e u m ca s a l es tá d is cu t in do, pen s a m qu e s u a b r iga é de u m com o ou t ro, m a s n a rea lida de a d is cu s s ã o é de ca da u m com s u a p rópr ia ba s e de a poio. Acon tece u m a b r iga qu a n do ca da u m a da s pes s oa s s in ton iza s u a p rópr ia ba s e de a poio n u m a rea çã o a a lgu ém . Por is s o, qu a n do ten ta m os res olver u m a des a ven ça lida n do com n os s o côn ju ge de a lgu m a maneira , n ã o ch ega m os a pa r te n en h u m a ; n ã o é es s a a fon te do problema.

Uma outra coisa que aumenta a confusão é que nós gostamos de n os s a ba s e de a poio. E la n os con fere im por tâ n cia p rópria. Qu a n do n ã o en ten do m in h a ba s e de a poio, en tã o pos s o exigir m u ita a ten çã o d is cu t in do com a Glor ia , des for ra n do-m e dela , e a s s im ela fica s a ben do com qu em s e m eteu . Qu a n do a jo a s s im , m a n ten h o m in h a ba s e de a poio, o qu e con s idero com o m in h a p roteçã o d ia n te do m u n do. Ten h o con fia do n ela des de m eu s tem pos de cr ia n ça e n ã o qu ero m e livra r dela . Se eu fos s e m e des fa zer dela , ter ia de en ca ra r todo o m eu ter ror ; em vez d is s o, p refiro en fren ta r a Glor ia . E is s o qu e con s t itu i a p rá t ica s en ta da : en ca ra r o ter ror e s er a ten s ã o

s ecu n dá r ia ou p redominante

n o corpo. Nã o qu erem os fa zer is s o. Qu erem os lida r com n os s os principais problemas através de nossa base de apoio.

Há m u itos a n os , t ra ba lh ei pa ra u m a gra n de com pa n h ia . Era a a s s is ten te do ch efe de m in h a s eçã o, u m la bora tór io de pes qu is a cien t ífica . Min h a va ga n o es ta cion a m en to fica va per to da en t ra da do la bora tór io. Era bom is s o; qu a n do ch ovia , eu pod ia s a lta r do

Page 37: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ca r ro e en t ra r n o ed ifício s em fica r m u ito m olh a da . Foi s u rgin do u m prob lem a com es s a va ga , porqu e a por ta con du zia ta m bém d ireto pa ra o es cr itór io do vice-p res iden te. En tã o a s ecretá r ia do vice-p res iden te decid iu qu e a qu ela m in h a va ga era o m elh or lu ga r pa ra es ta cion a r . E la com eçou u m a con fu s ã o e a s com u n icações in tern a s com eça ra m a voa r pa ra todo la do. Era m pa ra o depa r ta m en to de pes s oa l, pa ra o m eu ch efe, pa ra o ch efe dela , e pa ra a lgu n s ou tros lu ga res . E la es ta va m u ito con tra r ia da porqu e no papel seu cargo era superior ao meu e no entanto a melhor vaga era a m in h a . Pen s ei: "Ela es tá ten ta n do m e t ira r es ta va ga . Eu s em pre t ive es ta va ga . Lega lm en te, é m in h a ". Meu ch efe, a pessoa m a is im por ta n te do la bora tór io de pes qu is a cien t ífica , s olida r izou -s e com igo e com eçou a lu ta r com o vice-p res iden te. Seu s egos es ta va m en volvidos . Qu em era m a is im por ta n te? Nã o h a via u m a res pos ta cla ra . Nes s a a ltu ra , em vez de es ta rm os a pen a s a s du a s ba ten do boca , n os s os ch efes es ta va m igu a lm en te n o con flito. Toda noite, quando saía da minha vaga, eu s abia que estava certa.

Es s a lu ta du rou m es es . As com u n ica ções deixa va m de s er exped ida s e de repen te

toda vez qu e es s a s ecretá r ia m e via

ela s com eça va m de n ovo a voa r de u m la do pa ra ou tro. Fin a lmente, cer ta n oite, n u m cru za m en to, en qu a n to es pera va qu e o s in a l m u da s s e pa ra verde, perceb i o s egu in te: "Nã o es tou ca s a da com a qu ela va ga . Se ela a qu er , qu e a leve". As s im , n o d ia s egu in te, com ecei eu m es m a a exped ir a s com u n ica ções . Com perm is s ã o do depa r ta m en to de pes s oa l, ced i m in h a va ga . Meu ch efe ficou fu r ios o com igo. Porém , com o n ã o era u m a qu es tã o m u ito gra ve, a ca bou s e a cos tu m a n do com a s itu a çã o. Um a s em a n a m a is ta rde, a s ecretá r ia m e telefon ou e convidou-m e pa ra a lm oça r . Nu n ca n os aproximamos muito, mas mantivemos uma relação cordial.

A verda deira qu es tã o n ã o era en t re m im e es s a s ecretá r ia . A va ga era a pen a s u m a es pécie de s ím bolo pa ra ou tra s es pécies de lu ta s . Nã o es tou qu eren do d izer qu e a gen te deva s em pre a b r ir m ã o de u m a va ga n o es ta cion a m en to. Nes s e ca s o, porém , a qu es tã o era t r ivia l: eu pa s s ei a ter de a n da r ta lvez qu a ren ta ou cin qü en ta pa s s os , em vez de s ete. Um a ou du a s vezes n o in vern o fiqu ei rea lm en te en ch a rca da da ca beça a os pés . No en tanto, en qu a n to es s a con trovérs ia n ã o foi res olvida , m a n teve m u ita s pessoas ocupadas durante meses.

Nos s a s des a ven ça s n u n ca s ã o com os ou tros , m a s com n os s a p rópr ia ba s e de a poio. Se tem os u m a ba s e de a poio com m u ita s

Page 38: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

tom a da s p ron ta s pa ra n os liga rm os em qu a lqu er u m a dela s , p ra t ica m en te qu a lqu er cois a s erá m ot ivo. Nós gos ta m os de n os s a s ba s es de a poio; s em ela s , ir ía m os s en t ir -n os a ter ror iza dos , ta l como nos sentíamos quando éramos muito pequenos.

O objetivo da prática é tornarmo-nos amigos de nossa base de a poio. Nã o irem os n os livra r dela de u m a vez por toda s . Es ta m os m u ito a pega dos a ela pa ra is s o. Ma s , con form e a m en te for rea lm en te s e a qu ieta n do e torn a r -s e m en os in teres s a da em lu ta r com o m u n do; qu a n do des is t irm os de n os s a s pos ições em a lgu m a s lu ta s s em s en t ido; qu a n do n ã o t iverm os m a is qu e b r iga r ta n to porqu e ch ega m os a ver o qu e es tá por t rá s , en tã o n os s a ca pa cida de de perm a n ecerm os s en ta dos n a p rá t ica a u m en ta rá . Nesse ponto, começamos a sentir que o problema real está naquela a n t iga cr ia çã o con s t itu ída de dor

a dor da cr ia n cin h a qu a n do des cobre qu e a vida n ã o é a qu ilo qu e ela gos ta r ia qu e fos s e. Es s a dor es tá reves t ida de ra iva , m edo e ou tros s en t im en tos pa recidos . Nã o h á m eios de s e es ca pa r des s e d ilem a , exceto volta n do pelo m es m o ca m in h o e torn a n do a s en t ir os s en t im en tos or igin a is . Nã o es ta m os in teres s a dos n is s o, porém , e é por is s o qu e s en ta r n a prática se torna tão difícil.

Qu a n do regres s a m os a o corpo, n ã o é qu e des en ter ra m os a lgu m gra n de m elodra m a qu e s e des en rola em n os s o ín t im o. Pa ra a m a ior ia da s pes s oa s , a m a ior pa r te do tem po, a con tra çã o é tã o s ecu n dá r ia qu e n em con s egu em perceber qu e es tá lá . Ma s es tá . Qu a n do s im ples m en te n os s en ta m os e m a n tem os u m a a pro-xim a çã o ca da vez m a ior da s en s a çã o des s a con tra çã o, a p ren demos a des ca n s a r n ela por per íodos ca da vez m a iores : cin co s egu n dos , dez s egu n dos , depois t r in ta m in u tos ou m a is . Um a vez qu e a ba s e de a poio é n os s a in ven çã o e qu e n ã o tem u m a rea lida de fu n da m en ta l, ela com eça a s e res olver u m pou co a qu i, u m pou co a li. Depois de fica r em sesshin por a lgu m tem po, ta lvez perceba m os qu e ela s u m iu . Depois ela pode volta r . Se en ten derm os a n os s a p rá t ica , a o lon go dos a n os de p rá t ica es s a ba s e de a poio va i fica n do ca da vez m a is fin a e m en os dom in a n te. Podem ocorrer a ber tu ra s m om en tâ n ea s , Em s i m es m a s , essas a ber tu ra s n ã o s ã o im por ta n tes , u m a vez qu e a ba s e de a poio em gera l retorn a im ed ia ta m en te a fu n cion a r a s s im qu e depa ra m os com u m a n ova s itu a çã o des a gra dá vel com a lgu ém . Nã o ten h o u m in teres s e es pecia l em cr ia r a ber tu ra s n a ba s e de a poio; o t ra ba lh o rea l es tá em d is s olvê-la por com pleto, a os pou cos . Sa bem os qu e a

Page 39: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

base de apoio está em ação quando nos sentimos contrariados com a lgo ou com a lgu ém . Sem s om bra de dú vida tem os qu es tões n o m u n do extern o a s erem res olvida s , a lgu m a s dela s m u ito d ifíceis . Contu do es s a s qu es tões n ã o s ã o o qu e n os con tra r ia . O qu e n os con tra r ia é es ta rm os fu n cion a n do a pa r t ir de n os s a ba s e de a poio. Quando isso acontece, não há serenidade, não há paz.

Es ta m oda lida de de p rá t ica

tra ba lh a r d ireta m en te com a

ba s e de a poio, com n os s a s con tra ções s u b ja cen tes

pode s er

m a is d ifícil do qu e a p rá t ica do koan *. Com a p rá t ica do koan, a pes s oa s em pre tem u m pequ en o in cen t ivo ou recom pen s a pa ra pa s s a r pa ra o p róxim o koan. Nã o h á n a da de er ra do com is s o, e eu à s vezes t r a ba lh o com koans com m eu s a lu n os . No en ta n to, es s a a borda gem n ã o é tã o fu n da m en ta l qu a n to o t ra ba lh o s obre a ba s e de a poio, qu e es tá p res en te em ca da u m de n ós . Es ta m os cien tes dela ? Sa bem os o qu e s ign ifica p ra t ica r? Com qu e s er iedade en ca ra m os n os s a s d ificu lda des com a s ou tra s pes s oa s e com a vida ? Qu a n do es ta m os liga dos n es s a ba s e, a vida é m u ito s em es pera n ça . Todos es ta m os s in ton iza dos n ela , em gra u s va riáveis, eu in clu s ive. Com o pa s s a r dos a n os torn ei-m e m a is h á b il pa ra recon h ecer qu a n do es tou liga da n es s a ba s e de a poio. Nã o perco m a is ta n to es s es m om en tos . Podem os n os fla gra r liga n do-n os n a n os s a ba s e de a poio obs erva n do o m odo com o fa la m os con os co e com os ou tros : "Tem a lgu m a cois a er ra da com ele. É cu lpa dele. E le t in h a qu e s er d iferen te"; "Eu dever ia s er m elh or"; "A vida s im ples m en te é in ju s ta com igo"; "Eu rea lm en te n ã o ten h o esperança".

Qu a n do execu ta m os es s a s s en ten ça s em n os s a m en te, s em questioná-la s , es ta m os des en ca dea n do u m a fa ls a b r iga e term in a -m os lá on de a ca ba m toda s a s fa ls a s b r iga s : em pa r te a lgu m a , ou em m a is d ificu lda des . Tem os de defla gra r a verda deira lu ta : perm a n ecer com a qu ilo com qu e n ã o qu erem os perm a n ecer . Pra t ica r exige cora gem . A cora gem a u m en ta com a p rá t ica , m a s n ã o exis te u m a s a ída rá p ida e fá cil. Mes m o depois de m u ito tem po s en ta dos n a p rá t ica , qu a n do fica m os com ra iva , tem os ta m bém o im pu ls o de a ta ca r a ou tra pes s oa . Procu ra m os form a s de ca s t iga r os ou tros pelo qu e fizera m . Es s a a t ivida de é n ã o viven cia r a n os s a raiva, mas evitá-la através de algum drama.

* Koan: uma questão paradoxal tradicional, impossível de ser analisada racionalmente, usada para aprofundar a meditação.

Page 40: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Mu ita s es cola s de tera p ia in cen t iva m qu e o clien te m a n ifes te d ireta m en te s u a h os t ilida de. Qu a n do a exp res s a m os porém , n os s a a ten çã o d ir ige-s e pa ra fora , pa ra u m a ou t ra pes s oa ou cois a , e pa ra o verda deiro p rob lem a . Expres s a r n os s os s en t im en tos é u m a cois a n a tu ra l e n ã o a lgo ter r ível em s i. Toda via em gera l n os cr ia p rob lem a s . Qu a n do verda deira m en te vivida , a ra iva é m u ito s ilen cios a . Tem u m a cer ta d ign ida de. Nã o h á m a n ifes ta ções , n ã o h á tea t ra liza ções . Refere-s e a pen a s a es ta r com a qu ela con tra çã o fu n da m en ta l qu e den om in ei a ba s e de a poio. Qu a n do de fa to ficamos com raiva, então os pensamentos pessoais e autocentrados s e des ta ca m do s en t im en to e fica m os d ia n te da en ergia pu ra , qu e pode ser usada de um modo compassivo.

Es s a é a verda deira h is tór ia da p rá t ica . A pes s oa qu e con -s egu e fa zer is s o com gra n de con s is tên cia é a lgu ém qu e ch a m a mos de ilu m in a do. Pa s s a r por u m a exper iên cia m om en tâ n ea de es ta r s em a ba s e de a poio n ã o é a verda deira ilu m in a çã o. A pes s oa rea lm en te ilu m in a da é a qu ela qu e con s egu e t ra n s form a r en ergia qu a s e o tem po todo. Nã o qu e a en ergia n ã o a pa reça m a is . A qu es tã o é o qu e fa zer com ela ? Se a lgu ém dá u m a t rom ba da n o n os s o ca r ro, s em ter p res ta do a ten çã o, n ã o irem os a pen a s s or r ir com docilida de. Terem os u m a rea çã o: "Ma s qu e d roga !". Ma s e en tã o? Por qu a n to tem po perm a n ecem os n es s a rea çã o? A m a ior ia de n ós p rolon ga es s a rea çã o e a a m plia a o m á xim o. Um exem plo é n os s a p ropen s ã o a m over p roces s os ; n ã o es tou d izen do qu e u m proces s o n u n ca s eja ju s t ifica do. Pode s er à s vezes n eces s á r io pa ra res olver u m a pen dên cia . No en ta n to m u itos p roces s os s ã o n a rea lida de a res peito de a lgu m a ou tra cois a e s ã o con tra p rodu cen tes . Se m a n ifes to m in h a ra iva pa ra Glor ia , ela , de a lgu m a m a n eira , irá devolvê-la pa ra m im . Min h a a m iza de com Glor ia poderá a ca ba r . Qu a n do o elem en to pes s oa l

o m odo com o m e s in to qu a n to a ela

é a fa s ta do, en tã o res ta s ó a en ergia . Qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica des s a en ergia , com d ign ida de, em bora n o com eço s eja doloros o, depois s e t ra n s form a n u m lu ga r de gra n de des ca n s o. Um a fra s e do cora l de Ba ch m e vem à m en te: "Em Teu s b ra ços eu des ca n s o". Is s o s ign ifica des ca n s a r em qu em eu rea lm en te s ou . "Aqu eles qu e poder ia m m oles ta r -m e n ã o con s egu em en con tra r -m e a qu i." Por qu e é qu e eles n ã o con s egu em encontrar-m e a qu i? Porqu e n ã o tem n in gu ém em ca s a . Nã o tem n in gu ém a í. Qu a n do s ou en ergia pu ra , n ã o s ou m a is eu . Sou u m fu n cion a m en to pa ra o qu e é bom . Es s a t r a n s form a çã o é o m ot ivo pelo qu a l es ta m os s en ta dos n a p rá t ica . Nã o é fá cil. E n ã o a con tece

Page 41: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

do d ia pa ra a n oite. Ma s , s e p ra t ica rm os bem , irem os com o tem po n os en volver ca da vez m en os em equ ívocos in terpes s oa is , p reju d ica n do a n ós e a os ou tros . Sen ta r pa ra a p rá t ica in cin era o elem en to a u tocen tra do e n os deixa com a en ergia de n os s a s emoções, sem a destrutividade.

Sesshins, a p rá t ica regu la r , e a p rá t ica n a vida s ã o os m e-lhores caminhos para produzir essa transformação. Pouco a pouco, vai acontecendo uma mudança em nossa energia e mais um trecho de n os s a ba s e de a poio é in cin era do. Con form e n os s a s p reocu pa ções a u tocen tra da s forem s en do deixa da s de la do, n ã o poderem os m a is retorn a r a o m odo com o éra m os . Um a t ra n s for -mação fundamental aconteceu.

"Em Teus braços eu me descanso." Existe uma verdadeira paz quando descansamos dentro dessa contração fundamental, apenas viven cia n do o corpo com o é. Com o d iz Hu ber t Ben oit em s eu maravilhoso livro The s uprem e d octrine (A dou tr in a s u prem a ) *, qu a n do es tou n u m des es pero rea l, pelo m en os deixe-m e des ca n s a r n es s e d iva de gelo. Se eu con s egu ir verda deira m en te des ca n s a r a í, m eu corpo irá con form a r-s e com ele e n ã o h a verá m a is s epa ra çã o. Nes s e pon to, a lgu m a cois a m u da . Com o m e s in to a res peito de Glor ia a gora ? Oh , t ivem os u m pequ en o des en ten d im en to e da rem os en tã o u m belo pa s s eio a pé pa ra con vers a rm os a res peito. Sem problemas.

II. Sacrifício

SACRIFÍCIO E VÍTIMAS

Ou vin do m u ita s pes s oa s fa la rem de s u a s vida s , fico im pres -s ion a da pelo fa to de a p r im eira ca m a da en con tra da , qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica , s er n os s o s en t im en to de s erm os vít im a s , n os s o s en t im en to de qu e fom os s a cr ifica dos pelos ou tros . Fomos

* Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychologícal studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 145.

Page 42: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s a cr ifica dos à cob iça , à ra iva e à ign orâ n cia dos ou tros , à s u a fa lta de con h ecim en to de qu em s ã o. Mu ita s vezes es s a vit im a çã o é com et ida por n os s os pa is . Nin gu ém tem u m pa r de bu da s com o pa is . Em vez de bu da s , tem os pa is com o pa is : fa lh os , con fu s os , ira dos , a u tocen tra dos

com o todos n ós . Eu fu i m a lt ra ta da pelos

m eu s pa is e com cer teza m a lt ra tei m eu s filh os a lgu m a s vezes . Até m es m o os m elh ores pa is m a lt ra ta m s eu s filh os à s vezes , porqu e são humanos.

Com a p rá t ica tom a m os con s ciên cia de term os s ido s a cr ifi-ca dos e n os a borrecem os m u ito com es s e fa to. Sen t im o-nos m a goa dos , m a n ipu la dos , com o s e a lgu ém n ã o n os t ra ta s s e do m odo com o devía m os s er t ra ta dos

e is s o é verda de. Em bora inevitável, ainda é verdade e dói, ou assim parece.

O primeiro estágio é simplesmente tornar-se consciente de ter s ido s a cr ifica do. O s egu n do es tá gio con s is te em t ra ba lh a r com o s en t im en to qu e decor re de ta l con s cien t iza çã o: n os s a ra iva , n os s o des ejo de fica r qu ites , n os s o des ejo de m a goa r a qu eles qu e n os m a goa ra m . Es s es des ejos va r ia m m u ito qu a n to à s u a in ten s ida de: a lgu n s s ã o m odera dos , ou t ros poderos os e pers is ten tes . Mu ita s tera p ia s t ra ta m de des en ter ra r n os s a s vivên cia s de vit im a çã o; a p res en ta m va r ia da s a borda gen s a res peito do qu e fa zer qu a n to a ta is exper iên cia s . Na polít ica pa rece qu e pen s a m os qu e devem os revida r . Podem os revida r , ou podem os fa zer a lgu m a ou tra cois a . Mas o que poderia ser?

Con form e p ra t ica m os , tom a m os con s ciên cia de n os s a ra iva por ca u s a da s cois a s , de n os s o des ejo de des con ta r , de n os s a con fu s ã o, ret ra im en to e in d iferen ça . Se con t in u a m os p ra t ica n do (man ten do a a ten çã o, rotu la n do n os s os pen s a m en tos ), en tã o a lgo diferente

em bora ta m bém doloros o

com eça a des pon ta r em n os s a con s ciên cia . Com eça m os a ver n ã o s ó com o fom os s a cr ifica dos , m a s ta m bém com o s a cr ifica m os os ou tros . Es s a con s ta ta çã o pode s er a in da m a is pen os a do qu e a p r im eira . E , es pecia lm en te qu a n do da m os va zã o à n os s a ra iva e a o n os s o res s en t im en to e ten ta m os fica r qu ites , com eça a n os pa recer ca da vez m a is eviden te qu e a gora es ta m os s a cr ifica n do ou tra s pes soas, da m es m a form a com o fom os s a cr ifica dos . E a Bíb lia d iz: o m a l perpetua-s e gera çã o a pós gera çã o. Qu a n do a dor qu e s en t im os d ia n te do qu e fa zem os a os ou t ros e a dor pelo qu e n os fizera m com eça rem a s er do m es m o ta m a n h o, en tã o n os s a p rá t ica es ta rá amadurecendo.

Page 43: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Se es ta m os com prom et idos com cu ra r , qu erem os com pen sar. O qu e s ign ifica a pa la vra compensar? Sign ifica pen s a r * ju n to, s a ra r ju n to. Nã o podem os a pa ga r o qu e fizem os n o pa s s a do. J á es tá feito. Sen t irm o-n os cu lpa dos por ca u s a d is s o é u m a m a n eira de n os s a cr ifica rm os , porqu e n o pa s s a do s a cr ifica m os ou tra s pes s oa s . A cu lpa n ã o a ju da . Dizer qu e s en t im os m u ito

desculpar-nos

n em s em pre é com pen s a r . Em bora pos s a s er

n eces s á r io, pode n ã o s er s u ficien te. A p rá t ica religios a t ra ta de u m a com pen s a çã o, de p ra t ica r com a n os s a p rópr ia vida , de en xerga r o n os s o des ejo de s a cr ifica r os ou tros porqu e es ta m os com ra iva . Precis a m os con s ta ta r es s es des ejos , m a s n ã o rea lizá -los.

O p roces s o de com pen s a çã o leva a vida in teira . É d is s o qu e t ra ta a vida h u m a n a : com pen s a ções in term in á veis . Por ou tro la do, s en t ir cu lpa é u m a expres s ã o do ego: podem os s en t ir pen a de n ós (e n os s en t irm os a té n obres ) s e n os perderm os em n os s a cu lpa . Na verda deira com pen s a çã o, em vez de foca liza rm os n os s a a ten çã o n a cu lpa , a p ren dem os a con cen trá -la m a is em n os s os irm ã os e irm ãs, em n os s os filh os , em qu em qu er qu e es teja s ofren do. Pa ra qu e es s es es forços pos s a m s er gen u ín os , n o en ta n to, devem os a n tes lida r com a p r im eira ca m a da

qu e é a de tom a r con s ciên cia de todos os n os s os pen s a m en tos , s en t im en tos e de n os s a ra iva por tudo o qu e n os s a vida tem s ido. Depois p recis a m os des en volver a a gu deza de vis ã o e a s en s a çã o cla ra de n os s o a tu a l des ejo de s a cr ifica r os ou tros . Is s o é m u ito m a is im por ta n te: n ã o o qu e n os foi feito, m a s o qu e es ta m os fa zen do com os ou tros . Algu ém tem de para r o p roces s o. Com o in ter rom pê-lo? Nós o in ter rom pem os qu a n do n os ret ira m os de n os s os pen s a m en tos a m a rgos a res peito do pa s s a do e do fu tu ro e com eça m os a es ta . a pen a s n o a qu i e n o a gora , fa zen do o m elh or qu e podem os , obs erva n do o qu e fa zem os . As s im qu e es s e p roces s o s e tom a m a is cla ro, exis te a pen a s u m a cois a qu e rea lm en te qu erem os fa zer : rom per a ca deia , a m en iza r o s ofr im en to do m u n do. Se u m a em ca da dez pes s oa s do m u n do s e d is pu s es s e a rom per a ca deia , o ciclo in teiro des m oron a r ia ; n ã o teria força suficiente para se manter por si.

O que tudo isso tem que ver com integridade, com iluminação? Um a pes s oa ilu m in a da es ta r ia d is pos ta , s egu n do a s egu n do, a s er o s a cr ifício n eces s á r io pa ra s e rom per o ciclo do s ofr im en to. Es ta r d is pon ível pa ra o s a cr ifício n ã o s ign ifica s er "m a is s a n to qu e você";

* Nota da Tradutora: No sentido de pensar as feridas. No original, atone, at one.

Page 44: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

is s o é pu ro ego. A d is pon ib ilida de pa ra s er s a cr ifica do é m a is s im ples e m a is bá s ica . Qu a n to m a is s en ta m os n a p rá t ica , m a is a u m en ta n os s o con h ecim en to de n ós m es m os e de n os s a vida . En tã o tem os u m a es colh a a cerca do qu e irem os fa zer ; podem os es colh er en t re s a cr ifica r ou n ã o u m a ou tra pes s oa . Por exem plo, podem os es colh er da r u m a res pos ta a t ra ves s a da pa ra a lgu ém . Is s o pode pa recer u m a cois a t r ivia l, m a s n ã o é. Nós es colh em os com o n os rela cion a r com a s pes s oa s de qu em s om os p róxim os . Nã o qu e n os torn em os m á r t ires ; es colh er s er m á r t ir é n a rea lida de a lgo ba s ta n te a u tocen tra do. E n ã o é qu e des is ta m os do p ra zer qu e h á n a vida . (Com cer teza n ã o qu erem os con viver s em pre com pes s oa s qu e n u n ca s e d iver tem .) A qu es tã o p r in cipa l é torn a rm o-nos con s cien tes de term os s ido s a cr ifica dos e en tã o com eça rm os a ver com o s a cr ifica m os os ou tros . Es s e é u m es tá gio qu e p recis a fica r cla ro. Freqü en tem en te ou ço: "Por qu e é qu e eu n ã o dever ia revida r? Olha o que fizeram comigo!".

ALUNO: Às vezes , qu a n do m e s in to cu lpa do, en t ro n u m a sintonia de autopunição. Como posso sair dessa sintonia?

JOKO: O a u tofla gela m en to é a pen a s pen s a r . Podem os tom a r consciên cia des s es pen s a m en tos e s en t ir a ten s ã o corpora l qu e os a com pa n h a . Podem os n os pergu n ta r o qu e con qu is ta m os pu n in do-n os in ces s a n tem en te. De cer to m odo, gos ta m os do a u tofla gela m en to porqu e é a u tocen tra do: torn a -n os o cen tro do acontecim en to. A via gem da cu lpa é u m a a t ivida de m u ito autocentrada.

ALUNO: E qu a n to a es ta r com pes s oa s a qu em m e h a b itu ei a es ta r per to e de qu em n ã o gos to m a is ? A ra iva s obe com o u m a s om bra . Qu a n do pen s o n ela s , m in h a s en s a çã o é qu e es tou a fu n -dando.

JOKO: Fique apen as a ten to aos s eu s s en t im en tos ; obs erve o qu e es tá pen s a n do. Se h ou ver u m m om en to a p rop r ia do em qu e você p recis a es ta r com es s a s pes s oa s , obs erve com o é. E n ã o evite a s pes s oa s qu e m obiliza m es s a ra iva . Nã o es tou s u ger in do qu e você necessariamente vá atrás delas, mas pelo menos não as evite.

ALUNO: Com freqü ên cia s in to cu lpa por n ã o es ta r u s a n do com qu a lida de o tem po des pen d ido ju n to a os m eu s pa is . Ten h o m e obs erva do fa zen do is s o vá r ia s vezes . No en ta n to, con t in u o n a mesma.

Page 45: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Você es tá s e a va lia n do s egu n do u m a idéia m en ta l. Quando você estiver com seus pais, esteja simplesmente com eles e veja o qu e a con tece. É o qu e ba s ta . O res to é fa n ta s ia a res peito de com o você dever ia s er . Qu em s a be com o você dever ia s er? Nós a pen a s fa zem os o m elh or , s em pre. Com o tem po, perderem os todo o interesse em nosso passado.

A PROMESSA QUE NUNCA É CUMPRIDA

Nossos problemas decorrem do desejo. No entanto, nem todos os des ejos cr ia m prob lem a s . Exis tem dois t ipos de des ejos : a s exigên cia s ("Ten h o qu e ter is s o") e a s p referên cia s . As p referências s ã o in ócu a s ; podem os ter ta n ta s qu a n ta s qu is erm os . O des ejo qu e exige s er s a t is feito é qu e é o p rob lem a . É com o s e n os s en t ís s em os con s ta n tem en te com s ede e, pa ra s a ciá -la , ten tá s s em os liga r u m a m a n gu eira a u m a torn eira n a pa rede da vida . O tem po todo pen s a m os qu e des ta ou da qu ela torn eira irem os receber a á gu a qu e exigim os . Qu a n do ou ço o qu e m eu s a lu n os têm a d izer , todos pa recem s en t ir s ede de a lgu m a cois a . Podem os con s egu ir u m pou co de á gu a cá e lá , m a s is s o a pen a s n os tor tu ra . Sen t ir s ede, bastante sede, não tem graça nenhuma.

Qu a is s ã o a lgu m a s da s torn eira s à s qu a is recor rem os pa ra saciar n os s a s ede? Um a pode s er o em prego qu e a ch a m os qu e devem os ter . Ou tra pode s er "o pa r idea l", ou "o filh o qu e s e com por ta s em pre com o deve". Da r u m jeito n u m a rela çã o pes soal pode pa recer s er o ca m in h o pa ra ch ega r n a qu ela á gu a . Mu itos a cred ita m qu e por fim s a cia rã o s u a s ede s e en fim con s egu irem da r u m jeito em s i m es m os . Nã o tem o m en or s en t ido qu e o eu ten te con s er ta r o eu , m a s in s is t im os em fa zer is s o. O qu e ch a m a m os de n ós m es m os n u n ca n os é m u ito a ceitá vel. "Nã o con s igo fa zer o ba s ta n te"; "Nã o s ou bem-s u ced ido o s u ficien te"; "Es tou s em pre com ra iva , n ã o va lh o n a da "; "Sou m a u a lu n o". Exigim os u m n ú m ero in con tá vel de cois a s de n ós e do m u n do; p ra t ica m en te qu a lqu er cois a pode s er vis ta com o des ejá vel, com o u m s oqu ete a o qu a l n os a ta r ra ch a m os pa ra poderm os en fim con s egu ir a á gu a qu e a cred ita m os n eces s ita r . As livra r ia s es tã o rep leta s de livros de auto-a ju da p rocla m a n do vá r ios rem édios pa ra a n os s a s ede: Como faz er s eu m arid o am á-la, Com o au m en tar s u a au to-es tim a, e a s s im por d ia n te. Qu er pa reça m os s egu ros de n ós , qu er n ã o, por ba ixo

Page 46: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

des s a ca m a da todos n ós s en t im os qu e a lgu m a cois a es tá fa lta n do. Ach a m os qu e p recis a m os da r u m jeito n a n os s a vida pa ra s a cia r n os s a s ede. É p recis o qu e cr iem os es s a liga çã o, qu e in s ta lem os nossa mangueira na torneira e recebamos a água para beber.

O p rob lem a é qu e n a da de fa to fu n cion a . Com eça m os a des cobr ir qu e a p rom es s a qu e fizem os a n ós m es m os

a de qu e,

de a lgu m a m a n eira , n os s a s ede s er ia res olvida

n u n ca é

cu m pr ida . Nã o es tou qu eren do d izer qu e n u n ca goza m os a vida . Há muitas coisas na vida que podem ser intensamente desfrutadas: cer tos rela cion a m en tos , cer tos t ra ba lh os , cer ta s a t ivida des . Ma s o qu e n ós qu erem os é u m a cois a a bs olu ta . Qu erem os s a cia r n os s a sede em caráter perm an en te , pa ra qu e ten h a m os toda a á gu a qu e qu is erm os , o tem po todo. Es s a p rom es s a da com pleta s a t is fa çã o n u n ca é cu m pr ida . Nã o pode s ê-lo. No in s ta n te em qu e con s egu im os a lgo qu e qu is em os , fica m os s a t is feitos n o m om en to e então nossa insatisfação aparece de novo.

Ten ta m os du ra n te a n os a fio liga r n os s a m a n gu eira n es ta ou n a qu ela torn eira e a ca da vez des cobr im os qu e n ã o era o s u ficiente, e en tã o vem u m m om en to de p rofu n do des â n im o. Com eça m os a s en t ir qu e o p rob lem a n ã o es tá em n os s a in ca pa cida de de liga r u m recep tor a a lgo lá a d ia n te, m a s em qu e n a da extern o pode ja m a is s a t is fa zer es s a s ede. É n es s e m om en to qu e tem os m a is ch a n ce de da r in ício a u m a p rá t ica s ér ia . Es s e pode s er u m m om en to horrível

perceber qu e n a da irá ja m a is n os s a t is fa zer . Ta lvez ten h a m os u m bom em prego, u m bom rela cion a m en to ou fa m ília , e n o en ta n to con t in u a m os com s ede

e n os da m os con ta de qu e n a da rea lm en te con s egu e s a t is fa zer n os s a s exigên cia s . Podem os in clu s ive perceber qu e m u da rm os de vida

m u da r os m óveis de lugar

n ã o va i fu n cion a r ta m bém . O m om en to des s e des es pero é, na realidade, uma bênção, o verdadeiro começo.

Um a cois a es t ra n h a a con tece qu a n do a br im os m ã o de toda s a s n os s a s expecta t iva s . Tem os u m vis lu m bre de ou tra torn eira , qu e a té en tã o t in h a perm a n ecido in vis ível. Liga m os n os s a m a n -gu eira a ela e, pa ra o n os s o p ra zer , des cob r im os qu e a á gu a vem jor ra n do com força . Pen s a m os : "Agora s im ! Con s egu i!". E o qu e a con tece? Ma is u m a vez, a á gu a s eca . Trou xem os pa ra a p róp r ia prática todas as nossas exigências e de novo estamos com sede.

A prática tem de ser um processo de intermináveis decepções. Tem os de en xerga r qu e tu do o qu e exigim os (e a té ob tem os ) irá

Page 47: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

depois n os decepcion a r . Es s a des cober ta é n os s a m es t ra . É por is s o qu e devem os tom a r cu ida do com a m igos qu e es tã o em d ificu lda des , pa ra os qu a is n ã o devem os dem on s tra r n os s a s im -pa t ia a cen a n do-lh es com fa ls a s es pera n ça s e p rom es s a s de t ra n -qü ilida de. Es s a es pécie de s im pa t ia

qu e n ã o é a verda deira

compaixão

s im ples m en te reta rda m a is s eu a p ren d iza do. Em

cer to s en t ido, a m elh or a ju da qu e podem os oferecer a a lgu ém é a p res s a r s eu des a pon ta m en to. Em bora is s o pa reça cru el, n ã o o é n a verda de. Aju da m os a os ou tros e a n ós m es m os qu a n do com e-ça m os a en xerga r qu e toda s a s n os s a s exigên cia s h a b itu a is s ã o m a l d irecion a da s . Com o tem po, irem os n os torn a r es per tos o suficiente pa ra a n tecipa r qu a l s erá n os s a p róxim a decepçã o, pa ra s a ber qu e n os s o p róxim o es forço de s a cia r a s ede ta m bém fra -ca s s a rá . A p rom es s a n u n ca é cu m pr ida . Mes m o com m u itos a n os de p rá t ica , à s vezes con t in u a m os bu s ca n do s olu ções fa ls a s , m a s conforme vamos em seu en ca lço, recon h ecem os a in u t ilida de des s e em pen h o com u m a ra p idez m a ior . Qu a n do ocorre es s a a celera çã o, n os s a p rá t ica es tá da n do res u lta dos . Um a boa p rá t ica in evita velm en te p rom ove es s a a celera çã o. Devem os n ota r a p ro-m es s a qu e des eja m os a r ra n ca r da s ou tra s pes s oa s e a ba n don a r o s on h o de qu e ela s pos s a m s a cia r n os s a s ede. Devem os n os da r conta de que essa é uma iniciativa inútil.

Os cr is tã os ch a m a m es s a con s ta ta çã o de a "n oite es cu ra da a lm a ". J á es gota m os todos os recu rs os de qu e d is pom os e n ã o vem os m a is o qu e fa zer a s egu ir . E en tã o s ofrem os . Em bora s eja u m per íodo de a gu da in felicida de, es s e s ofr im en to é o pon to de m u da n ça . A p rá t ica n os con du z a es s e p rofícu o s ofr im en to e ajuda-n os a perm a n ecer n ele. Qu a n do a s s im fa zem os , em a lgu m momento o sofrimento começa a se transformar, e a água começa a flu ir . Pa ra qu e is s o a con teça , todos os n os s os lin dos s on h os a res peito da vida e da p rá t ica têm qu e s e des ped ir , in clu in do a crença de que uma boa prática aliás, qualquer coisa irá fazer-n os felizes . A p rom es s a qu e n u n ca s erá cu m pr ida s e ba s eia em sistemas de crenças, em pensamentos centrados na própria pessoa qu e n os s u s ten ta m im obiliza dos e s eden tos . Tem os m ilh a res deles . É impossível eliminá-los todos; não vivemos o bastante para isso. A prá t ica n ã o requ er qu e n os livrem os deles , m a s qu e s im ples m en te en xergu em os a lém deles e os recon h eça m os em s eu va zio e em s u a ausência de validade.

Page 48: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

J oga m os es s es s is tem a s de cren ça s pa ra todo la do com o a r roz em fes ta de ca s a m en to. Apa recem por toda pa r te. Por exemplo, qu a n do va i ch ega n do per to do Na ta l, a lim en ta m os expecta t iva s de qu e es s a s eja u m a época a gra dá vel e d iver t ida , u m a bela época do a n o. Se es s es d ia s de Na ta l n ã o s a t is fa zem n os s a s expecta t iva s , fica m os depr im idos e con tra r ia dos . Na rea -lida de, o Na ta l s erá o qu e for , qu er n os s a s expecta t iva s s eja m rea liza da s , qu er n ã o. Da m es m a m a n eira , qu a n do des cobr im os a p rá t ica zen , podem os a lim en ta r a es pera n ça de qu e is s o irá s olu -cion a r n os s os p rob lem a s e torn a r n os s a s vida s per feita s . Ma s a p rá t ica zen s im ples m en te n os rem ete de volta à vida com o ela é. A p rá t ica zen t ra ta de s erm os m a is e m a is a s n os s a s vida s ta is qu a is s ã o. Nos s a s vida s s ã o o qu e s ã o, e o zen n os a ju da a recon h ecer es s e fa to. O pen s a m en to "Se eu cu m pr ir es s a p rá t ica com a pa ciên cia n eces s á r ia , tu do s erá d iferen te" é u m ou t ro s is tem a de cren ça s , u m a ou tra vers ã o da p rom es s a qu e n u n ca s erá cu m pr ida . Quais são alguns outros sistemas de crenças?

ALUNO: Se eu trabalhar bastante, vou conseguir.

JOKO: Sim, esse é um bom sistema de crença americano.

ALUNO: Se eu for s im pá t ico com a s pes s oa s , ela s n ã o vã o m e magoar.

JOKO: Sim, esse é um que em geral nos desaponta. As pessoas serão como serão, é tudo. Sem garantias.

ALUNO: Min h a cren ça é qu e es ta m os todos fa zen do o m elh or que podemos.

IOKO: Eu também tenho a mesma crença.

ALUNO: Se eu fizer exercícios diariamente, ficarei saudável.

JOKO: Sou be recen tem en te de u m s u jeito qu e fa zia s eu s exercícios com regularidade, mas tropeçou e fraturou o quadril.

ALUNO: Se eu m ora s s e em ou tro lu ga r , des fru ta r ia m a is a vida .

ALUNO: Se eu ajudar as pessoas, então sou uma pessoa boa.

JOKO: É u m a verda deira a rm a d ilh a es s a cren ça . Um s is tem a sedu tor qu e n os t ra rá m u itos p rob lem a s . Cla ro, devem os fa zer o qu e é a p ropr ia do e n eces s á r io, m a s n u m s en t ido m a is p rofu n do não podemos ajudar ninguém.

Page 49: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: J á fa z ta n to tem po qu e p ra t ico s en ta do qu e a ch o qu e não devia mais me zangar.

JOKO: Se você está zangado, você está zangado.

ALUNO: Se m eu ca r ro pega fá cil de m a n h ã , en tã o o d ia cor rerá sem problemas.

ALUNO: Se eu t ra ba lh a r por u m a ca u s a ju s ta , o m u n do s erá um lugar melhor.

ALUNO: A dor qu e eu s in to deve torn a r -m e u m a pes s oa m elh or .

JOKO: Você já é uma boa pessoa, assim como é.

É ú t il rever n os s os s is tem a s de cren ça s des s a m a n eira , porqu e s em pre exis te u m a qu e n ã o vem os . Em ca da s is tem a de cren ça s es con dem os u m a p rom es s a . Qu a n to à p rá t ica zen : a ú n ica p rom es s a com qu e podem os con ta r é qu e, qu a n do a corda rmos pa ra n os s a s vida s , s erem os pes s oa s m a is livres . Se a corda rmos pa ra o m odo com o vem os a vida e lida m os com ela , a os pou cos irem os n os libertando

n ã o n eces s a r ia m en te m a is felizes ou melhores, no entanto mais livres.

Toda s a s pes s oa s in felizes qu e já con h eci es ta va m pr is io-n eira s de u m s is tem a de cren ça s qu e a lim en ta a lgu m a p rom es s a , p rom es s a qu e n u n ca foi cu m pr ida . As pes s oa s qu e vêm praticando bem já h á a lgu m tem po s ã o d iferen tes a pen a s pelo fa to de qu e recon h ecem es s e m eca n is m o qu e gera in felicida de e es tã o a p ren -den do a m a n ter -s e con s cien tes d is s o

o qu e é m u ito d iferen te de ten ta r m u dá -lo ou da r u m jeito n ele. Em s i, o p roces s o é tão s im ples qu a n to pos s ível. Toda via , n ós , s eres h u m a n os , con s ide-ramo-lo d ificílim o. Nã o tem os em a bs olu to o m en or in teres s e em m a n ter n os s a percepçã o con s cien te. Qu erem os es ta r pen s a n do a res peito de a lgu m a ou tra cois a , de qu a lqu er ou tra cois a . Por is s o, n os s a s vida s oferecem -n os o des es t ím u lo in term in á vel, ou s eja , o presente perfeito.

Qu a n do a s pes s oa s ou vem is s o, qu erem leva n ta r -s e e s a ir . No en ta n to, a vida a s pers egu e. Seu s is tem a de cren ça s con t in u a mantendo-a s in felizes . Qu erem os n os a ga r ra r a os n os s os s is temas de cren ça s , m a s , qu a n do o fa zem os , s ofrem os . Em cer to s en t ido, tu do fu n cion a com per feiçã o. Nu n ca m e im por to qu a n do a lgu ém começa a prática ou a interrompe. Isso não faz nenhuma diferença. O p roces s o s egu e in evita velm en te a d ia n te. É verda de qu e a lgu m a s

Page 50: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pes s oa s , m es m o qu e a o lon go de u m a vida in teira , n u n ca pa recem a pren der a lgo des s e p roces s o. Todos con h ecem os pes s oa s a s s im . No en ta n to, o p roces s o p ros s egu e, m es m o qu a n do ela s o ign ora m . A p rá t ica d im in u i n os s a ca pa cida de de ign orá -lo. Depois de u m a cer ta dos e de p rá t ica , m es m o qu e d iga m os "Bom , n ã o vou fa zer es s a p rá t ica . É m u ito d ifícil", n ã o podem os evitá -lo. Depois de a lgu m tem po, n ós s im ples m en te p ra t ica m os . As s im qu e a con s cien t iza çã o é des per ta da , n ã o podem os jogá -la pa ra den tro da caixa de novo.

Os con ceitos bá s icos da p rá t ica s ã o de fa to ba s ta n te s im ples. Porém , p ra t ica r a p rá t ica e ch ega r a u m gen u ín o en ten d imento dela leva m u ito tem po. Mu itos s u põem , n os p r im eiros dois a n os , qu e a en ten dem cla ra m en te. Na rea lida de, s e p ra t ica rmos bem du ra n te dez a qu in ze a n os , es ta rem os in do ba s ta n te bem . Pa ra a m a ior ia , vin te a n os é o tem po qu e leva . É n es s e per íodo qu e a p rá t ica s e torn a ra zoa velm en te cla ra e a es ta rem os viven do o tem po todo qu e pu derm os , do m om en to em qu e a corda m os pela manhã a té a h ora de ir dorm ir . Nes s a a ltu ra , a p rá t ica a té con t in u a pela n oite a den tro, en qu a n to dorm im os . Logo, n ã o exis te u m "jeito rá p ido". Con form e va m os p ra t ica n do, n o en ta n to, va i s e torn a n do ca da vez m a is a gra dá vel, m a is en gra ça da . Nos s os joelh os podem doer , podem os en fren ta r toda es pécie de a dvers ida des em nossas vidas, mas a prática consegue ser divertida, mesmo quando é difícil, dolorosa e frustrante.

ALUNO: As vezes é m u ito es t im u la n te. Sem pre qu e fico livre da dor, na prática, começo a rir.

JOKO: Por que você viu uma coisa que não tinha visto antes?

aluno: Claro.

ALUNO: Você s u ger iu qu e, em cer to s en t ido, n ã o exis te is s o de prática zen. Você poderia explicar?

JOKO: Exis te a p rá t ica de m a n ter a percepçã o con s cien te. Nes s e s en t ido, a p rá t ica zen exis te. Ma s , en qu a n to es ta m os vivos , existe a qu es tã o da con s cien t iza çã o. Nã o podem os evitá -la . As s im , n ã o exis tem m eios de s e evita r a p rá t ica , n em de fa zê-la . E la é apenas estar vivo. Embora existam algumas atividades formais que n os a ju da m a des per ta r (e qu e ch a m a m os de p rá t ica zen s e qu is erm os ), a verda deira "p rá t ica zen " é a pen a s es ta r a qu i a gora e não acrescentar nada a isso.

Page 51: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Retom a n do a a n a logia da pa rede com pequ en a s torn eira s : qu a n do en con tra m os u m a torn eira e n os liga m os a ela , conseguimos um pouco de água, não é?

JOKO: Sim , por a lgu m tem po s a cia m os ligeira m en te n os s a s ede. Por exem plo, s u pon h a qu e du ra n te s eis m es es você qu is convida r u m a m oça pa ra s a ir e qu e por fim você a r ru m ou cora gem pa ra fa la r com ela e ela a ceitou . Por u m breve in s ta n te, exis te u m a s en s a çã o im en s a de con ten ta m en to. A is s o ch a m a m os de con s egu ir á gu a , em bora você rea lm en te es ta r s a t is feito s eja u m a ou tra qu es tã o. Ma is cedo ou m a is ta rde, es s a rela çã o d im in u i e a vida de n ovo pa rece qu e s e n os a p res en ta com n ovos p rob lem a s . Es tou fa la n do de u m m odo de viver em qu e a p rópr ia vida n ã o é problema. Temos prob lem a s , m a s n ã o exis te p rob lem a em lida r com eles . Ta lvez todos con s iga m ver is s o, m es m o qu e ra p ida mente, de vez em quando.

Em cer to s en t ido, o zen é u m a p rá t ica religios a . Religião na verda de s ign ifica religa r a qu ilo qu e pa rece es ta r s epa ra do. A p rá t ica zen a ju da -n os com is s o. Ma s n ã o é u m a religiã o n o s en t ido de qu e exis te a lgo fora de n ós qu e irá tom a r con ta de n os s a s vida s . Um a gra n de pa r te da s pes s oa s qu e en t ra m n a p rá t ica zen n ã o tem u m a filia çã o religios a . Na da ten h o con tra a religiã o form a l. Em toda s a s religiões exis tem a lgu m a s pes s oa s n otá veis qu e verda deira m en te p ra t ica m e s a bem o qu e es tã o fa zen do. Toda via , ta m bém exis tem a qu ela s qu e n ã o pos s u em n en h u m vín cu lo com u m a religiã o form a l e qu e m es m o a s s im pra t ica m igu a lm en te bem . No fim , n ã o exis te p rá t ica , s en ã o a qu ilo qu e es ta m os fa zen do a cada segundo.

Um a vez qu e a verda deira p rá t ica e a verda deira religiã o ajudam-n os a religa r a qu ilo qu e pa recia es ta r s epa ra do, toda p rá t ica tem qu e s er a cerca da ra iva . A ra iva é a em oçã o qu e n os separa. Ela corta tudo em dois.

ALUNO: Es s a n ã o s er ia u m a p rá t ica m u ito d ifícil pa ra s er rea liza da in teira m en te a s ós ? Qu a n do u m de m eu s s is tem a s de cren ça s s e rom pe, s in to-m e t ra ído e p recis o de u m cer to a poio de outras pessoas.

JOKO: "Sentir-s e t ra ído" é, eviden tem en te, a pen a s u m ou tro pens a m en to. É m a is d ifícil p ra t ica r s ozin h o, m a s n ã o é im pos s ível. É p roveitos o ir a té u m cen tro zen e ob ter a lgu n s fu n da m en tos , depois m a n ter u m con ta to de lon ga d is tâ n cia e vir pa ra p ra t ica r

Page 52: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

com os ou t ros , qu a n do pu der . Qu a n do a pes s oa p ra t ica s ozin h a é com o n a da r con tra a cor ren te. Nu m a com u n ida de de pes s oa s qu e s e s en ta m ju n ta s pa ra p ra t ica r , tem os u m a lin gu a gem com u m e u m en ten d im en to com u m do qu e é a p rá t ica . Mes m o a s s im , ten h o a lgu n s a lu n os excelen tes qu e vivem ba s ta n te lon ge do cen tro zen e qu e fa la m com igo pelo telefon e. Algu n s deles es tã o in do m u ito bem . E , pa ra a lgu n s , o es forço de p ra t ica r com u m a poio tã o m ín im o pode ser a coisa mais proveitosa de todas.

J USTIÇA

Con form e va m os n os torn a n do ca da vez m a is s en s íveis a n ós e à s exper iên cia s t ra n s itór ia s de n os s a s vida s

n os s os pen s a -m en tos , n os s a s em oções e s en s a ções , torn a -s e óbvio pa ra n ós que o estrato subjacente de nossas vidas é a raiva. Quando alguém insiste "Eu nunca sinto raiva", não acredito.

Um a vez qu e a ra iva e s eu s s u bcon ju n tos

a depres s ã o, o res s en t im en to, o ciú m e, a ca lú n ia , a in tr iga etc.

dom in a m a n os s a vida , p recis a m os in ves t iga r o p rob lem a todo da ra iva com ba s ta n te cu ida do. Pois , u m a vida livre da ra iva s er ia a ter ra p rom et ida do leite e do m el, o n irva n a , u m a exis tên cia em qu e o n os s o p rópr io va lor e o dos ou tros s ã o u m a rea lida de a ben çoa -damente confirmada.

Pa ra a pes s oa p s icologica m en te m a du ra , os m a les e a s in ju s t iça s da vida s ã o en fren ta dos pela con tra -a gres s ã o, n a qu a l é feito u m es forço pa ra s e elim in a r a in ju s t iça e cr ia r a ju s t iça . Com freqü ên cia es s es es forços s ã o d ita tor ia is , rep letos de ra iva e de uma rígida convicção das próprias certezas.

Na m a tu r ida de es p ir itu a l, o opos to da in ju s t iça n ã o é a ju s t iça , m a s a com pa ixã o. Nã o eu con tra você, n ã o eu en d ireitando a s itu a çã o a gora a dvers a , lu ta n do pa ra ch ega r a u m res u ltado justo para mim e para outros, mas a compaixão, uma vida que não se opõe a nada e cumpre tudo.

Toda es pécie de ra iva é fu n da m en ta da em ju lga m en tos , s eja de n ós , s eja de terceiros . A idéia de qu e n os s a ra iva deve s er expres s a pa ra qu e s eja m os m a is s a u dá veis n ã o pa s s a de fa n ta s ia . Precis a m os deixa r qu e es s es pen s a m en tos ira dos e con den a tór ios

Page 53: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa s s em d ia n te de n os s o Eu im pes s oa l, tes tem u n h a . Na da ga n h a m os expres s a n do-os . É u m equ ívoco s u por qu e n os s a ra iva in expres s a n os fere e qu e devem os expô-la e, des s a form a , fer ir a s outras pessoas.

A m elh or res pos ta pa ra a in ju s t iça n ã o é a ju s t iça , m a s a compaixão, ou o a m or . Você pergu n ta : "Ma s o qu e é qu e eu faço n es s a s itu a çã o d ifícil? Ten h o de fa zer a lgu m a cois a !". S im , m a s o qu ê? Nos s a p rá t ica s em pre deve s er a ba s e de n os s os a tos . Um a rea çã o a propr ia da e com pa s s iva n ã o a dvém de u m a lu ta pela ju s t iça , m a s da ra d ica l d im en s ã o da p rá t ica qu e "u lt ra pa s s a todo en ten d im en to". Nã o é fá cil. Ta lvez ten h a m os de viver s em a n a s , m es es em a gon ia , n a p rá t ica . Porém a res olu çã o virá . Nin gu ém pode n os p roporcion a r es s a res olu çã o; ela s ó pode vir de n os s o Eu verdadeiro

s e n os a b r irm os s em res erva s à p rá t ica . Nã o a dotem os u m a vis ã o fá cil e ps icologica m en te es t reita de n os s a s vida s . A d im en s ã o ra d ica l da qu a l fa lo exige tu do o qu e s om os e temos. O contentamento, não a felicidade, é seu fruto.

PERDÃO

O amor perfeito significa amar aquele por meio de quem tornamo-nos infelizes.

Soren Kierkegaard

Qu em é a pes s oa qu e você n ã o con s egu e perdoa r? Ca da u m de n ós tem u m a lis ta qu e pode in clu ir n ós m es m os (em gera l os m a is d ifíceis de perdoa r ) e ta m bém a con tecim en tos , in s t itu ições e grupos.

Nã o é n a tu ra l qu e n os deva m os s en t ir a s s im por ca u s a de u m a pes s oa ou u m a con tecim en to qu e n os fer iu

de m a n eira ta lvez gra ve e ir repa rá vel? Do pon to de vis ta com u m , a res pos ta é sim. Do ponto de vista da prática zen, a resposta é não. Precisamos formu la r o s egu in te voto: irei perdoa r , m es m o qu e cu s te p ra t ica r a vida inteira. Por que uma declaração tão forte?

A qu a lida de de toda a n os s a vida es tá em jogo. Deixa r de perceber a im por tâ n cia do perdã o é s em pre pa r te de u m rela cio-n a m en to fa lh o e u m fa tor em n os s a a n s ieda de, em n os s a s depres -

Page 54: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s ões , em n os s os m a les , em todos os n os s os p rob lem a s . Nos s a incapacidade de conhecer o contentamento é um reflexo direto

En tã o por qu e a pen a s n ã o o fa zem os ? Se fos s e fá cil, s er ía mos todos bu da s rea liza dos . Ma s n ã o é fá cil. Nã o tem proveito n en h u m d izer "Devo perdoa r . Eu devo. Eu devo. Eu devo...". Es s es pen s a m en tos des es pera dos a ju da m m u ito pou co. An á lis es e es forços in telectu a is podem produ zir u m cer to a b ra n da m en to da r igidez do n ã o-perdã o. Ma s o perdã o gen u ín o, com pleto, es tá n u m outro plano.

O n ã o-perdã o es tá a licerça do em n os s os pen s a m en tos h a b i-tu a lm en te cen tra dos em n os s a p rópr ia pes s oa . Qu a n do a cred ita -m os n eles , s ã o com o u m a gota de ven en o em n os s o copo de á gu a . A p r im eira e m on u m en ta l ta refa con s is te em rotu la r e observar esses pensamentos até que o veneno possa evaporar.

En tã o o t ra ba lh o m a ior pode s er efetu a do: o viven cia r a t ivo, com o s en s a çã o fís ica corpora l, do res ídu o da ra iva n o corpo, s em n en h u m a pego a os pen s a m en tos a u tocen tra dos . A t ra n s form a çã o em perdã o, qu e es tá in t im a m en te rela cion a da com a com pa ixã o, pode ocorrer porqu e o m u n do du a lis ta da pequ en a m en te e s eu s pen s a m en tos foi a ba n don a do pelo viven cia r n ã o-du a l, n ã o-pessoal, qu e é a ú n ica m a n eira de s a irm os de n os s o bu ra co in fern a l do não-perdão.

Só a nítida constatação da necessidade crítica de uma espécie de p rá t ica com o es s a pode ca pa cita r -n os a rea lizá -la com força e determ in a çã o a o lon go de m u itos a n os . A p rá t ica m a du ra s a be qu e não existe nenhuma outra escolha.

Então, quem é que você não consegue perdoar?

A FALA QUE NINGUÉM DESEJA OUVIR

Se form os h on es tos , terem os de a dm it ir qu e o qu e de fa to qu erem os da p rática

es pecia lm en te n o com eço, m a s em a lgum gra u o tem po todo

é u m m a ior con for to em n os s a s vida s . Es pera m os qu e, com u m a p rá t ica s u ficien te, o qu e n os in com oda a gora n ã o n os in com ode depois . Exis tem n a verda de du a s m a -n eira s de a borda rm os a p rá t ica , e qu e p recis a m s er cita da s . A p r im eira pers pect iva é o qu e a m a ior ia de n ós pensa qu e é a p rá t ica (qu er o a dm ita m os , qu er n ã o), e a s egu n da é a qu ilo qu e a

Page 55: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

prá t ica n a verda de é. Con form e n os s a p rá t ica va i s e des en volvendo com o tem po, a os pou cos pa s s a m os de u m a pers pect iva pa ra ou tra , em bora n u n ca a ba n don em os por com pleto a p r im eira . Es ta m os todos em algum ponto desse continuum.

Qu a n do a gim os m ovidos pela p r im eira pers pect iva , n os s a a t itu de bá s ica é qu e em preen derem os es s a p rá t ica d ifícil e exigente porqu e es pera m os ob ter determ in a dos ben efícios pes s oa is dela . Podem os n ã o es pera r tê-los todos a o m es m o tem po. Podem os ter u m a cer ta lim ita çã o de pa ciên cia , m a s depois de a lgu n s m es es de p rá t ica podem os com eça r a s en t ir qu e fom os lu d ib r ia dos ca s o n os s a vida n ã o ten h a m elh ora do. En tra m os n a p rá t ica com u m a cer ta expecta t iva ou exigên cia de qu e ela , de a lgu m a form a , irá incumbir-s e de n os s os p rob lem a s . Nos s a s exigên cia s bá s ica s s ã o qu e n os s in ta m os bem e n os torn em os felizes , qu e ten h a m os m a is pa z e s eren ida de. Es pera m os n ã o ter m a is qu e a tu ra r a qu eles h or r íveis s en t im en tos de con tra r ieda de, e ir em os con s egu ir tu do o qu e des eja m os . Es pera m os qu e, em vez de s er in s a t is fa tór ia , n os s a vida s e torn e m a is gra t ifica n te. Es pera m os fica r m a is s a u dá veis , m a is à von ta de. Es pera m os ter m elh or con trole de n os s a vida . Im a gin a m os qu e s erem os ca pa zes de t ra ta r os ou tros m elh or s em que isso seja inconveniente.

Exigim os qu e a p rá t ica n os deixe con fia n tes e qu e ob ten h a -m os ca da vez m a is a qu ilo qu e qu erem os : s e n ã o d in h eiro e fa m a , pelo m en os a lgo p róxim o. Em bora ta lvez n ã o qu eira m os a dm it i-lo, exigim os qu e u m a ou tra pes s oa tom e con ta de n ós e qu e a s pes s oa s qu e n os s ã o p róxim a s a tu em em n os s o ben efício. Es pe-ra m os s er ca pa zes de cr ia r con d ições de vida qu e n os s eja m a gra dá veis , com o o rela cion a m en to cer to, o t ra ba lh o cer to, o m elh or p rogra m a de es tu dos . Pa ra a qu eles com qu em n os iden -tificamos, queremos ser capazes de consertar suas vidas.

Nã o h á n a da de er ra do em qu erer qu a lqu er u m a des s a s cois a s , m a s , s e pen s a rm os qu e a lca n çá -la s é do qu e t ra ta a p rá t ica , en tã o a in da n ã o a terem os en ten d ido. As exigên cia s s ã o toda s a res peito do qu e nós qu erem os : qu erem os fica r ilu m in a dos, qu erem os pa z, qu erem os s eren ida de, qu erem os a ju da , qu eremos controle sobre as coisas, queremos que tudo seja maravilhoso.

A s egu n da pers pect iva é bem d iferen te: ca da vez m a is qu erem os s er ca pa zes de cr ia r h a rm on ia e cres cim en to pa ra toda s a s pes s oa s . Es ta m os in clu ídos n es s e cres cim en to, m a s n ã o s om os

Page 56: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

o cen tro dele; s om os a pen a s u m a pa r te do qu a dro. Con form e es s a s egu n da pers pect iva va i s e for ta lecen do em n ós , com eça m os a des fru ta r o s erviço qu e p res ta m os a os ou tros e tem os m en os in teres s e em s a ber s e s ervir a os ou tros a t ra pa lh a n os s o p rópr io bem-es ta r . Com eça m os a ir em bu s ca de con d ições de vida

com o u m em prego, s a ú de, u m n a m ora do

qu e m a is fa voreça m

es s e s erviço. Ta lvez ela s n ã o n os s eja m s em pre a gra dá veis . O qu e m a is n os im por ta é qu e ta is con d ições n os en s in a m com o s ervir bem a vida . Um a rela çã o d ifícil pode s er ext rem a m en te p roveitos a , por exemplo.

Conforme adotemos a segunda perspectiva mais e mais vezes, a p ren dem os a s ervir a todos , e n ã o s ó a s pes s oa s de qu em gos ta m os . Ca da vez m a is , tem os in teres s e em s er res pon s á veis pela vida , e n ã o n os im por ta m a is ta n to s e os ou tros s e s en tem ou n ã o res pon s á veis por n ós . Na rea lida de, n ós in clu s ive n os torn a m os d is pos tos a s er res pon s á veis pela s pes s oa s qu e n os m a lt ra ta m . Em bora pos s a m os n ã o o p refer ir , tornamo-n os m a is propensos a vivenciar situações difíceis para aprender.

À m edida qu e n os a p roxim a rm os m a is da s egu n da pers pec-t iva , irem os con t in u a r con s erva n do

m u ito p rova velm en te

a qu ela s p referên cia s qu e defin ia m a p r im eira pers pect iva . Con t i-nuaremos prefer in do s er felizes , s en t ir -n os bem , es ta r em pa z, ob ter o qu e qu erem os , m a n term o-n os s a u dá veis , ter u m cer to con trole s obre a s cois a s . A p rá t ica n ã o n os leva a perder n os s a s p referên cia s . Porém , qu a n do u m a p referên cia en t ra em con flito com a qu ilo qu e é m a is p roveitos o, en tã o s en t im o-n os d is pos tos a des is t ir da p referên cia . Em ou tra s pa la vra s , o cen tro de n os s a vida es tá m u da n do, da p reocu pa çã o con os co pa ra a a ten çã o à p rópr ia vida . A vida n os in clu i, s em dú vida ; n ã o fom os elim in a dos da segunda perspectiva, mas não somos mais o centro.

A p rá t ica d iz res peito a des loca r -s e da p r im eira pa ra a s egu n da pers pect iva . Exis te u m a a rm a d ilh a in eren te à p rá t ica , porém : s e p ra t ica rm os bem , m u ita s da s exigên cia s da p r im eira pers pect iva podem s er s a t is feita s . Tem os m a is p roba b ilida de de n os s en t ir m elh or , de fica r m a is con for tá veis . Podem os n os s en tir m a is à von ta de com n ós m es m os . Um a vez qu e n ã o es ta m os pu n in do n os s os corpos com ta n ta ten s ã o, n os s a ten dên cia é n os tornarmos mais saudáveis. Essas mudanças podem causar em nós a equ ivoca da n oçã o de qu e a p r im eira pers pect iva é cor reta : qu e a prática é tornar a vida melhor para nós. Na realidade, os benefícios

Page 57: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

qu e a u fer im os pes s oa lm en te s ã o in ciden ta is . A verda deira razão da prá t ica é s ervir a vida da m a n eira m a is p len a e p rodu t iva qu e pu derm os . E is s o é m u ito d ifícil pa ra a n os s a com preen s ã o, s obretu do a p r in cíp io. "Você qu er d izer qu e devo tom a r con ta de a lgu ém qu e a ca bou de m e des t ra ta r? Is s o é lou cu ra !" "Você es tá d izen do qu e devo des is t ir do qu e é con ven ien te pa ra m im pa ra servir alguém que nem gosta de mim?"

Nossas atitudes centradas em nosso ego têm raízes profundas e leva m m u itos a n os de á rdu a p rá t ica pa ra a frou xá -las um pouco. E es ta m os con ven cidos de qu e a p rá t ica d iz res peito à p r im eira pers pect iva , de qu e irem os con s egu ir a lgu m a cois a dela qu e s eja maravilhosa para nós.

A verda deira p rá t ica , con tu do, é m u ito m a is volta da pa ra en xerga rm os com o n os fer im os e m a goa m os os ou tros com pen -s a m en tos e a tos ilu d idos . É en xerga rm os de qu e m a n eira m a goa -m os os ou t ros , ta lvez por es ta rm os s im ples m en te tã o perd idos em n os s os p rópr ios pen s a m en tos qu e n em s equ er con s egu im os vê-los. Nã o a ch o qu e de fa to ca u s em os da n os a os ou tros ; é s ó qu e n ã o vem os m u ito bem o qu e es ta m os fa zen do. Pos s o s a ber com o es tá in do a p rá t ica de u m a pes s oa ven do s e s eu in teres s e pelos ou tros es tá a u m en ta n do, in teres s e qu e va i a lém do qu e m era m en te EU qu ero, do qu e es tá ME fer in do, de com o a vida é ter r ível, e a s s im por d ia n te. Es s e é o s in a l de u m a p rá t ica qu e es tá a va n ça n do. A p rá t ica s em pre é u m a ba ta lh a en t re a qu ilo qu e qu erem os e a qu ilo que a vida quer.

É n a tu ra l s er egoís ta , qu erer o qu e s e qu er , e s om os in evi-ta velm en te egoís ta s a té qu e en xergu em os u m a a ltern a t iva . A fu n çã o de lecion a r n u m cen tro com o es te é a ju da r a en xerga r a a ltern a t iva e in comodar-n os em n os s o egoís m o. En qu a n to es t i-verm os p res os n a p r im eira pers pect iva , govern a dos pelo des ejo de n os s en t ir bem ou em es ta do de gra ça , ou ilu m in a dos , n ós precisamos s er in com oda dos . Precisamos s er con tra r ia dos . Um bom cen tro e u m bom in s t ru tor t ra ba lh a m pa ra is s o. Afin a l de con ta s , a ilu m in a çã o é a pen a s a a u s ên cia de todo in teres s e ou p reocu pa çã o por s i. Nã o ven h a m a es te cen tro pa ra s e s en t irem m elh or ; es te n ã o é o lu ga r pa ra is s o. O qu e qu ero s ã o vida s qu e cres ça m pa ra qu e pos s a m tom a r con ta de m a is cois a s e de m a is pessoas.

Page 58: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Hoje de m a n h ã receb i u m telefon em a de u m a n t igo a lu n o qu e tem câ n cer n o pu lm ã o. Nu m a opera çã o a n ter ior , fora m removidos t rês qu a r tos de s eu s pu lm ões e ele es tá s e ded ica n do a s en ta r e p ra t ica r . Algu m tem po depois da opera çã o, ele com eçou a ter p rob lem a s de vis ã o e dores de ca beça m u ito for tes . Algu n s tes tes revela ra m dois tu m ores cerebra is

o câ n cer t in h a s e es pa lh a do.

Es tá de volta a o h os p ita l pa ra fa zer t ra ta m en to. Con vers a m os a respeito do tratamento e de como ele está indo. Eu lhe disse: "Sinto rea lm en te m u ito qu e tu do is s o ten h a a con tecido com você. Qu ero a pen a s qu e você s e s in ta con for tá vel. Es pero qu e a s cois a s m elh orem ". Ele res pon deu : "Nã o é is s o qu e qu ero de você. Eu qu ero qu e você exu lte de s a t is fa çã o. É a s s im pa ra m im

e é m a ra vilh os o. Vejo o qu e a m in h a vida é". E depois a cres cen tou : "Nã o qu er d izer qu e n ã o s in ta m u ita ra iva e m edo e fiqu e s u b in do pela s pa redes . Toda s es s a s cois a s con t in u a m a con tecen do e agora eu s ei o qu e é a m in h a vida . Nã o qu ero n a da de você exceto qu e partilhe de meu regozijo. Eu gostaria que todos pudessem se sentir do jeito que estou me sentindo".

Ele es tá viven do den tro da s egu n da pers pect iva , a qu ela n a qu a l a colh em os a s con d ições de vida

em prego, s a ú de, a m or

qu e n os s erã o a s m a is p roveitos a s de toda s . E le con s egu iu is s o. Qu er viva dois m es es , dois a n os , qu er u m lon go tem po, em cer to s en t ido n ã o im por ta . Nã o es tou s u ger in do qu e ele é u m s a n to. E le pa s s a por d ia s de u m a im en s a d ificu lda de: dor , ra iva , revolta . Es s a s cois a s a con tecem a gora com ele; a pes a r d is s o, n ã o era s obre es s a s cois a s qu e ele qu er ia fa la r . Se pu des s e recu pera r -s e, a in da ter ia toda s a s lu ta s e d ificu lda des qu e qu a lqu er pes s oa tem , a s exigên cia s e os s on h os de s eu ego. Es s a s cois a s n u n ca des a pa recem de fa to; s ó o qu e m u da é n os s o m odo de lida r com elas.

A m u da n ça da p r im eira pa ra a s egu n da pers pect iva é d ifícil pa ra n ós com preen derm os , em es pecia l n o p r in cíp io. Ten h o n ota do, n a s con vers a s com a s pes s oa s n ova ta s qu a n to à p rá t ica , qu e m u ita s vezes a s m in h a s pa la vra s s im ples m en te n ã o s ã o regis t ra -da s . Com o u m ga to n u m teto de zin co qu en te, ou gota s de á gu a n u m a fr igideira em pon to de fr itu ra , a s pa la vra s toca m s ó por u m m om en to a s u per fície e depois es va ecem -s e. Com o tem po, porém, a s pa la vra s n ã o irã o m a is s a lu ta r e s u m ir com ta n ta fa cilida de. Algu m a cois a com eça a a fu n da r , a a s s en ta r . Con s egu im os s u s ten ta r por m a is tem po qu e a vida é m u ito d iferen te da qu ilo qu e

Page 59: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a ch a m os qu e poder ia ou dever ia s er . Com o tem po, a u m en ta a ca pa cida de de s im ples m en te s en ta r -s e com o qu e a vida n a verdade é.

Es s a m u da n ça n ã o a con tece de u m d ia pa ra ou tro. Som os obs t in a dos dem a is pa ra is s o. E la pode s er a celera da por u m a gra n de en ferm ida de ou u m for te des a pon ta m en to, por u m a perda gra ve ou ou tro p rob lem a s ér io. Apes a r de eu n ã o qu erer qu e cr is es a s s im a con teça m pa ra n in gu ém , ela s em gera l p roporcion a m o a pren d iza do n eces s á r io. A p rá t ica zen é d ifícil s obretu do porqu e cr ia des con for to e n os coloca ca ra a ca ra com os p rob lem a s qu e tem os em n os s a s vida s . Nã o qu erem os fa zer is s o, em bora n os a ju de a a p ren der e n os in cen t ive a ir em fren te, ru m o à s egu n da pers pect iva . Sen ta r em s ilên cio qu a n do es ta m os con tra r ia dos e gos ta r ía m os rea lm en te de es ta r fa zen do a lgu m a ou tra cois a é u m a liçã o qu e a s s en ta pou co a pou co. Qu a n to m a is recon h ecem os o va lor da p rá t ica , m a is a u m en ta n os s a m ot iva çã o pa ra p ra t ica r . Com eça m os a s en t ir a lgo. Ga n h a m os força pa ra s en ta r e p ra t ica r d ia a pós d ia , pa ra pa r t icipa r de s es s ões de u m d ia in teiro de p rá t ica s en ta da , pa ra fa zer u m sesshin. O des ejo de fa zer es s a p rá t ica á rdu a a u m en ta . Len ta m en te com eça m os a com preender a qu ilo qu e m eu a n t igo a lu n o es ta va qu eren do d izer com a fra s e: "Agora eu s ei o qu e é a m in h a vida ". Es ta m os equ ivoca dos s e sentimos pena dele. Talvez ele seja um dos felizardos.

ALUNO: Você d is s e qu e, n a s egu n da pers pect iva , exigim os qu e n os s a s vida s s eja m m a is p rodu t iva s . Você qu er d izer p rodu t iva s para a prática da pessoa ou o quê?

JOKO: Produtivas para a vida. Produtivas para a vida em geral, in clu in do ta n to da vida qu a n to for pos s ível. Es s a pa rece u m a afirmação ba s ta n te gera l, m a s , qu a n do a con tece em n os s a vida , n ós a com preen dem os . Por exem plo, ta lvez a ju da m os u m a m igo com s u a m u da n ça m es m o qu a n do es ta m os m u ito ca n s a dos e n ã o qu erem os t ra ba lh a r . Deixa m o-n os de la do, im pom os u m a in con -ven iên cia a n ós m es m os , n ã o pa ra s erm os n obres , m a s porqu e é necessário.

ALUNO: Qu a n do ou ço es s e t ipo de h is tór ia , qu ero im ed ia ta m en te com eça r a fa zer p la n os pa ra rea liza r cois a s produtivas.

JOKO: Sim , podem os torn a r qu a lqu er cois a u m idea l a s er buscado. Porém , s e a girm os a s s im , ra p ida m en te irem os depa ra r

Page 60: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

com n os s a p rópr ia res is tên cia

o qu e n os dá a lgo com qu e

trabalhar. Tudo é útil para nós.

Nã o tem os de n os força r a té o pon to de n os a r reben ta rm os . Nã o dever ía m os n os con s idera r com o m á r t ires ; es s e é u m ou t ro idea l, a pen a s is s o, u m a im a gem de com o dever ía m os s er , em contraste com o que de fato somos.

ALUNO; Qu a n do p la n ejo com o pos s o torn a r m in h a vida m a is s egu ra e con for tá vel, im a gin o qu e ela irá torn a r -m e feliz n o fin a l. Ma s en tã o s u rge u m a qu es tã o: "Serei rea lm en te feliz?". Percebo em m im u m a a n s ieda de de a ga r ra r a s egu ra n ça e a felicida de e, por t rá s des s e idea l, es tá u m a s en s a çã o de in s a t is fa çã o, porqu e de alguma maneira eu seí que também não será isso.

JOKO: Há u m cer to va lor em n ós pers egu irm os ta is s on h os porqu e, qu a n do a lca n ça m os o qu e pen s á va m os qu erer , en xerga m os com m a is cla reza qu e is s o n ã o n os dá a s a t is fa çã o pela qu a l a n s iá va m os . É a s s im qu e a p ren dem os . A p rá t ica n ã o é pa ra m u da r a qu ilo qu e fa zem os ; ela s e refere m a is a torn a rm o-nos gra n des obs erva dores e a viven cia rm os a qu ilo qu e es tá s e pa s -sando conosco.

ALUNO: O p roces s o de pers egu ir os s on h os pa rece interminável. Algum dia desaparece?

JOKO: Des a pa rece s im , m a s s om en te depois de a n os e a n os de p rá t ica . Du ra n te m u ito tem po, eu com eça va ca da sesshin com u m a s en s a çã o de res is tên cia . "Nã o qu ero fa zer is s o porqu e s ei o qu a n to es ta rei ca n s a da n o fin a l." Qu em qu er fica r ca n s a do? Hoje es s a res is tên cia já des a pa receu pa ra m im . Qu a n do o sesshin com eça , ele com eça . Se es ta m os p ra t ica n do, os p rogra m a s a n tecipa dos do ego a os pou cos des a pa recem . Ma s ta m bém n ã o de-vemos fazer desse desaparecimento um outro programa antecipado. Nã o dever ía m os pen s a r a p rá t ica com o u m m odo de ch ega r em alguma outra parte. Não há lugar nenhum para onde ir.

ALUNO: Nes te m om en to de m in h a vida , es tou fa zen do m u ita s a m iza des n ova s , m u itos n ovos con ta tos . É excita n te. Nã o s ei qu em está ajudando quem se sou eu quem está dando para eles, ou se s ã o eles qu e es tã o da n do pa ra m im . Is s o tem rela çã o com a p rá t ica ?

JOKO: A p rá t ica m u da a qu ele pa drã o de a m iza de ca lca do em cá lcu los da ra zã o cu s to/ ben efício pa ra ca da en volvido; torn a m o-n os s im ples m en te m a is gen u ín os . Em cer to s en t ido, n ã o podemos

Page 61: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a ju da r os ou tros ; n ã o s a bem os o qu e é m elh or pa ra eles . Pra t ica r com a n os s a p rópr ia vida é o ú n ico m eio de poderm os a judar a lgu ém ; n a tu ra lm en te s ervim os os ou tros torn a n do-n os ca da vez mais quem somos.

ALUNO: Se qu erem os a tu a r den tro da s egu n da pers pect iva , fazendo o qu e é m a is p roveitos o pa ra a vida , com o s a ber o qu e fa zer? Com o poderem os s a ber s e é es te em prego ou es ta rela çã o que corresponde a isso?

JOKO: Qu a n do vivem os den tro da s egu n da pers pect iva , n ã o levam os con os co idea is n em progra m a s a n tecipa dos . É m a is u m a qu es tã o de en xerga r cla ra m en te o qu e es tá à n os s a fren te. Agimos s em fica r gira n do a qu es tã o em n os s a s m en tes , com o u n i d is co riscado, sem parar.

Sentar-s e pa ra p ra t ica r com es s a qu es tã o a ju da ; p res ta m os a ten çã o a os n os s os pen s a m en tos e à ten s ã o em n os s o corpo, e com eça m os a ver com m a is n it idez com o a gir . A verda deira p rá t ica de s en ta r é s em pre u m pou co em ba ra lh a da . Se n os m a n tivermos s en ta dos pa ra p ra t ica r , por u m tem po lon go o ba s ta n te, porém , a s cois a s vã o s e torn a n do pou co a pou co m a is cla ra s . Exis te u m continuum, e s en ta r -s e n a p rá t ica é a va n ça r a o lon go des s e continuwn. Nã o qu e ch egu em os em a lgu m lu ga r ; a pen a s qu e, ca da vez m a is , torn a m o-n os a pen a s n ós m es m os . Nã o m e refiro a sentar-s e n u m a a lm ofa da a pen a s . Se es ta m os p ra t ica n do bem , estamos fazendo zazen o tempo todo.

ALUNO: Son h a m os qu e irem os ch ega r a s a ber qu a l é a cois a cer ta a fa zer , qu a n do de fa to, em a lgu m pon to, n ós a pen a s com eça m os a a gir e en tã o, s eja com o for , a p ren dem os com es s a a çã o. Se com etem os er ros e m a goa m os a s pes s oa s , des cu lpa m o-n os . Qu a n do obs ervo m in h a m en te e perm a n eço a ten to a o m eu corpo, decorre des s a p rá t ica de a ten çã o u m a m aneira de agir. Pode s er u m cu rs o de a çã o m u ito con fu s o, Se m e a ten h o à m in h a p rá t ica , porém , de a lgu m a m a n eira a p ren derei com es s es comportamentos e is s o é o m elh or qu e pos s o fa zer . Nã o pos s o es pera r s a ber s em pre o qu e é m elh or pa ra a vida . Só pos s o fa zer o que posso fazer.

JOKO: Sim . A idéia de qu e deverá ch ega r o m om en to em qu e fica rem os s a ben do o qu e fa zer é pa r te da p r im eira pers pect iva . A ca m in h o da s egu n da , d izem os : "Irei p ra t ica r , vou fa zer o m elh or que posso e aprenderei com os resultados".

Page 62: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: A res peito da qu es tã o de a ju da r os ou tros , pen s o qu e, con form e form os en xerga n do ca da vez m elh or os n os s os s en t i-m en tos e a s n os s a s ten dên cia s pa ra m a n ipu la r u m a s itu a çã o, n es s a m es m a m edida com eça rem os a a gir com m a is h a rm on ia , ou pelo m en os a cr ia r m en os con fu s ã o. Por is s o n ã o tem os de ir lon ge pa ra a ju da r os ou tros . Apen a s en xerga r o qu e es ta m os fa zen do con form e in tera gim os a ju da n a tu ra lm en te a s pes s oa s , s em qu e nem estejamos de fato nos esforçando para isso.

JOKO: Sim . Por ou tro la do, s e vem os a lgu ém a lém de n ós com o u m a pes s oa pa ra a ju da r , podem os es ta r cer tos de qu e a r ra n ja m os u m bom prob lem a . Se s en ta rm os pa ra p ra t ica r , a cerca de n os s a s con fu s ões e lim ita ções , s em ten ta rm os fa zer m a is n a da , com o tempo fazemos algo.

ALUNO: Às vezes , o m a is va lios o pa ra a lgu ém n ã o é o qu e fazemos por ele, mas o que não fazemos.

JOKO: Cer to. Mu ita s vezes , o cu rs o m a is a cer ta do de a çã o é a pen a s perm it ir qu e a s pes s oa s s eja m o qu e s ã o. Por exem plo, s er ia u m er ro s e eu ten ta s s e fa zer a lgu m a cois a por a qu ele m eu a n t igo a lu n o qu e tem câ n cer . Pos s o a pen a s ou vi-lo e s er qu em eu s ou . Ele es tá pa s s a n do pelo qu e tem de pa s s a r ; es s e é s eu aprendizado. Não posso fazer nada a respeito.

