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    ■  ANO 10  ■  Nº 2  ■  ABRIL/2002 ■

    TIRAGEM: 35 000 EXEMPLARES

    DOUTRINA  BUSH  AMEAÇA DEMOCRACIA   AMERICANA 

    historiador Eric Hobsbawm classificou o século XX como“século curto”, pois teria se iniciado, politicamente, em 1914,e terminado em 1989, quando caiu o Muro de Berlim.O século XXI, entretanto, não parece ter se “atrasado”. Os

    atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington,aparentemente assinalam,de fato, o início de uma nova era política.

    Ou, pelo menos, isso é o que quer a hiperpotência global. A “guerra aoterror”, segundo George W. Bush, veio para ficar: não será travada emmeses ou mesmo anos, mas em décadas.

     A nova Doutrina Bush tem, atrás de si, uma visão do mundo edo sistema internacional de Estados. Essa visão – sombria, assustadora – impele os Estados Unidos para uma cruzada. O “estado de guerra”torna-se permanente. A paz degrada-se em trégua temporária. O inimi-go está em todos os lugares.

     A lógica subjacente à Doutrina Bush é a de um império sitiado.Ela interpreta a democracia como vulnerabilidade. Sua meta é a segu-rança, não a liberdade.

    Veja as matérias às páginas 6 e 7 

     E mais...● Pangea , a editora de Mundo, e a Ediouro, uma das mais importantes casas editoriais do país, anunciam

    a sua parceria. Um acordo que promete beneficiar escolas, professores e alunos.Pág. 2

    ●  A Colômbia jamais viveu em paz. Os antigos conflitos entre oligarquias foram substituídos por umestado de quase anarquia. Hoje, os atores da violência são as forças armadas, organizações paramilitares,guerrilhas esquerdistas e narcotraficantes.

    Pág. 8

    ● O Fórum Social Mundial é um caminho para a reconstrução do mundo? Uma estratégia política queassocia a França ao PT brasileiro? Ou nenhuma das anteriores?

    Pág. 9

    ● O Meio e o Homem – Quantas horas por semana você passa no interior de um shopping center? Oshopping center aparenta ser um parque de diversões da era do consumo. Mas é um bunker  gerado pela falência da cidade.

    Pág. 12

    T EXTO & CULTURA 

    á mais de meio século, a partilha da Palestina figura comotema de política internacional. Contudo, desde a Guerra dos Seis Dias, Israel dedica-se a imaginar e preparar a parti-lha dos territórios ocupados. Hoje, o governo Sharon pre-

    tende impor, como arremedo de Estado Palestino, uma coleção de esti-lhaços territoriais isolados.

     A ocupação israelense tem um terrível signi-ficado na vida cotidiana da Palestina. Os palestinostornaram-se quase prisioneiros na sua própria terra,

    pois foi-lhes retirado o direito de circular entre ascidades e povoados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.Mas a ocupação tem, também, significados

    simbólicos assustadores. Há décadas, Israel, meticu-losamente, suprime a memória palestina através deum empreendimento de reinvenção da paisagem.

    Veja as matérias às páginas 3, 4 e 5 

     A P ALESTINA  RECRIADA POR  ISRAEL

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    PaulJ.Richards/Corbis

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    AgênciaEstado

    George Bush faz discurso patriótico, emsetembro de 2001; em Cabul, a garota 

    Mohboba, 7 anos, mostrando no rosto asmarcas da miséria, aguarda socorro médico

    Oswald de Andrade, um dos “pais”da Semana de Arte de 1922

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    PaulaBronstein/GettyImages

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    •E X P E D I E N T E

    PANGEA - Edição e Comercialização deMaterial Didático LTDA.

    Redação: Demétrio Magnoli, Jayme Brener, José Arbex Jr.,Nelson Bacic Olic (Cartografia ), Jorge M. B. Almeida (T& C ).

     Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Maria Eugênia LemosEdição fotográfica: Thaïs Falcão/Olho do FalcãoProjeto e editoração eletrônica: Wladimir SeniseEndereço: Rua Romeu Ferro , 501, São Paulo - SP. CEP05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564

    Fax: (0XX11) 3726.1658 - E-mail:  [email protected]: Newton Carlos, J. B. Natali, Paulo DanielFarah, Maria Augusta Fonseca, Márcia Padilha 

     Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturasindividuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos noseguinte endereço, em São Paulo:• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900

    Fone: (011) 283.0340.

    http://www.clubmundo.com.br

    Clube Mundo: a casa é sua 

    O Clube Mundo (www.clubemundo.com.br) continua oferecendo a você, assinante de  Mundo, um

    amplo pacote de vantagens.• Os professores de escolas assinantes contam com um desconto de 5% em qualquer módulo do Educarna Sociedade da Informação, projeto de capacitação de profissionais em educação desenvolvido peloInstituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo. Conheça os cursos modulares doEducar no site www.cidade.usp.br

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    • Todos os professores cadastrados de escolas assinantes recebem, ainda, o Mundo Esta Semana , informeeletrônico semanal elaborado pela equipe de  Mundo.

    • No site de Clube Mundo você pode lançar mão das matérias publicadas em dez anos de  Mundo,cobrindo os principais temas de Política Internacional, Geografia, História e Comunicação e Expres-são no período. Uma exclusiva ferramenta de busca facilita as suas pesquisas.Em 2002, o Clube Mundo está ainda melhor. Aproveite. A casa é sua!

    Se a situação não fosse tão trágica e tanta gente não estivessemorrendo, poderia ser dito que isso é quase como um jardim de

    infância: você me bate e eu te bato mais forte.(Daniel Barenboim, maestro judeu argentino, O Estado de S. Paulo, 7/3/2002, p. A19)

    Caro professor, caros leitores:

    Este ano, iniciamos uma nova parceria, entre a Ediouro – uma das mais tradicionais e importantes edi-toras do Brasil – e a Pangea – que há dez anos edita oboletim Mundo – Geografia e Política Internacional ,destinado ao público jovem estudantil.

     A parceria promete ser excitante e muito útil. Por in-termédio da Ediouro, o boletim Mundo poderá ampliar oseu alcance em todo o território nacional, tornando-se aces-sível a um público que ainda não teve a oportunidade deconhecer a publicação. Além disso, as vantagens ofereci-das pelo Clube Mundo (www.clubemundo.com.br ) po-derão ser estendidas a um número ainda maior de leitores.

    Para a Ediouro, a parceria significa uma singular opor-

    tunidade de ter acesso a este público jovem – e também a você, professor –, expondo os resultados de uma crescen-te e concentrada aplicação de recursos em publicaçõesvoltadas para a Educação.

     Ao revelar autêntica força emergente em todas as áre-as, a Ediouro poderá colocar em evidência seus mais re-centes lançamentos no segmento da Geografia – ensinofundamental – de maneira que possam ser apreciados ese tornem objetos eficazes às necessidades dos usuáriosde livros didáticos e paradidáticos.

    Por isso, todos nós estamos muito contentes. Princi-palmente, por saber que é você quem obterá as vantagensdesta parceria!

     Pangea Ediouro

    Ediouro e Pangea,uma parceria que promete

    Barenboim, diretor da Ópera Alemã deBerlim, programou dar uma aula magna a 

    estudantes palestinos de música na cidadede Ramallah, na Cisjordânia. A visita tinha um sentido político: um gesto para estimu-lar o diálogo entre israelenses e palestinos.O Exército de Israel, contudo, bloqueou a sua passagem pelo posto de controle militarna entrada da cidade, impedindo o evento.

    http://www.ediouro.com.br

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    P ALESTINA  OCUPADA É  PRISÃO  COLETIVA  

    Paulo Daniel FarahEspecial para Mundo

    E D I T O R I A L  

    OS POVOS  JUDEU E PALESTINO TÊM DI-REITO  À  EXISTÊNCIA , CONVIVENDO NA  MESMA REGIÃO. ESSA  FOI  A  BASE PARA  OS A CORDOS DEOSLO QUE,  A  PARTIR  DE 1993, CONSTITUÍRAM A  MAIS SÉRIA  PERSPECTIVA  DE SE  ALCANÇAR  UMA SOLUÇÃO PACÍFICA  PARA  O CONFLITO NO ORI-ENTE

     MÉDIO

    ,QUE

     SE

      ARRASTA 

     DESDE

     1948. A NEGAÇÃO DESSE PRINCÍPIO DOS A COR -DOS DE OSLO ESTÁ  NA  RAIZ DO  ATUAL ESTADODE GUERRA  QUASE  ABERTA  ENTRE PALESTINOS EISRAELENSES. R ECORDANDO: O  FRACASSO  DOPLANO DE PAZ DO EX -PRIMEIRO-MINISTRO TRA -BALHISTA  DE ISRAEL, EHUD B ARAK  CONDUZIU  À ELEIÇÃO DO FALCÃO DIREITISTA  A RIEL SHARON. A NTES MESMO DE SER  ELEITO, SHARON DEIXOUCLARO QUAL SERIA  SUA  POLÍTICA  E, NUM  ATO DEPROVOCAÇÃO, PERCORREU  A   ESPLANADA   DASMESQUITAS, LOCAL SAGRADO PARA  OS MUÇUL-MANOS, EM JERUSALÉM. CERCADO, É CLARO, POR UM BATALHÃO DE SOLDADOS.

    SHARON  BENEFICIOU-SE DO  CANSAÇO  DOELEITORADO ISRAELENSE DIANTE DA   AUSÊNCIA  DEUM  ACORDO DE PAZ DEFINITIVO. E, SIMPLESMEN-TE, RETOMOU  A  VELHA  LÓGICA  DA  OCUPAÇÃO DOSTERRITÓRIOS PALESTINOS, COMO SE O RELÓGIO DA HISTÓRIA  VOLTASSE  À  GUERRA  DOS SEIS DIAS, EM

    1967. A O

     INVADIR 

     CIDADES

      AUTÔNOMAS

     PALESTI

    -NAS, SHARON  JOGOU POR  TERRA  OS A CORDOS DEOSLO,  ABANDONANDO  O  ÚNICO  PRINCÍPIO QUEPODE  ALICERÇAR   A  PAZ: O DO DIREITO DO POVOVIZINHO DE ORGANIZAR -SE EM ESTADO. ALÓGICA DA  OCUPAÇÃO REFORÇOU  A  PREGAÇÃO DAS FAC-ÇÕES FUNDAMENTALISTAS PALESTINAS, QUE, À  FOR -ÇA  DE EXPLOSÕES SUICIDAS, MUITAS VEZES CON-TRA   ALVOS CIVIS, DEIXAM CLARA   A  HOSTILIDADE AO DIREITO DE EXISTÊNCIA  DE ISRAEL.

