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MÚSICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DO ACERVO DA BANDA CARLOS GOMES DE

BOCAINA-SP

Marcos da Cunha Lopes Virmond1

Fernando Fracarolli2Daniel de Morais2

Isaac William Kerr3

Lenita Waldige Mendes Nogueira4

VIRMOND, Marcos da Cunha Lopes; FRACAROLLI, Fernando; MORAIS, Daniel de; KERR, Isaac William; NOGUEIRA, Lenita Wal-dige Mendes. Música e Sociedade através do acervo da Banda Carlos Gomes de Bocaina-SP. Mimesis, Bauru, v. 36, n. 1, p. 139-158, 2015.

RESUMO

Bandas de música são agrupamentos musicais dos mais simbólicos no contexto da cultura brasileira. Seja pela acessibilidade de sua constituição e por um menor compromisso com os rigores da perfor-mance, as bandas de música são ubíquas pelo Brasil em termos tem-porais e espaciais. Neste sentido, a trajetória da Banda Carlos Go-mes, fundada ainda no século XIX no município de Bocaina, em São Paulo foi o objetivo deste estudo. Pretendeu-se investigar a história desta banda e discutir suas relações sociais tomando como recorte o repertório utilizado por esta corporação, conforme análise de seu acervo musical. Verifica-se uma intensa atividade musical em torno deste agrupamento, delineando-se uma progressiva modificação da estética musical ao longo das décadas finais do século XIX e primei-ra metade do século XX, traduzida pela progressiva alteração do re-

Recebido em: 12/01/2015Aceito em: 23/04/2015

1. Professor Doutor do Curso de Música da Universidade do Sa-

grado Coração, USC-Bauru. Pro-fessor colaborador do Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes – UNICAMP,

Campinas.

2. Discentes do Curso de Música da Universidade do Sagrado

Coração, USC-Bauru.

3. Bacharel em Música pela UNICAMP. Regente.

4. Professora Doutora do Depar-tamento de Música e Professora do Programa de Pós-graduação

em Música do Instituto de Artes – UNICAMP, Campinas

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VIRMOND, Marcos da Cunha Lopes; FRACAROLLI, Fernando; MORAIS, Daniel de; KERR, Isaac William; NOGUEIRA, Lenita Waldige Mendes. Música e sociedade através do acervo da Banda Carlos Gomes de Bocaina-SP. Mimesis, Bauru, v. 36, n. 1, p. 139-158, 2015.

pertório da Banda Carlos Gomes. Tal fato, possivelmente, traduz as mudanças gerais ocorridos no gosto musical do país no mesmo perí-odo. Conclui-se que a trajetória da banda Carlos Gomes de Bocaina significa, como ocorreu com suas congêneres em outras cidades, um reflexo da evolução social no Brasil no período analisado.

Palavras-chave: Banda Carlos Gomes. Banda. Bocaina. Musicologia.

ABSTRACT

Music bands are among the most symbolic musical groups in the con-text of Brazilian culture. Due to the accessibility of its constitution and a lower commitment to the rigors of performance, music bands are ubiquitous in Brazil in temporal and spatial terms. In this sense, the aim of this study was the trajectory of the band Carlos Gomes, founded in the nineteenth century in the city of Bocaina, in São Paulo. It was investigated the history of this band and it is discussed their social relations taking as focus the repertoire used by this corporation, after an analysis of its music collection. There is an intense musical activity around this group, outlining a progressive modification of the musical aesthetics over the final decades of the nineteenth century and the first half of the twentieth century, identified by the progressive change of the Band Carlos Gomes repertoire. This, perhaps, reflects the general changes occurring in the musical taste of the country in the same period. It is concluded that the trajectory of the band Carlos Gomes Bocaina means, as with their counterparts in other cities, a reflection of social development in Brazil during the period.

Keywords: Banda Carlos Gomes. Music band. Bocaina. Musicology.