ALUNA: Descobri em mim recentemente uma maior disponibili-da de. Pa rece qu e es tou m en os a u tocen tra da e m a is a ber ta , m a is d is pon ível pa ra os ou tros . Pa r te d is s o es tá em en con tra r -m e m a is rela xa da . As pes s oa s m e p rocu ra m com s u a s p reocu pa ções . Nã o é qu e es teja m ped in do a ju da . Em gera l s ó qu erem a lgu ém qu e a s es cu te. Tu do o qu e ten h o de fa zer é s im ples m en te s er eu m es m a e es ta r d is pon ível, d iga m os , pa ra a pes s oa do ou tro la do da lin h a que está me dizendo: "Quero te dizer uma coisa...".

JOKO: É isso.

ALUNO: Joko, você parece disponível o tempo todo, desse jeito.

JOKO: Nem sempre. Às vezes, desligo o telefone.

ALUNO: Nã o a ch o qu e você a ja a s s im pa ra o s eu p rópr io bem . Existem algumas pessoas que realmente se aproveitam de você.

JOKO: Ma s es s e é o m eu t ra ba lh o. E , lem brem -s e, n in gu ém pode "aproveitar" de mim.

Page 63: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Você es tá d izen do qu e s em pre qu e a lgu ém gr ita ped in do a ju da você deve s em pre res pon der? O qu e fa zer com aquelas pessoas que ligam e se queixam o tempo todo?

JOKO: Eu d igo a lgo com o "Es tou es cu ta n do o qu e você es tá d izen do. Ta lvez você pu des s e p ra t ica r com is s o. Com o você praticaria com isso?".

Nã o m e im por to s e a lgu ém s e qu eixa . Todos n os qu eixa mos, em bora pos s a m os n ã o a dm it i-lo. Todos gos ta m os de n os qu eixa r . No en ta n to, m e in com odo s e a s pes s oa s qu erem a pen a s con ta r s u a s h is tór ia s , s em pa ra r , s em o m en or es pa ço pa ra reflet ir s obre o qu e poder ia m es ta r t ra ba lh a n do em s u a vida . Nã o ten h o lu ga r nesses enredos. Talvez essas pessoas tenham de sofrer até estarem dispostas a acordar um pouco.

ALUNO: Fiqu ei m u ito com ovido com s u a h is tór ia do a lu n o com câ n cer . Ten h o u m a t rem en da res is tên cia a recon h ecer qu e todo esse sofrimento está certo.

JOKO: Nã o n os ca be d izer qu e todo es s e s ofr im en to es tá cer to. Ta m bém n ã o qu ero qu e ele s ofra . Ma s é o qu e ele d iz qu e im por ta . A vida n os a p res en ta lições o tem po todo. É m elh or s e pu derm os a pren der ca da u m a dela s , in clu in do a s pequ en in a s . Porém , n ós n ã o qu erem os a pren dê-la s . Qu erem os coloca r a cu lpa pelo p rob lem a em ou tra pes s oa , s im ples m en te colocá -lo de la do, t irá -lo de n os s a vis ta . Qu a n do n os recu s a m os a a p ren der com os p rob lem a s m en ores , s om os força dos a a p ren der com os m a iores . A p rá t ica t ra ta de a p ren der com ca da pequ en a cois a qu e em erge de m odo qu e, qu a n do gra n des qu es tões n os con fron ta m , s om os m a is aptos a lidar com elas.

ALUNO: Torn ei a m e fa m ilia r iza r recen tem en te com o fa to de qu e, qu a n do com eço a m e a fa s ta r do ca m in h o em qu e vin h a vin do e m e d ir ijo m a is pa ra on de p recis o es ta r s egu in do, toda s a s es pé-cies de caos aparecem. Não vai ser fácil.

JOKO: Cer to. Qu a n do com eça m os u m a p rá t ica s ér ia e, por a lgu m tem po a pa r t ir do in ício, a vida pa rece p iora r em vez de melhora r , es ta m os n u m a pa r te da con vers a qu e n in gu ém des eja ouvir.

Page 64: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

O OLHO DO FURACÃO

Segurança é, principalmente, uma superstição. Não existe na natureza, nem os filhos dos homens experimentam-na por completo. A longo prazo, evitar perigos não é mais seguro do que atirar-se e arriscar-se. A vida é ou uma audaciosa aventura, ou nada.

Helen Keller

Algu n s a lu n os a qu i t ra ba lh a m com koans, porém n ã o s ã o to-

dos . Em bora h a ja m u ito a s e a p ren der com o es tu do de koans, a cred ito qu e depen der a pen a s d is s o pode s er lim ita n te. Se en ten -dem os a s n os s a s vida s , en ten dem os os koans. E t ra ba lh a r d ireta -m en te com a n os s a vida é m a is va lios o e d ifícil. Os qu e t ra ba lh a m com koans por u m cer to tem po podem com eça r a in teres s a r -s e em s a ber do qu e t ra ta u m koan, m a s s a ber n ã o é n eces s a r ia m en te o m es m o qu e s er . Em bora a p rá t ica do koan es teja ba s ea da n a idéia de qu e s e virm os o qu e é verda de n ós s erem os es s a verda de, is s o n em s em pre a con tece. Apes a r d is s o, os koans podem s er m u ito ú teis . Com ecem os com u m extra ído do Gateles s gate (Portã o s em porteira) *, o Hom em n o Alto da Arvore, de Kyogu n . Mes tre Kyogu n d is s e: "É com o u m h om em n o a lto da á rvore, pen du ra do de u m ga lh o pela boca ; s u a s m ã os n ã o con s egu em pega r u m ra m o s equ er , s eu s pés n ã o a lca n ça m ou tro ga lh o. Va m os s u por qu e u m ou tro hom em em ba ixo da á rvore lh e pergu n te: 'Qu a l é o s ign ifica do de Bodh idh a rm a vir pa ra o Ociden te? '. Se ele n ã o res pon de, con tra r ia o desejo do interrogante. Se responde, perde a vida. Nessa situação, o qu e ele dever ia fa zer?". Poder ía m os reform u la r es s e koan pergu n ta n do: "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?". Nã o res pon der é n ã o cumprir com a nossa responsabilidade; responder é perder a nossa vida.

Para trabalhar com esse koan contarei uma outra história. Há m u itos a n os eu vivia em Providen ce, em Rh ode Is la n d . Um fu racão en orm e s u b ia pela cos ta e des t ru ía a Nova In gla ter ra . Em pu r rei o berço do m eu bebê pa ra per to da pa rede e o cobr i pa ra qu e, s e a s ja n ela s qu ebra s s em o vid ro, es te n ã o o a t in gis s e, e tom a m os

* Gateless gate, newly translated with commeníary by zen master Koun Yamada, Los Angeles: Center Publications, 1979, p. 35.

Page 65: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ou tra s p rovidên cia s n eces s á r ia s . Es tá va m os d ireta m en te n o cami-n h o do fu ra cã o e ele era m u ito in ten s o. Em fren te à ca s a vía m os á rvores en orm es , a n t iga s , qu ebra n do e ca in do pa ra todo la do. Os ventos atingiam uma velocidade média de 200 km horários.

Depois de t rês ou qu a tro h ora s , n u m a qu es tã o de m in u tos , tu do ficou qu ieto de n ovo. O s ol a pa receu e os pá s s a ros com eça -ra m a ca n ta r . O ven to pa rou . Es tá va m os n o olh o do fu ra cã o. Den tro de u m a h ora m a is ou m en os , o olh o s e des locou , os ven tos recom eça ra m e a t ra ves s a m os o ou tro la do da m a s s a rodop ia n te de ven tos . Em bora n ã o tã o poderos o qu a n to o p r im eiro la do, ta m bém era muito intenso. No final tinha sobrado uma gigantesca confusão pa ra s er a r ru m a da . Fiqu ei s a ben do m a is ta rde qu e à s vezes os p ilotos s ã o a ciden ta lm en te a pa n h a dos pelos fu ra cões , s u jeita n do a s i e a o a viã o a m om en tos de u m ter r ível es t res s e. Qu a n do is s o a con tece, eles em gera l ten ta m voa r pa ra o olh o do fu ra cã o, o centro, para terem uma mínima chance de recuperar-se.

A m a ior ia da s pes s oa s é com o o h om em n o a lto da á rvore, ou o p iloto den tro do a viã o, a pen a s a ga r ra dos , es pera n do con s eguir s a ir da tem pes ta de. Sen t im o-n os a p r is ion a dos n a s os cila ções da vida . Podem s er ocor rên cia s n a tu ra is , com o en ferm ida des s érias. Podem s er d ificu lda des n os rela cion a m en tos , qu e s em pre pa recem in ju s tos . Do n a s cim en to à m or te, fica m os p r is ion eiros des s e rodop io de ven tos qu e é a rea lida de da vida : u m a en ergia en orm e, deslocando-s e e m odifica n do-s e, Nos s a m eta é com o a do p iloto: p roteger a n ós e a n os s o a viã o. Nã o qu erem os fica r on de es ta m os . Por is s o fa zem os o m á xim o pos s ível pa ra p res erva r a s n os s a s vida s e s a lva r a es t ru tu ra do a viã o, pa ra poderm os es ca pa r do fu ra cã o. Exis te es s a cois a poderos a e en orm e qu e ch a m a m os de n os s a vida e es ta m os em a lgu m pon to, s en ta dos bem n o m eio de n os s o a viã o, esperando conseguir encontrar uma saída sem nos machucarmos.

Va m os s u por qu e, em vez de es ta rm os n u m a viã o, es ta m os n u m p la n a dor n o m eio do fu ra cã o, s em o con trole e o poder do m otor . Som os a r ra s ta dos pelos ven tos a r reba ta dores . Se tem os a lgu m a idéia de s a ir vivos d is s o, s om os tolos . Mes m o assim, en qu a n to viverm os den tro da qu ela en orm e m a s s a de ven tos , temos u m a excelen te ca ron a . Apes a r do m edo e do ter ror , pode s er excitante e delicioso como deslizar montanha abaixo.

O h om em n o a lto da á rvore, a ga r ra do pa ra s a lva r s u a vida , é com o o p iloto do a viã o, es pera n do em des es pero con s egu ir s a lva r -

Page 66: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s e da s os cila ções da vida . E depois lh e pergu n ta m : "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?". Com o é qu e ele res pon de? Com o é qu e nós res pon dem os ? Ao viverm os n os s a s vida s , a s s im com o a o fa zerm os zazen, es ta m os ten ta n do p roteger -n os . Es s a m en te qu e pen s a , imagina, se excita, se emociona, culpa os outros e se sente vítima é como o piloto do avião tentando desesperadamente. sair do furacão. Nu m a vida de ta n ta s ten s ões e a gru ra s , joga m os com tu do o qu e tem os a pen a s pa ra s obreviver . Toda a n os s a a ten çã o es tá em n ós m es m os e em n os s o pa in el de con troles ; qu a n do ten ta m os n os s a lva r , n ã o p res ta m os a ten çã o em m a is n a da . Con tu do qu em es t iver n o p la n a dor pode des fru ta r tu do

os relâ m pa gos , a ch u va

qu en te, o u ivo do ven to. E le pode pa s s a r m om en tos in des cr it íveis . O qu e a con tecerá n o fin a l? Am bos m or rem , é cla ro. Ma s qu a l conhece o significado da vida? Quem conhece o contentamento?

Com o o p r im eiro p iloto, pa s s a m os a vida in teira ten ta n do p roteger a n ós m es m os . Qu a n to m a is n os s a in ten çã o é n os p rote-ger das oscilações de nossa atual situação, mais estresse sentimos, m a is in felizes n os torn a m os e m en os vivem os rea lm en te a n os s a vida . Devem os ign ora r o cen á r io qu e n os rodeia s e es ta m os obce-cados com os painéis de controle, que cedo ou tarde irão nos faltar, de qualquer modo.

Qu a n do es ta m os n o zazen, podem os obs erva r n os s os .m eca -n is m os de p roteçã o p res ta n do a ten çã o à n os s a m en te. Podem os n ota r com o ten ta m os exp lica r n os s a dor e a s s im a fa s tá -la , joga n do a cu lpa de n os s a s d ificu lda des em ou trem . Con s egu im os perceber n os s a s im piedos a s e vã s ten ta t iva s de n os s a lva r . Nos s os es forços n ã o a d ia n ta m de n a da , é cla ro. Qu a n to m a is ten ta m os , m a is tensos e nervosos ficamos.

Existe apenas uma coisa para finalmente resolver o problema; ninguém qu er ou vir qu a l é, porém . Pen s e n o h om em qu e es tá n o p la n a dor . Será qu e ele de fa to qu er ia es ta r lá ? Des de o p r im eiro in s ta n te, ele n ã o tem n en h u m a ch a n ce. Ele es tá a li s ó pa ra s er levado na maior carona do mundo. Nossas próprias vidas são como es s a ca ron a , qu e term in a in evita velm en te em n os s a m or te. Es ta m os ten ta n do fa zer o im pos s ível, s a lva r -n os . Nã o podem os fazê-lo. Aliá s , es ta m os todos m orren do n es te exa to m in u to. Qu a n -tos m in u tos m a is tem os ? Com o o p la n a dor , ta lvez ten h a m os s ó m a is u m m in u to, ta lvez u m a cen ten a deles . Nã o im por ta qu a n tos : n o fin a l, ca ím os todos . Ma s a qu ele qu e pode pergu n ta r "Qu a l é o s ign ifica do da vida ?" é o p iloto do p la n a dor , n ã o o do a viã o. O

Page 67: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

primeiro saberá que no instante seguinte irá colidir, e o segundo só saberá quando gritar.

Va m os a o sesshin n a es pera n ça de qu e, den tro do fu ra cã o de n os s os tu m u ltos , irem os en con tra r o pequ en o olh o, o pequ en o n irva n a . Pen s a m os : "Deve es ta r em a lgu m lu ga r . On de? On de es tá ?". Às vezes , a lca n ça m os u m pon t in h o de s os s ego, de bon s s en t im en tos . En tã o ten ta m os a pega r -n os a ele. Toda via n ã o pode-m os n os a ga r ra r a o olh o do fu ra cã o. O fu ra cã o s egu e cor ren do em fren te. O n irva n a n ã o es tá em en con tra r a qu ele pequ en o es pa ço de ca lm a on de fica m os p rotegidos e a b r iga dos por a lgo ou a lguém. Is s o é u m a ilu s ã o. Na da n o m u n do irá ja m a is n os p roteger : n em n os s o com pa n h eiro, n em n os s a s circu n s tâ n cia s de vida , n em n os s os filh os . Afin a l de con ta s , a s ou tra s pes s oa s es tã o toda s ocu pa da s s e p rotegen do. Se pa s s a rm os a vida p rocu ra n do o olh o do fu ra cã o, terem os vivido de m a n eira es tér il. Morrerem os s em termos vivido de fato.

Nã o s in to pen a do p iloto n o p la n a dor . Qu a n do ele m orrer , terá pelo m en os vivido. Sin to peita da qu eles qu e es tã o tã o cegos por s eu s p roced im en tos defen s ivos e p rotetores qu e n u n ca s equ er ch ega m a viver . Qu a n do es ta m os em s u a com pa n h ia , podem os s en t ir o m edo e a in u t ilida de. No sesshin, podem os en xerga r es s e equ ívoco com m a is cla reza : n ã o es ta m os ten ta n do viver p len a -mente nossa vida; estamos tentando encontrar o olho do furacão, o lugar onde por fim ficaremos a salvo.

Nin gu ém pode s a ber o qu e é a vida , m a s podem os exper i-mentá-la de m a n eira d ireta . Só is s o n os é da do, com o s eres h u m a n os . Porém , n ã o a ceita m os o p res en te. Nã o vivem os n os s a s vida s d ireta m en te. Em vez d is s o, vivem os p rotegen do-n os . Qu a n do n os s os s is tem a s de p roteçã o fa lh a m , cu lpa m os a lgu ém ou n ós m es m os . Tem os s is tem a s pa ra en cobr ir n os s os p rob lem a s ; n ã o es ta m os d is pos tos a en ca ra r a dor da vida de fren te. Aliá s , qu a n do a encaramos de frente, a vida se torna uma grande viagem.

Cla ro qu e é in teres s a n te com pra r s egu ro de vida e ver ifica r qu e os freios em n os s o ca r ro fu n cion a m . Ma s , n o fin a l, a té m es m o m o es s es exped ien tes n ã o n os s a lva rã o. Cedo ou ta rde, todos os n os s os m eca n is m os de p roteçã o fa lh a rã o. Nin gu ém con s egu e re-s olver com pleta m en te o koan da vida , em bora em n os s a im a gin a -çã o o ou tro s u jeito ta lvez ten h a con s egu ido. Cu lpa m os a s ou tra s pes s oa s porqu e pen s a m os qu e ela s dever ia m já ter com preen d ido

Page 68: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

tu do a res peito da vida . Nós n ã o, m a s a in da a ch a m os qu e os ou tros n u n ca dever ia m s er con fu s os a res peito de com o vivem . Na verda de, s om os todos con fu s os porqu e todos es ta m os im ers os n es s e jogo de a u toproteçã o, em vez de n o verda deiro jogo da vida . A vida n ã o é u m es pa ço s egu ro. Nu n ca foi e n u n ca s erá . Se con s egu im os ch ega r n o olh o do fu ra cã o por u m a n o ou dois , a in da a s s im n ã o s e pode con ta r com is s o. Nã o exis te lu ga r s egu ro pa ra o n os s o d in h eiro, pa ra n ós , pa ra a qu eles qu e a m a m os . E n ã o n os d iz respeito preocuparmo-nos com isso.

En qu a n to n ã o en xerga rm os m a is a lém des s e jogo qu e n ã o fu n cion a , n ã o es ta rem os joga n do o jogo rea l. Algu m a s pes s oa s jamais enxergam mais além e morrem sem jamais terem vivido. E é u m a gra n de pen a . Podem os pa s s a r n os s a vida cu lpa n do a s ou tra s pes s oa s , a s circu n s tâ n cia s ou o a za r , pen s a n do qu e a vida dever ia s er de ou t ro jeito. Podem os m orrer a s s im s e qu is erm os . É n os s o p r ivilégio, m a s n ã o é m u ito d iver t ido. Tem os de n os a b r ir pa ra o en orm e jogo qu e es tá em a n da m en to e do qu a l fa zem os pa r te. Nos s a p rá t ica deve s er cu ida dos a , m et icu los a , pa cien te. Tem os de encarar todas as coisas.

III. Separação e Vínculos

PODE ALGUMA COISA NOS FERIR?

Um a a lu n a do zen telefon ou -m e h á pou cos d ia s pa ra qu eixa r -s e da ên fa s e s obre a d ificu lda de da p rá t ica . E la d is s e: "Pen s o qu e você com ete u m er ro qu a n do in s is te com os a lu n os pa ra qu e levem sua prá t ica tã o a s ér io. A vida dever ia s er d iver t ir -n os e pa s s a r bon s m om en tos ". Eu pergu n tei pa ra ela : "Algu m a vez es s a a borda gem já deu cer to pa ra você?". E ela res pon deu : "Bom , n a verdade não... Mas tenho esperanças!".

En ten do s u a a t itu de e s im pa t izo com todo a qu ele qu e a ch a qu e a p rá t ica é rea lm en te u m t ra ba lh o m u ito du ro. É m es m o. Ma s ta m bém fico t r is te por a qu eles qu e n ã o es tã o a in da d is pos tos a fazer esse tipo de trabalho sério, porque serão os que mais sofrerão. Apes a r d is s o, a s pes s oa s têm de fa zer s u a s p rópr ia s es colh a s e

Page 69: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a lgu m a s dela s n ã o es tã o p ron ta s pa ra u m a p rá t ica s ér ia . E eu d is s e pa ra a a lu n a do zen : "Apen a s fa ça s u a p rá t ica de a cordo ou n ã o com s u a s p rópr ia s idéia s e eu a a poia rei". Seja o qu e for qu e a s pes s oa s es teja m fa zen do, qu ero da r -lh es a poio

porqu e é

nesse ponto que elas se encontram e está tudo bem.

O fato é que, para a maioria das pessoas, as nossas vidas não estão indo bem. Enquanto não nos dedicarmos a uma prática séria, n os s a vis ã o bá s ica de vida em gera l perm a n ecerá em gra n de pa r te in ta cta . Aliá s , a vida con t in u a a n os fa zer s en t ir p ior e ch ega m es m o a p iora r por s i. Um a p rá t ica s ér ia é n eces s á r ia pa ra qu e con s iga m os en xerga r es s a fa lá cia bem n o fu n do de qu a s e toda s a s ações, idéias e emoções humanas.

Sen do h u m a n os , vem os a vida a t ra vés de u m determ in a do a pa ra to s en s or ia l e, porqu e a s pes s oa s e os ob jetos pa recem s er extern os a n ós , viven cia m os m u ita in felicida de. Es s a in felicida de decorre da con cepçã o equ ivoca da de qu e s om os s epa ra dos . Cer -tamente essa é a impressão parece que sou separada das outras pes s oa s e de tu do o m a is qu e exis te n o m u n do fen om ên ico. Es s a con cepçã o equ ivoca da de qu e s om os s epa ra dos cr ia toda s a s dificuldades da vida humana.

En qu a n to pen s a rm os qu e s om os s epa ra dos , irem os s ofrer . Se n os s en t im os s epa ra dos , irem os ta m bém s en t ir qu e tem os de n os defen der , qu e tem os de ten ta r s er felizes , qu e tem os de en con tra r algo no mundo à nossa volta que irá tornar-nos felizes.

A verda de des s a qu es tã o, n o en ta n to, é qu e n ã o s om os s epa ra dos . Som os todos expres s ões ou em a n a ções de u m pon to central

s e qu is er , ch a m e-o de en ergia m u lt id im en s ion a l. Nã o podem os im a gin a r qu a l s eja s u a form a ; o pon to ou a en ergia cen tra l n ã o tem ta m a n h o, es pa ço ou tem po. Es tou fa la n do m eta -for ica m en te a res peito da qu ilo qu e n ã o pode n a rea lida de s er mencionado em termos comuns.

Leva n do es s a m etá fora u m pou co m a is a d ia n te, é com o s e es s e pon to cen tra l ir ra d ia s s e em b ilh ões de ra ios , ca da u m deles pen s a n do qu e é s epa ra do de todos os ou tros . Na verda de, ca da u m de n ós é s em pre o cen tro, e o cen tro é ca da u m de n ós . Um a vez qu e toda s a s cois a s es tã o con ecta da s n es s e cen tro, todos s om os apenas uma coisa só.

Page 70: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Nã o en xerga m os es s a u n ida de, porém . Ta lvez s e con h ecermos ba s ta n te teor ia da fís ica con tem porâ n ea , poderem os en ten der in telectu a lm en te a qu es tã o. Con form e va m os p ra t ica n do a o lon go dos anos, contudo, fragmentos dessa verdade começam a insinuar-s e em n os s a s vivên cia s , cá e lá . Nã o n os s en t im os m a is tã o s epa ra dos dos ou tros . Con form e es s a s en s a çã o va i a s s en ta n do em n ós , a vida , ta l com o a con tece à n os s a volta , deixa de s er tã o fru s t ra n te. As s itu a ções , a s pes s oa s , a s d ificu lda des com eça m a impor-s e a n ós de u m m odo u m pou co m a is leve. Um a m u da n ça s u t il es tá a con tecen do. Ao lon go de toda u m a vida de p rá t ica es s e p roces s o a os pou cos s e for ta lece. Podem ocorrer b reves m om en tos n os qu a is tem os vis lu m bres de percepçã o de qu em rea lm en te s om os , em bora em s i es s es m om en tos n ã o s eja m m u ito im por ta n tes . É m a is im por ta n te a len ta e cres cen te con s ta ta çã o de qu e n ã o s om os s epa ra dos . Em term os com u n s , a in da pa rece qu e exis t im os s epa ra dos , m a s n ã o n os s en t im os m a is tã o s epa ra dos. Em con s eqü ên cia ; n ã o es pern ea m os m a is ta n to con tra a vida : n ã o tem os de lu ta r con tra ela , n ã o tem os de a gra dá -la , n ã o tem os de nos preocupar com ela. Esse é o caminho da prática.

Se não br iga m os com a vida , is s o s ign ifica qu e ela n ã o irá n os fer ir? Exis te a lgo a lém de n ós qu e pode n os fer ir? Na qu a lida de de a lu n os zen , podem os ter a p ren d ido a d izer

n o m ín im o intelectualmente

qu e a res pos ta é n ã o. Ma s o qu e é qu e de fa to pen s a m os d is s o? Há a lgu m a pes s oa ou s itu a çã o qu e pode n os fer ir?

Claro que pensamos que sim, No meu trabalho com os alunos, ou ço in ú m era s h is tór ia s de com o es tã o m a goa dos ou con tra r ia dos . Todos es s es rela tos s ã o vers ões de "Is s o a con teceu com igo". Nos s os pa rceiros a m oros os , n os s os pa is , n os s os filh os , n os s os a n im a is de estimação "Isso aconteceu e me contrar iou ". Todos fa zem os is s o, s em exceçã o. Is s o é a n os s a vida . Ta lvez a s cois a s cor ra m ra zoa velm en te m a n s a s du ra n te a lgu m tem po e depois , de repen te, a lgo a con tece qu e n os con tra r ia . Em ou tra s pa la vra s , s om os vít im a s . Bom , es s a é a n os s a vis ã o gera l da s cois a s . Es tá profundamente entranhada em nós, quase inata.

Qu a n do n os s en t im os ' vit im a dos pelo m u n do, p rocu ra m os por alguma coisa além de nós para levar essa dor embora. Pode ser u m a pes s oa , pode s er con s egu ir a lgo qu e qu erem os , pode s er a lgu m a m u da n ça em n os s a pos içã o p rofis s ion a l, a lgu m recon h e-cim en to ta lvez. Um a vez qu e n ã o s a bem os on de p rocu ra r , e estamos magoados, buscamos conforto em outro lugar.

Page 71: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

En qu a n to n ã o perceberm os qu e n ã o s om os s epa ra dos de n a da , irem os lu ta r con tra n os s a s vida s . Qu a n do lu ta m os , en t ra -m os em d ificu lda de. Ou fa zem os boba gen s , ou n os s en t im os con tra r ia dos , in s a t is feitos ou com o s e a lgu m a cois a es t ives s e fa lta n do. É com o s e a vida n os a p res en ta s s e u m a s ér ie de in da -ga ções qu e n ã o podem s er res pon d ida s . E , por fa la r n is s o, n ã o podem mesmo. Por quê?

Porqu e s ã o fa ls a s in da ga ções . Nã o es tã o ba s ea da s n a rea li-da de. Sen t ir qu e a lgo es tá er ra do e p rocu ra r m eios de con s er tá -lo

qu a n do com eça m os a s en t ir o er ro des s e t ipo de pa drã o,

com eça a p rá t ica s ér ia . A jovem qu e m e telefon ou a in da n ã o ch egou n es s e pon to. E la con t in u a im a gin a n do qu e a lgo extern o irá torná-la feliz. Talvez US$ 1 milhão?

Por ou tro la do, já com a s pes s oa s qu e p ra t ica m , a a rm a du ra treme u m pou co, a con tecem pequ en os la m pejos de verda deira com preen s ã o. Pode s er qu e n ã o qu eira m os recon h ecer es s es la m -pejos . Mes m o a s s im , é fa to qu e com eça m os a com preen der qu e exis te u m ou tro m eio de viver , a lém de s e s en t ir a cos s a do pela vida e sair atrás de remédio contra isso.

Des de o com eço dos com eços , n ã o h á n a da er ra do. Nã o h á s epa ra çã o: tu do é u m ú n ico con ju n to qu e ir ra d ia . Nin gu ém a cred ita n is s o e en qu a n to n ã o h ou verm os p ra t ica do por m u ito tem po é d ifícil de ca p ta r . Mes m o com s eis m es es de u m a p rá t ica inteligen te, con tu do, com eça a h a ver u m pequ en o a ba lo n a fa ls a es t ru tu ra de n os s a s cren ça s . A es t ru tu ra com eça a des m a n ch a r a qu i e a li. Con form e p ra t ica m os a o lon go dos a n os , a es t ru tu ra en fra qu ece. O es ta do ilu m in a do exis te qu a n do es s a es t ru tu ra ru i por inteiro.

Sim , tem os de s er s ér ios a res peito de n os s a p rá t ica . Se você n ã o es t iver p ron to pa ra s er s ér io, tu do bem . Con t in u e s im -p les m en te leva n do s u a vida em fren te. Você p recis a s er em pu rrado de u m la do pa ra o ou tro por m a is a lgu m tem po. Es tá cer to. As pes s oa s n ã o devem es ta r n u m cen tro zen en qu a n to n ã o s en tirem que nada mais há para ser feito: é nesse momento que devem vir.

Voltem os à n os s a pergu n ta : s erá qu e a lgo ou a lgu ém pode n os fer ir? Con s iderem os a lgu n s des a s t res rea is . Va m os s u por qu e perd i m eu em prego e qu e es tou s er ia m en te en ferm a . Va m os s u por qu e todos os m eu s a m igos m e deixa ra m . Va m os s u por qu e u m ter rem oto des t ru iu m in h a ca s a . Pos s o fica r fer ido por toda s es s a s

Page 72: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

cois a s ? Cla ro qu e eu pen s o qu e s im . E s er ia ter r ível s e toda s es s a s cois a s a con teces s em . Porém , s erá qu e podem os rea lm en te s er a t in gidos por ta is even tos ? A p rá t ica n os a ju da a ver qu e a resposta é não.

Não é objetivo da prática evitar os sentimentos que nos ferem. Aqu ilo qu e ch a m a m os "m á goa " a in da a con tece. Pos s o perder m eu emprego, u m ter rem oto pode des t ru ir m in h a ca s a , m a s a p rá t ica ajuda-m e a da r con ta de cr is es , a m a n tê-la s den tro do m eu con trole. En qu a n to es t iverm os m ergu lh a dos em n os s a m á goa , s erem os u m poço de la m en ta ções de pou ca s erven t ia pa ra qu a lqu er u m . Se n ã o es t iverm os em a ra n h a dos em n os s o m elodra m a de dor , por ou tro la do, m es m o du ra n te u m a cr is e po'demos ser úteis.

En tã o o qu e a con tece qu a n do n ós de fa to p ra t ica m os ? Por qu e é qu e a s en s a çã o de qu e a vida pode n os fer ir com eça a diminuir com o tempo? O que ocorre?

Só u m ego cen tra do em s i, u m ego a pega do à s u a m en te e a o s eu corpo pode s er a t in gido. Es s e ego é n a rea lida de u m con ceito form a do a pa r t ir de pen s a m en tos n os qu a is a cred ita m os . Por exem plo, "Se eu n ã o con s egu ir is s o fica rei in feliz", ou "Se is s o n ã o der cer to pa ra m im , s erá h or r ível", ou "Se eu n ã o ten h o u m a ca s a para morar, isso é realmente terrível". Aquilo que chamamos de ego n ã o é m a is do qu e u m a s ér ie de pen s a m en tos a os qu a is es ta m os h a b itu a dos . Qu a n do es ta m os en volvidos por in teiro em n os s os pequ en os egos , a rea lida de

a en ergia bá s ica do u n ivers o

dificilmente é sequer percebida.

Va m os s u por qu e eu a ch o qu e n ã o ten h o a m igos e es tou m u ito s ozin h a . O qu e a con tece s e s en to pa ra p ra t ica r s obre is s o? Com eço a ver qu e m eu s en t im en to de s olidã o s e com põe, n a verda de, a pen a s de pen s a m en tos . A rea lida de é qu e es tou a pen a s s en ta da a qu i. Ta lvez eu es teja s en ta da a s ós em m in h a s a la , s em m a is n in gu ém . Nin gu ém m e telefon ou . Sin to-m e s ó. Ma s a rea lida de é qu e es tou s ó s en ta da . A s olidã o e a in felicida de s ã o meus pensamentos, meu julgamento de que as coisas deveriam ser d iferen tes do qu e s ã o. Nã o en xergu ei a t ra vés dela s . Nã o recon h eci qu e m in h a in felicida de é fa b r ica da por m im . A verda de da qu es tã o é qu e es tou s en ta da em m in h a s a la . Leva u m bom tem po a n tes de conseguirm os ver qu e a pen a s fica r s en ta da n a p rá t ica é bom , es tá

Page 73: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

bem . Fico a pega da a o pen s a m en to de qu e s em u m a com pa n h ia agradável, que me dê apoio, sou infeliz.

Nã o es tou recom en da n do u m a vida em qu e n os d is ta n cia mos do con vívio s ocia l pa ra fica rm os livres de a pegos e depen dências. Apegos d izem res peito n ã o a o qu e tem os , m a s a n os s a s op in iões a cerca do qu e tem os . Nã o h á n a da de er ra do com o fa to de s e pos s u ir a lgu m d in h eiro, por exem plo. Apego é qu a n do n ã o con s egu im os m a is ver a vida s em ele. Da m es m a form a , n ã o es tou d izen do pa ra s e des is t ir de es ta r com os ou tros . Es ta r com a s pes s oa s é m u it ís s im o a gra dá vel. Às vezes , porém , ta lvez tenhamos de pa s s a r s eis m es es fa zen do u m a pes qu is a em a lgu m pon to do des er to. Pa ra a m a ior ia is s o s er ia m u ito d ifícil. Toda via , s e es tou fa zen do u m a pes qu is a n o m eio do n a da , du ra n te s eis m es es , a verda de da qu es tã o é qu e é is s o m es m o, é a pen a s is s o qu e es tou fazendo.

A len ta e d ifícil m u da n ça da p rá t ica a licerça a vida e torn a -a gen u in a m en te m a is pa cífica . Sem n os es força rm os pa ra ser pa cíficos , percebem os qu e ca da vez m a is a s tem pes ta des da vida n os a t in gem m a is de leve. Es ta m os com eça n do a n os desvencilhar de n os s o a pego a os pen s a m en tos qu e pen s a m os s er n ós m es m os . O ego é um conceito que enfraquece com a prática.

A verda de é qu e n a da pode n os fer ir . Ma s n ós com cer teza pensamos qu e es ta m os s en do a t in gidos e qu e podem os lu ta r pa ra remediar as idéias de mágoa usando meios bastante improdutivos.

Ten ta m os rem edia r u m fa ls o p rob lem a com u m a fa ls a s o-lu çã o e s em dú vida is s o cr ia o ca os . Gu erra s , da n os a o m eio ambiente tudo decorre dessa ignorância.

Se n os recu s a m os a rea liza r es s e t ra ba lh o

e n ã o o fa remos s en ã o qu a n do es t iverm os p ron tos , terem os a lgu m t ipo de s ofr im en to, e tu do à n os s a volta s ofrerá ta m bém . Pra t ica r ou n ã o n ã o é u m a qu es tã o de bom ou m a u , cer to ou er ra do. Tem os de estar prontos. Mas, quando não praticamos, pagamos o preço.

Sem dú vida , a u n ida de or igin a l

o cen tro da en ergia multidimensional

perm a n ece in ta cta . Nã o h á com o con s egu ir -mos perturbá-la. Ela sempre existe; só isso. Isso é o que somos. Do pon to de vis ta da vida fen om ên ica qu e leva m os , porém , exis te u m preço a ser pago.

Page 74: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Nã o es tou ten ta n do cr ia r s en t im en to de cu lpa em n in gu ém . Es s e s en t im en to em s i n ã o pa s s a de pen s a m en tos . Nã o es tou cr it ica n do a m oça qu e n ã o qu er ia leva r a p rá t ica a s ér io. E la es tá exa ta m en te n es s e pon to, porém , e pa ra ela é per feito. Con form e p ra t ica m os , n o en ta n to, n os s a res is tên cia à p rá t ica d im in u i. Ma s sem dúvida isso leva tempo.

ALUNO: Con s igo ver com o podem os s er u n os com a s ou tra s pes s oa s , m a s pa ra m im es tá d ifícil en ten der o qu e s er ia s er u n o com uma mesa ou coisa assim.

JOKO: Un o com u m a m es a ? Ach o qu e com a m es a é m u ito m a is fá cil do qu e com a s pes s oa s ! Nu n ca ou vi n in gu ém rela ta r conflitos com u m a m es a . Nos s a s d ificu lda des qu a s e s em pre envolvem pessoas, individualmente ou em grupos.

ALUNO: Ta lvez eu n ã o ten h a en ten d ido o qu e você qu er d izer com "ser uno".

JOKO: "Uno com" é a ausência de qualquer coisa que divida.

ALUNO: Mas eu não me sinto uma mesa.

JOKO; Você n ã o tem de s en t ir qu e é u m a m es a . Com es s a fra s e "s er u n o com a m es a ", es tou qu eren do d izer qu e n ã o exis te s en s o de opos içã o en tre você e a m es a . Nã o é u m a qu es tã o de u m s en t im en to es pecia l; é u m a fa lta ou a u s ên cia da s en s a çã o de d is tâ n cia , em s en t ido em ocion a l. As m es a s em gera l n ã o des per -tam emoções. Por isso é que não temos problemas com elas.

ALUNO: Diga m os qu e u m a pes s oa tem a r tr ite e s en te dor o tempo todo; você diz que isso não dói?

JOKO: Nã o. Se s en t im os u m a dor pers is ten te, devem os s em dúvida fa zer o qu e n os for pos s ível pa ra lida r com ela . Ma s depois , s e a in da res ta u m pou co de dor , tu do o qu e podem os fa zer é viven cia r es s e res ídu o. Nã o a d ia n ta n a da a cres cen ta r à dor ju lga -m en tos do t ipo "Ma s qu e cois a ter r ível! Coita da de m im ! Por qu e é a s s im ?". A dor s im ples m en te é. Con s idera da des s a form a , a dor é u m en s in a m en to. Segu n do a m in h a exper iên cia , a m a ior ia da s pes s oa s qu e já pa s s ou por u m a en ferm ida de s ér ia e qu e a p ren deu a u s á -la term in ou des cobr in do qu e a qu ilo foi a m elh or cois a qu e poderia ter acontecido para elas.

ALUNO: Se a lgu ém n ã o pode n os fer ir e n ós n ã o podem os fer ir o ou tro, is s o n ã o n os dá n eces s a r ia m en te a u tor iza çã o pa ra

Page 75: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

fa la rm os tu do o qu e tem os n a ca beça porqu e n ã o podem os fer ir ninguém.

JOKO: Cer to. Se en ten dem os er ra da m en te es s e pon to e d izem os "Vou fa la r tu do a gora pa ra você porqu e n ã o pos s o fer i-lo", is s o já é u m a s epa ra çã o. Nós n ã o a ta ca m os os ou tros a m en os qu e n os s in ta m os s epa ra dos deles . Toda p rá t ica s ér ia p res u m e u m a devoção a preceitos e princípios morais básicos.

ALUNO: E qu a n to à ét ica s a m u ra i, h is tór ica n o J a pã o? Por exemplo, u m gu er reiro s a m u ra i pode d izer "Um a vez qu e s ou u n o com tu do, qu a n do decepa r a ca beça de u m a pes s oa in ocen te n ã o há assassinato; essa pessoa sou eu".

JOKO: Em s en s o a bs olu to n ã o h á a s s a s s in a to n en h u m porqu e s om os todos

"vivos " e "m or tos "

a pen a s m a n ifes ta ções da qu ela en ergia cen tra l qu e é tu do. Porém , em term os p rá t icos , n ã o con cordo com a ét ica s a m u ra i. Se vem os qu e n ã o s om os s epa ra dos da s ou tra s pes s oa s , s im ples m en te n ã o a ta ca m os . Os gu er reiros samurais estavam confundindo o relativo e o absoluto. É claro que, por cer to, n ã o h á u m qu e m a te e u m qu e s eja m or to, m a s n a vida que vivemos, sim, existe. E por isso não o fazemos.

ALUNO: Em ou tra s pa la vra s , s e con fu n d im os o a bs olu to e c rela t ivo poder ía m os u s a r o a bs olu to pa ra ju s t ifica r o qu e fa zem os no relativo?

JOKO: Sim , m a s s ó s e vivem os n a ca beça . Se con s idera m os qu e a p rá t ica é u m a pos tu ra filos ófica , podem os fica r rea lm en te confu s os . Se s a bem os qu e a verda de da p rá t ica es tá em n os s os ossos

s em s equ er pen s a r a es s e res peito

n ã o com eterem os esse erro.

ALUNO: An tes de eu com eça r a s en ta r pa ra p ra t ica r , eu n ã o achava que as coisas pudessem me ferir, porque eu não as sentia.

JOKO: Is s o é m u ito d iferen te. Você es tá fa la n do de dorm ên cia ps icológica . Qu a n do es ta m os en torpecidos , n ã o es ta m os u n os com a dor; estamos fingindo que ela não está ali.

ALUNO: Quando por fim me sintonizo e percebo o quanto estou m e m a goa n do de va r ia da s m a n eira s , fica m u ito m a is fá cil in ter -romper o comportamento contraproducente. Até que esse momento chegue, como você disse, estaremos fazendo o que estamos fazendo. Se vamos estragar as coisas, é isso que iremos fazer.

Page 76: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: É is s o m es m o. E n ã o es tou d izen do ja m a is cr it ica r a os ou tros e s u a s con du ta s . Se a lgu ém fez a lgo pa ra m im

rou bou

todo o m eu d in h eiro pa ra a s com pra s , pos s o p recis a r n ega r e tom a r a lgu m a a t itu de. Se os ou t ros m e t ra ta m m a l ou m e ca u s a m dor , ta lvez deva m s a ber qu e fizera m is s o. Ma s , s e fa la rm os com eles com ra iva , n u n ca a p ren derã o a qu ilo qu e p recis a m a pren der . Jamais sequer nos escutarão.

A a t itu de ou o con h ecim en to in tern o de qu e n ã o s om os s epa ra dos cr ia u m a m u da n ça fu n da m en ta l em n os s a vida em o-cion a l. Es s e con h ecim en to s ign ifica qu e, in depen den tem en te do qu e a con tecer , n ã o s om os per tu rba dos por is s o. Ter o con h eci-mento n ã o s ign ifica qu e n ã o n os in cu m birem os dos p rob lem a s con form e forem s u rgin do. No en ta n to, n ã o es ta rem os m a is d izendo em n os s o ín t im o: "Ma s qu e cois a h or r ível. Nin gu ém tem toda s a s d ificu lda des qu e eu ten h o". É com o s e n os s o en ten d imento cancelasse essas reações.

ALUNO: Por ta n to, s en t ir -s e fer ido s ã o s ó n os s os pen s a m en tos a respeito da situação?

JOKO: Sim . Qu a n do n ã o n os iden t ifica m os m a is com es s es pens a m en tos , lida m os com a s itu a çã o e n ã o fica m os m a is em ocio-nalmente envolvidos nela.

ALUNO: Mas a pessoa pode se sentir ferida.

JOKO: Sim . E n ã o es tou d izen do pa ra evita r es s e s en t im en to. Na prática, nós trabalhamos com o complexo de sensações físicas e pensamentos que constituem "Eu me sinto ferido". Se vivenciarmos tota lm en te a s s en s a ções e os pen s a m en tos , en tã o o "s en tir-se fer ido" eva pora . Eu n u n ca d ir ia pa ra n ã o n os s en t irm os do jeito que nos sentimos.

ALUNO: Você está dizendo para se abrir mão do apego à mágoa?

JOKO: Nã o. Nã o podem os n os força r a a ba n don a r es s e a pego. O a pego é pen s a m en to, m a s n ã o podem os a pen a s d izer "Vou de-s is t ir d is s o". Nã o fu n cion a . Tem os de en ten der o qu e é o a pego. Tem os de exper im en ta r o m edo

a s en s a çã o corpora l

qu e es tá por t rá s do a pego. En tã o es s e a pego irá s im ples m en te fen ecer . Um er ro com u m n o en s in a m en to zen é n os obr iga r a "deixa r ir ". Nã o podem os n os força r a "deixa r ir ". Tem os de viven cia r o m edo subjacente.

Page 77: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Viven cia r o a pego ou o s en t im en to ta m bém n ã o s ign ifica dramatizá-lo. Qu a n do d ra m a t iza m os n os s a s em oções , s im ples -mente as encobrimos.

ALUNO: Você es tá d izen do qu e s e s en t irm os n os s a t r is teza de verdade, por exemplo, não teríamos mais necessidade de chorar?

JOKO: Podem os ch ora r . No en ta n to, exis te u m a d iferen ça en t re a pen a s ch ora r e d ra m a t iza r a n os s a t r is teza , o m edo ou a ra iva . A d ra m a t iza çã o, m u ita s vezes , é m a is u m d is fa rce. Por exem plo, a s pes s oa s qu e b r iga m , a t ira m cois a s , ber ra m e gr ita m ainda não estão em contato com sua raiva.

ALUNO: Volta n do à m oça qu e pen s a va qu e a p rá t ica dever ia ser menos séria e que não queria vir para sentar-se e praticar aqui: você es tá equ a cion a n do a p rá t ica s ér ia com pra t ica r com regu la -ridade num centro zen?

JOKO: Nã o, em bora es s a p rá t ica regu la r s eja m u ito ú t il. Ten h o a lgu n s a lu n os qu e m ora m lon ge e p ra t ica m ba s ta n te. Apes a r da d is tâ n cia , eles en con tra m u m jeito de vir a qu i de vez em qu a n do. A m oça s im p les m en te a in da n ã o es tá p ron ta pa ra fa zer is s o. E é ela quem sofre, o que é o mais triste.

O PROBLEMA SUJEITO-OBJETO

Nos s o p rob lem a bá s ico com o s eres h u m a n os é a rela çã o s u -jeito-ob jeto. Na p r im eira vez qu e ou vi es s a a firm a çã o, a n os e a n os atrás, pareceu abstrata e irrelevante para minha vida. Apesar disso, toda a n os s a des a rm on ia e d ificu lda de decorrem de n ã o s a berm os o qu e fa zer a res peito da rela çã o en tre s u jeito e ob jeto. Em term os com u n s , do d ia -a -d ia , o m u n do es tá d ivid ido em s u jeitos e ob jetos . Eu olh o pa ra vocês , vou pa ra o t ra ba lh o, s en to-m e n u m a ca deira . Em ca da u m des s es ca s os , pen s o em m im com o o s u jeito em rela çã o com os ob jetos : vocês , m eu t ra ba lh o, a ca deira . In tu it iva m en te, n o en ta n to, s a bem os qu e n ã o s om os s epa ra dos do m u n do e qu e a d ivis ã o s u jeito-ob jeto é u m a ilu s ã o. Pa ra ch ega r a esse conhecimento intuitivo é que praticamos.

Se n ã o en ten derm os o du a lis m o s u jeito-ob jeto, verem os os ob jetos em n os s o m u n do com o a fon te de n os s os p rob lem a s : vocês s ã o o m eu p rob lem a , meu trabalho é m eu p rob lem a , a cadeira.

Page 78: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

(Quando me con s idero com o o p rob lem a , torn ei-m e ob jeto.) Des s a form a , a fa s ta m o-n os dos ob jetos qu e con s idera m os com o os p rob lem a s e va m os em bu s ca de ou tros , qu e pa ra n ós s ã o n ã o-p rob lem a s . Des s e pon to de vis ta , o m u n do con s is te em m im e n a s coisas que agradam ou desagradam a mim.

His tor ica m en te, a p rá t ica zen e a m a ior ia da s ou tra s d is ci-p lin a s de m ed ita çã o têm ten ta do res olver o du a lis m o s u jeito-objeto es va zia n do o ob jeto de todo con teú do. Por exem plo, t ra ba lh a r n o Um * ou em gra n des koans es va zia o ob jeto do con d icionamento qu e vin cu la m os a ele. Con form e o ob jeto va i s e torn a n do ca da vez m a is t ra n s pa ren te, s om os u m s u jeito con tem pla n do u m ob jeto vir tu a lm en te va zio. Es s e es ta do é à s vezes ch a m a do de samadhi. Esse é u m es ta do de gra ça porqu e o ob jeto va zio n ã o m e in com oda m a is . Qu a n do a t in gim os es s e es ta do, ten dem os a n os pa ra ben iza r por todo o progresso que já fizemos.

Es s e es ta do de samadhi, porém , a in da é du a lis ta . Qu a n do o a t in gim os , u m a voz in tern a d iz: "Deve s er is s o!" ou "Agora es tou de fa to in do bem ". Perm a n ece exis t in do u m s u jeito ocu lto, obs erva n do u m ob jeto vir tu a lm en te va zio, n o qu e a ca ba s en do u m a s epa ra çã o en tre s u jeito e ob jeto. Qu a n do n os da m os con ta des s a s epa ra çã o, ten ta m os a cion a r o s u jeito ta m bém e es va ziá -lo de s eu con teú do. Qu a n do fa zem os is s o, tom a m os o s u jeito em ou tro ob jeto a in da , com u m s u jeito a in da m a is s u t il a obs ervá -lo. Es ta m os a s s im criando uma regressão infinita de sujeitos.

Es s es es ta dos de samadhi n ã o s ã o p recu rs ores da verda deira ilu m in a çã o porqu e u m s u jeito fin a m en te vela do es tá s epa ra do de u m ob jeto vir tu a lm en te va zio. Qu a n do volta m os ã vida d iá r ia , a qu ele es ta do de gra ça s e d is s ipa e m a is u m a vez es ta m os n u m mar de sujeitos e objetos. Prática e vida assim não se encontram.

Uma prá t ica m a is lím pida n ã o ten ta livra r -s e do ob jeto, m a s , a n tes , ten ta en xergá -lo ta l qu a l é. Aos pou cos , a p ren dem os o qu e é ser ou vivenciar, e n es s e es ta do n ã o exis te s u jeito n em ob jeto. Nã o é qu e elim in em os a lgu m a cois a ; a n tes , reu n im os a s cois a s . Ain da há a mim e ainda há você, mas quando sou apenas minha vivência de você, não me sinto separado de você. Sou uno com você.

* Mu

literalmente "não" ou "nada"

é normalmente proposto para os iniciantes como um meio de focalizar sua atenção.

Page 79: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Es s e t ipo de p rá t ica é porém m u ito m a is len to porqu e, em vez de con cen tra r -s e n u m ú n ico ob jeto, t ra ba lh a com tu do em n os s a vida . Qu a lqu er cois a qu e n os a borreça ou con tra r ie (qu e, pa ra s erm os h on es tos , in clu i qu a s e tu do) s e torn a fa relo pa ra o m oin h o da n os s a p rá t ica . Tra ba lh a r com tu do leva a u m a p rá t ica qu e permanece viva em cada segundo de nossa vida.

Qu a n do a pa rece ra iva , por exem plo, a m a ior ia da s p rá t ica s zen t ra d icion a is n os leva r ia a ign ora r es s a ra iva e a n os con cen trar em a lgu m a cois a , com o a res p ira çã o. Em bora des s e jeito a ra iva s eja pos ta de la do, ela volta rá toda vez qu e form os cr it ica dos ou a m ea ça dos de a lgu m a form a . Por ou tro la do, n os s a p rá t ica é n os torn a rm os a p rópr ia ra iva , viven cia n do-a p len a m en te, s em separação ou rejeição. Quando trabalhamos dessa maneira, nossas vida s s e a qu ieta m . Aos pou cos , a p ren dem os a n os rela cion a r com os objetos problemáticos de uma forma diferente.

Nos s a s rea ções em ocion a is gra du a lm en te s e m in im iza m ; por exem plo, ob jetos qu e tem ía m os vã o perden do s eu poder s obre n ós e podemos lidar com eles com mais presteza. É fascinante observar a m u da n ça qu e ocorre; vejo-a a con tecer n os ou tros e em m im ta m bém . Es s e p roces s o n u n ca es tá com pleto; n o en ta n to, es ta m os nos tornando cada vez mais livres e despertos.

ALUNO: Com o é a qu ilo qu e você des creve com o d iferen te da prática s h ik an taz a * tradicional?

JOKO: Cor reta m en te en ten d ido, é m u ito pa recido com o s h ik an taz a , m a s exis te u m a ten dên cia a es va zia r a m en te. É pos s ível en t ra r n u m a es pécie de exper iên cia b ru xu lea n te n a qu a l o s u jeito n ã o es tá in clu ído. Es s a é a pen a s u m a ou tra form a de fa ls o samadhi. Os proces s os de pen s a m en to fora m elim in a dos da percepção conscien te e ca n cela m os n os s a exper iên cia s en s or ia l da m es m a form a com o s er ia feito com qu a lqu er ou tro ob jeto da percepção consciente.

ALUNO: Você d is s e qu e o verda deiro p ropós ito da p rá t ica é exper im en ta rm os n os s a u n ida de com toda s a s cois a s , ou a pen a s serm os n os s a s p rópr ia s vivên cia s de m odo qu e, por exem plo, es ta -

* Shikantaza

"apenas sentar'': uma forma pura de meditação sentada, sem a ajuda da contagem da respiração ou da prática do koan, na qual a mente mantém-se bastante concentrada, alerta e calmamente cônscia do presente.

Page 80: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m os s ó lixa n do a s u n h a s s e for is s o qu e es t iverm os fa zen do. Ma s não é um paradoxo tentar chegar até nisso?

JOKO: Con cordo com você: n ã o podem os ten tar s er u n os com o lixa r . Se ten ta rm os n os torn a r u n os com es s e m ovim en to, separamo-n os dele. O p rópr io es forço s e der rota . Exis te u m a cois a , porém , qu e podem os fa zer : podem os repa ra r n os pen s a m en tos qu e n os s epa ra m de n os s a a t ivida de. Podem os es ta r côn s cios de n ã o es ta rm os com pleta m en te en ga ja dos n a qu ilo qu e es ta m os fazendo. Is s o n ã o é tã o d ifícil. Rotu la r n os s os pen s a m en tos a ju da -n os n es s e s en t ido. Em vez de d izer "Vou m e u n ir com o a to de lixa r", o qu e é dualista

pen s a r a res peito da a t ivida de em vez de s ó execu tá -la , sempre podemos observar que não o estamos fazendo. É tudo quanto se torna necessário.

A p rá t ica n ã o tem qu e ver com pa s s a r por cer ta s exper iên cias, com viven cia r gra n des con clu s ões , n em com ch ega r em a lgu m a pa r te ou torn a r -s e a lgo. Som os per feitos com o s om os . Com "per feitos " qu ero d izer qu e é is s o, s ó. A p rá t ica é s im plesmente m a n ter a percepçã o con s cien te

de n os s a s a t ivida des e ta m bém de todos os pen s a m en tos qu e n os s epa ra m de n os s a s a t ivida des . Qu a n do lixa m os n os s a s u n h a s ou n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , n ós a pen a s lixa m os a s u n h a s ou n os s en ta m os pa ra p ra t ica r . Um a vez qu e n os s os s en t idos es tã o a ber tos , ou vim os e s en t im os ou tra s cois a s ta m bém : s on s , odores e a s s im por d ia n te. Qu a n do os pen s a m en tos s u rgem , obs erva m os qu e s u rgira m e regres s a m os à nossa experiência direta.

A percepção consciente é nosso verdadeiro ser. E o que somos. Por isso, não temos que tentar desenvolver a percepção consciente; n ós a pen a s p recis a m os obs erva r com o b loqu ea m os n os s a con s cien t iza çã o, com pen s a m en tos , fa n ta s ia s , op in iões e ju lga m en tos . Ou es ta m os n a percepçã o con s cien t iza dora , qu e é o n os s o es ta do n a tu ra l, ou es ta m os fa zen do a lgu m a ou tra cois a . O s in a l do a lu n o m a du ro é qu e, n a m a ior pa r te do tem po, ele n ã o fa z outra coisa. Ele está apenas ali, vivendo sua vida. Nada especial.

Qu a n do n os torn a m os u m a percepçã o con s cien te a ber ta , n os s a h a b ilida de pa ra os ra ciocín ios n eces s á r ios torn a -s e m a is a gu da , e todo o n os s o input s en s or ia l s e torn a m a is cla ro, m a is in ten s o. Depois de a lgu m tem po s en ta dos n a p rá t ica , o m u n do pa rece m a is b r ilh a n te, os s on s s ã o m a is in ten s os , e h á u m a r iqu eza da ca p ta çã o s en s or ia l qu e é a pen a s o n os s o es ta do n a tu ral

Page 81: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

se não estivermos bloqueando o acesso às experiências com nossas mentes rígidas e preocupadas.

Qu a n do com eça m os a p rá t ica , podem os m a n ter a percepção con s cien te s ó por in terva los m u ito b reves e logo des via m os a n os s a a ten çã o do p res en te. Pr is ion eiros de n os s os pen s a m en tos , n ã o repa ra m os n em qu e es ta m os d iva ga n do. En tã o n os a pa n h a m os de volta e recu pera m os a a ten çã o n a p rá t ica s en ta da . A p rá t ica in clu i ta n to a percepçã o con s cien te de n os s a pos tu ra s en ta da com o a percepçã o con s cien te de term os d iva ga do. Após a n os de p rá t ica , es s a s d iva ga ções d im in u em a té qu a s e des a pa recerem , em bora is s o nunca ocorra de forma radical.

ALUNO: Os s on s e odores e ta m bém a s n os s a s em oções e pensamentos são todos partes da nossa prática sentada?

JOKO: Sim . É n orm a l qu e a m en te p rodu za pen s a m en tos . A prát ica é tom a r con s ciên cia de n os s os pen s a m en tos s em n os perderm os n eles . Ca s o n os perca m os , p res te a ten çã o n is s o também.

O zazen n a rea lida de n ã o é com plica do. O verda deiro p ro-b lem a é: n ós n ã o qu erem os fa zê-lo. Se m eu n a m ora do com eça a olh a r pa ra a s ou tra s m u lh eres , por qu a n to tem po perm a n ecerei s im ples m en te d is pos ta a viven cia r is s o? Todos tem os p rob lem a s con s ta n tes , m a s n os s a d is pon ib ilida de pa ra s om en te s er es tá n os últimos itens, em nossa lista de prioridades, até termos praticado o s u ficien te pa ra term os fé em a pen a s s erm os de m odo qu e a s s olu ções pos s a m a pa recer n a tu ra lm en te. Um ou tro in d ica dor de u m a p rá t ica em fa s e de a m a du recim en to é o des en volvim en to dessa confiança e dessa fé.

ALUNO: Qu a l é a d iferen ça en t re perm a n ecer tota lm en te absorvido n o lixa r da s u n h a s e em es ta r con s cien te de es ta r totalmente absorvido no lixar das unhas?

JOKO: Estar consciente de estar absorvido em lixar as unhas é a in da u m du a lis m o. Você es tá pen s a n do "Es tou tota lm en te a b -s orvido lixa n do a s m in h a s u n h a s ". Es s a n ã o é a verda deira p res en ça a ten ta . Na verda deira p res en ça a ten ta , a pes s oa es tá s ó fa zen do. A con s cien t iza çã o de qu e s e es tá a bs orvido n u m a da da exper iên cia pode s er u m pa s s o ú t il n o ca m in h o, m a s a in da n ã o é ter ch ega do efet iva m en te lã , porqu e a in da h á o pen s a r s obre is s o. Ain da h á u m a s epa ra çã o en tre a percepçã o con s cien te e o ob jeto

Page 82: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

des s a percepçã o con s cien te. Qu a n do es ta m os lixa n do a s u n h a s , não estamos pensando em prática. Numa boa prática, não estamos pen s a n do "Es tou n a p rá t ica ". Um a boa p rá t ica é fa zer o qu e es ta m os fa zen do e obs erva r qu a n do d iva ga m os . Qu a n do já es ta m os n es s a p rá t ica h á m u itos a n os , percebem os qu a s e de imediato quando começamos a divagar.

Foca liza r a a ten çã o em a lgo ch a m a do "p rá t ica zen " n ã o é n eces s á r io. Se, da m a n h ã a té a n oite, form os tom a n do con ta de u m a cois a a pós a ou tra , de m a n eira com pleta e ca ba l e s em pen s a m en tos con com ita n tes do t ipo "Sou u m a boa pes s oa por ter feito is s o", ou "Nã o é m a ra vilh os o eu poder tom a r con ta de tu do?", então isso será suficiente.

ALUNO: Min h a vida pa rece con s is t ir em ca m a da s s obre ca m a da s de a t ivida des , toda s des en rola n do-s e a o m es m o tem po. Se eu fizes s e a pen a s u m a cois a por vez e depois pa s s a s s e pa ra a seguinte, eu não conseguiria dar conta de tudo que realizo normal-mente durante um dia.

JOKO: Du vido. Fa zer u m a cois a de ca da vez e en t rega r -s e por com pleto a es s a execu çã o é o m eio m a is efica z de s e con s egu ir viver , porqu e n ã o h á b loqu eio n en h u m n o orga n is m o. Qu a n do vivem os e t ra ba lh a m os des s a m a n eira , s om os m u ito eficien tes s em nos afobarmos. A vida é sem acidentes.

ALUNO: Ma s e qu a n do u m a da s cois a s é ter de reflet ir s obre u m a s s u n to, ou t ra é a ten der o telefon e, u m a terceira é u m a ca r ta para se escrever...

JOKO: Mes m o a s s im , toda vez qu e n os volta m os pa ra u m a ou tra a t ivida de, s e es t iverm os com pleta m en te p res en tes , a pen a s fazendo o qu e es ta m os fa zen do, a ta refa s erá con clu ída m u ito m a is depres s a e m elh or . Em gera l, n o en ta n to, in clu ím os n a a t ividade vá r ios pen s a m en tos s u b lim in a res com o "Precis o con s egu ir fa zer toda s es s a s cois a s ta m bém

ou m in h a vida s im ples m en te n ã o s erve". A a t ivida de pu ra é m u ito ra ra . Qu a s e s em pre exis te u m a s om bra , u m film e s obre ela . Podem os n ã o es ta r con s cien tes d is s o, mas perceber a pen a s u m a cer ta ten s ã o. Nã o exis te ten s ã o n a a t ivida de pu ra , a lém da con tra çã o fís ica exigida pa ra qu e a atividade em si seja executada.

Há m u itos a n os , n u m sesshin, eu cos tu m a va ter a exper iên -cia de a pen a s torn a r -m e o cozin h a r , o a r ra n ca r a s erva s da n in h a s ,

Page 83: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ou o qu e fos s e qu e eu t ives s e qu e fa zer , m a s a in da exis t ia u m a s s u n to s u t il a li. E s em a m en or h es ita çã o, a s s im qu e o sesshin t in h a eva pora do u m pou co qu e fos s e, eu volta va com pleta m en te a toda a m es m a h is tór ia de s em pre. Eu n ã o m e h a via torn a do u n a com o objeto.

ALUNO: De volta a o exem plo de lixa r a s u n h a s : s e rea lm en te es ta m os a pen a s fa zen do is s o, en tã o n ã o es ta m os em a bs olu to cien tes de n ós , a o pa s s o qu e, s e lem bra m os de qu e es ta m os fa zen do is s o, retorn a m os a o du a lis m o s u jeito e ob jeto e n ão es ta m os m a is en t regu es à pu ra a t ivida de. Is s o n ã o s ign ifica , n o en ta n to, qu e qu a n do es ta m os s ó lixa n do a s u n h a s n ã o es ta m os absolutamente ali? Não existimos mais?

JOKO: Qu a n do es ta m os en tregu es à pu ra a t ivida de, s om os u m a p res en ça , u m a percepçã o con s cien te. Ma s is s o é tu do o qu e s om os . E is s o n ã o s e pa rece com n a da . As pes s oa s s u põem qu e o es ta do ilu m in a do é in u n da do de s en t im en tos a m oros os e em oções ca loros a s . Porém , o verda deiro a m or , ou a verda deira com pa ixã o, é s im ples m en te es ta r n ã o-s epa ra do do ob jeto. Em es s ên cia , é u m flu xo de a t ivida de n a qu a l n ã o exis t im os com o u m s er s epa ra do de nossa atividade.

Sem pre exis te u m cer to va lor n a p rá t ica qu e tem ca ra cter ís -t ica s du a lis ta s . Um cer to t rein o e u m des con d icion a m en to des en -rolam-s e em qu a lqu er s itu a çã o de p rá t ica s en ta da . Ma s , a té qu e ten h a m os s u pera do es s e du a lis m o, n ã o con s egu irem os con h ecer a liberda de fin a l. Nã o exis te u m a liberda de fin a l en qu a n to n ã o houver apenas um só, ali.

Podem os a ch a r qu e n ã o n os im por ta m os com a liberda de final nesse sentido. A verdade, no entanto, é que nós a desejamos.

ALUNO: Se uma pessoa está sentindo amor e outra pessoa está sentindo ódio, existe uma diferença em como devem praticar?

JOKO: Nã o. O a m or ou a com pa ixã o gen u ín a é u m a a u s ên cia des s a s du a s em oções con ceb ida s em n ível pes s oa l. Som en te u m a pes s oa pode a m a r ou od ia r n o s en t ido u s u a l. Se n ã o exis te pes s oa , s e es ta m os a pen a s a bs orvidos n o viver , es s a s em oções es ta rã o ausentes.

Na p rá t ica de con cen tra çã o qu e des crevi p r im eiro, u m a vez qu e o s en t im en to de ra iva é u m ob jeto, o qu e fa zem os é s im ples -m en te ign orá -lo. Em pu rra m os a em oçã o pa ra o la do e es va zia mos

Page 84: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

o koan de s eu con teú do. O p rob lem a des s a a borda gem é qu e, qu a n do volta m os à vida d iá r ia , n ã o s a bem os o qu e fa zer com a s n os s a s em oções , porqu e ela s n ã o fora m res olvida s . Sã o u m ter r itór io des con h ecido pela p rá t ica zen clá s s ica . Na p rá t ica da con s cien t iza çã o, n ós a pen a s viven cia m os o pen s a m en to e a em oçã o e s u a s s en s a ções con com ita n tes . Os res u lta dos s ã o m u ito diferentes.

ALUNO: Na p rá t ica s h ik an taz a qu e m e en s in a ra m , a s em oções fa zem pa r te da p rá t ica : ela s a pa recem e n ós n os s en ta m os pa ra praticar com elas.

JOKO: Sim , a p rá t ica s h ik an taz a pode s er en ten d ida des s a maneira. Temos apenas que nos acautelar quanto às armadilhas.

ALUNO: Nos sesshins m a is lon gos e d ifíceis , à s vezes m e s in to com o Gordon Liddy, com m in h a m ã o s ob re a ch a m a de u m a vela pa ra s a ber qu a n ta dor con s igo s u por ta r . No velh o es t ilo da p rá t ica do samadhi, eu pen s o qu e o tes te do samadhi da pes s oa era s u a ca pa cida de de n ã o s en t ir a dor m ed ia n te o es ta do de gra ça e a concentração.

JOKO: Certo. Então o objeto é cancelado.

ALUNO: Nes s e es t ilo de p rá t ica , o sesshin torna-s e u rn a es pécie de p rova de res is tên cia . Você poder ia com en ta r com o a dor funciona nesse sistema para não ser masoquismo?

JOKO: Um a dor m odera da é u m bom m es tre. A vida m es m a a pres en ta a dor e ta m bém in con ven iên cia s . Se n ã o s a bem os com o lida r com a dor e com a in con ven iên cia , n ã o s a bem os m u ito a n os s o p rópr io res peito. Um a dor ext rem a n ã o é n eces s á r ia , n o en ta n to. Se a dor for exces s iva , pode-s e u s a r u m ba n co ou a ca deira , ou a té m es m o pode-s e deita r . Mes m o a s s im , exis te u m cer to va lor em a pes s oa d is por-s e a s er a dor . A s epa ra çã o s u jeito-ob jeto ocorre porqu e n ã o es ta m os d is pos tos a s er a dor qu e a s s ocia m os com o ob jeto. E por is s o qu e n os d is ta n cia m os dele. Se n ã o n os en ten dem os em rela çã o à dor , cor rem os dela qu a n do aparece, e perdemos esse imenso tesouro de conscientização com a vivência direta da vida. De modo que, até certo ponto, é útil sentar-s e com a dor pa ra poderm os recu pera r u m a con s ciên cia m a is plena de nossa vida tal qual ela é.

Page 85: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Qu a n do a ten do a lu n os em daisan *, a m a ior pa r te do tem po m eu s joelh os fica m doen do. En tã o es tã o doen do: é s ó is s o. Sobretu do qu a n do fica m os m a is velh os , é ú t il s er ca pa z de es ta r com a n os s a vivên cia e viver p len a m en te a vida . Pa r te do qu e viem os a qu i a p ren der é com o es ta r com o des con for to e a in con -veniência.

De cer ta form a , a dor é u m gra n de m es t re. Sem u m cer to gra u de des con for to, a m a ior ia da s pes s oa s a p ren der ia m u ito pouco. Dor, desconforto, dificuldade e até mesmo a tragédia podem ser grandes instrutores, em especial quando ficamos mais velhos.

ALUNO: Den tro da con s ciên cia ord in á r ia , tu do o qu e es teja além de nós é um objeto?

JOKO: Se pen s a rm os n o eu da pes s oa com o u m ob jeto en t re ou tros , a té m es m o ele pode s er u m ob jeto. Pos s o obs erva r a m im mesma, posso ouvir a minha voz, posso cutucar as minhas pernas. Desse ponto de vista, sou um objeto também.

ALUNO: En tã o, ob jetos in clu em s en t im en tos e es ta dos de ânimo, além das coisas do mundo?

JOKO: Sim . Em bora pen s em os em n ós com o s u jeitos e em tu do o m a is com o ob jetos , is s o é u m er ro. Qu a n do n ós s epa ra m os a s cois a s u m a s da s ou tra s , tu do s e torn a u m ob jeto. Só exis te u m único sujeito verdadeiro que é o absolutamente nada. O que é?

ALUNO: A percepção consciente.

JOKO: Sim , a percepçã o con s cien te, em bora a pa la vra s eja inadequ a da . A percepçã o con s cien te n ã o é n a da e, n o en ta n to, o mundo inteiro existe através dela.

INTEGRAÇÃO

Há u m a h is tór ia t ra d icion a l a res peito de u m in s t ru tor zen *

qu e es ta va recita n do s u t ra s ** qu a n do foi a borda do por u m la drão

* Daisan: uma entrevista formal entre aluno e instrutor no decurso da prática meditativa. * Ver Paul Reps, compilador, Zen flesh, zen bones: A collection of zen and pre-zen writings, Garden City, NY: Anchor, Doubleday, sem data, "O homem que se tornou um discípulo", p. 41.

Page 86: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

qu e exigiu s eu d in h eiro ou a vida . O in s t ru tor d is s e a o la d rã o on de es ta va o d in h eiro, e ped iu qu e ele a pen a s deixa s s e o s u ficien te pa ra pa ga r s eu s im pos tos e qu e qu a n do es t ives s e p res tes a s a ir a gra deces s e a o in s t ru tor pelo p res en te. O la d rã o con cordou . Un s d ia s depois foi ca p tu ra do e con fes s ou vá r ios cr im es , in clu s ive o a s s a lto a o in s t ru tor zen . Ma s es te in s is t iu qu e n ã o h a via s ido vítima de roubo porque havia dado ao homem o seu dinheiro e este agradecera por is s o. Depois de o la d rã o ter term in a do de cu m pr ir a pena, voltou até o instrutor e tornou-se um de seus discípulos.

Es s a s h is tór ia s pa recem rom â n t ica s e lin da s . Ma s va m os s u por qu e a lgu ém n os peça em pres ta do d in h eiro e n ã o n os devolva. Ou qu e a lgu ém rou be o n os s o ca r tã o de créd ito e o u t ilize. Com o rea gir? Um a d ificu lda de da s h is tór ia s clá s s ica s do zen , com o es s a , é qu e ela s pa recem a n t iga s e m u ito d is ta n tes . Por es ta r d is ta n te de n os s a época , podem os deixa r de en ten der o "x" da qu es tã o. A questão não é que alguém levou o dinheiro ou o que o mestre fez. A qu es tã o é qu e o m es t re n ã o ju lgou o la d rã o. Is s o n ã o qu er d izer qu e a m elh or cois a s eja s em pre da r a o la d rã o a qu ilo qu e ele qu er ; pode s er qu e à s vezes es s a n ã o s eja a m elh or m a n eira de rea gir . Es tou cer ta de qu e o m es t re con s iderou a s itu a çã o, viu qu em era o h om em (ta lvez u m ga roto qu e a pa n h ou u m a es pa da e es pera va com ela conseguir um dinheirinho rápido) e intuitivamente soube o qu e fa zer . Nã o é ta n to o qu e o m es t re fez, m a s a m a n eira com o a giu . A a t itu de do m es t re foi cru cia l. Em vez de fa zer u m ju lga m en to, ele s im ples m en te lidou com a s itu a çã o. Se a s itu a çã o tivesse sido diferente, sua resposta poderia ter sido outra.

Nã o percebem os qu e s om os todos p rofes s ores . Tu do o qu e fa zem os , de m a n h ã a té a n oite, é u m en s in a m en to: o m odo com o fa la m os com a lgu ém , n a h ora do a lm oço, o m odo com o fa zem os n os s a s t ra n s a ções ba n cá r ia s , n os s a rea çã o qu a n do o a r t igo qu e a p res en ta m os é a ceito ou rejeita do

tu do o qu e fa zem os e d izem os reflete n os s a p rá t ica . Ma s n ã o é pos s ível qu ererm os s er s im ples m en te com o Sh ich ir i Kogen . É u m a a rm a d ilh a do t rein o con clu ir : "Oh , eu dever ia s er des s e jeito". Os a lu n os ca u s a m u m gra n de da n o qu a n do a r ra s ta m es s es idea is pa ra a p rá t ica . E les im a gin a m qu e "dever ia m s er a lt ru ís ta s , gen eros os e n obres com o o gra n de m es t re zen ". O m es tre em ca da u m a des s a s h is tór ia s foi eficien te porqu e foi o qu e ele era . E le n ã o pen s ou du a s vezes a

** Sutra: texto budista tradicional, em geral falado em voz alta.

Page 87: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

res peito. Qu a n do ten ta m os s er u m a cois a qu e n ã o s om os , tornamo-nos escravos de uma mente rígida e fixa, que segue regras a res peito de com o a s cois a s têm de s er . A violên cia e a ra iva qu e exis tem em n ós con t in u a m des perceb ida s porqu e n os m a n tem os a pr is ion a dos em n os s a s im a gen s de com o dever ía m os s er . Se con s egu im os u s a r a s h is tór ia s de form a cor reta , ela s s ã o maravilhos a s . En treta n to, n ã o dever ía m os a pen a s ten ta r cop iá -las em n os s a s vida s . Som os in t r in s eca m en te per feitos do jeito qu e somos. Somos ilu m in a dos . Ma s , en qu a n to n ã o com preendermos isso, iremos nos iludir a respeito das coisas.

Os cen tros zen e ou tros loca is de p rá t ica es p ir itu a l cos tu mam ign ora r o qu e tem de ocorrer com u m s er h u m a n o pa ra qu e a con teça a verda deira ilu m in a çã o. A p r im eira cois a qu e tem de acontecer

a o lon go de m u ita s eta pa s , s u pera n do m u itos des vios e a rm a d ilh a s

é a n os s a in tegra çã o com o s eres h u m a n os , pa ra qu e a m en te e o corpo torn em -s e u m a cois a s ó. Pa ra m u ita s pes s oa s , es s e em preen d im en to leva a vida in teira . Qu a n do o corpo e a m en te s ã o u m s ó, n ã o s om os m a is con s ta n tem en te pu xa dos pa ra cá e pa ra lá , pa ra fren te e pa ra t rá s . En qu a n to formos con trola dos por n os s a s em oções a u tocen t ra da s (e a m a ior ia de n ós tem m ilh a res des s a s ilu s ões ), n ã o terem os a in da s u pera do es s a eta pa . Pega r a pes s oa qu e a in da n ã o in tegrou corpo e m en te e forçá-la a pa s s a r pelo es t reito e con cen tra do por tã o da ilu m inação pode s em dú vida p rodu zir u m a poderos a exper iên cia de vida , m a s essa pessoa não vai saber o que fazer com isso. Vislumbrar por um in s ta n te a u n ida de ú lt im a do u n ivers o n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te qu e da í em d ia n te n os s a s vida s s erã o m a is livres . Pois , en qu a n to n os p reocu pa m os com o qu e a lgu ém n os fez, com o rou ba r o n os s o d in h eiro por exem plo, n ã o es ta m os verda deira m en te in tegra dos . De qu em é o d in h eiro a fin a l de con ta s ? E o qu e torn a n os s o u m peda ço de ter ra ? Nos s o s en s o de p ropr ieda de a pa rece porqu e tem os m edo e s om os in s egu ros e por is s o qu erem os ter cois a s . Qu erem os pos s u ir a s pes s oa s . Qu eremos s er os don os da s idéia s . Qu erem os ter n os s a s p rópr ia s op in iões . Qu erem os ter u m a es t ra tégia pa ra viver . En qu a n to es tivermos fa zen do toda s es s a s cois a s , a idéia de qu e poder ía m os a gir com naturalidade como o mestre Kogen é completamente sem sentido.

O im por ta n te é qu em s om os a ca da m om en to da do e de qu e m odo lida m os com a qu ilo qu e a vida n os oferece. Qu a n do m en te e corpo torn a rem -s e m a is in tegra dos , o t ra ba lh o pa ra doxa lm en te irá

Page 88: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

fica r m u ito m a is fá cil. Nos s a ta refa é in tegra rm o-n os com o m u n do todo. Com o d is s e o bu da : "O m u n do todo s ã o m eu s filh os ". As s im qu e es t iverm os rela t iva m en te em pa z con os co, a in tegra çã o com o resto do mundo se tornará mais fácil. O que custa mais tempo e dá m a is t ra ba lh o é a p r im eira pa r te. As s im qu e is s o es t iver qu a s e a lca n ça do, exis tem m u ita s á rea s da vida qu e têm a qu a lida de de u m a vida ilu m in a da . Os p r im eiros a n os s ã o m a is d ifíceis do qu e os ú lt im os . O m a is d ifícil é o p r im eiro s esshin; os m es es m a is d ifíceis da prática estão no primeiro ano; o segundo já é mais fácil, e assim por diante.

Ma is ta rde pode ir rom per u m a n ova cr is e, ta lvez depois de cin co ou dez a n os de p rá t ica , qu a n do com eça m os a en ten der qu e n ã o irem os ga n h a r n a da com ta n to tem po s en ta do

a bs olu ta -m en te n a da , O s on h o a ca bou , o s on h o da glór ia pes s oa l qu e pen s á va m os ob ter a pa r t ir da p rá t ica . O ego es tá des fa zen do-se; es s e pode s er u m per íodo á r ido, d ifícil. Con form e vou lecion a n do, percebo os p rogra m a s p ré-preparados da pes s oa s e des fa zen do. Isso acontece na primeira parte da viagem. É mesmo lindo, embora s eja a pa r te d ifícil. A p rá t ica deixa de s er rom â n t ica : n ã o s e pa rece mais com aquilo que lemos nos livros. Então começa a prática real: de u m m om en to pa ra o ou tro, a pen a s en ca ra n do ca da m om en to. Nossas mentes não se impõem mais tanto a nós. Não nos dominam m a is . Tem in ício u m a gen u ín a ren ú n cia de n os s os p rogra m a s a n tecipa dos , em bora m es m o n es s a época ta l eta pa pos s a s er in ter rom pida por toda s a s es pécies de ep is ód ios d ifíceis . O ca m in h o n u n ca é d ireto e s u a ve. Alíá s , qu a n to m a is pedregos o, melhor. O ego precisa de obstáculos que o desafiem.

Con form e n os s a p rá t ica p rogr ide, obs erva m os qu e os ep i-sódios

os obs tá cu los em n os s o ca m in h o

n ã o s ã o tã o d ifíceis quanto poder ia m ter s ido. Nã o tem os m a is ta n tos p rogra m a s a n tecipa dos a res peito de tu do, n em o m es m o im pu ls o pa ra n os torn a rm os im por ta n tes ou gra n des ju izes . Se s en ta m os pa ra p ra -t ica r com a té 40% de percepçã o con s cien te, pequ en a s fa gu lh a s s a em de n os s a s p rogra m a ções a n tecipa da s . Qu a n to m a ior for o tem po em qu e perm a n ecem os s en ta dos p ra t ica n do, m en os cois a s vã o a con tecer du ra n te a p rá t ica . Por qu a n to tem po a tu ra m os en xerga r toda a obs t ru çã o de n os s o ego? Por qu a n to tem po con s egu im os obs ervá -lo a n tes de la rga r m ã o e s im ples m en te retorn a r a o a qu i? Tra ta -s e de u m len to p roces s o de des ga s te

e

Page 89: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n ã o de u m a qu es tã o de ga n h a r vir tu des ; é m a is ga n h a r en ten -dimento.

Além de rotu la r n os s os pen s a m en tos , p recis a m os perm a n ecer com a s s en s a ções de n os s o corpo. Se t ra ba lh a rm os com es s a s du a s qu es tões com toda a pa ciên cia pos s ível, irem os a os pou cos abrindo-nos para uma nova visão de vida.

Qu erem os u m a vida qu e s eja tã o r ica e a m p la e benéfica

qu a n to s eja pos s ível. Todos tem os a pos s ib ilida de de viver a s s im . In teligên cia a ju da . As pes s oa s qu e vêm a u m cen tro zen s ã o, de m a n eira t íp ica , m u ito in teligen tes . Ma s ela s ta m bém ten dem a ca ir n a s m a lh a s de m u ita s ra cion a liza ções e a n á lis es . Seja qu a l for a disciplina

a rte, m ú s ica , fís ica , filos ofia

podem os m odificá -la e usá-la pa ra evita r a p rá t ica . Porém , s e n ã o o fa zem os , a vida n os dá u m ch u t in h o a pós o ou tro a té a p ren derm os a qu ilo qu e p recis a m os a pren der . Nin gu ém pode fa zer es s a p rá t ica por n ós . O ú n ico tes te pa ra s a ber s e es ta m os fa zen do a p rá t ica é a n os s a própria vida.

OS TOMATEIROS RIVAIS

Há a lgu n s in s ta n tes receb i u m telefon em a de u m a a m iga da cos ta les te qu e es tá m orren do. Ela d is s e qu e ta lvez ten h a m a is t rês ou qu a tro d ia s de vida e qu e es ta va telefon a n do pa ra d izer a deu s . Depois des s a liga çã o, lem brei-m e da p recios ida de des ta jóia qu e ch a m a m os vida

e de qu ã o pou co s a bem os a s eu res peito ou a a p recia m os . Mes m o qu e s a iba m os u m pou co, com o é pou co o quanto cuidamos dela!