     A NTÍPODAS, O  GOVERNO DE  ISRAEL  E OSHOMENS E MULHERES-BOMBAS CUMPREM  A  MESMA FUNÇÃO. ENTERRAM O CONCEITO BÁSICO DE TO-LERÂNCIA  ENTRE OS DOIS POVOS E, COM ELE, O

    PROCESSO DE PAZ INICIADO POR  Y  ASSER  A RAFATE ITZHAK  R  ABIN, HÁ  QUASE UMA  DÉCADA .

    ENQUANTO OS DOIS LADOS CHORAM SEUSMORTOS, COMEÇAM  A  SURGIR , EM MEIO  À  VIO-LÊNCIA ,  ALGUNS SINAIS POSITIVOS. R ENASCE OMOVIMENTO PACIFISTA  ISRAELENSE, CUJA   AÇÃO FOIDECISIVA 

    ,POR 

     EXEMPLO

    ,PARA 

     QUE

     ISRAEL

     PUSES

    -SE FIM  À  OCUPAÇÃO DO LÍBANO, INICIADA  EM1982. A PROPOSTA  DOS PACIFISTAS ISRAELENSES ÉSIMPLES:  ABANDONAR  IMEDIATAMENTE, DE FOR -MA  UNILATERAL, A  CISJORDÂNIA  E G AZA , PASSAN-DO  A  DISCUTIR  O ESTATUTO DE JERUSALÉM. EN-TRE OS PALESTINOS, A  VIOLÊNCIA  DA  NEO-OCUPA -ÇÃO E O IMPACTO DAS  AÇÕES SUICIDAS VÊM TRA -VANDO O SURGIMENTO DE LIDERANÇAS COMPRO-METIDAS COM  A  CONVIVÊNCIA  PACÍFICA . R ESTA SABER  SE O RETORNO  A  OSLO TERÁ  DE ESPERAR PELO NASCIMENTO, NOS DOIS LADOS, DE UMA NOVA  GERAÇÃO DE LÍDERES. À CUSTA , É CLARO,DE UMA  INFINIDADE DE MORTES.

    Os palestinos as levam à entrada da al-

    deia para colocá-las em um caminhão.Motorista de caminhão, Wafi Hait dizque, às vezes, soldados o obrigam a pa-rar e jogar fora a carga. Desde 1967, a situação nos territórios palestinos nun-ca foi tão precária. O desemprego che-ga a 70% em algumas áreas, ao menosmetade da população vive abaixo da l i-nha da pobreza e centenas de vilarejosestão em situação de emergência.

    Em Hebron, cidade sob contro-le da ANP onde vivem 400 judeus (pro-tegidos por mais de 2 mil soldados isra-elenses), em meio a pelo menos 130 milpalestinos, a tensão é cada vez maior e o

    toque de recolher é bastante comum.Lojas do bairro de Al Salam (paz, em

    árabe) ainda apresentam marcas de ataques de mísseisisraelenses. “Não viemos da Rússia ou da Romênia. Esta é nossa terra, de nossos pais e avós. Os colonos não vãoconseguir nos expulsar. A intifada precisa continuar atéa independência, até a última gota de sangue palestino”,diz o comerciante Abu Aisha, 37, pai de oito filhos.

    Nos últimos meses, dezenas de novos assentamen-tos foram construídos com o apoio de subsídios e soldados,apesar de isso contrariar a Quarta Convenção de Genebra.Desde a assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993, a popu-lação de colonos mais que duplicou nos territórios ocupa-dos. Contornar essas fortificações significa levar várias horasa mais para percorrer qualquer trajeto dentro da Cisjordânia 

    ou de Gaza. A praia de Gaza se tornou uma estrada alterna-tiva devido aos bloqueios e às colônias. As pessoas cami-nham vários quilômetros para evitar postos militares. A Cisjordânia hoje está dividida em pelo menos 220“bantustões”. “Não podemos usar nem mesmo nossas ruas.Que soberania é esta sem luz, água e caminho livre?”, per-gunta Abd al Fattah, morador palestino de Ramallah.

    a rede de telefonia, rádio e televisão de boa parte dascidades palestinas e a liberdade de movimentação. Mui-tas estradas da Cisjordânia e de Gaza são de uso exclusi-vo de israelenses. Para percorrer o trajeto de 100 quilô-metros entre Jenin e Hebron, um palestino levaria porvolta de duas horas numa época normal. Recentemente,o engenheiro Ahmad Abu Muhammad, 48, se dispôs a enfrentar o desafio e precisou de pouco mais de 13 horaspara a odisséia. Além de 26 postos militares de controlepermanentes, teve de passar por postos “surpresa” e trin-cheiras cavadas na estrada para impedir o trânsito de car-ros, com longos trechos percorridos a pé.

    Em toda a Cisjordânia, a situação é semelhante.Os postos de controle se multiplicaram em progressãogeométrica nos últimos meses. O único rosto israelenseque a maior parte dos palestinos na Cisjordânia vê é o docolono ou o do soldado, que raramente fala árabe ouestá disposto a ouvir por quê alguém precisa chegar aooutro lado. É difícil saber quantas crianças nasceram a caminho do próximo posto. Segundo a ONU, nascimen-tos em casa cresceram 26% porque as mulheres não con-seguem ir a hospitais.

    Nas aldeias ao norte de Ramallah, frutas e ver-duras são descarregadas antes do bloqueio israelense.

      passeata misturava preces, hinos nacionalis-

    tas e apelos pacifistas nas ruas de aldeias palestinas devas-tadas na Cisjordânia. Cerca de 4 mil pessoas, segundo a polícia, participavam daquela vigília pela paz que saiu deBeit Sahour, nos arredores de Belém, e tentou prosseguirpara Jerusalém.

    Cidade natal de Jesus Cristo, Belém depende eco-nomicamente do turismo para sobreviver. Dias antes da passeata, um hospital havia sido atacado e os dois maio-res hotéis da cidade, incluindo o tradicional Paradise,completamente devastados. Soldados pulavam nas ca-mas e quebravam o que podiam, segundo testemunhas,antes dos disparos de tanques. Diante do Paradise, a mar-cha tomou um novo rumo. “Vamos a Jerusalém”, anun-ciou um dos organizadores. “Hoje, vamos levar uma men-sagem de paz a essa terra tão sagrada e tão castigada.”

     A distância que separa Belém de Jerusalém nãoultrapassa 10 quilômetros, mas a liberdade de movi-mento é um conceito cada vez mais abstrato para ospalestinos. A grande maioria nunca pôde ir da Faixa deGaza à Cisjordânia ou vice-versa. A princípio, um tan-que parecia um obstáculo transponível. Mas, rapida-mente, o exército israelense fechou a estrada com 14tanques e veículos blindados. Portando metralhadoras,soldados disseram que a entrada de Belém acabara deser declarada uma área militar e que, portanto, filma-gens e fotografias eram proibidas.

    No retorno a Belém, discursos e canções pro-metiam novos atos. “A frustração com a dominaçãomilitar só cresce, e evidentemente isso acirra os extre-mismos”, afirmou o palestino Firas, 22, estudante na 

    Universidade de Belém. Na Praça da Manjedoura, di-ante do local que abrigava um quartel israelense de tor-tura e foi transformado em um centro pela paz, o me-cânico Mahmoud, 19, recordava-se dos maus-tratos a que foi submetido ainda criança. “Quando começamosa sonhar, tudo parece um pesadelo novamente.”

    Um ano e meio após o início da intifada, o le-vante contra a ocupação israelense já contabiliza ao me-nos 1.150 palestinos e 350 israelenses mortos. Toda a infra-estrutura de cidades e vilarejos palestinos foi arra-sada, e importantes símbolos da construção da indepen-dência foram destruídos: o aeroporto e o porto de Gaza,

    UM LUGAR  PARA  DOIS POVOS

     A 

    Paulo Daniel Farah é repórter da Folha de S. Paulo eautor do livro O Islã , recentemente editado

    pela Publifolha.

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    DavidSilverman/GettyImages

    Soldados israelenses conduzem busca nas casas de

    palestinos, em campo de refugiados na Cisjordânia 

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    E Meron Benvenisti foi vice-prefeito de Jerusalém, entre 1971 e 1978, e écolunista do Haaretz , um dos mais importantes jornais de Israel. Seu livro causou

    grande impacto, dentro e fora de Israel. Ele trouxe à tona uma constatação tão cruelquanto esclarecedora: em algumas décadas, uma bem-sucedida política de destrui-ção da memória histórica, praticada pelo Estado israelense, conseguiu eliminar osvestígios da milenar cultura árabe que habitava aquela região.

    Com amargura, Benvenisti nota que cinco séculos depois que os mourosdeixaram a Espanha, ainda são visíveis os marcos históricos que permitem delimitaros contornos de sua presença naquele país; mas um palestino que hoje visite Israel,apenas cinco décadas após a criação do Estado judeu, terá dificuldades de encontraro local onde se erguia seu antigo lar.

     Ao comentar, em outro contexto e por outras razões, o êxito dessa política desupressão da memória, o general Moshe Dayan af irmou: “Nós viemos para este paísque já era habitado pelos árabes, e aqui estamos estabelecendo um Estado hebreu,isto é judaico. Em áreas consideráveis do país, compramos as terras dos árabes. Cida-des judaicas foram construídas no lugar das cidades árabes. Vocês nem sabem onome das cidades árabes, e eu não os culpo por isso, porque nem existem mais os

    antigos livros de geografia; mas não apenas os livros não mais existem, como ascidades árabes também desapareceram.” (Haaretz , 4 de abril de 1969).

    Benvenisti não questiona a legitimidade de Israel, nem a sua identidade ju-daica. Mas questiona esse processo de destruição da memória histórica e de negaçãodos direitos dos árabes (por ele qualificados como irmãos-inimigos), que tambémimplica, no fim das contas, a destruição de parte da história da diáspora e da memó-ria hebraica. O seu livro conta como foi produzido esse processo.

    Cartografia do esquecimento

    Em 18 de julho de 1949, um grupo de nove conhecidos cartógrafos, arqueólo-gos, geógrafos e historiadores reuniu-se no gabinete do pri-meiro-ministro do recém-criado Estado de Israel. Eles re-ceberam de David Ben-Gurion a missão de dar nomes

    hebreus às montanhas, aos vales, riachos, estradas e locali-dades situados nas regiões do Negev e Arav. Essas regiõestinham sido militarmente ocupadas pelos israelenses qua-tro meses antes, na guerra que originou o Estado judeu.