Introdução

A música faz parte da vida do homem e trata-se de manifes-tação exclusiva a ele. A música acompanha o homem desde tempos primordiais e em sua organização social ela sempre tem local pri-vilegiado. Independentemente do grau de sofisticação como ela é organizada e realizada, sua presença é inevitável no dia à dia dos

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VIRMOND, Marcos da Cunha Lopes; FRACAROLLI,

Fernando; MORAIS, Daniel de; KERR, Isaac William;

NOGUEIRA, Lenita Waldige Mendes. Música e sociedade através do acervo da Banda

Carlos Gomes de Bocaina-SP. Mimesis, Bauru, v. 36, n. 1, p.

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indivíduos. Em verdade, ocorre ao longo dos séculos um contínuo aprimoramento da forma de fazer música, mas, paradoxalmente, este aperfeiçoamento, tanto na tecnologia como na sistematização de sua sintaxe, não impede a convivência com formas primitivas de expres-são musical.

Sendo inerente ao homem, a música se expressa por ele e para ele sofrendo diferentes tipos de influências. Nesse sentido, música é arte e arte e sociedade são entes inseparáveis (READ, 1982). Se a missão social da arte é ajudar a compreender e a transformar o homem e o mundo, a música assume função política enquanto trans-formadora, mas, em contrapartida, a música também é transformada pelo meio social. Nesse sentido, a organização da música, desde o seu fazer até seu consumo, é uma via de duplo sentido. De fato, ainda que diferentes funções da música (MERRIAM, 1964, p. 219) possam coexistir em um mesmo tempo, a sociedade pode influir nas diferen-tes etapas de sua produção, desde sua concepção, criação, perfor-mance e consumo. Se isto se evidencia em qualquer sociedade, no Brasil ela se demonstra e caracteriza por diferentes cenários ao longo da história do país, desde seu achamento até os presentes tempos.

Bandas são agrupamentos musicais em que predominam os instrumentos de sopro, madeiras e metais, geralmente com o con-curso da percussão (RANDEL, 1978). Ainda que pequenos grupos musicais pudessem ter este nome, a banda surge na Europa por volta do século XVI e vem se consolidando até assumir a forma básica como a conhecemos nos dias de hoje, o que ocorre nos primeiros anos do século XIX.

Bandas de música são agrupamentos dos mais simbólicos no contexto da cultura brasileira. Seja pela acessibilidade de sua cons-tituição e por um eventual menor compromisso com os rigores dos altos requisitos da performance profissional, as bandas de música são ubíquas pelo Brasil em termos temporais e espaciais. Junto com elas revela-se uma rica história social indissociável do meio que as criou. Como bem afirma Pateo (1997, p. 3)

... [a banda] percorre, ao mesmo tempo, enquanto experiência cultura, o terreno do sagrado e do profano, toca em folias carnavalescas, mas também nas procissões; é de origem militar e também civil; percorre com tranqui-lidade o espaço público e o espaço privada; se faz presente em situações festivas e também solenes. Muito mais do que qualquer outra experiência cultural estruturada neste momento, ela transita nos diversos cantos e re-cantos da vida social, e mais, são criadas e recriadas com uma frequência que historicamente chama a atenção.”

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Neste escopo, o objetivo desse estudo foi descrever e analisar, de forma preliminar, a trajetória da Banda Carlos Gomes na comu-nidade de Bocaina no que tange suas relações sociais tomando como recorte o repertório possivelmente utilizado por esta corporação, conforme análise de seu acervo musical.

São João da Bocaina

Província de São Paulo. Interior. Sertão. Nas proximidades do rio Jacaré-Pipira, junto a um boqueirão no meio da mata, foi fundada pelo Capitão Bento Bernardes Rangel e Luiz Valladão de Freitas, a povoação de “Arraial de São João”, mais tarde chamada São João da Bocaina (IBGE, s.d). Em verdade, Bento Rangel está listado como “lavrador” no Almanak de São Paulo (1873, p. 333) adstrito a Cam-pinas. Para Luiz não se encontram muitas referências, mas um certo José Valladão de Freitas era eleitor registrado no Jaú no mesmo ano de 1873, além de vereador na Câmara Municipal e agente da agência do correio. Sabe-se que Bocaina foi distrito, ou como referido, bairro deste município paulista.