Algu m a s pes s oa s , em es pecia l a s qu e per ten cem a com u n i-da des es p ir itu a is , podem im a gin a r qu e a jóia da vida n u n ca tem con flitos , d is cu s s ões ou t ra n s torn os

qu e é s ó ca lm a e pa z. Es s e é u m gra n de en ga n o porqu e s e n ã o en ten dem os com o o con flito é gera do, podem os fa zer com qu e a n os s a vida en t re em rota de colis ã o com a vida dos ou tros . Pr im eiro, p recis a m os ver qu e todos s en t im os m edo. Nos s o m edo bá s ico é o de m orrer , e es te es tá n a ba s e de todos os ou tros . Nos s o m edo de s erm os pes s oa lm en te a n iqu ila dos leva -n os a con du ta s in ú teis , en t re a s qu a is o es forço de p roteger n os s a a u to-im a gem , o ego. Des s a n eces s ida de de

Page 90: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

proteçã o vem a ra iva . Da ra iva n a s ce o con flito. E o con flito des t rói nossos relacionamentos com os outros.

Nã o es tou qu eren do d izer qu e u m a boa vida n ã o ten h a acaloradas discussões, desacordos; isso é bobagem. Quando eu era m en in a con h eci m u ito bem dois s en h ores e s u a s fa m ília s . Es ta s era m a m iga s e era com u m s a irm os ju n tos pa ra pa s s eios de fim de semana. Esses dois homens competiam em todas as oportunidades, m a s m a is es pecia lm en te n a tem pora da do tom a te. Apres en ta va m s u a s s a fra s n a feira loca l. Su a s d is cu s s ões a res peito de s eu s tom a tes era m clá s s ica s : ia m ergu en do a voz a té a s pa redes com eça rem a t rem er . E , n a rea lida de, os dois ga n h a va m o p rêm io de "O Melh or Tom a te da Feira ". Era u m a delícia vê-los porqu e os dois s a b ia m qu e a qu ele ba te-boca era s ó pa ra b r in ca r . O tes te de u m bom con flito, de u m a boa t roca de op in iões , é qu e qu a n do o conflito termina não resta frieza ou amargor, nenhum apego à idéia do "eu ganhei, você não". Tudo bem discutir, mas apenas se for por d ivers ã o. Se tem os u m a d is cu s s ã o com a lgu ém qu e n os é p róxim o, m a s , depois de tu do s u pos ta m en te perdoa do e es qu ecido, con t in u a m os fr ios e d is ta n tes , en tã o es tá n a h ora de olh a rm os mais de perto essa situação.

Um vers o do Tao Te Ch ing * a firm a : "O m elh or a t leta qu er qu e s eu a dvers á r io es teja em s u a m elh or form a . O m elh or gen eral en tra n a m en te de s eu in im igo. O m elh or n egocia n te s erve a o bem com u n itá r io. O m elh or líder s egu e a von ta de do povo"*. Toda s es s a s pes s oa s en ten dem o qu e é a com pet içã o. Nã o é qu e evitem com pet ições , m a s com petem com es p ír ito es por t ivo. Nes s e s en t ido s ã o com o a s cr ia n ça s , em h a rm on ia com o Ta o. Se n os s a s d is cu s s ões s e dã o n es s e s en t ido, tu do bem . Ma s qu a n ta s vezes isso acontece?

Su zu k i Ros h i foi in terpela do cer ta vez s e a ra iva poder ia s er com o u m ven to pu ro qu e va r re e deixa tu do lim po. Ele d is s e: "Sim , m a s n ã o creio qu e você p recis e s e p reocu pa r com is s o". E le d is s e que nunca tinha sentido uma raiva que fosse como o vento puro. E a n os s a ra iva com cer teza n ã o é pu ra ta m bém porqu e exis te m edo por t rá s dela . En qu a n to n ã o en tra rm os em con ta to com o n os s o m edo e o viven cia rm os por in teiro, n os s a ra iva s erá ca pa z de causar danos.

* Tao Te Ching: A new English version, with foreword and notes, por Stephen MitchelI, Nova York: Harper & Row, 1988, p. 68.

Page 91: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Um bom exem plo es tá em n os s o es forço pa ra s erm os h o-n es tos . A h on es t ida de é a ba s e a bs olu ta de n os s a p rá t ica . Ma s o qu e is s o qu er d izer? Va m os s u por qu e d izem os pa ra a lgu ém : "Qu ero s er h on es to com você. Qu ero lh e con ta r com o vejo o n os s o rela cion a m en to". O qu e d is s erm os pode s er p roveitos o. Porém , m u ita s vezes n os s os es forços de h on es t ida de n ã o vêm da verdadeira honestidade, mas de um espírito de brincar, de incluir o outro mesmo que possamos fingi-lo. Enquanto tivermos a menor in ten çã o qu e s eja de ter ra zã o, de m os tra r ou en s in a r a lgo pa ra o ou tro, p recis a m os n os a ca u tela r . En qu a n to n os s a s pa la vras t iverem a m en or liga çã o qu e s eja com o ego, s erã o des on es ta s . As pa la vra s verda deira s vêm qu a n do en ten dem os o qu e é s a ber qu e estamos com raiva, saber que estamos com medo, e esperar. Dizem a s a n t iga s pa la vra s : "Você tem a pa ciên cia de es pera r a té qu e s u a m en te a qu iete e a á gu a fiqu e cla ra ? Você con s egu e s e m a n ter im óvel a té qu e a a çã o cor reta a pa reça por s i?". Es s e é u m m odo m a ra vilh os o de a pon ta r o "x" da qu es tã o: s erá qu e con s egu im os fica r em s ilên cio por u m m om en to a té qu e a s pa la vra s ju s ta s a pa reça m por s i

pa la vra s h on es ta s , qu e n ã o m a goa m os ou t ros ? Es s a s pa la vra s podem s er m u ito fra n ca s . Podem com u n ica r exa ta m en te o qu e qu erem os d izer . Podem in clu s ive s er a s m es m a s pa la vra s qu e ter ía m os fa la do a pa r t ir de n os s o ego, m a s h a verá u m a d iferen ça . Viver des s e jeito n ã o é fá cil. Nin gu ém con s egu e fazê-lo o tem po todo. Nos s a p r im eira rea çã o vem da a u topres erva çã o e do m edo, e en tã o a ra iva s a lta bem n o m eio da cen a . Nos s os s en t im en tos fora m fer idos , es ta m os com m edo, ficamos com raiva.

Se tivermos paciência de esperar até que a lama (nossa mente) deca n te e a á gu a fiqu e lím pida , s e perm a n ecerm os im óveis a té qu e a a çã o cor reta s u r ja por s i, á s pa la vra s cer ta s a pa recerã o, s em qu e p recis em os pen s a r n ela s . Nã o p recis a rem os ju s t ifica r a qu ilo qu e es ta m os d izen do u s a n do m ú lt ip la s ra zões ; n ã o terem os qu a isquer razões. As palavras certas se farão dizer se tivermos nos aquietado. Nã o con s egu im os is s o s em u m a p rá t ica s in cera . Pode n ã o s er u m a p rá t ica form a l; à s vezes , a pen a s res p ira m os fu n do, es pera m os u m m in u to, s en t im os com o vã o a s cois a s bem n o m eio de n ossa ba r r iga e en tã o é qu e fa la m os . Por ou tro la do, s e es ta m os ten d o u m gra n de con flito com u m a pes s oa , ta lvez p recis em os de m a is tempo. Pode ser melhor às vezes não dizer nada durante um mês.

Page 92: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Meu s velh os a m igos qu e d is cu t ia m por ca u s a dos tom a tes n ã o t in h a m n en h u m a in ten çã o de ca u s a r da n o. Apes a r de todo o ba ru lh o, n ã o h a via rea lm en te a pa r t icipa çã o de s eu s egos . J á vin h a m joga n do a qu ele jogo h a via a n os . Mu ita s vezes ou ço dos alunos histórias a respeito de seus amigos, do que deu errado, e do qu e qu erem fa zer pa ra "a cer ta r" a s itu a çã o. "Meu a m igo fez u m a cois a ru im . Meu a m igo n ã o m e a ju dou . Vou m os tra r pa ra ele com o é qu e es tou m e s en t in do." Acerca de ta is s itu a ções J es u s d is s e: "Qu e a t ire a p r im eira pedra a qu ele qu e n ã o t iver peca do". Todos tem os fa lh a s . Eu ten h o fa lh a s ; você ta m bém . Todos tem os fa lh a s . Con tu do, o n os s o ego n os d iz qu e s ó o outro es tá er ra do. Gra n de pa r te da qu ilo qu e ch a m a m os de com u n ica çã o com os ou tros du ra n te n os s os con flitos a ca ba s en do, n o fu n do, d izer -lh es com o s ã o fa lh os . En tã o eles , m u ito n a tu ra lm en te, qu erem n os d izer com o n ós tem os fa lh a s . E a s s im va i, de lá pa ra cá , de cá pa ra lá . Na da de ú t il es tá s en do com u n ica do. As pes s oa s qu e es tã o fa la n do s ã o com o dois n a vios qu e pa s s a m u m pelo ou tro à n oite. As pes s oa s s e n ega m a es pera r a té qu e a la m a a s s en te, porém . Tem os m edo de qu e os ou tros s e a p roveitem de n ós . Ma s s erá qu e is s o pode mesmo acontecer?

ALUNO: Nã o podem s e a p roveita r de n ós , m a s com cer teza n os sentimos assim uma grande parte do tempo.

JOKO: Sim , é com u m s en t irm os qu e es tã o s e a p roveita n do de n ós . Va m os s u por u m a pes s oa qu e n os deve d in h eiro e n ã o pa ga . Ou qu e a lgu ém deixa de cu m pr ir u m a p rom es s a qu e n os fez. Ou qu e a lgu ém fa la de n ós pela s cos ta s . E por a í va i; todos n ós fa zem os es s a s cois a s . Será qu e es s a s con du ta s s ã o suficientes pa ra s e a ba n don a r u m a m igo, u m m a r ido ou m u lh er , u m filh o, ou pa i ou m ã e? Ter ía m os n ós a pa ciên cia de es pera r a té qu e n os s a la m a a s s en ta s s e e a á gu a es t ives s e cla ra ? Con s egu ir ía m os m a n ter -n os im óveis a té qu e a a çã o a dequ a da a pa reces s e por s i? Às vezes , fica m os com ra iva de n ós . Qu a n do is s o a con tece, cos tu m a m os em prega r pa la vra s fa ls a s e qu e b rota m de n os s a p ropen s ã o a n os s en t irm os m a goa dos ou p reju d ica dos . Em vez de d ir igir a a lgu ém a n os s a ira , n ós a reen ca m in h a m os pa ra n ós m es m os . Ma s s ó segu n do o Ta o

o va zio, o s ilên cio

é qu e a s pa la vra s ju s ta s e a a çã o ju s ta podem a pa recer . As pa la vra s e con du ta s ju s ta s são o Tao.

Qu a n do lecion o, ten h o m en os in teres s e n os con flitos qu e os a lu n os vivem e m a is n o ca rá ter de s u a s pa la vra s e de on de ela s

Page 93: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

procedem . No ca s o da s pes s oa s qu e têm pra t ica do por a lgu m tem po, a s pa la vra s podem pa recer m elh ores , m a s a in da vêm do lu ga r er ra do. "Eu s ei qu e é tu do eu . Eu s ei qu e n ã o tem n a da qu e ver com você. Nã o p reten do s er ra n zin za n em in t rom et ido, mas..." O julgamento a in da es tá p res en te, a pen a s d is fa rça do. Poder ia m ter a pen a s d ito: "Ma s qu e d roga ! Por qu e é qu e você n ã o pega e a r ru m a s u a s rou pa s ?". Em bora s eja bom qu e a s rou pa s es teja m a r ru m a da s , n ã o é des s e jeito qu e s e fa z is so a con tecer . Con s egu ir ía m os n os m a n ter im óveis , de boca fech a da , a té qu e a a çã o e a s pa la vra s ju s ta s a pa reces s em por s i? A m a ior pa r te do tem po n ã o h á per igo em n ã o s e fa zer nada. Qu a s e tu do o qu e fa zem os n ã o fa z m u ita d iferen ça , de qu a lqu er m a n eira , n ós a pen a s achamos que faz.

Som os pes s oa s za n ga da s porqu e es ta m os todos a s s u s ta dos . Felizm en te, tem os em gera l a opor tu n ida de de p ra t ica r com a ra iva , com a s pes s oa s qu e s ã o d ifíceis pa ra n ós . Podem os ten ta r lida r com elas eliminando-as de nossas vidas. Por que fazemos isso?

ALUNO: Para facilitar a nossa vida.

ALUNO: Porqu e pen s a m os qu e ela s s ã o a ca u s a do n os s o problema.

ALUNO: Porque elas não fazem o que queremos que façam.

ALUNO: Porqu e ta lvez ela s n os m os trem a lgo a n os s o res peito que não queremos enxergar.

ALUNO: Para evitarmos a nossa própria culpa.

ALUNO: Poderíamos estar querendo puni-las.

ALUNO: Ta lvez n a ú lt im a vez em qu e es t ivem os ju n tos ten h a sido tão confuso e doloroso que não queremos nos aproximar outra vez.

JOKO: Precis a m os es ta r d is pos tos a des ca n s a r n a con fu s ã o e n o in côm odo, deixa n do a la m a a s s en ta r a té con s egu irm os ver com m a is n it idez. Com es s a es pécie de p rá t ica , podem os des cobr ir a jóia p recios a de n os s a vida ; h a verá en tã o u m a a u s ên cia de a lterca ções . Ain da poderem os ter d is cu s s ões , com o os tom a teiros rivais

m a s por es p ír ito es por t ivo. Qu a n do es tu da m os a ra iva a fundo, ela desaparece. Como disse Dogen Zenji, estudar o budismo é estudar o eu, e estudar o eu é esquecer o eu. Quando nossa raiva s e d is s ipa n u m n a da , n ã o h á p rob lem a . A a çã o cor reta a pa rece por

Page 94: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s i. Em ret iros in ten s ivos , es s e p roces s o é a celera do. O eu a u tocen tra do torn a -s e m a is t ra n s pa ren te, m a is n ít ido, e a s s im podemos nos assentar bem no meio dele. Conforme a lama decanta e a á gu a fica lím pida n ova m en te, podem os en xerga r a jóia quase com o s e es t ivés s em os em á gu a s t rop ica is e con s egu ís s em os olh a r bem n o fu n do e ver a s p la n ta s e os peixes color idos . En tã o podem os fa la r a s pa la vra s verda deira s , em opos içã o à s autocentradas, que sempre criam desarmonia.

ALUNO: Joko, o que você diz para alguém que está morrendo?

JOKO: Nã o m u ito, ou "eu a m o você". Mes m o qu a n do es ta m os morrendo ainda queremos fazer parte da experiência humana.

ALUNO: Algu m a s vezes , qu a n do ten h o u m con flito, s e con s igo s a ir e d izer a lgo da m elh or m a n eira pos s ível, m es m o qu a n do n ã o s a i per feito, a p ren do m u ita cois a a m eu res peito qu e n ã o qu er ia s a ber e is s o é m u ito va lios o. En tã o pos s o s er h on es to a res peito disso, em vez de esperar.

JOKO: Sim , eu en ten do. Qu a n do eu d igo pa ra es pera r , n ã o es tou fa la n do de u m a fórm u la . Es tou fa la n do de u m a a t itu de de aprendiza gem . Às vezes é ú t il d izer a lgo a n tes qu e a la m a a s s en te; depen de da a t itu de, do es p ír ito da s pa la vra s . Mes m o qu e o es p írito es teja u m pou co torcido, s e es ta m os a p ren den do depres s a en qu a n to a gim os , is s o ta m bém pode fica r bem . Se a gim os de m a n eira im própr ia , en tã o n os des cu lpa m os . Dever ía m os es ta r s em pre p ron tos pa ra n os des cu lpa r . Todos tem os cois a s de qu e pedir desculpas.

ALUNO: Eu m u ita s vezes pen s o qu e es tou s en do h on es to e s ó mais tarde é que percebo que estava enganando a mim mesmo.

JOKO: Sim . O tes te de u m bom con flito

em con tra s te com o con flito qu e ca u s a da n o

é qu e n ã o res ta m res ídu os depois . Todos s e s en tem bem m a is ta rde. Es tá tu do cla ro. Aca ba do. O clima fica agradável. É maravilhoso, mas raro.

ALUNO: Pa rece qu e exis tem a lgu m a s cois a s , n o en ta n to, qu e simplesmente não conseguimos consertar.

JOKO: Nã o es tou fa la n do de con s er ta r cois a s ; is s o é ten ta r controlar o mundo, dirigir o universo.

Page 95: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Às vezes perm ito qu e a s pes s oa s a bu s em de m im . Quando fa ço is s o, é im por ta n te fa la r e coloca r u m lim ite. Qu a n do faço isso costumo obter bons resultados.

JOKO: Tu do bem fa la r e es cla recer , s e o fizerm os com a s pa la vra s verda deira s . E s e s en t im os qu e a bu s a ra m de n ós , p recis a m os recon h ecer qu e ta lvez ten h a m os con s en t ido com es s e a bu s o. Qu a n do vem os is s o, pode vir a s er des n eces s á r io d izer qu a lqu er cois a . Em vez de ten ta r edu ca r ou s a lva r a ou tra pes s oa (o qu e n u n ca é a lgo qu e n os d iz res peito), podem os a pen a s aprender.

NÃO JULGAR

Exis te a s egu in te pa s s a gem n o Dhammapada, vers o 50 : "Qu e n in gu ém en con tre defeitos n os ou tros . Qu e n in gu ém en xergu e a s om is s ões e a s fra qu eza s a lh eia s . Ma s qu e ca da u m veja s eu s p rópr ios a tos , feitos ou n ã o". Es s e é u m a s pecto cen tra l de n os s a prática. Embora a prática possa nos tornar mais cônscios de nossa ten dên cia a ju lga r os ou tros , n a vida com u m a in da a gim os a s s im . Por sermos humanos, julgamo-nos uns aos outros. Alguém faz algo qu e n os pa rece gros s eiro, in delica do ou in s en s a to, e n ã o podem os deixa r de repa ra r n is s o. Mu ita s vezes por d ia vem os pes s oa s fazendo coisas que parecem de alguma maneira defeituosas.

Nã o é qu e todos a ja m o tem po todo da m a n eira a p ropr ia da . As pes s oa s em gera l a pen a s fa zem a qu ilo qu e n ã o qu erem os . Qu a n do fa zem o qu e fa zem , n o en ta n to, n ã o é n eces s á r io qu e a s ju lgu em os . Nã o s ou im u n e a is s o; percebo-m e ju lga n do os ou tros também. Todos fazemos isso. Por isso recomendo uma prática para n os a ju da r a n os fla gra r n o a to de ju lga r : s em pre qu e p ron u n cia rm os o n om e da ou t ra pes s oa devem os obs erva r o qu e a cres cen ta m os a es s e n om e. O qu e d izem os ou pen s a m os acerca da pes s oa ? Qu e es pécie de rótu lo u s a m os ? In s er im os a pes s oa em a lgu m a ca tegor ia ? Nin gu ém dever ia s er redu zido a u m rótu lo e, n o en ta n to, em ra zã o de n os s a s p referên cia s e a vers ões , fa zemo-lo assim mesmo.

Su s peito qu e s e você en t ra r n es s a p rá t ica des cobr irá qu e n ã o con s egu e pa s s a r cin co m in u tos s em ju lga r . É s u rp reen den te. Qu erem os qu e o com por ta m en to da ou tra pes s oa s eja a pen a s

Page 96: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a qu ilo qu e qu erem os

e qu a n do n ã o é, n ós a ju lga m os . Nos s a

vida em vigília é repleta desses julgamentos.

Pou cos de n ós a gred im os fis ica m en te os ou tros . O m eio m a is com u m de a gred ir é com a n os s a boca . Com o a lgu ém d is s e: "Exis tem dois m om en tos em qu e s e deve m a n ter a boca fech a da - n a da n do e qu a n do você es tá za n ga do". Qu a n do ju lga m os qu e os ou tros es tã o er ra dos , a ca ba m os es ta n do com a ra zã o

e

gostamos disso.

Com o d iz a pa s s a gem , dever ía m os a ten ta r pa ra o n os s o p rópr io com por ta m en to em vez de ju lga r . "Ma s qu e ca da u m veja s eu s p róp r ios a tos , feitos ou n ã o." Em vez de olh a r à volta con s ta n tem en te e ju lga r todo m u n do, veja m os a s n os s a s p róp r ia s con du ta s : o qu e fizem os e o qu e n ã o fizem os . Nã o p recis a m os n os ju lga r , m a s ba s ta obs erva r o a to. Se com eça m os a n os ju lga r , es t ipu la m os u m idea l, u m cer to m odo qu e pen s a m os deva s er o n os s o. Is so ta m bém n ã o a ju da . Precis a m os en xerga r n os s os ver -da deiros pen s a m en tos , tom a r con s ciên cia do qu e é de fa to ver -da deiro pa ra n ós . Se fizerm os is s o, irem os n ota r qu e, s em pre qu e ju lga m os , n os s o corpo s e ten s ion a . Por t rá s do ju lga m en to es tá u m pen s a m en to a u tocen tra do qu e p rodu z ten s ã o n o corpo. Com o tem po, es s a ten s ã o torn a -se-n os p reju d icia l e, in d ireta m en te; p reju d ica os ou tros . A ten s ã o n ã o é a ú n ica ca pa z de ca u s a r da n os ; os ju lga m en tos qu e expres s a m os a res peito dos ou tros (e de n ós também) causa igualmente seus danos.

Toda vez qu e d is s erm os o n om e da pes s oa é ú t il n ota r s e a firm a m os m a is do qu e u m fa to. Por exem plo, o ju lga m en to "ela é des a ten ta " va i a lém dos fa tos . Os fa tos s ã o qu e ela fez o qu e fez

por exem plo, d is s e qu e ia m e telefon a r e n ã o telefon ou . Dizer qu e ela é des a ten ta é m eu ju lga m en to pes s oa l n ega t ivo, a cres cido a o fa to. Irem os repa ra r qu e fica m os in ces s a n tem en te fa zen do es s a es pécie de ju lga m en to. A p rá t ica s ign ifica tom a r con s ciên cia dos m om en tos em qu e a gim os a s s im . É im por ta n te n ã o n egligen cia r grandes áreas de nossa vida e boa

ALUNO: Es tá cer to d izer : "Ela d is s e qu e ia telefon a r e n ã o tele-fonou"?

JOKO: Depen de de com o é d ito. Se "a pres en ta m os os fa tos " de m odo a cu s a dor , es ta m os s em dú vida em it in do u m ju lga m en to, mesmo que as palavras pareçam apenas descrições de fatos.

Page 97: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Qu a n do n ota m os os er ros dos ou t ros , é ú t il s a ber o que não fazer. De certo modo, deveríamos ser gratos por seus erros.

JOKO: Sim , é ú t il ver p rofes s ores n a s ou tra s pes s oa s . Ma s , s e n os s o a p ren d iza do im plica ver os ou tros com o "er ra dos ", a in da estamos nas malhas do julgamento.

Se n os m a n tem os a corda dos e n os des p im os de n os s a s emoções, nossa tendência é aprender. Quase sempre, porém, o que fa zem os é n os con tra r ia r de a lgu m a m a n eira . Em n os s a con tra r ieda de ju lga m os os ou tros e n ós m es m os . Am ba s a s a t i-tudes são nocivas e infrutíferas.

ALUNO: Min h a ten dên cia é fica r de b ico fech a do a res peito dos ou tros . Ma s obs ervo qu e, qu a n do fico com ra iva ou con tra r ia do, m eu s ju lga m en tos a pa recem de form a in d ireta , n u m a a t itu de qu e tom o ou em com por ta m en tos pa s s ivo-agress ivos . Pa ra m im is s o é realmente muito difícil de trabalhar.

JOKO: A fra s e cen tra l pa ra is s o é: "Qu e ca da u m veja s eu s p rópr ios a tos , feitos ou n ã o". Is s o s im ples m en te qu er d izer ob-s erva r n os s a a t itu de, n os s os pen s a m en tos , n os s o com por ta m en to. E retornar à vivência corporal básica da raiva, de fato senti-la.

ALUNA: Às vezes com eça m os a n os qu eixa r e fa zer in t r iga s a res peito do pa t rã o, lã n o t ra ba lh o. Se eu m e recu s o a pa r t icipa r , é com o s e eu fos s e a lh eia ou a r roga n te e a cred ita s s e qu e s ou m elh or que os outros.

JOKO: Es s a é u m a s itu a çã o d ifícil de s e t ra ba lh a r . Um dos s in a is da p rá t ica h a b ilidos a é es ta r p res en te s em pa r t icipa r de a ções p reju d icia is . Pa ra você, is s o poder ia s ign ifica r es ta r n u m gru po qu e ju lga e é cr ít ico, m a s perm a n ecer a cr ít ica e cu ida r para n ã o a gir de m odo a s er d iferen te ou s u per ior . Pode a con tecer . De que maneira isso poderia ser feito? O que seria útil?

ALUNO: Bom humor.

JOKO: Sim, o bom humor ajuda. O que mais?

ALUNO: Não julgar os outros que estão tendo atitudes críticas.

JOKO: Sim . Se todos os ou tros es tã o fa zen do fofoca e n ós decidim os qu e n ã o va m os a gir a s s im , p rova velm en te es ta rem os n os s en t in do s u per iores , "m a is s a n tos " qu e eles . Pode s er qu e ta m -bém h a ja ra iva con t ra eles . Se n os s a a t itu de con t iver ra iva e s en s a çã o de s u per ior ida de, es s e ju lga m en to a pa recerá . Se h ou -

Page 98: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

verm os p ra t ica do h on es ta m en te com a n os s a ra iva , n o en ta n to, ele ta lvez s eja m ín im o e n ã o cr ie p rob lem a s . Podem os a pen a s es ta r presentes no grupo de modo natural.

ALUNO: J á n otei qu e, qu a n do es tou n u m gru po on de s e fa z in t r iga ou s e cr it ica a lgu ém e eu s im ples m en te deixo qu e fa lem s em m e en volver em s u a s op in iões , é com u m eles a ca ba rem da n do a volta e ven do o ou t ro la do da qu es tã o. Qu a n do ten to in ter fer ir já n o com eço da s itu a çã o, porém , a s cr ít ica s a pen a s a u m en ta m . Se d is cu to e ten to a pon ta r a s boa s qu a lida des da pes s oa n a ber lin da , fica tudo uma confusão.

JOKO; Sim . Con form e va m os n os torn a n do m a is es cla recidos em fu n çã o de n os s a p rá t ica , n os s a ten dên cia é en con t ra r m a n eira s mais habilidosas de lidar com qualquer coisa que apareça.

ALUNO: Em lu ga r de fa la r a res peito da pes s oa cr it ica da , é ú t il retom a r o fio da con vers a com a pes s oa qu e es tá ju lga n do e m os tra r u m pou co de com preen s ã o por s eu s s en t im en tos . Por exem plo, s e a lgu ém d iz "Es s a pes s oa s em pre s e a t ra sa ", podemos d izer "Ta lvez s eja d ifícil pa ra você ter de es pera r . Vejo qu e você parece contrariado",

ALUNO: E qu a n to a ju lga m en tos pos it ivos ? Exis te u m a es cola de pen s a m en to a res peito de com o t ra ba lh a r com cr ia n ça s qu e afirm a qu e n ã o é s a u dá vel pa ra ela s rotu lá -la s de m odo a lgu m , s eja pos it iva , s eja n ega t iva m en te. Qu a n do d izem os "Com o você é u m m en in o lega l!" ou "Ma s qu e es per to!", es ta m os coloca n do-as numa caixinha.

JOKO: O m elh or é n ã o ju lga r o ou tro de jeito n en h u m . Podem os n o en ta n to a p rova r s u a s con du ta s . Pa ra u m a cr ia n ça poder ía m os d izer : "Qu e lin do des en h o!". Qu a n to m a is es pecíficos puderm os s er , m elh or . Em vez de "Belo t ra ba lh o o s eu !", podem os comentar "A introdução está realmente boa", ou "Seus exemplos de sustentação do argumento são muito pertinentes".

As cr ia n ça s s ã o m en os a m ea ça dora s pa ra n ós do qu e os a du ltos . Es pera m os deles qu e s a iba m o qu e es tã o fa zen do e por is s o es ta m os s em pre p ron tos a ju lgá -los e en con tra r s eu s defeitos. Da m es m a form a con os co: pen s a m os qu e dever ía m os s a ber a qu ilo que estamos fazendo.

ALUNO: O que faz«r quando me perceber julgando os outros?

Page 99: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Qu a n do n os fla gra rm os ju lga n do, p recis a m os repa ra r n os pen s a m en tos qu e con s t itu em es s e ju lga m en to, com o por exemplo "pen s a r qu e é u m id iota " e s en t ir a ten s ã o n o corpo. Por trás de n os s os ju lga m en tos es tá s em pre a ra iva ou o m edo. É ú t il s en t ir a ra iva ou o m edo em vez de perm it ir qu e es s a s em oções governem nossos comportamentos.

O p rob lem a é qu e gos ta m os de fa la r de m odo cr ít ico dos ou tros , e is s o ca u s a s em pre p rob lem a s . Se a lgo a con tece qu e n os in s p ira u m a n eu tra lida de im pa rcia l, em gera l lida m os m u ito bem com a s itu a çã o. Porém , a res peito de qu a s e toda s a s cois a s n ã o mantemos uma neutralidade especial. È por isso que nossa prática tem tanta importância.

ALUNO: Obs ervo qu e, s e ju lgo a pes s oa em m eu p r im eiro con ta to com ela , es s e ju lga m en to colore a pa r t ir de en tã o todo o meu relacionamento com essa pessoa. Minha tendência é depender desse julgamento e simplesmente esquecer de praticar com ele.

JOKO: Sim . Form u la m os u m a n oçã o fixa . Na p róxim a vez qu e virm os es s a pes s oa , n os s a n oçã o já es ta rá fixa e poderem os observar ainda menos aspectos a respeito de como ela realmente é.

ALUNO: Cr it ica r a pes s oa pa ra a lgu ém pa rece torn a r o ju lga m en to a in da m a is for te. Se, por exem plo, u m a ou tra pes s oa e eu con corda m os qu e a lgu ém é des a ten to, es s e ju lga m en to torn a -se sólido e difícil de ser abalado.

JOKO: Sim . Um a gra n de pa r te da qu ilo qu e den om in a m os a m iza de redu n da em ju lga m en tos e a t itu des cr ít ica s qu e tem os em comum, relativos a outras pessoas e acontecimentos.

ALUNO: Os ju lga m en tos n ã o s ã o s em pre fa ls os ? Vem os tã o pouco da outra pessoa.

JOKO: Nã o d ir ia qu e n ós es ta m os s em pre equ ivoca dos . Som os incompletos. Por exemplo: todas as pessoas são, uma vez ou outra, des a ten ta s . S im ples m en te n ã o reflet im os s obre u m a cois a do com eço a o fim ; n ã o p res ta m os toda a a ten çã o pos s ível. Ma s , qu a n do rotu la m os a lgu ém de "des a ten to", n ã o en xerga m os essas outras centenas e milhares de coisas que ele faz. Nossa tendência é n os in teres s a rm os a pen a s pelo qu e n os a feta de m a n eira d ireta . É por is s o qu e, qu a n do n os lem bra m os de n os s a in fâ n cia , s em pre lem bra m os do qu e foi ru im . Nã o tem os o m es m o in teres s e pela s cois a s boa s qu e fizera m pa ra n ós . Nos s a ten dên cia é recorda r

Page 100: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

qu a lqu er cois a qu e pa reça ter s ido a m ea ça dora. Se a lgu ém n os a gr ide, n ã o tem os in teres s e pela s ou tra s cois a s qu e ela fa z. No qu e n os d iz res peito, es s a pes s oa torn a -s e in a ceitá vel. Se n os qu eixa m os dela pa ra os dem a is e eles con corda m con os co, es tá cr ia da u m a s ólida rede de t ra n s m is s ã o de ju lga m en tos . A a t itu de n ega t iva qu e form a m os a res peito dela en ven en a o m odo pelo qu a l ela é receb ida pelos ou tros , in clu s ive por a qu eles qu e n ã o têm dela u m a exper iên cia d ireta . Por terem ou vido a fofoca , ta m bém a rejeita m . Es s e ju lga m en to cu m u la t ivo é a cois a m a is perniciosa qu e os s eres h u m a n os fa zem u n s com os ou tros . J u lga m os a s pessoas e as rejeitamos sem conhecê-las em absoluto.

Algu m a vez vocês já pa s s a ra m pela exper iên cia de ou vir a lgu ém des creven do u m a pes s oa qu e vocês n u n ca t in h a m vis to n a vida ? Sen t im os com o s e já a con h ecês s em os a n tes m es m o de vê-la pela p r im eira vez. Qu a n do a en con tra m os , con s idera m o-la totalmente diferente da descrição. É surpreendente.

ALUNO: Às vezes é tera pêu t ico con vers a r com u m a pes s oa a m iga a res peito de u m a s itu a çã o d ifícil qu e exis te en t re m im e uma pessoa. Isso sempre pode ser bom?

JOKO: Só s e es s a con vers a for es t r ita m en te con fiden cia l. E , mesm o a s s im , é m elh or a pen a s des crever o com por ta m en to da ou tra pes s oa em term os qu e s e refira m a os fa tos , pa ra en tã o mencionar seus sentimentos pessoais a respeito. Precisamos tomar m u ito cu ida do. Se con s egu irm os perm a n ecer n o "Obs ervo qu e es tou pen s a n do qu e ela é in s en s a ta ", ou "Sin to-m e rea lm en te contrar ia do e ten s o", ót im o. Ma s qu a n do es cor rega m os pa ra "Ela é mesmo uma desmiolada, não é?" perdemos a prática de vista.

ALUNO: Pen s o qu e é im por ta n te lem bra r o qu e você a s s in a lou qu a n do fa la m os rea lm en te m a l de a lgu ém , pois a s s im es ta m os a gred in do a n ós m es m os . Há u m a con tra çã o qu e ocorre qu a n do falo mal de alguém ou mesmo só penso mal.

JOKO: Sim , n os s o corpo e n os s a m en te fica m con t ra ídos . Sem pre pa ga m os por is s o, de m u ita s m a n eira s . As ou tra s pes s oa s também pa ga m . Su giro qu e, n o m in u to em qu e o n om e de a lgu ém es ca pa de s u a boca , você p res te a ten çã o n o qu e a cres cen ta a es s e n om e. O qu e d is s em os foi u m fa to? Ou é u m ju lga m en to? Por exem plo, s e Lis a deixou a lgu m a cois a n o ca m in h o e eu pos s o t ropeça r , podem os d izer "Lis a deixou u m a cois a n o ch ã o on de pos s o ta lvez t ropeça r . É m elh or eu tom a r cu ida do", podem os d izer

Page 101: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

"Lisa é um problema. É tão descuidada!". Esse não é um fato, é um julgamento.

ALUNO: Meu s ju lga m en tos pa recem m u ito pers is ten tes . Atra ves s o per íodos n os qu a is ten h o pen s a m en tos n ega t ivos a res peito de u m a pes s oa vezes e vezes s egu ida s . Pa rece qu e rotu lo es s e pen s a m en to u m m ilh ã o de vezes e con t in u o perden do-o ou t ro milhão de vezes.

JOKO: Sim . Ta lvez s eja p recis o qu e o fa ça m os m u ita s e m u ita s vezes antes que essa tendência se desfaça.

ALUNO; Es tou in t r iga do pela d iferen ça en t re fa tos e ju lga m en tos . Va m os s u por qu e a lgu ém rea lm en te m e a torm en te o tem po todo. Se eu d is s er : "Ela es tá s em pre m e a torm en ta n do", is s o é um fato ou um julgamento?

JOKO: A d iferen ça es tá em com o o d izem os e n o s en t im en to qu e es tá a li a t rá s . Se es ta m os obs erva n do: "É verda de, s im . Ela m e a torm en ta ", is s o é u m fa to. Se n os qu eixa m os , é u m ju lga m en to. O tom da voz é uma das pistas.

ALUNO: Se n os fla gra m os ju s to n a qu ele m om en to em qu e ía m os com eça r a ju lga r u m a ou tra pes s oa e n ã o d izem os n a da , parece que nossa disposição é, naquele momento, sermos nada.

JOKO: Is s o é verda de. Qu a n do ju lga m os , reforça m os n os s a ident ida de es pecia l com o pes s oa qu e ju lga . Qu a n do m a n tem os a boca fechada, temos de desistir dessa identidade por um momento. E por is s o qu e a técn ica qu e s u ger i é rea lm en te t rein a r com a qu ilo que o budismo chama de "não-eu".

ALUNO: Percebo qu e, qu a n do en con tro pes s oa s qu e des con h eço, s e eu n ã o d is s er n a da de p ropós ito a res peito dela s , n ã o pa rece qu e eu con s iga m e a fer ra r a op in iões a res peito dela s . Is s o m e perm ite perceber com o é im por ta n te fa la r pa ra form u la r julgamentos.

JOKO: Sim , em bora ta m bém pos s a m os form u la r ju lga m en tos s em d izer u m a s ó pa la vra . Ma is u m a vez, p recis a m os obs erva r os ju lga m en tos qu e t iverm os form a do. Precis a m os lem bra r qu e a m a ior pa r te da p rá t ica pode s er res u m ida n o term o delicadeza. Em qualquer situação, o que é delicadeza?

Page 102: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

IV. Mudança

PREPARO DO TERRENO

De tem pos em tem pos , u m de m eu s a lu n os pa s s a por u m a d is creta revira volta , u m a pequ en a percepçã o es pecia l ou kensho. Algu n s cen tros zen con cen tra m -s e n es s a s exper iên cia s e dã o-lhes m u ita ên fa s e. Is s o a qu i n ã o a con tece. As vivên cia s s ã o in teres s a n tes : s e, por u m m om en to, a lgu ém en tra n o p res en te a bs olu to, ocor re u m a m u da n ça . Es s a m u da n ça n ã o du ra , s em pre es cor rega m os de volta pa ra os n os s os m eios u s u a is de fa zer a s cois a s . Ma s , por u m cer to tem po, ta lvez u m s egu n do, ta lvez u m a h ora , ta lvez s em a n a s , tu do o qu e era u m prob lem a n ã o o é m a is . En ferm ida des per tu rba dora s e lu ta s de todos os t ipos de repen te s eren a m . Por u m in s ta n te, a vida ficou de pon ta -ca beça . Vem os a s cois a s com o ela s de fa to s ã o. Ter es s a s exper iên cia s n ã o s ign ifica m u ito em s i. Ma s pode a s s in a la r -n os o ca m in h o pa ra es ta rm os n o p res en te a bs olu to ca da vez m a is . Es ta r n o p res en te é o pon to cen tra l da p rá t ica s en ta da e da p rá t ica em gera l: a ju da -n os a s er m a is s en s a tos d ia n te da vida , m a is com pa s s ivos , m a is or ien ta dos ru m o a o qu e p recis a s er feito. Torn a m o-n os m a is eficien tes em n os s o t ra ba lh o. Es s es res u lta dos s ã o m a ra vilh os os ; n ã o obs ta n te, não podemos nos empenhar em consegui-los ou fazê-los acontecer. O m á xim o qu e n os é pos s ível é p repa ra r a s con d ições n eces s á r ia s . Precis a m os ter cer teza de qu e o s olo es tá bem prepa ra do, de qu e es tá r ico, s olto e fér t il, pa ra qu e, qu a n do a s em en te ca ir , b rote ra p ida m en te. A ta refa do a lu n o n ã o é ca ça r res u lta dos , m a s es ta r n o p repa ro do ca m in h o. Com o d iz a Bíb lia : "Prepa ra o ca m in h o para o Senhor". Esse é o nosso trabalho.

Em cer to s en t ido, o n os s o ca m in h o n ã o é n en h u m ca m in h o. O ob jet ivo n ã o é ch ega r em n en h u m a pa r te. Nã o h á gra n des m is tér ios , n a verda de. O qu e p recis a m os fa zer é a lgo d ireto e objet ivo. Nã o qu ero d izer com is s o qu e s eja fá cil; o "ca m in h o" da p rá t ica n ã o é u m a es t ra da livre. Es tá en tu lh a da de pedra s pon t ia gu da s qu e podem fa zer -n os t ropeça r ou ra s ga r n os s os s a -pa tos . A vida em s i é rep leta de obs tá cu los . En con trá -los é o qu e em gera l fa z a s pes s oa s irem a os cen tros zen . O ca m in h o da vida

Page 103: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa rece s er p r in cipa lm en te com pos to por d ificu lda des , por cois a s qu e n os dã o t ra ba lh o. Apes a r d is s o, qu a n to m a is tem po p ra t ica -m os , m a is com eça m os a en ten der qu e a qu ela s pedra s pon t ia gu das do caminho são de fato jóias preciosas, pois nos ajudam a preparar a s con d ições a dequ a da s pa ra n os s a s vida s . As pedra s são d iferen tes con form e a pes s oa . Um a pode p recis a r des es pera da m en te de m a is tem po s ozin h a ; ou tra pode p recis a r des es pera da m en te de m a is tem po com a s ou tra s pes s oa s . A ped ra pontiagu da pode s er t ra ba lh a r com u m a pes s oa des a gra dá vel, ou viver com a lgu ém d ifícil de s e leva r . As ped ra s pon t ia gu da s podem ser seus filhos, seus pais, qualquer pessoa. Não se sentir bem pode s er s u a pedra pon t ia gu da . Perder o em prego, a r ru m a r ou tro, preocupar-se com isso. Existem pedras pontiagudas em todo lugar. O qu e m u da com os a n os da p rá t ica é ch ega r a s a ber a lgu m a cois a qu e você n ã o s a b ia a n tes : qu e n ã o exis tem pedra s pon t ia gu da s , a es t ra da es tá cober ta de d ia m a n tes . Qu a is s ã o ou tra s pedra s pontiagudas que, na realidade, são diamantes?

ALUNA: A morte do meu marido.

ALUNO: Prazos.

ALUNO: Doenças.

JOKO: Sim , m u ito bem . O qu e é n eces s á r io pa ra n ós , s eres human os , n os da rm os con ta de qu e a s pedra s pon t ia gu da s de n os s a s vida s s ã o n a rea lida de d ia m a n tes ? Qu a is s ã o a lgu m a s da s condições que nos tornam possível praticar?

Qu a n do s om os bem n ova tos em term os de p rá t ica , pode s er im pos s ível qu e en xergu em os u m gra n de t ra u m a com o u m presente, a pedra pon t ia gu da com o u m d ia m a n te. Em gera l é m elh or com eça r a p rá t ica n u m a época em qu e a vida da pes s oa n ã o es tá m u ito revira da . Por exem plo, qu a n do a m u lh er a ca bou de ga n h a r u m bebê, o p r im eiro m ês n ã o é u m a boa h ora pa ra com eça r a prática

com o eu m es m a bem m e lem bro. É a con s elh á vel começa r a p ra t ica r n u m per íodo m a is ca lm o. É m elh or es ta r em con d ições de s a ú de ra zoá veis . Um a s a ú de u m pou co p recá r ia n ã o elim in a a pos s ib ilida de da p rá t ica , m a s en ferm ida des gra ves tornam-n a m u ito d ifícil de com eça r . Aju da ta m bém a pes s oa es ta r em con d ições ra zoa velm en te boa s de con d icion a m en to fís ico. A prática é fisicamente cansativa.

Page 104: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Qu a n to m a ior o tem po de n os s a p rá t ica , m en os im por ta n tes s ã o es s es p ré-requ is itos . Ma s s em eles , n o in ício, a s ped ra s tornam-s e gra n des dem a is . Des s e jeito n ã o con s egu im os en xergar ca m in h o n en h u m pa ra p ra t ica r . Qu a n do a pes s oa ficou a n oite in teira a corda da com u m bebê ch ora n do e s ó con s egu iu dorm ir du a s h ora s , es s a n ã o é u m a boa h ora pa ra s e fa zer z az en , S e o corpo da pes s oa es tá s e des peda ça n do ou s e ele es tá in feliz, também n ã o es tá n u m bom m om en to pa ra com eça r . Qu a n to m a is p ra t ica rm os , m a is a s d ificu lda des da vida qu e s e n os a p res en ta m podem s er con s idera da s verda deira s jóia s . Ca da vez m a is , os p rob lem a s n ã o ca n cela m a p rá t ica , m a s , em vez d is s o, es t im u lam-n a . Em lu ga r de pen s a r qu e é a p rá t ica qu e é d ifícil dem a is , qu e tem os m a is p rob lem a s do qu e s u por ta m os , vem os qu e os p rob lem a s em s i s ã o a s jóia s , e ded ica m o-n os a com eça r com eles u m t ra ba lh o qu e n u n ca a n tes pu dem os s on h a r . Em m in h a s en t revis ta s com os a lu n os , ou ço con s ta n tes rela tos a res peito des s a s m u da n ça s : "Há t rês a n os , eu n ã o ter ia con s egu ido de jeito n en h u m da r con ta des ta s itu a çã o, já h oje...". Es s a é a revira volta , o p repa ro do ter ren o. Is s o é o qu e o corpo e a m en te p recis a m pa ra de fa to a con tecer a t ra n s form a çã o. Nã o é qu e o p rob lem a des a pa reça ou qu e a vida "m elh ore"; a vida t ra n s forma-se lentamente

e a s pedra s pon t ia gu da s qu e od ia m os s e torn a m jóia s bem -vin da s . Pode s er qu e n ã o exu ltem os qu a n do virm os qu e elas aparecem em nosso caminho, mas valorizamos a oportunidade qu e rep res en ta m e, s en do a s s im , a colh em o-la s em vez de n os es qu iva rm os dela s . É es s e o fim de n os s a s qu eixa s a res peito da vida . Até a qu ela pes s oa d ifícil, qu e cr it ica você, qu e n ã o res peita a sua opinião, ou o que for todos têm alguém ou alguma coisa que é a pedra n o ca m in h o. Es s a é u m a pedra p recios a : é u m a oportunidade, uma jóia para recolher.

Nin gu ém en xerga a jóia logo de ca ra . Nin gu ém a vê por com pleto. Às vezes podem os en xergá -la n u m a á rea , m a s n ã o em ou tra . ,As vezes vem os a jóia e em ou tra s n ã o con s egu im os localizá-la. Podemos nos recusar de modo taxativo a vê-la; pode ser que não queiramos ter nada que ver com ela.

Mes m o a s s im devem os n os h a ver o tem po todo com es s e p rob lem a bá s ico. Porqu e s om os h u m a n os , u m a gra n de pa r te do tem po n ós n em qu erem os fica r s a ben do dela . Por qu ê? Porqu e havermo-n os com ela s ign ifica u m a vida a ber ta pa ra a s d ificu l-da des em vez de fu ga d ia n te da s a dvers ida des . Em gera l, es ta m os

Page 105: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ten ta n do s u bs t itu ir a lgu m a cois a pela d ificu lda de. Qu a n do es ta m os ch eios dos filh os , por exem plo, gos ta r ía m os de devolvê-los e receber ou tros n ovos . Mes m o qu a n do con t in u a m os com eles , en con tra m os m a n eira s s u t is de "devolvê-los ", em lu ga r de perm a n ecer com a rea lida de de qu em s ã o. Lida m os com todos os ou tros p rob lem a s da m es m a form a : tem os m a n eira s s u t is de "devolver" quase tudo, de escolher não lidar com aquilo.

Engalfinharmo-n os com a rea lida de de n os s a vida fa z pa r te da in term in á vel p repa ra çã o do ter ren o. Às vezes p repa ra m os bem u m pequ en o s etor do ter ren o. Podem os ter b reves vis lu m bres de ilu m in a çã o, m om en tos qu e a con tecem de repen te. Ain da a s s im , exis tem m u itos m a is a cres de ter ra qu e n ã o fora m cu lt ivados

en tã o con t in u a m os in do a d ia n te, a b r in do m a is e m a is a n os s a vida . É is s o tu do qu e de fa to im por ta . A vida h u m a n a dever ia s er com o u m voto, ded ica do à des cober ta do s ign ifica do de s e viver . O s ign ifica do do viver n ã o é de fa to com plica do, m a s n os a pa rece com o qu e en volto por u m véu qu e é feito do m odo com o en xerga m os n os s a s d ificu lda des . É p recis o a m a is pa cien te da s p rá t ica s pa ra com eça rm os a en xerga r is s o, pa ra des cobr irm os qu e as pedras pontiagudas são verdadeiras jóias.

Na da d is s o tem a lgo qu e ver com ju lga m en tos , com s erm os "boas" ou "más" pessoas. Apenas fazemos o melhor que podemos, a ca da m om en to da do. O qu e n ã o vem os , n ã o vem os . Es s e é o "x" da p rá t ica : a m plia r o "bu ra qu in h o da fech a du ra " qu e por vezes en con tra m os , pa ra qu e s e torn e ca da vez m a is la rgo. Nin gu ém o loca liza o tem po todo. Eu com cer teza n ã o. As s im , con t in u a m os tentando enxergar do mesmo jeito.

De cer to m odo, a p rá t ica d iver te: olh a r pa ra a m in h a p rópria vida e s er h on es ta a res peito dela é d iver t ido. É d ifícil, h u m ilh a n te, des en cora ja dor ; em cer to s en t ido, porém , é en gra ça do, porqu e é es ta r viva . Ver a m im e à m in h a vida com o s ã o rea lm en te é en gra ça do. Depois de todo o em pen h o, a evita çã o, a n ega çã o e os des vios por ou tros ca m in h os , é p rofu n da m en te s a t is fa tór io qu e, por u m s ó s egu n do, es teja m os com a vida ta l com o ela é. Es s a s a t is fa çã o é o p rópr io cern e qu e n os con s t itu i. A pes s oa qu e s om os es tá a lém da s palavras

a pen a s o poder a ber to da vida , manifestando-s e s em pre em toda s a s es pécies de cois a s in teres s a n tes , m es m o qu e s eja em n os s a p rópr ia in felicida de e a t ra vés de lu ta s . As a dvers ida des s ã o a o m es m o tem po ter r íveis e curativas. Isso é o que significa preparar o terreno. Não precisamos

Page 106: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n os p reocu pa r a res peito dos pequ en os m om en tos ou a ber tu ra s qu e ir rom pem . Se t iverm os u m s olo fér t il e bem prepa ra do, podemos semear qualquer coisa, que crescerá.

Qu a n do efetu a m os es s e t ra ba lh o com toda a pa ciên cia , chega m os n u m a s en s a çã o d iferen te de n os s a s vida s . Há pou co tem po ou vi de u m a lu n o qu e m ora lon ge e fa la va com igo a o telefon e qu e n ã o con s egu ia a cred ita r n o qu e es ta va a con tecen do. "Qu a s e o tem po todo a m in h a vida é u m a gos tos u ra ." Pen s ei com igo m es m a , s im , qu e bom , m a s ... a v id a é m u ito a gra dá vel. Um a vida a gra dá vel in clu i pa decim en tos a fet ivos , decepções , lu to. Faz parte do fluxo da vida permitir que tais momentos transcorram. Eles vêm e vã o, e o lu to fin a lm en te s e t ra n s form a em a lgu m a ou tra cois a . Ma s , s e fica rm os n os qu eixa n do, a pega dos e r ígidos (qu e é com o gos ta m os de fa zer ), en tã o terem os m u ito pou co qu e des fru ta r . Se tem os s ido con s cien tes do p roces s o de n os s a s vida s , in clu s ive dos m om en tos qu e od ia m os , e tem os en tã o a con s ciên cia des s e ódio "Não quero fazer isso, mas vou fazê-lo do mesmo jeito" , a p rópr ia tom a da de con s ciên cia é a vida em s i. Qu a n do perm a n ecem os n es s a percepçã o con s cien te n ã o tem os a qu ela s en s a çã o rea t iva a res peito da vivên cia

es ta m os s im ples m en te viven cia n do. En tã o, n u m da do m om en to, com eça m os a en xerga r : "Oh , m a s qu e cois a ter r ível

e a o m es m o tem po qu e delícia ". Va m os a pen a s s egu in do a d ia n te, p repa ra n do o ter ren o. É o qu a n to basta.

EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS

A ca da s egu n do, es ta m os n u m a en cru zilh a da en t re a in con s ciên cia e a percepçã o con s cien te, en t re es ta r a u s en te e es ta r p res en te, ou en t re a s exper iên cia s e o viven cia r . A p rá t ica d iz res peito a s a ir do â m bito da s exper iên cia s e en t ra r n o da s vivên -cias. O que queremos dizer com isso?

Nos s a ten dên cia é n os exceder com o termo experiência e, qu a n do d izem os "Fiqu e em s u a exper iên cia ", es ta m os fa la n do de m a n eira des cu ida da . Pode n ã o s er p roveitos o s egu ir es s e con s elh o. Em gera l vem os n os s a s vida s com o u m a s ér ie de exper iên cia s . Por exem plo, ten h o a exper iên cia de u m a ou ou tra pes s oa , de m eu a lm oço ou de m eu es cr itór io. Des s e pon to de vis ta , m in h a vida

Page 107: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n a da m a is é qu e ter u m a exper iên cia a pós a ou tra . En volven do ca da exper iên cia pode h a ver u m d is creto h a lo ou véu em ocion a l n eu rót ico. Em gera l, es s e véu a s s u m e a form a de m em ór ia s , fa n ta s ia s , es pera n ça s pa ra o fu tu ro

a s a s s ocia ções qu e fa zem os

com a exper iên cia , com o res u lta do de n os s os con d icion a m en tos a n ter iores . Qu a n do fa zem os zazen, n os s a s exper iên cia s podem s er dom in a da s por n os s a s recorda ções , a s qu a is podem s er arrebatadoras.

Algo er ra do com is s o? Os s eres h u m a n os realmente têm recorda ções , fa n ta s ia s , es pera n ça s , is s o é n a tu ra l. Qu a n do reves -t im os es s a s exper iên cia s com ta is a s s ocia ções , n o en ta n to, ela s s e torn a m u m ob jeto: u m s u bs ta n t ivo em lu ga r de u m verbo. Sen do assim , n os s a vida s e torn a en con tra r u m ob jeto depois do ou tro: pessoas, o almoço, o escritório. As recordações e as esperanças são a lgo pa recido: a vida s e torn a u m a s ér ie de "is s os " e "a qu ilos ". Cos tu m a m os ver n os s a vida com o en con tros com cois a s qu e existem "lá fora ". A vida torn a -s e du a lis ta : s u jeitos e ob jetos , eu e as outras coisas.

Nã o h á n a da de er ra do com es s e p roces s o

a m en os qu e a cred item os n ele, pois , qu a n do de fa to a cred ita m os qu e es ta m os o d ia in teiro en con tra n do ob jetos , torn a m o-n os es cra viza dos . Por n u ê? Porqu e qu a lqu er ob jeto "lá fora " terá u m d is creto reves t i-m en to de ton a lida de em ocion a l. E en tã o rea gim os em term os de n os s a s a s s ocia ções em ocion a is . No en s in o zen clá s s ico, s om os es cra vos da cob iça , da ra iva e da ign orâ n cia . Ver o m u n do exclus iva m en te por es s e p r is m a é es cra viza dor . Qu a n do n os s o mundo consiste em ob jetos , d ir igim os n os s a vida s egu n do a qu ilo qu e es pera m os de ca da ob jeto: "Será qu e ele gos ta de m im ?"; "Is s o m e ben eficia de a lgu m a form a ?"; "Devo tem ê-la ?". Nos s a h is tór ia e nossas recorda ções a s s u m em o com a n do, e d ivid im os o m u n do em coisas a serem evitadas e coisas a serem alcançadas.

O p rob lem a com es s e t ipo de vida é qu e a qu ilo qu e m e beneficia agora pode ferir-me depois e vice-versa. O mundo está em con s ta n te m u da n ça e por is s o n os s a s a s s ocia ções n os des orientam. Nã o h á a m en or s egu ra n ça n u m m u n do de ob jetos . Es ta m os s em pre em es ta do de a ler ta e des con fia n do a té m es m o da qu ela s pes s oa s qu e d izem os a m a r e de qu em n os m a n tem os p róxim os . En qu a n to a ou tra pes s oa for u m ob jeto pa ra n ós , podem os es ta r certos de que não haverá amor ou compaixão genuínos entre nós.

Page 108: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Se ter exper iên cia s é o n os s o cot id ia n o, qu a l é o ou tro m u n do, o ou tro b ra ço da en cru zilh a da ? Qu a l é a d iferen ça en t re exper iên cia s e vivên cia s ? Qu a l é o ou vir , o toca r , o s a borea r , o ver etc. genuínos?

Qu a n do ocorre a vivên cia , n a qu ele m om en to n ã o s e dá a lgo n u m tem po e n u m es pa ço. Nã o pode s er a s s im , pois , qu a n do ocorre tem po e es pa ço, foi cr ia do u m ob jeto da exper iên cia . Qu a n do toca m os , olh a m os e ou vim os , es ta m os cr ia n do o m u n do do tem po e do es pa ço, m a s a vida em s i

a qu ela qu e vivem os n ã o

está no espaço e no tempo, ela é só vivências. O mundo do tempo e do es pa ço a con tece qu a n do o viven cia r s e redu z a u m a s ér ie de exper iên cia s . No p recis o m om en to em qu e s e es cu ta a lgo, por exem plo, exis te s ó o ou vir , qu e cr ia o s om do a viã o, ou do qu e s eja . Tâ p , tâ p , tâ p , tâ p ... exis te es pa ço en tre ca da ba t ida e ca da u m a dela s é u m ou vir a bs olu to. Es s a é a n os s a vida , e a s s im cr ia m os o n os s o m u n do. Es ta m os cr ia n do-o com todos os n os s os s en t idos e com ta n ta ra p idez qu e n ã o n os é pos s ível a com pa n h a r o p roces s o. O m u n do de n os s a s exper iên cia s es tá s en do cr ia do do n a da , segundo a segundo.

No s erviço qu e a ten dem os d iz u m a da s ded ica tór ia s : "Mu -da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida ". Viven cia r , viven cia r , vivenciar

m u da n ça , m u da n ça , m u da n ça . "Mu da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida e a s s im a rea lida de é exib ida em toda s a s s u a s m ú lt ip la s form a s . O h a b ita r s os s ega da m en te en qu a n to m u da a s i m es m o liber ta todos os s eres s en s íveis s ofredores e proporciona-lh es gra n de con ten ta m en to." "O h a b ita r s os s ega da -m en te en qu a n to m u da a s i m es m o" qu er d izer s en t ir a pu ls a çã o da dor em m in h a s pern a s , ou vir o s om do ca r ro: a pen a s o viven cia r . Apen a s h a b ita r n a p rópr ia exper iên cia . Até m es m o a dor es tá m u da n do m in u s cu la m en te, s egu n do a s egu n do. "O h abitar s os s ega da m en te en qu a n to m u da a s i m es m o liber ta todos os s eres sensíveis sofredores e proporciona-lhes grande contentamento."

Se es s e p roces s o fos s e cla r ís s im o, n ã o ter ía m os a m en or n eces s ida de de p ra t ica r . O es ta do de ilu m in a çã o é n ã o ter expe-r iên cia s ; em vez d is s o é u m a a u s ên cia de toda s a s exper iên cia s . O es ta do de ilu m in a çã o é o viven cia r pu ro e in ta cto. Is s o é inteiramente diferente de se "ter uma experiência de iluminação". A ilu m in a çã o é a dem oliçã o de toda s a s con s t ru ída s exper iên cia s de pen s a m en tos , fa n ta s ia s , recorda ções e es pera n ça s . Fra n ca m en te, n ã o es ta m os in teres s a dos em dem olir n os s a s vida s ta l com o a

Page 109: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

con h ecem os . Dem olim os a s fa ls a s es t ru tu ra s de n os s a s vida s rotu la n do n os s os pen s a m en tos , d izen do pela m ilés im a vez "Pen s a m en to de qu e is s o e a qu ilo va i a con tecer". Depois de o term os t ido m il vezes , a ca ba m os en xerga n do o qu e é. É a pen a s en ergia pu ra rodop ia n do a pa r t ir de n os s o con d icion a m en to s em a m en or rea lida de. Nã o exis te u m a verda de in t r ín s eca n is s o; é pu ra mudança.

Pa ra n ós é fá cil fa la r des s e p roces s o, m a s n ã o exis te n a da em qu e es teja m os m en os in teres s a dos qu e n a dem oliçã o de n ossas es t ru tu ra s de fa n ta s ia . Tem os o m edo s ecreto de qu e s e a s demolirmos todas seremos nós mesmos demolidos.

Exis te u m a a n t iga h is tór ia s u fi a res peito de u m h om em qu e deixou ca ir s u a s ch a ves n o la do es cu ro da ru a cer ta n oite, cru za n do pa ra a ou tra ca lça da on de h a via lu z, on de poder ia en xerga r a s ch a ves . Qu a n do u m a m igo pergu n tou por qu e es ta va procurando debaixo do facho de luz, em vez de no lugar onde tinha deixa do a s ch a ves ca írem , ele res pon deu ; "Es tou olh a n do a qu i porqu e tem m a is lu z''. É is s o o qu e fa zem os com a n os s a vida : referên cia con h ecida é a qu ela qu e n os s erve pa ra olh a r , Se tem os u m prob lem a , s egu im os t ra jetos fa m ilia res de s olu çã o: pen s a r , rem oer , a n a lis a r ,- m a n ter a lou cu ra de n os s a s vida s em ordem porque é isso que estamos acostumados a fazer. Não tem nenhuma im por tâ n cia qu e n ã o dê cer to. Apen a s fica m os a in da m a is determ in a dos a con t in u a r p rocu ra n do em ba ixo do pos te de lu z. Nã o es ta m os in teres s a dos n a qu ela vida qu e es tá fora do es pa ço e do tem po, con s ta n tem en te cr ia n do o m u n do do es pa ço e do tem po. Nã o es ta m os in teres s a dos n is s o; a liá s , is s o n os a s s u s ta . O qu e n os im pele a a ba n don a r es s e m elod ra m a , a s en ta r com es s a con fu s ã o em pra t ica r? No fu n do, t ra ta -s e en fim do in côm odo com qu e tem os de n os h a ver n a m a n eira com o leva m os a n os s a vida . Além da vida de exper iên cia s qu e s e têm , exis te a vida viven cia da , u m a vida de com pa ixã o e con ten ta m en to. Pois a verda deira com pa ixã o com o o verda deiro p ra zer n ã o s ã o cois a s a s erem exper im en ta da s . Nos s o verda deiro in s t ru tor é a pen a s es te: m u da r , m u da r , m u da r ; viven cia r , viven cia r , viven cia r . O m es t re n ã o es tá n o es pa ço e n o tempo

e n a da m a is é qu e es pa ço e tem po. Nos s a vivên cia da vida ta m bém é cr ia r a p rópr ia vida . "Mu da n ça in ces s a n te fa z gira r a roda da vida e a s s im a rea lida de é exib ida em s u a s m u ita s formas."

Page 110: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Um poem a de W. H. Au den ca p ta a es s ên cia de qu a s e tu do que constitui nosso estado habitual:

Preferiríamos nos arruinar a mudar,

Preferiríamos morrer em nosso pavor

A subir pela cruz do momento

E deixar nossas ilusões morrerem.

Prefer ir ía m os a n tes n os a r ru in a r a m u da r *

m es m o qu e m u da r s eja a es s ên cia do qu e n ós s om os . Prefer ir ía m os m orrer em noss a a n s ieda de, em n os s o m edo, em n os s a s olidã o a s u b ir pela cru z do m om en to e deixa r qu e a li n os s a s ilu s ões m orres s em . E a cru z é ta m bém a en cru zilh a da , a es colh a . Es ta m os a qu i pa ra fa zer essa escolha.

O DIVÃ DE GELO

Qu a n do viven cia m os , perdem os n os s o relacionamento aparentem en te du a lis ta com a s ou tra s cois a s e pes s oa s qu e é "Eu vejo você, com en to a s eu res peito, ten h o pen s a m en tos a cerca de você e de m im ", ou o qu e s eja . O rela cion a m en to du a lis ta n ã o é d ifícil de s er com en ta do, m a s o rela cion a m en to n ã o-dual

o vivenciar

é m a is d ifícil de des crever . Qu ero con s idera r com o n os exim im os de viver de m a n eira em pír ica , com o n os expu ls a mos do jardim do Éden.

En qu a n to cres ce, todo s er h u m a n o decide qu e p recis a de u m a es t ra tégia porqu e n ã o podem os cres cer s em depa ra r com opos ições qu e p rocedem de fon tes qu e pa ra n ós s ã o "n ã o-eu ", de fon tes qu e n os pa recem s er extern a s . Mu ita s vezes s om os con tra r ia dos por pa is , a m igos , pa ren tes e ou tra s pes s oa s . Algu mas vezes es s a a pa ren te opos içã o é in ten s a ; em ou tra s , é moderada ou s u a ve. Ma s n in gu ém cres ce s em des en volver u m a es t ra tégia pa ra lidar com essa oposição.

* W. H. Auden, extraído de "The Age of Anxiety", in Collected Poems, ed. por Edward Mendelson, Nova York: Random House, 1976, p. 407.

Page 111: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Podem os decid ir qu e a m elh or opçã o pa ra s e con s egu ir u m a s obrevivên cia a gra dá vel é torn a r -s e u m a pes s oa a da p tá vel, "a gra dá vel*'. Se is s o n ã o pa rece fu n cion a r , podem os a pren der a a ta ca r os ou tros a n tes qu e eles n os a gr ida m , ou bem recu a m os . Exis tem , por ta n to, t rês es t ra tégia s p r in cipa is pa ra lida rm os com a opos içã o: con form a r-s e em a gra da r , a ta ca r ou recu a r . Todo m u n do emprega uma ou mais dessas estratégias de alguma maneira.

Para conseguirmos manter nossa estratégia, temos de pensar. Sen do a s s im , a cr ia n ça va i ca da vez con fia n do m a is em s eu s ra ciocín ios pa ra ela bora r es s a es t ra tégia . Toda s itu a çã o ou pes soa em s eu ca m in h o com eça a s er a va lia da do pon to de vis ta da es t ra tégia es colh ida . Depois de a lgu m tem po t ra ta m os o m u n do todo com o s e es t ives s e em ju lga m en to e pergu n ta m os : "Es s a pes s oa ou a con tecim en to irá m e fer ir?". Em bora pos s a m os for -mulá-la com s or r is os e civilida de, es s a qu es tã o n os ocorre d ia n te de tudo que encontramos.

Com o tem po a ca ba m os a per feiçoa n do a n os s a es t ra tégia a ta l pon to qu e n ã o a iden t ifica m os m a is con s cien tem en te; a gora es tá n o corpo. Por exem plo, va m os s u por qu e des en volvem os u m a es t ra tégia de recu o. Qu a n do depa ra m os com a lgo ou com a lgu ém , ten s ion a m os o corpo; es s a é a res pos ta h a b itu a l. Podemos ten s ion a r n os s os om bros , n os s o ros to, n os s o es tôm a go ou a lgu m a ou tra pa r te do corpo. O es t ilo pa r t icu la r é ú n ico de ca da pes s oa . E n em s equ er s a bem os qu e es ta m os fa zen do a s s im porqu e, tã o logo a con tra çã o s e dê, des en rola -s e em ca da célu la de n os s o corpo. Nã o tem os de s a ber a res peito d is s o; es tá s im ples m en te a li. Em bora a res pos ta s eja in con s cien te, torn a n os s a vida des a gra dá vel porqu e é u m recu o d ia n te da vida e u m d is ta n cia r -se dela. A contração dói.

Mes m o a s s im , todos s e con tra em . Mes m o qu a n do pen s a mos qu e es ta m os n u m m om en to de rela t iva felicida de, podem os s er ca pa zes de detecta r u m a leve ten s ã o pelo corpo. Nã o é n a da de ext ra ord in á r io e pode s er m u ito d is creta . Qu a n do tu do es tá a n os s o fa vor , n ã o n os s en t im os m a l, m a s a leve con tra çã o n u n ca ces s a . Es tá s em pre a li, em toda s a s pes s oa s qu e exis tem s obre a face da Terra.

As cr ia n ça s a p ren dem a ela bora r s u a s es t ra tégia s in corpo-ra n do tu do o qu e lh es a con tece n es s a referên cia pa ra s eu s is tem a pessoa l. Nos s a s percepções torn a m -s e s elet iva s , in corpora n do os

Page 112: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

even tos qu e s e a ju s ta m a o n os s o s is tem a e elim in a n do os qu e n ã o. Um a vez qu e o s is tem a tem a p reten s ã o de n os m a n ter a s a lvo e s egu ros , n ã o tem os n en h u m in teres s e em en fra qu ecê-lo com informações con tra d itór ia s . Na época em qu e a t in gim os a m a tu r ida de, es s e s is tem a é n ós m es m os . É a qu ilo qu e den om in a -mos ego. Vivem os a pa r t ir dele, ten ta n do loca liza r pes s oa s , s i-tu a ções , em pregos qu e ven h a m a con firm a r n os s a es t ra tégia , evitando aqueles que a ameacem.

Ta is m a n obra s , n o en ta n to, n u n ca s ã o com pleta m en te s a t is -fa tór ia s porqu e en qu a n to viverm os ja m a is con s egu irem os s a ber com exa t idã o o qu e irá a con tecer em s egu ida . Mes m o qu e t ivés -semos a maior parte de nossa vida sob controle, nunca saberíamos com o a lca n ça r es s e con h ecim en to

e n ós s a bem os qu e n ã o s a bem os . As s im , s em pre exis te u m elem en to de m edo. Ele tem de es ta r p res en te. Sem s a ber o qu e fa zer , a pes s oa n orm a l bu s ca em toda pa r te por u m a res pos ta . Tem os u m prob lem a e, n a rea lida de, n ã o s a bem os do qu e s e t ra ta . A vida s e torn a pa ra n ós a p rom es s a que jamais é cumprida porque a resposta não nos satisfaz. E nesse ponto que podemos começar a prática. Só uns poucos felizardos na fa ce des te p la n eta com eça m a en xerga r o qu e p recis a s er feito pa ra s e recu pera r o ja rd im do Éden , qu e é o n os s o Eu em funcionamento genuíno.

Ta lvez con s iga m os a r ru m a r u m com pa n h eiro qu e é s im -p les m en te m a ra vilh os o (em pa r t icu la r n os rela cion a m en tos , a ilu s ã o rein a s obera n a ). Ca s a m o-n os ou va m os viver com es s a pes s oa e... epa ! Se es ta m os p ra t ica n do, es s es "epa s !" podem s er m u ito in teres s a n tes e in s t ru t ivos . Se n ã o es ta m os p ra t ica n do, podem os d is pen s a r o com pa n h eiro e ir a t rá s de a lgu m ou tro. Pa rece qu e a p rom es s a n ã o foi cu m pr ida . Ou com eça m os u m n ovo em prego, ou n ovo p rojeto. No in ício va i tu do m u ito bem , m a s depois com eça m os a perceber a lgu m a s á s pera s verda des , e a des ilu s ã o com eça a in filt ra r -s e. Se es ta m os viven do s egu n do a s d iret r izes de n os s a es t ra tégia , n a da pa rece qu e va i fu n cion a r , porqu e a vida fen om ên ica é, por defin içã o, u m a p rom es s a qu e n u n ca s e cu m pre. Se s a t is fa zem os u m des ejo, fica m os felizes por u m breve in s ta n te, m a s a n a tu reza da s a t is fa çã o de u m da do des ejo é en con tra r im ed ia ta m en te o des ejo s egu in te, e depois m a is u m e depois ou tro, e depois ou tro... Nã o h á com o fica r livre da p res s ã o ou do es t res s e. Nã o con s egu im os a s s en ta r . Nã o en -contramos paz.

Page 113: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Qu a n do n os s en ta m os , o roda m oin h o in ces s a n te em n os s a m en te revela -n os n os s a es t ra tégia . Se rotu la rm os n os s os pen s a -m en tos por m u ito tem po, irem os recon h ecer n os s a es t ra tégia . É es s a p rópr ia es t ra tégia qu e gera os pen s a m en tos ren iten tes . Só u m a cois a em n os s a vida n ã o é a p r is ion a da por es s a es t ra tégia

a vida orgânica, física, do corpo.

Cla ro qu e o corpo es tá receben do pu n ições porqu e reflete n os s a a u tocen tra çã o. O corpo tem de obedecer à m en te; por is s o, se ela está dizendo que o mundo é um lugar terrível, o corpo diz "Ai, com o es tou depr im ido!". No m es m o in s ta n te em qu e a s im a gen s aparecem

com o pen s a m en to, fa n ta s ia ou es pera n ça

o corpo tem de res pon der . Tem u m a res pos ta crôn ica e, à s vezes , es s a resposta exacerba-se em depressão ou enfermidade.

O p r in cipa l p rofes s or qu e t ive em toda a m in h a vida foi u m livro. Ta lvez s eja o m elh or livro s obre zen qu e já foi es cr ito. É u m a t ra du çã o do fra n cês , porém , e o texto n ã o es tá bem en ca dea do; a s s en ten ça s n ã o con s t itu em pa rá gra fos in teiros . Depois de ler u m a des s a s s en ten ça s é pos s ível qu e n os pergu n tem os a tu rd idos : "Ma s o qu e foi qu e ele disse?" Por is s o é u m livro d ifícil; m es m o a s s im , é a .m elh or exp lica çã o do p rob lem a h u m a no qu e já en con trei. Nu m a cer ta época com ecei a es tu da r s eu s en s in a m en tos e o fiz du ra n te dez ou qu in ze a n os . Meu exem pla r pa rece qu e foi pa ra r n a máquina de lavar roupa. Trata-se de A d ou trin a s uprem a de Hubert Ben oit , u m ps iqu ia t ra fra n cês qu e pa s s ou por u m gra vís s im o a ciden te qu e o deixou in ca pa z por m u itos a n os . A ú n ica cois a qu e pod ia fa zer era fica r im óvel, deita do. O p rob lem a h u m a n o era s eu in teres s e in s a ciá vel e, por is s o, u s ou a qu eles a n os de recu pera çã o para mergulhar profundamente nessa questão.

A expres s ã o de Ben oit pa ra a con tra çã o em ocion a l qu e p rocede de n os s os es forços pa ra n os p roteger é "es pa s m o". Ele ch a m a a fa la çã o in ces s a n te do n os s o d iá logo in tern o de "o film e im a gin á r io". O pon to de t ra n s içã o pa ra ele veio qu a n do s e deu con ta de qu e "es s e es pa s m o qu e vin h a ch a m a n do de a n orm a l es tá n o ca m in h o qu e leva a o satori (ilu m in a çã o)... Poder -se-ia in clu s ive d izer qu e a qu ilo qu e deve s er perceb ido, den tro do film e im a gin á r io, é u m a cer ta s en s a çã o de cã ib ra p rofu n da , de u m a per to pa ra lis a n te, de u m fr io im obiliza dor ... e qu e é n es te d iva du ro, im óvel e gela do qu e n os s a a ten çã o deve perm a n ecer fixa , com o s e es t ivés s em os t ra n qü ila m en te es t ira dos con tra u m a roch a du ra ,

Page 114: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m a s a colh edora , qu e fos s e m olda da exa ta m en te pa ra receber o nosso corpo" *.

O qu e Ben oit es tá d izen do é qu e, qu a n do des ca n s a m os s os s ega dos den tro de n os s a dor , es s e repou s o é o "por tã o s em por teira ". Es s e é o ú lt im o loca l em qu e qu erem os es ta r ; n ã o é a gra dá vel, e todo o n os s o im pu ls o es t ra tégico volta -s e pa ra a s a m en ida des . Nã o; qu erem os a lgu ém qu e n os con for te, qu e n os s a lve, qu e n os dê pa z. Nos s os pen s a m en tos , p la n eja m en tos e p rojetos es t ra tégicos in ces s a n tes ten ta m ju s ta m en te is s o. Apen a s qu a n do perm a n ecem os com a qu ilo qu e es tá por t rá s do film e im a gin á r io e a li des ca n s a m os é qu e com eça m os a ter p is ta s . Cos tu m o exp lica r do s egu in te m odo: em lu ga r de perm a n ecerm os com os n os s os pen s a m en tos , n ós os rotu la m os a té qu e s e a qu ietem u m pou co e en tã o fa zem os o m elh or pos s ível pa ra perm a n ecer com a qu ilo qu e de fa to é

a n ã o-du a lida de qu e é a sensaçã o de n os s a vida n es te exa to m om en to. Is s o con tra r ia tu do a qu ilo qu e qu erem os , tu do o qu e n os s a cu ltu ra n os en s in a , m a s é a única solução real, o único portão de saída.

Qu a n do a s s en ta m os em n os s a s en s a çã o de dor , a ch a m os qu e ela é tã o a pa vora n te qu e n os a gita m os tu do de n ovo. No in s ta n te em qu e a ter r is s a m os n a s en s a çã o de in côm odo, s a lta m os de volta pa ra o film e im a gin á r io. Sim p les m en te n ã o qu erem os es ta r n a rea lida de da qu ilo qu e s om os . Is so é h u m a n o, n em bom n em m a u , e s ã o n eces s á r ios vá r ios a n os de p rá t ica pa ra s e toca r ca da vez m a is a rea lida de, com con for to a o pa ra r por a li, a té qu e por fim , com o d iz Ben oit , é a pen a s u m a roch a du ra , m a s a colh edora, moldada para ajustar-se ao nosso corpo e, enfim, é aí que podemos descansar e ficar em paz.

Às vezes podem os des ca n s a r por u m cu r to per íodo, m a s , por es ta rm os m u ito h a b itu a dos , logo volta m os pa ra o m es m o fa la tór io mental de sempre. E, assim, atravessamos o processo vezes e vezes. Com o tem po, é es s e in ces s a n te p roces s o qu e n os leva à pa z. Se estiver completo, pode ser chamado de satori, ou iluminação.

O film e im a gin á r io gera o es pa s m o e o es pa s m o gera o film e im a gin á r io. É u m ciclo in term in á vel qu e s ó s e rom perá qu a n do es t iverm os d is pos tos a des ca n s a r em n os s a dor . A ca pacidade para

* Hubert Benoit, The supreme doctrine: Psychological studies in zen thought, Nova York: Viking, 1955, p. 140 e 145.

Page 115: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

fa zer is s o s ign ifica qu e n os s en t im os a té cer to pon to des ilu d idos , qu e n ã o es pera m os m a is qu e n os s os pen s a m en tos e s en t im en tos s eja m a s olu çã o pa ra a lgu m a cois a . En qu a n to a lim en ta rm os a es pera n ça de qu e a p rom es s a deverá s er cu m pr ida , n ã o irem os descansar em meio às dolorosas sensações corporais.

Por ta n to, a p rá t ica com põe-s e de du a s pa r tes . Um a é a decepçã o in term in á vel. Tu do em n os s a vida qu e n os decepcion a é u m a m igo ded ica do. E es ta m os todos s en do des a pon ta dos , de u m m odo ou de ou tro. Se n ã o es ta m os decepcion a dos , n u n ca desistim os de n os s o des ejo de pen s a r e de n os recoloca r n o a lto com o vitor ios os . Nin gu ém ga n h a n o fim ; n in gu ém irá s obreviver. Porém es s e a in da é o n os s o im pu ls o, o n os s o s is tem a . Ele s ó pode s er des a r t icu la do com a n os e a n os de p rá t ica e com o des ga s te natural qu e a vida t ra z. Por is s o é qu e n os s a p rá t ica e n os s a vida têm de ser a mesma coisa.

Tem os a ilu s ã o de qu e a s ou tra s pes s oa s irã o n os fa zer felizes , qu e ela s irã o fa zer com qu e a n os s a vida fu n cion e. Até qu e n os livrem os des s a ilu s ã o, n ã o h a verá u m a s olu çã o rea l. As ou t ra s pes s oa s exis tem pa ra n os a legra rm os e n ã o pa ra qu a lqu er ou tro p ropós ito. E la s fa zem pa r te da m a ra vilh a qu e a vida é; n ã o es tã o a qu i pa ra fa zer qu a lqu er cois a por n ós . En qu a n to es s a ilu s ã o n ã o com eça r a s e des fa zer , n ã o irem os n os con ten ta r em perm a n ecer n o es pa s m o, n a con tra çã o em ocion a l. Rodop ia rem os im ed ia ta m en te pa ra lon ge d is s o, retorn a n do logo a os n os s os pen -samentos: "Sim, mas se eu fizer isto as coisas vão melhorar...".

A vida é u m a s ér ie de in term in á veis decepções e é m a ra vi-lhoso qu e s eja a s s im a pen a s porqu e ela n ã o n os dá a qu ilo qu e qu erem os . Percor rer es s e ca m in h o requ er cora gem , e m u ita s pes s oa s , n es ta vida , n ã o o fa rã o. Es ta m os todos em d iferen tes m om en tos do ca m in h o, o qu e es tá m u ito bem . Só a lgu n s pou cos , dotados de uma persistência enorme e que não entendem as coisas toda s da vida com o in s u ltos e s im com o opor tu n ida des , é qu e fin a lm en te com preen derã o. As s im , s e in ves t irm os toda a n os s a en ergia ten ta n do fa zer com qu e a n os s a es t ra tégia fu n cion e m elh or , en tã o es ta m os a pen a s gira n do em cim a de n os s os ca lcanhares. Nossa infelicidade nos perseguirá até o nosso último suspiro.

Por ta n to, n a vida n ã o h á s en ã o opor tu n ida des , s ó opor tu n i-da des . E is s o in clu i qu a lqu er cois a em qu e con s iga m os pen s a r . Até qu e n os s in ta m os des ilu d idos com o film e im a gin á r io qu e

Page 116: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa s s a m os in ces s a n tem en te d ia n te dos olh os (m a l os a b r im os pela m a n h ã e já com eça a p r im eira s es s ã o), n ã o n os m a n terem os a s s en ta dos n a cã ib ra . Fa rem os pa s s a r m a is a lgu m t rech o do film e. Suponho que seja isso que se esteja dizendo quando se menciona a roda do carma.

Bem , n ã o es tou ped in do a n in gu ém qu e a dote es s a des cr ição com o a lgu m a es pécie de s is tem a de cren ça . A ú n ica m a n eira de con h ecerm os a rea lida de des s a p rá t ica é execu ta n do-a . Depois de a lgu m tem po, pa ra a lgu m a s pes s oa s (à s vezes in term iten temente, m a s depois qu a s e o tem po todo), ocor re o qu e os cr is tã os ch a m a m de "a paz que ultrapassa todo o entendimento".

Mu ita s vezes m e a ju dou em m om en tos d ifíceis pen s a r n a -qu ele d ivã gela do e im óvel e, em vez de lu ta r e b r iga r , a pen a s dispor-m e a des ca n s a r a li. Com o tem po a ca ba m os des cobr in do qu e o d ivã é o ú n ico lu ga r t ra n qü ilo, a fon te da s a ções transparentes.