    O grupo entendeu a importância de sua missão:não se tratava de um trabalho “técnico”, mas de criar legi-timidade histórica e cultural para o ato de anexação deum território ainda habitado por outro povo. Tarefa nada fácil: entre 1872 e 1878, uma pesquisa feita pelo Fundode Exploração da Palestina, sob controle do império bri-tânico, indicou que de 9 mil nomes de localidadescoletados na região, só 10% eram judeus. Não havia comosustentar o mito sionista de que a Palestina era uma “terra sem povo” destinada a um “povo sem terra”. Um “novo

    mundo” deveria ser criado, à imagem e semelhança do mito.

     Assim foi construída uma geografia israelense da Palestina. O mapa, no caso, prece-deu a paisagem e deu legitimidade ao processo de destruição sistemática dos registros histó-ricos, culturais e sociais de toda uma civilização que deveria ser erradicada. Como que por“encanto”, desapareceram os nomes árabes e brotaram, no seu lugar, os hebreus, abrindocaminho para a destruição física dos vilarejos, das casas, das plantações, da cultura árabepalestina. Poucas vezes na história da humanidade, a cartografia terá revelado tão plena-mente a sua natureza bélica.

    Os novos habitantes da terra adotaram um “padrão ocidental”: construí-ram-se avenidas e ruas asfaltadas, prédios modernos foram erguidos sobre os es-combros das antigas casas árabes. Algumas poucas foram preservadas, para se tor-narem locais “exóticos”, como “colônias de artistas”; mesquitas em ruínas foramtransformadas em bares e restaurantes. Construções que, extraídas de seus contex-tos originais, funcionam como exemplares de um museu de antiguidades, semqualquer eficácia cultural.

    Benvenisti nota, com tristeza, a destruição das antigas formas de agricultura,

    em especial dos olivais – plantas que representam o coração da cultura árabe e que dãoflores e frutos ao longo de centenas de anos; sua mera existência, por isso mesmo,atesta a antiguidade das famílias que habitavam a região quando os israelenses ali che-garam. Assim, a destruição dos olivais em torno de Belém, pelo exército israelense, sobo pretexto de que serviam de abrigo para guerrilheiros árabes, correspondia, na verda-de, à urgência de apagar o traço da existência árabe na região. Irônico em relação à proverbial capacidade dos agricultores israelenses de “fazer o deserto florescer”, Benvenistinota que, na realidade, os novos ocupantes apenas substituíram culturas.

    O livro deixa a sensação de que, na Palestina histórica, está sendo cometido umcrime contra toda a humanidade. Não se trata, apenas, de agressões contra o povo árabepalestino, mas contra o acervo dessa enciclopédia universal que se chama história. Uma parte da cultura humana está sendo suprimida. Todos pagamos o preço.

    ONDE ESTÃO OS OLIVAIS DA  P ALESTINA ?  ste livro fala da minha angustiada paisagem interna, tanto quanto da tor-

    turada paisagem de meu país. “A paisagem é uma construção da mente”, escreve

    Simon Schama. “Seu cenário é construído por camadas de memória e de pedra”.Tanto quanto possa me lembrar, eu sempre me movimentei entre dois registros deconsciência, percorrendo uma paisagem que, ao invés de três, oferecia seis dimen-sões espaciais: um espaço tridimensional judeu que tinha como pano de fundo umespaço árabe igualmente tridimensional. Meu falecido pai, geógrafo e cartógrafo,foi, sem querer, o responsável por essa visão dual e por essa consciência dividida.Desde muito cedo, ele me levava em suas visitas aos amigos árabes. Assim, a paisa-gem árabe nunca me foi estranha ou ameaçadora; ao contrário, ela deu vida aimagens, cheiros e um sentido de calor humano tão poderoso que sua marca nun-ca foi apagada, meio século depois.

    (...) Basta justapor uma fotografia de um povoado árabe tirada nos anos30 a uma outra, tirada nos anos 90, de um adorável subúrbio (israelense)construído no mesmo local, ou uma foto aérea, mostrando os campos poeirentose vazios daquela época, a outra, exibindo os vastos campos de grãos douradosou hortas verdes que agora ali florescem, para que todo mundo se convença do

    “progresso” conquistado. Mas, como diz S. Yizhar, “a terra, na sua profundidade,não esquece” que não se trata de um progresso linear e suave, “mesmo após assemeaduras e novas colheitas”. Este progresso não é uma continuação do pas-sado, mas sim construído sobre as ruínas de uma outra civilização, violentamentedestruída. Quem tem o direito de julgar o seu “atraso”?

    É um truque elementar congelar o passado dos outros e reivindicar oprogresso para si. A paisagem palestina, ainda que “não moderna”, era um mundointegral para aqueles que o habitavam confortavelmente – às vezes, mais confor-tavelmente do que aqueles que vivem no mundo moderno que o substituiu.

    (Trechos do livro Sacred Landscape – the buried history of the holy land since 1948 ,de Meron Benvenisti, University of California Press, 2000).

    Em Tiberíades, a tradicional mesquita árabe faz um gritantecontraste com a moderna loja de departamentos israelense

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    RichardT.Nowitz/Corbis

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    RichardT.Nowitz/Corbis

    Tel Aviv é um exemplo de uma cidade deaparência ocidental, em plena costa mediterrânea, no Oriente Médio

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     A CARTOGRAFIA  POLÍTICA  DA  OCUPAÇÃOE  m março, o Conselho de Segurança da 

    ONU aprovou, com o apoio de 14 de seus 15 mem-bros (a Síria voltou contra), uma resolução que, pela primeira vez em mais de 50 anos, propõe a criação deum Estado Palestino. Para surpresa da comunidade in-ternacional, a iniciativa da resolução partiu dos Esta-dos Unidos, o maior aliado de Israel.

    Como entender a nova posição de Washington?Há, de um lado, a escalada de violência, desde a 

    eclosão da “segunda intifada”, desde setembro de 2000. A revolta palestina e a repressão israelense já produzi-ram 1,5 mil vítimas fatais – entre as quais quase 1,2 milmortos palestinos. A intifada original, na segunda me-tade da década de 80, deixou um saldo de mortos bemmenor – cerca de 450.

    Há, de outro lado, a transição de Washington rumoà segunda etapa da “guerra ao terror”. Recentemente,George W. Bush caracterizou o novo inimigo como sendoo “eixo do mal”, que tem por núcleo o Iraque de SaddamHussein. Na moldura dos preparativos para uma ofensiva 

    Mapa 1 Mapa 3Mapa 2

    Mapa 4 Mapa 5 Mapa 6

    6 – Proposta de Israel em Camp David (2000)No segundo semestre de 2000, israelenses e palestinos tentaram,em Camp David (EUA), romper o impasse no processo de paz.

     Ao que tudo indica, a proposta israelense con sistia em dividir oterritório do futuro Estado palestino na Cisjordânia em três zo-nas, separadas por corredores de circulação sob controle israelen-se que ligariam Israel ao vale do Jordão. Além disso, uma estreita faixa, junto ao vale do Jordão e do Mar Morto, também ficaria sob controle de Israel. O Estado Palestino teria toda a Faixa deGaza e 90% da Cisjordânia. O estatuto de Jerusalém seria objetode acordos futuros. Esta proposta não foi aceita pelos palestinos.

    contra o Iraque, o apoio americano à criação de um Esta-do Palestino seria uma forma de construir pontes com osEstados árabes e a opinião pública muçulmana.

    Todavia, é insuficiente propor apenas a criaçãode um Estado Palestino. Uma década depois da assina-tura dos Acordos de Oslo (1993), é indispensável iden-tificar exatamente os limites entre Israel e a futura Pa-lestina. Yasser Arafat, presidente da Autoridade Pa-lestina, sonha com um Estado na totalidade da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, com capital em Jerusa-lém Oriental. No extremo oposto, o governo israelensede Ariel Sharon imagina, quando muito, um EstadoPalestino composto por fragmentos territoriais, rodea-dos por faixas sob controle militar de Israel.

     A Palestina histórica, com cerca de 27 mil km2

    (um pouco maior que Sergipe), abrange Israel e os ter-ritórios ocupados pelos israelenses na Guerra dos SeisDias, em 1967. A Cisjordânia (5.879 km2) e a Faixa deGaza (378 km2) representam, juntas, apenas 22% da superfície da Palestina.

    Do ponto de vista demográfico, a Cisjordânia abriga cerca de 1,4 milhão de palestinos e 350 mil colo-nos israelenses. Na Faixa de Gaza, há aproximadamente1 milhão de palestinos e 6 mil colonos israelenses. Osassentamentos de colonos surgiram depois de 1967 e sãofruto de incentivos oficiais de Israel ou do fanatismonacional-religioso de algumas organizações judaicas.

     A idéia da partilha da Palestina em dois Estadossurgiu em meados da década de 30, sob o regime domandato britânico, tornando-se mais tarde posição ofi-cial da ONU (mapas 1 e 2). Após a Guerra dos SeisDias, Israel passou a elaborar planos para uma partilha desigual (mapa 3). No processo de paz desencadeadocom os Acordos de Oslo, a idéia da partilha gerou no-vas propostas (mapas 4 a 6).

    Uma “Palestina em fragmentos” foi sendo projeta-da por essa cartografia do ocupante. Contudo, a visão deSharon parece mais radical. O primeiro-ministro israelenseenxerga o Estado Palestino como uma coleção de micro-Estados, isolados uns dos outros. É a receita para a guerra.

    1 – Plano de partilha da Comissão Peel (1937)Quando a Palestina ainda era um mandato da Grã-Bretanha, ogoverno de Londres, através da Comissão Peel, elaborou um planode partilha do território em um Estado árabe e outro judeu. A região entre as cidades de Jaffa e Jerusalém seria mantida sob con-trole britânico. Seria vedada a criação de assentamentos judaicosna área reservada ao Estado árabe.

    2 – Plano de partilha da Palestina da ONU (1947)No pós-guerra, a Assembléia Geral das Nações Unidas votou umplano de partilha da Palestina em dois Estados: um árabe e um

     judeu. Jerusalém, em virtude da sua importânc ia histórico-religio-sa, ficaria sob controle internacional.

    3 – O Plano Allon (1970) Após a Guerra dos Seis Dias, o então p rimeiro-ministro de Israel, Yigal Allon, propôs a divisão do s território s ocupados da Faixa deGaza e Cisjordânia entre Israel e Jordânia, com corredores de livreacesso em áreas que não eram espacialmente contínuas. Pratica-mente todo o vale do rio Jordão, na Cisjordânia, ficaria sob con-trole israelense. À época, já existiam dezenas de assentamentos decolonos israelenses nos territórios ocupados.