Consta que o nome provém de uma devoção à São João, e o termo “Bocaina” parece estar ligado à existência de um grotão ou boqueirão junto ao qual foi instalado o povoado, em terras doadas por José Inácio e seu sobrinho José Inácio Alvarenga, esses de Jaú.

Corria o ano de 1890 quando o governador Américo Brasilien-se decreta que São João da Bocaina seja elevado a distrito policial e no ano seguinte, elevado à categoria de vila com a denominação de São João da Bocaina, pelo decreto-lei estadual nº 175, de 23 de maio de 1891, desmembrado de Jaú. Em dezembro de 1906 transforma--se em uma cidade. Bocaina teve forte influência do afluxo de imi-grantes italianos que chegaram a São Paulo no século XIX. Uma importante leva desses imigrantes dirige-se a Bocaina em torno de 1888 com vistas, com usual na época, a atuar na lavoura de café. Sua presença marcou definitivamente a vida e a sociedade local, com seus costumes, sua fala e seu modo de ser (Figura 1). A cidade evo-luiu, cresceu. Atualmente, Bocaina é município com ativa economia canavieira e indústria de couro, mas ainda guarda a essência de uma sociedade do interior, principalmente com suas vantagens sobre o tradicional crescimento urbano, muitas vezes desordenado, que ocu-pou muitas cidades do interior paulista com um processo de indus-trialização desordenado.

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Figura 1 – Vista de Bocaina em torno de 1920.Fonte: http://www.cidadedebocaina.com/historia4.htm

A Banda Carlos Gomes

Entre as muitas contribuições dos imigrantes italianos para Bocaina está a criação da Banda Carlos Gomes. Essa corporação teria sido criada em 1888 na Fazenda Santana, com participação tanto de imigrantes com conhecimento musical e músicos locais (FURLANETTO, 2002). De forma similar a outras corporações no Brasil, quase um costume na época devido a grande importância do compositor campineiro, a banda recebe esse nome em homenagem ao ilustre músico brasileiro. Entretanto, ao longo de sua existência ocorrem modificações. Na primeira delas, a banda passa a se chamar “Corporação Musical Principe de Piemonte”, mas em breve modi-fica seu nome para Gomes-Verdi, em uma tentativa de unir os dois grandes nomes da lírica brasileira e italiana. Por fim, em 1927, a corporação retoma o nome original e se intitula novamente Banda Carlos Gomes, denominação que utiliza até a atualidade.

Segundo a historiografia local publicada em número especial do Jornal comemorativo aos 104 anos da cidade, os regentes dessa banda são, inicialmente, Arthur Perondi, seguindo-se em 1901 An-gelo Amarante. Alexandre Perondi, irmão do primeiro regente, assu-me a corporação em 1904. Francisco Gioiosia passa a atuar em 1908, promovendo a primeira mudança de nome da banda. Em 1927 Tulio Guiselli torna-se o regente e o grupo retoma o seu nome original de Banda Carlos Gomes.

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Em 2015, a Banda Carlos Gomes continua a atuar, mas de for-ma restrita devido ao reduzido número de músicos. Sua principal atividade consiste na tradicional Alvorada comemorativa ao dia 1º de maio, dia do trabalho, evento que, segundo tradição oral, remonta sua fundação. De fato, ainda hoje, o grupo inicia sua apresentação pelas ruas da cidade logo ao alvorecer.