En qu a n to pa les t ra s obre dharma, tu do is s o s oa p roib it ivo. No en ta n to, a s pes s oa s qu e p ra t ica m o tem po todo s ã o a qu ela s qu e estão des fru ta n do a vida . É es s e o por tã o s em por teira s pa ra o con ten ta m en to. As pes s oa s qu e en ten dem e têm a cora gem de fa zer is s o s ã o a qu ela s qu e even tu a lm en te fica m con h ecen do o qu e é o con ten ta m en to. Nã o es tou fa la n do de u m a felicida de interminável (porque não existe isso), mas de contentamento.

ALUNO; É com u m qu e a s pes s oa s es colh a m u m a des s a s estratégia s , m a s con form e o tem po pa s s a ela s podem a dota r u m a ou tra ? As pes s oa s qu e es colh era m , d iga m os , recu a r e n ã o pa r t icipa r podem , a o s e torn a rem , m a is for tes , decid ir a lgo com o "Bom , ta lvez a gora eu vá m e con form a r u m pou co e a gra da r a os outros". As pessoas alguma vez saem de cima do muro e entram no fluxo da calçada?

JOKO: Mu ita s vezes obs ervei qu e a s pes s oa s qu e a n tes era m depen den tes e con form is ta s com eça m a a s s u m ir a res de u m a fa ls a in depen dên cia . Is s o é n a tu ra l, u m es tá gio a n tes de con s eguirmos s er rea lm en te n ós m es m os . Qu a n to m a is p ra t ica m os a cã ib ra , m a is a t ra n s form a çã o s e a celera . Do pon to de vis ta do m u n do fen om ên ico fa zem os p rogres s os em bora , em s en s o a bs oluto, estejamos sempre bem do jeito que somos.

Page 117: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Qu a n do des ca n s a m os em n os s o des con for to, des cobr i-m os qu e n ã o é a s s im tã o a s s u s ta dor e qu e con s egu im os n os aventurar um pouco?

JOKO: Cer to. Por exem plo, podem os a pren der qu e con s egu im os es ta r depr im idos e a in da a s s im fu n cion a r . S im ples m en te con t in u a m os em fren te e a gim os . Nã o tem os de n os s en t ir bem pa ra fu n cion a r . Qu a n to m a is n ós form os con tra n os s o sistema rígido, melhor.

ALUNO: Qu a n do você fa la a res peito da cã ib ra , is s o pa rece fazer parte do sistema rígido.

JOKO: Nã o, ela é p rodu zida pelo s is tem a r ígido, m a s é a ú n ica pa r te do s is tem a a ber ta a oferecer -lh e u m a s olu çã o. Por exem plo, s e tem os pen s a m en tos ra ivos os , o corpo tem de ten s ion a r . Nã o con s egu im os ter u m pen s a m en to de ra iva a res peito de a lgu ém s em n os ten s ion a r . E , s e h a b itu a lm en te tem os u m a es t ra tégia qu e é a ra iva e o a ta qu e, o corpo perm a n ecerá con tra ído qu a s e qu e o tem po todo. Toda via es s a é a ú n ica pa r te des s e s is tem a qu e n os forn ece u m a s a ída porqu e podem os viven cia r a cã ib ra e deixá-la in ta cta e, com is s o, ela pode s e a b r ir . Pode cu s ta r cin co a n os , m a s vai abrir.

ALUNO: Ou tro d ia eu li qu e, s eja qu a l for n os s o a s pecto p r in cipa l, é bom exa gerá -lo. Pa ra m im , porém , is s o s er ia o m es m o que ficar com muita raiva e agredir os outros.

JOKO: Você pode fazê-lo a sós.

ALUNO: Ma s s e eu rea lm en te exa gera r a ra iva e a ta ca r pa ra torná-la mais consciente isso não iria agredir alguém?

JOKO: Nã o. Por fa vor lem brem -s e de qu e o ú n ico m eio de exagera r é exa gera r a sensação de qu e a cã ib ra es tá lá . Nã o deveríam os exa gera r n os s os com por ta m en tos ira dos . Es s e s is tem a é tota lm en te in con s cien te, por is s o, a o viven cia rm os de m a n eira consciente a cãibra, ela pode se dissolver por si.

ALUNO: Por exper iên cia p rópr ia des cu bro qu e es tou n es ta cã ib ra ter r ível e, de repen te, ela m u da . Algu m a cois a s e a b re e es tou n u m es pa ço on de m e s in to livre e a ber to; depois , s em nenhuma razão aparente, retorno para a minha contrariedade.

JOKO: Eviden tem en te, você volta pa ra o s eu s is tem a h a b itu a l de pensamentos autocentrados.

Page 118: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Às vezes pa rece com o s e fos s e u m m ú s cu lo qu e es ta va contraído e agora está relaxando.

JOKO: Sim , m a s a ca u s a rea l n ã o é u m a qu es tã o m u s cu la r . Nos s o des ejo bá s ico de s obreviver es tá n a ba s e de todos os n os s os p rob lem a s . Se h ou ves s e a lgu m a m a n eira de lida r com os m ú s cu los, en tã o todos a qu eles qu e t ra ba lh a m corpora l m en te s er ia m s u jeitos iluminados.

ALUNO: Percebo qu e a s en s a çã o des a gra dá vel n ã o é u m es ta do es tá t ico. Es tá s em pre flu in do, m u da n do o tem po todo. En tã o es tou den tro e fora , pelo lu ga r in teiro, porqu e é en ergia pu ra , n ã o é estático.

JOKO: A ú n ica cois a qu e in ter fere n o flu xo é o fa to de acreditarm os de n ovo em n os s os pen s a m en tos . E is s o é p ra t ica m en te u m de n os s os m a iores h á b itos . Precis a m os p ra t ica r s en ta dos por m u itos e m u itos a n os a n tes de n ã o a cred ita rm os mais em nossos pensamentos. Precisamos de fato.

ALUNO: En qu a n to n ã o des ga s ta rm os a força do p rojeto de n os p roteger da vida e de lu ta r con t ra o m odo com o a s cois a s n os s ã o a p res en ta da s a ca da m om en to, irem os s em pre volta r a o es ta do de contração que é "Não gosto disso!". Acontece o tempo todo.

ALUNO: Onde se situa a cãibra?

JOKO: On de você a s en t ir . Pode s er n o ros to, n os om bros , em qu a lqu er pa r te. Em gera l é em ba ixo, n a s cos ta s , n a lin h a da cintura.

ALUNO: Es tou ca da vez m a is con s cien te de qu e a lgu n s de m eu s pen s a m en tos pa recem s im ples m en te cois a s da da s , im a gen s que tenho de mim e que não parecem pensamentos, ou que são tão a gra dá veis qu e n ã o os rotu lo. En tã o a con tecem pen s a m en tos qu e não são rotulados porque parecem como uma boa prática zen.

JOKO: Sim . É o pen s a m en to qu e n ã o ca p ta m os qu e fica dirigindo o espetáculo.

ALUNO: Um a boa pa r te do m eu con d icion a m en to pa rece inconscien te ou s u bcon s cien te. Por is s o pos s o s en t ir -me conscientem en te m u ito cla ro e leve e, n o en ta n to, o condicionamento a in da es tá lá e a ca ba m e leva n do de volta pa ra a cã ib ra ou o leito du ro, o es pa s m o, m u ito em bora eu n ã o con s ta te nada acontecendo no plano consciente.

Page 119: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Cer to. Lem brem -s e de qu e, em cer to s en t ido, n ã o exis te in con s cien te n en h u m e o qu e é revela do pode s er m u ito s u t il. Um a boa pa r te do qu e es ta m os fa la n do n ã o é u m a gra n de cã ib ra do t ipo qu e s e des creve com o "con tra çã o m u s cu la r depois de exces s os físicos".

ALUNO: Você d is s e qu e n a boa p rá t ica o com pa n h eiro de rotu la r pen s a m en tos é viven cia r . Is s o qu er d izer qu e o pen s a m en to qu e você n ã o ca p ta pode s e revela r s e você es t iver rea lm en te vivenciando a cãibra?

JOKO: Sim . Qu a n to m a is p ra t ica rm os e torn a rm os a s cois a s conscien tes , m a is e m a is com eça rá a boia r à beira d 'á gu a o pen s a -m en to de qu e n ã o t ín h a m os con s ciên cia a n tes . Su b ita m en te ele n os a t in ge. "Oh , n u n ca t in h a pen s a do n is s o a n tes ." Ele s im ples -mente emerge.

ALUNO: O qu e é o es pa s m o ou o t rem or corpora l repet it ivo qu e costuma aparecer às vezes nesse tipo de prática?

JOKO: Se perm a n ecerm os com o es pa s m o m u ita s vezes , o corpo va i t rem er , a s lá gr im a s podem brota r , porqu e s e rea lm en te pus erm os n os s a a ten çã o n o corpo e lh e derm os liberda de pa ra s er qu em é, ele com eça rá a a b r ir -s e e a en ergia qu e es ta va b loqu ea da com eça rá a em ergir . Pode a dota r a form a de ch oro, t rem or , ou outro movimento involuntário.

ALUNO: Você poderia falar mais a respeito de sentimentos?

JOKO: Sen t im en tos s ã o a pen a s pen s a m en tos m a is s en s a ções corporais.

ALUNO: E se um sentimento aparece?

JOKO: Fragmente-o. Ou perceba qu a is s ã o os pen s a m en tos, entre na sensação corporal.

ALUNO: Ao viven cia rm os a lgo, a vivên cia pode efet iva m en te de-sencadear recordações ou vislumbres de total entendimento?

JOKO: Sim , à s vezes . Se n os m a n tem os n a vivên cia , a cã ib ra à s vezes s e des fa z. En tã o verem os cer ta s im a gen s do pa s s a do, m a s eu n ã o m e p reocu pa r ia com is s o. Deixe a pen a s qu e ven h a m e s u m a m . A p rá t ica n ã o t ra ta de a n a lis a r es s a s recorda ções , porqu e a li n ã o h á u m "eu ". No en ta n to, n a p rá t ica qu e s e a s s en ta s ob re vivên cia s , n os s a vida em ergirá m a is e m a is do n ã o-eu , com o u m a

Page 120: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

vida de fu n cion a m en to d ireto e efet ivo e

s im !

de pen s a m en tos

válidos e claros. Vivenciar é a chave.

DERRETENDO OS CUBOS DE GELO

É ú t il com preen der o a s pecto técn ico da p rá t ica , a ba s e teór ica do s en ta r pa ra p ra t ica r . Ma s os a lu n os cos tu m a m ter a vers ã o pela s exp lica ções técn ica s e qu erem a n a logia s con creta s . Às vezes , o m elh or m eio de exp lica r é u s a n do m etá fora s s im ples e a té tola s . As s im , gos ta r ia de fa la r da p rá t ica zen com o "o ca m inho do cubo de gelo".

Va m os im a gin a r , por u m in s ta n te, qu e os s eres h u m a n os s ã o gra n des cu bos de gelo com m a is ou m en os 60 cm em ca da la do, dota dos de ca becin h a s e pés pen du ra dos . Nos s a vida h u m a n a é a s s im qu a s e qu e o tem po todo, cor ren do de u m la do pa ra o ou t ro com o cu bos de gelo, da n do poderos a s t rom ba da s en t re s i. É freqü en te a t in girm o-n os u n s a os ou tros com força s u ficien te pa ra qu ebra r n os s a s a res ta s . Pa ra n os p roteger , con gela m os o m á xim o qu e n os for pos s ível e es pera m os qu e, qu a n do en tra rm os em colis ã o com os ou tros , eles qu ebrem a n tes de n ós . Con gela mo-nos porqu e s en t im os m edo. Nos s o m edo n os fa z fica r r ígidos , fixos e du ros e cr ia m os gra n des con fu s ões qu a n do da m os u m en con trã o em a lgu ém . Qu a lqu er obs tá cu lo ou d ificu lda de in es pera da tem a probabilidade de nos despedaçar.

Cu bos de gelo doem . Cu bos de gelo pa s s a m gra n des a pu ros. Qu a n do s om os du ros e r ígidos , in depen den tem en te do qu a n to pos s a m os s er cu ida dos os , n os s a ten dên cia é es cor rega r e s a ir de con trole. Tem os a res ta s pon t ia gu da s qu e ca u s a m da n os , e fer im os não só os outros como nós mesmos também.

Um a vez qu e es tam os con gela dos , n ã o tem os á gu a pa ra beber e com is s o s en t im os s ede o tem po todo. Nos coqu etéis , cos tu m a m os n os s u a viza r u m pou co e bebem os , m a s es s a s beb i-da s em gera l n ã o s ã o de fa to s a t is fa tór ia s porqu e h á o n os s o m edo la teja n do e m a n ten do-n os con gela dos e res s eca dos . Es s e a b ra n da m en to é s ó tem porá r io e s u per ficia l; por ba ixo, a in da sentimos sede e ansiamos por alguma satisfação.

Page 121: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Algu n s cu bos de gelo m a is in teligen tes bu s ca m ou t ra s m a -n eira s de s a ir de s u a s vida s m is erá veis . Qu a n do percebem s u a s a res ta s a gu da s e s u a s d ificu lda des n o t ra to com os ou tros , ten ta m s er a gra dá veis e cola bora r . Es s a a t itu de a ju da u m pou co; n o en ta n to, u m cu bo de gelo é u m cu bo de gelo e perm a n ece in ta cta a existência de arestas pontiagudas.

Un s s or tu dos , n o en ta n to, a ca ba m en con tra n do u m cu bo de gelo qu e rea lm en te ten h a der ret ido e s e torn a do u m a poça . O qu e a con tece s e u m cu bo de gelo en con tra u m a poça ? A á gu a m a is quente da poça começa a derreter o cubo de gelo. A sede é cada vez m en os u m prob lem a . O cu bo de gelo com eça a perceber qu e n ã o tem de s er du ro, r ígido e fr io, qu e exis te ou tro m odo de s e es ta r no m u n do. O cu bo de gelo a p ren de com o cr ia r s eu p róp r io ca lor pelo s im ples p roces s o da obs erva çã o, O fogo da a ten çã o com eça a der reter s u a du reza . Ao obs erva r de qu e m a n eira t rom ba com os ou tros e fere, a o ver s u a s p rópr ia s a res ta s pon t ia gu da s , o cu bo de gelo com eça a s e da r con ta de com o foi fr io e du ro a té a í. Com eça en tã o a a con tecer a lgo es t ra n h o. Qu a n do os cu bos de gelo com eça m a perceber s u a s p rópr ia s a t ivida des , a obs erva r s u a "n a tu reza lega da em cu bos ", torn a m -s e m a is s u a ves e m a cios e sua compreensão aumenta, simplesmente observando o que são.

Os res u lta dos s ã o con ta gios os . Va m os s u por qu e dois cu bos de gelo ten h a m s e ca s a do. Ca da u m es tá p rotegen do a s i m es m o e ten ta n do m u da r o ou tro. Con tu do n en h u m deles con s egue rea lm en te m u da r ou "con s er ta r" o ou tro, u m a vez qu e a m bos s ã o r ígidos e du ros com a res ta s pon t ia gu da s . Porém , s e u m deles com eça a der reter , o ou tro cu bo de gelo

s e s e a p roxim a r o m ín im o qu e s eja

tem ta m bém de com eça r a der reter . E ta m bém ele com eça a ter u m pou co m a is de s a bedor ia e vis ã o. Em vez de con s idera r o ou tro cu bo de gelo com o u m prob lem a , ele com eça a tom a r con s ciên cia de s u a p rópr ia n a tu reza gela da . Am bos en tã o a p ren dem qu e a tes tem u n h a , a percepçã o con s cien te de s u a p rópr ia a t ivida de in d ividu a l, ê com o o fogo. O fogo n ã o pode s er a u m en ta do com es forços ; n ã o n os é pos s ível ten ta r n os der reter . Derreter é res u lta do da tes tem u n h a , Qu e, em cer to s en t ido, n ã o é a bs olu ta m en te n a da e, em ou tro, é tu do

"Nã o eu , m a s o Pa i em mim", como disse Cristo. A percepção consciente, a testemunha é o "Pai"

qu e é a n os s a verda deira n a tu reza . A fim de perm it irm os qu e a tes tem u n h a efetu e s eu t ra ba lh o, devem os n ã o n os perm it ir a p r is ion a r n o en r ijecim en to e n o en du recim en to de n ós m es m os ,

Page 122: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

joga n do o n os s o pes o pa ra todo la do, da n do t rom ba da s n os ou t ros e ten ta n do m odificá -los . Se fa zem os es s a s cois a s , p recis a m os tomar consciên cia pa ra qu e a tes tem u n h a pos s a fa zer s eu t ra ba lh o.

Algu n s cu bos de gelo com eça m a perceber a idéia e a fa zer o t ra ba lh o n eces s á r io. Podem in clu s ive torn a r -s e u m pou co m a is macios. A primeira coisa que observo a respeito dos alunos zen que es tã o p ra t ica n do é qu e s u a expres s ã o de ros to m u da . Tornam-se mais suaves. Riem de um jeito diferente. Estão um pouco "macios". En treta n to o t ra ba lh o é d ifícil e a lgu n s cu bos de gelo, a té m es m o os qu e com eça m a a m olecer , ca n s a m -s e do p roces s o. Dizem : "Eu qu ero m es m o é volta r a s er u m cu bo de gelo con for tá vel. É verda de qu e é u m a vida s olitá r ia e fr ia , m a s , pelo m en os , n ã o s in to ta n to in côm odo. Nã o qu ero m a is s im ples m en te tom a r con s ciên cia de n a da ''. A verda de, n o en ta n to, é qu e depois de a pes s oa ter com eça do a s u a viza r -s e ela n ã o con s egu e m a is en du recer de n ovo. Você pode d izer qu e es s a a té é u m a da s "leis dos cu bos de gelo" (com a s devida s des cu lpa s à fís ica ). Um cu bo de gelo qu e ten h a com eça do a fica r m a cio n u n ca m a is con s egu e es qu ecer es s a m a ciez. É por is s o qu e d igo à s pes s oa s : "Nã o en tre n a p rá t ica en qu a n to você n ã o es t iver p ron to pa ra o p róxim o es tá gio". Nã o h á com o ret roceder . Um a vez in icia do o p roces s o da p rá t ica , tã o logo ten h a m os a m olecido u m pou co, s om os u m pou co m a is m a cios e é is s o qu e exis te. Podem os in clu s ive pen s a r qu e con s egu irem os retorn a r à vida qu e t ín h a m os a n tes e a té ten ta r fa zê-lo, m a s n ã o tem os con d ições de viola r o p roces s o, a "lei bá s ica dos cu bos de gelo". Depois de term os n os torn a do u m pou co m a is m a cios , seremos para sempre um pouco mais macios.

Algu n s cu bos de gelo, por fa zerem u m a p rá t ica a pen a s es porá d ica , m u da m a pen a s u m pou co a o lon go de u m a vida toda e s e torn a m s ó u m pou co m a is m a cios . Aqu eles qu e rea lm en te en ten dem o ca m in h o e p ra t ica m com afinco, porém , s e tornam de fa to poça s d 'á gu a . O en gra ça do a res peito des s a s poça s é qu e, qu a n do os ou tros cu bos de gelo a s a t ra ves s a m , com eça m a der -reter e a torn a r -s e u m pou co m a is m a cios . Mes m o qu e der reta mos s ó u m pou co, os ou tros à n os s a volta a m olecem ta m bém . É u m processo fascinante.

Mu itos a lu n os m eu s s ã o m a cios . Na m a ior ia da s vezes detestam passar pelo processo. Quando vamos até o fundo dele, no en ta n to, o t ra ba lh o de u m cu bo de gelo é en fim der reter . En qu a n to es ta m os con gela dos e per feita m en te s ólidos pen s a m os qu e o n os s o

Page 123: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

t ra ba lh o é s a ir por a í ba ten do n os ou tros cu bos de gelo ou s en do a gred idos por eles . Nu m a vida com o es s a n in gu ém ja m a is con s egu e der reter o ou tro. Com o pá ra -ch oqu es , ba tem os e r icoch etea m os , a fa s ta n do os ou tros , e depois va m os a d ia n te. É u m modo muito solitário e frio de viver. Aliás, o que de fato queremos é der reter . Qu erem os s er poça s . Ta lvez tu do o qu e s e pos s a d izer s obre a p rá t ica é qu e es ta m os a p ren den do com o der reter . A cer tos in terva los d izem os : "Me deixe em pa z. Fiqu e lon ge. Qu ero a pen a s s er u m cu bo de gelo". Ma s a s s im qu e com eça m os a der reter u m pou co qu e s eja , n ã o con s egu im os m a is es qu ecer . Com o tem po, a qu ilo qu e é em n ós o cu bo de gelo fica des t ru ído. Ma s , s e o cu bo de gelo t iver s e torn a do u m a poça , ela é rea lm en te des t ru ída ? Podem os d izer qu e n ã o é m a is u m cu bo de gelo, m a s s u a n a tu reza essencial está realizada.

A com pa ra çã o de u m a vida h u m a n a com u m cu bo de gelo é s em dú vida tolice. Porém , vejo a s pes s oa s s e ba ten do en tre s i n a esperança de que com tantos ataques alguma coisa seja alcançada. Nu n ca a con tece is s o. Algu ém tem de pa ra r com os a ta qu es e com eça r a s en ta r e p ra t ica r com s u a n a tu reza gela da e cú b ica . Precis a m os a pen a s s en ta r , obs erva r e s en t ir com o é s er o qu e somos

viven cia n do is s o de verda de. Nã o podem os fa zer m u ito m a is pelos ou tros cu bos de gelo. Aliá s , n ã o é n em es s a n os s a incumbência. A única coisa que podemos fazer é convocar cada vez m a is a p res en ça da tes tem u n h a . Qu a n do n os torn a m os es s a tes tem u n h a , com eça m os a der reter . Se der retem os , ou tros cu bos de gelo ta m bém o fa zem , pou co a pou co. As s im qu e t iverm os com eça do a der reter é per feita m en te n a tu ra l res is t ir ao der ret im en to e qu erer retom a r o es ta do con gela do, ten ta n do con trola r e m a n ipu la r toda s a s ou tra s cr ia tu ra s con gela da s qu e con h ecem os . Nu n ca m e p reocu po com is s o porqu e, pa ra qu a lqu er pes s oa qu e ven h a p ra t ica n do já h á a lgu m tem po, é m u ito o qu e h á pa ra s e s a ber . Nã o podem os torn a r -n os r ígidos de n ovo porqu e bem n o fu n do s a bem os de u m a cois a qu e a n tes des con h ecía m os . Não podemos retroceder.

Na p róxim a vez qu e fa la rm os com a s pereza , qu e n os qu ei-xa rm os , ou ten ta rm os con s er ta r o ou tro, ou a n a lis á -lo, es ta m os b r in ca n do in u t ilm en te de s er cu bo de gelo. Es s e es forço n ã o dá em n a da . O qu e fu n cion a é cu lt iva r a a ten çã o, qu e s em pre es tá a li, em bora n ã o con s iga m os percebê-la s e es ta m os m u ito ocu pa dos da n do pa n ca da s nos ou tros cu bos de gelo. Mes m o qu e n ã o

Page 124: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a bra m os es pa ço em n os s a s vida s pa ra a tes tem u n h a , ela s em pre es tá p res en te. É qu em s om os . Apes a r de todos ten ta rm os evitá -la, não o conseguimos.

Ao n os torn a rm os m a is m a cios , des cobr im os qu e s er u m a poça a t ra i m u itos ou tros cu bos de gelo. Às vezes a té a poça preferir ia s er u m cu bo de gelo. Qu a n to m a is poça n os torn a rm os , m a ior o t ra ba lh o a s er feito. A poça a tu a com o u m ím ã pa ra os cu bos de gelo qu e qu erem der reter . As s im , qu a n to m a is p in ga mos, mais e mais atraímos trabalho para fazer e é isso mesmo.

ALUNO: Gostei da analogia porque quando a poça estiver limpa con terá o todo em s eu reflexo. Você poder ia fa la r m a is de com o nasce a testemunha?

JOKO: A tes tem u n h a s em pre es tá p res en te. Ma s a s s im com o u m cu bo de gelo n ã o con s egu e ver n a da exceto da r t rom ba da s em outros cu bos de gelo, ou evitá -los , é com o s e es s a a ten çã o da tes tem u n h a n ã o pu des s e fu n cion a r . É p recis o qu e h a ja u m a m u -da n ça n o cu bo de gelo pa ra perm it ir -lh e tom a r con s ciên cia de s u a p rópr ia a t ivida de. En qu a n to n os s a ca pa cida de de con s cien t ização es t iver tota lm en te volta da pa ra o qu e os ou t ros cu bos de gelo es tã o fa zen do, a tes tem u n h a n ã o pode a pa recer , m es m o qu e es teja lá o tem po todo. Qu a n do com eça m os a ver

"Oh , o p rob lem a n ã o é com os ou tros cu bos de gelo, a ch o qu e p recis o olh a r pa ra m im mesmo" , a testemunha aparece automaticamente. Começamos a perceber qu e o p rob lem a n ã o es tá "lá fora ", m a s s em pre es teve e estará aqui dentro.

ALUNA: No es ta do de cu bo de gelo, pos s o a lim en ta r a ilu s ã o de qu e n a da pode en tra r n em s a ir , e a s s im m e s in to p rotegida . Quando o a m a cia m en to com eça , con tu do, ocor re-m e qu e tu do s e in terpen etra com tu do

in clu in do a polu içã o, a gu er ra , o de-s a m pa ro e a s s im por d ia n te. Perceber cla ra m en te es s a in terpen etra çã o pode s er a s s u s ta dor e des es t im u la n te. Você poder ia fa la r obre o m edo e os ou tros es ta dos em ocion a is qu e.a pa recem qu a n do a pes s oa es tá en t re s er u m cu bo de gelo e uma poça?

JOKO: É verda de, o es tá gio in term ed iá r io a té a m a ciez im plica m u ito m edo e res is tên cia . De cer to m odo, s er u m cu bo de gelo fu n cion a ou pa rece qu e fu n cion a . É s ó qu e o cu bo de gelo s e s en te s olitá r io e s eden to. Qu a n do s om os m a cios , s om os m a is vu ln erá veis a os ou tros . Se n ã o vem os o qu e es tá a con tecen do, viven cia m os

Page 125: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m a is m edo. Sen do a s s im , es s e es ta do m a cio, qu e é o in ício do der ret im en to, é s em pre a com pa n h a do de res is tên cia de m edo de qu e o m u n do s e a ba ta s obre n ós . Qu erem os n os en r ijecer de n ovo porqu e es ta m os com eça n do a receber u m t ipo de s olicita çã o pa ra o qu a l n ã o es ta m os p repa ra dos . Es s a s s olicita ções podem n ã o s er bem-vin da s . Nos s a res is tên cia ten ta rá s e s olid ifica r . Mes m o a s s im , a resistência não conseguirá

durar.

Às vezes a s pessoas m e d izem : "J á es tou p ra t ica n do h á s eis m es es e tu do em m in h a vida ficou p ior". An tes de p ra t ica r t in h a m a ilu s ã o de s a ber o qu e era m . Agora , es tã o con fu s a s e is s o n ã o é agradável

e pode s er h or r ível. Ma s é a bs olu ta m en te n eces s á r io. A m en os qu e perceba m os es s e fa to, podem os n os s en t ir tota lm en te des en cora ja dos . A p rá t ica , à s vezes , é m u it ís s im o des a gra dá vel. A idéia de qu e tu do s ó va i m elh ora r , s em recu os , a pen a s eleva n do-se e adiantando-se, é equivocada do começo ao fim.

ALUNA: Na s p r im eira s vezes em qu e m e s en tei pa ra p ra t ica r , era com o es ta r m or ta do pes coço pa ra ba ixo. Sin to-m e exa ta m en te com o o cu bo de gelo que você d es creveu: um a cabeça em cim a, pés em ba ixo e u m com pu ta dor m or to e a m bu la n te n o m eio. A p rá t ica liberou den tro de m im m u ito do s en t im en to; por exem plo, já ch orei muito e parece que estou derretendo e me tornando uma poça.

JOKO: Mu ito bom . Ten h o obs erva do o der ret im en to n a m a ior ia dos m eu s a lu n os . Em gera l n ã o é a gra dá vel, m a s de cer to m odo e m a ra vilh os o ta m bém . Sen t im os qu e es ta m os n os tom a n do m a is a qu ilo qu e s om os verda deira m en te. Sem pre exis te res is tên cia ta m bém . Os dois a s pectos a n da m s em pre ju n tos . As pes s oa s a ch a m qu e res is tên cia é u m a cois a ter r ível. A p rópr ia n a tu reza da prática é resistir. Não é uma coisa extra.

ALUNA: Ser m ã e fa z a gen te a m a cia r? Min h a idéia é qu e a s m ã es têm de s e a b r ir pa ra os s eu s filh os e is s o ten der ia a fa zer o cubo de gelo derreter.

JOKO: Ser m ã e pode s er u m t rein o excelen te. Ma s con h eci m ã es qu e era m u n s gra n des cu bos de gelo

in clu s ive eu , n u m a certa época.

Page 126: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

O CASTELO E O FOSSO

Des de qu e com ecei com o in s t ru tora en con trei m u ito pou ca s pessoas que não estavam de alguma maneira mergulhadas naquilo qu e con s idera va m com o u m prob lem a . É com o s e s u a s vida s es t ives s em en ter ra da s n u m a den s a e en orm e n u vem , ou com o s e es t ives s em n u m qu a r to es cu ro à s volta s com n os s a n êm es e. Qu a n -do es ta m os n a s m a lh a s des s e con flito, fech a m os o m u n do do la do de fora . Fra n ca m en te, n ã o tem os tem po pa ra ele porqu e es ta m os muito ocupados com nossas preocupações. Nosso único interesse é s olu cion a r n os s o p rob lem a . Nã o vem os m a is a lém do qu e es s a ilu s ã o, em qu e o p rob lem a com qu e n os p reocu pa m os n ã o é o problema real. Ou ço u m s em -n ú m ero de va r ia ções s obre es s e tema: "Estou tão sozinha"; "A vida é vazia e sem sentido"; "Tenho de tudo, e n o en ta n to...". Nã o en xerga m os qu e n os s o p rob lem a s u per ficia l é a pen a s a pon t in h a do iceberg. Na rea lida de, o qu e con s idera m os como nosso problema é, na verdade, um pseudoproblema.

Pa ra n ós com cer teza n ã o pa rece qu e s eja m s ó ps eu dopro-b lem a s . Se, por exem plo, s ou ca s a da e m eu m a r ido va i em bora s em dú vida n ã o a ch o qu e es s e s eja u m ps eu doprob lem a . Va i pa s s a r m u ito tem po a n tes qu e eu con s iga ver qu e a qu ilo qu e es tou ch a m a n do de o m eu p rob lem a n ã o é a d ificu lda de rea l. Apes a r d is s o, o p rob lem a rea l n ã o é a pa r te qu e podem os en xerga r , com o a lgo pen du ra do n o a r ; o verda deiro p rob lem a é o iceberg qu e es tá em ba ixo da á gu a . Pa ra u m a pes s oa , o iceberg pode s er u m a cren ça gen era liza da e en t ra n h a da do t ipo "Ten h o tu do s ob con trole"; pa ra ou tra , pode s er "Precis o fa zer a s cois a s com per feiçã o". Ma s , n a verda de, n ã o con s igo con trola r o m u n do s en do p res ta t iva , n ã o con s igo con trolá -lo s en do des p rotegida , n ã o con s igo con trolá -lo com meus encantos, ou meu sucesso, ou minha agressividade, não con s igo con trolá -lo pela s u a vida de ou pela doçu ra , ou pelo m elodra m a da vít im a . Logo a ba ixo do p rob lem a em ergen te es tá u m pa drã o m a is fu n da m en ta l qu e devem os recon h ecer e com o qu a l n os fa m ilia r iza r . Tra ta -se de u m a a t itu de crôn ica e a b ra n gen te pera n te a vida , u m a decis ã o m u ito a n t iga decorren te de n os s os tem ores in fa n t is . Se n ã o con s egu irm os en xergá -la e, em vez d is s o, n os perderm os ten ta n do lida r com o p s eu doprob lem a qu e s e apresenta, continuaremos cegos aos acontecimentos e às pessoas.

Page 127: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Só qu a n do n os s a a borda gem de cegos d ia n te da vida com eçar a a p res en ta r defeitos é qu e pa s s a rem os a s en t ir va gos la m pejos de qu e n os s o ps eu doprob lem a é u m ca s telo a s s om bra do n o qu a l es ta m os com o pr is ion eiros . O p r im eiro pa s s o de qu a lqu er p rá t ica é s a ber qu e s om os p r is ion eiros . A m a ior ia da s pes s oa s n ã o tem a m en or s u s peita d is s o: "Oh , com igo va i tu do bem ". Porém , qu a n do com eça m os a recon h ecer qu e es ta m os com o pr is ion eiros , podem os com eça r a en con tra r u m a por ta qu e n os leve pa ra fora da p r is ã o. Es ta rem os en tã o des per tos o s u ficien te pa ra s a ber qu e es ta m os aprisionados.

É com o s e m eu p rob lem a fos s e u m ca s telo s om br io e ten e-b ros o, cerca do de á gu a por todos os la dos . En con tro-m e n u m pequ en o bote e com eço a rem a r pa ra ga n h a r d is tâ n cia . Con form e rem o, olh o pa ra o ca s telo qu e va i fica n do pa ra t rá s , e qu a n to m a is m e a fa s to, m en or fica . O fos s o é im en s o, m a s fin a lm en te o a t ra ves s o e ch ego n a ou tra m a rgem . Agora , qu a n do olh o de n ovo pa ra o ca s telo, ele pa rece m u ito pequ en o. Por ter recu a do, n ã o tem m a is o m es m o in teres s e qu e u m d ia des per tou em m im . As s im , com eço a da r m a is a ten çã o pa ra o lu ga r on de a gora m e en con t ro. Olh o pa ra a á gu a , a s á rvores , os pá s s a ros . Ta lvez exis ta m pes s oa s pa s s ea n do de bote pela á gu a , a p recia n do o a r livre. Algu m d ia des s es , en qu a n to es t iver des fru ta n do o cen á r io, vou olh a r pa ra onde estava o castelo e verei que ele terá sumido.

A p rá t ica é com o o p roces s o de rem a r pelo fos s o. Pr im eiro es ta m os n a s m a lh a s de n os s o p s eu doprob lem a . Em a lgu m pon to, contudo, damo-nos conta de que aquilo que parecia ser o problema n ã o é, a fin a l de con ta s . Nos s o p rob lem a é a lgo m u ito m a is p rofu n do. Um a lu z com eça a b r ilh a r . Som os ca pa zes de en con trar u m a por ta de s a ída e ga n h a r u m a cer ta d is tâ n cia ou pers pectiva em n os s os es forços . O p rob lem a poderá a in da con t in u a r n os a torm en ta n do, com o u m im en s o ca s telo m a l-a s s om bra do, m a s pelo m en os es ta rem os do la do de fora , olh a n do pa ra ele. Qu a n do com eça m os a rem a r e n os d is ta n cia r , a á gu a pode es ta r encapelada e dificultar o avanço. Até mesmo um a tem pes ta de pode n os a r rem es s a r de volta à beira do la go, de m odo qu e n ã o conseguim os ir em bora a in da por m a is a lgu m tem po. No en ta n to, continuamos tentando e, em algum momento, conseguimos colocar a lgu m a d is tâ n cia en t re n ós e o ca s telo ten ebros o. Com eça m os a des fru ta r u m pou co a vida do la do de fora do ca s telo. Depois de a lgu m tem po, podem os es ta r gos ta n do ta n to dela qu e o ca s telo em

Page 128: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s i a gora pa rece a pen a s u m ou tro res to de a lgu m a cois a flu tu a n do na água, tão sem importância.

Qu a l é o s eu ca s telo? Qu a l é o s eu ps eu doprob lem a ? E qu a l é o iceberg lá em ba ixo, o p rob lem a m a is p rofu n do qu e d ir ige a s u a vida ? O ca s telo e o iceberg s ã o u m a e a m es m a cois a . O qu e s ã o pa ra você? A res pos ta , pa ra ca da pes s oa , é d iferen te. Se com eça m os a ver qu e o p rob lem a a tu a l qu e n os con tra r ia n ã o é a verda deira qu es tã o de n os s a s vida s , m a s s im ples m en te u m sintoma de um padrão mais profundo, então estamos começando a con h ecer n os s o ca s telo. Qu a n do o con h ecerm os ba s ta n te bem , estaremos começando a encontrar a direção da saída.

Poderíamos perguntar por que continuamos presos no castelo. Perm a n ecem os p res os porqu e n ã o recon h ecem os o ca s telo, n em com o con qu is ta r a n os s a liberda de. O p r im eiro pa s s o n a p rá t ica é s em pre ver e recon h ecer n os s o ca s telo ou p r is ã o. As pes s oa s s ã o feitas prisioneiras de muitas e variadas maneiras. Por exemplo, um ca s telo pode s er a bu s ca con s ta n te de u m a vida excita n te e m ovim en ta da , rep leta de n ovida des e d iver t im en tos . As pes s oa s qu e vivem a s s im s ã o es t im u la n tes , m a s d ifíceis de con viver . Viver n u m ca s telo, por ta n to, n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te u m a vida de p reocu pa ções , a n s ieda de e depres s ã o. As p r is ões m a is s u t is n ã o pa recem em n a da com is s o. Qu a n to m a ior o n os s o s u ces s o n o m u n do extern o, m a is d ifícil pode s er iden t ifica r o ca s telo on de es ta m os com o pr is ion eiros . O s u ces s o em s i é ót im o; con tu do, s e n ã o n os con h ecem os , pode s er u m a p r is ã o. Con h eci pes s oa s fa m os a s em s eu s ca m pos de a t ivida de e qu e a pes a r d is s o era m pr is ion eira s de s eu s ca s telos . Ta is pes s oa s s ó pa r tem pa ra a p rá t ica qu a n do a lgu m a cois a com eça a n ã o da r m a is cer to em s u a vida

em bora o s u ces s o extern o em gera l torn e m a is d ifícil recon h ecer e a dm it ir a des in tegra çã o. Qu a n do a s p r im eira s ra ch a du ra s con creta s a pa recerem n a pa rede do ca s telo, ta lvez comecemos a investigar nossas vidas. Os primeiros anos de prática con s is tem em ch ega r a con h ecer o ca s telo do qu a l s om os p r is ion eiros e com eça r a en con tra r on de es tá o bote a rem o. A via gem a t ra vés do fos s o pode s er tor tu os a , es pecia lm en te n o p r in cíp io. Ta lvez n os a con teça m tem pes ta des e á gu a s a gitadas qu a n do n os s epa ra m os de n os s o s on h o de com o s om os e de com o pensamos que a nossa vida deveria ser.

Um s ó elem en to rea liza por n ós es s a t ra ves s ia : a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do. A ca pa cida de de m a n ter a

Page 129: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

percepçã o con s cien te qu a n do ps eu doprob lem a s a pa recem é a lgo qu e a os pou cos s e des en volve pela p rá t ica , em bora n ã o por es forços delibera dos n es s e s en t ido. Qu a n do s e dã o a con tecim en tos dos qu a is n ã o gos ta m os , cr ia m os ps eu doprob lem a s e fica m os s eu s p r is ion eiros : "Você m e in s u ltou ! Cla ro qu e es tou com ra iva !"; "Es tou tã o s ozin h a . Nin gu ém rea lm en te s e im por ta com igo"; "Min h a vida foi m u ito du ra . Abu s a ra m de m im ". Nos s a via gem n ã o term in a (e ta lvez n u m a ú n ica vida h u m a n a n u n ca ch egu e a o fim ) en qu a n to n ã o virm os qu e n ã o exis te ca s telo e qu e n ã o exis te p rob lem a . A qu a n t ida de de á gu a qu e a t ra ves s a m os em n os s o bote é s em pre a qu ilo qu e ela é. Com o poder ia exis t ir a lgu m prob lem a ? Meu "p rob lem a " ê qu e n ã o gos to d is s o. Nã o gos to d is s o, n ã o gos to des s e jeito, a vida n ã o m e s erve. As s im , pa r t in do de minhas op in iões , rea ções e ju lga m en tos con s t ru o u m ca s telo n o qu a l m e faço prisioneiro.

A p rá t ica a ju da -m e a com preen der es s e p roces s o. Em vez de m e perder em m eio a con tra r ieda des , obs ervo m eu s pen s a mentos e a con tra çã o do m eu corpo. Com eço a ver qu e o inciden te qu e m e t ra n s torn ou n ã o é o p rob lem a rea l; em vez d is s o, m in h a con tra r ieda de der iva de m in h a pa r t icu la r m a n eira de olh a r a vida . Es colh o es ta pa r te e com eço a dem olir o m eu s on h o. Pou co a pou co, vou con s t ru in do u m a cer ta d is tâ n cia em pers pectiva. Meu bote a rem o a fa s ta -s e do ca s telo qu e ergu i e n ã o s ou m a is prisioneiro ali dentro.

Qu a n to m a is tem po p ra t ica m os , m a is ra p ida m en te a va n ça -m os por es s e p roces s o, a ca da vez qu e ele em erge. O t ra ba lh o é len to e des en cora ja dor n o com eço, m a s , con form e vã o a u m en tando n os s o en ten d im en to e n os s a s h a b ilida des , ele a celera ca da vez m a is e ch ega m os depois a ver qu e n ã o exis tem prob lem a s . Podem os des en volver doen ça s e perder o pou co d in h eiro qu e tínhamos; apesar desses transtornos, não há problema.

Porém , "n ós n ã o en xerga m os a vida des s a m a n eira . No m in u to em qu e s e im põe a n ós a lgo de qu e n ã o gos ta m os , tem os , do n os s o pon to de vis ta , u m prob lem a . As s im , a p rá t ica zen n ã o t ra ta de n os a ju s ta rm os a o p rob lem a , m a s de verm os qu e n ã o exis te p rob lem a n en h u m . É u m a es trada muito diferente daquela a qu e es tã o a cos tu m a da s qu a s e toda s a s pes s oa s . A m a ior ia a pen a s ten ta con s er ta r o ca s telo, em vez de ver m a is a lém dele e en con tra r o fos s o qu e n os s epa ra dele

e is s o é o qu e a p rá t ica n os leva a reconhecer.

Page 130: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Na verda de, a m a ior ia n ã o qu er s a ir do ca s telo. Podem os n ã o percebê-lo, m a s a dora m os os n os s os p rob lem a s . Qu erem os con t in u a r com o pr is ion eiros de n os s a s con s t ru ções , gira n do e revolven do n o m es m o pon to com o vít im a s , s en t in do m u ita pen a de n ós . Depois de a lgu m tem po, pode s er qu e ch egu em os a ver qu e es s a vida n a rea lida de n ã o fu n cion a m u ito bem . É qu a n do ta lvez com ecem os a p rocu ra r pelo fos s o. Ma s m es m o en tã o, con t in u a m os a n os ilu d ir , bu s ca n do s olu ções qu e m a n têm o ca s telo in ta cto e a n ós com o pr is ion eiros . Por exem plo, s e u m rela cion a m en to pa rece ser o problema, talvez nos atiremos em outro em vez de descobrir a qu es tã o qu e es tá n a ba s e, e qu e é a n os s a fu n da m en ta l decis ã o sobre a vida, o castelo que erguemos.

"Min h a pern a qu ebrou ." "Es tou a borrecido com a m in h a namorada." "Meu s pa is n ã o m e com preen dem ." "Meu filh o u s a d roga s ." E a s s im por d ia n te. O qu e, n es te exa to m in u to, é o fa tor qu e n os s epa ra da vida e n os im pede de en xerga r a s cois a s com o ela s s ã o? Só qu a n do a vida for a p recia da em todos os s eu s m om en tos é qu e poderem os d izer qu e s a bem os a lgo de u m a vida religiosa.

Com preen der é a ch a ve. Ain da a s s im , s ã o p recis os a n os e a n os de p rá t ica pa ra com eça rm os a en ten der o qu e es tou des cre-ven do e é p recis o cora gem pa ra n os a ven tu ra rm os n a t ra ves s ia do fos s o, d is ta n cia n do-nos do ca s telo. En qu a n to fica m os den tro dele, con s egu im os s en t ir qu e s om os im por ta n tes . É p recis o u m in term in á vel t rein a m en to pa ra cru za r a qu ele fos s o com ra p idez e eficiên cia . Nã o s om os m u ito p ropen s os a s a ir do ca s telo. Se es ta m os ter r ivelm en te depr im idos , a depres s ã o é, a pes a r de tu do, a qu ilo qu e con h ecem os ; qu e Deu s n ã o perm ita qu e n ós deva m os a ba n don a r n os s a dep res s ã o. É a s s u s ta dor en t ra r n o n os s o pequ e-n o bote e deixa r pa ra t rá s toda s a s cois a s qu e a té en tã o ch a m á -va m os de a n os s a vida . Apr is ion a dos n o ca s telo, fica m os con s -t r in gidos a u m es pa ço redu zido, a per ta do. Nos s a vida é s om br ia e a s s u s ta d iça , qu er o perceba m os , qu er n ã o. Felizm en te, a liberdade (o nosso ser verdadeiro) nunca cessa de nos chamar.

ALUNO: Pa ra m im pa rece qu e n ã o h á com o en tra r n o bote e com eça r a t ra ves s ia do fos s o en qu a n to a m a gia da p rá t ica n ã o começar a surtir efeito, depois de meses, talvez um ano.

JOKO: Algumas pessoas vêm para a prática quando suas vidas es tã o ca in do a os peda ços e s eu s on h o pes s oa l es tá ru in do. Ela s

Page 131: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

es tã o gera lm en te p ron ta s pa ra com eça r a dem oliçã o do ca s telo. Pa ra ou tra s , o p roces s o a con tece m a is deva ga r . O p roces s o de s en ta r e p ra t ica r coloca n os s o ca s telo pes s oa l s ob a ta qu e cer ra do; n ã o dem ora m u ito e com eça m os a ver ra ch a du ra s a qu i e a li, m es m o qu e a n tes a con s t ru çã o pa reces s e m u ito s ólida . Tom a m os consciência talvez chocados dessas primeiras rupturas.

ALUNO: Se u m prob lem a parece u m prob lem a , ele n ã o é rea l? O que faz dele um falso problema?

JOKO: Va m os s u por qu e a lgu ém qu e eu a m o foi m a n da do trabalh a r n a Eu ropa por dois a n os e m in h a s obr iga ções m e força m a fica r a qu i. Is s o pa rece qu e é u m prob lem a pa ra m im . A m in h a vida tem s ido u m en t rela ça m en to com a vida des s a pes s oa e fico m u ito in feliz com es s a s epa ra çã o. Do m eu pon to de vis ta , es s e é u m prob lem a rea l; porém , do pon to de vis ta da vida em s i m eu n a m ora do va i pa ra a Eu ropa e eu fico a qu i. Pon to. O ú n ico "problema" é a minha opinião sobre isso.

ALUNO: Você está dizendo que é para não fazer nada a respeito, só aceitar passivamente qualquer coisa que aconteça?

JOKO: Nã o, em a bs olu to. A qu es tã o n ã o é es s a . Se eu ten h o a opçã o de m e m u da r pa ra a Eu ropa pa ra fica r com ele e s e is s o va i s er bom pa ra todos os en volvidos , ót im o. Ma s em gera l n os en con tra m os em s itu a ções a cu jo res peito n ã o h á o qu e s e pos s a fazer . Nem s em pre podem os refa zer o m u n do pa ra qu e s e a ju s te a s n os s a s p referên cia s . A p rá t ica a ju da -n os a lida r com a s cois a s como elas são, e não acrescentar mais nada a elas.

ALUNO: Com o é qu e des cobr im os o qu e é o n os s o ca s telo? Qual é a estratégia?

JOKO: A ch a ve es tá em n ota r o qu e n os deixa con tra r ia dos . O ca s telo é con s t ru ído de em oções pes s oa lm en te cen tra da s . Qu a is são alguns exemplos de contrariedades?

ALUNO: Raiva, alguém dizer algo de que não gosto.

ALUNO: Depressão.

JOKO: A depres s ã o é em gera l u m s in a l de qu e a vida n ã o es tá indo pelo caminho que gostaríamos.

ALUNO: Ciú m e. Nã o gos to do jeito qu e ele es tá olh a n do pa ra ela.

Page 132: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Res s en t im en to, porqu e fiz tu do e eles n ã o m e dera m valor.

JOKO: Es s e é u m elem en to com u m n os com en tá r ios feitos pelos pais: "Fiz tudo por você e qual é o agradecimento que recebo? Dediquei a você os melhores anos de minha vida!".

Todo ca s telo im plica u m con ju n to pes s oa l de p rogra m a s já es ta belecidos . O ca s telo pode s er con s t ru ído em cim a do qu e pa recem s er n obres in ten ções e, m es m o a s s im , ocu lta r pen s a -m en tos a u tocen tra dos . Por exem plo, t ra ba lh a r pa ra os s em -teto pode ser um caminho para mostrarmos aos outros e a nós mesmos com o s om os bon s , com o n os im por ta m os . (A qu es tã o n ã o é s e devem os ou n ã o a ju da r os s em -teto, m a s o m ot ivo qu e n os leva a essa ação.)

ALUNO: Algu m a cois a qu e n os dá felicida de pode ta m bém s er pa r te do ca s telo? Por exem plo, s e es cu ta m os u m lin do t rech o musical para tentar lidar com a contrariedade?

JOKO: Sim , s e a m ú s ica for u s a da com o es ca pe, fa z pa r te do castelo.

ALUNO: Pa ra qu em m ora den tro deles , os ca s telos s em pre parecem que estão baseados na realidade, não é?

JOKO: Cer to, m a s n ã o es tã o. Nos s a decis ã o p rofu n da de qu e a vida é a s s im é qu e cr ia o ca s telo. Toda vez qu e es s a decis ã o é questionada de alguma maneira, nosso castelo balança.

ALUNO: A decis ã o qu e tom a m os decorre de a lgu m a exper iên cia que já tivemos no passado, certo?

JOKO: Sim , em bora ta lvez n ós n ã o lem brem os m a is des s a experiência.

ALUNO: Podem os ter m a is de u m ca s telo? Ou ca da pes s oa vive em um só castelo geral?

JOKO: A m a ior ia vive n u m s ó, m a s com m u itos a pos en tos . Pa ra a m a ior ia , o ca s telo a pa rece em decorrên cia de u m a decis ã o bá s ica com res peito à vida , em bora es s a decis ã o pos s a a pa recer de m u ita s m a n eira s d iferen tes . Tem os de des cobr ir a s vá r ia s form a s pela s qu a is em preen dem os n o con creto a s n os s a s decis ões . Tem os de conhecer bem o nosso castelo.

Page 133: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Con h ecer o n os s o ca s telo s ign ifica tom a r con s ciên cia da tensão em nosso corpo?

JOKO: Sim

e ver e rotu la r os n os s os pen s a m en tos . Ao fa zer -

m os is s o, n ós va m os len ta m en te des t ra n ca n do a por ta do ca s telo e en con tra n do o ca m in h o a té o bote qu e n os leva rá a t ra vés do fos s o. É u m proces s o gra du a l: n ã o h á u m a lin h a dem a rca tór ia vis ível. E n ã o é qu e s a ím os do ca s telo de u m a vez por toda s . Às vezes , ele pa rece es ta r d is ta n te e en tã o a lgo a con tece qu e n ã o h a vía m os vis to a n tes e eis -n os de volta , den tro dele. Nin gu ém con h ece por completo todos os aposentos do castelo.

ALUNO: A a n a logia do ca s telo e do fos s o é ú t il, m a s eu s ei qu e n o in s ta n te em qu e pa ro de p ra t ica r e volto pa ra o res to de m in h a vida perco a minha clareza.

JOKO: A vir tu de de p ra t ica r e de es ta r con vers a n do com o a gora é es cla recer os p rob lem a s qu e en ca ra m os qu a n do volta m os pa ra o res to de n os s a s vida s ; es s a s a t ivida des a ju da m -n os a lida r com is s o. Com u m a boa p rá t ica , es s a ca pa cida de de fa to a u m en ta com o tem po. É verda de qu e podem os s er fa cilm en te s u ga dos de volta pa ra os n os s os velh os pa d rões . Em s i, u m colóqu io com o es te nada pode fazer; a única coisa que importa é aquilo que as pessoas farã o com ele. Con s egu im os olh a r com fra n qu eza pa ra n os s a s á rea s de con tra r ieda de e obs erva rm o-n os con tra r ia dos ? Con s egu im os olh a r pa ra is s o de u m a cer ta d is tâ n cia , com a lgu ma pers pect iva ? Es s e é o a lvo do fos s o: olh a r por cim a do om bro pa ra o ca s telo qu e ficou lá a t rá s e en xergá -lo com m a is n it idez. Em bora s oe fá cil, é d ificílim o, em pa r t icu la r n o com eço. A d ificu lda de n ã o é uma coisa ruim; é só do jeito que é.

ALUNO: Você d ir ia qu e o ca s telo é o con ju n to da pers on a lida de do in d ivídu o? Ou a pen a s s u a s op in iões pes s oa is e s u a s idéia s preconcebidas?

JOKO: Personalidade s u gere u m a es t ru tu ra in tern a perm a n en te ou r ígida . Nos s a pers on a lida de é a es t ra tégia qu e ela bora m os pa ra lida r com a vida . Nes s e s en t ido, o ca s telo é nossa pers on a lida de. Ao p ra t ica rm os du ra n te u m cer to tem po, os a s pectos p redom in a n tes de n os s a pers on a lida de d is s olvem -s e. Na s pes s oa s qu e vêm pra t ica n do bem por m u ito tem po, a pers on a lida de ten de a des a pa recer e da r lu ga r à a ber tu ra . De cer to m odo, qu a n to m a is s en ta rm os pa ra p ra t ica r , m en os pers on alidade teremos.

Page 134: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Con h eço você já fa z m u itos a n os e m e pa rece qu e a gora você tem m a is pers on a lida de do qu e em qu a lqu er ou t ra época de sua vida.

JOKO: Com o tempo, a boa prática nos torna mais sensíveis ao qu e es tá a con tecen do. Em vez de u m a res pos ta in va r iá vel, res -pon dem os de m a n eira m a is livre e con d izen te com a s itu a çã o. A p rá t ica a lim en ta n os s a ca pa cida de de rea gir a p ropr ia da m en te. A personalidade então não atrapalha mais.

V. Percepção Consciente

O PARADOXO DA PERCEPÇÃO CONSCIENTE

Qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica é im por ta n te m a n ter u m a im obilida de tã o a bs olu ta qu a n to pos s ível: es ta r con s cien te da lín gu a n o s eu es pa ço, dos globos ocu la res , da in qu ieta çã o dos dedos . Qu a n do eles de fa to s e m ovim en ta m , é im por ta n te tom a r con s ciên cia do m ovim en to. Qu a n do qu erem os pen s a r , n os s os globos ocu la res s e m ovim en ta m . Tem os m a n eira s m u ito s u t is de es ca pa r de n ós m es m os . A im obilida de a bs olu ta é pa ra m u itos uma instrução restritiva e desagradável. Para mim, é. Depois de ter fica do n a p rá t ica , s en ta da por vá r ios per íodos , qu ero fa zer a lgu m a coisa, consertar algum objeto, tomar conta do que tiver pela frente. Nã o dever ía m os n os m a n ter ten s os ou du ros , m a s s im ples m en te m a n ter a im obilida de ta n to qu a n to pu dés s em os . Serm os a pen a s o qu e s om os é a ú lt im a cois a qu e qu erem os fa zer . Todos n ós tem os gra n des des ejos : de con for to, de s u ces s o, de a m or , de ilu m in a çã o, de ch ega r a o es ta do bú d ico. Qu a n do vem o des ejo, em pen h a m o-n os , ten ta n do torn a r n os s a vida a lgo qu e ela n ã o é. Por is s o, a ú lt im a cois a qu e qu erem os é fica r pa ra dos . Na im obilida de a bs olu ta tom a m os con s ciên cia de n os s a fa lta tota l de d is pon ib ilida de pa ra s erm os o qu e s om os , n es te p róp r io s egu n do. E is s o é u m a cois a m u ito a bor recida : n ós , en fim , n ã o qu erem os fazê-la , de jeito n en h u m . O m es tre Rin za i d is s e: "Nã o desperdice u m pen s a m en to s equ er n a pers egu içã o do es ta do bú d ico". Is s o s ign ifica qu e devem os s er com o s om os , a ca da m om en to, de u m

Page 135: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m om en to pa ra ou tro. É tu do o qu e ja m a is p recis a rem os fa zer , m a s o des ejo h u m a n o é ir em bu s ca de a lgo m a is . Atrá s do qu e n os empenhamos quando sentamos para praticar?

ALUNO: Conforto.

ALUNO: Tentar parar de pensar.

JOKO: Estamos tentando parar de pensar em vez de tomarmos consciência de nosso pensar.

ALUNO: Ter a lgu m a es pécie de exper iên cia corpora l in ten s a , um estado alterado de consciência.

aluno: Paz.

ALUNO: Ficar mais acordado, menos sonolento. Ou livrar-se da ra iva . "As s im qu e con s egu ir m e livra r des ta ra iva , ch ega rei m a is perto do estado de buda."

JOKO: Ou podemos nos lembrar de uma fase de nossa vida em qu e a s cois a s cor r ia m bem , pa ra ten ta rm os en tã o recu pera r es s a s en s a çã o. Se n ã o t iverm os u m a ú n ica idéia de ir n o en ca lço do estado búdico, o que estaríamos fazendo?

ALUNO: Não nos apegando.

JOKO: Não nos apegando e sendo propensos a ser...

ALUNO: Quem somos e onde estamos.

JOKO: Sim

qu em s om os e on de es ta m os , exa ta m en te a qu i e a gora . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , es ta m os n os d is pon do a fa zer is s o por m a is ou m en os t rês s egu n dos . Depois , qu a s e qu e im ed ia ta m en te, já es tá a li o des ejo de m ovim en to, de a gita çã o, de pensar, de fazer alguma coisa.

Nos term os m a is s im p les qu e con s igo en con tra r , exis tem dois t ipos de p rá t ica . Um é a ten ta t iva de n os a per feiçoa rm os ra p ida m en te. Au m en ta m os n os s a en ergia , com em os m elh or , purificamo-n os de a lgu m a m a n eira e força m o-n os a ter u m a m en te cla ra . As pes s oa s pen s a m qu e ilu m in a çã o é o res u lta do des s es es forços , m a s n ã o é. Cla ro, é bom a lim en ta r -s e de m a n eira a de-qu a da , p ra t ica r exercícios , fa zer a qu ela s cois a s qu e n os torn a rã o m a is s a u dá veis . E es s e es forço de viverm os m elh or , de s egu ir por u m caminho que nos levará a alguma parte, pode produzir pessoas qu e pa recem m u ito s a n t ifica da s , m u ito ca lm a s , m u ito impressionantes.

Page 136: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Do pon to de vis ta do s egu n do t ipo de p rá t ica , n o en ta n to, es s a n oçã o de n os t ra n s form a rm os em a lgo d iferen te e m elh or n ã o tem s en t ido. Por qu ê? Porqu e s en do a pen a s com o s om os es tá bem . Uma vez, porém, que sermos como somos não parece bom, ficamos confusos, transtornados, raivosos. Essa declaração de que estamos bem sendo como somos e pronto não faz para nós o menor sentido.

Podem os es cla recer es s a qu es tã o de u m a ou tra m a n eira . Se es ta m os con s cien tes de n os s os pen s a m en tos , a ten dên cia deles é des a pa recer . Nã o podem os es ta r con s cien tes de pen s a r s em qu e o pen s a r com ece a m in gu a r , a d is s olver -s e. Um pen s a m en to é s im ples m en te u m ta n t in h o de en ergia , m a s a ele a cres cen ta m os n os s a s cren ça s con d icion a da s e ten ta m os depois n os a pega rm os a o pen s a m en to. Qu a n do o con s idera m os da pers pect iva de n os s a percepçã o con s cien te im pes s oa l, ele des a pa rece. Qu a n do olh a mos pa ra u m a pes s oa , porém , ela des a pa rece? Nã o, ela perm a n ece. E es s a é a d iferen ça en t re rea lida de e a vis ã o ilu s ór ia da rea lida de qu e tem os , qu a n do vivem os em n os s os pen s a m en tos : qu a n do verda deira m en te con s idera dos com a ten çã o, a qu ela permanece, es ta des a pa rece. A vers ã o pes s oa l da vida s im ples m en te s e des fa z. O qu e n ós qu erem os é s er u m a vida rea l. Is s o é d iferen te de s e viver como um santo.

Todos n ós s om os s edu zidos pelo fa s cín io des te t ipo de p rá t ica : qu erem os n os torn a r ou tra cois a qu e n ã o s om os . Pen s a m os qu e, qu a n do n os s en ta m os em sesshin, es ta m os n os t ra n s form a n do em a lgu m a cois a qu e é u m a ed içã o a per feiçoa da . Mes m o qu a n do des per ta m os pa ra a verda de da s cois a s , o des ejo, bem n o fu n do, é qu erer a lgu m a ou tra cois a qu e s im ples m en te n ã o es tá a li. Nã o tem os de n os livra r de n os s os pen s a m en tos ; ba s ta qu e n os m a n ten h a m os olh a n do pa ra eles . Se p rocederm os a s s im , eles s e des m a n ch a rã o n o n a da . Qu a lqu er cois a qu e s e des m a n ch a n o n a da n ã o é rea l. Ma s a rea lida de n ã o des a pa rece a pen a s porqu e estamos olhando para ela.

ALUNO: Nã o h a ver ia a n eces s ida de de a lgu m t ipo de ob jet ivo pa ra qu e pu des s e a con tecer u m proces s o a fin a l, pa ra qu e s e chegasse em algum resultado?

JOKO: O que você quer dizer com "processo1*?

ALUNO: Processo é fazer alguma coisa.

Page 137: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: A percepçã o con s cien te é u m fa zer? Exis te u m a d iferen ça en t re fa zer a lgu m a cois a

por exem plo, "Vou s er u m a

boa pes s oa "

e a s im ples percepçã o con s cien te do qu e es tou

fazendo. Va m os s u por qu e es tou fa zen do u m a fofoca . Fofoca r é fa zer a lgu m a cois a , m a s a percepçã o con s cien te d is s o n ã o é u m fazer , u m leva r cois a s a a con tecerem . A ba s e do fa zer é o pen s a m en to de qu e a s cois a s dever ia m s er d iferen tes do qu e ela s são.

Em vez de d izer a m im m es m a "Ten h o de m e torn a r u m a pes s oa m elh or" e ten ta r fa zer is s o, eu dever ia s im ples m en te tom a r con s ciên cia do qu e es tou fa zen do

por exem plo, obs erva r qu e toda vez qu e en con tro u m a determ in a da pes s oa eu a coloco de fora . Qu a n do eu t iver m e a com pa n h a do fa zen do is s o u m a cen ten a de vezes , a lgo a con tece. O pa drã o s e des a r t icu la , e torn o-m e u m a pessoa melhor, embora eu n ã o ten h a a gido s egu n do a instrução da s en ten ça pa ra s er u m a pes s oa m elh or . A percepçã o con s cien te n ã o tem s en ten ça s , n ã o tem pen s a m en tos n es s e s en t ido. É a pen a s percepçã o con s cien te. É is s o o s en ta r n a p rá t ica : n ã o fica r p res o n a m en te, n ã o en t ra r n a a rm a d ilh a de es força r -s e pa ra ch ega r em alguma parte, para tornar-se um buda.

ALUNO: Pa rece u m pa ra doxo. Nu m n ível, n os s a m en te es tá fazendo a lgo de form a a t iva e, n u m ou tro, es ta m os con s cien tes do qu e n os s a m en te es tá fa zen do. Em qu e con s is te a percepção consciente?

JOKO: No pen s a m en to com u m , a m en te s em pre tem u m ob jet ivo, a lgu m a cois a qu e irá ob ter . Se n os a tola m os n es s es p rojetos do qu e ob ter , en tã o s om e a percepçã o con s cien te da rea lida de. Terem os s u bs t itu ído a percepçã o con s cien te por u m s on h o pes s oa l. A percepçã o con s cien te n ã o a n da , n ã o s e en ter ra em sonhos; ela apenas permanece onde está.

A p r in cíp io, a d is t in çã o en tre o pen s a m en to cor r iqu eiro e a percepçã o con s cien te pa rece s u t il e es qu iva . Con form e p ra t ica mos, con tu do, a d is t in çã o s e torn a ca da vez m a is n ít ida : com eça m os a n ota r ca da vez m a is com o n os s os pen s a m en tos s ã o ocu pa dos com a ten ta t iva de ch ega rm os em a lgu m lu ga r , e com o fica m os p r is ion eiros deles , de ta l m odo qu e n ã o con s egu im os m a is repa ra r no que está realmente presente em nossas vidas.

Page 138: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: A im pres s ã o qu e dá é qu e ou es ta m os obs erva n do o qu e es tá a con tecen do, ou fica m os a tola dos n o con teú do de n os s os pensamentos.

JOKO: Cer to. Nã o h á n a da de er ra do com u m pen s a m en to em si. É a pen a s u m a dos e de en ergia . Ma s qu a n do n os p ren dem os em s eu con teú do, n a s pa la vra s do pen s a m en to, en tã o o terem os a r ra s ta do pa ra n os s os dom ín ios pes s oa is e qu ererem os fica r a pe-gados a ele.

ALUNO: Fica r a pega do a u m pen s a m en to exige u m a cren ça . Na n oite pa s s a da , en qu a n to ia pa ra u m cer to lu ga r , m in h a m en te esta va rep leta de pen s a m en tos e s en t im en tos . Eu a cred ita va qu e estava praticando: eu sabia que estava com raiva, que estava tenso, qu e es ta va a p res s a do, e m in h a p is ta era eu es ta r com u m a ra iva ca da vez m a ior , ca da vez m a is con tra r ia do. De repen te eu d is s e pa ra m im m es m o: '*Qu a l é a p rá t ica n es te exa to m om en to?". E u m m ilh ã o de pon tos de lu z ilu m in ou o qu e es ta va a con tecen do n a m in h a m en te. De u m a pers pect iva com pleta m en te im pes s oa l a in da h a via o m es m o con teú do

ra iva , p res s a , ten s ã o fís ica , m a s n a da t in h a qu e ver com a m in h a pes s oa . Era qu a s e com o obs erva r uma barata no chão da cozinha.

JOKO: Quando começamos a observar os pensamentos e senti-m en tos , eles com eça m a s e d is s olver . Nã o con s egu em m a n ter -se sem a sustentação de nossa crença neles.

ALUNO: Quando n os a tola m os des s e jeito n os n os s os pensamentos , n os s o m u n do fica m a is es t reito. Nã o tem os m a is u m a pers pect iva do todo. Qu a n do leva m os n os s a percepçã o con s cien te pa ra n os s os pen s a m en tos , es s a es t reiteza a la rga e os pensamentos restritivos começam a sumir.

JOKO: Sim . Se n os s a s vida s n ã o es tã o m u da n do en qu a n to va m os p ra t ica n do, en tã o a lgu m a cois a er ra da es tá ocorren do com o que estamos fazendo.

ALUNO; Qu a n do n os a tola m os em n os s os pen s a m en tos , geramos ansiedade, não é?

JOKO: Sim . A a n s ieda de é s em pre u m a d is tâ n cia en t re o m odo com o a s cois a s s ã o e o m odo com o pen s a m os qu e ela s ter ia m de s er . A a n s ieda de é a lgo qu e s e es ten de en t re o rea l e o ir rea l. Nos s o des ejo h u m a n o é evita rm os a qu ilo qu e é rea l e, em lu ga r dele, es ta rm os n o dom ín io de n os s a s idéia s a res peito do m u n do: Sou

Page 139: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ter r ível"; "Você é ter r ível"; "Você é m a ra vilh os a ". A idéia é s epa ra da da rea lida de, e a a n s ieda de é a d is tâ n cia en t re a idéia e a rea lida de de qu e a s cois a s s ã o a pen a s com o ela s s ã o. Qu a n do pa ra m os de a cred ita r n o ob jeto qu e cr ia m os

qu e es tá por a s s im d izer

des loca do pa ra u m s ó dos la dos da rea lida de , a s cois a s ra p ida m en te s e rea lin h a m de volta n o cen tro. É is s o qu e s ign ifica dizer que algo ou alguém é centrado. A ansiedade então desaparece de vista.

ALUNO: Pa rece qu e fico ext rem a m en te ten s o com es s a tentativa de me ater à percepção consciente.

JOKO: Se você es tá ten ta n do a ter -s e à percepçã o con s cien te, is s o é u m pen s a m en to. Nós u s a m os u m a pa la vra com o percepção consciente e em s egu ida a s pes s oa s torn a m -n a a lgo es pecia l. Se não es ta m os ten ta n do (ten te por a pen a s dez s egu n dos pa ra r de pen s a r ), n os s o corpo rela xa , e con s egu im os ou vir e obs erva r tu do o qu e es tá s e pa s s a n do. No in s ta n te m es m o em qu e pa ra m os de pen s a r , es ta m os con s cien tem en te percep t ivos . A percepçã o con s cien te n ã o é a lgo qu e ten h a m os de s er

é u m a a u s ên cia de alguma coisa. O que é a ausência de uma coisa?

ALUNO: Não é que estamos só mudando aquilo de que estamos côn s cios ? Nã o a ca ba m os de decid ir qu e s em pre es ta m os con s -cien tes ? Min h a p rem is s a é qu e a vida é s em pre percepçã o con s -cien te. Sem pre es ta m os cien tes de a lgu m a cois a . Qu a n do n os s en ta m os n a p rá t ica (em cer to s en t ido, is s o é u m pa ra doxo), tem os um objetivo nesse sentar: estamos refocalizando a nossa percepção consciente, talvez tornando-a mais aguda a respeito de algo.

JOKO: Nã o, is s o tom a a percepçã o con s cien te fa zer a lgu m a cois a . A percepçã o con s cien te é com o o ca lor qu e s obe n u m d ia de verã o: a s n u ven s n o céu a pen a s des a pa recem . Qu a n do es ta m os conscientes, o irreal simplesmente desaparece e não temos de fazer nada.

ALUNO: Há m a is percepçã o con s cien te depois de u m sesshin que antes?

JOKO: Nã o, a d iferen ça é qu e n ã o a es ta m os b loqu ea n do. A percepçã o con s cien te é o qu e s om os , m a s n ós a b loqu ea m os com pen s a m en tos a u tocen tra dos : s on h a n do, fa n ta s ia n do, fa zen do tu do a qu ilo qu e qu erem os fa zer . Ten ta r s er con s cien te é s ó o pen s a m en to com u m , n ã o é a percepçã o con s cien te. Tu do o qu e

Page 140: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

precis a m os fa zer é tom a r con s ciên cia de n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos . Fin a lm en te, eles des a pa recem n a d is tâ n cia e n ós res ta m os a pen a s a li. Em bora s e pos s a d izer qu e es ta m os fa zen do u m a cois a , a percepçã o con s cien te n ã o é u m a cois a n em u m a pes s oa . A percepçã o con s cien te é a n os s a vida qu a n do n ã o es ta -mos fazendo mais nada.

ALUNO: A s im ples percepçã o con s cien te n ã o tem m a is n a da . Não tem espaço, tempo, nada.

JOKO: Cer to, a percepçã o con s cien te n ã o tem es pa ço, tem po, n em iden t ida de

e, a pes a r d is s o, é qu em s om os . No m es m o

in s ta n te em qu e fa la m os dela ela já s e foi. Em term os de p rá t ica , n ã o tem os de ten ta r s er con s cien tes . O qu e tem os de fa zer é obs erva r n os s os pen s a m en tos . Nã o devem os ten ta r s er con s cien tes ; sempre s om os con s cien tes , a m en os qu e es teja m os a p r is ion a dos em n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos . Es s a é a fin a lida de de rotularmos nossos pensamentos.

ALUNO: Então às vezes estamos conscientemente percebendo e não notamos isso.

joko: É.

ALUNO: Ta lvez a d iferen ça en t re os pen s a m en tos com u n s n os qu a is a cred ita m os e a percepçã o con s cien te é qu e u m pen s a m en to em qu e s e a cred ita n ã o s e s u s ten ta n a percepçã o con s cien te, ele não é reconhecido como um simples pensamento.

JOKO: Cer to. E le n ã o é vis to a pen a s com o o fra gm en to de en ergia qu e é de fa to. Nós o con s idera m os rea l, e a cred ita m os n ele. En tã o ele com eça a d ir igir o es petá cu lo, em vez de a percepçã o consciente desempenhar esse papel, que é o que deveria acontecer.

ALUNO: Cos tu m o n ota r a percepçã o con s cien te de m a n eira mais acentuada quando não estava sendo consciente. Por exemplo: de repen te m e dou con ta de qu e es tou n o t ra ba lh o e n em s ei com o cheguei lá e então acordo.

JOKO: Exceto o bu da , todo m u n do flu tu a pa ra den tro e pa ra fora da percepçã o con s cien te. Ma s qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m a ior a porcen ta gem de tem po de n os s a s vida s qu e s erá leva da n a percepçã o con s cien te. Du vido qu e a lgu ém con s iga u m dia viver totalmente na percepção consciente.

Page 141: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Você d is s e "qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os ", m a s n a rea lida de você es ta va s e refer in do à form a com qu e colocamos a atenção no presente?

JOKO: Sim . É pos s ível p ra t ica r s en ta do por vin te a n os e mesmo assim não ter noção do que é essa prática. Mas, se estamos s en ta n do e p ra t ica n do com a tota lida de de n os s a vida , en tã o s em s om bra de dú vida o m on ta n te de percepçã o con s cien te a u m en ta . Eu cos tu m a va pa s s a r m eta de da vida deva n ea n do. Era "a gra dá vel''.

ALUNO: Durante muitos anos, minha prática sentada consistiu em primeiro me desligar do meio ambiente e depois do meu corpo e depois recitar Mu sem parar. Eu era totalmente consciente de nada.

JOKO: Sim , es s a é u m a form a de p rá t ica con cen tra da qu e, pa ra a lgu m a s pes s oa s , p rodu z efeitos rá p idos e in ten s os , m u ito agradá veis . Nã o a ju da m u ito a vida des s a pes s oa . De todo jeito, o Mu não tem de ser praticado dessa forma.

ALUNO: Qu a n do foca lizo a a ten çã o n a percepçã o con s cien te, parece qu e obs ervo m a is dor em m eu corpo. Ma s s e eu s im ples -mente "via ja r" n ã o ten h o m a is p rob lem a de dor , n em s in to dor . Depois a cordo e tom o con s ciên cia , e lá es tá a dor de n ovo. Por qu e a dor desaparece quando eu "viajo"?

JOKO: Bom , n os s os s on h os s ã o n a rcót icos poderos os . Por is s o é qu e gos ta m os ta n to deles . Nos s os s on h os e n os s a s fa n ta s ia s s ã o vicia n tes , da m es m a form a com o a s s u bs tâ n cia s ca u s a dora s de vícios.

ALUNO: Nã o exis te u m a s epa ra çã o da rea lida de s e s en t im os dor?

JOKO: Não, se a sentirmos totalmente.

ALUNO: Se eu rea lm en te m e tom o a dor , es s a dor simplesmente des a pa rece. Porém , a s s im qu e ten h o u m pen s a m en to a res peito, s ofro. Qu a n do obs ervo a dor e ten h o o pen s a m en to qu e d iz qu e é dolor ida , o s ofr im en to perm a n ece, m a s s e eu s im ples m en te a obs ervo com o u m a s en s a çã o in ten s a , o sofrimento some.

JOKO: Qu a n do con s egu im os ver a dor com o a pen a s u m a s en s a çã o es tá vel com m u ita s va r ia ções m ín im a s , torn a -se in teres s a n te e a té m es m o bela . Toda via , s e n os a p roxim a m os dela

Page 142: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

com a idéia de que iremos fazê-la sumir, isso é só um outro jeito de ir atrás de um estado búdico.

ALUNO: Qu a n do com eço a p rá t ica , torn o-m e con s cien te em gera l de es ta r m u ito ten s o, com u m a dor de a per to por todo o corpo. Sin to-a com o a lgo qu e es tá s im ples m en te a li do ou tro la do de m in h a percepçã o con s cien te. Du ra n te a n os a s pes s oa s vivia m m e d izen do: "Você es tá tã o ten s o!" e eu res pon d ia "Nã o es tou ten s o". Hoje percebo qu e eu s im ples m en te n ã o perceb ia es s a ten s ã o, m a s es ta va lá . Eu u s a va m eu s pen s a m en tos pa ra b loqu ea r a percepçã o con s cien te dela . A ten s ã o e a dor es ta va m lã , a pen a s despercebidas.

JOKO: A ten s ã o e a dor s ã o rea is ? Algo es tá lá , m a s o qu e é? Um a n oite des s a s eu es ta va a n da n do a o lon go da cos ta , en qu a n to o lu a r b r ilh a va s obre a á gu a do m a r . Eu con s egu ia ver u m la m pejo brilhante de luz sobre o oceano, ou era o luar que realmente estava ali? O oceano realmente tem algo sobre sua superfície? Qual é essa cor? E rea l ou n ã o? Nen h u m a da s in da ga ções é cor reta . De m in h a pers pect iva , o lu a r es ta va s obre a á gu a . Ma s , s e eu t ives s e m e a proxim a do m a is da ton a d 'á gu a , n ã o ter ia vis to lu a r n en h u m sobre sua superfície. Eu teria visto qualquer coisa que ali houvesse pa ra s e ver . Nã o exis te is s o de lu a r s ob re a á gu a , litera lm en te fa la n do. Qu a n to à s n u ven s do céu : qu a n do es ta m os n u m a n u vem , chamamo-la de n évoa . Da m es m a form a , em pres ta m os u m t ipo de fa ls a rea lida de a n os s os pen s a m en tos . É verda de qu e s em pre vivem os den tro de u m a determ in a da pers pect iva . A p rá t ica d iz res peito a a p ren der a viver n es s a rea lida de rela t iva , des fru ta n do-a, m a s en xerga n do-a com o de fa to é. Com o o lu a r s obre a á gu a , es tá lá

s egu n do u m a cer ta pers pect iva rela t iva

e n ã o é rea l, n ã o é o a bs olu to. Até m es m o a á gu a em s i tem a pen a s u m a rea lida de pa rcia l. Qu a n do n ã o h á lu z s obre a á gu a , vem os qu e ela é p reta . Um d ia eu es ta va ja n ta n do n u m res ta u ra n te qu e fica va n a or la m a r ít im a e a vi m u da r de cor , de a zu l pa ra a zu l-es cu ro, pa ra pú rpu ra a in da m a is es cu ro e fin a lm en te n ã o con s egu i m a is vê-la. O qu e é rea l? Em term os a bs olu tos , n a da d is s o é rea l. Em term os de n os s a p rá t ica , n o en ta n to, devem os com eça r com n os s a s exper iên cia s , com es te t ra ba lh o m et icu los o s obre a percepçã o con s cien te. Precis a m os retorn a r à rea lida de de n os s a s vida s . Tem os dores e pa decim en tos , t em os a dvers ida des , gos ta m os da s pes s oa s ou n ã o: es s e é o con ju n to de cois a s qu e com põe a n os s a vida. É aí que começa nosso trabalho com a percepção consciente.

Page 143: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

RECOBRANDO O JUÍZO

Todos n ós des eja m os a in teireza , a tota lida de. Qu erem os s er pes s oa s com pleta s ; qu erem os u m a s en s a çã o de com pleta m en to; qu erem os fica r em pa z em n os s a s vida s . Ten ta m os s olu cion a r es s e problema, pensar num jeito de chegar na totalidade.

Va m os s u por qu e es ta m os n u m a ca m in h a da por u m a m on -ta n h a e qu e n os s en ta m os à m a rgem de u m r ia ch o. O qu e s ign ifica ser "inteiro" nesse momento?

ALUNO: Ser in teiro s ign ifica r ia s en t ir o a r em m in h a pele e ouvir os sons.

JOKO: Sim...

ALUNO: Pensar em mim.

JOKO: Qu a n do pen s a m os em n ós , s epa ra m o-n os da experiência que estamos vivendo e não somos mais inteiros.

ALUNO: Sentir-m e s en ta do n o ch ã o, em con ta to com a s folh a s e o solo. Observar-me pensando a meu respeito.

JOKO: Sim, essa é a percepção consciente.

ALUNO: Ver o r ia ch o, s en t ir os odores n a tu ra is da ter ra , s en t ir o sol nas minhas costas.

JOKO: Sim, isso também é parte da experiência.

ALUNO: Sen t ir o qu e n ã o es tá p res en te. Por exem plo, qu a n do es tou n u m lu ga r t ra n qü ilo pos s o s en t ir a a u s ên cia de dor . Es s a é uma sensação boa: não existe dor.

JOKO: Es s e é u m t ipo de pen s a m en to qu e n os a fa s ta da percepção consciente ou totalidade. Não há nada de errado com ele, m a s a in da é a lgo ext ra . É com o s e, n o m eio de u m pôr-do-s ol m a g-n ífico a qu e es teja m os a s s is t in do, d is s és s em os : "Ma s qu e pôr-do-sol maravilhoso!". Teríamos nos distanciado um pouco.

En qu a n to es t iverm os s en ta dos à m a rgem do r ia ch o, p rova -velm en te n ã o terem os s en s a ções de s a bor . Ma s va m os s u por qu e es ta m os n u m ja n ta r de Açã o de Gra ça s : é s u rp reen den te com o poucas pessoas realmente sentem o sabor do que estão comendo.

Page 144: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Qu a n do es tou s en ta do per to de u m r ia ch o à s vezes m e dá a im pres s ã o de con s egu ir qu a s e s en t ir es s e r ia ch o em m eu corpo.

JOKO: Ta lvez você es teja fa la n do a cerca n ã o de u m a s en s a çã o, m a s de u m pen s a m en to m u ito s u t il, da qu ele t ipo qu e leva a s pessoas a escreverem livros a respeito do que é estar na natureza.

Se es ta m os a pen a s s en ta dos à m a rgem do r ia ch o, s en t in do tu do o qu e h á pa ra s er s en t ido, n ã o h á n a da a í de s en s a cional: es ta m os a pen a s s en ta dos a li. Va m os s u por , n o en ta n to, qu e co-m eça m os a pen s a r a res peito de n os s os p rob lem a s n a vida . Tor-namo-n os a bs orvidos em n os s os pen s a m en tos , deb ru ça n do-nos s obre com o n os s en t im os a res peito des s es p rob lem a s e do qu e podem os fa zer a respeito deles

e de repen te es qu ecem o-n os de tu do o qu e es tá va m os s en t in do h á u m m in u to a pen a s . Nã o vem os m a is a á gu a , n em s en t im os o ch eiro da m a deira , n em o n os s o corpo. As sensações sumiram. Nesse momento, teremos sacrificado a n os s a vida pa ra poderm os pen s a r a respeito de cois a s qu e n ã o estão presentes, que não são reais, aqui, agora.