    4 – “Enclaves para a paz”: o mapa Bailey (1991)No início das negociações de paz, o especialista em assuntos pales-tinos Clinton Bailey, elaborou um plano no qual sugeria a criaçãode três enclaves palestinos na Cisjordânia. Os enclaves teriam ummáximo de população palestina e um mínimo de colonos israe-lenses. Cerca de 90% dos palestinos da Cisjordânia ficariam nessesenclaves, livres do controle de Israel. A Faixa de Gaza ficaria inte-gralmente sob controle palestino. Ao que tudo indica, este planoserviu como base para as futuras propostas de partilha.

    5 – Acordos de Oslo (1993-95)O histórico acordo Oslo I, de 1993, entre Israel e a OLP, definia áreas de autonomia palestina em grande parte da Faixa de Gaza eem torno da cidade de Jericó (Cisjordânia). Em 1995, um novoacordo, Oslo II, delimitou três zonas na Cisjordânia: uma de con-trole exclusivo da Autoridade Palestina (3% do território), outra de soberania compartilhada (27%), e uma terceira sob controleexclusivo de Israel (70%).

    PLANO DE PARTILHA DA COMISSÃO PEE L (1937)

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    MAR MEDITERRÂNEO 

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    SÍRIA

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          (      J    o    r      d      â

        n      i    a      )

    Estado árabe

    Estado judeu

    Sob controleBritânico

    Atuais limitesda Cisjordâniae Faixa de Gaza

    0 Km 50

    Jerusalém

    Haifa

    TelavivJaffa

    HebronGazaFaixa de Gaza

          C      i    s      j    o    r      d      â    n      i    a

    Nablus

    Desertodo Negev

        R    i   o    J   o   r    d    ã   o

    FONTE: Atlas of the Arab-Israeli conflict

    PLANO DE PARTILHA DA ONU (1947)

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          (      J    o    r      d      â

        n      i    a      )

    Estado árabe

    Estado judeu

    Área sobcontroleinternacional(Jerusalém)

    Atuais limitesda Cisjordâniae Faixa de Gaza

    0 Km 50

          C      i    s      j    o    r      d      â    n      i    a

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    FONTE: Atlas of the Arab-Israeli conflict

    GazaFaixa de Gaza

    Jerusalém

    TelavivJaffa

    Haifa

    O PLANO ALLON (1970)

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    Áreas sobcontrole deIsrael

    Áreas sobcontrole da

    Jordânia

    Assentamentosjudeusinstalados entre1970 e 1990 0 Km 50

    Desertodo Negev

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    FONTE: Atlas of the Arab-Israeli conflict

    Haifa

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    Gaza

    “ENCLAVES PARA A PAZ” O MA PA BAILEY (1991)

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    Áreas daCisjordânia sobcontrole de Israel

    Auto governoPalestino

    Principaiscidades palestinasna Cisjordânia

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    FONTE: Atlas of the Arab-Israeli conflict

    Haifa

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    Jerusalém

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    Gaza

    Principais

    assentamentosjudeus naCisjordânia

    Faixa de Gaza

    OS ACORDOS DE OSLO (I E II)

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    Controle misto

    Autonomia daPalestina

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    FONTE: Atlas des Relations Internationales

    Haifa

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    Limites damunicipalidadede Jerusalém

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    Jerusalém

    Faixa de Gaza

    AS PROPOSTAS DE CAMP DAVID (2000)

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    Territórios queficariam sobcontrole israelense

    Territóriosprevistos para oEstado Palestino

    Principaiscidades palestinas

    na Cisjordânia

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    FONTE: Maniere de Voir 55

    Haifa

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    Jerusalém

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    Assentamentosjudeus

    Faixa de Gaza

  • 8/19/2019 Mundo 0202

    6/11

    puderam retomar o isolacionismo. A res-posta à nova situação mundial foi a Dou-trina Truman, de 1947, que inaugurou a Guerra Fria.

    O isolacionismo da Suíça não é uma fonte de tensões muito agudas. Mas, comoser isolacionista e, simultaneamente, ocu-par a posição de maior potencia mundial?

     A tensão dilacerante produzida peloisolacionismo americano transborda sob a forma de um “espírito de cruzada”, queacompanha a política externa dos EstadosUnidos desde, pelo menos, a Primeira Guerra Mundial. Se o “isolamento esplên-dido” americano é perturbado por uma ameaça vital, essa ameaça deve ser exter-minada de modo completo e definitivo.Para os americanos, a sua política externa se traduz numa “cruzada do Bem contra oMal”. A Doutrina Truman definiu o Malcomo sendo a União Soviética e o comu-nismo. A nova Doutrina Bush o definecomo sendo o terror.

    “  Cada uma das nações devesaber que, para os Estados Unidos, a guerra ao terror não é apenas uma política – é umcompromisso”. Nessa guerra, que pode du-rar anos ou décadas, “não há imunidade enão pode existir neutralidade”.

    Com essas palavras, na solenidadede 11 de março, que assinalou os seis mesesdos atentados ao World Trade Center e aoPentágono, o presidente americano sinteti-zou aquilo que já se pode denominar Dou-trina Bush. Qual é o conteúdo da nova Doutrina Bush? Como ela interpreta omundo e orienta, estrategicamente, a hiperpotência global?

     A revisão da estratégia militar d osEstados Unidos, concluída há pouco, rom-pe um compromisso antigo das principais

    potências nucleares, de não usar essas ar-mas contra inimigos não-nucleares. OPentágono prepara-se para reduzir signifi-cativamente o arsenal nuclear interconti-nental e, ao mesmo tempo, ampliar e di-versificar as armas nucleares táticas. Essasarmas táticas destinam-se a atingir alvoscomo bunkers  subterrâneos e instalações depesquisa ou produção de armas químicas,biológicas ou nucleares.

    Desde 1945, os Estados Unidos ja-mais engajaram forças militares em tantoslugares do mundo. Nos últimos meses, ba-ses avançadas americanas já foram implan-tadas em países da Ásia Central, junto àsfronteiras da Rússia e China – o que seria inimaginável nos tempos da Guerra Fria.Forças americanas atuam nas Filipinas, trei-nando tropas locais para o combate a umgrupo fundamentalista islâmico, e agentesdos serviços secretos operam nos mais di-versos países, desde o Oriente Médio até a Colômbia.

    Os Estados Unidos, aparentemen-te, adotam uma atitude internacionalista,pois se engajam em inúmeros conflitos eáreas de tensão, no mundo todo. Entretan-to, a atitude fundamental da hiperpotência é isolacionista.

    Os Estados europeus, desde a Idade

    Moderna, interpretam a política externa como um jogo de poder. Os Estados Uni-dos nasceram desprezando a “política depoder” – a Realpolitik  – dos europeus. Quaseinstintivamente, a República americana adquiriu uma profunda orientaçãoisolacionista, que se manifestou na Doutri-na Monroe, de 1823, pela tentativa de se-parar o “Hemisfério Americano” da políti-ca européia.

    O isolacionismo só foi abandona-do quando os interesses vitais americanossofreram ameaças. Na Primeira Guerra Mundial (1914-18), o engajamento tardiodos Estados Unidos decorreu da possibili-dade de vitória alemã, que destruiria oequilíbrio de poder europeu e ameaçaria a hegemonia de Washington no “Hemisfé-rio Americano”. Logo após a rendição ale-mã, os Estados Unidos reverteram aoisolacionismo, renunciando até a partici-par da Liga das Nações.

    Na Segunda Guerra Mundial(1939-45), a história se repetiu, mas tevefinal diferente. Face à emergência do poderda União Soviética, que parecia capaz dedominar a Europa e ameaçar os interessesvitais americanos, os Estados Unidos não

    O inimigo, difuso e ubíquo

    Na Guerra Fria, o inimigo tinha umrosto – o Estado soviético e seu bloco depaíses-satélites. Também tinha um lugar –o Leste, ou seja, o espaço geopolítico deli-mitado pela Cortina de Ferro. A Doutrina Truman sintetizava a estratégia da “conten-ção”, destinada a impedir a expansão da influência soviética para além da Cortina de Ferro. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e outras aliançaspolítico-militares secundárias erguidas na orla asiática funcionavam como pilares da “contenção”.

    Na “guerra ao terror”, o inimigo nãotem rosto, mas uma infinidade de másca-ras, definidas periodicamente por Washing-ton. Ontem, Osama Bin Laden e a Al-Qaeda. Hoje, o “eixo do mal”: Iraque, Irã eCoréia do Norte. Amanhã, quem sabe... O“terror” não tem o mesmo significado para 

    Este é o modelo da política externa americana: do isolamento ao intervencionismo, da retirada à cruzada e, de novo, ao princípio.Na sua condição de país política e moralmente auto-proclamado superior, os Estados Unidos só podiam se manter puros abstendo-

    se de envolvimento em um mundo corrompido ou – se o mundo não podia deixá-lo em paz – destruindo a fonte do mal. Emresumo, tanto os impulsos na direção do isolacionismo quanto na da cruzada surgiam do mesmo moralismo. Essas oscilações

    tendiam, além disso, a ser acompanhadas por mudanças radicais de humor: de um estado de otimismo, que surgia com a crença deque os Estados Unidos reformariam o mundo, a um de desilusão, na medida em que esses grandiosos objetivos (...) se revelavam

    além do seu alcance.

    (John Spanier, La política exterior norteamericana a partir de la Segunda Guerra Mundial, Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p. 23).

    ESTRATÉGIA  DE BUSH OCUPA  O LUGAR  DA   ANTIGA  DOUTRINA  T RUMANO Império contra a República 

    todos: o Hamas palestino e o Hezbollah li-banês são “organizações terroristas” aosolhos de Israel e dos Estados Unidos, mas“combatentes da resistência” aos olhos deárabes e palestinos.

    O inimigo difuso da “guerra ao ter-ror” está em todos os lugares e em lugarnenhum. Abriga-se sob o manto protetorde “Estados renegados”, como o Afeganis-tão do Talebã, ou infiltra-se no territóriode “Estados amigos”, como as Filipinas. Osserviços de segurança e inteligência de Wa-shington alertam para o perigo representa-do pelas “dezenas de células terroristas” queestariam “adormecidas” em território ame-ricano. Então, “o inimigo está em nós”...

    Os Estados Unidos são a “nova Roma”contemporânea: a hiperpotência global. Noseu auge, o Império Romano dominou a maior parte do mundo antigo. A limes  – li-nha de limites do Império – era guarnecida pelas legiões imperiais, de modo a conter asinvestidas periódicas dos “bárbaros”.