Uma proposta metodológica

Uma tradição antiga, com auge no século XIX, as bandas mu-sicais ainda continuam a ocupar seu espaço na organização social das comunidades. Com diferentes graus de intensidade ao longo de sua história, a Banda Carlos Gomes não se afasta desta realidade. As práticas e protocolos de funcionamento das bandas, e esta de Bocai-na não parece furtar-se ao modelo, tem forte conteúdo de significa-dos e interpelações com as práticas sociais do tempo em que atuam. Neste sentido, uma análise de seu acervo musical permite recuperar, em parte, sua trajetória e, a partir desta constatação, conhecer e en-tender a dinâmica da música em Bocaina ao longo dos últimos de-cênios. De fato, como refere Kiefer (1977, p. 66), a análise da vida musical de uma comunidade pode nos dar informações relevantes sobre as preferências do público, o gêneros mais em voga, sobre as classes que mantém e patrocinam esta música. Para tal, propõe--se um estudo descritivo e analítico a partir do acervo musical desta corporação (Figura 2).

Figura 2 – A Banda Carlos Gomes de Bocaina no início do século XX.

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Figura 3 – Outro momento da Banda Carlos Gomes, em torno de 1950, cercada das autori-dades municipais e lideranças da cidade.

O Acervo musical da Banda Carlos Gomes

Comum às corporações musicais, ao longo de sua existência, um precioso acervo musical foi criado para atender às necessida-des de repertório da Banda Carlos Gomes. Isto pode ser constatado ao analisar-se o material depositado na sede da banda que, mesmo em precárias condições de conservação, continua em funcionamento não só pelo interesse de alguns músicos a ela ligados, da nova e da antiga geração, mas também pela existência do prédio de sua sede (Figura 4).

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Figura 4 – a sede da Banda Carlos Gomes em 2015. Bocaina, Estado de São Paulo.

Esta condição tem gênese na própria função social das bandas e a forma de sua criação. De fato, durante o século XIX as bandas não destinadas aos serviços militares, assumiam a função de anteder os desejos por música de fácil acesso para as grandes massas, com apresentações públicas ligadas ou não a eventos oficiais do poder público, agrupamentos sociais da comunidade ou da igreja. Assim, a banda tem uma forte ligação com sua presença pública, na rua. Como atesta Costa (2010, p. 116), “as práticas das bandas de música permitiram manifestações visíveis do que foi o entrecruzamento de várias tradições culturais”.

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Elementos fundamental nesta atividade é o documento mu-sical, a partitura. De fato, partituras e partes são documentos essen-ciais para a prática musical em conjunto no caso de orquestras, ban-das e outros conjuntos que não se enquadrem na condição de música de câmara. Ao longo do século XIX, o crescimento do número de bandas e a progressiva demanda por esses materiais foram percebi-das e estimuladas pelas editoras, particularmente aquelas da Europa, onde a prática musical de conjunto era mais tradicional, extensiva e apreciada. No caso da Itália, a casa editora Ricordi foi particular-mente ativa nesta questão. Seu catálogo para bandas e outros gru-pos instrumentais foi paulatinamente aumentado ao longo do século XIX. Desta forma, esta oferta de material não só facilitava a ativi-dade dos músicos e dos regentes de bandas como permitia a difusão e a apreciação de um amplo repertório que, até então, era restrito geograficamente aos grandes centros como Milão, Roma e Turim. Nesses catálogos, os arranjos e transcrições de trechos de ópera tem papel preponderante nesse período e, progressivamente, a opereta e a música ligeira de influência estrangeira começam a modificar a tendência desses catálogos ao longo da virada para o novo século. A partir de então, ainda que presente a ópera em suas versões trans-critas ou parafraseadas, o gosto pelos novos ritmos menos eruditos assume preponderância. Assim, a valsa ligeira, o fox-trot, as scicilia-nas, o romance e outros gêneros vem povoar o repertorio das bandas e o catalogo das editoras.

A banda Carlos Gomes, em Bocaina, não foge a esta regra. Seu acervo, constituído por diferentes maestros ao longo de sua his-tória, termina por ser um registro de sua evolução e um reflexo da evolução estética desta corporação musical como resposta à deman-da social da comunidade em que se insere.