Na p róxim a vez qu e es t iverem n u m ja n ta r de Açã o de Gra ça s , ou em qu a lqu er refeiçã o, a liá s , pergu n te pa ra você m es m o s e es tá verda deira m en te s a borea n do s u a com ida . Pa ra a m a ior ia , a exper iên cia de com er u m a refeiçã o é, n a m elh or da s h ipóteses, parcial.

Sem a percepçã o con s cien te de n os s a s s en s a ções , n ã o es ta -m os p len a m en te vivos . A vida é in s a t is fa tór ia pa ra a m a ior ia da s pes s oa s porqu e ela s es tã o a u s en tes de s u a s vivên cia s , qu a s e o tem po todo. Se es ta m os p ra t ica n do s en ta dos h á a lgu n s a n os , fazemo-lo u m pou co m en os . Nã o con h eço n in gu ém com pleta mente presente o tempo todo, porém.

Som os com o o peixe qu e es tá n a da n do de u m la do pa ra ou tro, olh a n do pa ra o gra n de ocea n o da vida , m a s in con s cien te do qu e o cerca . Com o o peixe, in da ga m o-n os s obre o s en t ido da vida , s em perceberm os a á gu a à n os s a volta e o ocea n o em qu e es ta m os m ergu lh a dos . O peixe fin a lm en te en con tra u m profes s or qu e com preen de e lh e pergu n ta : "Qu a l é o gra n de ocea n o?". E o professor apenas ri. Por quê?

ALUNO: Porqu e o peixe jã es ta va n o ocea n o e s im ples m en te não o havia percebido,

Page 145: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Sim. O oceano era s u a vida . Sepa re u m peixe da á gu a e n ã o h á m a is vida pa ra ele. Da m es m a form a , s e n os s epa ra rm os de noss a vida , qu e s e com põe da qu ilo qu e vem os , ou vim os , toca m os , a s p ira m os e a s s im por d ia n te, terem os perd ido o con ta to com o que somos.

Nos s a vida é s em pre a pen a s es ta vida . Nos s o com en tá r io pes s oa l s obre a vida

toda s a s op in iões qu e tem os dela

é a

causa de n os s a s d ificu lda des . Nã o con s egu ir ía m os n os a borrecer s e n ã o es t ivés s em os deixa n do de fora a n os s a vida . Se n ã o es t ivés s em os deixa n do de fora o ou vir , o ver , o s en t ir s a bores , odores , a s en s a çã o cin es tés ica de s im ples m en te es ta r s en t in do nosso corpo, não conseguiríamos nos aborrecer. Por que é assim?

ALUNO; Porque estamos no presente.

JOKO: Sim. Não pod em os n os a borrecer , a m en os qu e n os s a m en te n os ten h a rem ovido do p res en te e leva do pa ra pen s a m en tos ir rea is . Sem pre qu e es ta m os con tra r ia dos es ta m os literalmente * 'de fora'': deixamos algo de fora. Somos como um peixe fora d'água. Qu a n do es ta m os n o p res en te, p len a m en te con s cien tes , n ã o con s egu im os ter u m a idéia do t ipo: "Oh , es s a vida é tã o d ifícil. Tã o s em s en t ido!". Se fa zem os is s o, deixa m os a lgu m a cois a de fora . Só isso!

Um bom a lu n o recon h ece qu a n do s e d is ta n ciou e retorn a à vivên cia im ed ia ta . Às vezes a pen a s ba la n ça m os a ca beça e res -ta belecem os a ba s e de n os s a vida , os a licerces da vivên cia . Des s es a licerces b rota m pen s a m en tos , a ções e u m a cr ia t ividade per feita m en te a dequ a dos . Tu do is s o n a s ce des s e es pa ço da vi-vência, em que os sentidos simplesmente se encontram abertos.

Qu a n do es ta va com dezes s eis , dezes s ete a n os eu gos ta va de tocar os corais de Bach no piano. Um que me agradava em especial era ch a m a do "Em Teu s Bra ços Eu Me Des ca n s o". A t ra du çã o p ros s egu e a s s im : "Os in im igos qu e m e a ta ca r ia m n ã o con s egu em encontrar-m e a qu i". Em bora s eja da t ra d içã o cr is tã , em gera l du a lis ta , es s e cora l t ra ta do es ta r p res en te e des per to. Exis te u m lu ga r de repou s o em n os s a s vida s , u m lu ga r on de devem os es ta r pa ra poderm os fu n cion a r bem . Es s e lu ga r de des ca n s o

os bra ços de Deu s , s e qu is erem ch a m á -lo a s s im

é s im ples m en te a qu i e a gora : ver , ou vir , toca r , s en t ir odores e s a bores , s en t ir a vida com o ela é. Podem os a té a cres cen ta r * 'pen s a r" a es s a lis ta , s e en ten dem os o pen s a r com o a pen a s o fu n cion a m en to n a tu ra l e n ã o

Page 146: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

com o a s reflexões do ego qu e s e ba s eia m em m edo e a pego. Apen a s pen s a r , n o s en t ido fu n cion a l, in clu i o pen s a m en to a bs t ra to, o pen s a m en to cr ia t ivo, ou p la n eja r o qu e tem os pa ra fa zer h oje. Com exces s iva freqü ên cia , porém , a cres cen ta m os pen s a m en tos n ã o fu n cion a is , ba s ea dos n o ego, qu e n os leva m à s d ificu lda des e n os retiram dos braços de Deus.

Um a vida qu e fu n cion a des ca n s a s obre es s es s eis a licerces : os cin co s en t idos m a is o pen s a m en to fu n cion a l. Qu a n do n os s a s vida s es t iverem a poia da s n es s es s eis pon tos de s u s ten ta çã o, n e-nhum problema ou contrariedade pode nos alcançar.

Um a cois a é ou vir u m a pa les t ra dharma s obre es s a s verdades, con tu do, e ou tra viver s egu n do es s es en s in a m en tos . No in s ta n te em qu e a lgo n os con tra r ia , s u b im os im ed ia ta m en te pa ra n os s a ca beça e ten ta m os res olvê-lo. Ten ta m os recu pera r n os s a s egu ra n ça pen s a n do. Pergu n ta m os com o podem os n os m odifica r ou m u da r a lgu m a cois a fora de n ós

e es ta m os perd idos . Pa ra res ta belecerm os n os s a vida em fu n da m en tos firm es , tem os de retorn a r à qu ela s s eis pern a s da rea lida de vá r ia s vezes s egu ida s . Es s a é toda a p rá t ica de qu e p recis a m os . Se m e ocorre o m a is s u t il pensamento de irritabilidade a respeito de alguém, a primeira coisa qu e fa ço n ã o é com eça r a pen s a r n u m jeito de con s er ta r es s a s itu a çã o, m a s a pen a s pergu n ta r pa ra m im m es m a : "Es tou m es m o con s egu in do es cu ta r os ca r ros n o beco?". Qu a n do recu peramos com pleta m en te u m dos s en t idos , com o o da a u d içã o, en tã o os res ta belecem os todos , pois todos fu n cion a m n o m om en to p res en te. As s im qu e recu pera m os a percepçã o con s cien te, vem os o qu e fa zer a res peito da s itu a çã o. A a çã o qu e decorre da vivên cia des per ta quase sempre é satisfatória. Dá certo.

Vocês podem d izer : "Is s o pode s er verda de com os p rob lemas s im ples , m a s du vido qu e dê cer to com os gra n des e com plicados prob lem a s qu e ten h o de en fren ta r". Es s e p roces s o n a rea lida de fu n cion a , porém , qu ã o "s ér io" s eja o p rob lem a . Pode s er qu e n ã o en con trem os a s olu çã o pela qu a l es ta m os p rocu ra n do, e a res olu çã o pode ta m bém n ã o s er im ed ia ta , m a s en xerga rem os qu a l o p róxim o pa s s o a s er da do, Com o tem po, a p ren dem os a con fia r n o p roces s o, a ter fé qu e a s cois a s irã o fu n cion a r da m elh or form a pos s ível d ia n te de s u a s circu n s tâ n cia s . A pes s oa com qu em con tá va m os n ã o a pa receu , fu rou o em prego qu e qu eríamos, doen ça s fís ica s n os im por tu n a m : em vez de fica rm os gira n do em círcu los em n os s os pen s a m en tos , p reocu pa n do-n os com os

Page 147: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

prob lem a s , qu a n do res ta belecem os os a licerces de n os s a vida n a experiência imediata, vemos como agir de maneira apropriada.

Nã o es tou s u ger in do qu e deva m os a gir à s cega s , por m eros im pu ls os . Precis a m os n os in form a r , con h ecer a s cois a s óbvia s a res peito do p rob lem a ; p recis a m os u s a r n os s a in teligên cia n a tu ra l, n os s o pen s a m en to fu n cion a l. Por exem plo, va m os s u por qu e es tou com dor de den te. Se com eço a pen s a r em com o odeio ir a o den t is ta , com s u a s b roca s e a gu lh a s e todo o in côm odo, fico gira n do em círcu los den tro da m in h a ca beça e cr io u m im en s o, p rob lem a pa ra m im m es m a . Se regres s o a os a licerces de m in h a vida , n a s m in h a s exper iên cia s d ireta s , por ou tro la do, pos s o m e dizer: "Bom, agora é só uma pontada. Vou ficar de olho e continuar com o qu e es tou fa zen do. Se es s a pon ta da in s is t ir , ou fica r p ior , telefon o pa ra o den t is ta e m a rco u m a con s u lta ". Com es s a es pécie de abordagem tudo entra nos eixos.

ALUNO: O per igo de eu retorn a r à s m in h a s s en s a ções com u n s é qu e eu pos s o es ta r b loqu ea n do a percepçã o de m in h a a n s ieda de ou p reocu pa çã o de u m a m a n eira a té ra d ica l, com o s e es s a s cois a s não existissem.

JOKO: An s ieda de n a da m a is é qu e cer tos pen s a m en tos e u m a s en s a çã o con com ita n te de ten s ã o ou con tra çã o n o corpo. Retornar a os n os s os s en t idos s ign ifica obs erva r os pen s a m en tos em s u a rea lida de e tom a r con s ciên cia da ten s ã o n o corpo. A percepção con s cien te da ten s ã o é, a fin a l de con ta s , s ó u m a ou tra s en sação física, ao lado de ver, sentir odores etc.

Pa rece u m a cois a lou ca d izer qu e, qu a n do tem os u m pro-b lem a , dever ía m os es cu ta r o t rá fego. Ma s , s e rea lm en te ou vimos, nossos ou tros s en t idos ta m bém cobra m vida . Sen t im os a con tra çã o em n os s o corpo ta m bém . Qu a n do fa zem os is s o, a lgu ma cois a m u da , e fica m a is cla ra a a t itu de qu e tom a rem os com o resposta.

ALUNO: Os s en t idos n ã o fu n cion a m n u m a es pécie de "tem po repa r t ido"? Se es ta m os tota lm en te m ergu lh a dos n a a u d içã o de u m s om , n ã o es ta m os b loqu ea n do os ch eiros , s a bores etc? Ou vir rea lm en te o ba ru lh o dos ca r ros pode s ign ifica r qu e es tou ign o-rando o resto do meu corpo.

JOKO: Es s a es pécie de a ten çã o exclu s iva a u m s ó m odo s en s or ia l é o res u lta do de u m pen s a m en to s u t il, ta lvez a n s ios o, do

Page 148: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

t ipo "Ten h o de fa zer is s o" ou "Es tou em per igo". Se es ta m os com pleta m en te a ber tos , en volvem o-n os em todos os n os s os s en -tidos ao mesmo tempo.

ALUNO: Nem s em pre volto logo pa ra os m eu s s en t idos . Se estou p reocu pa do com a lgu m a cois a , pos s o pen s a r s obre is s o du ra n te u m a s em a n a , a pes a r de m eu s es forços pa ra p res ta r atenção no trânsito ou no que for.

JOKO: Sim , depen den do de h á qu a n to tem po e com qu a n ta firmeza es ta m os p ra t ica n do, es s e p roces s o leva tem po. A ca pa cida de de des loca r -s e com ra p idez é o s in a l d is t in t ivo de u m a p rá t ica qu e já es tá a con tecen do h á m u itos a n os . Algu m a s pes s oa s cons egu em a pega r -s e à s u a in felicida de du ra n te a n os . E rea lm en te gos ta m d is s o. Há pou co tem po a lgu ém es ta va m e d izen do com o ela a p recia s u a s en s a çã o de es ta r s em pre cer ta . Qu em qu er fica r p res ta n do a ten çã o n o ba ru lh o dos ca r ros s e pode des fru ta r es s a s en s a çã o de s er qu em tem s em pre ra zã o? Nã o qu erem os a ba n do-n a r os n os s os pa drões , os pen s a m en tos de qu em s om os , m es m o qu a n do recon h ecem os in telectu a lm en te qu e eles n os ca u s a m pro-b lem a s . Por is s o a pega m o-n os a eles e volta m os pa ra on de es tã o, m es m o depois de n os h a verm os recorda do qu e é pa ra recu pera r -m os o con ta to com os n os s os s en t idos . Nã o es ta m os en tã o a in da p ron tos pa ra con fia r in teira m en te n o p roces s o, pa ra ter fé em nossa vivência direta.

ALUNO: Ten h o u m a ou tra dú vida a res peito da qu es tã o do "tem po repa r t ido". Você in clu iu o pen s a m en to fu n cion a l com o u m a da s s eis pern a s da exper iên cia rea l. Va m os s u por qu e es tou t ra ba -lhando n u m com pu ta dor ou con s er ta n do u m relógio; é n a tu ra l b loqu ea r a a ten çã o da s ou tra s s en s a ções pa ra da r u m a a ten çã o completa ao que estou fazendo?

JOKO: Sim , pode h a ver u m es t reita m en to m ecâ n ico da a ten çã o em prol de u m a a t ivida de es pecífica . Is s o é d iferen te do estreitamento ps icológico, qu e vem dos pen s a m en tos autocentrados geradores de uma sutil rigidez.

ALUNO: En tã o, s e u m a da s ta refa s qu e ten h o en qu a n to m e s en to à m a rgem do r ia ch o é p la n eja r o qu e fa zer n a qu ele d ia , tu do bem?

JOKO: Sim , s u pon do qu e p la n eja r o d ia é u m a ta refa a p ropr ia da pa ra a qu ele m om en to, em vez de a lgo qu e vem de

Page 149: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pen s a m en tos a n s ios os a res peito de s i m es m o. Apen a s fa zem os o qu e tem de s er feito, qu a n do é n eces s á r io fa zê-lo. As s im qu e tivermos nos desincumbido da tarefa, voltamo-nos para o que mais es t iver a con tecen do. Nã o h á p rob lem a em es t reita r a a ten çã o qu a n do is s o for n eces s á r io pa ra rea liza r u m a ta refa . É m u ito d iferen te de fech a r n os s a vida porqu e es ta m os pen s a n do em n ós , que então se torna um impedimento psicológico desnecessário.

A d is t in çã o d iz res peito à fa ls a em oçã o versus a em oçã o verda deira . Se u m com en tá r io qu e n os fizera m h á a lgu n s d ia s a in da es tá n os a borrecen do, es s a em oçã o é fa ls a . Um a em oçã o verda deira é im ed ia ta em rela çã o à s itu a çã o: ta lvez a lgu ém m e a gr ide ou vejo qu e u m a pes s oa es tá a flita . Por u m in s ta n te fico con tra r ia da e fa ço a lgu m a cois a

e depois a ca ba . As em oções s ã o u m a res pos ta a u m a con tecim en to rea l; qu a n do es s e a con te-cim en to n ã o es tá m a is s e des en rola n do, en tã o a s em oções a s s en -ta m de n ovo. Es s a é u m a res pos ta n a tu ra l à vida . Nã o h á n a da de er ra do com a verda deira em oçã o. A m a ior ia da s pes s oa s vive à ba s e de em oções fa ls a s , porém . Ca rrega m lem bra n ça s do pa s sado ou p reocu pa ções qu a n to a o fu tu ro e com is s o cr ia m t ra n s tornos pa ra s i m es m a s . Es s e t ra n s torn o n ã o tem rela çã o com o qu e es tá a con tecen do n a qu ele m om en to. Es ta m os ru m in a n do s obre o qu e aconteceu na semana passada e não conseguimos dormir.

ALUNO: Mes m o qu e a recorda çã o es teja gera n do fa ls a s em oções , exis te u m a s en s a çã o n o corpo qu e é p res en te. A em oçã o está entalada em mim; posso senti-la.

JOKO: Sim- Por ta n to obs erva m os os pen s a m en tos con com ita n tes e s en t im os a ten s ã o do corpo. Qu a n do fa zem os is s o u m n ú m ero s u ficien te de vezes , es s e b loqu eio ces s a . E a lgu m a coisa muda.

ALUNO: Se m eu d ia es tá es pecia lm en te ocu pa do, pode acumular-s e u m a boa dos e de a n s ieda de e dá a im pres s ã o de s er mais agradável ficar então devaneando. Isso é errado?

JOKO: Se é is s o qu e você fa z, fa ça is s o. O p rob lem a é qu e, a o deva n ea r , n ós n os a fa s ta m os da vida . Qu a n do es ta m os a lienados da vida , ign ora m os a s cois a s e n os m etem os em a pu ros . É com o es t ivés s em os flu tu a n do n u m r io de á gu a s revolta s . Aqu i e a li exis tem pedra s e tocos de á rvore qu e s e p rojeta m pa ra fora d 'á gu a . Olh a r pa ra es s a s cois a s pode n os torn a r a n s ios os . Ma s ign orá-las, e em vez d is s o con tem pla r a s lin da s n u ven s n o céu , irá fa zer com

Page 150: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

que mais cedo ou mais tarde nós nos afoguemos. Prestar atenção à á gu a b ra n ca e s u a s pedra s pode pa recer a s s u s ta dor , m a s é u m a idéia muito boa, apesar de tudo,

ALUNO. Con tem pla r o céu m e dá a ilu s ã o de qu e pos s o con trola r a s cois a s . Qu a n do retorn o a os m eu s s en t idos , em gera l ten h o m edo de perder o con trole. Dá u m a s en s a çã o de t ra n qü iíiza çã o perm a n ecer n os a n t igos con d icion a m en tos e ten ta r resolver tudo só na cabeça.

JOKO: Sim . Toda p rá t ica evoca m edo. Por is s o a ltern a m os en tre viven cia r o m edo e volta r pa ra den tro da cida dela dos pensamentos . A m a ior pa r te da vida da s pes s oa s con s is te n u m a rá p ida a ltern â n cia en t re o con ta to e o d is ta n cia m en to com a exper iên cia d ireta . Nã o es pa n ta qu e a vida ta n to pa reça u m a corda bamba.

ALUNO: Volta r pa ra a exper iên cia d ireta pa rece com o a s s en ta r os pontos de sustentação da vida da pessoa.

JOKO: Sim . No in s ta n te em qu e a ten ta m os pa ra o qu e vem pelo n os s o con ju n to de órgã os dos s en t idos , es ta m os bem planta dos . Se a in da con t in u a m os con tra r ia dos , is s o qu er d izer qu e n ã o es ta m os s en t in do p len a m en te os a licerces , qu e a in da res ta algum pensar.

ALUNO: Qu a n do eu es ta va a p ren den do a joga r tên is , o p rofes s or d izia o tem po todo; "Você n ã o con s egu e ba ter d ireito n a bola se seus dois pés não estiverem bem apoiados no chão. Se uma perna estiver no ar, você não está equilibrado".

JOKO: Se n ã o m a n tem os n os s o a poio cen tra do n a s pern a s e n os pés , n os s a ten dên cia é n ã o en xerga r o qu e a con tece à n os s a volta e da r u m a t rom ba da n u m a á rvore ou t ropeça r n u m a ped ra , ou qu a lqu er cois a a s s im . Um a vida des per ta n ã o é u m a cois a s em pé nem cabeça. É muita ligada na realidade.

ALUNO: Qu a n do eu m ora va n o a lto de u m a m on ta n h a em Ma u i era m u ito fá cil deita r n a ter ra e religa r -m e com m in h as s en s a ções , m a s qu a n do es tou n o m eio de u m a s a la de a u la ba ru lh en ta com toda s a s cr ia n ça s ber ra n do, n ã o qu ero viven cia r is s o de jeito n en h u m , n em o ba ru lh o n em a ten s ã o em m eu estômago.

Page 151: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Cer to. Apes a r d is s o, a qu es tã o con t in u a s en do: pa ra negocia r n os s a s vida s de m a n eira eficien te, p recis a m os es ta r em contato tanto quanto possível.

ALUNO: An t iga m en te, em vez de a pen a s m e a br ir pa ra a experiência qu e m e ocorr ia , m in h a ten dên cia era exa gera r o p roces s o a fu n da n do n a s s en s a ções , in do a t rá s dela s de qu a lquer maneira, como um cão atrás do próprio rabo.

JOKO: Há u m pen s a m en to por t rá s de ta n to em pen h o: "Ten h o de entrar no meu roteiro".

ALUNO: Agora , es tou com eça n do a a p ren der u m a ou tra m a n eira : eu m e pergu n to on de es tá a ten s ã o em m eu corpo. Sem força r n a da , a pen a s a com pa n h o a s s en s a ções . Com o tem po aparece uma suave difusão e uma sensação de afundar por dentro, e tom o m a is con s ciên cia a in da de m in h a liga çã o com toda s a s coisas.

JOKO: Ót im o; qu a n do is s o a con tece, tem os u m es pa ço m u ito cla ro pa ra a gir . S im ples m en te s a bem os o qu e fa zer , s em fa zer cá lcu los n em con jectu ra s . O gra u de cla reza qu e en con tra m os é u m a fu n çã o do tem po e da con s is tên cia com qu e t iverm os p ra t i-ca do. E im por ta n te, porém , n ã o cr ia r u m ou tro idea l em n os s a ca beça ("Precis o fa zer com qu e is s o a con teça ") e n os es força r pa ra atingi-lo. Estamos onde precisamos estar.

Com o d izia a let ra da qu ele cora l, exis tem a licerces em n os s a vida , u m lu ga r em qu e n os s a vida s e a s s en ta . Es s e lu ga r n a da m a is é qu e n os s o m om en to p res en te, qu a n do vem os , ou vimos, viven cia m os o qu e é. Se n ã o volta rm os pa ra es s e lu ga r , viverem os nossas vidas em função do que estiver em nossa cabeça. Culpamos os ou tros , qu eixa m o-n os , s en t im os pen a de n ós . Todos es s es s in tom a s m os tra m qu e es ta m os a tola dos em n os s os pen s a m en tos . Estamos fora de con ta to com o es pa ço a ber to qu e es tá exa ta m en te a qu i. Só depois de a n os e a n os de p rá t ica é qu e s om os ca pa zes de viver no espaço aberto e desperto, a maior parte do tempo.

ALUNO: Min h a ten dên cia é ir em bu s ca de lu ga res ca lm os , s ilen cios os , on de s eja m a is fá cil a b r ir -m e pa ra o p res en te e evita r lugares como salas de aula barulhentas, onde fico tenso e distraído.

JOKO: Sim , es s e é u m im pu ls o n a tu ra l e n ã o h á n a da de er ra do n is s o. Mes m o a s s im , é u m a es pécie de evita çã o. Con form e n os s a p rá t ica va i fica n do m a is for te, torn a m o-n os ca pa zes de

Page 152: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m a n ter a a ber tu ra e a con s is tên cia n a qu ela s s itu a ções em qu e anteriormente a s ter ía m os perd ido. A cois a im por ta n te é a p ren der a n os a b r ir pa ra o qu e for qu e a vida n os t ra ga , on de qu er qu e es teja m os . Se es t iverm os a ler ta s o s u ficien te, obs erva rem os n os s o impulso de evitar e poderemos regressar à percepção consciente do pres en te, s em h es ita çã o. Es s a s in ces s a n tes pen du la ções da a ten çã o s ã o a p rá t ica em s i. Qu a n do es ta m os ten ta n do evita r ou es ca pa r de a lgu m a cois a , volta m os a os pen s a m en tos em vez de à s experiências diretas.

ALUNO: As vezes, quando tento concentrar-me em minha expe-riência

diga m os u m s en t im en to de ra iva , ou a ten s ã o n o queixo , pa rece qu e is s o s e expa n de e en ch e a s a la toda . Toda s as minhas outras sensações desaparecem.

JOKO: Há a lgu m pen s a m en to vela do por t rá s des s a s exper iên cia s e n ã o s im ples m en te u m a s en s a çã o a ber ta . Se viven cia m os por com pleto u m órgã o do s en t ido, viven cia m os todos os ou tros ta m bém . Se den om in a m os a n os s a ra iva e con cen tra m o-nos n ela exclu in do tu do o m a is , n ã o terem os a in da en con tra do a nossa vida.

ALUNO: E qu e ta l s im ples m en te obs erva r a s p rópr ia s sensações?

JOKO: Há va lor n is s o. Ma s é t ra n s itór io; a in da res ta u m elem en to de pen s a m en to, de du a lida de s u jeito-ob jeto. Se de fa to escutam os o ba ru lh o dos ca r ros , es ta m os a bs orvidos n ele. Nã o h á eu , n ã o h á t rá fego. Nã o h á obs erva dor e n ã o h á ob jeto da s en s a çã o. Retornamos ao que somos, que é simplesmente a vida em si.

ATENÇÃO SIGNIFICA ATENÇÃO

Segu n do u m a a n t iga h is tór ia zen * u m a lu n o ter ia d ito a o mestre Ich u : "Por fa vor , es creva -m e a lgo com gra n de s a bedor ia ". O m es tre Ich u tom ou de s eu p in cel e es creveu u m a s ó pa la vra : "Aten çã o". O a lu n o in da gou : "É tu do?". O m es tre es creveu en tã o: "Atenção. Atenção". O aluno ficou irritado. "Não me parece que seja

* Philip Kapleau, ed., The three piliars of zen: Teaching, practice, enlightenment, Boston: Beacon, 1967, p. 10-11.

Page 153: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

profu n do n em s u t il." Em res pos ta , o m es t re es creveu s im ples m en te: "Aten çã o. Aten çã o. Aten çã o". Fru s t ra do, o a lu n o exigiu : "O qu e s ign ifica es s a pa la vra atenção!". E o m es t re Ich u disse: "Atenção significa atenção".

Em lu ga r de atenção poder ía m os u s a r percepção cons cien te. Aten çã o ou percepçã o con s cien te é o s egredo da vida , o cern e da p rá t ica . Com o o a lu n o n es s a h is tór ia , con s idera m os es s e en -s in a m en to u m a decepçã o; é á r ido e des in teres s a n te. Qu erem os a lgo excita n te em n os s a p rá t ica ! A s im ples a ten çã o en ted ia ! Perguntamos: a prática é só isso?

Qu a n do os a lu n os a pa recem pa ra fa la r com igo, ou ço qu eixas e m a is qu eixa s : o h orá r io do ret iro, o a lim en to, o s erviço, eu m es m a , e a s s im por d ia n te. Ma s a s qu es tões qu e a s pes s oa s es tã o m e t ra zen do n ã o s ã o m a is releva n tes ou im por ta n tes do qu e u m even to "t r ivia l" com o es fola r u m dedo. Com o coloca m os a s n os s a s a lm ofa da s ? Com o es cova m os os n os s os den tes ? Com o va r rem os o ch ã o ou fa t ia m os u m a cen ou ra ? Pen s a m os qu e es ta m os a qu i pa ra da r con ta de qu es tões "m a is im por ta n tes ", com o os p rob lem a s qu e tem os com n os s os côn ju ges , n os s os t ra ba lh os p rofis s ion a is , n os s a saúde etc. Não queremos nos incomodar com as "pequenas" coisas, por exem plo com o s egu ra m os n os s os ta lh eres ou on de pom os a colh er . Mes m o a s s im , s ã o es s es a tos qu e con s t itu em o es tofo de n os s a vida , de u m m om en to a ou tro. Nã o é u m a qu es tã o de im por tâ n cia ; é u m a qu es tã o de p res ta r a ten çã o, de es ta r con s cien tem en te percep t ivo. Por qu ê? porqu e ca da m om en to n a vida é a bs olu to em s i. E is s o é tu do o qu e exis te. Nã o exis te m a is n a da a lém des te m om en to p res en te; n ã o exis te pa s s a do, n ã o exis te fu tu ro, n ã o exis te n a da a lém d is to. Por is s o, qu a n do n ã o p res ta m os a ten çã o a ca da pequ en o isto, perdem os tu do. E o con teú do do isto pode s er qu a lqu er cois a . Is to pode s er en d ireita r n os s os colch on etes de p ra t ica r , fa t ia r u m a cebola , vis ita r a lgu ém qu e n ã o des eja m os vis ita r . Nã o im por ta o con teú do do qu e s eja o m om en to; ca da m om en to é a bs olu to. É s ó is s o qu e exis te e qu e ja m a is exis t irá . Se con s egu ís s em os p res ta r tota lm en te a ten çã o, n u n ca fica r ía m os con tra r ia dos . Se es ta m os con tra r ia dos , é a xiom á t ico qu e n ã o es ta m os p res ta n do a ten çã o. Se perdem os n ã o a pen a s u m s ó m om en to, m a s u m m om en to depois do ou tro, estamos em apuros.

Va m os s u por qu e fu i con den a da a s er deca p ita da n a gu ilh o-t in a . Agora es tou ca m in h a n do e s u b in do os degra u s qu e leva m a o

Page 154: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ca da fa ls o. Con s igo m a n ter m in h a a ten çã o n o m om en to? Con sigo es ta r con s cien te de ca da pa s s o, pa s s o a pa s s o? Con s igo coloca r m in h a ca beça n a gu ilh ot in a cu ida dos a m en te pa ra a s s im s ervir bem a o a lgoz? Se eu con s egu ir viver e m orrer des s a m a n eira , n ã o surgem quaisquer problemas.

Nos s os p rob lem a s a pa recem qu a n do s u bord in a m os es te m o-mento a alguma outra coisa, a nossos pensamentos autocentrados: n ã o é s ó es te m om en to, m a s o qu e eu quero. Reves t im os o m om en to com n os s a s p r ior ida des pes s oa is , o d ia in teiro. E é a s s im que começamos a ter dificuldades.

Um a ou tra h is tór ia a n t iga d iz res peito a u m gru po de la drões que invade o estúdio de um mestre zen e lhe diz que iam decepá-lo. Ele com en tou : "Por fa vor , a gu a rdem a té a m a n h ã de m a n h ã . Precis o con clu ir u m cer to t ra ba lh o". As s im , pa s s ou a n oite com pleta n do o t ra ba lh o, beben do ch á e des fru ta n do. Es creveu u m poem a s im ples n o qu a l com pa ra va s u a ca beça decepa da a u m a b r is a p r im a ver il e o en t regou a os la d rões com o u m presente quando eles voltaram. O mestre entendia bem o que era praticar.

Tem os d ificu lda de em com preen der es s a h is tór ia porqu e tem os todos u m im en s o a pego à n os s a ca beça , qu e qu erem os qu e perm a n eça s obre n os s os om bros . Nã o é n os s o des ejo pa r t icular qu e n os s a s ca beça s s eja m decepa da s . Es ta m os determ in a dos a qu e a vida p ros s iga do jeito com o nós qu erem os qu e p ros s iga . Qu a n do is s o n ã o a con tece, fica m os com ra iva , con fu s os , depr i-m idos , ou de a lgu m a form a con tra r ia dos . Nã o é ru im em s i ter esses sentimentos, mas quem quer uma vida comandada por eles?

Qu a n do a a ten çã o a o m om en to p res en te é des via da pa ra a lgu m a vers ã o de "Eu ten h o de con s egu ir a s cois a s ao m eu m od o", cria-s e u m a d is tâ n cia en t re n os s a percepçã o con s cien te e a rea lida de ta l com o é, n es te m om en to p recis o. Nes s a d is tâ n cia ou fos s o des peja m os todos os m a les de n os s a vida . Cr ia m os u m a d is tâ n cia a t rá s da ou t ra , em s eqü ên cia , o d ia in teiro. A fin a lida de da p rá t ica é a n u la r es s a s d is tâ n cia s , é redu zir o tem po qu e pa s -samos ausentes, prisioneiros de nosso sonho autocentrado.

No en ta n to, com etem os u m er ro s e pen s a m os qu e a s olu çã o es tá em qu e eu pres to a ten çã o. Nã o é "EU va r ro o ch ã o", "EU fa t io a cebola ", "EU d ir ijo o ca r ro". Em bora es s a p rá t ica s eja n eces s á r ia n os es tá gios p relim in a res , ela con t in u a a lim en ta n do os pen s a m en tos a u tocen tra dos a o den om in a r a pes s oa com o u m "EU"

Page 155: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa ra o qu a l a exper iên cia es tá p res en te. Um jeito m elh or de en ten der é a s im ples percepçã o con s cien te: a pen a s viven cia r , viven cia r , viven cia r . Na s im ples percepçã o con s cien te, n ã o h á d is tâ n cia , n ã o h á es pa ço pa ra pen s a m en tos a u tocen t ra dos a pa re-cerem.

Em a lgu n s cen tros zen , os a lu n os s ã o s olicita dos a s e en -volver em a ções em câ m era exa gera da m en te len ta , por exem plo a ba ixa n do ob jetos e ergu en do-os m u ito deva ga r . Es s a a ten çã o a u tocon s cien te é d iferen te da s im ples percepçã o con s cien te, do a pen a s fa zer o a ba ixa -leva n ta . A receita pa ra s e viver é s im ples -mente fazer o que estamos fazendo. Não estando autoconsciente do qu e fa z; s ó fa zen do. Qu a n do ocorrem os pen s a m en tos a u to-centrados , en tã o er ra m os de bon de e a pa rece a d is tâ n cia . Es s a d is tâ n cia ou fos s o é o loca l de n a s cim en to dos p rob lem a s e transtornos que nos atormentam.

Mu ita s form a s de p rá t ica , com u m en te ch a m a da s de m ed i-ta çã o con cen tra t iva , bu s ca m es t reita r a percepçã o con s cien te de a lgu m a m a n eira . Os exem plos in clu em recita r m a n tra s , con cen -trar-s e n u m a im a gem vis u a l, t ra ba lh a r com o Mu (de m a n eira con cen tra da ) e a té m es m o a com pa n h a r a res p ira çã o s e is s o for feito de m odo a deixa r de fora os dem a is órgã os dos s en t idos . No proces s o de a fu n ila m en to da a ten çã o, es s a s p rá t ica s ra p ida mente cr ia m cer tos es ta dos a gra dá veis . Podem os s en t ir qu e n os es qu iva m os de n os s os p rob lem a s porqu e n os s en t im os m a is ca l-m os . Qu a n do n os in s ta la m os n es s e foco tã o es t reito, podem os depois de u m cer to tem po a té en t ra r em tra n s e, com a s pectos de torpor e s os s ego, n u m es ta do em qu e tu do n os es ca pa . Apes a r de es s es m om en tos s erem ú teis , toda p rá t ica qu e a fu n ila n os s a per -cepçã o con s cien te é lim ita da . Se n ã o leva rm os em con ta tu do em n os s o m u n do, ta n to de n a tu reza fís ica com o m en ta l, perderem os a lgu m a cois a . Um a p rá t ica es t reita n ã o s e t ra n s fere bem pa ra o res to de n os s a vida ; qu a n do a leva m os pa ra o m u n do, n ã o s a be-mos como agir e podemos ainda nos sentir bastante constrangidos. Um a prá t ica de con cen tra çã o, s e fôs s em os m u ito pers is ten tes (com o eu cos tu m a va s er ), pode m om en ta n ea m en te n os força r a a t ra ves s a r n os s a res is tên cia , e en tã o ter u m vis lu m bre do a bs oluto. Es s a a ber tu ra força da n ã o é rea lm en te a u tên t ica ; a lgo fica de fora . Em bora ten h a m os u m vis lu m bre do ou tro la do do m u n do fen om ên ico, ca p ta n do o n a da ou o pu ro va zio, a in da exis te u m eu

Page 156: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

rea liza n do is s o. A exper iên cia con t in u a s en do du a lis ta e lim ita da em sua aplicabilidade.

Por ou tro la do, a n os s a percepçã o con s cien te com o prá t ica é ta l qu e recebe tu do o qu e a con tece. O "a bs olu to" é s im plesmente tu do em n os s o m u n do, es va zia do do con teú do em ocion a l pes s oa l. Com eça m os por es va zia r -n os n ós m es m os des s es pen samentos a u tocen tra dos , a o a p ren derm os a es ta r ca da vez m a is con s cien tem en te percep t ivos em todos os n os s os m om en tos . Em -bora u m a p rá t ica de con cen tra çã o pos s a foca liza r a res p ira çã o e bloquear o som dos carros ou o falatório de nossa mente (o que nos deixa perd idos qu a n do perm it im os qu e qu a lqu er es pécie de exper iên cia pen etre n a con s ciên cia ), a p rá t ica da percepçã o con s -cien te es tá a ber ta a qu a lqu er exper iên cia p res en te

em todo es te in côm odo u n ivers o

e a ju da -n os a irm os a os pou cos n os desemaranhando de nossas reações e apegos emocionais.

Toda vez qu e tem os u m a qu eixa a res peito de n os s a s vida s , es ta m os n a qu ele t ipo de d is tâ n cia de qu e fa lei. Na p rá t ica da percepçã o con s cien te, obs erva m os n os s os pen s a m en tos e a con -t ra çã o de n os s o corpo receben do tu do is s o e volta n do pa ra o m om en to p res en te. Es s e é o t ipo m a is á rdu o de p rá t ica . Prefer i-r ía m os com cer teza fu gir des s a cen a ou en tã o perm a n ecer m er-gu lh a dos em n os s os pequ en os t ra n s torn os . Afin a l de con ta s , toda s a s n os s a s a dvers ida des n os m a n têm com o o cen tro da s cois a s ou pelo m en os a s s im a cred ita m os . A a t ra çã o de n os s os pen s a m en tos autocentrados é como pisar na lama: nosso pé cons egu e a cu s to s e despregar e já está preso de novo. Podemos nos libertar lentamente, mas, se pensarmos que é fácil, estaremos nos enganando.

Toda vez qu e es t iverm os a borrecidos , es ta rem os n es s a d is -tâ n cia ; n os s a s em oções a u tocen tra da s , o qu e nós qu erem os de n os s a vida , p redom in a m . No en ta n to, n os s a s em oções do m omento n ã o s ã o m a is im por ta n tes do qu e en cos ta r a ca deira de volta n o lugar ou recolocar a almofada no lugar certo.

A m a ior ia da s em oções n ã o decorre do m om en to im ed ia to, com o qu a n do p res en cia m os a cen a de u m a cr ia n ça s en do a t rope-la da por u m ca r ro, m a s s ã o gera da s por n os s a s exigên cia s a u to-cen tra da s de qu e a vida s eja com o nós qu erem os qu e ela s eja . Em bora n ã o fa ça m a l ter es s a s em oções , a p ren dem os pela p rá t ica qu e ela s n ã o têm im por tâ n cia em s i. En d ireita r o lá p is s obre a carteira é tão importante quanto se sentir abandonado ou solitário,

Page 157: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

por exem plo. Se con s egu im os viven cia r o s en t ir -s e s olitá r io e en xerga r n os s os pen s a m en tos a res peito de es ta rm os s olitá rios, entã o con s egu im os s a ir do fos s o des s a d is tâ n cia . A p rá t ica é es s e m ovim en to, vezes e vezes s egu ida s . Se n os lem bra m os de a lgo qu e a con teceu h á s eis m es es e com es s a recorda çã o s u rgem s en t im en tos de a bor recim en to, n os s os s en t im en tos devem s er vis tos com in teres s e, e n a da m a is . Em bora pos s a pa recer u m a cois a fr ia , é n eces s á r ia es s a a t itu de pa ra qu e n os torn em os pes -s oa s gen u in a m en te a fet iva s e com pa s s iva s . Se n os percebem os pen s a n do qu e n os s os s en t im en tos s ã o m a is im por ta n tes do qu e a qu ilo qu e es tá a con tecen do n u m da do m om en to, p recis a m os obs erva r a p res en ça des s e pen s a m en to. Va rrer a ca lça da é rea li-da de; n os s os s en t im en tos s ã o u m a cois a qu e n ós cr ia m os , com o u m a teia qu e fia m os e n a qu a l n os en reda m os . É u m proces s o s u rp reen den te es s e em qu e n os m etem os

em cer to s en t ido, somos todos malucos.

Qu a n do vejo m eu s pen s a m en tos e obs ervo a s s en s a ções do m eu corpo, recon h eço a m in h a res is tên cia pa ra p ra t ica r com es s a s vivên cia s e depois volto pa ra term in a r de es crever a ca r ta qu e es ta va fa zen do, en tã o es tou m e a r ra n ca n do do fos s o da d is tâ n cia e en t ra n do n a percepçã o con s cien te. Se form os de fa to pers is ten tes , d ia a pós d ia , irem os gra du a lm en te des cob r ir n os s o ca m in h o pa ra s a ir des s a in s en s a ta con fu s ã o qu e é a n os s a vida pes s oa l. A ch a ve é atenção, atenção, atenção.

Preench er u m ch equ e é tã o im por ta n te qu a n to o a n gu s t ia n te pen s a m en to de qu e n ã o verem os u m en te qu er ido. Qu a n do n ã o t ra ba lh a m os com o fos s o cr ia do pela des a ten çã o, todos os ou tros pagam um preço.

A p rá t ica é n eces s á r ia pa ra m im ta m bém . Va m os s u por qu e eu a n s eio pela vis ita de m in h a filh a n a época do Na ta l, e ela m e telefon a pa ra d izer qu e n ã o vem . A p rá t ica a ju da -m e a con t in u a r a amá-la em vez de m e s en t ir con tra r ia da porqu e ela n ã o fa rá o qu e eu qu er ia qu e fizes s e. Com a p rá t ica , pos s o a m á -la com m a is plenitude. Sem a p rá t ica , eu m e s en t ir ia u m a velh in h a s olitá r ia e des a m pa ra da . Em cer to s en t ido, a m or é s im ples m en te a ten çã o, s im ples m en te percepçã o con s cien te. Qu a n do m e m a n ten h o con s -cien tem en te percep t iva , pos s o lecion a r bem , o qu e é u m a form a de a m a r ; pos s o coloca r m en os expecta t iva s n os ou tros e s ervi-los m elh or ; qu a n do vir m in h a filh a ou tra vez, n ã o t ra rei a n t igos ressentimentos para esse encontro e serei capaz de vê-la com olhos

Page 158: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n ovos . As s im , a p r ior ida de é a qu i e a gora . Aliá s , exis te u m a s ó p r ior ida de e é a a ten çã o a o m om en to p res en te, s eja qu a l for s eu conteúdo. Atenção significa atenção.

FALSAS GENERALIZAÇÕES

Na s ru d in , s á b io e tolo s u fi, es ta va u m d ia em s eu ja rd im es pa lh a n do fa relo de pã o por todo la do. Qu a n do u m vizin h o lh e pergu n tou por qu e o fa zia , ele d is s e: "Pa ra m a n ter os t igres a d is tâ n cia ". O vizin h o en tã o com en tou : "Ma s n ã o exis tem t igres n u m ra io de 2 .000 km a o redor da qu i!". E Na s ru d in con clu iu : "Eficaz, não é?".

Rim os porqu e tem os cer teza de qu e a s du a s cois a s

tigres e fa relo de pã o

n ã o têm n a da qu e ver u m a com a ou tra . No en ta n to, com o a con tece com Na s ru d in , n os s a p rá t ica e n os s a s vida s cos tu m a m ba s ea r -s e em fa ls a s gen era liza ções qu e n a da têm qu e ver com a rea lida de. Se n os s a vida es tá a licerça da em con ceitos gen era liza dos , podem os a gir com o Na s ru d in , es pa lhando fa relo de pã o pa ra m a n ter os t igres a fa s ta dos . Dizem os , por exem plo, "Eu a m o a s pes s oa s ", ou "Eu a m o m eu m a r ido". A verdade é que ninguém ama ninguém o tempo todo e ninguém ama o m a r ido ou a es pos a o tem po todo. Es s a s gen era lida des obs cu recem a rea lida de es pecífica e con creta da n os s a vida , daquilo que está acontecendo conosco neste dado momento.

Cla ro qu e pos s o a m a r o m a r ido qu a s e o tem po todo. Ain da a s s im , a gen era liza çã o em s i deixa de fora a rea lida de m u tá vel e ca m bia n te de u m a rela çã o rea l. Da m es m a m a n eira , d izer "Eu a m o o m eu t ra ba lh o", ou "A vida é du ra com igo". Qu a n do com eça m os a p ra t ica r , em gera l a cred ita m os em op in iões gen era liza da s e a s expres s a m os . Podem os pen s a r , por exem plo, "Sou u m a pes s oa a ten cios a ", ou "Sou u m a pes s oa ter r ível". Porém , n a rea lida de, a vida nunca é uma generalidade. A vida sempre é específica: é o que es tá a con tecen do n es te exa to m om en to. A p rá t ica s en ta da a ju da -n os a en xerga r em m eio a o n evoeiro da s gen era liza ções a cerca de n os s a s vida s . Con form e va m os p ra t ica n do, n os s a ten dên cia é abandonar nossos conceitos generalizados em favor de observações m a is es pecífica s . Por exem plo, em lu ga r de "Nã o con s igo tolera r m eu m a r ido", obs erva m os "Nã o con s igo s u por ta r o m eu m a r ido

Page 159: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

qu a n do ele n ã o s e cu ida ", ou "Nã o con s igo m e s u por ta r qu a n do faço isso ou aquilo". Em vez de conceitos generalizados, vemos com m a is cla reza o qu e es tá s e pa s s a n do. Nã o fica m os m a is reves t in do os acontecimentos com grandes pinceladas de verniz.

Nos s a exper iên cia de u m a ou tra pes s oa ou s itu a çã o n ã o é a pen a s u m a cois a s ó. Pode in clu ir m ilh a res de pen s a m en tos e rea ções m en ores . Um pa i pode d izer "Am o a m in h a filh a ", e, n o en ta n to, es s a gen era liza çã o ign ora m om en tos ta is com o ' 'Por qu e ela é tã o im a tu ra ?", ou "Ela es tá s en do ign ora n te". Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , obs erva n do e rotu la n do n os s os pen -s a m en tos , torn a m o-n os m a is fa m ilia r iza dos com o in ces s a n te t ra n s borda m en to de n os s a s op in iões ã res peito de tu do e de n a da . Em vez de a pen a s n ivela r por ba ixo o m u n do todo em gen era li-zações va zia s , torn a m o-n os côn s cios de n os s os con ceitos e ju l-ga m en tos m a is es pecíficos . Ao n os fa m ilia r iza rm os m a is com o n os s o pen s a m en to, des cobr im os qu e es ta m os m u da n do, de u m momento para o outro, assim como nossas idéias mudam.

Es cu tem os o qu e d iz u m a cer ta m oça . E la es tá s a in do com um rapaz há algum tempo. Ela pensa que as coisas estão indo bem. Se lh e pergu n ta s s em , ela d ir ia qu e rea lm en te s e im por ta m u ito com ele. Nes te m om en to ele lh e telefon a . Va m os ou vir n ã o s ó o qu e ela diz para ele, mas também o que ela está pensando para si:

Qu e bom qu e você es tá liga n do pa ra m im . Você pa rece ótimo ("Mas devia ter telefonado mais cedo").

Ah , en tã o você foi a lm oça r com fu la n a , É s im , ela é en ca n ta dora . Ten h o cer teza de qu e você gos tou m u ito da com -panhia dela ("Eu te mato!").

Você es tá a ch a n do qu e es tou m eio s em a s s u n to? Qu e n ã o s ou m u ito de fa la r? Bom , obr iga da por s u a op in iã o ("Você m a l m e con h ece! Com o ou s a fa zer es s a es pécie de gen era liza çã o a m eu respeito!").

Você foi bem n o exa m e? Fico feliz por is s o. Qu e bom pa ra você! ("Ma s es tá s em pre pen s a n do n ele! Será qu e ter ia a lgu m interesse pela minha vida?")

Você gos ta r ia de s a ir a m a n h ã à n oite pa ra ja n ta r? Eu a dora r ia ir . Ser ia ót im o vê-lo de n ovo! ("Fin a lm en te m e con vidou! Só queria que não tivesse deixado para o último instante!")

Page 160: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Es s a é u m a con vers a per feita m en te cor r iqu eira en t re du a s

pes s oa s , a qu ela es pécie de fa r s a qu e pa s s a por com u n ica çã o. Es s a s pes s oa s p rova velm en te gos ta m u m a da ou tra . Mes m o a s sim, ela es ta va form u la n do u m con ceito a pós o ou tro s ob re ele e s obre si mesma. A conversa foi um verdadeiro mar de material conceituai; foi com o dois gra n des n a vios qu e s e cru za m em a lto-m a r à n oite

total ausência de contato.

Den tro da p rá t ica zen cos tu m a m os deba ter con ceitos ilu s ó-r ios o tem po todo: "Tu do é per feito s en do com o é"; "Todos es tã o fa zen do o m elh or qu e podem "; "Toda s a s cois a s s ã o u m a s ó"; "Sou u n a com ele". Ch a m a m os tu do is s o de a fa la çã o in ú t il do zen , em bora a s ou tra s religiões ta m bém ten h a m a s s u a s p rópr ia s vers ões . Nã o é qu e a s decla ra ções s eja m fa ls a s . O m u n do é uno. Eu sou você. Tu do é perfeito s en do com o é. Todo s er h u m a n o n a fa ce do p la n eta es tá fa zen do o m elh or qu e pode n es te m om en to. É s em dú vida verda de. Ma s , s e pa ra rm os n is s o, terem os feito da n os s a p rá t ica u m exercício s ob re con ceitos e terem os perd ido a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do con os co n es te exa to segundo.

A boa p rá t ica s em pre im plica a n a lis a r n os s os con ceitos . Con ceitos s ã o à s vezes elem en tos ú teis n a vida d iá r ia ; tem os de usá-los . Toda via p recis a m os recon h ecer qu e u m con ceito é s ó u m con ceito e n ã o a rea lida de, e es s e recon h ecim en to ou con h e-cim en to len ta m en te s e des en volve con form e va m os p ra t ica n do. Aos pou cos pa ra m os de "com pra r" n os s os con ceitos . Nã o formulamos m a is ju lga m en tos gera is do t ipo: "Ele é u m a pes s oa ter r ível", ou "Eu s ou u m a pes s oa ter r ível". Obs erva m os n os s os pen s a m en tos : "Prefer ia qu e ele n ã o a t ives s e leva do pa ra a lm oça r". En tã o tem os de viven cia r a dor qu e a com pa n h a es s e pen s a m en to. Qu a n do con s egu im os fica r com a dor com o u m a pu ra s en s a çã o fís ica , em algum momento ela se dissolverá e então iremos nos adiantar até a verda de, qu e é tu do s er per feito do jeito qu e é. Todos es tão fazendo o m elh or qu e podem . Ma s tem os de pa r t ir da vivên cia , qu e freqü en tem en te é doloros a , e en t ra r n a verda de em vez de reves t ir n os s a s vivên cia s com u m a ca m a da de pen s a m en tos . As pes s oa s de n a tu reza in telectu a l s ã o pa r t icu la rm en te p ropen s a s a com eter es te er ro: ela s pen s a m qu e o m u n do ra cion a l dos con ceitos é o m u n do real. O mundo racional dos conceitos não é o mundo real, é apenas uma descrição dele, um dedo apontando para a lua.

Page 161: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Va m os ilu s t ra r com a exper iên cia de a lgu ém ter s ido a gredido. Qu a n do s om os cr it ica dos ou t ra ta dos de m a n eira in ju s ta , é im por ta n te obs erva r os pen s a m en tos qu e tem os e n os des loca r a té o n ível celu la r de n os s a m á goa , pa ra qu e n os s a percepçã o con s cien te s e torn e a s s en s a ções n u a s e cru a s , e n a da m a is : n os s o qu eixo qu e t rem e, a con tra çã o n o peito, ou o qu e for qu e pos s a mos es ta r s en t in do n a s célu la s de n os s o corpo. Es s e viven cia r pu ro é zazen. Qu a n do perm a n ecem os n ele, n os s o des ejo de pen s a r vem vá r ia s vezes à ton a : ju lga m en tos , op in iões , recr im in a ções , res pos ta s a t ra ves s a da s . En tã o rotu la m os os n os s os pen s a mentos e m a is u m a vez volta m os a o n ível celu la r de vivên cia s , qu e é p ra t ica m en te in des cr it ível, ta lvez a pen a s u m la m pejo de en ergia , talvez alguma coisa mais forte. Nesse espaço não há "eu" ou "você". Qu a n do s om os es s a vivên cia n ã o-du a l podem os en xerga r a n os s a s itu a çã o com m a is cla reza . Podem os ver qu e "ela es tá fa zen do o m elh or qu e pode". Con s egu im os ver qu e nós es ta m os fa zen do o m elh or qu e podem os . Se d izem os es s a s s en ten ça s s em o com pon en te corpora l da vivên cia , n o en ta n to, n ã o s a berem os qu a l é a verda deira p rá t ica . Um a pers pect iva ca lm a , fr ia , ra cion a l, deve fundamentar-s e n a qu ele pu ro n ível celu la r . Tem os n eces s ida de de con h ecer n os s os pen s a m en tos, mas isso não significa que devemos pen s a r qu e eles s ã o rea is , n em qu e devem os a gir com ba s e n eles . Após obs erva r n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos , m om en to a pós m om en to, a s em oções ten dem a s e equ a liza r . Es s a s eren ida de n u n ca poderá s er en con tra da s e reves t irm os o qu e es tá rea lm en te a con tecen do com u m a ca m a da de con ceitos filos óficos com o s e fosse uma demão de verniz.

Só qu a n do n os em bren h a m os pelo n ível viven cia l é qu e a vida tem s en t ido. É is s o qu e os ju deu s e os cr is tã os es tã o d izen do qu a n do fa la m em es ta r com Deu s . Viven cia r é a lgo fora do tem po: n ã o é o pa s s a do, n ã o é o fu tu ro, n ã o é n em o p res en te n o s eu s en t ido u s u a l. Nã o podem os d izer o qu e é; podem os a pen a s s ê-lo. Em term os bu d is ta s t ra d icion a is , es s a es pécie de vida é s er a própria natureza búdica. A compaixão brota dessas raízes.

Todos tem os n os s os con ceitos fa vor itos . "Sou s en s ível. Magôo-m e com fa cilida de." "Sou do t ipo de pes s oa qu e força a s cois a s ." "Sou u m in telectu a l." Nos s os con ceitos podem s er ú teis n o n ível cot id ia n o, m a s p recis a m os en xerga r s u a n a tu reza gen u ín a . Con ceitos qu e n ã o fora m viven cia dos s ã o u m a fon te de con fu s ã o,

Page 162: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

de a n s ieda de, de depres s ã o; a ten dên cia deles é p rodu zirem comportamentos que não são bons para nós nem para os outros.

Pa ra rea liza r o t ra ba lh o da p rá t ica , p recis a m os de u m a pa ciên cia in es gotá vel, qu e ta m bém s ign ifica recon h ecer qu a n do não temos paciência. Sendo assim, precisamos ser pacientes com a n os s a fa lta de pa ciên cia ; recon h ecer qu a n do n ã o qu erem os pra t ica r fa z ta m bém pa r te da p rá t ica . Nos s os m om en tos de evita çã o e res is tên cia fa zem pa r te do qu a d ro con ceitu a l qu e a in da n ã o es ta m os p repa ra dos pa ra exa m in a r . Tu do bem n ã o es ta rm os p repa ra dos . En qu a n to va m os n os p repa ra n do, pou co a pou co, abre-s e u m es pa ço e es ta rem os a p tos a viven cia r u m pou co m a is e depois u m pou co m a is . Res is tên cia e p rá t ica a n da m de m ã os da da s . Todos res is t im os à n os s a p rá t ica , porqu e todos res is t im os à s n os s a s vida s . E s e a cred ita m os em con ceitos em vez de n a exper iên cia da qu ele m om en to, s om os com o Na s ru d in : es ta m os espalhando farelo de pão sobre as jardineiras para manter os tigres afastados.

ALUNO: Às vezes , os con ceitos s ã o n eces s á r ios . Qu a l a d iferen ça en t re u m con ceito qu e m e s erve e u m qu e m e con fu n de? Por exemplo, "olhe para os dois la dos da ru a a n tes de a t ra ves s a r" é uma generalização útil.

JOKO: Es s e é u m bom exem plo, u m u s o s en s a to da m en te human a . No en ta n to, u m a gra n de pa r te do qu e s e pa s s a em nossas cabeças não tem relação com a realidade.

ALUNO: Se a generalização ou o conceito surge de uma emoção autocentrada então pode não ser proveitosa.

JOKO: Na con vers a pelo telefon e da qu ela m oça , os ju lga m en tos vin h a m de em oções e op in iões ocu lta s ; eram cen tra da s em s eu ego. Seu s ju lga m en tos a res peito do ra pa z era m expres s ões de s u a p rópr ia n eces s ida de e n a da t in h a m qu e ver com ele. Fa ls a s gen era liza ções

con ceitos p reju d icia is

s em pre têm u m a ton a lida de em ocion a l pes s oa l. Por ou tro la do, obs erva ções s obre com o con s egu ir efetu a r com eficá cia u m cer to t ra ba lh o, ou s obre com o res olver u m prob lem a de m a tem á t ica podem n ã o ter quase nenhum contexto emocional. São pensamentos úteis, esses.

ALUNO: Pa ra m im es tá tã o en cober to o n ível viven cia l, celu la r ...

JOKO: Lembre-se de que o nível vivencial não é uma coisa exó-t ica e es t ra n h a . Pode s er u m for rn iga m en to n a pele ou u m a

Page 163: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

contração no meio do peito, um rosto crispado o nível vivencial é ba s ta n te bá s ico e n u n ca es tá m u ito d is ta n te. É a qu ilo qu e s om os exa ta m en te a gora . O n ível viven cia l n ã o é a J go es pecia l e qu a n to m a is n os s en ta rm os pa ra p ra t ica r , m a is bá s ico n ós o recon h ecerem os . Nos p r im eiros a n os de p rá t ica , con tu do, h á m a is por viven cia r porqu e vivem os n u m tu m u lto de em oções qu e gera muitas e muitas sensações.

Nu n ca evita m os por com pleto o n ível celu la r . Mes m o qu e a com pa n h em os a n os s a res p ira çã o por a pen a s u m fra gm en to de s egu n do, en t re pen s a m en tos , es ta m os todos n o n ível celu la r em a lgu m n ível. Qu a n to m a is rotu la m os nos s os pens am en tos e con -t in u a m os volta n do pa ra a qu ilo qu e es t iver a con tecen do em n ossas vivên cia s , m elh or . Pa s s a r a viver u m a vida m a is viven cia l é a lgo qu e pode à s vezes dem ora r u m pou co e à s vezes s er m u ito rá p ido, depen den do da in ten s ida de da p rá t ica . Qu a n do n os da m os con ta de qu e p recis a m os p ra t ica r 24 h ora s por d ia é im pos sível evitarmos o nível vivencial.

ALUNO: Um con ceito qu e n u m cer to m om en to é pa ra m im m u ito ca r rega do de em oçã o, n u m ou tro m om en to pode n ã o m e a ba la r em a bs olu to. Por exem plo, pos s o fica r m e p reocu pa n do a respeito de en con tra r em prego. An tes da en t revis ta , es ta rei rea lm en te p reocu pa do com is s o e vou gen era liza r a res peito da s itu a çã o da m in h a ca r reira p rofis s ion a l. Depois qu e a en t revis ta es t iver con clu ída , qu a n do pen s o de n ovo a qu ela m es m a cois a , n ã o consigo imaginar como aquilo pôde ter me aborrecido.

JOKO: Todos os pen s a m en tos ocorrem em con textos es pecíficos . Es ta é a qu es tã o: en xerga r o con texto es pecífico e n ã o s ó o pen s a m en to gera l. Nos s a rea çã o a u m a pes s oa ou a u m pensam en to s erá d iferen te h oje da qu e terem os n a s em a n a qu e vem , depen den do de ca da u m a da s s itu a ções . Se você t ives s e u m m ilh ã o de dóla res n o ba n co, p rova velm en te n ã o s e im por ta r ia de con s egu ir a qu ele em prego ou n ã o. Apen a s en t ra r ia ca lm a m en te n a s itu a çã o e des fru ta r ia a en t revis ta . Toda rea lida de é es pecífica, im ed ia ta . Podem os en con tra r a s m es m a s pes s oa s e ter u m pensamento a res peito dela s h oje, e já n a s em a n a qu e vem (depen den do da s m óveis s itu a ções pes s oa is ) ela s n os pa recerã o diferentes.

ALUNO: Se eu es tou s em pre p res ta n do a ten çã o à s s en s a ções do m eu corpo, com o pos s o p res ta r a ten çã o n a s cois a s qu e es tã o à

Page 164: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

minha volta, ou na tarefa que preciso executar? Por exemplo, como pos s o joga r ca r ta s ou d ir igir e a in da a s s im pres ta r a ten çã o n a s sensações de meu corpo?

JOKO: Podem os foca liza r n u m a determ in a da a t ivida de en qu a n to con t in u a m os recep t ivos a u m â m bito m a is a m plo de sensações . Por exem plo, en qu a n to es tou fa la n do a gora com vocês , ta m bém es tou m u ito cien te de tu do o qu e es tá s e pa s s a n do com igo. Is s o n ã o qu er d izer qu e n ã o es tou p res ta n do tota l a ten çã o em vocês. "Prestar atenção em vocês" faz parte da informação sensorial total qu e recebo a gora com o a m in h a vida n es te p recis o m om en to. Se ten h o u m a p len a percepçã o con s cien te de m in h a vida , es ta tem de in clu ir tu do. Qu a n do u m a lu n o e eu es ta m os con vers a n do em daisan, m in h a a ten çã o es tá tota lm en te volta da pa ra ele, m a s eu es tou s em pre con s cien te de m in h a vida . Min h a s a ções decorrem desse contexto total e não somente de minha cabeça.

ALUNO: A con cen tra çã o n a qu ilo qu e es tou fa zen do n es te exa to m om en to n ã o é exclu s iva . Qu a n do es tou a n a lis a n do da dos n o com pu ta dor , lá n o t ra ba lh o, m in h a m en te es tá rep leta des s a a n á -lis e de da dos , m a s con s igo ter u m a p len a percepçã o con s cien te do m eu corpo. Nã o é qu e eu fiqu e s ó n o m eu corpo. Nã o ten h o tem po pa ra fa zer is s o. Min h a s s en s a ções corpora is n ã o s ã o o foco p r in cipa l do qu e es tou fa zen do. Ma s é im por ta n te a ca da m om en to es ta r perceben do con s cien tem en te a s s en s a ções fís ica s e ta m bém a s m in h a s rea ções a tu do o qu e es tá a con tecen do. As s im , pos s o es ta r n o m eio de u m a a n á lis e es ta t ís t ica e, n o en ta n to, a o m es m o tempo, estar cônscio de outras coisas. Às vezes, é claro, me envolvo de ta l m a n eira n u m a determ in a da a t ivida de qu e m e es qu eço de tu do o m a is . Porém , qu a s e o tem po todo, m in h a percepçã o consciente não está focalizada e não é exclusiva.

JOKO: A es s ên cia da p rá t ica zen é s er tota lm en te o qu e você es tá fa zen do. Ma s n ós n ã o s om os m u ito a s s im . Qu a n do n ã o s om os , en tã o n os s o foco p recis a regres s a r pa ra o n os s o corpo. Qu a n do con s egu im os is s o, tom a -s e m a is fá cil en t ra r por in teiro n o qu e es ta m os fa zen do. Podem os es ta r tota lm en te con cen tra dos n u m a certa a t ivida de ou con s cien tes de vá r ia s . A qu es tã o é viven cia r o que quer que esteja acontecendo. Um grande mestre de xadrez, por exem plo, tem u m im en s o a cú m u lo de a p ren d iza do e form ação in telectu a l; n o en ta n to, n o m eio do jogo, s u a percepçã o con s cien te es tá tota lm en te n o m om en to p res en te, e a pa rece o m ovim en to

Page 165: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

exa to a s er feito. O a p ren d iza do técn ico es tá lá , m a s s u bord in a do à sua intensa percepção consciente, que é o verdadeiro mestre.

ALUNO: Qu a n do s e p ra t ica m ú s ica , é im por ta n te tom a r consciência de todos os n íveis da n os s a vivên cia . Qu a n do es tou praticando a lgo n ovo n o p ia n o, s e ign ora r m eu corpo, é pos s ível qu e m e a con teça u m a ten d in ite, por exem plo. Is s o a con tece m u ita s vezes com os a lu n os n ovos . E , s e eu es t iver a pen a s p res ta n do a ten çã o a os m eu s pen s a m en tos em ocion a is , fico des cu ida do em termos das notas que estou executando.

JOKO: Até m es m o u m a m ín im a percepçã o con s cien te de qu a n to tem po pa s s a m os "com pra n do" os n os s os pen s a m en tos a u tocen tra dos é u m a p rá t ica ú t il. Cla ro qu e em pou cos in s ta n tes nós estaremos fazendo a mesma coisa de novo.

OUVINDO O CORPO

A prá t ica n ã o d iz res peito a a ju s ta r es te eu fen om ên ico qu e n ós pen s a m os s er pa ra a n os s a vida . De cer to m odo, s om os eu s fen om ên icos , m a s , em ou tro s en t ido, n ã o o s om os . Poder-se-ia d izer qu e s om os a s du a s cois a s

ou n en h u m a . En qu a n to n ã o compreendermos esse aspecto, nossa prática será vacilante.

Rotu la r n os s os pen s a m en tos é u m a p rá t ica p relim in a r . No nível fenomênico, uma boa parte de nosso eu psicológico é revelada pelo rotu la r . Com eça m os a obs erva r on de fica m os a tola dos em n os s a s p referên cia s e a vers ões , em todos os n os s os pen s a m en tos h a b itu a is a res peito de n ós e da vida . Es s e t ra ba lh o p relim in a r é im por ta n te e n eces s á r io

m a s n ã o tudo. Rotu la r é u m pr im eiro pa s s o, m a s en qu a n to n ã o s ou berm os o qu e s ign ifica perm a n ecer n a n os s a vivên cia n ã o irem os s a borea r os fru tos da p rá t ica . Se n ã o os s a borea m os , n ã o en xerga m os o qu e é a p rá t ica e irem os n os qu eixa r : "Nã o com preen do bem a p rá t ica ; n ã o con s igo ver do qu e s e t ra ta ". O fa to é qu e n ã o pos s o lh es d izer do qu e ela t ra ta , pois a qu ilo qu e es tou ten ta n do exp lica r n a rea lida de n ã o pode s er pos to em pa la vra s . Fu n da m en ta lm en te, a p rá t ica é d iferen te de a per feiçoa r u m a h a b ilida de com o s a ber joga r tên is ou golfe; u m a pa r te gra n de des s a s a t ivida des pode s er t ra n s pos ta pa ra a s pa la vra s . Ma s n ã o podem os exp lica r n os s a p rá t ica zazen em palavras.

Page 166: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Em vir tu de des s e d ilem a , a p rá t ica pode s er h es ita n te du -ra n te a lgu n s m es es , du ra n te a n os . Se for m u ito va cila n te, o a lu n o a ca ba a ba n don a n do-a

e con t in u a a s ofrer , s em n o en ta n to

a p reen der o qu e é s u a vida . Por is s o, em bora a p rá t ica n ã o pos s a rea lm en te s er pos ta em pa la vra s , podem os s er a ju da dos por u m en ten d im en to m ín im o da m es m a

a pes a r de in telectu a l e con -

fuso , a s s im perm it in do-n os evita r u m a pa r te de n os s a s in ú teis divagações. Melhor inclusive do que esse entendimento confuso é a s im ples d is pon ib ilida de pa ra pers is t ir p ra t ica n do, m es m o qu a n do não vemos a razão disso.

Atra vés do p roces s o de rotu la r os pen s a m en tos ch ega m os a ver qu e n ã o qu erem os des er ta r de n os s o p rópr io d ra m a ps icológico particular

com pos to por a qu ilo qu e pen s a m os de n ós e dos ou tros e do qu e s en t im os a res peito da s cois a s qu e es tã o a con tecen do. Rea lm en te qu erem os pa s s a r n os s o tem po com n os --s o d ra m a pes s oa l, a té qu e m es es depois de term os com eça do a rotu la r os pen s a m en tos s u a n a tu reza es tér il s eja revela da . Qu a n do es s e es tá gio do rotu la r es tá já em a n da m en to h á a lgu m tem po, p recis a m os rea liza r u m a p rá t ica qu e n ã o oferece, a pa ren tem en te, n en h u m t ipo de gra t ifica çã o pos ter ior : a vivên cia de n os s a s sen-s a ções corpora is , de n os s o ou vir , ver , s en t ir pelo ta to, perceber odores , s a bores . Um a vez qu e es s a p rá t ica pa rece-n os m on óton a e s em s en t ido, cos tu m a m os relu ta r em pers is t ir n ela . Por ca u s a d is s o, n os s a p rá t ica pode s er fra ca , in term iten te e, em gera l por m u ito tem po, in efica z. Ach a m os qu e tem os cois a s m a is im por-tantes a fazer. Como passar nosso tempo em atividades monótonas, entediantes, como ficar sentado sentindo, vendo, saboreando etc?

É verda de qu e n ã o pa rece es ta r a con tecen do n a da de im -portante qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r . Percebem os s en s a -ções n a s pern a s e n os joelh os , ten s ã o n a fa ce, coceira s ; m a s por qu e d ia bos ir ía m os rea lm en te qu erer fa zer isso? Os a lu n os cos -tu m a m recla m a r pa ra m im : "Ma s qu e ch ato! Nã o qu ero fa zer is s o". Apes a r d is s o, s e pers is t irm os , em a lgu m m om en to h a verá u m a m u da n ça e, por u m s egu n do, n ã o h a verá eu e o m u n do, m a s a pen a s ... n ã o h á pa la vra s pa ra is s o porqu e é u m a vivên cia n ã o-du a l. É a ber to, es pa ços o, cr ia t ivo, com pa s s ivo e, do pon to de vis ta habitual, chato.

Cada s egu n do qu e pa s s a m os n es s e viven cia r n ã o-du a l t ra n s -form a a n os s a vida . Nã o con s egu im os en xerga r a t ra n s form a çã o porqu e n ã o exis te d ra m a a í. O d ra m a s em pre es tá em n os s a s

Page 167: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

cr ia ções m en ta is a u tocen tra da s . Nã o exis te d ra m a n u m a boa p ra t ica s en ta da . Nã o gos ta m os des s a fa lta de excita çã o

a té qu e

de fa to pa s s em os a s a boreá -la . En qu a n to is s o n ã o a con tecer , con fu n d irem os p rá t ica com a lgu m a es pécie de em preen d im en to ps icológico. Em bora u m a p rá t ica for te in clu a elem en tos p s icoló-gicos, não é disso que ela se compõe.

Qu a n do d igo a os a lu n os qu e viven ciem s eu corpo, a s pes soas fa la m : "Oh , s im , es tou s en t in do m eu corpo. Rotu lo m eu s pen s a m en tos e depois s in to m eu corpo. Ma s is s o n ã o a d ia n ta n a da "; "Sim , eu s in to u m a per to n o m eu peito, e s im ples m en te m e cen tro n is s o e es pero qu e des a pa reça ". Es s es com en tá r ios revela m u m a p rogra m a çã o pes s oa l já m on ta da , u m a es pécie de a m biçã o. No fu n do, o pen s a m en to é: "Vou fica r n es ta p rá t ica pa ra qu e eu

m eu eu zin h o

pos s a con s egu ir a lgu m ben efício dela ". Na rea lida de, en qu a n to n os s o eu zin h o es t iver fa la n do des s e jeito, n ã o es ta m os de verda de viven cia n do. Nos s a p rá t ica es ta rá con ta m in a da por p rogra m a s pes s oa is des s e t ipo e todos n ós tem os coisas assim às vezes.

Podem os ch ega r m a is per to de u m en ten d im en to a cu ra do do viven cia r u s a n do a pa la vra ouvir. Nã o "vou fazer es s a vivên cia", m a s "eu vou s im ples m en te ouvir a s m in h a s s en s a ções corpora is ". Se eu rea lm en te ou vir a qu ela dor do la do es qu erdo, exis te u m elem en to de cu r ios ida de, de o qu e é is s o? (Se eu n ã o s ou u m a pes s oa cu r ios a , s em pre s erei es cra viza da por m eu s pen s a m en tos .) Com o u m bom cien t is ta qu e es tá s ó obs erva n do, s em n oções preconcebidas, nós apenas observamos, olhamos, ouvimos.

Se nossa mente é mobilizada por interesses de ordem pessoal, n ã o con s egu im os ou vir

ou m elh or , n ã o queremos ouvir. Qu erem os pen s a r . É por is s o qu e rotu la r , obs erva r a m en te e s u a s a t ivida des , é em gera l n eces s á r io por u m tem po ba s ta n te lon go a n tes qu e es s e s egu n do n ã o-es ta do do viven cia r , ou s er , pos s a s equ er com eça r . Es s e n ã o-es ta do é o qu e fa z com qu e a n os s a p rá t ica s eja religios a . Viven cia r é o rein o do n ã o-tem po, do n ã o-espaço, da verdadeira natureza. Só o ser, o existir só Deus.

No p r in cíp io, n os s o des ejo de pen s a r a n os s o res peito é poderos o e s edu tor . Pa rece a cen a r -n os com in fin ita s p rom es s a s . Esse des ejo é tã o poderos o qu e, depen den do da pes s oa , pode leva r u m , cin co, dez a n os ou m a is a n tes qu e es s e des ejo en fra qu eça e n ós con s iga m os de fa to a pen a s s en tar. Es s a form a de s en ta r é

Page 168: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

en trega , é ren d içã o, porqu e n ã o tem u m eu a li. É a en t rega a o qu e é, é u m a p rá t ica religios a . Es s a p rá t ica n ã o é p r im a r ia m en te empreendida em nosso benefício pessoal.

A boa p rá t ica é s im ples m en te s en ta r -s e a li

é des provida de

a con tecim en tos . Do pon to de vis ta h a b itu a l, é u m a ch a tea çã o. Com o tem po, n o en ta n to, a p ren dem os em n os s os corpos qu e a qu ilo qu e cos tu m á va m os ch a m a r de "en ted ia n te" é pu ro con -ten ta m en to, e es s e con ten ta m en to é a fon te, o s olo fér t il, de n os s a vida e de nossos atos. Às vezes, é chamado de samadhi; é o próprio não-es ta do n o qu a l dever ía m os viver toda a n os s a vida : qu a n do da m os a u la , qu a n do a ten dem os u m clien te, qu a n do cu ida m os de u m bebê, qu a n do toca m os u m in s t ru m en to. Qu a n do vivem os nesse samadhi não-du a lis ta , n ã o tem os p rob lem a s porqu e n ã o h á nada separado de nós.

Con form e n os s a m en te va i perden do u m a pa r te de s u a obs es s ã o com o pen s a m en to a u tocen tra do, a u m en ta n os s a ca pa -cida de de perm a n ecer n a n ã o-du a lida de. Se form os pa cien tes e pers is ten tes , a ca ba rem os depois de u m tem po a pren den do m u ito a res peito da n ã o-du a lida de. Ma s , en qu a n to n ã o s a borea rm os rea lm en te es s a n ã o-du a lida de, n os s a p rá t ica ; a in da n ã o terá s e torn a do m a du ra . Podem os p rom over n os s a in tegra çã o ps icológica a t ra vés dos es tá gios in icia is da p rá t ica , porém , en qu a n to o vivenciar não se tornar o fundamento essencial de nossa existência, ainda continuaremos sem saber o que a prática é.

É a lgo m u ito s u t il. Por is s o é qu e a p rá t ica é d ifícil: n ã o pos s o oferecer-lh es u m m a pa deta lh a do e des crever pa ra on de vocês estão se encaminhando. Diversos alunos deixam de praticar depois de cin co a n os m a is ou m en os . É u m a pen a , porqu e s u a s vida s a in da s ã o u m m is tér io pa ra eles . Até qu e o va lor do viven cia r s e torn e cla ro e óbvio, é d ifícil perm a n ecer n a qu ilo em qu e tem os de perm a n ecer . Só u m cer to n ú m ero de pes s oa s efet iva m en te o consegue.

Ma s , por fa vor , n ã o des is ta m . Qu a n do con s egu irm os "ou vir ' ' o corpo por per íodos ca da vez m a is lon gos , n os s a vida irá s e t ra n s form a r n a d ireçã o da pa z, da liberda de e da com pa ixã o. Livro a lgu m poderá en s in a r -n os is s o, s om en te a n os s a p rá t ica d ireta . Sim, isso pode ser feito. Muitos já o conseguiram.

Page 169: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

VI. Liberdade

OS SEIS ESTÁGIOS DA PRÁTICA

O ca m in h o da p rá t ica é cla ro e s im ples . No en ta n to, qu a n do n ã o o en ten dem os , ele pode pa recer con fu s o e s em s en t ido. É u m pou co com o a pren der a toca r p ia n o. Logo n o in ício de m eu apren d iza do, u m profes s or d is s e-m e qu e, pa ra m e torn a r u m a p ia n is ta m elh or , eu dever ia p ra t ica r a s eqü ên cia C (dó), E (m i), G (s ol), vá r ia s vezes s egu ida s , a té cin co m il. E le n ã o m e deu n en h u m motivo; só me disse que o fizesse.

J á qu e eu era u m a boa m en in a qu a n do pequ en a , p rova vel-m en te fiz is s o m es m o s em en ten der por qu e era n eces s á r io. Ma s n em todos s om os bon s m en in os e m en in a s . Por is s o qu ero a p re-sentar-lhes o "porquê" da prática elucidando os passos do caminho qu e p recis a m os percor rer

por qu e é n eces s á r io todo es s e ted ios o e repet it ivo t ra ba lh o. Toda s a s m in h a s a u la s fa la m dos a s pectos des s e ca m in h o; es ta é u m a revis ã o, com a fin a lida de de pôr a s coisas em ordem, segundo uma certa perspectiva.

A m a ior ia da qu eles qu e n ã o s e en t rega ra m a n en h u m a espécie de p rá t ica (exis tem m u ita s pes s oa s p ra t ica n do a s eu p rópr io m odo, s eja m ou n ã o d is cípu la s do zen ) es tá n a qu ilo qu e den om in o o p ré-ca m in h o. Is s o com cer teza s e a p licou a m im a n tes qu e eu com eça s s e a p ra t ica r . Es ta r n o p ré-ca m in h o s ign ifica es ta r inteiramen te ca t ivo de n os s a s rea ções em ocion a is d ia n te da vida , a dota n do a vis ã o de qu e a vida es tá a con tecen do para nós. Sentimo-n os fora de con trole, a tola dos n o qu e pa rece u m a con fu s ã o es ton tea n te. Is s o pode s er verda de pa ra qu em ta m bém es tá p ra t ica n do. A m a ior ia dos a dep tos volta pa ra es s e es ta do de doloros a con fu s ã o à s vezes . A s eqü ên cia do h om em m on ta do n u m touro * ilu s t ra es s e a s pecto; podem os es ta r t ra ba lh a n do per to dos es tá gios fin a is e de repen te, pera n te u m a s itu a çã o de es t res s e, regred ir de repen te a es tá gios a n ter iores . Às vezes , s a lta m os de

* Essa é uma seqüência tradicional de imagens em que um homem doma aos poucos um touro selvagem, assim aludindo ao progresso da prática, que da desilusão chega à iluminação.

Page 170: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

volta pa ra o per íodo do p ré-ca m in h o, on de n os vem os tota lm en te tom a dos por n os s a s rea ções . Es s a revers ã o n ã o é n em boa , n em ruim, apenas algo que fazemos.

Es ta r tota lm en te à m ercê do p ré-ca m in h o, n o en ta n to, é n ã o ter a m en or idéia de qu e exis te u m ou tro ca m in h o pa ra s e ver a vida . Aden tra m os o ca m in h o da p rá t ica , porém , qu a n do com eça -m os a recon h ecer n os s a s rea ções em ocion a is ; por exem plo, qu e es ta m os s en t in do ra iva e com eça n do a cr ia r ca os . Com eça m os a des cobr ir qu a n to m edo s en t im os ou com qu e regu la r ida de tem os pensamentos mesquinhos ou invejosos.

O p r im eiro es tá gio da p rá t ica é es s e p roces s o de torn a r -me con s cien te de m eu s s en t im en tos e de m in h a s rea ções in tern a s . Rotu la r os pen s a m en tos a ju da n es s e s en t ido. É im por ta n te s er firm e n es s a fa s e, porém , ca s o con trá r io perderem os u m a boa pa r te do qu e s e pa s s a em n os s os pen s a m en tos e s en t im en tos . Precisamos observar tudo o que se passa. Nos primeiros seis a doze m es es de p rá t ica podem os s ofrer m u ito porqu e com eça m os a n os en xerga r com m a is n it idez e a recon h ecer o qu e rea lm en te es ta m os fa zen do. Rotu la m os os pen s a m en tos , por exem plo: "Eu qu er ia qu e ele sumisse do mapa!", ou "Não consigo mais agüentar o jeito como ela a r ru m a os t ra ves s eiros !". Nu m ret iro in ten s ivo, es s es pen s a m en tos têm a ten dên cia de s e m u lt ip lica r con form e va m os fica n do ca n s a dos e ir r ita d iços . Nos p r im eiros s eis a doze m es es , abrirmo-n os pa ra n os s a vida in ter ior pode s er u m gra n de ch oqu e. Em bora es s e s eja o p r im eiro es tá gio da p rá t ica , res ídu os dele perma n ecem n os dez ou qu in ze a n os s egu in tes , con form e continuamos a nos conhecer cada vez mais.

No s egu n do es tá gio, qu e com eça de m a n eira t íp ica n o s e-gu n do a n o e s e es ten de a té o qu in to, com eça m os a rom per os elos dos es ta dos em ocion a is , decom pon do-os em s eu s com ponentes fís icos e m en ta is . Con form e p ros s egu im os rotu la n do pen samentos, e quando começamos a saber o que significa vivenciar a nós, nosso corpo e a qu ilo qu e ch a m a m os de o m u n do extern o, os es ta dos em ocion a is len ta m en te com eça m a s e des fa zer . Nu n ca des a pa recem por com pleto, porém . A qu a lqu er m om en to, podemos volta r com tu do pa ra o es tá gio a n ter ior

e is s o n os a con tece com gra n de freqü ên cia . Mes m o a s s im , es ta m os com eça n do u m n ovo es tá gio. A dem a rca çã o en tre es tá gios n u n ca é p recis a , cla ro. Ca da um flui no seguinte. É mais uma questão de ênfase.