    “Eles vieram buscar Rabih Haddad durante a tarde, quando sua família estava se preparando para celebrar o final do Ramadã. Três

    homens do Serviço de Imigração e Naturalização o levaram de seu apartamento, em Ann Arbor, Michigan, onde ele morava com sua mulher e quatro filhos (...). Isso aconteceu em 14 de dezembro. Desde então, Haddad, um líder religioso conhecido e respeitado,fundador do mais importante grupo filantrópico islâmico dos Estados Unidos, o Global Relief Foundation, foi mantido preso emsolitária, primeiro em Ann Arbor e depois em uma prisão federal, em Chicago. É mantido sozinho na sua cela 23 horas por dia. Toda vezque deixa a cela, ou para praticar algum exercício em uma jaula de segurança máxima ou para tomar um de seus três banhos semanais,permanece algemado.”

     Assim come ça um rela to feito pel o correspo ndente Andre w Gumbel pa ra o jorna l britânic o The Independent , publicado em26 de fevereiro. Gumbel prossegue contando uma lista imensa de horrores, humilhações e práticas violentas cometidas contra Haddad, um cidadão libanês educado nos Estados Unidos, contra quem – pasmem! – não existe uma única acusação formal. Eleé “suspeito” de manter “ligações” com a organização Al-Qaeda de Osama Bin Laden, sem que fosse apresentada qualquer prova,mesmo que circunstancial.

    Mais de 2 mil pessoas passaram por experiência semelhante, desde o 11 de setembro, segundo diversas organizações de defesa dosdireitos humanos nos Estados Unidos. Ninguém sabe, com exatidão, quantos ainda estão na cadeia. Todos estão acostumados a lernotícias desse tipo, quando se referem a ditaduras militares em países do “Terceiro Mundo”. Como explicar, então, que tudo isso esteja acontecendo nos Estados Unidos?

    Existe um amparo juridicamente legal para a ação policial. Ela está amparada em decreto do presidente George W. Bush, o Patriot Act, destinado a ampliar os p oderes do FBI (polícia federa l) e dos serviços secretos na “guerra ao terror”. John Ashcroft, o ultra-conser-vador secretário da justiça do governo Bush, está levando os limites do decreto ao ponto de máxima tensão. Poucos ofereceram resistência ao decreto, promulgado sob o impacto dos atentados. Porém, à medida que o tempo passa, até mesmo setores conservadores do establishment americano começam a levantar dúvidas e resistências. Temem que Bush, ao concentrar tantos poderes no Executivo, esteja abalando osistema de equilíbrio institucional e restringindo a liberdade de expressão – isto é, os pilares da República americana.

    Coloca-se, portanto, com extrema agudeza, o eterno dilema que percorre toda a história dos Estados Unidos. De um lado, asinstituições democráticas da República, consagradas em 1776 por Benjamin Franklyn, George Washington, Thomas Jefferson e os

    demais “pais fundadores” da nova nação. De outro lado, uma irresistível tendência ao Império – isto é, aoexpansionismo e à dominação – ancorada na ideologia do Destino Manifesto.

     Jefferson e outros “fundadores” intuíram o d ilema. Jefferson dizia temer pelo futuro dos Estados Uni-dos, “cada vez que penso na justiça de Deus”. Todos eles estudavam, com obsessão, a história do ImpérioRomano: temiam uma decadência semelhante, propiciada pela corrupção dos costumes, pelo autoritarismodos dirigentes, pelo excesso de poder. Abraham Lincoln, logo após a Guerra da Secessão (1861–65), alertoucontra o “crescente poder das corporações”, cuja vocação era tomar posse da direção do Estado.

    No célebre A democracia na América , escrito na década de 1830, o francês Alexis de Tocqueville compa-ra o poder do presidente dos Estados Unidos com o do rei da França. Tocqueville conclui que as restrições aopoder presidencial na República americana decorrem muito mais das circunstâncias históricas que do caráterdas instituições: “É principalmente em suas relações com os estrangeiros que o poder executivo de uma naçãotem a oportunidade de mostrar habilidade e força. Se a vida da União estivesse constantemente ameaçada, (...)veríamos o poder executivo crescer na opinião pública, pelo que se esperaria dele e pelo que ele executaria.”Profeticamente, o arguto observador da nova nação apontava a guerra como fonte potencial de um desequilíbr iode poderes, que favoreceria o executivo.

     As guerras, de fato, ampliaram enormemente a força do poder executivo. A Guerra Fria, mais até que as“guerras quentes”. O republicano Richard Nixon, eleito em 1968, autorizou, sem consultar os parlamentares,

    o início dos bombardeios no Camboja, ampliando a Guerra do Vietnã. No seu governo, as atividades secretase ilegais da CIA expandiram-se como nunca. O Império tornou-se uma ameaça direta à República.Mas, no fim das contas, a República derrotou o Império. Grandiosas manifestações públicas contra a 

    guerra no Vietnã garantiram o vigor dos direitos civis e da democracia. Na seqüência, as investigações da imprensa sobre o Caso Watergate deflagraram o processo de impeachment  de Nixon, forçando-o a renunciar.

     Agora, há muitas dúvidas no horizonte. A “guerra ao terror” proporciona uma nova oportunidade para o fortalecimento do poderexecutivo. Bush, na sua ofensiva contra as instituições democráticas da República, conta com o apoio bovino de uma mídia hipnotizada pelo “patriotismo” chauvinista. O confronto ainda não está decidido, mas se o Império ganhar, acontecerá uma catástrofe global.

     A v isão de um mundo sombrio ,hostil e ameaçador, é o alicerce da Doutri-na Bush. A “nova Roma” acredita estar siti-ada por hordas ferozes de “bárbaros”, dis-postos a tudo para destruir os seus valores emodo de vida. Mas, ao contrário do Impé-rio Romano, não existe uma limes , pois os“bárbaros” estão em todos os lugares.

    De acordo com a Doutrina Bush,o inimigo difuso e ubíquo não pode serenfrentado de modo convencional. A nova ameaça exigiria o recurso a instru-mentos extremos, que não estão dispo-níveis normalmente na democracia –como tribunais militares de exceção eprisões preventivas sem acusação formal( veja a matéria à pág. 7). Nem mesmono auge da Guerra Fria aventaram-seiniciativas desse tipo.

    “O cinema terrorista de Hollywood”

    Cenário: embaixada do Estados Unidos no Iêmen. Luz, câmera, ação: fuzileiros navais são chamados para proteger o prédio,cercado por manifestantes que gritam palavras de ordem contra os americanos. No meio do tumulto, o coronel que coordena a evacuaçãoda embaixada, depois de heroicamente salvar a bandeira americana, ordena que seus homens abram fogo contra a multidão. Resultado:83 mortos iemenitas, em sua maioria mulheres e crianças.

     Assim começa o filme “Regras do Jogo”, produzido no ano de 2000 a partir de um roteiro escrito pelo atual secretário da marinha americana, James Webb. Depois das cenas de sangue, o filme acompanha o julgamento do coronel, acusado pelo assassinato dos mani-festantes. Detalhe: ele é retratado como o herói injustiçado, enquanto os representantes dos direitos humanos são os vilões da história. A mensagem final é clara: a violência desmedida faz parte das “regras do jogo”, regras ditadas pelos próprios americanos.

    Escolha e assista a um filme americano, produzido nos últimos anos, que trate da “ameaça do terrorismo”. Escreva em seguida uma redação comentando o modo como as personagens e as razões do conflito são retratadas no filme. Vale a pena lembrar a frase de umimportante diretor de Hollywood, logo após o atentado de 11 de setembro: “a indústria cinematográfica ganhará mais esta guerra!”.

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    David&

    PeterTumley/Corbis

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    BethA.Keiser/Corbis

    Sempre motivados pela exaltação patriótica, operários, bombeiros,médicos e policiais vasculham as ruínas do WTC

     Vista aérea daquilo quesobrou das Torres

    Gêmeas

    Em Cabul, uma dona de casa mantém-se prostrada diante

    das ruínas do local que um dia serviu de abrigo à sua família 

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    ricJ.Tilford/U.S.Navy/GettyImages

  • 8/19/2019 Mundo 0202

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    ABRIL

    2002

    •PANGEA•MUNDO•PAN

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     A   república, proclamada na Colômbia em1819, enfrentou quarenta revoluções antes de “estabili-zar-se”. O século XX começou com a guerra dos mil diasentre conservadores e liberais, as duas vertentes políticasdominantes desde a independência, numa equação sim-ples campo versus cidade. Ou seja: latifundiários e co-merciantes urbanos, os dois bandos de criollos , herdeirosda Coroa espanhola, disputando a ferro e fogo o espólio.O saldo foi de cem mil mortos e um legado de ódios.Um padre, German Guzman, traçou no livro Violência na Colômbia  o retrato de uma sociedade que se habituoua matanças intermináveis. A violência guerrilheira, in-termitente desde os anos 60, se insere no painel maisamplo de uma tragédia nacional.

    Entre massacres e arremedos de eleições os con-servadores governaram absolutos até 1930. Naquele ano,ganharam os liberais, favorecidos pela crise mundial ecrescimento, na Colômbia, da população urbana. Opopulismo inflamado de Jorge Gaitán levantou os po-bres e favelados de Bogotá. O assassinato de Gaitán,em 1948, resultou no “bogotazo”, a revolta popular.

    Então, instalou-se uma certa consciência política noeleitorado liberal, a primeira ruptura no jogo oligárquicolimitado às “23 famílias” que usavam indistintamenteos rótulos liberal e conservador.

    Entre 1948 e 1957 houve uma guerra civil nãodeclarada, com quase 135 mil mortos contabilizados.Em nome da “pacificação”, os militares tomaram o po-der em 1953. Mas as matanças continuaram, de modobrutal. À sombra da ditadura estavam as “23 famílias”.Surgiram as guerrilhas liberais, às quais se juntaramgrupos de esquerda e ultra-esquerda com a opção da luta armada na cabeça há algum tempo.

    Mais ou menos dez siglas guerrilheiras, de iní-cio. A guerra civil resultou na criação de núcleos cam-poneses sem relações com o poder central, para ondeconvergiram candidatos urbanos a revolucionários, so-bretudo estudantes. Chamados de “repúblicas indepen-dentes”, esses núcleos se tornaram alvos militares e ini-ciaram movimentos de guerrilha, hoje condensados emduas siglas: as Forças Armadas Revolucionárias da Co-lômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional

    V I O L ÊN C I A SEM  F I M Guerra civil na Colômbia 

    Newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

    Quando nau fr aga mai s um p r ocesso de pa z, o governo colombiano rotu la os guerr i lhe i r os como “ter r or is tas” par a 

    enquad r á-los na mi r a d e Washi ngton 

    Quem são as Farc

    Os primeiros grupos guerrilheiros colombianos surgiram em meados do século XX, com a radicalizaçãode dissidentes do Partido Liberal, que reivindicavam a herança política de Jorge Gaitán. As Farc nasceramda influência comunista sobre esses grupos.

    Nos anos 60, a insistência na luta armada abalou as relações entre as Farc e a direção do PartidoComunista colombiano. Em 1984, a pacificação do governo Betancur e a criação da União Patriótica, obraço legal das Farc, geraram acesos debates no interior da guerrilha. Mas a opção pela luta armada prevaleceu.

     As Farc organizam-se quase como um exército regular. Seu chefe histórico, Manuel Marulanda, o“Tiro Fijo”, o mais velho guerrilheiro do mundo, mostrou no livro Cuadernos de campaña  que, hoje, asFarc mesclam a nostalgia de velhas lutas políticas com uma mentalidade militar. As relações da guerrilha com o narcotráfico e o uso de seqüestros como forma de financiamento obscurecem as pretensões refor-mistas de esquerda. (Newton Carlos).

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    PedroUgarte/Corbis

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    LuisAcosta/Corbis

    (ELN). A primeira, e maior, de extração comunista ( veja o Box ). A segunda, de origem castrista. As duas, soma-das, com cerca de 20 mil combatentes.

    Então, operações encobertas do exército colom-biano procuraram uma saída, treinando e equipandoagrupamentos paramilitares, e estimulando matanças.Hoje, os paramilitares são uma força com oito mil ho-mens, comportamento de assassinos, fora do controledo exército. Sua atividade principal é aterrorizar gentedo interior e evitar que ela dê apoio “logístico” à guer-rilha. São financiados sobretudo por latifundiários.

    Os narcotraficantes, com movimento de caixa anual calculado em oito bilhões de dólares, se espalhamem todas as direções. Pagam “impostos” de proteção àsguerrilhas de esquerda, se infiltram num sistema políti-co corrupto e dão algum aos paramilitares. A guerrilha também consegue recursos por meio de seqüestros de“símbolos da oligarquia”, como políticos e empresários.

    Pela primeira vez desde o f im da Guerra Fria, osEstados Unidos oferecem à Colômbia grandes somasde ajuda militar sem vinculá-las diretamente à guerra às drogas. O Plano Colômbia, com verbas de mais deum bilhão de dólares, foi aprovado no governo BillClinton com um formato rígido, pelo menos no papel:distinção entre contra-narcóticos e contra-insurgência.No projeto de orçamento de 2003, Bush acabou comessa distinção.

     Assessores militares americanos, proibidos peloCongresso de entrar em combate, se aproximam da li-nha de frente. Quando foi rompido o “processo de paz”,o presidente colombiano, Andrés Pastrana, pela primeira vez chamou os guerrilheiros de “terroristas”. Assim,procurou suprimir o estatuto de opositores políticos dosquais gozavam as Farc e o ELN, enquadrando-os comoalvos da “guerra ao terror” de Bush. O início de uma nova era, ainda mais tormentosa?

    Os PP, como são chamados os processos de paz,começaram na Colômbia em 1982, com a eleição deBelisário Betancur empunhando a bandeira da pacifi-cação. Hesitantes, as Farc assinaram um cessar-fogo, em1984, e criaram a União Patriótica como seu braço le-gal. A União Patriótica teve 350 mil votos nas eleiçõesde 1986 e 350 militantes assassinados. A “abertura de-mocrática” de Betancur naufragou e a violência reto-mou o seu curso. Só 12 anos depois, um outro presi-dente, Andrés Pastrana, voltou a encarar seriamente a questão de uma paz negociada.

    Pastrana desmilitarizou uma área do tamanhoda Suíça, transformando-a em território neutro, no qualas Farc e o governo pudessem negociar. Um cessar-fogoseria implantado em abril próximo, mas o seqüestro deinfluente senador precipitou o colapso, em fevereiro,de mais um PP. Contudo, o pano de fundo já era desfa-vorável ao cessar-fogo. Os militares colombianos con-sideram “humilhação” negociar com a guerrilha. Ogoverno Bush também exigia mais dureza no trato comas guerrilhas.

    Entre os colombianos comuns, a sede de pazconverteu-se em sede de “lei e ordem”. Pela primeira na história colombiana, um candidato presidencial in-dependente, Alvaro Uribe, ameaça o rodízio entre libe-rais e conservadores. Uribe é um conservador que pro-mete mão de ferro contra as guerrilhas. Seria a escolha certa? Embora as forças armadas da Colômbia gastem,no momento, mais de três bilhões de dólares e tenhamassegurada a ajuda bilionária americana, os mais oti-mistas calculam que ainda demoraria quatro a sete anospara estarem preparadas para enfrentar as Farc. O go-verno não tem controle efetivo sobre 40% do territórionacional.

     A pretexto de combater onarcotráfico, militares americanostreinam soldados colombianos(foto acima); o alvo verdadeiro sãoos grupos guerrilheiros, queincluem as Farc e o ELN (cujosintegrantes aparecem, na foto aolado, ao entregarem, em 15 de junho de 1999, civis sequestradosduas semanas antes)

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    Fragmentos de ideologias

    Demétrio MagnoliEditor de Mundo 

    O 2o Fórum Social Mundial tinha, em lugar de destaque da sua agenda, a “luta pela paz no mundo”. Sob esse temário, os participantes abordaram diversosconflitos internacionais – mas não a principal guerra em andamento durante o pró-prio Fórum. A campanha liderada pelos Estados Unidos no Afeganistão, que entãoencontrava-se na fase de pesados bombardeios aéreos contra cidades e povoados,ficou fora da agenda do Fórum!

    Incrível? Sim, se você acreditou que o evento é uma reunião plural e demo-

    crática de todas as correntes que se opõem à “globalização excludente” – que é comoo Fórum se apresenta para o público. Mas não, não é incrível, se o Fórum for anali-sado por aquilo que realmente é.

    O Fórum é um instrumento da aliança entre a França que almeja ser potência global e o PT que almeja a certidão internacional de partido apto a governar. A França,desde Charles De Gaulle, procura recuperar uma influência mundial perdida com asduas grandes guerras do século XX e a descolonização afro-asiática. Hoje, nas condi-ções adversas do pós-Guerra Fria, os herdeiros socialistas de De Gaulle batem-se contra a muralha da hegemonia global dos Estados Unidos. A candidatura Lula surge, para eles, como a promessa de uma parceria estratégica na América Latina.

    O Fórum tem direção e funciona como instrumento ideológico da aliança entreos socialistas franceses e o PT. A sua estrutura organiza-se em dois pavimentos. O pavi-mento superior é formado por um comitê organizador que veicula as posições dessa aliança. Nele são tomadas as decisões relevantes. O Afeganistão não podia ser discutidopois uma declaração contrária à “guerra ao terror” de George W. Bush atingiria, direta-mente, o Estado francês (isto é, atualmente, o governo socialista de Lionel Jospin), queparticipa da coalizão liderada pelos Estados Unidos e enviou tropas ao Afeganistão. Mais:não podia ser discutido pois Lula tem se dedicado a provar a Washington e aos organis-mos financeiros internacionais que está “apto” a governar o Brasil.

    O pavimento inferior é formado por incontáveis Organizações Não-Governamen-tais (ONGs) e movimentos sociais. As discussões nesse pavimento conferem o colorido“plural” e “democrático” ao Fórum. Ali, há propostas de impor uma taxa aos fluxos interna-cionais de capitais (a Taxa Tobin), assegurarcompleta proteção tarifária aos produtoresagrícolas franceses, proibir o plantio detransgênicos, realizar a reforma agrária noBrasil, controlar as remessas de lucros dasmultinacionais, impedir a criação da Alca,defender os direitos dos índigenas mexica-nos de Chiapas – entre outras centenas deidéias de organizações nacionalistas, campo-nesas e ambientalistas. São fragmentos de ide-ologias, que não formam uma visão coerentede futuro e, por isso, funcionam como balasde festim. Muito barulho, pouca eficácia.

    O barulho do pavimento inferiortem utilidade para a direção. Confere aoFórum a aparência de um caleidoscópio, demodo que cada um enxerga aquilo que gos-taria de ver. Mas o Fórum não produz uma declaração política final. Assim, os fragmen-tos de ideologias do pavimento inferior nãogeram compromissos e a direção permane-ce com as mãos livres para governar comoquiser, na França ou no Brasil.

    Os dirigentes do Fórum se pro-põem a fazer a crítica da globalização edo que chamam de “pensamento único”.Mas não suportam que o próprio Fórumseja interpretado como um fenômeno quese inscreve no campo da política – e queestá, portanto, sujeito à crítica. Quandoisso acontece, rotulam os críticos de “la-caios de Washington”, ou “da mídia glo-bal”. Assim, provam que estão “aptos” –no pior dos sentidos – a governar.

    FÓRUM SOCIAL MUNDIALO 2 o  Fór um Socia l Mu ndi al ( FSM) , qu e se reali zou em fever eir o, em Por to Alegr e, éum sintom a de qu e “alguma coisa está fo r a d a no va or dem mu ndi al” – como Mundo assi na lou na sua ed ição de ma r ço. Nesta edição, voltamos ao tema. Aqu i , doi s in tegr ant es da equ ip e deMundo manif estam sua s opi niões sobr e o FSM. A idéia éesti mu lar o debat e, of erecendo ar gumentos contr ad i tór i os 

    sobre o signif ica do po líti co do evento.

    Um outro mundo é possível

     Jorge de Almeida Editor de Texto&Cultura 

    “Um outro mundo é possível”, o lema do 2 o Fórum Social Mundial pareceter incomodado muita gente. A grande imprensa, cada vez mais ocupada na promo-ção dos reality-shows , tratou o encontro como uma festa de desocupados inconse-qüentes. Vários políticos acusaram o fórum de ser, no fundo, “um evento político”. Articulistas bem e mal intencionados cobraram dos participantes “teses conclusivas”e “propostas viáveis”. Burocratas e tecnocratas desdenharam a “falta de bom sensoeconômico” das mais de 4,9 mil Organizações Não-Governamentais (ONGs) repre-

    sentadas em Porto Alegre, enquanto acadêmicos ingênuos se esforçaram em desco-brir os “reais interesses” por trás do encontro, denunciando a ingenuidade dos quase80 mil participantes que teriam servido como “massa de manobra” na mão de parti-dos nacionais e estrangeiros.

    Todas essas críticas apenas reafirmam a necessidade e importância do FórumSocial Mundial. Começando pela imparcialidade e superficialidade da cobertura  jornalística, que demonstra a urgência do debate sobre a democratização da mídia edefesa da liberdade de expressão na Internet, em um mundo onde quatro grandescorporações controlam grande parte da informação difundida pelo globo. Oshowrnalismo  (para usar um termo de José Arbex) ignora ou simplesmente distorceeventos baseados na discussão aprofundada de temas realmente relevantes. Um doseixos do debate em Porto Alegre buscava justamente refletir sobre possíveis alterna-tivas de difusão de idéias e notícias não veiculadas pelos “novos cães de guarda”.