Page 171: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

O es tá gio u m é o com eço da con s cien t iza çã o do qu e es tá s e pa s s a n do e do m a l qu e is s o ca u s a . No es tá gio dois , s om os m ot iva dos a des fa zer os elos da s rea ções em ocion a is . No es tá gio t rês , com eça m os a en con tra r a lgu n s m om en tos de pu ro viven cia r s em os pen s a m en tos a u tocen tra dos : a pen a s o pu ro viven cia r em s i. Em a lgu n s cen tros zen , es s es es ta dos s ã o à s vezes ch a m a dos de experiências de iluminação.

No es tá gio qu a tro, de m a n eira len ta e firm e n os en ca m in h a -m os pa ra u m es ta do n ã o-du a l de vida em qu e a ba s e do exis t ir é viven cia l, em vez de s er dom in a do por fa ls os pen s a m en tos . É im por ta n te lem bra r qu e s ã o a n os e a n os de p rá t ica im plica dos em todos esses estágios.

No es tá gio cin co, 80 a 90% da vida é vivida de m a n eira viven cia l. Agora viver é a lgo m u ito d iferen te do qu e cos tu m a va s er . Podem os d izer qu e es s a é u m a vida do n ã o-ego, porqu e o pequ en o eu , a qu ele p reen ch im en to em ocion a l a t ra vés do qu a l vía m os a vida e qu e n os fa zia des pen ca r , p ra t ica m en te s e foi. Nes s a fa s e, é im pos s ível o d is cípu lo viver com o n o p ré-ca m in h o, fica n do p r is ion eiro de tu do e n a s m a lh a s de s u a s rea ções em ocionais. Mes m o qu e a pes s oa qu is es s e rever ter do es tá gio cin co pa ra o p ré-ca m in h o, ela n ã o o con s egu ir ia . No es tá gio cin co, es tã o m u ito m a is fortes a com pa ixã o e a va lor iza çã o da vida da s ou tra s pes s oa s . Nes s e es tá gio, é pos s ível s er p rofes s or e a ju da r os ou tros qu e s e en con tra m em ou tros m om en tos do ca m in h o. Os qu e ch ega ra m n o es tá gio cin co p rova velm en te já s ã o p rofes s ores de u m jeito ou de outro. Fra s es com o "Eu n ã o s ou n a da " (e "Por ta n to s ou tu do") n ã o s ã o m a is des t itu ída s de s en t ido, com o fra s es literá r ia s de efeito, m a s cois a s qu e a pes s oa s a be in tu it iva m en te. Es s e con h ecim en to não é nada especial ou exótico.

Do ponto de vista teórico, existe um sexto estágio, o estado de bu da , em qu e a vida t ra n s corre toda em es ta do viven cia l pu ro. Nã o o conheço e duvido que alguém o atinja por completo.

De lon ge o m a is d ifícil de tu do é s a lta r do es tá gio u m pa ra o dois . Pr im eiro, devem os tom a r con s ciên cia de n os s a s rea ções em ocion a is e de n os s a ten s ã o corpora l, de com o n os des in cu m -b im os de tu do em n os s a s vida s , m es m o qu e ocu ltem os a s n os s a s rea ções . Tem os qu e n os en ca m in h a r pa ra a m a is n ít ida con s cien t iza çã o pos s ível, rotu la n do os n os s os pen s a m en tos e começando a s en t ir a ten s ã o n o corpo. Res is t im os a rea liza r es s e

Page 172: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

t ra ba lh o porqu e ele com eça a d ila cera r qu em n ós pen s á va m os s er . Nes s e es tá gio, é ú t il tom a r con s ciên cia de n os s o tem pera m en to bá s ico, de n os s a es t ra tégia pa ra en fren ta r a p res s ã o de n os s a s vida s . A ps icotera p ia ta m bém pode s er p roveitos a n es s e es tá gio s e for in teligen te. A boa tera p ia a ju da -n os a a u m en ta r n os s o ca m po de con s ciên cia . In felizm en te, tera peu ta s bon s de verda de s ã o a té cer to pon to ra ros e a m a ior pa r te da s tera p ia s n ã o é in teligen te e inclusive incentiva a jogar culpa em outros.

Nesse cenário de lutas que é a transição do estágio um para o dois , com eça m os a n os da r con ta de qu e tem os es colh a . Qu a l é es s a es colh a ? Um a é a recu s a de p ra t ica r : "Nã o vou m a is rotu la r esses pensamentos; é um tédio. Vou só me sentar e ficar sonhando com a lgu m a cois a a gra dá vel". A es colh a é perm a n ecer a tola do e con t in u a r s ofren do (o qu e, in felizm en te, s ign ifica qu e fa rem os os ou tros s ofrer ta m bém ) ou en con tra r a cora gem pa ra m u da r . On de en con tra r es s a cora gem ? Ela a u m en ta con form e n os s a p rá t ica con t in u a e com eça m os a tom a r con s ciên cia de n os s o p rópr io s ofr im en to e (s e form os de fa to pers is ten tes ) do s ofr im en to qu e ca u s a m os à s ou tra s pes s oa s . Com eça m os a perceber qu e, s e recusarmos a ba ta lh a r a qu i, ca u s a rem os da n os à vida . Tem os de fazer uma escolha entre viver uma vida dramática e autocentrada e ou tra ba s ea da n a p rá t ica . Ad ia n ta r -s e de m a n eira firm e do es tá gio u m pa ra o dois im plica qu e n os s o d ra m a tem , len ta m en te, de ch ega r a o fim . Do pon to de vis ta do pequ en o eu , es s e é u m sacrifício tremendo.

Qu a n do es ta m os n os deba ten do en tre o es tá gio u m e o dois , fa zem os ju lga m en tos m ora is : "Ele rea lm en te m e deixa ira do!"; "Sinto-m e rejeita da !"; "Sin to-m e m a goa do"; "Es tou a borrecida e res s en t ida "; "Sin to von ta de de m e vin ga r". Es s a s s en ten ça s b rota m de n os s a s em oções . Toda s s ã o m u ito s a boros a s e a té s edu tora s : ela bora m os u m dra m a de p r im eira em cim a de n os s a pos içã o d e vít im a s da vida , do qu e a con teceu con os co, de com o tu do é d ificílim o. Apes a r de n os s o s ofr im en to todo, n a verda de a dora m os s er o cen tro de tu do is s o: "Sin to-m e depr im ida "; "Sin to-me en ted ia da "; "Sin to-m e a borrecido"; "Sin to-m e ir r ita do"; "Sin to-me excita da ". Es s e é o n os s o d ra m a pes s oa l. Todos tem os vers ões de u m dra m a pes s oa l, e s ã o n eces s á r ios a n os de p rá t ica a n tes de n os s en t irm os d is pos tos a con s idera r s er ia m en te a ba n don á -lo. As pes s oa s des loca m -s e em velocida des d iferen tes devido a d iferen ça s de h is tór ico pes s oa l, de força , de determ in a çã o. Ain da a s s im , s e

Page 173: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

form os pers is ten tes , com eça rem os a m u da r do es tá gio u m pa ra o dois.

Qu a n to m a is cla ra for a in s erçã o n o es tá gio dois , com eça m a s u ceder ca da vez m a is per íodos em qu e n os en con tra m os d izen do: "Oh , tu do bem . Nã o s ei por qu e pen s ei qu e is s o fos s e u m gra n de p rob lem a ". Des cobr im os qu e vem os tu do com u m a com pa ixão cres cen te. Es s e p roces s o n u n ca ch ega a fica r com pleto ou a fin a liza r . Em qu a lqu er m om en to podem os m ergu lh a r de volta n o es tá gio u m . Mes m o a s s im , n o gera l, n os s a ca pa cida de de a p recia çã o a u m en ta e des cobr im os qu e podem os va lor iza r pes s oa s qu e a n tes n ã o con s egu ía m os n em s equ er s u por ta r . Nu m a boa p rá t ica , exis te u m m ovim en to qu a s e qu e in exorá vel, m a s devem os es ta r d is pos tos a pa s s a r ta n to tem po qu a n to s eja p recis o em ca da passo. O processo não pode ser apressado.

En qu a n to in s is t irm os n os ju lga m en tos em ocion a is qu e m en -cion ei (e pode h a ver in fin ita s va r ia ções dos m es m os ), podem os es ta r s egu ros de qu e n ã o es ta m os in s ta la dos com firm eza n o es tá gio dois . Se a in da a cred ita m os qu e u m a ou tra pes s oa n os fa z s en t ir ra iva , por exem plo, p recis a m os recon h ecer exa ta m en te qu a l é o nosso trabalho. Nosso ego é muito poderoso e insistente.

Qu a n do n os des loca m os pa ra o es tá gio t rês , es ta m os a os pou cos deixa n do pa ra t rá s o es tá gio du a lis ta dos ju lga m en tos

ter pen s a m en tos , em oções , op in iões a res peito de n ós e dos ou tros , de tu do e do m u n do

e n os en ca m in h a m os pa ra u m a vida m en os du a lis ta e m a is s a t is fa tór ia . Os ca s a is d is cu tem m en os en t re s i, com eça m os a deixa r m a is em pa z os filh os ; os p rob lem a s qu e es ta m os en fren ta n do s e a ten u a m qu a n to m a is rá p ido percebem os o qu e é a p ropr ia do pa ra s er feito. Algu m a cois a es tá de fa to m u da n do. Qu a n to tem po is s o tu do leva ? Cin co a n os ? Dez a n os ? Depende da pessoa.

O continuum da p rá t ica poder ia s er d ivid ido de d iferen tes m a n eira s . Poder ía m os s im plifica r a a n á lis e com u m a a n a logia : primeiro, exis te o s olo, qu e é a qu ilo qu e s om os n es te m om en to do tempo. O solo pode ser de argila ou areia, rico em húmus" e adubo. Pode a t ra ir qu a s e n en h u m a m in h oca , ou m u ita s m in h ocas, depen den do de s u a fer t ilida de. O s olo n ã o é n em bom , n em m a u ; é a qu ilo com qu e depa ra m os com o pon to de pa r t ida pa ra t ra ba lh a r . Nã o tem os p ra t ica m en te n en h u m con trole s obre o qu e os n os s os pa is n os dera m em term os de h ered ita r ieda de e con d icionamento.

Page 174: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Nã o podem os s er n a da a lém do qu e s om os n es te p recis o m om en to. Tem os cois a s por a p ren der , s em dú vida ; m a s a qu a lqu er pon to do p roces s o s om os qu em s om os . Pen s a r qu e dever ía m os s er qu a lqu er ou tra cois a é r id ícu lo. Sim ples m en te p ra t ica m os com a qu ilo qu e somos. Esse é o solo.

Ao n os en t rega rm os a o t ra ba lh o de cu lt ivo do s olo es ta m os cobrin do a qu eles qu e den om in ei es tá gios dois a qu a t ro. Tra ba -lh a m os com o qu e é o ch ã o

a s s em en tes , o a du bo, a s m in h o-

cas , a r ra n ca n do a s erva s da n in h a s , poda n do, u s a n do m étodos naturais para produzir uma boa safra.

Do s olo qu e foi cu lt iva do vem u m a colh eita qu e com eça a mostrar-s e bem eviden te n o es tá gio qu a tro e a u m en ta da í em d ia n te. A colh eita é a pa z e o con ten ta m en to. As pes s oa s qu eixam-s e pa ra m im d izen do: "Ain da n ã o s in to con ten ta m en to em m in h a p rá t ica ", com o s e ela lh es fos s e p roporcion a r es s a vivên cia . Qu em n os dá es s e con ten ta m en to? Nós n os oferecem os es s a vivên cia por m eio de u m a p rá t ica in ca n s á vel. Nã o é a lgo qu e pos s a m os es pera r ou exigir . Apa rece qu a n do a pa rece. Um a vida de con ten ta m en to n ã o s ign ifica qu e es teja m os s em pre felizes e n a da m a is . Significa a pen a s qu e a vida é r ica e in teres s a n te. Podem os a té detes ta r cer tos a s pectos do viver , m a s ca da vez m a is é a lgo s a t is fa tór io de se viver, num plano geral. Não nos engalfinhamos mais com a vida.

Res u m in do: o p r im eiro es tá gio con s is te em n os con s cienti-za rm os do qu e s om os em ocion a lm en te, in clu in do n os s o des ejo de con trola r . O s egu n do es tá gio é. decom por a s rea ções em s eu s com pon en tes fís icos e m en ta is . Qu a n do es s e p roces s o com eça a tornar-s e u m pou co m a is a d ia n ta do, com eça m os

n o terceiro estágio

a pa s s a r a lgu n s m om en tos em pu ro viven cia r . Agora o p r im eiro es tá gio pa rece ba s ta n te rem oto. No qu a r to es tá gio, movimentamo-n os com m a is liberda de n o s en t ido de viver viven cia lm en te, a fa s ta n do-n os dos es forços pa ra ta n to. No qu in to es tá gio, a vida viven cia l es tá a gora in s ta la da com firm eza . De 80 a 90% do tem po, a pes s oa es tá viven cia n do s eu viver . O tem po do pré-caminho

ca tivo da s em oções pes s oa is e t ra n s fer in do-a s pa ra os ou tros , pen s a n do qu e a cu lpa de n os s a s d ificu lda des é a lgu ém qu e n ã o n ós

a gora é im pos s ível de s er retom a do. A pa r t ir do es tá gio dois em d ia n te, a com pa ixã o e a a p recia çã o dos ou tros começam a crescer.

Page 175: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: A s u a des cr içã o dos es tá gios da p rá t ica é m u ito ú t il. É com o u m m a pa : n ã o n os d iz com o ch ega r a o fim , m a s n os perm ite saber onde nos encontramos ao longo do percurso.

JOKO: Com o a lgu ém "ch ega a o fim " depen de de ca da pes s oa . Todos s om os d iferen tes e os pa drões de ego va r ia m de pes s oa a pessoa. Ainda assim, é útil ter uma imagem do padrão geral.

O qu e des crevi é ba s ta n te pa recido com a s dez figu ra s clá s s ica s da s eqü ên cia do tou ro e do h om em , m a s veio a p res en -tado em termos mais psicológicos porque essa forma de abordagem é m a is con h ecida h oje em d ia . No fu n do, porém , p rá t ica é p rá t ica ; p recis a m os en tra r com tu do o qu e s om os . Tem os s im ples m en te de fazê-la. C, E, G. C, E, G. C, E, G.

CURIOSIDADE E OBSESSÃO

Um de m eu s a lu n os d is s e-m e, h á pou co tem po, qu e pa ra ele a m ot iva çã o toda qu e s en t ia pa ra s en ta r e p ra t ica r era a cu r ios i-da de. E le es ta va a ch a n do qu e eu ir ia d is corda r dele e desaprovar es s a form a de p ra t ica r . A verda de é qu e eu con cordo p len a m en te. Um a gra n de pa r te de n os s a vida pa s s a m os p res os em n os s os pen s a m en tos , obceca dos com is to ou a qu ilo, e n ã o verda deira -m en te n o p res en te. Ma s à s vezes n os in t r iga m os a n os s o p róp r io res peito e a res peito de n os s a s obs es s ões : "Por qu e s ou tã o a n s ios o, depr im ido ou a foba do?". Des s a s en s a çã o in t r iga n te vem u m a cu r ios ida de e u m a d is pon ib ilida de pa ra a pen a s obs erva r a n ós e a n os s os pen s a m en tos , pa ra ver com o n os leva m os a fica r tã o contraria dos . O a rco repet it ivo do pen s a m en to recu a pa ra s egu n do p la n o e tom a m os con s ciên cia do m om en to p res en te. Sen do a s s im , a curiosidade é, em certo sentido, o coração da prática.

Se form os cu r ios os de verda de in ves t iga rem os s em n en h u m precon ceito. Su s pen derem os n os s a s cren ça s por a lgu m tem po e a pen a s obs erva rem os , a pen a s n ota rem os . Qu erem os in ves t iga r a n ós m es m os , de qu e m odo leva m os n os s a vida . Se fizerm os is s o de m a n eira in teligen te, exper im en ta rem os a vida m a is de per to e com eça rem os a vê-la com o é. Por exem plo, es ta m os a qu i s en ta dos. Va m os s u por qu e, em vez de n os p reocu pa rm os com u m a cois a ou ou tra , n ós d ir igim os n os s a a ten çã o pa ra a n os s a experiência im ed ia ta . Pres ta m os a ten çã o n o qu e es ta m os es cu ta n do. Sen t im os

Page 176: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n os s os joelh os dolor idos e ou t ra s s en s a ções em n os s o corpo. Depois de a lgu m tem po, perdem os n os s o foco, e n os s os pen s a m en tos com eça m a fervilh a r e form a r a rcos de repet içã o, u m a t rá s do ou tro, Qu a n do n os da m os con ta de qu e n os des via mos, volta m os a p res ta r a ten çã o. Es s e é o pa drã o n orm a l da prática s en ta da . O qu e es ta m os de fa to fa zen do é in ves t iga r a n os s a pes s oa , os n os s os pen s a m en tos , a n os s a vivên cia : ou vimos, s en t im os , percebem os o odor da s cois a s . Nos s a s s en s a ções a cion a m pen s a m en tos e n os s a m en te s e la n ça n u m ou tro a rco. En tã o percebem os es s e a rco repet it ivo. Nos s o foco de in ves t iga ção m u da u m pou co e com eça m os a con s idera r : "O qu e é todo es s e pen s a r?"; "O qu e é qu e eu fa ço?"; "No qu e es tou pen s a n do?"; "Com o é qu e eu es tou con s ta n tem en te pen s a n do a res peito d is s o e não daquilo?".

Se obs erva rm os o n os s o pen s a m en to em vez de cor rerm os com ele, com o tem po a n os s a m en te s e a qu ieta rá e n ós in ves t i-ga rem os o m om en to s egu in te. Es s a percepçã o con s cien te poderia s er : "Es tou s en ta da a qu i h á h ora s e o m eu corpo todo es tá com eça n do a doer". En tã o in ves t iga m os is s o. O qu e dói? O qu e é rea lm en te is s o? Depois de a lgu m tem po tom a m os con s ciên cia n ã o s ó de n os s a s s en s a ções fís ica s , m a s de n os s os pen s a m en tos a res peito dela s ta m bém . Obs erva m os o fa to de qu e n ã o qu eremos fica r de jeito n en h u m s en ta dos a qu i. Obs erva m os n os s os pensamentos rebeldes: "Quando será que vão tocar o sino para que eu pos s a m e m ovim en ta r?". Repa ra r é u m a for rn a de cu r iosidade, u m a in ves t iga çã o do qu e é. Apen a s p res ta m os a ten çã o n a qu ilo qu e está implicado em nossa vida ou em nossa prática sentada.

Es s e p roces s o pode ocorrer n ã o s ó qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , m a s em ou tra s opor tu n ida des . Va m os s u por qu e es tou n o con s u ltór io do den t is ta pa ra ob tu ra r u m a cá r ie. Obs ervo m eu s pen s a m en tos a res peito do t ra ba lh o do den t is ta : "Eu n ão gos to de leva r u m a in jeçã o n a gen giva !". Obs ervo a s u a ve ten s ã o qu e a con tece a s s im qu e o den t is ta en t ra n a s a la . En qu a n to n os cu m pr im en ta m os edu ca da m en te

"Olá , com o va i?"

obs ervo qu e m eu corpo es tá con tra in do. En tã o ch ega a a gu lh a . Apen a s s in to e fico com es s a s en s a çã o. O den t is ta a ju da com a lgu m a s in s t ru ções : "Con t in u e a pen a s res p ira n do. Res p ire fu n do...". É com o t rein a r pa ra u m pa r to n a tu ra l: qu a n do a com pa n h a m os a respiração, não pensamos na dor. Simplesmente somos a dor.

Page 177: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Ou ta lvez es teja m os n o n os s o a m bien te de t ra ba lh o. J á delin ea m os n os s a s ta refa s pa ra a pa r te da m a n h ã . En tã o o ch efe en t ra e d iz: "Tem os u m pra zo a per ta do a gora . Deixem o qu e es ta va m fa zen do. Precis o d is to p ron to a n tes do res to. Da qu i a u m a h ora ". Se tem os p ra t ica do s en ta dos , obs erva m os de im ed ia to a s nossas reações corporais, no mesmo instante em que começamos a fazer nossa tarefa. Observamos que o corpo começa a contrair-se e qu e a lim en ta m os pen s a m en tos res s en t idos : "Se ele m es m o fos s e fa zer is s o n ã o es pera r ia qu e fica s s e p ron to em u m a h ora ". Obs erva m os n os s os pen s a m en tos e en tã o os a ba n don a mos, volta n do pa ra o qu e tem os d ia n te de n ós e p recis a s er feito, Mergulhamos nisso.

Podem os in ves t iga r toda a n os s a vida des s a m a n eira . "O qu e estou sentindo? O que acontece comigo quando a vida faz o que ela fa z? '' As a b ru p ta s exigên cia s do ch efe s ã o a pen a s a lgo qu e a vida faz para mim. Da mesma forma, precisar obturar um dente é o que a vida fa z com igo. Ten h o s en t im en tos e pen s a m en tos a res peito de ca da in ciden te. Qu a n do perm a n eço com os s en t im en tos e pen s a m en tos , a s s en to-m e em a pen a s es ta r a qu i, em a pen a s es ta r com a s cois a s qu e a con tecem do jeito qu e a con tecem , in do s im ples m en te a té a cois a s egu in te. Na h ora do a lm oço, o ch efe volta e pergunta: "Você ainda não terminou aquilo?". Ele não disse: "O qu e h á de er ra do com você?", m a s recebem os es s a m en s a gem . Sen t im os n os s o corpo ou tra vez ten s ion a r . Obs erva m os n os s os pen s a m en tos res s en t idos a res peito dele. Fa zem os u m a lm oço rá p ido em vez da h ora in teira qu e t ín h a m os p la n eja do leva r almoçando. Depois corremos de volta para o trabalho.

Qu a n do tem os a gra n de s or te de fa zer u m t ra ba lh o do qu a l gostamos de verdade, também observamos as reações. Observamos qu e o corpo rela xa m a is . Obs erva m os qu e en t ra m os com m a is fa cilida de n a ta refa . Fica m os a bs orvidos , o tem po pa s s a m a is depres s a , e n os s os pen s a m en tos s ã o m a is in freqü en tes porqu e gos ta m os n ã o é m a is im por ta n te do qu e a qu ilo qu e detes ta mos, porém. E quanto mais tempo praticamos, mais o fluxo de momento a m om en to p res ide n os s o viver , in depen den te de n ossas preferên cia s e a vers ões . Tem os con s ciên cia da s itu a çã o con forme ela flu i por n ós e n os deixa pa ra t rá s . Es ta m os s ó fa zen do o qu e es ta m os fa zen do. Es ta m os cien tes do flu xo da exper iên cia . Na da es pecia l. Ma is e m a is o flu xo in s ta la -s e e p rom ove u m a vida bastante boa.

Page 178: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Não é que tudo passe a ser agradável. Não podemos antecipar o qu e a vida irá n os p roporcion a r . Qu a n do n os leva n ta m os pela m a n h ã , n ã o s a bem os qu e à s 14 h ora s irem os qu eb ra r a pern a . Nu n ca s a bem os o qu e es tá por a con tecer . É pa r te do p ra zer de s e estar vivo.

A prática nada mais é que essa atitude de curiosidade: "O que es tá a con tecen do a qu i, a gora ? No qu e es tou pen s a n do? O qu e es tou s en t in do? O qu e a vida es tá m e a pres en ta n do? O qu e es tou fa zen do com is s o? Qu a l é a cois a in teligen te pa ra s e fa zer a es te res peito? O qu e é a cois a in teligen te de s e fa zer com u m ch efe qu e já es tá ir r ita do e fora do bom s en s o? O qu e fa ço qu a n do ob tu ra r u m den te s e torn a u m a dor in s u por tá vel?". A p rá t ica d iz res peito a es s a s form a s de in ves t iga çã o. Qu a n to m a is ch ega m os a u m a cordo com n os s os pen s a m en tos e rea ções pes s oa is , m a is podem os s im ples m en te es ta r n a qu ilo qu e p recis a s er feito. É is s o qu e com põe em es s ên cia a p rá t ica zen : fu n cion a r de u m m om en to pa ra o outro.

Tem u m a m os qu in h a n es ta s opa , con tu do. A m os ca é qu e m u ita s vezes n ã o s om os cu r ios os a cerca da vida , n em a ber tos pa ra ela . Em vez de exa m in a r com in teres s e es s e ch efe d ifícil, vem o-nos a pr is ion a dos em pen s a m en tos e rea ções a es s a s itu a çã o. Atola m o-n os em des vios m en ta is obs es s ivos , em a rcos repetit ivos de pen s a m en tos . Se n u n ca p ra t ica m os o zen , podem os fica r n es s es a rcos repet it ivos qu a s e qu e 95% do tem po. Se es t ivemos pra t ica n do bem já h á a lgu n s a n os , ta lvez perm a n eça m os n es s es arcos entre 5 e 10% do tempo.

Com respeito àquele chefe difícil, o arco de pensamentos pode s er : "Ma s qu em ele pen s a qu e é? Ele a ch a qu e vou fa zer is s o tu do em u m a h ora ? Ma s é r id ícu lo!". A res is tên cia a pa rece. "Vou da r u m a liçã o n ele!" Podem os ch ega r a té a s a bota r o s erviço qu e p recis a s er feito. Se n ã o o s a bota m os , podem os fa zer is s o con os co, mantendo-n os a tola dos em n os s os pen s a m en tos e em n os s a ra iva . Per to do fin a l do d ia , irem os pa ra ca s a es gota dos e fa la rem os pa ra qu em es tá lá com o h oje o ch efe es ta va im pos s ível. "Nin gu ém con s egu e t ra ba lh a r com ele. E le es tá a r ru in a n do a m in h a vida ." Nes s a s a ca lora da s rea ções pes s oa is n ã o vem os a p res en ça de u m a pos tu ra cu r ios a e in ves t iga t iva . Em vez dela , m a n tem o-n os a ta dos pelo la ço da obs es s ã o m en ta l. Nã o obs erva m os a pen a s n os s os pen s a m en tos a res peito do ch efe: em lu ga r d is s o, a cred ita m os qu e a lgu m a va lida de exis te pa ra term os rodop ia do o d ia todo em torn o

Page 179: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

de n os s os pen s a m en tos en ra ivecidos , em vez de en xergá -los em s u a s im ples n a tu reza , s en t in do a con tra çã o corpora l qu e a pa receu em fu n çã o deles , e, ta n to qu a n to n os fos s e pos s ível, volta r pa ra o trabalho fazendo algo que solucionasse aquele problema.

A p rá t ica s en ta da é exa ta m en te is s o: es ta m os in ves t iga n do a n os s a vida . Ma s , qu a n do n os perdem os em n os s os fios a u to-cen tra dos de pen s a m en tos , n ã o es ta m os m a is in ves t iga n do cois a n en h u m a . Es ta m os pen s a n do em com o tu do é ru im , ou cu lpa n do a lgu ém de a lgu m a cois a , ou n os recr im in a n do. Ca da pes s oa tem s eu es t ilo p rópr io, qu e é com o ju s t ifica m os n os s a exis tên cia . Gos ta m os qu e n os s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos cres ça m . Sen t im os p ra zer n is s o de verda de

a té com eça rm os a perceber que eles arruínam a nossa vida.

As pes s oa s s e perdem em m u itos t ipos d iferen tes de a rcos de pen s a m en tos . Pa ra a lgu m a s é: "Nã o con s igo fa zer n a da en quanto n ã o t iver en ten d ido tu do". Por is s o recu s a m -s e a a gir a té terem a n a lis a do tu do. Ou tra s res pon dem a ch efes d ifíceis d izen do: "Vou fazer o trabalho, mas do meu jeito. E não vou mexer nisso a menos qu e pos s a s a ir per feito". Um per feccion is m o obs es s ivo pode s er o la ço qu e n os a ta . Es te ta m bém pode s er de n a tu reza filos ófica , e en tã o p recis a m os con s tela r u m a im a gem com pleta de com o a s cois a s s e en ca ixa m u m a s n a s ou tra s . Es s e la ço é n o fu n do u m a ten ta t iva de torn a r s egu ra a n os s a vida : pen s a m os qu e, en ten den do tu do, terem os m a is s egu ra n ça . Um a ou tra es pécie de laço é torn a r -s e obs es s iva m en te ocu pa do e t ra ba lh a r o tem po in teiro. Um es t ilo cor rela to é fa zer m u ita s cois a s a o m es m o tem po, Nos s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos s ã o o n os s o es t ilo pes s oa l e des cobr im os o qu e s ã o qu a n do rotu la m os os n os s os pensamentos. É por isso que rotular pensamentos é tão importante. Tem os de s a ber on de e com o gos ta m os de n os en reda r em pen s a m en tos ; tem os de con h ecer nosso própr io es t ilo pes s oa l de fazer esses arcos e laços de nos atar.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , n os in teira m os de como é qu e p refer im os n os lu d ib r ia r . Qu a n do es ta m os n os en ganando, p res os em n os s os a rcos e la ços , n ã o es ta m os s en do cu riosos, a pen a s m ecâ n icos , a pen a s s egu in do os d ita m es de u m a decis ã o bá s ica in con s cien te qu e tom a m os em ou tra época : "Precis o ser des s e jeito e fa zer a qu ilo". Nã o con s egu im os perceber n en h u m a m en s a gem e n ã o con s egu im os en xerga r o qu e es tá a con tecen do de verda de. Nã o exis te u m a verda deira cu r ios ida de a cerca de com o

Page 180: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

estamos funcionando e acerca de outros possíveis meios de se agir. O la ço dos pen s a m en tos obs es s ivos e a u tocen tra dos a tu do a per ta e bloqueia. Nossa abertura e curios ida de bá s ica s a res peito da vida foram-se com o vento.

Sentar-s e e p ra t ica r n ã o é a lgo qu e s e ba s eie em es pera n ças. Baseia-s e em n ã o s a ber , ern u m a pos tu ra de s im ples a ber tu ra e cu r ios ida de. "Nã o s ei, m a s pos s o in ves t iga r ." Todos n ós tem os o n os s o es t ilo pa r t icu la r de fra ca s s a r n es s e s en t ido. Gos ta m os de pen s a r de form a circu la r e repet it iva ; gos ta m os des s es a rcos m en ta is m a is do qu e de n os s a p rópr ia vida . Es s es a rcos é qu em n ós a ch a m os qu e s om os : "Sou es s e t ipo de pes s oa ". Gos ta m os des s es pen s a m en tos e a t ivida des de for ta lecim en to da s n os s a s crenças, mesmo que sejam estéreis.

Qu a n to m a is n os s en ta m os pa ra p ra t ica r e rea lm en te n os torn a m os m a is fa m ilia r iza dos con os co, m a is d is pos tos va m os fica n do pa ra s ó en xerga r es s es a rcos m en ta is e deixa r qu e s e vã o, qu e s e des fa ça m . Com eça m os a pa s s a r u m tem po ca da vez m a ior n a pa r te es s en cia l da p rá t ica s en ta da , qu e é a pen a s es ta r a ber to e cu r ios o, a pen a s deixa n do a vida flu ir em pa z. Do pon to de vis ta de u m pr in cip ia n te, p ra t ica r des s a form a é a cois a m a is ted ios a do m u n do. Qu a n do s en ta m os , n a da es tá a con tecen do, exceto qu e ou vim os u m ca r ro pa s s a n do lon ge, qu e n os s o b ra ço es qu erdo deu u m leve t rem or e qu e s en t im os o a r . Do pon to de vis ta de u m a pes s oa a pega da a s eu s p rópr ios a rcos pes s oa is de pen s a m en tos , é n a tu ra l qu e s u r ja a qu es tã o: "Pa ra qu e você qu er fa zer isto*! Que importância isto tem ?". Apes a r d is s o, es s a p rá tica é de importância cru cia l porqu e é n es s e es pa ço qu e a vida a s s u m e o com a n do. A vida

a in teligên cia ou o fu n cion a m en to n a tu ra l da s cois a s

sabe o que fazer.

ALUNO: Qu a n do m e s in to depr im ido gos to de form a r u m a visualização onde eu me sinta bem.

JOKO: Is s o é u m la ço. Ach a m os qu e n ã o in teres s a o m odo com o es ta m os n os s en t in do, qu e exis te a lgu m a cois a er ra da com a s en s a çã o qu e es ta m os ten do de n ós . En tã o s u bs t itu ím os is s o por a lgo "m elh or" qu e in ven ta m os . Se, em vez d is s o, a pen a s in ves -tigarmos o que é sentir-se abatido ou deprimido, e termos interesse n es s a pes qu is a , irem os des cobr ir cer ta s s en s a ções corpora is e cer tos pen s a m en tos qu e s ervira m pa ra com por a qu ela s en s a çã o gera l. Qu a n do a gim os in ter iorm en te des s a m a n eira , a depres s ã o

Page 181: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ten de a des a pa recer e n ã o s en t im os m a is n eces s ida de de vis u a lizar ou fantasiar um outro estado.

ALUNO: A in ves t iga çã o em s i n ã o pode s er u m la ço obs es s ivo? Debruçar-s e s obre a vida in tern a com o u m detet ive qu e s e debruça s obre u m a evidên cia com u m a lu pa : "Eu fiz is s o e depois a qu ilo, o que me levou a fazer aquilo outro...".

J OKO: É u m a cois a s im ples m en te obs erva r o n os s o p roces s o interior como um fato, e outra ficar preso em por que o fazemos, no qu e pode es ta r er ra do com is s o. Se es ta m os ten ta n do ra s t rea r a s cois a s com o u m detet ive em bu s ca de des ven da r u m cr im e, n ã o estamos fora do laço.

ALUNO: Há a lgu m per igo em obs erva r o la ço e s egu i-lo por onde ele levar? Esse processo poderia desenrolar-se para sempre?

JOKO: Nã o. Se es ta m os rea lm en te a pen a s obs erva n do n os s a s obsessões sem nos aprisionarmos nelas, elas tendem a desfazer-se, a m orrer . Em gera l, n ós pers egu im os n os s os a rcos repet it ivos de pen s a m en tos porqu e de fa to qu erem os retorn a r pa ra n os s o es t ilo a u tocen tra do de pen s a r . No m es m o in s ta n te em qu e s im ples m en te obs erva m os os n os s os pen s a m en tos , es s e a pego a u tocen tra do é cor ta do, e o a rco perde força , ^ão tem os de n os p reocu pa r com u m a obs erva çã o in term in á vel de pen s a m en tos . Qu a n do com eça -m os a p ra t ica r s en ta dos , n os s os pen s a m en tos ou a rcos m en ta is obs es s ivos têm m u ita en ergia , m a s es s e ím peto s e d is s ipa con -form e va m os a u m en ta n do os per íodos de p rá t ica . Ca da vez m a is n os s os pen s a m en tos irã o m orren do, e n ós s im ples m en te seremos nossas sensações corporais, a vida como ela é.

Nã o qu ero qu e a s pes s oa s a qu i a pen a s en gu la m o qu e es tou fa la n do em s im ples boa -fé. Qu ero qu e in ves t igu em o qu e es tou d izen do por s i m es m a s . É is s o qu e é a p rá t ica : u m proces s o de des cober ta pa ra n ós m es m os , a res peito de com o fu n cion a m os e pensamos.

ALUNO: Algu m a s a t ivida des pa recem exigir qu e s e s iga u m a s eqü ên cia de pen s a m en tos . Por exem plo, a p rofis s ã o de es cr itor ou u m a pes qu is a filos ófica . Es s a s a t ivida des pa recem depen der da ca pa cida de de s u s ten ta r u m "a rco" ou u m a lin h a de idéia s ta n to quanto possível.

JOKO: Cla ro, tu do bem . Is s o é m u ito d iferen te, en t reta n to, de pen s a m en tos a u tocen tra dos e obs es s ivos . A fu n çã o cr ia t iva de u m

Page 182: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

es cr itor ou de u m filós ofo s ó pode a con tecer s e a pes s oa não es t iver es cra viza da por s eu s p rópr ios pen s a m en tos pes s oa is a n -s ios os . Obs erva r com o n os s a p rópr ia m en te t ra ba lh a , en xerga r n os s os a rcos m en ta is obs es s ivos , em s u a n a tu reza rea l, pode libertar-n os pa ra u m u s o m a is im a gin a t ivo de n os s a m en te, s em ficarmos atolados.

ALUNO: Há a lgu m a es pécie de pen s a m en to a res peito de s i mesmo que não seja autocentrado?

JOKO: Sim . Em gera l tem os de pen s a r a res peito de n os s a pes s oa . Por exem plo, u m a cá r ie a pa rece em u m den te. Precis o m e organ iza r pa ra u m a ida a o den t is ta . Is s o é pen s a r em m im , m a s não necessariamente de uma maneira obsessiva e autocentrada.

ALUNA: Às vezes , pen s a r s obre a p rá t ica pode s er u m la ço. Pos s o form a r u m a fa n ta s ia de com o m in h a vida va i s er m a ra vilh os a s e eu s em pre es t iver a ten ta a os m eu s pen s a m en tos e sentimentos.

JOKO: Sim . Nes s e ca s o, n ós n ã o es ta rem os s im ples m en te investiga n do os n os s os pen s a m en tos , m a s a cres cen ta n do es pera n ça s ou expecta t iva s . Nã o s e t ra ta m a is de u m a pes qu is a a ber ta e cu r ios a . Com o d izia o m es t re Rin za i: "Nã o pon h a ou tra ca beça a cim a da s u a ". Es s a é u m a ca beça ext ra . Com u m a p rá t ica s en ta da con s is ten te, cu ida dos a , com eça m os a des em a ra n h a r es s es laços e a reconhecer do que são feitos.

ALUNO: Qu a n do es tou à s volta s com a lgu m a ta refa m en ta l, em gera l m e en redo n u m poderos o la ço de a u tocr ít ica . Por exem plo, qu a n do es tou es creven do, é fá cil pa ra m im in ter rom per m eu flu xo criativo de pensamentos com juízos críticos a respeito do que estou fazendo. En tã o o p roces s o in teiro en t ra em cu r to-circu ito e fico paralisado.

JOKO: Sim. Como você poderia praticar com isso?

ALUNO: Apen a s obs erva n do m eu s pen s a m en tos a u tocr ít icos e continuando com a atividade.

JOKO: Certo.

ALUNA: Percebo qu e pa ra m im é a ter ror iza n te a pers pect iva de m eu s pen s a m en tos a u tocen tra dos rea lm en te des a pa recerem . Meu m edo é qu e ta lvez eu n em exis t is s e m a is s em es s e a pego fu n da -mental a mim mesma.

Page 183: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Sim . Apen a s obs erve is s o. Qu a n to m a is obs erva m os qu e n ã o qu erem os qu e es s a m u da n ça ocorra m a is , pa ra doxa lm en te, torn a m o-n os livres pa ra perm it ir qu e s e efetu e. E la n ã o pode s er força da . Nã o h á n a da a s er força do. Es ta m os a pen a s s en do con s cien tem en te percep t ivos , com a ber tu ra e curiosidade.

ALUNO: Algumas pessoas dizem que meditação demais é depri-m en te e qu e p recis a s er equ ilib ra da com ou tra s a t ivida des m a is felizes, como celebrações. O que você pensa a esse respeito?

JOKO. Em s i, n ã o h á n a da n a vida qu e s eja bom ou ru im . O qu e é a pen a s é o qu e é, A depres s ã o n ã o é m a is qu e cer ta s sensações corpora is a com pa n h a da s de pen s a m en tos , os qu a is podem s er a m bos in ves t iga dos . Qu a n do n os s en t im os depr im idos , precisam os tã o-s om en te obs erva r a s en s a çã o e rotu la r os pen s a m en tos . Se deixa m os a depres s ã o de la do ou n os es qu iva m os dela , ten ta n do s u bs t itu í-la por a lgo com o ir a u m a fes ta , n ã o terem os in ves t iga do n em en ten d ido a dep res s ã o. Ir a fes ta s pode en cobr ir a depres s ã o por u m cer to tem po, m a s ela volta rá . Dis fa rça r n os s os s en t im en tos e pen s a m en tos é a pen a s u m ou t ro tipo de laço.

ALUNO: Um dos m eu s la ços é p reocu pa r-m e com o t ra ba lh o e a s qu es tões de d in h eiro: "Será qu e terei d in h eiro s u ficien te pa ra a s n eces s ida des ? Con s igo s u s ten ta r a m in h a fa m ília ? Meu em prego é s egu ro?". Min h a ten dên cia é m a n ter -m e em a ra n h a do n es s es pensamentos ansiosos e preocupados.

JOKO: Cer to. Ao in ves t iga rm os n os s os pen s a m en tos obs es s ivos , n ã o os a ba n don a m os n em ba n im os . Ma s a os pou cos eles perdem o poder qu e exercem s obre n ós , con form e va m os ven do do qu e s e com põem e s en t in do qu a l é o m edo bá s ico qu e lhes está por baixo. Lentamente eles se desmancham.

ALUNO: Percebo qu e a ch o qu e a s a t ivida des s ã o em s i deprimentes ou ca pa zes de a legra r e qu e m in h a ten dên cia é es qu ecer qu e is s o qu e ch a m a m os de depres s ã o ou con ten ta m en to é só u m ba n do de pen s a m en tos e s en s a ções qu e tem os com o res pos ta d ia n te da s cois a s . Em gera l, o qu e con s idera m os com o "a legre" é s ó u m a fu ga m om en tâ n ea do qu e es tá s e pa s s a n do den tro de n ós . En tã o tem os m edo de pa ra r e n os perm it ir realmente sentir.

Page 184: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: É is s o m es m o. O con ten ta m en to gen u ín o é s er es te m o-mento, a pen a s com o ele é. Viven cia r o m om en to pode s er s en t ir a con tra çã o qu e ch a m a m os de depres s ã o, ou pode s er s en t ir a con tra çã o qu e ch a m a m os receber boa s n ot ícia s . Sen do a s s im , o verda deiro con ten ta m en to es tá por ba ixo ta n to da qu ilo qu e ch a -m a m os de depres s ã o com o do qu e ch a m a m os de ela çã o. Exis te u m a es pécie de qu a lida de im pes s oa l, ou vis ã o d ivin a da s cois a s , que aparece naqueles que se sentam para praticar por muitos anos a fio. Não estou falando de tomar-me fria e insensível ou cruel. Não s ou u m a pes s oa in d iferen te, em bora ten h a des en volvido es s a qualidade impessoal em minha vida.

ALUNA: Há a n os eu já a con h eço e ten h o u m a s en s a çã o a res peito d is s o qu e você fa lou . Na m in h a op in iã o, con form e você s e tom ou m a is "im pes s oa l", você s e torn ou m a is a fet iva , m a is receptiva à aproximação dos outros.

JOKO: Nu m a cer ta época eu t in h a m edo dem a is pa ra perm it ir qu e a s pes s oa s ch ega s s em per to. Hoje vejo o qu e cos tu m a va s er tã o per tu rba dor e d igo: "Oh , is s o é qu e es tá a con tecen do. Qu e in teres s a n te". É s im ples m en te u m a qu es tã o de in ves t iga çã o ou de cu r ios ida de: "O qu e es tá a con tecen do a gora ?". Es s a é a n os s a vida . Por exem plo, ou tro d ia m eu ca r ro levou u m a ba t ida . A ou t ra m otor is ta n ã o es ta va olh a n do e eu ta m bém n ã o

en tã o dem os u m a t rom ba da . Eu n ã o t ive a m en or rea çã o de qu a lqu er es pécie. Nã o es tou d izen do qu e é bom ou ru im , m a s com cer teza é m a is fá cil pa ra a s s u pra -ren a is . Se a lgu ém t ives s e s e m a ch u ca do eu poder ia ter t ido u m a ou tra res pos ta , m a is for te, em bora es teja cer ta de qu e s er ia bem d iferen te da qu ela qu e s er ia a m in h a rea çã o h á a lgu n s a n os . Tu do é s im ples m en te a vida , u m pres en te qu e n os é dado vivenciar.

TRANSFORMAÇÃO

Na regiã o s u l da Ca lifórn ia joga m os de u m la do pa ra ou tro pa la vra s qu e des crevem o cres cim en to pes s oa l, com o mudança e transformação. Du vido qu e n o Ka n s a s vocês ou vis s em ta n ta s vezes es s a es pécie de con vers a . Um a gra n de pa r te do qu e s e ou ve é bobagem, refletindo um reduzido nível de entendimento da questão. "Cres cim en to pes s oa l" é com freqü ên cia s ó u m a m u da n ça

Page 185: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s u per ficia l, com o pôr m a is u m a polt ron a n a s a la de es ta r . Na verda deira t ra n s form a çã o, por ou tro la do, exis te u m a im plica çã o de qu e a lgo gen u in a m en te n ovo a pa receu . É com o s e a qu ilo qu e exis t ia a n tes t ives s e des a pa recido e a lgo d iferen te t ives s e ocu pa do s eu lu ga r . Qu a n do ou ço a pa la vra transformação pen s o n a qu eles des en h os on de figu ra e fu n do s e a ltern a m e, on de p r im eiro pa rece que existem vasos, surgem faces. Isso é transformação.

A p rá t ica zen é à s vezes ch a m a da de o ca m in h o da t ra n s -form a çã o. Mu itos dos qu e o in icia m , con tu do, es tã o a pen a s bus-ca n do, com a p rá t ica zen , u m a m u da n ça a d it iva ; "Qu ero s er m a is feliz"; "Qu ero fica r m en os a n s ios a ". Es pera -s e qu e da p rá t ica zen ven h a m es s es n ovos s en t im en tos . Ma s , s e n os t ra n s formamos, nossa vida desloca-se para uma base inteiramente nova. É como se tu do pu des s e a con tecer

u m a ros eira da r lír ios , u m a pes s oa de n a tu reza á s pera , cor ros iva e m a l-h u m ora da s e t ra n s form a r em a lgu ém delica do. Ciru rgia s s u per ficia is n ã o a d ia n ta m n a da pa ra is s o. A verda deira t ra n s form a çã o im plica qu e a té m es m o o ob jet ivo do "eu " qu e qu er s er feliz é t ra n s form a do. Por exem plo, va m os s u por qu e eu m e veja com o u m a pes s oa ba s ica m en te depr im ida , a tem or iza da , ou o qu e s eja . A t ra n s form a çã o n ã o es tá em eu a pen a s lida r com o qu e ch a m o de a m in h a depres s ã o; s ign ifica qu e o "eu ", o in d ivídu o com o u m todo, a s ín drom e com pleta qu e ch a m o de "eu ", é t ra n s form a do. Es s a é u m a vis ã o de p rá t ica m u ito d iferen te da qu ela qu e é a dota da pela m a ior ia dos d is cípu los zen . Nã o gos ta m os de lida r com a p rá t ica des s a m a n eira porqu e is s o s ign ifica qu e, s e quiserm os s en t ir u m con ten ta m en to gen u ín o, terem os de n os d is por a s er qu a lqu er cois a . Tem os de n os a b r ir à t ra n s form a çã o qu e a vida n os pede qu e viva m os . Ten h o de es ta r p repa ra da pa ra a pos s ib ilida de de vir a m e torn a r u m a m en d iga , por exem plo. Agora , eu n ã o qu ero rea lm en te s er u m a m en d iga . Nos s a fa n ta s ia é qu e, qu a n do p ra t ica rm os , n os s a vida irá s er m u ito fá cil e s en t irem os m u ito con for to s en do qu em s om os . Ach a m os qu e irem os s er vers ões n ova s e m a ra vilh os a s de qu em s om os a gora . No en ta n to, a verda deira t ra n s form a çã o s ign ifica qu e talvez o próximo passo s e ja virar uma mendiga na rua.

Com cer teza n ã o é is s o qu e t ra z a s pes s oa s a u m cen t ro zen pa ra p ra t ica r . Es ta m os a qu i pa ra con s egu ir da r u m a a jeita da n a p in tu ra extern a de n os s o a tu a l m odelo. Se o ca r ro de n os s a vida é cinza-ch u m bo, qu erem os qu e s e torn e verde-água ou ros a . Ma s t ra n s form a çã o s ign ifica qu e o ca r ro ta lvez des a pa reça por com pleto.

Page 186: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Ta lvez em lu ga r de u m ca r ro s eja u m a ta r ta ru ga . Nã o qu erem os n em ou vir fa la r des s a s pos s ib ilida des . Es pera m os qu e o p rofes s or n os en s in e a lgu m a cois a qu e dê u m jeit in h o n o p res en te m odelo. Um m on te de tera p ia s a pen a s m a n ipu la técn ica s pa ra a m elh or ia do m odelo. Fa zem a fu n ila r ia a qu i e a li e podem os in clu s ive s en t ir -n os m u ito m elh or . No en ta n to, is s o n ã o é t ra n s form ação. Tra n s form a çã o é a lgo qu e decorre de u m a d is pon ib ilida de qu e s e des en volve m u ito deva ga r , a o lon go do tem po, pa ra virm os a s er aquilo que a vida pede que sejamos.

A m a ior ia da s pes s oa s (eu en t re ela s ) é com o u m ba n do de cr ia n ça s : qu erem os qu e a lgo ou a lgu ém n os dê a qu ilo qu e a cr ia n cin h a qu er de s eu s pa is . Qu erem os ter pa z, a ten çã o, t ra n qü i-lida de, com preen s ã o. Se n os s a vida n ã o n os oferece is s o, pen s a -m os : "Un s a n in h os de p rá t ica zen poderã o oferecer -m e es s a s cois a s ". Nã o, n ã o é a s s im . Nã o é d is s o qu e t ra ta a p rá t ica . A p rá t ica é a b r irm o-n os pa ra qu e es s e "eu zin h o" qu e qu er s em pa ra r u m a cois a a t rá s da ou tra

qu e n a rea lida de o m u n do in teiro s eja seus pais enfim cresça. Crescer não nos interessa muito, porém.

Um m on te de a lu n os m eu s ten ta fa zer de m im u m a m ã e substituta. Esse não é o meu papel. Discípulos em apuros em geral vêm corren do a t rá s de m im ; ta n to qu a n to pos s ível, en ca m inho-os pa ra qu e eles m es m os lidem com s u a s d ificu lda des . As s im qu e os a lu n os têm a lgu m a idéia de com o poder ia m lida r com o p rob lem a , a m elh or cois a a fa zer é deixá -los lu ta r . É en tã o qu e exis te a lgu m a possibilidade de transformação.

Tra n s form a çã o é perm it ir -n os pa r t icipa r de n os s a vida , n es te exato segundo. Eis um negócio tremendamente assustador. Não há n en h u m a ga ra n t ia de con for to, de pa z, de d in h eiro, de cois a n en h u m a . Tem os de s er o qu e s om os . A m a ior ia de n ós , con tu do, tem ou tra s idéia s . É com o s e fôs s em os u rn a á rvore qu e p rodu z folh a s e fru tos de u m a cer ta es pécie. Qu erem os p rodu zir is s o porqu e é con for tá vel. A t ra n s form a çã o, con tu do, é p rodu zir o qu e a vida es colh e p rodu zir a t ra vés de n ós . Nã o podem os s a ber o qu e is s o irá s er . Poderá s ign ifica r qu a lqu er t ipo de t ra n s form ação

n o tra ba lh o qu e fa zem os , n o m odo com o vivem os , em n os s o es ta do de saúde (inclusive com o risco de ficar pior e não melhor).

Ain da a s s im t ra n s form a çã o é con ten ta m en to. Tra n s form a ção s ign ifica qu e, s eja com o a vida for

difícil, fá cil, t ra n qü iliza dora ou in qu ieta dora , ela é con ten ta m en to. Com es s a pa la vra eu n ã o

Page 187: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

estou querendo dizer felicidade. Contentamento tem mais afinidade com cu r ios ida de. Pen s em os em bebês de m a is ou m en os n ove meses a um ano, engatinhando por todo lado, conhecendo todas as es pécies de m a ra vilh a s : podem os en xerga r a cu r ios ida de e o des lu m bra m en to em s eu s ros t in h os . Nã o es tã o en ga t in h a n do por toda pa r te pa ra a bs orver in form a çã o, n em es tã o ten ta n do s er m elh ores bebês qu e podem en ga t in h a r com m a is eficiên cia ; n a rea lida de n ã o es tã o en ga t in h a n do por n en h u m a ra zã o es pecífica . Es tã o s im ples m en te en ga t in h a n do pelo pu ro p ra zer e cu riosidade de fa zê-lo. Precis a m os recu pera r a ca pa cida de de s en t ir cu r ios ida de a res peito de tu do em n os s a vida , a té m es m o dos des a s t res . Por exem plo, va m os s u por qu e n os s o com pa n h eiro de m u itos a n os n os a ba n don e de u m a h ora pa ra ou tra . Es s e t rá gico evento pode n os fa zer m ergu lh a r n u m m elodra m a de rea ções . Você pode s e im a gin a r con s egu in do ver es s a s itu a çã o com cu r ios ida de, em vez de com s ofr im en to? O qu e s ign ifica r ia con s idera r es s e desastre com curiosidade?

ALUNA: Estar num possível estado de deslumbramento.

JOKO: É is s o m es m o. Ter ía m os in teres s e pela s itu a çã o, pela cois a toda , in clu s ive por n os s a s rea ções em ocion a is : n os s os gr itos , n os s a s os cila ções de h u m or , n os s a s s en s a ções fís ica s

s ó cu -r ios ida de, de u m s egu n do pa ra o s egu in te. Is s o pode s oa r fr io, m as n ã o é; s ign ifica qu e, pela p r im eira vez, es ta m os a ber tos pa ra a s itu a çã o e podem os a pren der com ela e lida r com ela . Es s a cu r ios ida de ta m bém fa z pa r te do con ten ta m en to, u m es ta do de des lu m bra m en to. No en ta n to, n ã o n os im por ta m os com cu r ios i-da de e des lu m bra m en to. Prefer im os em vez d is s o con s er ta r coisas pa ra virm os a n os s en t ir bem . Ma s a cu r ios ida de da qu a l es tou falando pode estar lá, quer estejamos nos sentindo bem, quer mal.

Há vá r ios a n os t ive u m a s ocieda de com u m cien t is ta de gra n de ren om e. Pergu n tei-lh e o qu e s ign ifica va s er u m cien t is ta . E le d is s e: "Se h á u m pra to n u m a m es a per to de você e você s a be qu e a lgu m a cois a es tá deba ixo do p ra to

m a s você n ã o s a be o qu e é , s er u m cien t is ta s ign ifica qu e você n ã o va i con s egu ir des ca n s a r d ia e n oite a té ter vis to o qu e es tá em ba ixo do p ra to. Você tem d e s a ber". A p rá t ica dever ia cu lt iva r es s a es pécie de pos tu ra . Atra vés de n os s a s m ed ida s de a u toproteçã o, porém , perdem os u m a gra n de pa r te de n os s a cu r ios ida de a res peito da vida. Quando estamos deprimidos, queremos apenas fazer com que a depres s ã o pa re. Da m es m a m a n eira , qu a n do es ta m os

Page 188: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

preocu pa dos , s olitá r ios ou con fu s os . Em vez d is s o, p recisamos en fren ta r n os s o es ta do de â n im o com cu r ios ida de e a ber to des lu m bra m en to. Es s e ou vir a ber to e cu r ios o do qu e a vida n os envia é contentamento independentemente de qual seja o estado de ânimo de nossa vida.

Es s e é o ca m in h o da t ra n s form a çã o. Fica m os m en os em a -ra n h a dos em n os s a s m ed ida s de a u toproteçã o pa ra ver a vida

qu erer o qu e s e qu er , m en os a pega dos à s im a gen s ou fa n ta sias de com o n os s a vida deve s er . A p rá t ica , o ca m in h o da t ra n s form a çã o, é u m len to des loca m en to pelo tem po a té a con -s olida çã o de u m n ovo m odo de s e es ta r n o m u n do. Com cer teza es s e s erá u m ca m in h o tera pêu t ico, m a s es s a n ã o é s u a fin a lida de prim eira . Um a pes s oa tota lm en te cu r ios a n ã o é n em feliz n em in feliz. Um bebê n a fa s e de en ga t in h a r qu e des cobre u m copo pa ra m ed ir in gred ien tes , coloca do n o ch ã o, n ã o es tá n em feliz n em infeliz. Em vez de "feliz" o bebê es tá absorvido pelo exame do objeto. Nã o é a m bicios o; n ã o é u m bebê bom ou m a u ; es tá a pen a s a bs orvido n o des lu m bra m en to da qu ilo qu e es tá ven do. In felizm en te, os bebês torn a m -s e a du ltos . Nã o qu e a m elhor p rá t ica s eja s er com o u m bebê. Nu m p la n o idea l, con s erva m os a a ber tu ra e a d is pon ib ilida de de u m bebê, porém tem os m en tes m a du ra s e ca pa cida des de a du ltos . Em vez de ver o m u n do com cu r ios ida de e des lu m bra m en to, a p roxi m a m o-n os da vida com u m a p rogra m a çã o a u tocen tra da , qu eren do qu e tu do s e con form e a n ós e n os fa ça s en t ir bem . As pes s oa s de qu em gos ta m os s ã o a s pes s oa s qu e n os t ra n s m item boa s s en s a ções . Os a m igos qu e de fa to qu erem os por per to s ã o a qu eles qu e n os fa zem s en t ir qu e s om os boa s pes s oa s . Os s u jeitos qu e con s is ten tem en te n os fa zem s en t ir m a l vã o pa ra ou tra lis ta . Um a pes s oa qu e s ó é cu r ios a e aberta, porém, não age assim, pelo menos não no mesmo nível.

Com o es creve Ca r los Ca s ta n eda *, n os s a p rá t ica p recis a s er impecável Is s o s ign ifica es ta rm os tã o con s cien tes qu a n to n os for pos s ível a ca da m om en to, pa ra qu e n os s a "pers on a lida de", qu e é com pos ta de n os s a s es t ra tégia s de a u toproteçã o, com ece a s e des a r t icu la r e pos s a m os a s s im rea gir de u m a m a n eira ca da vez m a is s im ples a o m om en to. Um a p rá t ica im pecá vel s ign ifica , por exem plo, t ra ba lh a r com u m ou dois p rojetos n a p rá t ica e s im -

* Carlos Castaneda, Journney to Ixtlan: The lessons of Don Juan, Nova York: Simon and Schuster, 1972.

Page 189: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

p les m en te a ter-s e a is s o, s em des is tên cia ou des vio. Va m os s u por qu e tem os u m h á b ito de a cred ita r em pen s a m en tos com o "Nã o va lh o n a da ". A p rá t ica im pecá vel s ign ifica qu e qu a s e n u n ca deixa m os de perceber toda s a s vezes em qu e es s e pen s a mento ocorre. Mes m o qu e u m ou ou tro es ca pe de repen te, p rá tica im pecá vel é a qu ela qu e s u s ten ta a p res s ã o s obre n ós . Nã o s e t ra ta de es ta rm os ten ta n do s er m elh ores , ou de s erm os p iores ca s o n ã o con s iga m os . Mes m o a s s im , p recis a m os s er m et icu los os . Prá t ica im pecá vel s ign ifica qu e n u n ca pa ra m os . O ca m in h o da t ra n s form a çã o n ã o s ign ifica "Oh , já p ra t iqu ei ba s ta n te por h oje; a ch o qu e vou s a ir pa ra m e d iver t ir ". Nã o h á n a da de er ra do em s e pa s s a r bon s m om en tos , m a s p rá t ica im pecá vel é ter con s ciên cia disso também. De outro modo, estamos apenas nos ludibriando.

Apes a r de m et icu los a , a p rá t ica m a du ra n ã o tem es forço. Nos p r im eiros a n os , con tu do, n ã o h á m eios de evita rm os a s lu ta s . Aos pou cos , a o lon go dos a n os , a lu ta torn a -s e m en or . A p rá t ica n ã o é ta m bém a lgo pa ra s e deixa r de la do qu a n do a s cois a s s e torn a m d ifíceis . Em vez de "As cois a s es tã o tã o com plica da s a gora qu e vou p ra t ica r n a s em a n a qu e vem ", p recis a m os p ra t ica r exa ta m en te a gora , com es s a d ificu lda de qu e es ta m os a t ra ves s a n do. Se n ã o for a s s im , a p rá t ica é s ó m a is u m br in qu ed in h o qu e es ta m os u s a n do para nos divertir, uma simples perda de tempo.

O ca m in h o da t ra n s form a çã o requ er u m gu er reiro im pecá -vel

qu e n ã o é o m es m o qu e s er u m gu er reiro per feito. Em vez d is s o, es ta m os s em pre fa zen do o m elh or qu e podem os , t ra ba -lh a n do com u m cu ida do es pecífico. Em lu ga r de decid ir "Vou tom a r con s ciên cia ", p recis a m os decid ir "Qu a n do eu fizer is s o ou a qu ilo vou torn a r -m e em es pecia l con s cien te". Em vez de ten ta r t ra ba lh a r com tu do de u m a vez, t ra ba lh a m os com u m ou dois a s s u n tos por vez, ta lvez por dois ou t rês m es es , e a pen a s n os m a n tem os con s is ten tem en te a ten tos a es s es a s s u n tos . Se deixa m os qu e a pen a s u m s ó pen s a m en to des s es es ca pe, com o "Mas eu sou mesmo uma pessoa que não tem jeito", sem tomarmos con s ciên cia dele, s en ã o ba s ta n te tem po depois , en tã o irem os querer praticar e sentar com ainda mais firmeza e tentar outra vez. É p recis o qu e n os a p liqu em os com con s tâ n cia , qu e con s olidem os a res is tên cia m u s cu la r pa ra a lon ga e á rdu a jorn a da . No fin a l, percebem os qu e não é u m a lon ga e á rdu a jorn a da , m a s n ão enxergaremos isso até o dia em que enxergarmos isso.

Page 190: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Qu a n do es tou lon ge do cen tro zen de Sa n Diego, a s pes soas à s vezes com bin a m u m a p rá t ica de dois d ia s e rea liza m -n a . Is so é bom. Nem todos podem participar; alguns têm filhos pequenos, por exem plo. Mes m o a s s im , en t ra r n u m a p rá t ica des s e t ipo

s en ta r -

s e du ra n te dois d ia s , lu ta n do pa ra m a n ter -s e con scientemente perceptivo

é do qu e es ta m os fa la n do, Nu m a p rá t ica s ér ia n ã o h á

com o evita r es s a es pécie de es forço. Há lu ta r e es força r -s e du ra n te u m lon go tem po. Nã o h á com o fu gir d is s o. Lu ta r e es força r -se des en volve força . Sign ifica cres cer , a m a du recer . Qu a n do n os qu eixa m os , qu a n do n os s en t im os a m a rgos a res peito do qu e a lgu ém fez pa ra n ós , a m a rgos pelo qu e a vida n os fez, en tã o es ta m os s en do cr ia n cin h a s . Deve h a ver u m gra n de s eio em a lgu m lu ga r a o qu a l es ta m os ten ta n do n os a ga r ra r . A p ra t ica zen t ra ta de cres cer e a m a du recer . Nã o dever ía m os in icia r u m a p rá t ica a s s im en qu a n to n ã o a qu is és s em os m u ito. Devem os qu erer de verda de uma vida que se irá transformar.

O HOMEM NATURAL

Nã o im por ta h á qu a n tos a n os ven h a m os p ra t ica n do, n os s a ten dên cia é com preen der de m a n eira er ra da a n a tu reza da p rá t ica. De u m jeito ou de ou tro n ós s u pom os qu e a p rá t ica d iz res peito a cor r igir u m er ro. Im a gin a m os qu e, s e fizerm os is to ou dom in a rm os a qu ilo, por fim con s egu irem os s u pera r o er ro qu e h á em n ós . Nos s a s vida s s erã o "a jeita da s " e de a lgu m a m a n eira a girem os melhor.

Muitas formas de terapia começam pelo suposto de que existe algo de errado com a pessoa que busca terapia, e que esse trabalho s ervir ia pa ra con s er ta r o qu e es tá er ra do. Tra n s pom os es s a atitude

tã o d ifu n d ida em n os s a cu ltu ra

pa ra n os s a p rópr ia prática espiritual.

Pres u m im os qu e a lgo n ã o es tá cer to com n os s a s vida s porque n ã o n os s en t im os con ten tes con os co. De n os s o pon to de vis ta pes s oa l, a lgo es tá er ra do. O qu e p recis a s er en ten d ido a res peito desse dilema?

Pen s em os n u m fu ra cã o. Do pon to de vis ta do fu ra cã o em s i, n ã o h á o m en or p rob lem a em des t ru ir m ilh a res de á rvores , em des t ru ir o s is tem a de en ca n a m en to, em m a ta r pes s oa s , em des -

Page 191: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

t ru ir a s p ra ia s etc. É is s o o qu e os fu ra cões fa zem . Do n os s o pon to de vis ta , con tu do, s obretu do s e a n os s a ca s a foi des t ru ída por u m furacão, algo está muito errado. Se pudéssemos, daríamos um jeito n os fu ra cões . Só qu e a in da n ã o con s egu im os ver o qu e pode s er feito.

In felizm en te, qu a n do ten ta m os da r u m jeito n a s cois a s , n a m a ior ia da s vezes cr ia m os u m con ju n to todo n ovo de p rob lem a s . O a u tom óvel é u m a bela in ven çã o qu e fa cilita n os s a s vida s de in ú m era s m a n eira s , porém , com o todos n ós s a bem os , t rou xe con s igo todo u m a rs en a l de gra n des p rob lem a s . En tregu e a s i m es m a , a n a tu reza fa z toda es pécie de con fu s ã o, m a s es s a pa rece ser uma confusão curativa, e o processo natural se restaura por si. Qu a n do a lim en ta m os a idéia de qu e p recis a m os resolver todos os p rob lem a s da vida , porém , n ã o n os s a ím os tã o bem . A ra zã o de n os s o fra ca s s o es tá em qu e n os s os pon tos de vis ta s ã o lim ita dos a o qu e n os s o ego n eces s ita , a o qu e "eu qu ero". Se a qu ilo qu e es tá acontecendo em nossa vida fosse aceito, nada nos perturbaria.

Será qu e dever ía m os a pen a s n os torn a r pa s s ivos e perm it ir qu e tu do fos s e com o é, s em fa zer n a da a res peito? Nã o. Ma s n os m etem os em a pu ros pelos con textos em ocion a is qu e a cres cen ta -mos, pela atitude de que existe uma coisa errada que precisa ser

ajeitada.

Em pa r t icu la r , qu erem os qu e n os s os eu s pes s oa is s eja m d iferen tes do qu e s ã o. Por exem plo, qu erem os n os torn a r "ilu -m in a dos ". Im a gin a m os qu e u m eu ilu m in a do é de a lgu m a form a glor ifica do, d iferen te, des ta ca do do res to dos m eros m or ta is co-muns. Ilu m in a çã o pa rece-n os s er u m a gra n de con qu is ta , a rea li-za çã o excels a do ego. Es s a â n s ia de torn a r -s e ilu m in a do pen etra m u itos cen tros es p ir itu a is com o u m a cor ren te s u b ter râ n ea de excita çã o a res peito da p rá t ica es p ir itu a l. Na rea lida de, is s o é ridículo.

Mes m o a s s im , qu a n do n os s en t im os in felizes , gos ta m os de im a gin a r qu e podem os en con tra r a lgo qu e n os con s er te, de m odo qu e n os s os rela cion a m en tos s em pre s eja m m a ra vilh os os . Imaginamo-n os s em pre n os s en t in do bem , fa zen do t ra ba lh os qu e nunca dã o m om en tos de s ofr im en to, qu e n u n ca n os a p res en ta m reveses.

Page 192: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Veja m os o qu e poder ía m os ch a m a r de "o h om em n a tu ra l". (Poder ía m os fa la r igu a lm en te da "m u lh er n a tu ra l", m a s n es te exem plo fa lem os do h om em .) Na Bíb lia , o h om em n a tu ra l s er ia o Adã o a n tes de s er expu ls o do ja rd im do Éden , ou s eja , a n tes de ter tom a do con s ciên cia de s i com o u m eu s epa ra do. Com o era es s e homem natural? O que seria ser um homem natural?

ALUNO: O homem natural seria pleno de deslumbramento.

JOKO: E verda de, em bora ele n ã o s ou bes s e qu e era p len o de deslumbramento.

ALUNO: Nã o h a ver ia s en s o de s epa ra çã o en tre ele e o m u n do à sua volta.

JOKO: Ma is u m a vez is s o é verda de. E le ta m bém n ã o ter ia consciência dessa ausência de separação.

ALUNA: Ele simplesmente seria.

JOKO: Sim . Ele s er ia , s im ples m en te. Com o s e com por ta r ia ? Por exem plo, ele s er ia s a n to, ou de vez em qu a n do s a ir ia pa ra caçar?

ALUNO; Ele faria o que fosse preciso para viver.

JOKO: Ele fa r ia o qu e fos s e p recis o pa ra s obreviver . Se necessár io, ele ca ça r ia , com o os n a t ivos a m er ica n os qu e fa zia m oferendas aos animais que tinham de matar.

ALUNO: Ele faria guerra com o povo de sua tribo?

JOKO: Pos s ivelm en te, em bora eu du vide qu e s e t ra ta s s e de uma matança. Talvez desacordos eventuais.

ALUNO: Pen s o qu e u m h om em n a tu ra l s er ia com o o m eu ga to: com e, dorm e, fa z o qu e p recis a s er feito a ca da m om en to s em tomar nenhuma consciência disso, ou pensar a respeito.

JOKO: É m u ito is s o. Os cã es s ã o u m m a u exem plo porqu e n ós fa zem os deles o qu e qu erem os qu e eles s eja m . J á os ga tos s ã o mais independentes, mais como o homem natural.

O es ta do n a tu ra l é do qu e t ra ta a p rá t ica . Ser u m a pes s oa n a tu ra l n ã o qu er d izer qu e n os torn em os u m a es pécie de s a n to. Sem uma noção de separação entre nós e o mundo, porém, sempre exis te u m a bon da de e u m a p ropr ieda de in a ta s em n os s a s a ções.

Page 193: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Por exem plo, n os s a s du a s m ã os n ã o s e com por ta m de m a n eira imprópria entre si porque fazem parte do mesmo corpo.

O homem natural aprecia alimentos. Ele aprecia amar. De vez em qu a n do fica con tra r ia do e p rova velm en te n ã o por m u ito tem po. Pode sentir medo quando sua sobrevivência é ameaçada.

Em con tra s te com es s e qu a dro, n os s a vida é m u ito a n t in a tu ra l. Sen t im o-n os s eres s epa ra dos do m u n do e is s o n os a fa s ta do ja rd im do Éden . Qu a n do n os des ta ca m os do m u n do, ta m bém des ta ca m os o bem do m a l, o s a t is fa tór io do insatisfatório, o a gra dá vel do doloros o. Depois de term os s epa ra do a s cois a s des s a m a n eira , perm a n ecerem os pa ra s em pre ten ta n do d ir igir -nos pa ra u m dos la dos , evita n do o ou tro, de m odo a s ó en con trarmos aquelas partes da vida que nos convêm.

A n a tu reza é com o o fu ra cã o. Seja o qu e for qu e a con teça , a con tece. Nã o qu erem os is s o em n os s a vida , porém . Qu erem os u m fu ra cã o qu e a r ra s e a s ou tra s ca s a s , m a s a n os s a n ã o. Es ta m os s em pre a t rá s de u m pequ en in o n ich o de s egu ra n ça em m eio a o fu ra cã o da vida . Con tu do es s e lu ga r n ã o exis te. A vida d iz res peito a a pen a s viver e a p recia r a qu ilo qu e vier . Porqu e n os s a s m en tes s ã o egocen tra da s , porém , pen s a m os qu e a vida s e t ra ta de protegermo-n os . Is s o n os m a n tém ca t ivos . Um a m en te egocen tra da é a u tocen tra da . Pa s s a todo o s eu tem po pen s a n do em com o irá s obreviver e m a n ter -s e a s a lvo, con for tá vel, en t ret ida , s a t is feita , n ã o a m ea ça da , a ca da en cru zilh a da . Qu a n do vivem os a s s im , perdem os o bon de. Perdem os n os s o cen tro. Qu a n to m a is n os a fa s ta m os do cen tro, m a is a n s ios a e excên t r ica quer dizer, longe do centro nossa vida se torna.

Des de n os s os p r im eiros m om en tos de vida , es ta m os des en -volven do u m a m en te egocen tra da . Viver des s a form a é a pen a s olh a r a vida de u m a determ in a da m a n eira . Nã o exis te n a da in t r in s eca m en te er ra do com is s o; é s ó qu e vem os a vida a pen a s de n os s o p róp r io pon to de vis ta . Nos s a n a tu reza es s en cia l permanece in viola da em todos os m om en tos . Nã o podem os vê-la , porém , porqu e es ta m os a gora s em pre en xerga n do a pa r t ir de u m a perspectiva limitada e unilateral.

Es ta m os lon ge de "s ó viver" com o u m h om em ou u m a m u lh er n a tu ra is p rova velm en te viver ia m . Es ta m os pen s a n do s obre o viver , o tem po todo. Ta lvez pa s s em os de 80 a 90% do n os s o tem po fa zen do is s o. E n os es pa n ta m os de qu e n a da pa rece es ta r cer to, de

Page 194: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

qu e n a da é cer to. De n os s o pon to de vis ta , es ta m os s em pre m u ito incomodados.

En tregu e a s eu s p róp r ios recu rs os , o h om em n a tu ra l é es -s en cia lm en te bom . Ca ça qu a n do p recis a . Fa z o qu e p recis a . Por n ã o s e s en t ir s epa ra do, n o en ta n to, ca u s a m u ito pou co da n o. Ba s ta olh a rm os pa ra n ós pa ra verm os o qu a n to es ta m os d is ta n tes dessa espécie de vida.

Nos s a ta refa es s en cia l n a p rá t ica não é ten ta r a lca n ça r a l-gu m a cois a . Nos s a verda deira n a tu reza

n os s a n a tu reza bu da

es tá s em pre a í. Sem pre in viola da . É p res en te. Recon h ecem os qu e estamos s im ples m en te bem qu a n do en tra m os em con ta to com ela . No en ta n to, n ã o es ta m os em con ta to com ela porqu e n os des via m os pa ra u m dos la dos , s om os u n ila tera is . E is s o cr ia os problemas de nossas vidas.

Diz-s e com m u ita freqü ên cia qu e a es s ên cia de qu a lqu er prática religios a é a ren ú n cia do eu . Mu ito verda deiro, des de qu e en ten da m os cor reta m en te es s a s pa la vra s . Ao qu e é qu e tem os de renunciar então?

ALUNO: Aos apegos.

JOKO: Sim. Os apegos assentam-se no quê?

ALUNO: Nos pensamentos autocentrados?

JOKO: Pensamento a u tocen tra do. Su pon h a m os qu e a lgu ém m e d iz: "J oko, você é u m a es tú p ida ". Es s a pes s oa es tá s ó m e da n do s u a op in iã o. Eu devolvo com ou tra : "Nã o s ou es tú p ida . Você é qu em n ã o s a be o qu e es tá fa zen do''. E com is s o fica m os de ba te-boca . En tra m os n es s es jogos em ra zã o de n os s a s m en tes a u to-cen tra da s , egocen tra da s . Des s e pon to de vis ta , s em pre exis te a lgo de er ra do com o m u n do. Na rea lida de, porém , a vida em s i va i bem , ba s ta n te t ra n qü ila . O qu e ca u s a a s per tu rba ções s ã o a s n os s a s opiniões.

A p rá t ica n ã o d iz res peito a en con tra rm os a lgu m a cois a . Nã o tem os de en con tra r a ilu m in a çã o. Nã o tem os de en con tra r a n os s a n a tu reza bu da . É o qu e s om os . O qu e p recis a m os fa zer é rem over n os s a cegu eira , pa ra poderm os n ova m en te volta r a vê-la . Qu a is são algumas maneiras práticas de remover nossa cegueira?

ALUNO: Rotular nossos pensamentos.

Page 195: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Sim , podem os rotu la r n os s os pen s a m en tos pa ra vê-los apen a s com o pen s a m en tos , com o a lgo qu e n ós m es m os en gen dra -mos. Precisamos ver que eles não têm uma realidade essencial.

ALUNO: Pen s o qu e a pes s oa tem de a ceita r o fa to da cegu eira . Nã o con s igo rotu la r n a da en qu a n to n ã o m e d is pu s er a olh a r pa ra isso.

JOKO: É verda de. Em gera l n ã o tem os d is pos içã o pa ra fa zer es s e t ra ba lh o de ver en qu a n to n ã o es t iverm os s ofren do. O qu e provavelm en te a con tece em qu a lqu er vida a u tocen tra da : s ofrer , em mim e nas pessoas à minha volta.

Nos s a pequ en a m en te p rodu z qu eixa s . Produ z a m a rgu ra e a s en s a çã o de s er vít im a . Produ z s a ú de p recá r ia . Nã o é a ú n ica ca u s a de u m a s a ú de p recá r ia ; m es m o a s s im , u m corpo con s ta n -tem en te ten s o tem u m a du p la ba ta lh a pa ra en fren ta r . A pequ en a m en te p rodu z a r t ifícios e a r rogâ n cia . Im pede-n os de es ta r em con ta to com a s s en s a ções de n os s o corpo e com a vida em s i. Qu a n do es ta m os em con ta to, por ou tro la do, n os s a s vida s s ã o mais como a do homem natural. O que isso significa?

ALUNO: Significa uma noção do ato apropriado.

JOKO: Sim. Algo mais?

ALUNO: Um a m a ior a ber tu ra . A in teligên cia n a tu ra l a bs orve inform a çã o a t ra vés dos órgã os dos s en t idos e fu n cion a com o u m a parte de tudo o mais.

JOKO: Nos s a ten dên cia é en xerga rm os com m a is cla reza . Nos s a ten dên cia é s a ber com o equ ilib ra r a s cois a s e o qu e fa zer n u m a determ in a da s itu a çã o. Nos s a ten dên cia é perm a n ecerm os ca lm os porqu e n ã o n os t ra n s torn a m os d ia n te de ca da cois in h a . Nos s a ten dên cia é s erm os m a is d iver t idos . Ma is es pon tâ n eos . Ma is coopera t ivos . Ten dem os a ver o ou tro com m a is p len itu de em vez de como uma coisa a ser manipulada.

Es s es res u lta dos n ã o n os ch ega m com fa cilida de. O t ra ba lho qu e rea liza m os s obre a a lm ofa da é à s vezes ba s ta n te á r ido. Fica m os ca n s a dos de rotu la r n os s os pen s a m en tos e de volta r à s s en s a ções do n os s o corpo. Ma s es s e n ã o é u m t ra ba lh o s em sentido, embora leve anos. Somos obstinados e não queremos fazer n a da qu e n ã o s eja n eces s á r io. Qu a n do n ã o a gim os a s s im , n o

Page 196: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

en ta n to, a vida é du ra con os co e com todos à n os s a volta . Mes m o então, costumamos não fazer o trabalho que é preciso.

Ren u n cia r a o eu pa rece exót ico. Im a gin a m os Cr is to n a cru z ou a lgu m a ou tra a çã o n otá vel. Ma s ren ú n cia do eu é, ba s ica m en te, a lgo m u ito s im ples e es s en cia l. Ren ú n cia do eu é o qu e a con tece toda vez qu e vem os n os s os pen s a m en tos rodop ia n do e os rotu la m os e a b r im os m ã o de n os s o pequ en o eu

pois os

pen s a m en tos s ã o is s o

e volta m os a o qu e es tá a con tecen do.

Volta m os a ca p ta r a s s en s a ções corpora is , o s om dos ca r ros , o odor do a lm oço. É is s o qu e s ign ifica ren ú n cia do eu . Qu a n do n os s en ta m os du ra n te u m a s em a n a , fa zen do ret iro, dever ía m os fa zer is s o dez m il vezes : rotu la r n os s os pen s a m en tos , en xerga r a fa n -ta s ia , retorn a r à percepçã o con s cien te do qu e é, o qu e é ren u n cia r a o pequ en o eu em fa vor do eu m a ior . Res u lta do: a pen a s a vida vindo.

Na da h á n is s o de m a ra vilh os o: é o qu e fa zem os ta lvez dez vezes a ca da per íodo de p rá t ica s en ta da . Se es t iverm os rea lm en te a ler ta s , ta lvez vin te ou t r in ta vezes . Se n os perdem os em n os s os pen s a m en tos du ra n te qu in ze m in u tos , perdem os u m a pa r te de nosso trabalho.

Ninguém se apressa em nos dar uma medalhinha de ouro por

term os feito es s e t ipo de t ra ba lh o. Nin gu ém . Pa ra ta n to, precisa-

m os en ten der o qu e es tá im plícito a í. Tu do

a n os s a vida inteira

es tá im p lica do. Tu do o qu e de fa to qu erem os es tá en volvido n es s e m on óton o t ra ba lh o qu e rea liza m os vá r ia s vezes seguidas.

Depois surgem fases em nossa vida em que simplesmente não tem os d is pon ib ilida de pa ra fa zer es s e t ra ba lh o du ra n te a lgum tempo. "Não importa o que a Joko diga, vou entrar neste devaneio," En tã o pa s s a m os o film in h o de n os s a pequ en a fa n ta s ia e depois volta m os a o t ra ba lh o. Nos s a m en te s a i de s u a fa n tasia a u tocen tra da e retorn a pa ra a s en s a çã o qu e es tá em n os s os joelhos, para perceber a tensão de nosso corpo, para apenas deixar a con tecer o qu e es tá a con tecen do. Nes s e s egu n do, ren u n cia m os a n ós . Es s e é o es ta do ilu m in a do: es ta r s im ples m en te a í. Sem pre retorn a m os a o n os s o pequ en o eu . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , porém , a os pou cos a u m en ta o in terva lo em qu e

Page 197: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

perm a n ecem os s im ples m en te com a vida com o ela é, en qu a n to a s interrupções de nossa autocentraçao se tornam um pouco menores, u m pou co m a is b reves . As in ter ru pções n ã o du ra m m a is ta n to e n ã o a s leva m os m a is tã o a s ér io. Ca da vez m a is , ela s s ã o com o n u ven s qu e va gu eia m pelo céu : n ós a s vem os , m a s s om os m en os con trola dos por ela s . Com o tem po, es s e p roces s o p rodu z u m a a cen tu a da d iferen ça em n os s a vida . Sen t im o-n os m elh or . Fu n cion a m os m elh or . Depois de u m ret iro in ten s ivo, por exem plo, a m a ior ia a ch a qu e a s cois a s qu e era m u m prob lem a a n tes a gora s ã o t r ivia is , qu a n do n ã o en gra ça da s . O "p rob lem a " n ã o m u dou , m a s a m en te es tá d iferen te. A fin a lida de de m in h a s a u la s

e a do

próprio sesshin

es tá n es s e retorn o à vida d iá r ia . Qu a n do volta m os pa ra a s exigên cia s m a is com plexa s de n os s a vida de tod o d ia , n o en ta n to, cos tu m a m os es qu ecer de con t in u a r p ra t ica n do. Em vez de perm it ir qu e n os s a m en te s e perca , tem os de con t in u a r a ten tos , obs erva n do. Se n ã o fa zem os is s o, a cla reza qu e tínhamos con qu is ta do com eça a es fu m a ça r-s e. Is s o n ã o tem de ocorrer ; n ã o temos de lutar com alguém no dia seguinte ao sesshin.

Qu a n to m a is tem po n os m a n t iverm os p ra t ica n do e m a is os h á b itos da p rá t ica torn a rem -s e s im ples m en te qu em s om os , m a is tem po du ra rã o os ben efícios do sesshin. Depois de u m per íodo, ch ega m os n u m pon to em qu e n ã o h á m a is d iferen ça en t re o sesshin e a vida diária.

É im por ta n te n os lem bra rm os de qu e n ã o es ta m os con s er -ta n do n a da . Nã o es ta m os ten ta n do s er d iferen tes do qu e s om os . Aliá s , a p rá t ica é a pen a s retorn a r à qu ilo qu e s em pre s om os . Nã o es ta m os fa zen do n a da es pecia l. Nã o es ta m os ten ta n do fica r ilu -m in a dos . Ma n tern o-n os a pen a s volta n do, ren u n cia n do a o pequ eno eu, vezes e vezes seguidas.

Con form e fa zem os es s e t ra ba lh o, com eça m os a s en t ir a vida de u m a m a n eira d iferen te, e es s a é a ú n ica cois a qu e pode n a verda de n os en s in a r a lgo. Pa la vra s com o es ta s vêm e vã o: s e n ã o fa zem os o t ra ba lh o, a s pa la vra s n ã o s ign ifica m n a da . Ler u m livro ou ou vir u m a a u la n ã o é em s i s u ficien te. É o t ra ba lh o que execu ta m os qu e n os dá u m a idéia de u m a m a n eira d iferen te de s en t irm os n os s a vida . Con form e es s a idéia s e torn a m a is firm e, descobrimos que não podemos mais voltar para casa, mesmo que o qu is és s em os . Qu a n do n os t ra n s form a m os ca da vez m a is em qu em n ós s om os , verda deira m en te, os efeitos in s ta la m -s e e n os s a s vida s mudam.

Page 198: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Alguma pergunta?

ALUNA: Você des creveu a p rá t ica com o retom a r a ca da m om en to a os s on s ou à s s en s a ções corpora is , m a s e s e eu es t iver praticando com uma emoção forte, como luto ou ira?

JOKO: O qu e é u m a em oçã o? Um a em oçã o é s im ples m en te u m a com bin a çã o de s en s a ções corpora is e pen s a m en tos . Os pensam en tos s ã o a u tocen tra dos . "Ma s com o é qu e ele ou s a s a ir com ou tra m u lh er? Ele d is s e qu e m e a m a va !" Es s es pen s a m en tos apoderam-s e de n ós com o u m fogo. "Ma s com o ele ou s a fa zer is s o!" Nos s os pen s a m en tos rodop ia m e gira m . "Ele n ã o dever ia a gir a s s im !" E con t in u a m s em ces s a r . Bem , en qu a n to es ta m os ten do es s es pen s a m en tos , o corpo es tá s e ten s ion a n do. Va m os s u por , porém , qu e com eça m os a rotu la r os pen s a m en tos . Pode cu s ta r "d ia s , m a s , em a lgu m m om en to, n os s os pen s a m en tos com eça m a ca ir por ter ra e res ta -n os a pen a s es te corpo ten s o e s ofredor . Se a pen a s perm a n ecem os com es te corpo ten s o e s ofredor , s em pen s a m en tos , o qu e a con tece? A ten s ã o a u m en ta e en tã o ca i por terra e a emoção acabou.

O fa to é qu e n ã o exis te n a da de rea l n u m a em oçã o a u tocen tra da . Todos pen s a m os qu e n os s a s em oções s ã o im por ta n tes ; n o en ta n to, n ã o exis te n a da m en os im por ta n te qu e u m a em oçã o a u tocen tra da . A em oçã o é a pen a s ten s ã o e pensam en tos qu e cozin h a m os todos ju n tos . Os pen s a m en tos s ã o es s en cia lm en te ir rea is , n ã o es tã o vin cu la dos à rea lida de. Por exemplo, posso

a ch a r qu e o fu ra cã o n ã o é ju s to, qu e n ã o dever ia m e a t in gir . Es s e é u m pen s a m en to in ú t il, des vin cu la do do rea l. Nã o é importa n te. Min h a s s en s a ções corpora is são a pen a s o qu e são, n em boa s n em m á s . Qu a n do en ten dem os a em oçã o a u tocen tra da , vemos que é desnecessária.

ALUNO: Qu a n do es tou rotu la n do pen s a m en tos , e u m pen s a m en to s e ergu e e com eça a ca m in h a r por m in h a ca beça , e a meio camin h o eu pa ro e d igo: "Epa , é u m pen s a m en to", ten h o de volta r n a h ora pa ra m in h a s s en s a ções corpora is ou é m elh or p r im eiro obs erva r o pen s a m en to com pleta m en te a n tes de deixá -lo de lado?

Page 199: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Se es s e pen s a m en to t iver u m a im por tâ n cia decis iva pa ra s u a vida , ele volta rá . Você n ã o p recis a s e p reocu pa r em n ã o tê-lo visto até o fim.

ALUNA: O que é uma verdadeira emoção?

JOKO: Um a verda deira em oçã o é u m a res pos ta à rea lida de. Vamos supor que um amigo tem um ataque cardíaco e cai no chão. Com cer teza eu es ta r ia ten do u m a em oçã o a o s a lta r pa ra ten ta r fa zer a lgu m a cois a . Por ou tro la do, qu a n do es tou com ra iva de a lgo qu e a con teceu h á cin co m in u tos , es s a n ã o é u m a em oçã o rea l. Se a lgu ém m e ofen deu h á cin co m in u tos , n ã o qu ero s a ber qu e a m in h a em oçã o a res peito des s e in s u lto é ir rea l. Em lu ga r d is s o, qu ero perm a n ecer n o "Ele n ã o devia ter feito is s o. Ma s qu e s u jeito h or r ível!". Qu a n do levo m in h a s pequ en a s em oções a s ér io, en tã o reforço m in h a idéia de m im m es m a pa ra qu e eu pos s a m e m a n ter jogando essa espécie de jogo.

ALUNO: A raiva pode ser uma verdadeira emoção?

JOKO. Pode, m a s é ra ro. Se eu vejo a lgu ém es pa n ca n do u m a pes s oa e m e in t rom eto pa ra fa zer a lgu m a cois a , pa ra pa ra r com a qu ela a gres s ã o, ta lvez s in ta em m im a lgu m a ra iva . Ma s is s o é m a is com o u m a pequ en a tem pes ta de do qu e com o a qu ilo qu e n orm a lm en te ch a m a m os de ra iva . Qu a s e s em pre, qu a n do pen s a -m os qu e es ta m os m a n ifes ta n do a verda deira ra iva , n a rea lida de estamos é nos enganando.

ALUNA: Existe uma verdadeira emoção na empatia?

JOKO: A verda deira em pa t ia ou com pa ixã o n ã o é em s i u m a em oçã o. Pode con ter em oções com o o a m or . Porém , em s i, a com pa ixã o é a pen a s a ber tu ra a o qu e é. Por s er com pleta m en te a ber ta , s erá recep t iva e ca pa z de ver o qu e é m elh or de s e fa zer e o fa rá . A com pa ixã o ta lvez s eja o res u lta do fin a l da p rá t ica . Nin gu ém é s em pre com pa s s ivo, m a s , s e n os s a p rá t ica for rea l, irem os n os torn a r m a is com pa s s ivos . Torn a m o-n os m a is con s cien tes dos ou tros com o pes s oa s , n ã o s ó com o cois a s a s erem con trola da s , ou m a n ipu la da s , ou con s er ta da s , m a s com o cen tros de rea l percepçã o con s cien te. Es s a ca pa cida de a u m en ta com a p rá t ica . Se n ã o a u m en ta , en tã o es ta m os en ten den do a p rá t ica , ou s im ples m en te não a estamos realizando.

Nã o ten h o de in ves t iga r o qu e a lgu ém es tá fa zen do n a a lm ofa da s e en xergo s eu com por ta m en to n o res to de s u a vida . É

Page 200: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

óbvio qu a n do u m a p rá t ica es tá a m a du recen do. A s en s a çã o de s er vít im a , de "coita d in h a de m im ", des a pa rece. A pes s oa tem m u ito m a is percepçã o con s cien te da s n eces s ida des da s ou tra s pes s oa s e u m a d is pon ib ilida de ca da vez m a ior pa ra s a t is fazê-las

o qu e é

muito diferente de ser um "bonzinho na vida".

ALUNA: En tã o a com pa ixã o n ã o n eces s a r ia m en te s e pa rece com alguma outra coisa?

JOKO: Nã o. Se n ós es ta m os de fa to ou vin do com com pa ixã o a outra pessoa, podem os n ã o s en t ir m u ito cois a n en h u m a ; s imples-m en te ou vim os e a gim os com propr ieda de. Con fu n d im os com -pa ixã o com a m or . Com pa ixã o pode con ter a m or , o qu e pode s er u m a em oçã o, m a s em s i a com pa ixã o n ã o é a m or . Na verda deira com pa ixã o n ã o exis te s epa ra çã o, o qu e qu er d izer qu e n ã o h á pen s a m en tos a u tocen tra dos en t re m im e a pes s oa com a qu a l eu esteja. Nenhuma separação é compaixão.

ALUNO: A defin içã o do d icion á r io pa ra em patia é s en t ir o qu e o ou tro es tá s en t in do. Is s o n ã o s ign ifica n eces s a r ia m en te rea gir a o qu e es tã o s en t in do ou s im pa t iza r . Com pa ixã o s ign ifica es ta r com a experiência que estão tendo, mas não na experiência.

JOKO: A pes s oa verda deira m en te com pa s s iva n u n ca n em pen s a a res peito. É a lgo n a tu ra l. Nã o res u lta de s u a ten ta t iva de s er com pa s s iva . Ten ta r s er com pa s s ivo é com o ten ta r s er espon tâ n eo. Ou s om os ou n ã o s om os . Se n ã o s om os , podem os es ta r cer tos de qu e es ta m os a p r is ion a dos n u m s on h o a u tocen tra do de a lgu m a es pécie. Qu a n do es ta m os a p r is ion a dos em n os s os pen s a m en tos , n ã o s om os com pa s s ivos . As s im , o cern e da p rá t ica é in ves t iga r o s on h o a u tocen tra do de qu e ta n to gos ta m os . Se n ã o estivermos apegados a ele, seremos compassivos.

ALUNA: Amor e compaixão são a mesma coisa?

JOKO: Às vezes , o a m or tem u m a con ota çã o em ocion a l por breves per íodos . Verda deira m en te, a m a r a lgu ém n ã o s ign ifica qu e n os s en t im os em ot ivos a res peito dele, porém . Podem os a m a r n os s os filh os e qu erer qu e eles lim pem os s a pa tos n o ca pa ch o a n tes de en t ra r em ca s a . Sen t ir ir r ita çã o porqu e eles n ã o fa zem is s o é u m a em oçã o, m a s o a m or qu e es tá lá , em ba ixo da ra iva , n ã o é. O amor pelos próprios filhos permanece estável.

No ca s o do a m or rom â n t ico, qu a s e s em pre exis te u m ele-m en to de n eces s ida de, u m pen s a m en to de qu e irem os ob ter a lgo

Page 201: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

dele: "Fico tã o excita da por es ta r com você"; "Me s in to tã o bem qu a n do es tou per to de você"; "Você m e fa z s en t ir tã o feliz"; "Qu a n do es tou com você m e s in to com pleta "; "Você s a t is fa z toda s a s m in h a s n eces s ida des ". Qu a n do a lgo en tã o a con tece pa ra des t ru ir n os s a fa n ta s ia , a s pa la vra s m u da m : "Eu rea lm en te o detesto! Não sei nem o que um dia enxerguei nele!".

Na rea lida de, n in gu ém n os torn a felizes ou t r is tes ; nós é que fa zem os is s o con os co. O a m or rom â n t ico es tá rep leto de ilu s ões . O a m or gen u ín o, ou com pa ixã o, n ã o tem ilu s ões . É s im ples m en te quem somos.

VII. Deslumbramento

A QUEDA

Hou ve cer ta vez u m h om em qu e s u b iu a o topo de u m ed ifício de dez a n da res e s a ltou . Qu a n do pa s s a va pelo 5° a n da r em s eu mergulho rumo ao chão ouviram-no dizer:' 'Até aqui, tudo bem!".

Rim os des s e h om em porqu e s a bem os o qu e o es pera em pou cos in s ta n tes . Com o é qu e ele pode d izer qu e tu do es tá in do bem a té a li? Qu a l é a d iferen ça en t re o s egu n do em qu e ele es tá n o 5º andar e o segundo imediatamente anterior ao seu choque contra a ca lça da ? O s egu n do logo a n tes de ele ba ter n o ch ã o é o qu e a m a ior ia de n ós ch a m a r ia de cr is e. Se pen s a m os qu e s ó tem os a lgu n s m in u tos ou d ia s a n tes de m orrer , a m a ior ia d irá : "Is s o é u m a cr is e". Por ou tro la do, s e n os s os d ia s es tã o t ra n scorrendo n orm a lm en te (o t ra ba lh o de s em pre, a s pes s oa s h a b itu a is , a s in cu m bên cia s con h ecida s ), a vida pode n ã o pa recer in cr ível, m a s , pelo m en os , es ta m os a cos tu m a dos com ela . Nes s a s fa s es n ã o s en t im os qu e es ta m os em cr is e e ta lvez n ã o n os s in tamos m ot iva dos a p ra t ica r com d iligên cia . Con s idera m os es s a s u pos ta diferença entre crise e não-crise.

O sesshin é u m a cr is e a r t ificia l. Qu a n do n os com prom etemos com u m ret iro, tem os de fica r e lu ta r com u m a s itu a çã o d ifícil. No fin a l do per íodo de ret iro a m a ior ia da s pes s oa s terá s u pera do es s a

Page 202: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

crise

o s u ficien te, pelo m en os , pa ra en xerga r s u a vida de u m a

m a n eira u m pou co d iferen te. É t r is te qu e n ós n ã o com preen da m os qu e ca da m om en to de n os s a s vida s

beber u m a xíca ra de ca fé,

a n da r pela ru a pa ra com pra r u m jorn a l

é isso. Por qu e n ã o

a preen dem os es s a verda de? Nã o a a p reen de m os porqu e n os s a s pequ en a s m en tes pen s a m qu e es te s egu n do qu e es ta m os viven do tem centenas de m ilh a res de s egu n dos qu e o p recedera m e cen ten a s de m ilh a res de s egu n dos a in da por vir , por is s o afastamo-n os do viver de fa to n os s a vida . Em lu ga r d is s o, fa zem os a qu ilo qu e os s eres h u m a n os pa s s a m s u a vida toda fa zen do: a com pleta perda de tem po de ten ta r m en ta lm en te es qu em a t iza r a s cois a s pa ra qu e n u n ca ten h a m os de s ofrer u m a cr is e. Ga s ta m os toda s a s n os s a s en ergia s ten ta n do s er a m a dos , bem -sucedidos, boas pessoas, agradáveis, firmes (ou instáveis), dependendo do que pen s a m os qu e va i da r m a is cer to n o n os s o ca s o. Tem os es qu em a s . A m a ior pa r te de n os s a s en ergia s é ca n a liza da pa ra es s es es qu em a s , con form e ten ta m os lida r com n os s a vida de ta l m a n eira qu e n u n ca ch egu em os n o fu n do do poço. Por is s o é qu e s e tom a tã o in cr ível ch ega r per to des s e fu n do. É por is s o qu e a s pes s oa s s er ia m en te doen tes , ou qu e pa s s a m por u m a circu n s tâ n cia m u ito des t ru idora em s u a vida , em gera l des per ta m . Des per ta m pa ra o quê? Para o que elas acordam?

ALUNO: Para o presente?

JOKO: Sim, e o que mais?

ALUNO: Para a impermanência?

JOKO: Impermanência. Certo, é verdade.

ALUNA: Para as sensações corporais.

JOKO: Sim, e mais que isso, para o que acordamos?

ALUNO: Para o deslumbramento diante disso tudo.

JOKO: O des lu m bra m en to des te s egu n do. Qu a n do es te s egu n do n ã o é eu , n em n en h u m a ou tra cois a , m a s o s im ples m en te, Oh!

e is s o n ã o s ign ifica n en h u m a em oçã o giga n tes ca , s ó o apenas

en tã o toda s a s n os s a s p reocu pa ções s ã o in exis ten tes . Em gera l, porém , s ó tem os es s a percepçã o qu a n do n os vem os m u ito p res s ion a dos , ta n to qu e n os s a m en te é a r rem es s a da pa ra o m om en to p res en te. En tã o podem os es qu ecer todos os n os s os es qu em a s de n os con s er ta r , de con s er ta r a lgu ém ou a s

Page 203: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

circu n s tâ n cia s . A m a ior ia da s pes s oa s pa s s a de 80 a 90% do s eu tem po a corda da , ten ta n do evita r o fu n do do poço. No en ta n to, n ã o podem os evitá -lo. Todos es ta m os a ca m in h o do fu n do, todos n ós . Nã o podem os evita r o fu n do, m a s pa s s a m os qu a s e n os s a vida toda tentando isso mesmo.

Des per ta r s ign ifica da r -s e con ta de qu e a n os s a é u m a situação sem esperança e maravilhosa. Não nos resta fazer nada exceto viver a pen a s es te s egu n do. Qu a n do es ta m os em cr is e, ou em sesshin, podem os n ã o des per ta r por com pleto, m a s a corda m os o s u ficien te pa ra qu e m u de o m odo pelo qu a l en ca ra m os a vida . Percebem os qu e a s n os s a s m a n obra s h a b itu a is

preocu pa rm o-n os com o pa s s a do, p rojeta r u m fu tu ro im a gin á r io __n ã o fa zem sentido, são um desperdício de segundos preciosos.

De u m pon to de vis ta , es ta m os s em pre em cr is e: es ta m os s em pre ca in do a té o fu n do. Segu n do u m a ou tra pers pect iva , n ã o h á cr is e. Se irem os m orrer em u m da do s egu n do, h á a lgu m a cr is e? Nã o, exis te s ó es s e s egu n do. Nu m s egu n do es ta m os vivos ; n ou tro, m or tos . Nã o h á cr is e. Exis te s ó o qu e exis te. Porém a â n s ia h u m a n a de fa zer o im pos s ível nos m a n tém a fu n da dos n a la m a . Gas ta m os a n os s a vida ten ta n do evita r o in evitá vel. Nos s a s en ergia s , n os s a s em oções , n os s os p rojetos en ca m in h a m -s e pa ra con s egu ir d in h eiro, s uces s o, faz er com qu e todos gos tem dê n ós , porqu e n o ín t im o a cred ita m os qu e is s o tu do irá n os p roteger . Um a de nossas mais poderosas ilusões é que estar amando alguém pode n os p roporcion a r u m a verda deira p roteçã o. Na rea lida de, n ã o existe proteção nem resposta. Nossas vidas são absolutamente sem esperança. É por isso que são maravilhosas. E não é nada de mais.

Qu em qu er s er bem -s u ced ido? Qu em qu er s er a p recia do? Todos n ós . Na da de er ra do com es s es des ejos

a m en os qu e a cred item os n a ilu s ã o. Até m es m o qu erer VS$ 1 m ilh ã o pode s er m u ito en gra ça do

tã o d iver t ido qu a n to qu a lqu er ou tro jogo

s e a pen a s o virm os com o u m jogo en gra ça do e n ã o fer irm os os ou tros en qu a n to o joga m os . Ma s n ã o vem os is s o com o u m jogo e por is s o fer im os os ou tros en qu a n to pers egu im os es te qu e s e torn a u m plano letal.

Ilu m in a çã o é a pen a s s a ber a verda de n ã o com a ca beça , m a s com todo o n os s o s er , s a ben do qu e "é is so". É m a ra vilh os o. Es tá com dor de den te? Is so ta m bém é o qu e é

m a ra vilh os o. Qu a n do es ta m os n a dor de den te cla ro qu e n ã o a a ch a m os s en s a cion a l.

Page 204: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Con tu do ela é m a ra vilh os a s im ples m en te por s er a vida qu e acontece neste segundo, doendo mesmo assim.

É u m a pen a qu e n os s a s m en tes h u m a n a s n os lu d ib r iem . Em s u a m a ior pa r te, os a n im a is s ã o m en os m a n ipu la dores com s u a s vidas. Algumas vezes podem tentar fazer joguinhos. Tive uma

vez um cachorro que não gostava de vir para casa quando era ch a m a do e en tã o fica va por t rá s de u m a cerca , do ou tro la do da ru a . No verã o is s o fu n cion a va m u ito bem

ele fica va ca m u fla do

por t rá s da s folh a s , tã o im óvel qu a n to con s egu is s e. Ma s qu a n do a s folh a s ca ía m n o ou ton o ele a in da a s s im con t in u a va cor ren do pa ra s e es con der lá e perm a n ecia pa ra d in h o

s ó qu e com pleta m en te vis ível! Apes a r d is s o, cã es e ou tros a n im a is n ã o s e em ba ra lh a m ta n to qu a n to n ós a res peito do p ropós ito de s u a vida ; eles a pen a s vivem, e nós não.

Algu n s de n ós es ta m os em m eio a "des a s t res "; ou t ros n ã o. Cla ro qu e n ã o perm a n ecem os pa ra s em pre em m eio a u m im en s o des a s t re, m a s qu a n do es ta m os a t ra ves s a n do u m per íodo des s es n ós p ra t ica m os m u ito, com pa recen do ca da vez m a is a o zen do

e fa zen do tu do a o n os s o a lca n ce pa ra en fren ta r a s itu a çã o. Depois, qu a n do a vida s e a ca lm a , deixa m os de p ra t ica r com a m es m a in ten s ida de. Um in d ica dor da p rá t ica m a du ra é en xerga r a vida com o u m proces s o s em pre tota lm en te em cr is e e tota lm en te n ã o em cr is e: a s du a s vers ões s ã o a m es m a cois a . Na p rá t ica m a du ra , praticamos com a mesma intensidade, haja uma crise ou não. Com crise ou sem, nós praticamos.

Na da s erá de fa to s olu cion a do en qu a n to n ã o com preen der-m os qu e não ex is te s olu çã o. Es ta m os ca in do e n ã o exis te res pos ta pa ra is s o. Nã o con s egu im os con trola r is s o. Es ta m os pa s s a n do a vida ten ta n do deter a qu eda ; n o en ta n to, ela n u n ca s e in ter rom pe. Nã o exis te s olu çã o n em pes s oa m a ra vilh os a qu e con s iga m deter es s e m ovim en to. Nen h u m s u ces s o, n en h u m s on h o, n a da pod e fazê-lo in ter rom per-s e. Nos s o corpo es tá s im ples m en te des -pencando.

Essa qu eda é u m a gra n de bên çã o. Se a lgu ém a n u n cia s s e uma pílula que curasse a morte e nos permitisse viver para sempre, is s o s er ia u m a verda deira t ra géd ia . Im a gin e-s e da qu i a s eis m il a n os a in da pen s a n do os m es m os velh os pa drões de pen s a m en to! Com u m a cu ra pa ra a m or te, m u da r ia por com pleto todo o

Page 205: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s ign ifica do de s e es ta r e s er n es te p la n eta . E on de ir ía m os coloca r os novos bebês que fossem nascendo?

Todos n ós es ta m os cien tes do en velh ecim en to: ca belos gr i-s a lh os , ru ga s , ca coetes . Des de o m om en to em qu e s om os conce-b idos , es ta m os m orren do. Qu a n do obs ervo es s es s in a is , n ã o m e reju b ilo. Nã o gos to deles , a s s im com o vocês ta m bém n ã o. Mesmo a s s im , exis te u m a gra n de d iferen ça en t re n ã o a p recia r a s mudanças e tentar a todo preço detê-las.

Ma is cedo ou m a is ta rde, da m o-n os con ta de qu e a verda de da vida é es te s egu n do qu e es ta m os viven do, in depen den tem en te de es te s egu n do es ta r n o 9 º a n da r ou n o p r im eiro. Em cer to s en t ido, n os s a vida n ã o tem a m en or du ra çã o: es ta m os s em pre viven do o m es m o s egu n do. Nã o exis te m a is n a da a lém des te s egu n do, do m om en to p res en te a tem pora l. Qu er viva m os es te s egu n do n o 5 º p is o, qu er n a ca lça da , a in da é o m es m o s egu n do. Dia n te des s a con s ta ta çã o, ca da s egu n do é u m a fon te de con ten -ta m en to. Sem es s a com preen s ã o, todo s egu n do é u m in fern o. (Na realida de, n ós n o fu n do qu erem os m u ita s vezes s er bem in felizes ; nós gos tam os de ser o centro de algum melodrama.)

Qu a s e o tem po todo n ã o pen s a m os qu e exis te a lgu m a cr is e a con tecen do. ("Até a qu i, tu do bem !") Ou pen s a m os qu e cr is e é o fa to de n ós n ã o n os s en t irm os felizes . Is s o n ã o é u m a cr is e; é u m a ilu s ã o. Sen do a s s im , pa s s a m os qu a s e a vida in teira ten ta n do con s er ta r es s a en t ida de in exis ten te qu e pen s a m os qu e s om os . Na rea lida de, n ós s om os es te s egu n do. O qu e poder ía m os s er? Es te s egu n do n ã o tem tem po n em es pa ço. Nã o pos s o s er o s egu n do qu e fui há cinco minutos; como poderia sê-lo? Estou aqui. Estou agora. Nã o pos s o s er o s egu n do qu e ch ega rá da qu i a dez m in u tos . A ú n ica cois a qu e pos s o s er é o remexer-m e s obre a m in h a a lm ofa da , s en t ir dor n o joelh o es qu erdo, viven cia r a qu ilo qu e es t iver a con tecen do a gora . Is s o é qu em s ou . Nã o pos s o s er m a is n a da . Posso imaginar que em dez minutos não sentirei dor no meu joelho esquerdo, mas isso é pura fantasia.

Lembro-m e de u m a época em qu e eu era jovem e bela . Is s o ta m bém é pu ra fa n ta s ia . Qu a s e toda s a s n os s a s d ificu lda des , es pera n ça s e p reocu pa ções ta m bém s ã o m era s fa n ta s ia s . Na da ja m a is exis t iu exceto es te m om en to. E le é tu do o qu e exis te. Is s o é tu do qu e s om os . Mes m o a s s im , a m a ior ia da s pes s oa s ga s ta de 80 a 90% de s eu tem po im a gin a n do cois a s , viven do em s u a fa n ta s ia .

Page 206: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Pen s a m os n o qu e a con teceu , n o qu e poder ia ter ocor r ido, em com o n os s en t im os a es s e res peito, em com o dever ia s er d iferen te, em com o os ou tros dever ia m s er d iferen tes , em com o é u m a pen a m es m o, e a s s im por d ia n te. É tu do fa n ta s ia , tu do im a gin a çã o. Memória é im a gin a çã o. Toda recorda çã o a qu e n os a pega m os arruína a nossa vida.

Pen s a m en tos p rá t icos

qu a n do n ã o es ta m os n os a pega n do

a a lgu m a fa n ta s ia , m a s a pen a s fa zen do a lgu m a cois a

é u m a

ou tra qu es tã o. Se m eu joelh o dói, ta lvez eu deves s e pes qu is a r u m t ra ta m en to pa ra is s o. Os pen s a m en tos qu e n os des t roem s ã o aqueles nos quais estamos tentando deter a queda para não

da r de ca ra n o ch ã o: "Vou da r u m jeito n ele"; "Vou da r u m jeito em m im "; ou "Vou com eça r a m e en ten der . Qu a n do eu fin a lm en te en ten der qu em s ou , fica rei em pa z e en tã o a vida cor rerá bem ". Nã o, n ã o cor rerá bem , Ela s erá a pen a s a qu ilo qu e tiver de ser, a cada segundo. Apenas o deslumbramento.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , con s egu im os perceber o des lu m bra m en to? Con s egu im os s en t ir o des lu m bra m en to qu e h á n o fa to de es ta rm os a qu i, de qu e, com o s eres h u m a n os , podem os a precia r es ta vida ? Nes s e s en t ido, s om os m a is a for tu n a dos qu e os a n im a is . Du vido qu e u m ga to ou u m a a belh a ten h a m es s a ca pa cida de de a p recia r , em bora eu pos s a es ta r en ga n a da . E pos s o perder es s a ca pa cida de de a p recia çã o, de des lu m bra m en to, s e desviar-m e des te m om en to. Se a lgu ém m e xin ga : "J oko, você é u m a d roga !" e eu m e perder em m in h a s rea ções (em m eu s pen s a m en tos de a u toproteçã o ou de revide e vin ga n ça ), en tã o terei perd ido o des lu m bra m en to. Ma s , s e perm a n eço n es te m om en to, exis te s ó o ter ou vido a lgu ém qu e m e xin gou . Nã o é n a da . Todos nós porém nos atolamos em nossas reações.

En qu a n to s eres h u m a n os , tem os u m a m a ra vilh os a ca pa ci-dade pa ra ver o qu e a vida é. Eu n ã o s ei s e a lgu m ou tro a n im a l tem essa capacidade. Se nós a desperdiçarmos e não a praticarmos de verda de, todos a qu eles com qu em en tra rm os em con ta to s en t irã o os efeitos . Is s o in clu i n os s os com pa n h eiros , n os s os filhos, nossos pa is , n os s os a m igos . A p rá t ica n ã o é a lgo qu e n ós fa ça m os a pen a s por n ós . Se fos s e, n ã o ca u s a r ia a m en or d iferen ça , em cer to s en t ido. Toda via , con form e n os s a vida va i en t ra n do n a rea lida de, todos a qu eles com qu em n os rela cion a m os ta m bém

Page 207: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s en tem a m es m a m u da n ça . Se h á a lgu m a cois a ca pa z de a feta r este universo sofredor, é esta.

O SOM DE UM POMBO E UMA VOZ CRÍTICA

Receb i recen tem en te u m telefon em a de u m a pes s oa da cos ta les te, qu e m e d is s e: "Qu a n do m e s en tei n a p rá t ica es ta m a n h ã , es ta va tu do s os s ega do e de repen te h ou ve s ó u m s om de pom bo. Nã o h ou ve n en h u m pom bo, n ã o h ou ve eu , era s ó isto". A pes s oa en tã o a gu a rdou m eu com en tá r io. Eu res pon d i: "Qu e m a ravilha! Ma s s u pon h a qu e em vez de ou vir o pom bo você ou ve u m a voz cr ít ica en con tra n do defeitos em você. Qu a l é a d iferen ça en t re o s om do pom bo e o s om de u m a voz cr ít ica ?". Im a gin e qu e es ta m os s en ta dos n a qu ietu de do in ício da m a n h ã e de repen te pela ja n ela a ber ta en t ra s ó a qu ele a r ru in a r do pom bo. Es s e pode s er u m m om en to en ca n ta dor . (Cos tu m a m os pen s a r , a liá s , qu e é is s o qu e é o zen .) Porém , va m os s u por qu e n os s o ch efe ir rom pe s a la a den tro ber ra n do: "Eu já devia ter o s eu rela tór io em m in h a m es a des de ontem. Onde es tá?". O que é igual nestes dois sons?

ALUNO: Os dois são só ouvir.

JOKO: Sim , os dois s ã o s ó ouvir. Seja o qu e for qu e n os a con teça o d ia in teiro, is s o é s im ples m en te input receb ido por u m des tes órgã os dos s en t idos : s ó ou vir , s ó ver , s ó s en t ir o odor , s ó toca r , s ó s en t ir o gos to. J á d is s em os o qu e é igu a l a res peito dos dois sons. Agora, qual é a diferença? Ou, existe uma diferença?

ALUNO: Gostamos de um e não gostamos do outro.

JOKO: Por qu e is s o é verda de? Afin a l de con ta s , a m bos s ã o s ó s on s . Por qu e n ã o gos ta m os da voz cr ít ica ta n to qu a n to gos ta m os do arrulhar do pombo?

ALUNA: NÓS n ã o ou vim os s im ples m en te a voz. Nós a t rela m os uma opinião ao que ouvimos.

JOKO: Cer to. Tem os u m a op in iã o a res peito des s a cr ít ica

pensamentos fortes e reações intensas, para ser franca.

Nu m a a u la a n ter ior , con tei u m a h is tór ia a res peito do h omem qu e s a ltou do ed ifício de dez a n da res e, a o pa s s a r pelo qu in to, a in da ber ra va "Até a qu i, tu do bem !". E le es ta va es pera n do du ra r

Page 208: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa ra s em pre. É a s s im qu e vivem os : n a es pera n ça de evita r a voz crítica, de desafiar a gravidade e permanecer para sempre.

Alguns parecem de fato desafiar a gravidade. Uma pessoa que m e deu p ra zer a o lon go de m u itos a n os foi Greg Lou ga n is , p rova velm en te o m a ior m ergu lh a dor qu e ja m a is exis t iu . Um m ergu lh a dor ext ra ord in á r io com o Lou ga n is tem força pa ra a t in gir uma altura notável quando se atira, dando assim mais espaço para o m ovim en to de des cida den tro d 'á gu a . A a ltu ra forn ece-lh e es pa ço de m ovim en ta çã o. Um ou tro a t leta m em orá vel qu e pa rece des a fia r a gra vida de é o joga dor de ba s qu ete Mich a el J orda n , qu e à s vezes pa rece fica r s u s pen s o n o a r . Su rp reen den te. E n os m a ra vilh a m os com Ba rys h n ikov, es s e gra n de ba ila r in o. Todos eles ch ega m a u m a altura assombrosa, mas em algum momento todos vêm para baixo. Como nos ensina o bom senso, a gravidade sempre prevalece.

Ma s n ós n ã o vivem os de a cordo com o bom s en s o. Não gos ta m os da voz cr ít ica ; n ã o gos ta m os de ca ir . Nã o gos ta m os n a da des s a s cois a s . No en ta n to, gos ta n do ou n ã o, a vida con s is te em m u ita s cois a s des a gra dá veis qu e n os a t in gem . É ra ro a vida n os da r s ó a qu ilo qu e qu erem os . Sen do a s s im , pa s s a m os o tem po todo ten ta n do fa zer a qu ilo qu e n en h u m s er h u m a n o con s egu e. Ten ta m os , de a lgu m a m a n eira , perm a n ecer a qu i pa ra qu e n u n ca ch egu em os n o fu n do, n u n ca n os es borra ch em os n o ch ã o. Ten ta -mos evitar aquilo que não pode ser evitado.

Nã o exis te com o viver u m a vida h u m a n a e evita r a s cois a s des a gra dá veis qu e n os a t in gem . Exis te cr ít ica , dor , s er fer ido, fica r doen te, decepcion a r -s e. Nos s a pequ en a m en te d iz: "Você n ã o pode con fia r n a vida . Melh or p roviden cia r a lgu m s egu ro". Fa zem os o m elh or qu e podem os pa ra evita r todo e qu a lqu er con ta to com a dolorosa realidade.

Qu a n do n os s en ta m os pa ra o zazen, n os s a m en te es tá in ces -s a n tem en te fa n ta s ia n do, ten ta n do "perm a n ecer pa ra s em pre". Nã o podem os fa zê-lo. Con tu do, n a qu a lida de de s eres h u m a n os , pers is t im os n a ten ta t iva de fa zer a qu ilo qu e n ã o pode s er feito: evita r toda es pécie de dor . "Vou p la n eja r . Vou des cobr ir o m elh or ca m in h o. Vou des cobr ir o qu e fa zer pa ra con s egu ir s obreviver e fica r a s a lvo." Ten ta m os t ra n s form a r a rea lida de com o n os s o pensamento para que ela não consiga se aproximar de nós, jamais.

Há a qu ela h is tór ia qu e lh es con tei a n tes a res peito de s en tar-m e n u m zen do per to de u m a m oça qu e fica va s e m exen do o tem po

Page 209: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

todo. Ela es ta va com d ificu lda des com o torn ozelo e n ã o pa ra va . E la o es ten d ia , pu n h a pa ra ba ixo, torcia -o pa ra t rá s , dobra va . Estava mexendo o tempo todo com o tornozelo. O monitor inclinou-s e e s u s s u rou n o ou vido dela : "Você deve fica r im óvel. Deve pa ra r de m exer o torn ozelo". E la d is s e: "Ma s dói". Ele res pon deu : "Bem , exis tem m u itos torn ozelos doen do n es s a s a la ". E la fa lou : "Ma s é o meu torn ozelo!". Qu a n dq a t ra ves s a m os cer ta s es pécies de dor , tem os u m a s im pa t ia por ou tra pes s oa qu e pa s s a pela m es m a dor . Ma s qu a n do a lgu ém s en te dor n ã o é o m es m o qu e qu a n do eu sinto dor . Qu a n do a lgu ém d iz: "Sin to m u ito por você", a verda de é qu e n ã o s en te n ã o, n ã o do jeito qu e s en te pa ra s i. Tem os u m ob jet ivo p r im á r io: qu erem os m a n ter a dor tã o a fa s ta da de n ós qu e n em ch egu em os a s a ber dela . Qu erem os perm a n ecer pa ra s em pre em n os s a s n u ven s de pen s a m en to a res peito de n os s a s p rovidên cia s e esquemas de nosso auto-aperfeiçoamento.

Na da h á de er ra do com n os s o a u to-a per feiçoa m en to em s i; por exemplo, podemos decidir que não vamos mais comer porcaria, ou que vamos fazer mais exercícios físicos, ou dormir melhor. Tudo bem . O qu e h á de er ra do é qu e a es s es es forços a cres cen ta m os a es pera n ça de qu e es s e a u to-a per feiçoa m en to irá s ervir de va cin a con tra toda s a s a dvers ida des

a voz cr ít ica , a decepçã o, a en ferm ida de, o en velh ecim en to. Qu a n do Mich a el J orda n es t iver com 70 a n os , p rova velm en te n ã o es ta rá m a is flu tu a n do em torn o da s ces ta s de ba s qu ete com o é ca pa z de fa zer a gora . Da m es m a form a com os rela cion a m en tos e ca s a m en tos : qu e expecta t iva s despejamos nesses vínculos?

ALUNA: Esperamos que garantam a nossa felicidade.

JOKO: Cer to. É p roveitos o t ra ba lh a r pa ra s e ter u m bom casamento. Mas a esse trabalho acrescentamos a esperança de que n os s o com pa n h eiro a ju de-n os a des a fia r a gra vida de, deten do a nossa queda.

En qu a n to a ch a rm os qu e exis te u m a d iferen ça en t re o s om de u m pom bo e o de u m a voz cr ít ica , irem os n os en ga lfin h a r com a vida . Se n ã o qu erem os qu e es s a voz cr ít ica exis ta em n os s a vida e s e n ã o t iverm os t ra ba lh a do com a n os s a rea çã o a ela , irem os n os engalfinhar. E a que se refere essa luta? Todos nós estamos nela.

ALUNO: Es s a lu ta a con tece por ca u s a da d iferen ça en t re o qu e está realmente acontecendo e o que está em nossa mente.

Page 210: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

JOKO: Cer to. Com s u a pecu lia r s u t ileza , n os s a m en te s em pre es tá a cres cen ta n do: "Es ta s itu a çã o é u m a cois a de qu e gos to/ n ã o gosto". Formulamos opiniões.

Quando a pen a s ou vim os , n ã o exis tem op in iões . Qu a n do o s om a t in ge os n os s os t ím pa n os , n ã o exis te op in iã o, s ó a u d içã o. O es forço qu e s e fa z n a p rá t ica é ju s ta m en te s obre es s e a s pecto. O d ia in teiro in form a ções s en s or ia is es tã o n os a lca n ça n do. Ma s , do ponto de vista humano, apenas parte delas é aceitável.

Será qu e is s o qu er d izer qu e s e você a ca r icia r com delica deza a minha mão ou espetar uma agulha com força nela eu vou ter que gos ta r igu a lm en te da s du a s cois a s ? Nã o, a lgo terá a m in h a p referên cia . Todos nós s abem os qu e p refer im os as sensações a gra dá veis . (Pa r t icu la rm en te eu detes to qu a n do a lgu m técn ico de la bora tór io es peta u m a a gu lh a n a pon ta do m eu dedo pa ra ret ira r u m a a m os tra de s a n gu e.) Nã o h á n a da er ra do com preferên cia s em s i; é a em oçã o qu e a cres cen ta m os a ela s qu e n os coloca em a pu ros . Em ra zã o de n os s a s em oções , t ra n s form a m os p referên cia s em exigên cia s . A p rá t ica a ju da -n os a rever ter es s e p roces s o, a des fa zer a s exigên cia s , fa zen do com qu e voltem a s er s im ples p referên cia s , s em pes o em ocion a l Por exem plo, s e p la n eja m os u m p iqu en iqu e, u m a p referên cia é: ''Ser ia m elh or qu e h oje n ã o ch oves s e". Porém , s e fica m os m u ito con t ra r ia dos porqu e ch ove, es s a p referên cia já s e torn ou u m a exigên cia : "Prepa rei toda es s a com ida , t ive toda es s a trabalheira

e a gora fa ço o qu e com tu do is s o? Ma s qu e d roga de vida!"

Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , va m os con s olida n do u m a vis ã o ca da vez m a is ob jet iva da s cr ia ções m en ta is por m eio da s qu a is ten ta m os n os p roteger pa ra con s egu irm os "perm a n ecer pa ra s em pre". Apren dem os a s im ples m en te obs erva r a s cr iações m en ta is e a retorn a r a o viven cia r a ber to do input s en s or ia l. Sen ta r é uma iniciativa simples.

Se form os h on es tos qu a n do n os s en ta rm os pa ra p ra t ica r , irem os des cobr ir qu e n ão querem os ou vir n os s o corpo. Qu eremos pensar. Querem os pen s a r a cerca de toda s a qu ela s idéia s qu e n os dão esperança.

As s im , o p r im eiro pa s s o é s er h on es to. Is s o qu er d izer ver os n os s os pen s a m en tos ta n to qu a n to n os for pos s ível e ou vir nosso corpo. En qu a n to n os s a es pera n ça n ã o s e es fu m a ça r , n ós n ã o devota rem os m u ito tem po a ou vir o n os s o corpo. Sem du vida n ós

Page 211: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n ão querem os ou vir . Ao lon go de a n os de p rá t ica s en ta da , con tu do, es s a in d is pon ib ilida de a os pou cos s e t ra n s form a . Sen ta r n ã o d iz res peito a fica r em es ta do de gra ça ou s en t ir -s e feliz. Sen ta r t ra ta de en fim en xerga r qu e n ã o exis te, n a rea lida de, u m a d iferen ça en t re ou vir u m pom bo e ou vir a lgu ém a n os cr it ica r ; a "d iferen ça " s ó exis te em n os s a m en te. Es s e es forço é o qu e con s t itu i a p rá t ica . Nã o é s en ta r -s e em es ta do de gra ça du ra n te a lgu m tem po, todo d ia de m a n h ã . Diz res peito a en ca ra rm os n os s a vida de m a n eira d ireta , pa ra verm os o qu e es ta m os n a verda de fa zen do. Em gera l, o qu e es ta m os de fa to fa zen do é ten ta r m a n ipu la r n os s a vida ou a vida dos ou tros . S im ples m en te, en tã o, observamos qu e es ta m os ten ta n do m a n ipu la r a s pes s oa s ou os a con tecim en tos pa ra qu e "eu"

es s a ilu s ã o con s t ru ída por pen s a m en tos a u tocen tra dos

não possa ser ferido.

Hon es t ida de: recon h ecer a s m in h a s op in iões a res peito da p rá t ica s en ta da , de m im m es m a , da pes s oa s en ta da per to de m im . Hon es t ida de: "Rea lm en te s ou bem ir r itá vel, bem ch a ta ". Es s a h on es t ida de n os perm ite ou vir m a is e m a is n os s o corpo

por dois s egu n dos , vin te s egu n dos , ou a in da m a is tem po. Qu a n to m en os es pera n ça t iverm os de poder con s er ta r a s cois a s pelo pen s a m en to, m a is tem po s erem os ca pa zes de fica r ou vin do o qu e é rea l. E por fim podem os com eça r a n os da r con ta de qu e n ã o h á s olu çã o. Só os egos devem ter s olu ções , m a s n ã o exis tem s olu ções . Em a lgu m m om en to, podem os a té m es m o en xerga r qu e, s e n ã o exis te s olu çã o, não existe problema.

Au la s com o es ta n ã o s ã o pa la vra s pa ra s erem pon dera da s ; fica m os com a lgo do qu e a con teceu , joga m os fora , depois , e en tã o volta m os pa ra a p rá t ica s im ples e d ireta . Será qu e u m d ia ch ega -rem os a s er m a ra vilh os os e per feitos ? Nã o. Nã o irem os ch ega r em pa r te a lgu m a . Nã o h á pa r te a lgu m a on de ch ega r . J á ch ega m os neste lugar onde não existe diferença entre o som de um pombo e o de uma voz crítica. Nossa tarefa é reconhecer que já chegamos.

CONTENTAMENTO

Com freqü ên cia s ou a cu s a da de en fa t iza r a s d ificu lda des da p rá t ica . Es s a é u m a a cu s a çã o verda deira . Acred item -m e, a s d ifi-cu lda des es tã o a í. Se n ã o a s recon h ecem os , n em o m ot ivo de

Page 212: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

a pa recerem n os é cla ro, n os s a ten dên cia é n os en ga n a r . Ain da a s s im , a rea lida de ú lt im a

n ã o s ó em n os s a p rá t ica s en ta da , m a s

ta m bém em n os s a s vida s

é o con ten ta m en to. Com con -

ten ta m en to n ã o es tou qu eren do d izer felicida de; a s du a s vivên cias n ã o s ã o a m es m a . Felicida de tem u m opos to; con ten ta m en to n ã o. En qu a n to bu s ca m os a felicida de, irem os s er in felizes , porque estamos oscilando de um pólo a outro.

De tem pos em tem pos , viven cia m os o con ten ta m en to. Pode s er por a ca s o, ou n o decu rs o de n os s a p rá t ica s en ta da , ou em ou tra s es fera s de n os s a vida . Depois de u m sesshin, podemos viven cia r o con ten ta m en to por m a is a lgu m tem po. Com o pa s s a r dos a n os de p rá t ica , n os s a vivên cia do con ten ta m en to a p rofu n da -se

qu er d izer , s e en ten derm os a p rá t ica e es t iverm os d is pos tos a realizá-la. A maioria das pessoas não está disposta dessa maneira.

O con ten ta m en to n ã o é a lgo qu e ten h a m os de encontrar. Con ten ta m en to é o qu e s om os s e n ã o es t iverm os p reocu pa dos com a lgu m a ou tra cois a . Qu a n do ten ta m os en con tra r o con ten ta mento, es ta m os s im ples m en te a cres cen ta n do u m pen s a m en to

e, a liá s , a lgo n a da p roveitos o

a o fa to bá s ico do qu e s om os . Nã o temos n eces s ida de de s a ir em bu s ca do con ten ta m en to. Ma s s em dú vida p recis a m os fa zer a lgu m a cois a . A qu es tã o é: o qu ê? Nos s a s vida s n ã o n os oferecem con ten ta m en to e bu s ca m os s em ces s a r u m a solução nesse sentido.

Nos s a s vida s s ã o ba s ica m en te percepçã o. Com es s e term o, qu ero d izer tu do a qu ilo qu e os órgã os dos s en t idos regis t ra m . Vem os , ou vim os , toca m os , s en t im os odores etc. Is s o é a rea lida de da vida . No en ta n to, qu a s e o tem po todo s u bs t itu ím os a percepçã o por a lgu m a ou tra a t ivida de; reves t im o-la com a lgu m a ou tra cois a qu e ch a m a rei de a va lia çã o. Com a va lia çã o n ã o es tou qu eren do d izer u m a a n á lis e ob jet iva e fr ia , com o por exem plo qu a n do exa m in a m os u m a pos en to des orga n iza do e con s idera m os ou a va lia m os com o orga n izá -lo e lim pá -lo. A a va lia çã o a qu e m e refiro é cen tra da n o ego: "Será qu e es te p róxim o ep is ód io de m in h a vida irá t ra zer -m e a lgo de qu e gos to, ou n ã o? Será qu e va i m e m a goa r , ou n ã o? Será a gra dá vel ou des a gra dá vel? Irá torn a r -m e im por ta n te ou ba n a l? Irá t ra zer -m e va n ta gen s m a ter ia is ?". Nos s a n a tu reza é a va lia r a s cois a s des s e jeito. Qu a n to m a is n os en t rega rm os a a va lia ções des s a n a tu reza , m en os con ten ta m en to h a verá em n os s a vida.

Page 213: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

É n otá vel a ra p idez com qu e n os in s ta la m os n a freqü ên cia de a va lia çã o. Ta lvez ven h a m os fu n cion a n do bem , bem m es m o

e

então, de repen te, a lgu ém cr it ica o qu e es ta m os fa zen do. Nu m a fra çã o de s egu n do, s a lta m os pa ra o rein o de n os s os pen samentos. Tem os u m a d is pon ib ilida de es pa n tos a pa ra n os a fu n da r n es s e peculiar espaço de julgamentos dos outros ou de nós. Muito drama va i n is s o e gos ta m os dele, m a is a in da do qu e tem os con s ciên cia . A m en os qu e esse dra m a s e torn e pu n it ivo e p rolon ga do, en t ra m os n ele de bom gra do porqu e, com o s eres h u m a n os , tem os u m a p red ileçã o es s en cia l pelos d ra m a s . De u m a pers pect iva com u m , perm a n ecer n u m m u n do de pu ra s percepções é ba s ta n te entediante.

Va m os s u por qu e s a ím os de fér ia s por u m a s em a n a e qu e a gora es ta m os de volta . Ta lvez ten h a m os n os d iver t ido ou a s s im ju lgu em os . Qu a n do volta m os a o es cr itór io, a ca ixa de t ra ba lh os por fa zer es tá lota da e, es pa lh a dos por toda a m es a , es tã o reca d in h os "en qu a n to você es teve a u s en te". Qu a n do a s pes s oa s nos telefonam, no serviço, isso em geral quer dizer que elas querem a lgu m a cois a . Ta lvez o s erviço qu e pa s s a m os pa ra ou tra pes s oa execu ta r ten h a s ido es qu ecido. Na h ora com eça m os a a va lia r a s itu a çã o: "Qu em fez es s a ba gu n ça ?"; "Qu em fez corpo m ole?"; "Por qu e é qu e ela es tá telefon a n do? Apos to qu e é a m es m a velh a h is tór ia de s em pre"; "Ma s a res pon s a b ilida de é deles a fin a l. Por qu e es tã o m e liga n do?". Da m es m a m a n eira , n o fin a l de u m sesshin podem os viven cia r u m flu xo de vida em con ten ta m en to. Depois n os es pa n ta m os de ele s e d is pers a r . Em bora n ã o ten h a s e dispersado, alguma coisa aconteceu: uma nuvem tolda a clareza.

En qu a n to n ã o n os derm os con ta de qu e con ten ta m en to é ju s ta m en te o qu e es tá a con tecen do, s em con s idera r a n os s a op in iã o s obre is s o, irem os ter a pen a s u m redu zido m on ta n te de contentam en to. Qu a n do perm a n ecem os com a percepçã o em vez de n os perderm os em a va lia ções , o con ten ta m en to pode s er a pes s oa qu e n ã o fez o s erviço en qu a n to es tá va m os de fér ia s . Pode s er o in teres s a n te en con tro a o telefon e com toda s a qu ela s pes s oa s pa ra qu em tem os de liga r , s eja lá o qu e es teja m qu eren do. Contentam en to pode s er a dor de ga rga n ta qu e es ta m os s en t in do; pode s er a dem is s ã o; pode s er o in es pera do per íodo de t ra ba lh o extra . Pode s er o exa m e de m a tem á t ica qu e p recis a m os fa zer , ou lida r com a ex-es pos a qu e qu er u m a pen s ã o m a ior . Em gera l n ã o

Page 214: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

cos tu m a m os pen s a r qu e es s a s s itu a ções s eja m fon tes de contentamento.

A p rá t ica d iz res peito a lida r com o s ofr im en to. Nã o qu e o s ofr im en to s eja im por ta n te ou va lios o em s i, m a s é o s ofr im en to qu e n os en s in a . É o ou tro la do da vida , e en qu a n to n ã o con s e-gu irm os en xerga r todos os la dos da vida , n ã o irá h a ver n en h u m con ten ta m en to. Pa ra s er h on es ta , o sesshin é u m s ofr im en to con trola do. Tem os a opor tu n ida de de en ca ra r n os s o s ofr im en to n u m a s itu a çã o p rá t ica . Qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , todos os a t r ibu tos t ra d icion a is de u m a boa a lu n a zen s ã o pos tos em xequ e: res is tên cia , h u m ilda de, pa ciên cia , com pa ixã o. Es s a s coisas pa recem fa n tá s t ica s n os livros , m a s n ã o s ã o tã o a t ra en tes qu a n do es ta m os com dor . É por is s o qu e o sesshin deve n ã o s er fá cil: tem os de a p ren der a es ta r com o n os s o s ofr im en to e a in da a s s im a gir da m a n eira a p ropr ia da . Qu a n do a pren dem os a es ta r com n os s a s vivên cia s , s eja m ela s qu a is forem , tem os m a is con sciência do con ten ta m en to qu e é a n os s a vida . O sesshin é a opor tu n ida de de s e a p ren der es s a liçã o. Qu a n do es ta m os p repa ra dos pa ra a p rá t ica , o s ofr im en to pode s er u m a bên çã o. Nen h u m de n ós qu er recon h ecer es s e fa to. Sem dú vida eu ten to evita r o s ofr im en to; exis tem m u ita s cois a s qu e n ã o qu ero qu e a con teça m n a m in h a vida . Apes a r d is s o, s e n ã o con s egu irm os a p ren der a s er a n os s a exper iên cia m es m o qu a n do ela dói, ja m a is con h ecerem os o con ten ta m en to. O con ten ta m en to é s er a s circu n s tâ n cia s de n os s a vida, sejam elas quais forem. Se alguém agiu injustamente conosco, é is s o. Se a lgu ém es tá con ta n do m en t ira s a n os s o res peito, também é isso.

A r iqu eza m a ter ia l dos Es ta dos Un idos d ificu lta , em cer to s en t ido, qu e viven ciem os o con ten ta m en to bá s ico qu e s om os . As pes s oa s qu e via ja m pa ra a ín d ia à s vezes rela ta m qu e, a o la do da en orm e pobreza , exis te u m con ten ta m en to ext ra ord in á r io. De-fron ta da s com a vida e a m or te o tem po todo, a s pes s oa s a p ren -dera m a lgo qu e pa ra n ós a qu i é m u ito d ifícil: a p ren dera m a a p recia r ca da m om en to. Nã o n os s a ím os m u ito bem n es s a h a b i-lida de. Nos s a p rópr ia p ros per ida de

toda s a s cois a s qu e da m os com o cer ta s e toda s a qu ela s qu e qu erem os a in da m a is

de cer to m odo a ge com o u m obs tá cu lo. Exis tem ou tros obs tá cu los , a in da m a is elem en ta res , m a s n os s a a bu n dâ n cia m a ter ia l é com cer teza uma parte do problema.

Page 215: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Na prá t ica , volta m os vá r ia s vezes à percepçã o, a a pen a s s en ta r . A p rá t ica é s ó ou vir , s ó ver , s ó s en t ir . Is so é o qu e os cr is tã os ch a m a m de a fa ce de Deu s : s im ples m en te a colh er o m u n do ta l com o ele s e a p res en ta . Sen t im os o n os s o corpo, ou vim os os ca r ros e os pá s s a ros . E tu do o qu e exis te. Porém n ã o n os d is pom os a perm a n ecer n es s e es pa ço por m a is do qu e u n s pou cos s egu n dos . Logo n os des via m os , pa ra lem bra r o qu e a con teceu con os co n a s em a n a pa s s a da , ou pen s a r n o qu e irá a con tecer n a s em a n a qu e vem . Pen s a m os de form a obs es s iva n a s pes s oa s qu e n os es tã o da n do t ra ba lh o, ou n o qu e es ta m os rea liza n do p rofis s ion a lm en te, ou em qu a lqu er ou tra cois a . Nã o h á n a da de er ra do com es s a s idéia s qu e p ipoca m em n os s a m en te, m a s s e n os m a n t iverm os p res os a ela s fica rem os a tola dos n o m u n do da s a va lia ções efetu a da s s egu n do o n os s o pon to de vis ta a u tocen tra do. A m a ior ia da s pes s oa s pa s s a a vida toda den tro dessa perspectiva.

É n a tu ra l pen s a r : "Se eu n ã o t ives s e u m com pa n h eiro tã o d ifícil (ou u m a colega de qu a r to tã o d ifícil ou qu a lqu er ou tra cois a tã o d ifícil), m in h a vida s er ia m u ito m a is ca lm a . Eu s er ia m u ito m a is ca pa z de a p recia r m in h a vida ". Pode s er qu e is s o des s e cer to por u m breve per íodo. Por a lgu m tem po a vida pa recer ia m elh or , s em dú vida . En treta n to es s e con for to n ã o é tã o va lios o qu a n to en ca ra r a qu ilo qu e n os con tra r ia , porqu e é es s a p rópr ia con tra r ieda de (ou s eja , n os s a ten dên cia a n os m a n ter a pega dos a os n os s os d ra m a s , a n os en volver n eles com a m en te a celera da e a s em oções a todo va por) qu e con s t itu i o obs tá cu lo va loros o. Nã o exis te u m verda deiro con ten ta m en to n u m a vida a s s im ; a liá s , n en h u m con ten ta m en to. Por is s o fu gim os da s d ificu lda des e ten ta m os elim in a r a lgu m a cois a : o com pa n h eiro, a colega de qu a r to, o qu e qu er qu e s eja , de m odo a con s egu irm os en con tra r a qu ele lu ga r per feito em qu e n a da pode' n os con tra r ia r . Algu ém tem u m lu ga r a s s im ? On de poder ia s er? O qu e poder ia s er -lhe aproxim a do? Há m u itos a n os , eu cos tu m a va m e con ceder dez m in u tos todo d ia pa ra deva n ea r a res peito de u m a ilh a t rop ica l e todo d ia eu a r ru m a va u m pou co m a is a m in h a ca ba n a . Min h a vida de fa n ta s ia fica va ca da d ia m elh or . Até qu e u m d ia en tã o eu já es ta va com tu do de m a is con for tá vel. Alim en tos m a ra vilh os os s im ples m en te a pa recia m com o por m ila gre, e a qu ele m a r en ca n ta dor e u m a la goa , per feita pa ra s e n a da r , a o la do da ca ba n a . E ót im o deva n ea r s e exis te u m lim ite de tem po pa ra is s o. Porém m eu s on h o n ã o poder ia exis t ir , exceto n a m in h a m en te. Nã o h á

Page 216: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

lu ga r n a Ter ra on de pos s a m os n os ver livres de n ós m es m os . Se es t ivés s em os s en ta dos n u m a ca vern a m ed ita n do, a in da a s s im es ta r ía m os pen s a n do a res peito de a lgu m a cois a : "Ma s qu e a t itu de n obre a m in h a de s en ta r -m e n es ta ca vern a !". E depois de m a is a lgu n s in s ta n tes : "Qu e des cu lpa pos s o in ven ta r pa ra s a ir da qu i e is s o n ã o fica r m a l?". Se pa ra rm os den tro de n ós e des cobr irm os o que de fato estamos sentindo ou pensando, iremos notar mesmo qu e es teja m os t ra ba lh a n do du ro

u m fin o véu de p reocu pa çã o

egocen tra da a res peito de n os s a a t ivida de. A ilu m in a çã o é s im ples m en te n ã o fa zer is s o. Ilu m in a çã o é fa zer o qu e es ta m os fazendo

tota lm en te

em rea çã o à s cois a s ta l com o ela s n os

ch ega m . O term o a tu a l é "flu ir". O con ten ta m en to é a pen a s is s o: a lgo vem a té n ós ; eu o percebo. Algo é n eces s á r io, eu o fa ço; depois ou tra cois a , e m a is ou tra . Ocu po u m a pa r te do tem po da n do u m a volta a pé ou con vers a n do com m eu s a m igos . Nã o h á p rob lem a s numa vida vivida dessa maneira. O contentamento nunca cessaria, a m en os qu e eu .o in ter rom pes s e fa zen do a va lia ções : rea gin do a os acontecim en tos com o s e fos s em prob lem a s , recr im in a n do, rejeita n do, es ga rça n do-m e: "Nã o qu ero fa zer is s o". Qu a n do o qu e a con tece n ã o s e a ju s ta à m in h a idéia do qu e eu qu ero fa zer , ten h o u m prob lem a . Se a a t ivida de es tá en t re a s qu e a p recio, ta m bém pos s o des provê-la de con ten ta m en to. Vocês con s egu ira m pen s a r em algum exemplo?

ALUNO: Eu tento ser perfeito.

ALUNA: Eu penso que fazer isso me toma importante.

ALUNA: Eu pa ro de p res ta r a ten çã o e s ó fico pen s a n do em terminar o que estou fazendo.

ALUNO: Eu com eço a m e com pa ra r com os ou tros e en t ro em competição.

ALUNO: Eu me preocupo se estou fazendo direito.

ALUNA: Começo a me preocupar que isso possa acabar.

JOKO: Bom . E a ba ixo do n ível de con s ciên cia es tá n os s o profunda m en te a r ra iga do con d icion a m en to, os m ot ivos in con s cien tes qu e n os leva m a fa zer a qu ilo qu e fa zem os . Com o tem po toda s es s a s cois a s vêm à ton a . Mes m o qu e es teja m os n u m a a t ivida de de qu e gos ta m os , m es m o qu e o com pa n h eiro s eja a lgu ém de qu em ba s ica m en te gos ta m os , a n a tu reza do s er h u m a n o é contin u a r ten ta n do a jeita r a s cois a s , o qu e leva em bora o

Page 217: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

contentam en to. Qu a lqu er a va lia çã o a u tocen tra da de u m a s itu a çã o irá n u b la r a percepçã o pu ra , qu e é o p rópr io con ten ta m en to. Qua n do es s es pen s a m en tos s u rgem , a pen a s os vem os e deixa m os que se vão, vemos os pensamentos e permitimos que se vão, vemos os pen s a m en tos e perm it im os qu e s e vã o. Regres s a m os à vivên cia da qu ilo qu e es t iver a con tecen do. É is s o qu e coloca d ia n te de n ós a perspectiva do contentamento.

A boa p rá t ica s en ta da n ã o s ign ifica qu e de s ú b ito tem os u m es pa ço m u ito cla ro n o qu a l n a da a con tece. Oca s ion a lm en te is s o pode a con tecer , m a s n ã o é im por ta n te. Pa ra u m a boa p rá t ica s en ta da é n eces s á r io qu e es teja m os ca da vez m a is d is pos tos a tom a r con s ciên cia do qu e es tá a con tecen do. Es ta rm os d is pon íveis pa ra perceber con s cien tem en te qu e: "É s im , n ã o fa ço m a is n a da s en ã o pen s a r n o Ta it i. Nã o é in teres s a n te?"; ou : "Term in ei com o m eu n a m ora do h á s eis m es es e o qu e es tou fa zen do? Todos os m eu s pen s a m en tos es tã o p res os n is s o. Ma s qu e in teres sante!". Em oções a cu m u la m -s e em fu n çã o des s e t ipo de pen s a mento

depres s ã o, p reocu pa çã o, a n s ieda de

e con t in u a m os a tola dos em nossas obsessões. Onde está o contentamento?

Para a maioria, permanecer no momento presente e continuar s e lem bra n do de qu e é is s o qu e viem os fa zer a qu i é s ofrer , lem os de es ta r d is pos tos a efetu a r es s a p rá t ica n ã o s ó qu a n do es ta m os s en ta dos , m a s pelo res to de n os s a s vida s . Se o fizerm os , en tã o a u m en ta rem os a porcen ta gem de vivên cia s de con ten ta m en to em n os s a vida . Pa ra ta n to, tem os de pa ga r u m preço, porém . Algu m a s pes s oa s o pa ga rã o, ou tra s n ã o. Às vezes , a s pes s oa s im a gin a m qu e con s igo p rodu zir con ten ta m en to pa ra ela s . E la s a ch a m qu e eu tenho alguma espécie de mágica. Ma s n ã o con s igo fa zer n a da pelos ou tros , exceto d izer -lh es o qu e fa zer . Nã o pos s o rea lizá -lo por m a is ninguém, apenas para mim mesma. É por isso que, se a prática for m u ito fa cilita da e n ã o exis t ir u m preço a s er pa go, n u n ca s equ er vira rem os a ch a ve n a fechadu ra des s a por ta . Se con t in u a rm os em nossa vida fugindo de tudo o que nos desagrada, essa chave nunca se movimentará.

Nã o devem os n os força r com exa gero. Depen den do de n os s a ca pa cida de, podem os p recis a r recu a r , ret roceder . Ma s , s e recu a rm os , podem os es ta r cer tos de qu e n os s os p rob lem a s per -m a n ecerã o fielm en te a o n os s o la do. Qu a n do "fu gim os " de n ossos prob lem a s , eles n os a com pa n h a m s em h es ita çã o. E les gos ta m de n ós , e n ã o n os a ba n don a rã o en qu a n to n ã o lh es derm os u m a

Page 218: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

verda deira a ten çã o. Dizem os qu e qu erem os s er u n os com o m u n do, qu a n do o qu e qu erem os n a rea lida de é qu e o m u n do n os a gra de. Pa ra qu e pos s a m os es ta r "em u n iã o com o m u n do", devem os pa s s a r vá r ios a n os n u m a p rá t ica m et icu los a , ca va n do e es cu lp in do. Nã o exis tem a ta lh os ou ca m in h os qu e con du zem m a is depres s a a um contentamento e sossego relativos sem que se pague um preço. Devem os en xerga r qu a n do es ta m os em ba ra lh a dos em n os s a s qu es tões pes s oa is , a pen a s obs erva r es s e m ovim en to in tern o, e depois volta r pa ra es te m u n do da s percepções pu ra s , o qu e n ã o n os in teres s a de m odo n en h u m , qu a s e n u n ca . Su zu k i Ros h i d is s e cer ta vez: "Do pon to de vis ta com u m , es ta r ilu m in a do pa rece a lgo m u ito m on óton o". Nã o exis te n is s o d ra m a n en h u m ; é a pen a s es ta r ali.

Difer im os em term os de n os s a ca pa cida de de perm a n ecer com a s n os s a s percepções . Ma s todos tem os es s a ca pa cida de. E la pode s e m a n ifes ta r em n íveis ligeira m en te d iferen tes , m a s todos tem os es s a ca pa cida de. Um a vez qu e s om os h u m a n os , podem os es ta r des per tos e podem os s em pre a u m en ta r a qu a n t ida de de tem po em qu e perm a n ecem os des per tos . Qu a n do des per ta m os , o m om en to s e t ra n s form a : com eça a da r u m a s en s a çã o gos tos a , a n os con fer ir en ergia pa ra fa zer o qu e vem em s egu ida . Es s a ca pa cida de s em pre pode a u m en ta r . Devem os es ta r con s cien tes do qu e s om os n es te s egu n do. Se es t iverm os com ra iva , tem os de s a ber d is s o. Tem os de s en t i-la . Tem os de ver os pen s a m en tos a í en volvidos . Se es ta m os en ted ia dos , is s o é, s em s om bra de dú vida , a lgo a s er pes qu is a do. Se n os s en t im os des es t imulados, p recis a m os perceber is s o. Se es t iverm os n a s m a lh a s dos ju lga m en tos qu e ela bora m os ou da con vicçã o de es ta rm os exclu s iva m en te com a ra zã o, p recis a m os ter is s o p res en te. Se n ã o virmos esses conteúdos, eles roubam o espetáculo.

Pa ra res u m ir : qu a n do n os s en ta m os pa ra p ra t ica r , es tã o ocorren do du a s a t ivida des : u m a é a percepçã o pu ra , o m ero sentar-s e a qu i. O con teú do des s a percepçã o pode s er qu a lqu er cois a . A ou tra a t ivida de é a a va lia çã o: s a lta r da percepçã o pu ra para os ju lga m en tos a u tocen tra dos a res peito de qu a lqu er cois a , qu a n do n os s en ta m os pa ra a p rá t ica , lida m os com es s a ten s ã o, com es s a con tra çã o e com es s e pen s a m en to repet it ivo. Tern os de enfrentar nosso condicionamento residual: é o único caminho até o con ten ta m en to. Lida m os com o qu e es tá ocorren do, exa ta m en te aqui, bem agora.

Page 219: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

CAOS E DESLUMBRAMENTO

Qu a n do con vers o com os a lu n os , ou ço m u ita s cois a s a respeito a e por qu e s e s en ta m pa ra p ra t ica r : "Qu ero m e con h ecer melhor"; "Quero que minha vida fique mais integrada"; "Quero ficar m a is s a u dá vel"; "Qu ero con h ecer o u n ivers o"; "Qu ero s a ber o qu e é a vida "; "Es tou s ó"; "Qu ero u m a rela çã o"; "Qu ero qu e m in h a s relações fiquem melhores". Existem infinitas variações para essas e ou tra s m ot iva ções pa ra u m a p rá t ica . Todos es tã o a bs olu ta m en te bem , n ã o h á n a da de er ra do com n en h u m a dela s . Ma s , s e pensamos qu e a fin a lida de de s en ta r e p ra t ica r é a t in gir es s a s cois a s , en tã o n os equ ivoca m os qu a n to a o qu e es ta m os fa zen do. É verdade que temos de começar a nos conhecer e a conhecer nossas em oções e com o ela s a tu a m . Precis a m os perceber a rela çã o en tre n os s a s em oções e n os s a s a ú de fís ica . Tem os de con s idera r a n os s a fa lta de in tegra çã o e tu do o qu e es s a n ã o-in tegra çã o im plica . Sen ta r e p ra t ica r a t in gem todos os a s pectos de n os s a s vida s ; a pes a r d is s o, qu a n do n os es qu ecem os de u m a s ó cois a , esquecemo-n os de tu do. Sem ela , n a da m a is fu n cion a . Difícil denominá-la . Poder ía m os ch a m á -la des lu m bra m en to, a s s om bro. Qu a n do n os es qu ecem os de n os m a ra vilh a r d ia n te da qu ilo com qu e depa ra m os , en tã o es ta m os em a pu ros , e n os s a vida n ã o acontece.

É verda de qu e a t ra vés da p rá t ica n eces s ita m os efetu a r u m bom con ta to com a qu ela s cois a s qu e m en cion a m os a n tes : em oções, ten s ã o, s a ú de

en tre ou tros fa tores . En qu a n to n ã o es t ivermos h a b itu a dos a fa zer es s a s liga ções , o des lu m bra m en to n ã o a pa rece. Nos s a liga çã o, porém , n ã o tem de s er com pleta ; n o en ta n to, s ó qu a n do n ã o es ta m os n os a foba n do por ca u s a des s a s cois a s é qu e en xerga m os o des lu m bra m en to. Por exem plo: s e es tou com a lgu ém que me irrita, esqueci o deslumbramento que ela é. Outro exemplo: a m a ra vilh a de fa zer u m s erviço qu e n ã o qu ero fa zer . On tem , decid i lim pa r a qu ele es pa ço qu e fica em ba ixo da p ia . Es s a é u m a cois a qu e p refiro es qu ecer de fa zer . No en ta n to, h a via n is s o ta m bém u m des lu m bra m en to: d ia n te da qu ela s pa r t ícu la s de s u jeira e ou tra s cois a s qu e en con trei. O des lu m bramento n ã o é a lgo d iferen te da qu ilo qu e fa zem os . Pen s a m os qu e o des lu m bra m en to é u m es ta do extá t ico, e o des lu m bra m en to pode

Page 220: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s er m es m o u m êxta s e. Dir igir pela s Mon ta n h a s Roch os a s com o pa n ora m a do Gra n de Ca n yon

es s a s cen a s s ã o tã o es peta cu la res

qu e por u m m om en to vem os o des lu m bra m en to qu e h á n is s o. Es s a s vivên cia s podem con ter u m a poderos a d im en s ã o em ocion a l. Ma s o des lu m bra m en to n ã o é s em pre em ocion a l; n em n ós con s egu ir ía m os pa s s a r todo o n os s o tem po em ta l es ta do emocional.

Podem os pen s a r qu e o des lu m bra m en to s ó é en con t ra do em cer ta s a t ivida des es pecia is . "Ta lvez os a r t is ta s e os m ú s icos a ch em fácil enxergar o que é deslumbrante. Mas sou um contador. Onde é qu e es tá o des lu m bra m en to d is s o?" Mes m o qu e os m ú s icos e a r t is ta s en t rem de fa to em con ta to com o des lu m bra m en to em s u a s á rea s es pecífica s , podem n ã o vê-lo em ou tra s . Podem os , por exem plo, ter a im pres s ã o de qu e os fís icos e ou tros cien t is ta s es tã o m u ito d is ta n tes do des lu m bra m en to da vida . No en ta n to, con h eci a lgu n s fís icos e des cobr i qu e é m u ito im por ta n te pa ra eles qu e u m a s olu çã o s eja elega n te. E is a í u m a pa la vra in teres s a n te de s u rgir n o m eio de u m m on te de m a tem á t icos e com pu ta dores . Cer ta vez pergu n tei a u m fís ico por qu e ele u s a va es s a pa la vra . E le d is s e a pen a s : "Toda boa s olu çã o tem de s er elega n te". Qu a n do lh e pergu n tei o qu e is s o qu er ia d izer , ele res pon deu qu e elegâ n cia s ign ifica ir deca n ta n do a té a es s ên cia , pa ra qu e n ã o s e fiqu e com cois a s ext ra s . Is s o con tém u m des lu m bra m en to. A s olu çã o pode n ã o s er n em verda deira ; os fís icos lida m com teor ia s . Em cer to s en t ido, n en h u m a fórm u la é verda deira . Nã o h á n a da de "verda deiro" ta m bém em n en h u m rela cion a m en to. Ma s , n es te m om en to, u m rela cion a m en to pode s er s im ples m en te des lu m bra n te. Se n ã o n os da m os con ta d is s o, n ã o n os da m os conta do que é a nossa prática.

A p rá t ica n ã o é es ta r s im ples m en te in tegra do ou em bom es ta do de s a ú de, ou s er u m a boa pes s oa , em bora toda s es s a s cois a s fa ça m pa r te da p rá t ica . A p rá t ica d iz res peito a o des lu m -bra m en to. Se você qu er a ver igu a r com o a n da a s u a p rá t ica , n a próxim a vez qu e a lgo a con tecer em s u a vida qu e você n ã o con s egu ir s u por ta r , pergu n te-s e: "On de es tá a qu i o des lu m bra -m en to?" É is s o qu e cres ce con form e va m os p ra t ica n do. Au m en ta a n os s a ca pa cida de de ver o des lu m bra m en to da vida , s eja o qu e for qu e s e a p res en te, e in depen den te de gos ta rm os ou n ã o. Por exem plo, qu a n do en t ra m os n u m a rela çã o com es s a pers pectiva, podem os d izer : "Eu a m o você pelo qu e você é e a m o você pelo qu e

Page 221: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

você não é". Em lugar de encontrar os defeitos "Você fala demais. Você n ã o fa la n a da . Você deixa s u a s rou pa s por toda pa r te. Você n u n ca lim pa a m es a da cozin h a . Você m e ir r ita o tem po todo" , o deslumbramento brilha e atravessa as camadas. "Eu amo você pelo que você é e amo você pelo que você não é."

Como sabermos se a nossa prática é uma prática real? Só por u m a cois a : vem os ca da vez m a is o qu e é des lu m bra n te. Qu a l é o des lu m bra m en to? Eu n ã o s ei. Nã o podem os s a ber es s a s cois a s a t ra vés do pen s a m en to. Ma s s em pre s a bem os qu a n do é verda deiro.

Às vezes n ã o con s igo en xerga r de jeito n en h u m o qu e h á de des lu m bra n te, em bora eu o con s iga m u ito m a is do qu e h á cin co anos. Uma prática verdadeira desloca-se ao longo de um continuum a ca m in h o de u m teor ca da vez m a ior de percepçã o con s cien te do des lu m bra m en to. Nã o es tou d izen do viver n u m es ta do de gra ça , de a lgu m a es pécie. Pode s er en xerga r o des lu m bra m en to de u m a pessoa de quem não gostamos. "Mas que coisa maravilhosa ela é exa ta m en te com o ela é!" Ou podem os en con trá -lo em a lgu ém qu e tem u m a doen ça gra ve. Es s a pes s oa pode ter u m a p res en ça tã o poderosa qu e ilu m in a todo o es pa ço à s u a volta , de m a n eira deslumbrante.

Con form e você va i pa s s a n do pelo d ia , a t ra ves s a n do s u a s pequ en a s a dvers ida des e d ificu lda des , pergu n te-s e: "On de es tá o des lu m bra m en to?". Sem pre es ta rá a li. O des lu m bra m en to é a n a tu reza da vida em s i. Se n ã o o s en t im os , s im ples m en te con t i-n u a m os com a n os s a p rá t ica ; n ã o podem os n os força r a s en t i-lo. Só podem os t ra ba lh a r com o obs tá cu lo qu e es tá à n os s a fren te. O obs tá cu lo é cr ia do por n ós ; n ã o é ca u s a do pelo qu e a con teceu con os co. Is s o fa z pa r te do des lu m bra m en to ta m bém . Se vocês es tã o en ten den do do qu e es tou fa la n do, ót im o. Se n ã o s a bem do qu e es tou fa la n do, ót im o ta m bém . Am ba s a s res pos ta s fa zem pa r te do deslumbramento: saber ou não saber; de todo modo, ótimo.

ALUNO: Ten h o pen s a do ba s ta n te a res peito do con flito com o Iraque. Não consigo enxergar nada deslumbrante nisso.

ALUNO: Nã o pos s o evita r , m a s a ch o qu e es s e con flito é h or r ível. Por ba ixo des s e s en t im en to s in to m edo. Nã o qu erem os en xerga r o deslumbramento porque estamos atolados no medo.

JOKO: Sim, no geral isso é verdade.

Page 222: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNA: Qu a n do pen s o n o con flito, loca lizo u m cer to deslumbramento na perspectiva de uma maior unificação mundial.

JOKO: Sim . Com o pes s oa , olh o com h orror pa ra es s e con flito. Ma s o ca os é em s i in teres s a n te. Na d is cip lin a da fís ica , exis te u m ca m po rela t iva m en te n ovo ch a m a do a teor ia do ca os . A gu er ra es tá p rodu zin do o ca os . Com ele s u rgem n ova s pos s ib ilida des . Tu do es tá s en do a ba la do e, de a gora em d ia n te, todo o Or ien te Médio irá s er d iferen te. Nos s os rela cion a m en tos com todos os en volvidos s erã o d iferen tes . Os rela cion a m en tos deles com toda s a s cois a s irã o s er d iferen tes . Nã o podem os en xerga r ordem n o ca os porqu e s om os h u m a n os . Nã o é qu e o ca os s eja n eces s a r ia m en te ru im ; a té m es m o n o h orror exis te u m des lu m bramento. Des lu m bra n te é o qu e es tá a con tecen do. E n ã o n os ca be ju lga r ou a va lia r is s o. Cla ro qu e s e eu pu des s e im ped ir a m a ta n ça eu o fa r ia . Is s o n ã o fa z n en h u m s en t ido; é s ó o ca os , e, n o en ta n to, o ca os n ã o é ca os

é des lu m bra m en to. Do ca os em erge u m a n ova ordem , qu e por s u a vez s e torn a ca os . Is so é a vida . Pa ra n ós , pa z é es ta r d is pon ível pa ra perm a n ecer com o ca os . Is s o n ã o qu er d izer qu e n ã o a gim os de m odo a lgu m . Ma s a té a n os s a a çã o fa z pa r te do ca os . Sem pre tem os dois pon tos de vis ta : o pes s oa l e es s e qu e s e des en volve a pa r t ir da p rá t ica s en ta da , qu e é o des lu m bra m en to. Por exem plo: é ter r ível qu e m ilh a res de pes s oa s ten h a m s ido m or ta s n a ú lt im a gu er ra ; m a s do pon to de vis ta do bem -es ta r da Ter ra , m en os pes s oa s es tã o m elh or . A Terra já tem m u ita gen te. Se eu s ou u m a da s pes s oa s qu e m or rera m ou s e con h eço a lgu ém qu e foi m or to, cla ro qu e, pes s oa lm en te, is s o pa ra m im foi u m des a s t re. Porém , a vida n a Ter ra n ã o pode s er m a n t ida n u m a pos içã o fixa . Sa dda m Hu s s ein é a p róxim a peça n o ta bu leiro; con form e ele a n da , todos a n da m , e o ca os s obrevirá . Is s o é bom ou ru im ? Nen h u m dos dois . É só o que é.

ALUNO: É com o u m a célu la de câ n cer : qu erem os redu zir es s a célula porque vai tentar prejudicar o corpo todo.

JOKO: Mas a célula de câncer não vê a coisa desse jeito. Ela só está fazendo o que está fazendo.

ALUNA: Nós qu erem os tom a r p rovidên cia s pa ra fa zer a lgo a respeito do câ n cer ; n o en ta n to, n u m determ in a do m om en to, ta m -bém podemos nos dar conta de seu deslumbramento.

JOKO: Podem os es ta r lu ta n do con tra o câ n cer , fa zen do tu do o qu e pu derm os pa ra s obreviver e, a o m es m o tem po, podem os s en t ir

Page 223: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

o des lu m bra m en to des te p roces s o qu e n ós s om os . Se eu t ives s e câ n cer eu lu ta r ia a té o ú lt im o fio de força . Sou u m a lu ta dora . Ao mesmo tempo, o deslumbramento está sempre presente.