    Por essa e várias outras razões o Fórum Social Mundial foi, de fato, umevento político. E no significado mais profundo do conceito, que designa justa-mente a reflexão cotidiana sobre os diversos sentidos da participação pública emum mundo onde a palavra “política” costuma ser empregada como termo pejorati-vo. Os que esperam propostas e teses imediatas e definitivas contribuem para queisso ocorra, pois consideram perda de tempo o debate de questões “políticas” porrepresentantes da sociedade civil, que estão justamente resistindo contra os queatualmente possuem o poder para impor teses e soluções definitivas, apesar dedesumanas e autoritárias.

    Os defensores do suposto “bomsenso econômico”, reunidos no FórumEconômico Mundial de Nova York, con-vidaram o roqueiro Bono Vox para dis-cutir o problema da fome na África. A imprensa adorou. Em Porto Alegre, os re-presentantes de comunidades africanastrocaram idéias e experiências com outrospovos na mesma situação, abrindo assimo caminho para aquilo que o geógrafoMilton Santos chamava de “uma outra globalização”, capaz de desmascarar essefalso “bom senso”, que produz miséria edesigualdade em níveis insuportáveis edefende práticas econômicas ecologica-mente suicidas.

    O fórum, ocasião para o amplodebate democrático desses temas, apela ao verdadeiro bom senso afirmando quea sociedade e a economia não estão ba-seadas em “leis eternas e imutáveis”, massim são fruto da história, que cabe aoshomens transformar. Isso incomoda osque percebem no encontro apenas o jogode interesses de determinados países, sementender que são justamente as tensõese contradições que, em um evento comoo fórum, dão vida ao sentido pleno da prática democrática.

    Diante de todas essas críticas, sur-ge a certeza de que o Fórum Social Mun-dial está no caminho certo, pois “um ou-tro mundo”, além de sem dúvida possí-vel, é hoje, antes de tudo, necessário.

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    AgênciaEstado

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    AgênciaEstado

    Grandes conferências e manifestações de rua contra a política externa da Casa Branca marcaram o Fórum de Porto Alegre

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     A SEMANA  QUE MARCOUO SÉCULO XX 

    Por Maria Augusta Fonseca (*)

     Às vésperas da “Semana de Arte Moderna”, re-alizada em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal deSão Paulo, Mário de Andrade anunciava no prefáciode seu novo livro de poemas,Paul icéia desvai rada : “So-mos os primitivos duma nova era”. Para entender essa declaração, e as reivindicações do grupo modernista que articulou a Semana de 22, é necessário considerareste movimento de renovação das artes no seu proces-so histórico, observando um complexo de relações.

    Um rápido olhar para o início do século XX mostra São Paulo ainda com ares de província, compoucos recursos de infra-estrutura e com boa parteda população vivendo em condições precárias. É poresse tempo que a cidade começa a passar por trans-formações radicais, surgindo como o maior parqueindustrial da América Latina. As mudanças não se-rão triviais. A indústria representará então a face nova do país, dividindo espaços com a riqueza das tradici-onais lavouras de café, nosso principal produto agrí-cola de exportação. Esses dois pólos situavam SãoPaulo no eixo da economia do país, a indústria, querepresentava o renovar dos modos de produção, e a cultura cafeeira, controlada pela velha oligarquia rural. E aqui vale lembrar que uma parte significati-va dos modernistas de 22, intelectuais e artistas quebatalharam no país para atualizar a mentalidade atra-sada, no âmbito das artes, fazia parte dessa “aristo-cracia cafeeira”. Faca de dois gumes, porque, em ra-zão disso, tiveram o privilégio de uma excelente for-mação, de atualizar suas bibliotecas, de aprimorar co-nhecimentos com viagens pela Europa. Como resul-tado, puderam entrar em contato com artistas de van-guarda, participar de encontros, freqüentar ateliês depintura, como os de Léger, dialogar com Picasso,Brancusi, partilhar da companhia de Blaise Cendrars.

     A implantação da indústria ajustava o Brasil aosnovos apelos do capital. O ingresso na era das máquinase da tecnologia, ainda que de modo periférico, arejava caminhos. No entanto, para que se cumprisse o novoprojeto, as fábricas necessitavam de técnicos qualificados e de mão-de-obra especializada,o que não havia no país. O velho continente convulsionado por guerras, fome, persegui-ções políticas, foi responsável pela chegada de grande número de imigrantes. Fora oapelo profissional, muitos buscavam no Brasil um lugar de refúgio e o sonho de temposmelhores. Da Europa e de outras partes do mundo vieram italianos, espanhóis, árabes, judeus, japoneses. A maioria fixou-se em São Paulo. Com sua presença, o cotidiano da cidade alterou-se. Alguns desses grupos introduziram no país novos modos de organiza-ção social e de luta por direitos dos trabalhadores. E todos contribuíam com seus hábitosculturais. A necessidade de um rápido aprendizado da língua, porém, trouxe mais misce-lâneas ao português que era falado no Brasil. E isso ocorria no ajuste de termos, nasexpressões, provocando alterações de ritmo, deturpações fonéticas e sintáticas. Soma-vam-se a outros modos de dizer das vozes locais e migrantes. A cidade assimilava essa mixórdia de modo convulsivo, como um dado de atualidade. O escritor Juó Bananére,um dos precursores do nosso modernismo, registrou a algazarra da fala paulistana imi-grante em La  Di vina I ncrenca , escrevendo paródias, como “Sunetto Futuriste”:

    “Tegno una brutta paxóP´rus suos gabello gôr di banana,I p´rus suos zolios uguali dos lampióLa da Igreja di Santana.”

     A cidade habitada pelos modernistas ia ampliando seu traçado urbano, rece-bia obras de infra-estrutura sanitária, via chegar novidades da tecnologia e serviçospúblicos melhores, como luz elétrica, telégrafo, trens, bondes. Vinham com eles otelefone, os automóveis, assim como novos teatros e salas para projeções da artecinematográfica. Esse é o contexto em que se organiza parte do grupo modernista,impulsionado desde 1917, com a exposição da pintora Anita Malfatti, em São Pau-lo, com obras ligadas ao expressionismo alemão e ao cubismo.

     A exposição causou um verdadeiro rebuliço no meio conservador, princi-palmente depois de ataques feitos, pelo jornal, por um escritor de muito prestí-gio: Monteiro Lobato. Por sua visão acadêmica em relação à pintura, considerouque as obras eram manifestação de “paranóia ou mistificação”. A exposição foidefendida por Oswald e considerada o estopim do movimento modernista brasi-leiro. Depois dela, a arte moderna passou a ser objeto de discussões, encontros,palestras e debates no grupo integrado por Oswald de Andrade, Mário de Andrade,

    Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, e pela própria Anita Malfatti (Tarsila do Amaral, fora do país, irá se juntar ao grupo meses depois da Semana). O grupoainda contava com Di Cavalcanti e Victor Brecheret, Graça Aranha e Ronald deCarvalho. Preparavam assim a “Semana de Arte Moderna”.

     A Semana serviria de motivo para comemorar o Centenário da Independência do Brasil, com um outro grito, o de nossa independência artística. É difícil imaginar oimpacto causado pelas apresentações da Semana de Arte Moderna no público quecompareceu ao Teatro Municipal, o mais importante da cidade, inaugurado onze anosantes. Senhoras e senhores da elite, em seus trajes de gala, juntavam-se a representantesda política local, para testemunhar o mais irreverente dos espetáculos até hoje ocorridonaquele teatro. A maioria, cujo padrão de gosto era duvidoso, abominou o espetáculo,vaiando a própria classe que, afinal, pretendia mostrar suas experiências e um novomodo de ver as artes. Já no primeiro dia, o grupo chocou a platéia. A reação mostrava que não seria fácil destruir os padrões estéticos vigentes e ultrapassados.

    Quando a Semana aconteceu, o autor de Macunaíma , Mário de Andrade, já era um conceituado professor de piano do Conservatório de Musical de São Paulo.E, como Anita Malfatti na pintura, Mário foi o abre-alas da literatura modernista,com seu livro de pormas Paul icéia desvai rada . O título referia-se a São Paulo (quemuitos chamavam de Paulicéia) e o adjetivo “desvairada”, entre outras coisas, desig-nava as intenções de uma poética ousada. Na capa, losangos coloridos traziam, emfragmento, detalhe das vestes de um arlequim. O livro recebeu elogios calorosos deOswald de Andrade, num artigo de jornal intitulado “O meu poeta futurista”. Para Oswald, o termo significava apresentar alguém de espírito aberto para pensar uma arte projetada para o futuro. Lido hoje, pode parecer absurdo, mas à época causoutranstornos e desagradou Mário de Andrade.. O primeiro deles foi o termo futurista,porque já estava associado ao futurismo de Marinetti (escritor italiano ligado a Mussolini). Além disso, futurista era para muitos um xingamento, o mesmo quelouco, desmiolado.

     Não sabemos o que queremos. Sabemos o que não queremos.

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    Iconografia

     A foto abaixo mostra participantes e organizadores da  Semana de 1922,incluindo Oswald de Andrade (1), Luís Aranha (2), Mári o de Andrade (3), Cândido Mota Filho (4),

    RenéThiolli er (5), Manuel Bandeira (6), A. F. Schmidt (7), Paulo Prado (8) , Graça Aranha (9),

    Goffredo da Silva Telles (10) 

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    Na literatura, o movimento modernista pôs em prática um projeto comum:expulsou da poesia a adjetivação rebuscada e desnecessária, libertou-a das regrasrígidas de metrificação, aboliu as rimas bem-comportadas. De um modo geral,por meio de uma expressão irreverente, satírica, brincalhona e inventiva, os mo-dernistas exploraram as formas breves, o estilo telegráfico, o elemento surpresa,desestabilizador. Nada disso surgia por acaso. Era um modo de processar o mundomoderno, de representar simbolicamente sua face fragmentada. O poema-relâm-pago, a colagem, a simultaneidade, o poema extraído de uma notícia de jornal, a ausência de pontuação para acelerar ritmos, as quebras inesperadas de versos e a arte crivada de humor, mostravam um modo de apreender a atualidade e darconta de suas contradições. Cantavam assim o progresso da cidade, os meios detransportes velozes a encurtar distâncias, bonde, trem, transatlântico, avião. Opresente com suas máquinas fascinantes, numa cidade pacata. Mas, também mis-turavam a isso as tradições populares abrasileiradas, e as histórias devedoras denossa origem, latina, ameríndia, africana. Músicas, lendas, danças dramáticas, di-ferentes dicções da língua eram pesquisadas no interior de São Paulo, no refrão derua, nas brincadeiras de crianças, na cidade e nos quatro cantos do país.