ALUNA: É com o s e a ú lt im a cois a qu e eu qu is es s e ver fos s e o deslumbramento.

JOKO: Você tem ra zã o. A ú lt im a cois a qu e qu erem os en xerga r é o des lu m bra m en to, porqu e é h u m ilh a n te; s em pre n os s en t im os in s u lta dos em cer ta m ed ida . Tu do n a vida é des lu m bra m en to, m a s , como a vida ta l com o n os a pa rece ra ra m en te n os con vém , n ã o con s egu im os en xerga r o des lu m bra m en to. En tã o fica m os n os in da ga n do por qu e s om os tã o in felizes . Aqu ilo qu e es ta m os ba n in do de n os s a s vida s é o qu e rea lm en te qu erem os e necessitamos.

ALUNA: Pen s a n do n o n ovo equ ilíb r io de força s n o Or ien te Médio, lem bro da s ten s ões ext ra s qu e recen tem en te pes a ra m s obre minhas relações. Estamos passando por nossas pequenas batalhas e m u da n ça s , e es ta m os t ra ba lh a n do em prol de u m n ovo equ ilíb r io de força s . E com o u m m icrocos m o do qu e es tá a con tecen do em vá r ia s pa r tes do m u n do. E obs erva n do o con flito do Or ien te Médio con s igo en ten der com u m pou co m a is de cla reza o qu e es tá acontecendo comigo neste exato momento, em casa.

ALUNO: Qu a n do m orei n o Or ien te Médio por t rês a n os , u m pon to de vis ta dos á ra bes a pa receu -m e com m u ita n it idez. Nes te pa ís , gra n de pa r te do pet róleo vem da qu i m es m o, n o en ta n to, desperd iça m os u m a boa pa r te do qu e u s a m os . Tem os u m a n eces s ida de a n s ios a de pet róleo. Nos s a â n s ia es tá fora de con trole, e es ta m os en tã o u s a n do os recu rs os de ou trem pa ra s a t is fa zer a n os s a p róp r ia â n s ia . Fa z pa r te do ca os . Há u m a m a n eira de ver tudo isso, que os árabes têm, e que é realmente válida.

ALUNA: Há pou co tem po voltei de u m a via gem à Áfr ica . Enquanto via ja va por lá à s vezes via h om en s á ra bes com s eu s m a n tos es voa ça n tes . Obs ervei com o eu rea gia a eles , ba s ea n do-me n a s cois a s qu e m e h a via m s ido d ita s a res peito de com o a lgu m a s cu ltu ra s á ra bes s ã o opres s iva s em rela çã o à s m u lh eres . Sen t ia m eu corpo fica n do ten s o. Um d ia , en qu a n to eu es ta va pa s s a n do pelo cor redor de u m a viã o, es ba r rei n u m des s es á ra bes e ele m e d is s e: "Des cu lpe-m e", olh a n do-m e n os olh os e s or r in do. Na quele m om en to a lgo a b r iu -s e pa ra m im e eu o vi a pen a s com o u m a pessoa e não como um árabe.

Page 224: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Mu ita s vezes fico fa s cin a do por todo o ca os qu e m e circu n da . Obs ervo os con flitos em m in h a p rópr ia m en te, e ou tra s pes s oa s fa la m pa ra m im da s cois a s qu e es tã o a t ra ves s a n do, e depois olh o pa ra a s pes s oa s qu e es tã o a ca m in h o do t ra ba lh o n o cen tro de Los An geles . É u m a con fu s ã o im en s a , e p ra t ica m en te todo m u n do es tá in do pa ra o t ra ba lh o. É qu a s e qu e in a cred itá vel! Im a gin a r a lgu ém em a lgu m lu ga r ten ta n do coreogra fa r a qu ilo tudo

"An da , a n da , a n da !"

s eria tota lm en te im pos s ível. Tu do

pa rece com pr im ido a pon to de exp lod ir . No en ta n to, em ra zã o da ext rem a p res s ã o, a s pes s oa s recu a m u m pou co e deixa m os ou tros en t ra r , e tu do volta a flu ir . É fa s cin a n te com o a fin a l a qu ilo tu do acaba funcionando.

JOKO: Uma vez enquanto voava até Los Angeles eu estava con-vers a n do com u m pa s s a geiro qu e era p la n eja dor u rba n o. Ele olh ou pela ja n elin h a pa ra a s a u top is ta s e os ed ifícios e d is s e: "Nã o va i con s egu ir fica r des s e jeito por m u ito m a is tem po!". Ma s a s cois a s a ca ba m s e m a n ten do em pé porqu e exis te u m a ju s ta m en to em andamento. De alguma maneira as pessoas se adaptam.

ALUNO: Eu obs ervo qu e rela xo por ca u s a da in evita b ilida de do caos

e ta lvez ou tros fa ça m is s o ta m bém . Ta lvez s eja is s o qu e im peça a cida de de torn a r -s e m a is m a lu ca do qu e ela já é. Qu a lqu er pes s oa qu e d ir ija por a lgu m tem po n u m a a u top is ta ou n u m a ru a en ga r ra fa da p recis a rea lm en te deixa r a s cois a s a con te-cerem pa ra a gü en ta r a s itu a çã o. É u m m om en to n es s a cida de fren ét ica em qu e a s pes s oa s têm de ceder , de deixa r qu e a con teça o que tiver de acontecer. É uma espécie de jogo espiritual.

JOKO: Na s lu ta s do Or ien te Médio e de ou tra s pa r tes vem os o res u lta do fin a l da violên cia in tern a de todos n ós . Im a gin a m os qu e podem os res olver os nossos problemas com lu tas extern a s e gu er ra s . Ga s ta m os s om a s in a cred itá veis em a rm a m en tos ; n o en -ta n to, os ín d ices de m or ta lida de in fa n t il es tã o en t re os m a is a ltos n o m u n do in du s t r ia liza do. Is s o ta m bém fa z pa r te do ca os . Tu do bem adotar um ponto de vista pessoal e tentar mudar essas coisas, m a s n os s os pon tos de vis ta pes s oa is p recis a m s er equ ilibrados pelo recon h ecim en to de qu e m ilh ões de cois a s

m u ita s m a is do qu e con s egu irem os u m d ia en ten der

es tã o s e a gru pando, mudando e movimentando-se o tempo todo.

En qu a n to n ã o en ca ra rm os a n os s a p rópr ia s itu a çã o, com todo o ca os qu e exis te em n os s a s p rópr ia s vida s , n ã o poderem os

Page 225: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

fa zer m u ito, ou s er eficien tes em ou tros lu ga res . Va i h a ver ca os de qu a lqu er jeito, m a s , qu a n do n ós o en ca ra m os , vem o-lo por u m ou tro p r is m a . Nã o qu erem os vê-lo, n o en ta n to. Qu erem os viver den tro da s ca ixa s qu e cr ia m os e a pen a s con t in u a r redeco-ra n do a s pa redes , em vez de s a ir pela por ta . Rea lm en te a dora m os a s n os s a s p r is ões ; es s a é u m a ra zã o pela qu a l a p rá t ica é tã o d ifícil. Resistência é a própria natureza do ser humano.

Um a pes s oa com o Sa dda m Hu s s ein n ã o a pa rece do vá cu o, s em m ot ivo; ele é o res u lta do de m u ita s e m u ita s circu n s tâ n cia s , ta l com o foi Hit ler . Nã o dever ía m os n o en ta n to pen s a r qu e s e o m u n do in teiro p ra t ica s s e o zazen n ã o h a ver ia ca os . Ta m bém n ã o é a s s im . O ca os con t in u a rá . Nã o p recis a m os n os p reocu pa r com is s o. Ma s , s e p ra t ica rm os , com o tem po terem os m a is a ber tu ra pa ra a s cois a s s erem com o ela s s ã o. Con t in u a rem os ten do p referências pes s oa is pela s cois a s irem de u m cer to jeito, m a s n ã o fa rem os m a is ta n ta s exigên cia s . Preferên cia s s ã o m u ito d iferen tes de exigên cia s . Qu a n do a s cois a s n ã o ca m in h a m do jeito qu e p refer im os , a ju s ta m o-n os com m u ito m a is ra p idez a o m odo como elas aparecem. Isso é o que acontece após anos de prática sentada. Se vocês es t iverem procu ra n do a lgu m a ou tra cois a , bem , desculpem-me...

É pa ra doxa l, m a s a p ren der a perm a n ecer com o ca os p ro-porcion a u m a es pécie de pa z p rofu n da . Porém n ã o é a qu ilo qu e costumamos imaginar para nós.

ALUNA: Isso é o deslumbramento?

JOKO: Isso é o deslumbramento.

VIII. Nada Especial

DO DRAMA AO NÃO-DRAMA

Na prá t ica zen n ós s a ím os de u m a vida d ra m á t ica

es pécie de n ovela da s 20 h

pa ra u m a vida n ã o-d ra m á t ica . A des peito do qu e pos s a m os d izer , todos n ós gos ta m os m u ito de n os s os d ra m a s pes s oa is . A ra zã o pa ra ta n to? Seja qu a l for o n os s o d ra m a

Page 226: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

pa r t icu la r , s em pre es ta m os n o pa pel p r in cipal

qu e é on de n ós

qu erem os es ta r . E , pela p rá t ica , n ós gra du a lm en te n os des loca m os pa ra lon ge des s a p reocu pa çã o com n ós m es m os . As s im , s a ir de u m a vida d ra m á t ica pa ra u m a vida n ã o-d ra m á t ica , em bora pos s a pa recer s em n en h u m a t ra t ivo, é do qu e t ra ta a p rá t ica zen . Examinemos esse processo mais de perto.

Qu a n do com eça m os a p ra t ica r , é bom com eça r res p ira n do a lgu m a s vezes bem fu n do, en ch en do a ca vida de a bdom in a l, o m eio do peito e em ba ixo dos om bros , a té es ta rm os rep letos de a r ; depois , s olta m os o a r , in ter rom pen do a exp ira çã o u m in s ta n te. Fa ça is s o t rês ou qu a tro vezes . Em cer to s en t ido, é a r t ificia l, m a s a ju da a cr ia r u m cer to equ ilíb r io e form a u m a ba s e con ven ien te pa ra s e s en ta r e p ra t ica r . Depois de term os feito is s o, o pa s s o s egu in te é es qu ecer exa ta m en te is s o, es qu ecer de con t rola r a res p ira çã o. Nã o o es qu ecerem os por com pleto, é cla ro, m a s é in ú t il con trola r a res p ira çã o. Em vez d is s o, a pen a s viven cie es s e p roces s o, o qu e é m u ito d iferen te. Nã o es ta m os ten ta n do fa zer u m a res p ira çã o len ta , longa e regular, como muitos livros sugerem. Em lugar disso, o que qu erem os é deixa r qu e o a r s eja o com a n da n te, pa ra qu e a res p ira çã o es teja n os res p ira n do. Se a res p ira çã o for s u per ficia l, qu e s eja a s s im . Qu a n do n os torn a m os a n os s a res p ira çã o, por s u a p rópr ia pu ls a çã o a res p ira çã o s e torn a m a is len ta . A res p ira çã o permanece superficial porque queremos pensar em vez de vivenciar a n os s a vida . Qu a n do fa zem os is s o, tu do s e torn a m a is s u per ficia l e con trola do. A pa la vra re tes ad o é ba s ta n te s u ges t iva : des creve com o s u b im os pa ra a ca beça , a ga rga n ta , os om bros e lá n os ten s ion a m os ; es ta m os com m u ito m edo e n os s a res p ira çã o ta m bém fica a lta . Um a res p ira çã o qu e con s egu e s er a bdom in a l, com o ten de a ocorrer a pós a n os de p rá t ica , é a qu ela qu e vem qu a n do a m en te perdeu a s es pera n ça s . Tu do a qu ilo pelo qu e es pera m os é do qu e len ta m en te a p ren dem os a des is t ir e, en tã o, a res p ira çã o des ce. Nã o é a lgo qu e p recis em os ten ta r fa zer . A p rá t ica consiste em vivenciarmos a respiração como ela é.

Ta m bém pen s a m os qu e dever ía m os ter u m a m en te s os s egada. Mu itos livros d izem is to: qu e a pes s oa ilu m in a da é a qu ela qu e tem u m a m en te s os s ega da . É verda de: qu a n do n ã o tem os n en h u m a es pera n ça , n os s a m en te s os s ega . En qu a n to a lim en ta mos es pera n ça s n os s a m en te es tá ten ta n do des cobr ir com o s a t is fazer es s a s von ta des m a ra vilh os a s de cois a s qu e qu erem os qu e a con teça m , ou es ta m os ten ta n do n os p roteger de toda s a s cois a s

Page 227: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ter r íveis qu e n ã o dever ia m a con tecer . As s im , a m en te es tá tu do, m en os s os s ega da . Agora , em lu ga r de força r a m en te pa ra qu e ela sossegue, o qu e podem os fa zer? Podem os n os torn a r con scientes do qu e ela es tá fa zen do. É is s o qu e é rotu la r n os s os pen s a m en tos . Em vez de nos atolarmos em esperanças começamos a ver: "É, sim, pela vigés im a vez h oje es tou es pera n do s en t ir a lgu m a lívio". Depois de u m bom sesshin, poderem os ter d ito is s o u m a s qu in h en ta s vezes : "Es pero qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin a ca ba r". E en tã o rotu la m os : "Com es pera n ça de qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin term in a r"; "Com es pera n ça de qu e ele m e telefon e qu a n do o sesshin terminar". Depois de termos dito isso quinhentas vezes, o qu e a con tece com is s o? En xerga m os exa ta m en te o qu e é: u m a bs u rdo. Afin a l de con ta s , a verda de é qu e ou ele telefon a ou n ã o telefon a . Con form e va m os obs erva n do n os s a m en te a o lon go dos a n os , a os pou cos a s es pera n ça s s e d is s ipa m . E o qu e n os res ta ? Pode parecer lúgubre, eu sei: resta-nos a vida tal com o ela é .

É p roveitos o en t ra r n es s e p roces s o com u m a a t itu de de in ves t iga çã o. Em vez de ver a n os s a p rá t ica s en ta da com o a lgo bom ou m a u , com o a lgo qu e deve m elh ora r n u m a ba s e firm e, dever ía m os s ó in ves t iga r , obs erva r o qu e es ta m os de fa to fa zen do. Nã o exis te u m a boa ou m á p rá t ica s en ta da ; exis te a pen a s a percepçã o con s cien te ou a in con s ciên cia do qu e es tá s e pa s s a n do em n os s a vida . E , qu a n do n ós m a n tem os m a is tem po a percepção con s cien te, a s in da ga ções qu e tem os a res peito da vida s ã o vis ta s por u m n ovo p r is m a . Nã o s om os en tregu es pu ra e s im ples m en te a u m ou tro pon to de vis ta , m a s con qu is ta m os u m a m a n eira d iferen te de ver a s cois a s . Con form e es s e p roces s o s e des en volve com o tem po, m u ito deva ga r a n os s a m en te va i s os s ega n do

n ã o por com pleto, e o qu e s e a qu ieta n ã o s ã o os pens am en tos (poderem os p ra t ica r vin te a n os e con t in u a r ven do os pen s a m en tos qu e cor rem pela m en te). O qu e s os s ega é o n os s o apego aos nossos pen s a m en tos . Ca da vez m a is os vem os com o u m a es pécie de es petá cu lo, pa recido com o qu e fa zem os qu a n do olh a m os a s cr ia n ça s b r in ca rem . (Min h a m en te pen s a qu a s e o tem po todo. Qu e pen s e, s e é o qu e qu er .) E n os s o apego a os pen s a m en tos qu e b loqu eia o samadhi. Podem os ter m u itos pen s a m en tos e m es m o a s s im es ta r em profu n do samadhi, des de qu e n ã o es teja mos a pega dos a eles e s ó perm a n eça m os n a vivên cia . É verda de qu e qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m en os ten derem os a pen s a r , porqu e n os s a ten dên cia é obceca rm o-n os m en os . Sen do a s s im , a m en te de fa to a qu ieta , em bora com toda cer teza n ã o por

Page 228: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

term os d ito a n ós m es m os :' 'Eu tenho d e ter u m a m en te s os s ega da !". Qu a n do n os m a n tem os s en ta dos n a p rá t ica , de tem pos em tem pos a lca n ça m os pers pect iva s de gra n de lu cidez a res peito de n os s a s vida s , qu e es cla recem d iferen tes a s pectos da s m es m a s . Em s i m es m os es s es m om en tos n ã o s ã o n em bon s n em m a u s e, do pon to de vis ta da p rá t ica zen , n ã o s ã o n em pa r t icu la rm en te im por ta n tes . Apes a r de es s es m om en tos de lu cidez repen t in a terem u m a cer ta u t ilida de, zazen n ã o é ir a t rá s deles . E les rea lm en te ocorrem , e de repen te vem os : "Ora , é is s o

is s o é o qu e eu fa ço. Qu e in teres s a n te!". No en ta n to, a té m es m o ca p ta r o m om en to des s a repen t in a lu cidez é s ó a lgo qu e vem e va i, vem e va i, por n os s a m en te. Torn a m o-n os cien t is ta s qu e vivem esse experimento chamado nossa vida. Nossos eus e nossos pensa-m en tos es tã o es pa lh a dos à n os s a fren te; olh a m os com in teres s e pa ra es s e es petá cu lo, m a s n ã o m a is com o n os s o p rópr io d ra m a pes s oa l. Qu a n to m a is des en volvida for es s a pers pect iva em n ós , m elh or s erá a n os s a vida . Por exem plo: s e es ta m os fa zen do u m exper im en to com s a l e a çú ca r , n ã o d izem os : "Qu e cois a ter r ível! O s a l e o a çú ca r es tã o d is cu t in do!". Nã o n os im por ta o qu e o s a l e o a çú ca r es teja m fa zen do, a pen a s os obs erva m os e a p recia m os com o in tera gem . Por ou tro la do, em gera l nós n os im por tamos m u ito com o qu e os n os s os pen s a m en tos es tã o fa zen do. Nã o fica m os a pen a s n a s u a obs erva çã o, com u m a a t itu de de in teres s e, com o os cien t is ta s qu e a pen a s a com pa n h a m o qu e a con tece. "Se eu misturar isso e aquilo interessante. Se eu puser essas coisas em proporções d iferen tes

in teres s a n te." O cien t is ta s im ples m en te observa e acompanha processos.

Qu a n do es s a qu a lida de de obs erva r , de a p recia r e viven cia r o qu e a con tece es t iver m a is for ta lecida em n os s a vida , a rea lidade (qu e é s ó a percepçã o con s cien te) depa ra a ir rea lida de ou o n os s o pequ en o d ra m a tecido de pen s a m en tos . E vem os com m a is cla reza o qu e é rea l e o qu e é ir rea l, com o a lu z qu e ilu m in a a es cu r idão. Ma s , qu a n do n ós t ra zem os m a is rea lida de (percepçã o con s cien te) pa ra n os s a s vida s , a qu ilo qu e vin h a s en do p rob lem á t ico pa rece m u da r . Qu a n do in s t ila m os m a is percepçã o con s cien te em n os s a s vida s , com eça m os a elim in a r n os s os d ra m a s pes s oa is . E n ã o querem os fa zer is s o de verda de. Gos tam os de n os s os d ra m a s pes s oa is , gos ta m os de a lim en tá -los . Ca da u m de n ós tem s u a p rópr ia en cen a çã o p red ileta . Por exem plo, podem os a cred ita r : "As circu n s tâ n cia s da m in h a vida s ã o em es pecia l d ifíceis . A m in h a in fâ n cia foi m a is d ifícil qu e a da m a ior ia da s pes s oa s "; ou "Aqu ela

Page 229: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

cois a qu e m e a con teceu rea lm en te a r ru in ou a m in h a vida ". É verda de, es s a s cois a s a con tecera m e cr ia ra m os n os s os con d icion a m en tos . Porém , en qu a n to m a n t iverm os n os s a s cren ça s de qu e a s h is tór ia s qu e con ta m os s ã o a verda de a cerca de n os s a vida , a p rá t ica gen u ín a n ã o irá ocorrer . As cren ça s in terd ita m a prática.

A m en os qu e h a ja u m a cer ta d is pon ib ilida de pa ra a ba n donar es s a s cren ça s pes s oa is de vida , n ã o exis te n a da qu e eu ou qu a lqu er ou tra pes s oa pos s a fa zer . Às vezes , u m s ofr im en to é o s u ficien te pa ra cr ia r por s i a qu ela m ín im a b rech a por on de a percepçã o con s cien te con s iga s e in filt ra r . Ma s en qu a n to es s a pequena fenda não se abrir não há nada que alguém possa fazer. E as pessoas realmente obstinadas conseguem manter suas histórias pes s oa is a té a m or te. A vida pa ra ela s é m u ito du ra . Um a cren ça pes s oa l des s e t ipo

"Sou u m a vít im a "

é com o u m a rm á r io fech a do e es cu ro. Se qu erem os s en ta r n es s e a rm á r io com a por ta bem t ra n ca da , n a da con s egu irá pen etra r n ele. In felizmente, en qu a n to in s is t im os em fica r s en ta dos den tro des s e a rm á r io (e todos fa zem os is s o à s vezes ), des cobr im os qu e n in gu ém qu er , n a rea lida de, en t ra r e s en ta r -s e con os co. Com fra n qu eza , n in gu ém tem u m in teres s e pa r t icu la r pelo d ra m a dos ou tros . O qu e n os in teres s a é o n os s o p rópr io d ra m a . Eu pos s o qu erer m e fech a r den tro do m eu p rópr io a rm á r io, m a s com cer teza n ã o vou fica r sentado dentro do seu.

Todos n ós en t ra m os em n os s os a rm á r ios pa r t icu la res . O armário é o nosso drama pessoal, e queremos ficar sozinhos dentro dele pa ra n os s en t ir bem n o s eu cen tro. É u m a s u cu len ta in felicida de. E qu er n os dem os con ta , qu er n ã o, a dora m os is s o. Porém, quando passamos pela experiência de abrir a porta e deixar u m pou co de lu z en t ra r , depois de term os vis to u m a vez qu e s eja o qu e é u m pou co de lu z gen u ín a den tro do a rm á r io, n u n ca m a is con s egu irem os n os m a n ter in defin ida m en te den tro dele. Pode n os cu s ta r a n os , m a s depois de a lgu m tem po irem os a b r ir a por ta . Uma maneira de entender os sesshins é que esses encontros fazem a por ta a b r ir -s e pa ra a lgu m a s pes s oa s . Por is s o é qu e os sesshins podem ser tão incômodos.

Em a lgu m m om en to com eça m os a ver qu e a qu ilo qu e a con -tece em n os s a vida n ã o é a qu es tã o; s em pre h a verá a lgo a con te-cen do. O qu e a con tece s em pre s erá u m a m es cla da qu ilo de qu e gostamos e de que não gostamos. Não há tempo em que isso cesse.

Page 230: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

No en ta n to, qu a n to m a is cien t is ta s n os tom a rm os , m en os n os em a ra n h a rem os n o qu e es tá a con tecen do e m a is s erem os ca pa zes de a pen a s obs erva r o qu e es tá a con tecen do. A ca pa cida de de fa zer is s o e a d is pon ib ilida de pa ra ta n to a u m en ta m com o pa s s a r dos a n os n a p rá t ica . No in ício es s a pos tu ra obs erva dora pode s er m ín im a . Nos s a in cu m bên cia é a u m en ta r n os s a a ber tu ra pa ra desenvolvê-la,

No fin a l, n ã o im por ta com o n os s en t im os . Nã o fa z d iferen ça s e es ta m os depr im idos , in qu ietos , fra gm en ta dos , felizes . A ta refa do a lu n o é obs erva r , viven cia r , tom a r con s ciên cia . Por exem plo, a depres s ã o, qu a n do com pleta m en te viven cia da , deixa de s er depres s ã o e torn a -se samadhi. A in qu ieta çã o ta m bém pode s er viven cia da e, qu a n do is s o a con tece, dá -s e u m des loca mento in tern o e n ã o tem os m a is de n os p reocu pa r com a n os s a in qu ieta çã o. Nen h u m a circu n s tâ n cia , n en h u m s en t im en to, es s a é a meta. O objetivo é a oportunidade de vivenciar.

Cos tu m a m os s u por qu e tem os de m ergu lh a r fu n do n a s "questões " ps icológica s s u bm ers a s e t ra ba lh a r com es s e m a ter ia l. Não é bem isso. Afinal de contas, onde essas questões se escondem? Nã o é s u pos içã o rea lm en te a cu ra da a de qu e exis ta m cois a s por ba ixo da con s ciên cia qu e irã o da r u m jeito de vir à ton a , em bora pos s a a s s im pa recer a n ós . Nos sesshins, podem os fica r em ocion a dos , t r is tes , des es pera dos , m a s es s a s emoções não são mistér ios es con d idos qu e a pa recem de repen te. Es s a s cois a s s ã o simples m en te o qu e s om os , e es ta m os viven cia n do qu em s om os . Qu a n do ten ta m os t ra ba lh a r pa ra qu e es s a s cois a s ven h a m à ton a , es ta m os a pen a s d ia n te de u m a ou tra form a de a u to-aperfeiçoa-m en to qu e n ã o fu n cion a . A p rá t ica n ã o é u m a qu es tã o de s en ta r pa ra qu e es s a s cois a s pos s a m em ergir e a s s im con s iga m os t ra ba -lhar com o material para nos tornarmos pessoas melhores. O fato é que já estamos bem. Não se trata de ir a nenhuma outra parte.

Bloqu ea m os n os s a percepçã o con s cien te com n os s a cu lpa e nossos ideais. Por exemplo, vamos supor que eu disse para alguém: "É s ó qu e n ã o s ou u m a boa p rofes s ora . Nã o lido com toda s a s s itu a ções de m a n eira per feita ". Qu a n do fico a pega da a es s e pen s a m en to, b loqu eio toda a m in h a ca pa cida de de a p ren der . A cu lpa e os idea is de com o eu d everia s er b loqu eia m a ú n ica cois a que de fato importa: uma clara percepção consciente: "Estou vendo o que aconteceu, eu realmente fiz uma bela confusão, não foi? Bom, o qu e pos s o a p ren der?". Um ou tro exem plo poder ia s er o do

Page 231: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

cozin h eiro p reocu pa do com o ja n ta r . Va m os s u por qu e o ja n ta r qu eim ou . O cozin h eiro n ã o tem de s e des ca bela r : "Oh ! é o fim do m u n do! O qu e a s pes s oa s vã o pen s a r de m im ? Eu a ca bo de qu eim a r tu do!". Nes s e pon to o qu e pode s er feito? Ba s ta p rocu ra r ca da peda ço de pã o qu e a in da h ou ver em ca s a e repa r t i-lo. Nã o é o fim do m u n do qu a n do o ja n ta r qu eim a , m a s a cu lpa in terd ita o aprendizado.

A ú n ica cois a qu e im por ta é a percepçã o con s cien te do qu e es tá a con tecen do. Qu a n do en tra m os pelo s etor dos idea is e da cu lpa , a s decis ões em s i torn a m -s e d ifíceis , porqu e n ós n ã o vem os com o ca ím os n a s a rm a d ilh a s da s n os s a s p reocu pa ções : "Será qu e is s o va i s ervir pa ra m im ? O qu e a con tecerá ? Será rea lm en te u m a boa m ed ida ? Min h a vida va i s e torn a r m a is s egu ra , m a is m a ra vilh os a , m a is per feita ?". Es s a s pergu n ta s s ã o er ra da s . Qu a is s ã o a s cer ta s ? E qu a is s ã o a s decis ões cer ta s ? Nã o podem os d izer a n tes , m a s , em a lgu m m om en to, s a berem os s e n ã o n os em a ra n h a rm os n a cu lpa , n os idea is e n o per feccion is m o qu e em gera l a cres cen ta m os a o n os s o p roces s o de tom a r decis ões . Sen ta r para praticar trata dessa espécie de clarificação.

Toda s a s técn ica s s ã o ú teis e toda s s ã o lim ita da s . Seja qu a l for a técn ica qu e in s er irm os em n os s a p rá t ica , ela n os s ervirá por a lgu m tem po, a té qu e deixem os rea lm en te de em pregá -la , qu e com ecem os a deva n ea r com ela ou a s on h a r . Sen do a s s im , o im por ta n te com qu a lqu er técn ica é a in ten çã o. Nos s a in ten çã o deve s er a de es ta rm os p res en tes , de tom a rm os con s ciên cia , de es ta rm os p ra t ica n do. E n in gu ém s u s ten ta es s a s in ten ções o tem po todo. Ela s s e m a n têm em ca rá ter in term iten te. Ta m bém qu eremos encon tra r u m profes s or qu e pa s s e a tom a r con ta d is s o por n ós ; todos n ós qu erem os s er s a lvos e cu ida dos . A in ten çã o de p ra t ica r é a cois a m a is im por ta n te. Nã o exis te técn ica qu e pos s a n os s a lva r , professor algum que venha nos salvar, centro algum que possa nos s a lva r . Nã o exis te nada qu e ven h a n os s a lva r . Es s e é o m a is cru el de todos os golpes.

Qu a n do t ra n s form a m os n os s a vida d ra m á t ica n u m a vida não-dra m á t ica , is s o qu er d izer qu e pega m os a n os s a vida de in ces s a n te bu s ca r , a n a lis a r , a lim en ta r es pera n ça s e s on h a r e a torn a m os u m es pa ço pa ra a pen a s viven cia r a vida ta l com o ela s e n os a pa rece, n es te exa to m om en to. O fa tor ch a ve é a percepção con s cien te, o m ero viven cia r da dor qu e é com o é. Pa ra doxalmente

Page 232: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

is s o é o con ten ta m en to. Nã o exis te n en h u m ou tro con tentamento na Terra, exceto este.

Es s a es pécie de p rá t ica s u r te u m efeito leta l: elim in a rá de m a n eira ir revers ível n os s o d ra m a . Ma s n ã o a n os s a pers on a lida de. Todos s om os d iferen tes e con t in u a rem os s en do a s s im . Con tu do, o d ra m a n ã o é rea l. É u m im ped im en to a u m a vida qu e flu i e pode ser atenciosa.

MENTE SIMPLES

A ú n ica m en te qu e pode en xerga r a vida de m a n eira t ra n s for-m a da é a s im ples . O d icion á r io defin e simples com o "ten do ou s en do com pos to por a pen a s u m a pa r te". A percepçã o con s cien te pode a bs orver u m a m u lt ip licida de de cois a s , da m es m a form a com o o olh o con s egu e ca p ta r m u itos deta lh es a o m es m o tem po. Ma s em s i m es m a a percepçã o con s cien te é u m a cois a s ó. E la perm a n ece in a ltera da , s em a crés cim os ou m odifica ções . A per -cepçã o con s cien te é com pleta m en te s im ples ; n ã o tem os de a cres -cen ta r n a da , n em de m odificá -la . É des preten s ios a e is en ta de a r rogâ n cia . Nã o pode evita r de s er a s s im , a percepçã o con s cien te n ã o é u m a cois a , pa ra s er a feta da por is to ou a qu ilo. Qu a n do vivemos a partir da pura percepção consciente, não somos afetados por n os s o pa s s a do, n em pelo p res en te, n em pelo fu tu ro. Um a vez qu e a percepçã o con s cien te n a da tem qu e pos s a s ervir -lh e de fingimento, é humilde. É modesta. Simples.

A p rá t ica d iz res peito a des en volver ou revela r u m a m en te s im ples . Por exem plo, m u ita s vezes ou ço a s pes s oa s s e qu eixa n do de qu e s e s en tem a s s oberba da s pela vida qu e es tã o leva n do. Es ta r a s s oberba do é es ta r s u b ju ga do por todos os ob jetos , pen s a mentos, a con tecim en tos da vida e s en t ir -s e em ocion a lm en te a feta do por eles , de ta l m odo qu e fica m os com ra iva e con tra r ia dos . Qu a n do n os s en t im os a s s im , podem os d izer e à s vezes d izem os cois a s qu e m a goa m os ou tros e a n ós m es m os . Diferen te da m en te s im ples , qu e exis te n a pu ra percepçã o con s cien te, con fu n d im o-n os pela multiplicidade do a m bien te extern o. Nes s e es ta do de con fu s ã o n ã o con s egu im os perceber qu e tu do o qu e é extern o é n ós . Nã o con s egu im os en xerga r qu e tu do exis te em n ós en qu a n to n ã o vivem os de 80 a 90% do tem po com a m en te s im ples . A p rá t ica

Page 233: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

t ra ta de des en volver es s a m en ta lida de. Nã o é fá cil. Requ er u m a inesgotável paciência, assiduidade e determinação.

No m eio des s a s im plicida de, des s a percepçã o con s cien te, en ten dem os o pa s s a do, o p res en te, o fu tu ro e com eça m os a s er m en os a feta dos pela a va la n ch e de exper iên cia s . Con s egu im os viver a p recia n do a s pes s oa s e s itu a ções e s en t in do u m a gen u ín a com pa ixã o. Nos s a vida deixa de revolver em torn o de ju lga m en tos como: "Oh, ele é tão duro comigo. Sou uma vítima total"; "Você fere m eu s s en t im en tos "; "Você n ã o é do jeito qu e eu qu ero qu e você seja".

Às vezes a s pes s oa s m e d izem qu e, depois dos sesshins, a vida s im ples m en te flu i, s em n en h u m prob lem a . As m es m a s qu es -tões con t in u a m exis t in do, m a s rep res en ta m m en os d ificu lda de. Is s o a con tece porqu e n o sesshin a m en te s e torn a m a is s im ples . Infelizm en te, n os s a ten dên cia é perder es s a s im plicida de porqu e recom eça m os a n os en reda r n o qu e pa rece s er u m a vida m u ito complexa em torno de nós. Sentimos que as coisas não são do jeito que queremos que elas sejam e começamos a espernear e a nos pôr à m ercê de n os s a s em oções . Qu a n do is s o a con tece, é com u m qu e nos comportemos de maneira destrutiva.

Qu a n to m a is tem po de p rá t ica t iverm os , m a is terem os pe-ríodos

breves n o com eço e depois m a is exten s os

em qu e s en t irem os qu e n ã o n os é n eces s á r io n os opor a os ou tros , m es m o qu a n do s eja m pes s oa s d ifíceis . Em vez de vê-la s com o prob lemas, com eça m os a a p recia r s u a s es qu is it ices , s em ten ta r con s er tá-las. Por exemplo, podemos desfrutar o fato de serem silenciosas demais, ou de fa la rem m u ito, ou de u s a rem m a qu ia gem dem a is . Des fru ta r o m u n do s em ju lgá -lo é o qu e con s t itu i u m a vida rea liza da . Sã o a n os e a n os de p rá t ica . E m es m o en tã o n ã o es tou qu eren do d izer qu e todos os p rob lem a s pos s a m s er viven cia dos s em u m a rea çã o; m es m o en tã o, ocor re u m a m u da n ça in tern a e n os a fa s ta m os da vida de rea ções a pen a s , n a qu a l tu do o qu e a con tece pode mobilizar nossas defesas prediletas.

A m en te s im ples n ã o é m is ter ios a . Na m en te s im ples , a percepção, consciente apenas é. Aberta, transparente. Não há nada com plica do a s eu res peito. Pa ra a m a ior ia da s pes s oa s , qu a s e todo o tem po, porém , é u m a pos tu ra in tern a em gra n de pa r te in a ces s ível. Ma s qu a n to m a ior o con ta to com a m en te s im ples , m a is verem os qu e tu do é n ós e m a is n os s en t im os res pon s á veis

Page 234: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

por tudo. Quando percebemos de que maneira estamos vinculados, temos de agir de outra forma.

Qu a n do fica m os p res os n os fios de n os s os p rópr ios pen s a -m en tos , n ã o es ta m os fa zen do o n os s o t ra ba lh o

s en tin do o

pa s s a do e o fu tu ro, tu do n o p res en te. Ch ega m os a té a im a gin a r qu e s e es ta m os is ola dos n u m a pos en to, s em m a is n in gu ém , a pe-n a s con tra r ia n do-n os , is s o es tá cer to. A verda de porém é qu e, qu a n do n os la rga m os des s a form a , n ã o es ta m os fa zen do o n os s o t ra ba lh o, e a n os s a vida é a feta da em s u a tota lida de. Qu a n do m a n tem os a percepçã o con s cien te, qu er n os in teirem os d is s o, qu er não, uma cura está ocorrendo. Se praticarmos por um tempo longo o ba s ta n te, com eça rem os a en xerga r a verda de: ch ega rem os a en ten der qu e o "a gora " a colh e o pa s s a do, o fu tu ro e o p res en te. Quando conseguimos sentar para praticar com uma mente simples, s e fica m os em a ra n h a dos em n os s os pen s a m en tos , a lgo a os pou cos s e es boça e u m a por ta qu e es teve a té en tã o fech a da com eça a s e a b r ir . Pa ra qu e is s o ocorra , tem os de t ra ba lh a r com a n os s a ra iva , com a n os s a con tra r ieda de, com n os s os ju lga m en tos , com a autopiedade, com as idéias de que o passado determina o presente. Con form e es s a por ta s e a b re, vem os qu e o p res en te é a bs olu to e qu e, em cer to s en t ido, o u n ivers o in teiro com eça n es te exa to m om en to, a ca da s egu n do. E a cu ra da vida es tá n es s e s egu n do de pura percepção consciente.

Sa ra r é s em pre o es ta r s im ples m en te a qu i, com u m a m en te simples.

DOROTHY E A PORTA TRANCADA

Todos es ta m os em bu s ca de a lgu m a cois a . A m a ior ia dos s eres h u m a n os s en te u m a es pécie de fa lta , de a lgo in com pleto, e busca algo que preencha o buraco que sentem. Mesmo aqueles que d izem : "Nã o es tou bu s ca n do n a da ; es tou con ten te com a m in h a vida ", ta m bém es tã o em u m a bu s ca a s eu p rópr io m odo. As s im , a s pes s oa s vã o pa ra es ta ou a qu ela igreja , pa ra os cen t ros zen ou de ioga , com pa recem a workshops de cres cim en to pes s oa l

n a esperança de encontrar essa peça que falta.

Qu ero fa la r com vocês s obre u m a ga rota ch a m a da Doroth y. Ela n ã o m orou n o Ka n s a s , m a s em Sa n Diego, n u m a im en s a ca s a

Page 235: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

em es t ilo vitor ia n o. Su a fa m ília m ora va n o s ola r h á vá r ia s gera ções . Todos t in h a m s eu p rópr io qu a r to, e h a via a pos en tos ext ra s e cu b ícu los por toda pa r te, a lém de u m s ótã o e u m porã o. Qu a n do Doroth y a in da era u m a ga rot in h a , ela a p ren deu qu e a lgo de es t ra n h o h a via n a qu ela ca s a : n o ú lt im o a n da r da qu ela velh a m a n s ã o vitor ia n a h a via u m qu a r to t ra n ca do. Há ta n to tem po qu a n to a s pes s oa s con s egu ia m s e lem bra r , a qu ele qu a r to s em pre perm a n ecera t ra n ca do. Corr ia m ru m ores de qu e u m d ia fora a ber to, porém n in gu ém s a b ia o qu e h a via lá den tro. A fech a du ra da qu ela por ta era es tra n h a e n in gu ém ja m a is con s egu ira en con -t ra r u m a m a n eira de a b r i-la . As ja n ela s da qu ele a pos en to ta m bém es ta va m de a lgu m m odo b loqu ea da s . Um a vez Doroth y s u b iu n u m a es ca da pelo la do de fora da ca s a e ten tou ver o qu e h a via lá dentro, mas não conseguiu ver nada.

A m a ior ia da s pes s oa s da qu ela fa m ília es ta va s im ples m en te h a b itu a da a o a pos en to com s u a por ta t ra n ca da . Sa b ia m qu e es ta -va lá , m a s n ã o qu er ia m s e im por ta r com is s o. Por es s a ra zã o era a pen a s u m a cois a qu e m en cion a va m , Doroth y porém era d iferen te. Des de o tem po em qu e era m u ito pequ en in a a in da ficou obceca da com es s e qu a r to e com o qu e h a ver ia den t ro dele. E la a ch a va qu e ela precisava abri-lo.

Qu a s e tu do a res peito da vida de Doroth y era n orm a l pa ra u m a ga rot in h a da qu ele ta m a n h o. Ela cres ceu , fizeram-lh e t ra n ça s no cabelo, tornou-se adolescente, cortou o cabelo segundo a última m oda , t in h a u m a a m iga in s epa rá vel, u m a m igo in s epa rá vel, fica va toda excitada com as últimas novidades no campo da maquiagem e com a m a is n ova ca n çã o de s u ces s o. E la era ba s ta n te n orm a l. Toda via n u n ca des is t iu de s u a obs es s ã o pelo qu a r to t ra n ça do. De cer to m odo, is s o dom in a va a s u a vida . Às vezes ela s u b ia a té o ú lt im o a n da r e s en ta va -s e d ia n te da por ta e perm a n ecia a pen a s olhando para ela, indagando-se sobre o que haveria por trás.

Qu a n do Doroth y ficou u m pou co m a is velh a , ela s en t ia o qu a r to com o u m a pos en to liga do a o qu e lh e fa zia fa lta n a vida . Por is s o deu in ício a vá r ios t ipos de t rein a m en tos e p rá t ica s n a es pera n ça de en con tra r o s egredo qu e lh e perm it ir ia a b r ir a porta. Ten tou de tu do: foi a vá r ios cen tros , con s u ltou d ivers os p rofes -s ores , bu s ca n do a fórm u la pa ra des t ra n ca r a por ta . Pa r t icipou de workshops, pa s s ou por p roces s os de ren a s cim en to, h ipn os e e m u ito m a is . Fez de tu do. Na da , con tu do, des t ra n ca va a por ta para ela . Su a bu s ca p ros s egu iu du ra n te m u ito tem po, a o lon go de todos

Page 236: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

os a n os da u n ivers ida de e pós -gra du a çã o. Ela cr iou técn ica s pa ra s e leva r a vá r ios es ta dos a ltera dos de con s ciên cia , e con t in u a va ainda assim incapaz de abrir aquela porta.

En tã o u m d ia , qu a n do ch egou em ca s a , n otou qu e ela es ta va des er ta . E la s u b iu a té o ú lt im o a n da r e s en tou -s e em fren te da porta trancada, Usando uma de suas práticas esotéricas ela entrou n u m es ta do p rofu n do de m ed ita çã o. Obedecen do a u m im pu ls o, es ten deu a m ã o e em pu rrou a por ta

qu e com eçou a a b r ir . Ela

es ta va elet r iza da . Em todos a qu eles lon gos a n os de ten ta t iva s pa ra a b r ir a por ta , n a da pa recido com a qu ilo h a via ocorr ido. Doroth y s en t iu m edo e excita çã o a o m es m o tem po. Trem en do, forçou -s e a atravessar aquela porta. Foi quando descobriu...

Des a pon ta m en to e con fu s ã o. Doroth y en con trou -s e n ã o n u m n ovo, ou es t ra n h o, ou m a ra vilh os o es pa ço n a qu ele a pos en to m is -ter ios o, m a s im ed ia ta m en te de volta a o p is o tér reo da qu ela velh a casa vitoriana, em meio a todas as coisas antigas e tão conhecidas. Era a m es m a pers pect iva , ela es ta va n a m es m a loca liza çã o com a m es m a con h ecida m obília de s em pre. Tu do era a pen a s com o s em pre t in h a s ido. Decepcion a da e in tr iga da a o m es m o tem po, a lgu m a s h ora s depois ela s u b iu a s es ca da s a té o ú lt im o a n da r e en t rou n o a pos en to m is ter ios o. A por ta a in da es ta va t ra n ca da . Dorothy havia aberto a porta e não havia aberto a porta.

A vida s egu iu em fren te. Doroth y ca s ou -s e. Teve u m ca s a l de filh os . Ain da m ora va n a m es m a ca s a vitor ia n a , com s u a fa m ília . Era u m a boa es pos a e u m a boa m ã e. Ain da a s s im , n u n ca des is t iu de s u a obsessão. Aliá s , s u a ú n ica exper iên cia de ter a ber to a por ta motivava-a s em pre m a is . E la pa s s a va m u ito tem po n o ú lt im o a n da r d ia n te da por ta t ra n ca da , de pern a s cru za da s , ten ta n do abri-la . J á o h a via feito u m a vez, poder ia fa zê-lo de n ovo. E com cer teza , depois de ta n tos a n os ten ta n do, a con teceu de n ovo: ela em pu rrou a por ta e es ta s e a b r iu . Excita da , ela pen s a va : "Hoje é o d ia !". Atra ves s ou a por ta

e ou tra vez s e en con trou n o tér reo da mesma velh a ca s a vitor ia n a , on de m ora va com o m a r ido e os filh os . Correu de n ovo a té o ú lt im o a n da r a té o a pos en to m is ter ios o e o que encontrou? A porta continuava trancada.

O qu e s e pode fa zer? Um a por ta t ra n ca da é u m a por ta t ra n ca da . Doroth y deu con t in u ida de à s u a vida . Ficou com os ca belos gr is a lh os . Con t in u a va pa s s a n do u m bom tem po s en ta da d ia n te da por ta t ra n ca da . Era u m a es pos a e m ã e ba s ta n te boa ,

Page 237: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

m a s s u a a ten çã o a in da s e d ir igia s obretu do pa ra a por ta t ra n ca da . E ela era u m a pes s oa pers is ten te, a s s ídu a : n ã o des is t ia a s s im tã o fá cil. De tem pos em tem pos , ela con s egu ia pa s s a r pela por ta e en t ra r n o a pos en to, porém s em pre era rem et ida de volta a o tér reo, exatamente para o plano onde levava a sua vida.

Du ra n te todo es s e tem po a ca s a foi a os pou cos s en do p reen -ch ida com cois a s . Os m em bros da fa m ília pa recia m a cu m u la r ca da vez m a is cois a s e os qu a r tos ext ra s torn a ra m -s e depós itos de lixo. A ca s a foi fica n do tã o en tu p ida qu e n ã o h a via m a is es pa ço pa ra os convidados, e qu a s e qu e os m ora dores ta m bém fica ra m s em o s eu . Nã o h a via es pa ço pa ra m a is n a da n a ca s a exceto pa ra Doroth y, o m a r ido e os filh os , o qu e ta m bém es ta va ót im o porqu e es ta va m todos tã o p reocu pa dos com s u a s p róp r ia s pes s oa s qu e m a l conseguiam pensar em tomar conta de alguma outra coisa.

Aos pou cos , a obs es s ã o de Doroth y es ga rçou -s e. Su a lu ta para abrir aquela porta começou a ficar obsoleta. Em vez de passar ta n to tem po d ia n te da por ta , ela com eçou a fica r u m pou co m a is com os filh os e n etos , tom a n do ta m bém con ta da ca s a : os p is os fora m ren ova dos , a s cor t in a s t roca da s etc. A ca s a n ã o es ta va em m a u es ta do, m a s h a via s ido u m pou co n egligen cia da , porqu e Doroth y t in h a s e ocu pa do a pen a s de s eu p rojeto de s en ta r d ia n te da por ta . Su a a ten çã o len ta m en te foi des loca da de voíta pa ra o cuidado necessário às coisas diárias que precisavam ser atendidas. Foi u m len to p roces s o. Às vezes ela a in da s u b ia a té o ú lt im o a n da r e olh a va pa ra a por ta , m a s s e a a b r is s e s a b ia o qu e ir ia en con tra r . Mu ito deva ga r , o des en cora ja m en to e o des a pon ta m en to instalaram-s e. Ca da vez m a is ela s e es qu ecia de tu do o qu e n ã o fos s e s ó viver s u a vida , tom a n do con ta da s cois a s de u m m om en to pa ra ou tro. E en tã o u m d ia ela s u b iu a té o ú lt im o a n da r e por a ca s o olh ou pa ra a por ta qu e es ta va t ra n ca da . Ua u ! Es ta va es ca n ca ra da ! Lá den tro, p len a m en te vis ível, es ta va u m con for tá vel qu a r to pa ra h ós pedes . Ha via u m a bela ca m a e u m a côm oda e todos os pequ en os a ces s ór ios qu e torn a r ia m con for tá vel a qu ele quarto para um hóspede.

Ao ver a qu ele es pa ços o e delicios o qu a r to de h ós pedes , Doroth y percebeu n o qu e h a via s e torn a do o res to da ca s a . E la via com o tu do es ta va en tu lh a do e con fu s o e com o era d ifícil a n da r livrem en te pela ca s a . Dia n te des s a con s ta ta çã o a m u da n ça com eçou . Sem qu e fizes s e m u ito a lgu m a cois a , os a pos en tos da qu ela velh a m a n s ã o vitor ia n a com eça ra m a desentulhar-s e por

Page 238: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

s i. Com eçou a h a ver m a is es pa ço pa ra a s cois a s e a s pes s oa s n a qu ela ca s a . Apa receu es pa ço. Era com o s e todo o m on te de cois a s fos s e im a ter ia l, lixo fa n ta s m a gór ico. Nem es ta va lá rea l-m en te, a fin a l de con ta s . A ca s a voltou a o qu e t in h a s em pre s ido. Aliás, sempre tinha existido muito espaço para convidados, e agora Doroth y perceb ia qu e a por ta n u n ca es t ivera t ra n ca da , pa ra in ício de con vers a . Sem pre es t ivera a ber ta . Só s u a r ígida pos tu ra de empurrá-la mantivera-a fechada.

Es s a é a n os s a ilu s ã o es s en cia l a res peito da p rá t ica : qu e a por ta es tá t ra n ca da . A ilu s ã o é in evitá vel: todos a tem os , n u m gra u ou n ou tro. En qu a n to pen s a rm os qu e a por ta es tá t ra n ca da , ela es tá t ra n ca da . Pa ra ten ta r a b r i-la fa zem os de tu do. Va m os a todo cen tro pos s ível, pa r t icipa m os de workshops, experimentam os is s o e aquilo, para, por fim, descobrirmos que nunca esteve fechada.

Apes a r d is s o, a vida de es forços in ú teis qu e Doroth y levou pa ra ela foi per feita . Era is s o qu e ela p recis a va fa zer . Na da de, é is s o qu e todos n ós tem os de fa zer . Tem os de da r à n os s a p rá t ica tu do o qu e tem os pa ra con s egu irm os perceber qu e, des de o in ício, n ã o exis te s en ã o per feiçã o. O qu a r to es tá a ber to, a ca s a es tá a ber ta , s e n ã o a en tu lh a rm os com lixo in exis ten te. Ma s n ã o exis te meio de sabermos disso antes de sabermos disso.

Um a form a de d is cip lin a es p ir itu a l cr is tã é a p rá t ica da p res en ça de Deu s . Com o cr is tã os , es ta m os em bu s ca da qu ela ra d ia çã o em toda s a s cois a s qu e os m ís t icos ch a m a m de a fa ce de Deu s . Es s a ra d ia çã o n ã o es tá es con d ida em a lgu m lu ga r m u ito d is ta n te, m a s bem a qu i e a gora , exa ta m en te em ba ixo do n os s o n a r iz: Da m es m a form a , Doroth y percebeu qu e a qu ilo qu e t in h a bu s ca do s u a vida in teira era s im ples m en te a s u a p rópr ia vid a: as pes s oas , a cas a, os quartos . Tod os es tes eram a face d e Deus .

Nós porém n ã o en xerga m os is s o. Se rea lm en te o vís s em os , n ã o tor tu ra r ía m os os ou tros n em a n ós da m a n eira com o o fa zem os . Nã o s om os gen t is ; s om os m a n ipu la dores , des on es tos . Se vís s em os qu e es s a vida qu e es ta m os leva n do é a p rópr ia fa ce de Deu s , n ã o s er ía m os ca pa zes de n os com por ta r des s a s m a n eiras, n ã o em ra zã o de a lgu m m a n da m en to ou in terd içã o, m a s s ó porqu e veríamos a vida tal como ela é.

Não é que a prática sentar-se diante da porta seja inútil, m a s u m a gra n de pa r te do qu e ch a m a m os p rá t ica

ca ça r ideais ou a ilu m in a çã o

é u m a ilu s ã o. Is s o n ã o a bre a por ta . En qu a n to

Page 239: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

n ã o en xerga rm os es s e fa to com a m es m a cla reza com qu e com em os n os s o m in ga u de a veia pela m a n h ã , terem os de a t ra ves s a r m u itos des vios e a ta lh os , m u itos des a pon ta m en tos e enfermidades que são nossos mestres na vida. Todas essas lutas fa zem pa r te do a p ren d iza do rela t ivo à por ta . Se p ra t ica m os bem , m a is cedo ou m a is ta rde es s e qu ebra -ca beça fica m a is cla ro e a porta abre-se com mais freqüência.

ALUNA: Pa rece qu e Doroth y poder ia ter perd ido m en os tem po s e t ives s e s en ta do n a cozin h a , n o m eio de s u a fa m ília e de s eu s a fa zeres cot id ia n os , em vez de s e ret ira r pa ra o ú lt im o a n da r da casa, distante de tudo o mais.

JOKO: Sem pre bu s ca rem os lá on de pensamos qu e a res pos ta es tá en qu a n to n ã o es t iverm os p ron tos pa ra en xerga r . Fa zem os o qu e fa zem os a té qu e n ã o o fa zem os m a is . Is s o n ã o é bom n em m a u ; é só como as coisas são. Temos de desbastar-nos de nossas ilusões. Se d is s erm os pa ra n ós m es m os : "O ca m in h o pa ra a b r ir a por ta es tá em fica r m a is tem po com m eu s filh os ", ta m bém is s o s e torn a a pen a s u m a ou tra idéia obs es s iva . Pa s s a r tem po com m eu s filh os pa ra torn a r -m e ilu m in a da ta lvez n ã o vá m e torn a r u m a m ã e melhor, afinal de contas.

ALUNA: A p rá t ica n ã o d iz res peito a a b r ir o cora çã o? Nã o é is so que Dorothy estava realmente tentando fazer?

JOKO: Sim , es s a é u m a form a de des crever a cois a . E ela descobriu que...?

ALUNO: Que seu coração já estava aberto.

JOKO: Cer to. Os pa is qu e n ã o con s egu im os a gü en ta r , o pa rceiro qu e n os m a goou , o a m igo qu e ir r ita : n ã o h á n a da de er ra do com eles , a m en os qu e pen s em os qu e h á . En qu a n to n ã o estivermos prontos para ver isso porém, não o veremos.

ALUNO: Se a h is tór ia é a res peito de u m qu a r to de h ós pedes , então Dorothy nunca nem chegou a pensar em ter convidados.

JOKO: Certo. Ela nem pensaria nisso.

Nós pen s a m os : "Eu dever ia s er m a is s im pá t ico, m a is edu cado, m a is h os p ita leiro". Con tu do, s e es ta m os em a ra n h a dos em n os s a s ilu s ões , n ã o podem os s er verda deira m en te h os p ita leiros . Até des em pen h a m os os m ovim en tos n es s e s en t ido, m a s s er de fa to h os p ita leiro s ign ifica s er a pen a s qu em s e é, com o s om os . Nã o

Page 240: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

podem os a colh er n in gu ém em n os s a ca s a s e p r im eiro n ã o t iverm os acolhido a nós mesmos.

ALUNO: Qu a n do es ta m os em a ra n h a dos em n os s os m elodra m a s pes s oa is , com o Doroth y es ta va , n ã o es ta m os verdadeira m en te d is pon íveis a os ou tros . Qu a n do en xerga m os m a is a lém de n os s o m elodra m a pes s oa l, con s egu im os ver com m a is objetividade as necessidades dos outros e responder a elas.

JOKO: Sim . Todos n ós já pa s s a m os pela exper iên cia de es ta rm os tã o con tra r ia dos qu e s im ples m en te s om os in ca pa zes de ou vir os p rob lem a s de u m ou tro in d ivídu o. Nã o tem os es pa ço pa ra is s o. Todo o n os s o es pa ço es tá ocu pa do com n os s a s p rópr ia s cois a s . Nã o tem os n en h u m "qu a r to de h ós pedes ". Mes m o a s s im , n ã o podem os s im ples m en te d izer "Nã o vou fica r obceca da " e des e-ja r qu e is s o a con teça . Pois en tã o a ch a m os qu e a in da h á u m buraco em nossa vida, que temos de destrancar a porta e descobrir o que está do outro lado.

ALUNO: Min h a p rá t ica tem s ido u m a s ér ie de decepções . Eu im a gin o: "Es s e workshop va i res olver es s a s itu a çã o pa ra m im ". Pa r t icipo dele e em bora pos s a s er ú t il de a lgu m a m a n eira , em ú lt im a a n á lis e é des a pon ta dor . Ach o m u ito d ifícil s im ples m en te perm a n ecer com o m eu des a pon ta m en to, s en t ir a m in h a vu ln era -b ilida de. Em vez d is s o, en cu bro-os de a lgu m a form a e d igo pa ra m im m es m o: "Ba s ta con t in u a r ten ta n do. Vou des cobr ir u m ou tro workshop".

ALUNO: Sin to qu e perd i m u ito tem po e en ergia , qu e des perd icei m om en tos p recios os de m in h a vida qu eixa n do-m e de m eu s pa is e de m in h a s con d ições de vida , tu do n o es forço d e destrancar a porta.

JOKO: Nã o a d ia n ta n a da olh a r pa ra t rá s e d izer : "Eu dever ia ter s ido d iferen te". Nu m da do m om en to, s om os do jeito qu e s om os e vem os o qu e s om os ca pa zes de ver . Por es s a ra zã o, a cu lpa sempre é inapropriada.

ALUNA: Parece com o s e t ivés s em os qu e a t ra ves s a r u m cer to ta n to de s ofr im en to. Tem os de s er cru cifica dos a n tes de n os entregar.

JOKO: Sem exa gera rm os n a d ra m a t iza çã o des s e a s pecto, is s o é verdade. Somos muito teimosos. E isso também está certo.

Page 241: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNA: Doroth y con s egu iu des fru ta r s u a vida ? Me in com oda que alguém tenha de lutar por tanto tempo.

JOKO: Sim, imagino que ela às vezes desfrutou sua vida, antes m es m o de ter vis to o qu e era . Todos n ós des fru ta m os a n os s a vida à s vezes . Ma s por ba ixo do con ten ta m en to e da gra t ifica çã o es tá a ansiedade. Ainda estamos em busca de algo atrás da porta e temos m edo de n u n ca o en con tra rm os . Pen s a m os : "Se eu t ives s e is to ou a qu ilo s er ia feliz". Um a época de m om en tos p ra zeros os n ã o elim in a es s a in qu ietu de s u b lim in a r . Nã o exis tem a ta lh os . Devem os en fim en xerga r qu em s om os e o qu e é es s e a pos en to qu e es tá a t rá s da porta.

ALUNO: Com igo o s en t im en to qu e es tá por ba ixo de tu do é o m edo. É com o u m a cor ren te s u b ter râ n ea s u t il qu e flu i ju n to com tudo o que eu faço. Minha vida toda não fui plenamente consciente dele, mas ele estava lá, dirigindo a minha vida.

JOKO: Qu a n do s en ta m os pa ra p ra t ica r , leva m os n os s a a ten çã o pa ra es s a s u t il cor ren te s u b ter râ n ea . Is s o qu er d izer n ota r n os s os pen s a m en tos e a s s u t is con tra ções de n os s o corpo. Pa ra Doroth y is s o a con teceu qu a n do s u a obs es s ã o com a por ta t ra n ca da com eçou a a b ra n da r e ela com eçou a p res ta r m a is a ten çã o n a s con d ições do res to da ca s a . Su a s es pera n ça s começaram a morrer.

ALUNA: Basta que tomemos conta de nossas tarefas imediatas.

JOKO: Cer to. E tom a r con ta do qu e p recis a s er cu ida do remete-nos de volta ao que somos neste momento.

Na h is tór ia s obre Doroth y o qu e vocês pen s a m a cerca dos aposentos entulhados na casa?

ALUNO: Apegos . Pen s a m en tos a res peito de u m m on te de coisas. Recordações.

JOKO: Recordações, fantasias, esperanças.

ALUNA: Pa rece qu e, qu a n do tem os u m a cois a im ed ia ta a fa zer , n os s a ten dên cia é foca liza r , em vez d is s o, o m edo, ou a a n s ieda de, ou qu a lqu er ou tra cois a

a por ta t ra n ca da

e es qu ecer de prestar atenção na tarefa que está à nossa frente. De certo modo, o m edo (ou o qu e for ) é ir releva n te. Exis te es s a ta refa a s er feita e s ó p recis a m os fa zê-la , com ou s em m edo. Lu to con tra a m in h a vida

Page 242: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

porqu e em vez de fa zer o qu e p recis a s er feito, eu lu to con tra o medo subliminar, tento destrancar aquela porta.

JOKO: Cer to. Pa ra doxa lm en te, o ú n ico m eio de a b r ir a por ta é esquecendo a porta.

Os a lu n os cos tu m a m qu eixa r -s e com igo de qu e, qu a n do s e s en ta m pa ra p ra t ica r , a lgo in terfere em s u a percepçã o con s cien te: "Fico a éreo"; "Fico tã o n ervos a ! Nã o con s igo fica r qu ieta ". Por t rá s des s a s qu eixa s es tá o pen s a m en to de qu e, a fim de s en ta r e p ra t ica r com a lgu m a eficiên cia , tem os de n os livra r de toda s a s cois a s des a gra dá veis ; a por ta t ra n ca da tem de s er a ber ta pa ra podermos alcançar todas as coisas agradáveis.

Se es ta m os a éreos , es ta m os a éreos . Se es ta m os n ervos os , es ta m os n ervos os . Es s a é a rea lida de de n os s a vida n a qu ele m om en to. Um a boa p rá t ica s en ta da s ign ifica s im ples m en te es ta r presente com isso: ser esse nervosismo ou esse alheamento.

As pes s oa s s e dã o a im en s os t ra ba lh os qu a n do s e t ra ta de elim in a r s en t im en tos des a gra dá veis . "Es tou ten s o; ten h o de pa r t icipa r de u m workshop pa ra rela xa r ." En tã o a pes s oa va i pa ra o workshop e is s o a fa z rela xa r

m a s por qu a n to tem po? Qu erer a livia r a ten s ã o é com o olh a r pa ra a por ta t ra n ca da , ten ta n do im a gin a r o m odo de a b r i-la . Se n os obceca rm os com es s a idéia de a b r ir a por ta , poderem os des cobr ir técn ica s de a b r i-la por a lgu n s m om en tos ; m a s en tã o irem os n os perceber rem et idos de volta a n os s a s vida s , ta l com o ela s s ã o, viven do n a m es m a velh a ca s a de s em pre. Em vez de n os obceca rm os com a por ta t ra n ca da , p recis a m os ir toca n do a n os s a vida a d ia n te, o qu e s ign ifica lim pa r a casa, tomar conta das crianças, ir para o trabalho etc.

ALUNA: Um a a m iga e eu es tá va m os h á pou co fa la n do de com o t ín h a m os t ido u m a n o d ifícil. En qu a n to es tá va m os com vin te, t r in ta a n os , n ós .du a s t ín h a m os es pera n ça s de qu e a s cois a s fos -s em m elh ora r pa ra n ós . Agora , n a ca s a dos qu a ren ta , ch ega m os à des a n im a dora con clu s ã o de qu e is s o n ã o irá a con tecer : n os s a s vidas não vão melhorar em nada!

JOKO: Pa ra doxa lm en te, es s a doloros a decepçã o com o fu tu ro ajuda-n os a a p recia r a vida com o ela é. Só qu a n do des is t irm os da es pera n ça de qu e a s cois a s fiqu em m elh ores é qu e poderem os chegar à constatação de como elas estão bem do jeito que estão.

Page 243: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

ALUNO: Há pou co tem po t ive u m a percepçã o s em elh a n te. Durante a n os eu viera m e d izen do qu e m in h a vida s er ia m elh or qu a n do eu t ives s e pou pa do d in h eiro s u ficien te pa ra viver em s em i-apos en ta dor ia . Ter ia m a is tem po pa ra u m s erviço volu n tá r io. Ter ia m a is tem po de fa zer u m a p rá t ica m a is con s is ten te, de ler m a is etc. Agora es tou com eça n do a m e da r con ta de qu e o qu e p recis o fa zer es tá ju s ta m en te a qu i, n o t ra ba lh o. Se es tou ten ta n do term inar a lgu m a cois a e a lgu ém en tra e m e d is t ra i, is s o é ju s ta m en te o qu e p recis o fa zer n a qu ele in s ta n te. O qu e eu dever ia es ta r fa zen do é exatamente o que estou fazendo.

JOKO: Pa ra con clu ir , va m os pergu n ta r a n ós m es m os : "Com o é qu e es tou ten ta n do des t ra n ca r a por ta em vez de es ta r s im ples -mente viven do a m in h a vida ?". Todos es ta m os ten ta n do des t ra n car a porta, encontrar a fórmula certa. Estamos em busca do professor cer to, do pa rceiro per feito, do em prego in a cred itá vel etc. Con s ta ta rm os qu e es ta m os ten ta n do des t ra n ca r a por ta é imensamente valioso; ajuda-nos a ver o que nossa vida realmente é.

PEREGRINAR NO DESERTO

Peregr in a r n o des er to em bu s ca da Ter ra Prom et ida : eis o qu e a n os s a vida é. A d is cip lin a do sesshin in ten s ifica es s a im pres s ã o da peregr in a çã o; o sesshin pa rece qu e n os con tu n de, desestimu-la, decepcion a . Podem os ter lido livros qu e ret ra ta m u m a bela im a gem da Terra Prom et ida , do qu e é ch ega r à percepçã o con s cien te da n a tu reza bu da , da ilu m in a çã o etc. No en ta n to, percebemo-nos peregr in a n do. O m á xim o qu e podem os fa zer é s im plesmente s er a p rópr ia peregr in a çã o. Ser a peregr in a çã o s ign ifica s er ca da m om en to do sesshin, s eja e!e qu a l for . Qu a n do s obrevivemos, ten do a t ra ves s a do a a r idez e a s ede, ch ega m os ta lvez a u m a descoberta: peregrinar pelo deserto é a Terra Prometida.

É m u ito du ro com preen derm os is s o. Con h ecem os n os s a dor e n os s o s ofr im en to. Qu erem os qu e o s ofr im en to a ca be. Qu eremos chegar na Terra Prometida, onde o sofrimento não existe mais.

Page 244: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

Em s eu t ra ba lh o com m or ibu n dos e pes s oa s gra vem en te per tu rba da s , Steph en Levin e * obs erva qu e a verda deira cu ra a con tece qu a n do en tra m os com ta n ta p rofu n d ida de em n os s a dor qu e n ã o a vem os m a is com o a nossa dor a pen a s , e s im com o a dor d e tod o m und o. É im en s a m en te m obiliza dor e s olida r iza n te descobrir que minha dor não é exclusiva. A prática ajuda-n os a ver que o universo inteiro está na dor.

Pode-s e obs erva r o m es m o a s pecto qu a n to a os rela cion a -m en tos . Nos s a ten dên cia é pen s a r n eles com o even tos d is cretos n o tem po: com eça m , du ra m a lgu m tem po e term in a m . No en ta n to, sempre estamos em relacionamentos, sempre vinculados a alguém. Nu m a cer ta a ltu ra da h is tór ia , u m a rela çã o pode s e m a n ifes ta r de u m a form a pa r t icu la r , m a s a n tes des s a m a n ifes ta çã o es s a liga çã o já exis t ia e, depois qu e ela "term in a r", con t in u a rá . Continuamos em a lgu m a es pécie de rela çã o m es m o com a qu eles qu e já faleceram. Antigos amigos, amores e parentes continuam em nossa vida e s ã o pa r te de qu em s om os . Pode s er n eces s á r io qu e a m a n ifes ta çã o vis ível term in e, m a s a rela çã o rea l n u n ca a ca ba . Nã o es ta m os rea lm en te s epa ra dos u n s dos ou t ros . Nos s a s vida s es tã o reu n ida s ; exis te s ó u m a dor , s ó u m con ten ta m en to, e é o n os s o. As s im qu e en ca ra rm os a n os s a p rópr ia dor e es t iverm os d is pos tos a viven ciá -la , em vez de a d is fa rça rm os , evita rm os ou ra cion a liza rm os , ocor rerá u m des loca m en to in ter ior qu a n to à nossa visão de nós, de nossa vida e dos outros.

Com o obs erva Steph en Levin e, ca da m om en to em qu e pers evera m os com a s n os s a s d ificu lda des e s ofr im en tos é u m a pe-qu en a vitór ia . Ao perm a n ecerm os com a n os s a dor e com a n os s a irritabilidade, abrim os a n os s a rela çã o pa ra a vida e pa ra os ou tros . O p roces s o é len to; n os s o pa drã o n ã o s e rever te da n oite pa ra o d ia . Lu ta m os n u m a ba ta lh a in ces s a n te en t re o que qu erem os e o qu e é, a qu ilo qu e o u n ivers o n os a p res en ta . No sesshin, n ós vem os es s a ba ta lh a con ju n ta com m a is n it idez. Vem os a s n os s a s fa n ta s ia s , n os s os es forços pa ra en ten der a s cois a s e pa ra defen der n os s a s teor ia s ; vem os n os s a s es pera n ça s de en con tra r u m a por ta de a ces s o pa ra a Ter ra Prom et ida , on de toda lu ta e todo s ofr im en to ces s em de vez. Qu erem os , qu erem os , qu erem os u m a cer ta pes s oa , um certo relacionamento, um certo trabalho. Uma vez que nenhum qu erer des s es pode a lgu m d ia s er com pleta m en te res olvido, tem os

* Stephen Levine, Healing into life and death, Nova York: Doubleday, 1987.

Page 245: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

u m a ten s ã o e u m a a n s ieda de in ces s a n tes qu e a com pa n h a m de perto nossos quereres. São gêmeos inseparáveis.

Às vezes , é ú t il a cen tu a r a a n s ieda de, ch ega n do n u m pon to em qu e s im ples m en te n ã o a con s iga m os m a is tolera r . En tã o, podemos estar dispostos a recuar e, a distância de um passo atrás, ter u m a ou tra m a n eira de olh a r pa ra o qu e es tá a con tecendo. Em vez de nos preocuparmos interminavelmente com o que está errado lá fora

com o pa rceiro, o t ra ba lh o, ou ou tra cois a , podem os

com eça r a m u da r n os s a rela çã o com o qu e é. Apren dem os a s er a qu ilo qu e s om os n es te m om en to, n es te rela cion a m en to ou n a qu ele a s pecto a borrecido de n os s o t ra ba lh o. Com eça m os a en xerga r a liga çã o en tre n ós e os ou tros . Vem os qu e a n os s a dor ta m bém é a deles , e qu e a dor deles ta m bém é a n os s a . Por exem plo, u m a m édica qu e n ã o tem u m a rela çã o com s eu s pa cien tes irá vê-los s im ples m en te com o u m prob lem a a t rá s do ou tro, p rob lem a s a s erem es qu ecidos a s s im qu e s a írem de s eu con s u ltór io. O m édico qu e percebe qu e s eu p rópr io des con for to e a borrecim en to s ã o o des con for to e o a borrecim en to de s eu s pa cien tes terá a poio des s e s en s o de vin cu la çã o e irá t ra ba lh a r com mais precisão e eficiência.

O téd io cot id ia n o de n os s a s vida s é o des er to pelo qu a l peregr in a m os em bu s ca da Ter ra Prom et ida . Nos s a rela ções , n os s o t ra ba lh o e toda s a s pequ en a s ta refa s n eces s á r ia s qu e n ã o qu erem os , rea liza r s ã o todos p res en tes . Tem os de es cova r os den tes , tem os de com pra r com ida , tem os de la va r a rou pa , tem os de fa zer o ca n h oto do ta lã o de ch equ es . Es s e téd io

es s a peregr in a çã o n o des er to

é n a rea lida de a fa ce de Deu s . Nos s a s d ificu lda des , o pa rceiro qu e n os leva à lou cu ra , o rela tór io qu e n ã o queremos escrever essas coisas são a Terra Prometida.

Som os es pecia lis ta s n a p rodu çã o de pen s a m en tos a cerca de n os s a vida . Nã o s om os es pecia lis ta s , n o en ta n to, em a pen a s sermos n os s a s vida s , n os s a dor e p ra zer , n os s a s der rota s e vitórias. Até m es m o a felicida de pode s er doloros a porqu e s a bem os qu e podemos perdê-la.

A vida é m u ito cu r ta . Os m om en tos qu e a gora viven cia m os rapidamente se vão para sempre. Nunca mais os veremos. Todo dia qu e pa s s a leva con s igo m ilh a res e m ilh a res de m om en tos des s es . De qu e m a n eira irem os pa s s a r o pequ en o in terva lo qu e n os res ta ? Irem os ga s tá -lo rodop ia n do em torn o de n os s os pen s a m en tos a

Page 246: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

res peito de com o a vida é ter r ível? Es s es pen s a m en tos n ã o s ã o n em s equ er rea is . Terem os pen s a m en tos a s s im , m a s podem os s a ber qu e os es ta m os pen s a n do em vez de n os em a ra n h a rm os n eles . Qu a n do con s egu irm os s en ta r e a ten ta r pa ra n ossas s en s a ções corpora is e pen s a m en tos qu e s ã o a dor , o s ofr im en to s e transformará no universal, que é o contentamento.

A fin a lida de de n os s a vida , com o Steph en Levin e d iz, é cu m pr ir a qu ilo pa ra qu e n a s cem os , s a ra rm os n a vida . Is s o s ign i-fica s a ra r a pa r t ir da dor de n os s o "eu qu ero" pes s oa l, s epa ra do e con s t r ito, e torn a rm o-n os a ber tu ra . A fin a lida de de n os s a vida é s erm os a p rópr ia a ber tu ra , qu e é con ten ta m en to. Con ten ta m en to in clu i s ofr im en to, felicida de, tu do o qu e é. Es s e t ipo de cu ra é do qu e a n os s a vida s e com põe. Qu a n do cu ro a m in h a dor , s em n en h u m pen s a m en to a res peito, eu ta m bém cu ro a s u a . A p rá t ica consiste em descobrir que a minha dor é a nossa dor.

Sen do a s s im , n ã o con s egu im os en cer ra r n os s os rela cion a -m en tos . Podem os ir em bora , d ivorcia r -n os , m a s n ã o podem os acabar com eles. Quando achamos que podemos encerrá-los, todos s ofrem . Nã o con s egu im os term in a r com a rela çã o com n os s os filh os ; n ã o podem os n em s equ er en cer ra r u m a rela çã o com qu em n ã o a precia m os . Es s e térm in o ir ia exigir qu e fôs s em os a lgo qu e n ã o s om os e n u n ca s erem os , ou s eja , pes s oa s s epa ra da s da s dem a is . Qu a n do ten ta m os s er s epa ra dos , o s ofr im en to recom eça por toda parte.

Com o d iz Steph en Levin e, n a s cem os pa ra cu ra r -n os n a vida . Is s o qu er d izer qu e n os cu ra m os n a n os s a dor e qu e n os cu ra m os n a dor do m u n do. Pa ra ca da u m de n ós , es s a cu ra a con tece de u m m odo d iferen te, porém o ob jet ivo bá s ico é o m es m o. Precisamos ou vir es s a verda de e lem brá -la vá r ia s vezes s egu ida s , m ilh a res de vezes . Pa ra rea liza r es s e t ra ba lh o, tem os de ir con tra a cor ren te de n os s a s ocieda de, qu e n os en s in a a ir em bu s ca do n ú m ero u m : ca da qu a l pa ra s i. Na p rá t ica d iá r ia , em sesshins dos qu a is pa r t icipa m os , n a m a n u ten çã o do con ta to qu a n do m ora m os lon ge, tem os a ju da pa ra fa zerm os o t ra ba lh o, es s e t ra ba lh o de cu ra r -nos n a vida , e ch ega rm os a ver qu e, a té m es m o a gora , já a lca n ça m os a Terra Prometida.

Page 247: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

A PRÁTICA É DAR

A prática é de fato algo para se aprender a dar, mas isso pode s er fa cilm en te m a l-en ten d ido, por is s o tem os de s er cu ida dos os . Há pou co tem po li u m livro cu ja a u tora s e ch a m a va Peregrin a d a paz *- Em três décadas caminhou mais de 40.000 km, levando seus ben s con s igo, p rega n do a pa z. Seu livro m os tra qu e ela de fa to en ten d ia a p rá t ica , qu e ela des creve com m u ita s im plicida de. E la d iz qu e, s e qu is erm os s er felizes , tem os de da r , da r e da r . Em vez d is s o, a m a ior ia qu er receber , receber e receber . Es s a é a n a tu reza do ser humano.

Fora m n eces s á r ios m u itos a n os de á rdu o t rein a m en to pa ra qu e a Peregr in a da Pa z t ra n s form a s s e a s u a vida . Pa ra ela , o t rein a m en to foi da r tota lm en te. Is s o é m a ra vilh os o

s e en ten -derm os de m odo cor reto o in tu ito da a t itu de. Alu n os in icia n tes têm idéia s t ip ica m en te a u tocen tra da s a res peito da p rá t ica : "Vou p ra t ica r pa ra con s egu ir u m a in tegra çã o com pleta "; "Vou p ra t icar pa ra fica r ilu m in a do"; "Vou p ra t ica r pa ra fica r ca lm a ". Em vez d is s o, a p rá t ica é a res peito de da r , da r , da r . Ma s com etem os u m er ro s e s im ples m en te a dota m os es s a pos tu ra com o u m n ovo idea l. Da r n ã o d iz res peito a pen s a r . Nem n ós dever ía m os da r em fu n çã o de ob ter m elh ores res u lta dos pa ra n ós m es m os . Pa ra a m a ior ia , con tu do, da r é con fu n d ido com m ot iva ções a u tocen tra da s , e is s o con t in u a rá s en do vá lido en qu a n to n os s a p rá t ica n ã o es t iver bastante sólida.

Devem os pergu n ta r a n ós m es m os : "O qu e é da r?". Is s o pode n os m a n ter ocu pa dos por m u itos a n os . Por exem plo, deveríamos da r a os ou tros tu do o qu e eles qu is erem ? Às vezes

m a s à s vezes n ã o. As vezes p recis a m os d izer n ã o, ou s im ples m en te s a ir do caminho.

Com o n ã o exis tem fórm u la s , cor rem os o r is co de com eter erros

e es tá tu do bem . Pra t ica m os com os res u lta dos de n os s os a tos , e is s o leva tem po. Ta lvez depois de m u itos a n os com ecem os a a p reen der a verda deira n a tu reza do da r . Um profes s or zen n o

* Peace Pilgrim: Her life and work in her own words, compiled by some of her friends. Santa Fé, NM: Ocean Tree, 1991. Também Steps toward inner peace

A discourse by Peace Pilgrim: Suggested uses of harmonious principles for human living. Friends of Peace Pilgrim, 43480 Cedar Avenue, Hemet, CA 92343.

Page 248: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

J a pã o exige dos n ovos a lu n os qu e p ra t iqu em por dez a n os s em u m t ra ba lh o d ireto com ele. Qu a n do os a lu n os volta m depois de dez a n os , ele lh es d iz qu e voltem a p ra t ica r s en ta dos por m a is dez. Em bora n ã o s eja a s s im o m eu es t ilo de en s in a r , ele tem u m a finalidade. Leva tempo descobrir o que a vida é.

Na s em a n a pa s s a da receb i dois telefon em a s de pes s oa s em bu s ca de con s elh os a res peito da p rá t ica . Um a dela s d izia qu e s u a a m iga t in h a vivido u m a percepçã o es p ir itu a l u m pou co de-s in tegra da e qu e qu er ia s a ber qu a l era o livro cer to qu e a ju da s s e a a m iga a a p ru m a r-s e. A ou tra pes s oa ligou -m e à 1 :30 h da m a dru ga da pa ra d izer qu e t in h a lido u m livro m a ra vilh os o s obre ilu m in a çã o e a ch a do qu e s u a p rópr ia p rá t ica n ã o es ta va m u ito ilu m in a da . E la qu er ia a ju da pa ra en ten der o qu e s e pa s s a va . Eu lh e d is s e qu e n ã o era u m a boa idéia telefon a r pa ra a s pes s oa s n o m eio da n oite. E la res pon deu : "Oh , já es tá de m a dru ga da ?". Eu d is s e: "A ilu m in a çã o d iz res peito a des per ta r . E pa ra qu e você des per te você tem de s a ber qu e h ora s s ã o". E la d is s e: "Is s o n u n ca me ocorreu".

Ilu m in a çã o é a ca pa cida de de da r tota lm en te a ca da s egu n do. Nã o é ter a lgu m a s exper iên cia s ext ra ord in á r ia s . Es s es m omentos podem ocorrer , m a s n ã o torn a m u m a vida ilu m in a da . Precisamos pergu n ta r : "O qu e s ign ifica pa ra m im da r , n es te m om en to?". Por exem plo, qu a n do o telefon e toca , com o podem os da r? Qu a n do es ta m os n u m t ra ba lh o fís ico

lim pa n do, p in ta n do, cozin h a n do , o que significa dar totalmente?

Em bora n ã o pos s a m os n os torn a r pes s oa s ca pa zes de da r tota lm en te a pen a s pen s a n do s obre is s o, podem os n ota r qu a n do n ã o da m os tota lm en te. Ocu lta m os de n ós m es m os n os s a s m ot i-va ções a u tocen tra da s , e a p rá t ica a ju da -n os a perceber o qu a n to s om os a u tocen tra dos . A verda de é qu e, a qu a lqu er m omento, s om os com o s om os . Precis a m os viven cia r is s o, s a ber qu a is s ã o n os s os pen s a m en tos e s en s a ções corpora is , e, en tã o, a os pou cos , n os s a vivên cia pode volta r -s e s obre s i m es m a . Nós n ã o tem os de fa zer is s o. Is s o s e volta s obre s i m es m o por s i. Nã o podem os n os fa zer s er de u m a cer ta m a n eira . Im a gin a r qu e podem os é u m a da s m a iores a rm a d ilh a s da p rá t ica . Ma s podem os tom a r con ta to com a nossa intolerância e grosseria, com nossa preguiça e com os outros jogos qu e joga m os . Qu a n do percebem os com o s om os de verda de, a s cois a s len ta m en te com eça m a vira r

com o a con tece com ta n tos a lu n os qu e ten h o. É m a ra vilh os o a s s is t ir a is s o. Qu a n do a

Page 249: Nada de Especial, Vivendo Zen - Charlotte Joko Beck

revira volta a con tece, es s a gen t ileza ou ca pa cida de de doa çã o difunde-se. É disso que trata a prática. Em vez de um novo ideal

"Eu n ã o qu ero vis itá -lo h oje à ta rde

m a s eu d everia estar

dando" , agimos e vivenciamos o que acontece dentro de nós.

Então, por favor: dar, dar, dar e praticar, praticar, praticar. É esse o Caminho.