    O movimento modernista não foi uniforme. O período de ouro foi até 1929. Ao longo dos anos 20, houve muitas divergências e rupturas. Grupos se coloca-ram de modo antagônico, como Pau Brasil (Oswald) e Verde-amarelo (PlínioSalgado). Muitas vertentes revelaram-se conservadoras. Das sementes deixadas pela Semana, muitas vingaram, deram frutos, se transformaram, direcionadas pelasnecessidades e armadilhas dos tempos. O cinema, o teatro, a arquitetura, nos anosposteriores, valeram-se daquelas reflexões. Os modernistas prepararam o espíritolocal, permitindo que a arte moderna tivesse um lugar de destaque no espaço da cidade. Nos anos 50, foi inaugurada a I Bienal de Arte Internacional, em SãoPaulo, mostra que se mantém até hoje, e que acontece num Pavilhão do Ibirapuera.

     A música popular brasileira, com o movimento Tropicalista (liderado porCaetano Veloso), nos anos 70, resgatou o modernismo diretamente de manifes-

    tos de Oswald de Andrade e de sua poesia Pau Brasil. O poeta Torquato Netocompôs “Geléia Geral”, com música de Gilberto Gil. Mas, não é apenas pelouso mais ostensivo que observamos as influências. A simplicidade como fontede beleza também está presente na bossa-nova de João Gilberto. O intimismoda poesia de Bandeira ressoa em certas composições de Tom Jobim. Os temassociais e prosaicos misturados à lírica de Chico Buarque de Holanda são deve-dores de questionamentos artísticos postos em prática pelo modernismo, mes-cla da dicção popular, da fala cotidiana, num registro também culto.

    O Brasil, de contrastes e injustiças, com todo tipo de segregações e precon-ceitos, ainda hoje problemáticos, esteve sempre presente nos questionamentosmodernistas. Por certo muitos ficaram na superfície, pintando o pitoresco, massua arte ressecou. Em contrapartida, basta ler a rapsódia de Mário de Andrade,Macunaíma , para avaliar sua atualidade poética e o grau de profundidade com

     A informação serve para lembrar que Mário de Andrade subiu ao palco doMunicipal para recitar poemas de Paul icéia desvai rada . O primeiro, “Inspiração”,recebeu vaias e mais vaias. Anos mais tarde, no ensaio “Movimento modernista”, oescritor confessou ter sido difícil naquele dia chegar ao fim de sua função. Os versoslivres de abertura do poema evocam a cidade em seus fragmentos, a arte de extratopopular, a linguagem coloquial:

    “São Paulo! comoção de minha vida...Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Trajes de losangos... Cinza e ouro... ”

    O repertório da Semana  foi variado, e os espaços do Municipal bem explora-dos. Nos saguões, por exemplo, era possível ver “O japonês”, de A. Malfatti, ao lado deesculturas de Brecheret. Nas escadarias, houve leituras de textos críticos e, no palco, osmodernistas tocaram música, leram poemas, disseram trechos de seus romances. Oswaldde Andrade leu um trecho de seu livro Os condenados , desagradando o público. Al-guém declamou “Os sapos”, de Manuel Bandeira. Além dos cantos, foram executadaspela pianista Guiomar Novais peças do compositor Villa-Lobos e de Debussy.

    O escritor Menotti Del Picchia, muito atuante no grupo, fez um relato dosegundo dia (15-3) de apresentações numa crônica para o jornal Correio Paulistano .O título era: “Noitada de glória e de guerra a de ontem, no Municipal.” Menottiresumiu um pouco o que se passou no teatro – vaias, assobios, desacatos da platéia,manifestações ostensivas de desagrado. Ressaltou então que, embora muitos dos pre-sentes fossem pessoas cultas, mostraram-se como eram, pois alguns cantaram como

    galo, outros latiram como cachorro. Ferino, Menotti atacou: “cada um fala na lín-gua que Deus lhe deu...”

     Apesar dessas reações contrárias e opressivas, a arte moderna ingressava na cidade, e aos poucos chegava a outros cantos do país, para impor mudanças dehábitos e de olhar. O movimento modernista era agora irreversível. Seu lema – “Nãosabemos o que queremos. Sabemos o que não queremos.” – começava a mudar,ganhar contornos mais definidos sobre o que queriam. Fartos do atraso, da artemacaqueada por insegurança, cada qual a seu modo procurava avaliar as lições da Semana e, criticamente, pôr em prática em sua arte valores estéticos da vanguarda européia, e do mesmo modo dar visibilidade artística às pesquisas que efetuavamsobre o Brasil, de natureza étnica e cultural, envolvendo manifestações de arte popu-

    lar (como em telas de Tarsila do Amaral).Na literatura, o objetivo principal foi resgatar a língua falada no Brasil, e usá-la como matéria-prima da expressão poética, deixando de lado as normas do portuguêsde lei, entendidas como artificiais e obsoletas no Brasil, para substituí-las pela oralidadeda fala cotidiana. Queriam ver a época com olhos livres, seguir de perto os ritmosmutantes da vida moderna, sem perder de vista nossa formação cultural cheia demesclas. Assim, os ideais da Semana se aprofundaram e tomaram rumos novos, compropostas radicais na literatura, para o resgate da “contribuição milionária de todos oserros.” Afinal, completava Oswald de Andrade, “como falamos, como somos”.

    Maria Augusta Fonseca  é professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, autora de “Palhaço da burguesia” [Editora Polis]

    e “Oswald de Andrade. Biografia” [Art-Editora].

    “Revivendo a Semana de 1922”

    O Modernismo defendia a necessidade de aproximação entre a arte e

    a vida. Isso se refletia tanto no tratamento artístico de temas e materiaiscotidianos quanto na defesa de uma relação viva com as obras de arte.

    Quando se estuda a Semana de 1922, muitas vezes fica-se perdidodiante da grande quantidade de escritores, artistas e movimentos quecompõe o movimento modernista. Que tal insuflar um pouco de vida nesses nomes, conhecendo e experimentando um pouco das idéias eemoções cristalizadas em suas obras?

    Com a classe dividida em grupos, organize uma “semana de arte mo-derna”, ou seja, uma série de exposições, audições e leituras para mostraraos colegas de outras séries da escola toda a riqueza da literatura, da música e da pintura modernistas.

    “Sobre a cabeça os aviões, sob meus pés os caminhões”que trata o Brasil e trabalha suas raízes na forma artística, a começar pela fala cheia de mesclas. Quem não conhece o “Ai! que preguiça!...”, desabafo do “he-rói de nossa gente”. Representado no teatro pelo grupo de Antunes Filho efilmado por Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma  mantém vivas as questõesdo movimento modernista.

     As “odisséias” de 2002 são outras, no espaço sideral. Bondes, barracões decircos, telefones e radiolas movidos por manivelas dão lugar a computadores,discos compactos, celulares, clones, naves espaciais, televisões. A batalha de 22foi início, e não fim. Os modernistas cumpriram seus propósitos. Transforma-ram-se, violando aqueles princípios poéticos a que estavam aprisionados e, pormeio deles, atacaram de surpresa o gosto público com divertidas bofetadas.Mostraram a linguagem da arte como um veículo possível para propor novosproblemas e reconduzir outros, por vias oblíquas e inesperadas. (M.A.F.)

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    RogérioReis/

    PulsarImagens

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    AgênciaEstado

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    Iconografia

    Nos anos 60, o Cinema Novo

    de Gláuber Rocha (acima) e a Tropicália de Caetano Veloso,interlocutores da Semana de22, renovaram a cultura brasileira; o modernismotambém inspirou a obra domestre Tom Jobim (ao lado)

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     J  á existe uma geração para a qual as lem-branças da infância ou da adolescência passam pe-las aventuras vividas entre luzes, escadas rolantes,espelhos, sons eletrônicos e o odor típico das praçasde alimentação dos shopping centers. É a mesma geração que deixou de aventurar-se de ônibus des-cobrindo cantos e recantos de suas cidades, que nãoandou de um lugar a outro à noite, sentindo a ga-roa ou a brisa do mar, que não dirigiu automóveissentindo a liberdade do vento no rosto pois os vi-dros já não estão abertos.

    O shopping, equipamento urbano típico das

    cidades contemporâneas, é um fenômeno bastanterecente. No Brasil, está indissociavelmente relacio-nado à violência urbana e, acima de tudo, à desvalo-rização do espaço público em privilégio do privado.

    Discutindo a temática urbana, na obra Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun (SãoPaulo, Unesp, 1998), Jacques Le Goff afirma ser “a sociabilidade, o prazer de estar com o outro, o queestabelece em definitivo a diferença urbana, a urba-nidade”. O historiador francês ressalta as quatrofunções básicas que permitem que a cidade seja olocusda sociabilidade: troca, segurança, poder e ino-vação. Desde a Alta Idade Média – respeitando-seas particularidades históricas e regionais – a forma-ção das cidades é moldada a partir de ideais de con-

    vivência e diálogo (troca), de proteção e conforto(segurança), da justiça e do bem comum (poder) e,finalmente, de beleza, pujança e lazer (inovação).

     A metrópole de meados do século XIX –antecessora direta da cidade atual – foi o cenário deprofundas idealizações, tanto dos que comungavamo chamado ideal burguês civilizatório como dos quealimentavam esperanças de uma organização socialradicalmente nova, como anarquistas e socialistas.Uma espécie de exaltação da sociabilidade e da pai-sagem urbana foi responsável pela construção das maisbelas edificações e de projetos de remodelação de ci-dades inteiras. Entre as inovações urbanas notáveisdestaca-se a reurbanização de Paris, com a criação depraças e bulevares pelo arquiteto Haussmann (entre

    1854 e 1883); a criação das edificações desconcer-tantes de Antonio Gaudí e dos modernistas em Bar-celona (entre 1850 e 1925); a construção do EmpireState em Nova York (1931). Um pouco mais tarde, a construção de Brasília (1956-60) colocou o Brasil na rota das inovações arquitetônicas embaladas pelossonhos urbanos.

    O crescimento da cultura do consumo e a criação de grandes magazines também foram im-portantes agentes de inovação nas cidades moder-nas, além de representarem oportunidades de en-contros e trocas. As lojas sofisticadas eram espaçosde encantamento e fascínio, do flanar pelas ruasolhando pessoas e vitrines, num clima próprio queinebria e rompe a mesmice do