O acervo divide-se em três grupos: partitura para piano, parti-turas de regência e partes cavadas. As partituras para piano são es-cassas e podem se justificar como fonte primária para eventual con-fecção de arranjos, uma vez que este instrumento não faz parte das forças de uma banda. Essas partituras para piano se limitam a obras de caráter popular, em voga nas décadas de 30 e 40 do século XX. Um exemplo interessante pode ser visto na figura 5, que, mesmo não tendo sido encontrado nenhum arranjo para o conjunto bandístico no acervo, chama a atenção para uma vertente comum no mesmo men-cionado período, isto é, a música popular de caráter de homenagem a vultos da política.

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Figura 5 – Partitura de divulgação política do século XX. A obra soleniza o aniversário natalício de Getúlio Vargas (19 de abril de 1882).Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

O cerne do material se concentra nas partituras de regência com as correspondentes partes cavadas. Nesta relação há casos de partituras manuscritas por copistas, partituras manuscritas de caráter profissional e partituras impressas.

No primeiro caso entendem-se obras que foram copiadas por músicos da banda ou partituras que pertenceram a outras corporações da região. Tal fato revela um pratica corrente das orquestras e bandas

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na figura do copista e arranjador, muitas vezes o próprio regente da corporação, ente necessário para permitir o mister de seus colegas músicas e a própria funcionalidade do grupo, uma vez que essencial a presença de cópias, partes cavadas, para os ensaios e execução do repertório. Por outro lado, diferentes copistas, datas e indicações de localidade nas partituras atestam uma circulação importante, pelo menos no nível regional, desse material. Decorre disto, também, a circulação de uma nova tendência de gênero e gosto musical. Um exemplo dessa atitude, entre vários, é a obra Quand l’amour refleu-rit, de Octave Gremieux, cuja partitura para banda pertencia ao gru-pamento de Jaú, em 1907 (Figura 6).

Figura 6 – partitura pertencente à banda de Jau, com data de 1907, constando do acervo da Banda Carlos Gomes de Bocaina.Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

No que se refere às partes instrumentais, o caso mais comum é das partes copiadas, tanto em páginas separadas como em cader-nos. Este último caso era prática comum por manter, em um mesmo documento, diferentes obras de um determinado repertório. Isto fa-cilitava o manuseio das partes, seu arquivamento e, principalmente, limitava a perda de partes.

Em alguns outros casos, encontramos partituras preparadas por casas editoras especificas para bandas musicais em São Paulo, pre-paradas por copistas profissionais. Esta prática era pouco comum na Brasil do século XIX, mas certamente indica uma clara demanda por

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este tipo de material, atestando a importância das bandas na socie-dade da época (COSTA, 2012, p. 284). Possivelmente, esta era uma forma de dar acesso a obras vindas do exterior, ofertando-as com um custo mais acessível do que o original impresso no estrangeiro e, tal-vez mais importante, permitir a divulgação de obra de compositores locais e facilitar a renovação de repertório. Em São Paulo, uma des-sas casas foi a Casa Scavone e o Estabelecimento Musical de Pedro Weingrill & Filhos que, posteriormente, se transformaria em uma co-nhecida empresa de instrumentos de sopro, a firma Werill. Ainda que importante, verifica-se que essa atividade era secundária para essas empresas. Elas atuavam primariamente na construção e manutenção de instrumentos musicais. Entretanto, na difusão e popularização das bandas essas empresas tiveram papel relevante, demonstrando um empreendedorismo típico do início do século XX (Figura 6 e 7).

Figura 7 – Anuncio publicado em 1907 da firma Scavone e Cia. Faz-se referencia ao sócio Pedro Weingrill o qual, posteriormente, abre uma firma própria.

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Figura 8 – Partitura de regências para o Hino da França, La Marseillaise, preparado pela Casa Scavone.Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

No que se refere às partituras impressas no acervo da Ban-da Carlos Gomes, elas são raras, mas existem exemplos, como é o caso da obra Care Memorie, editada pela Casa Lapini de Florença e Conservatori e Progressisti, sinfonia para banda, de G. del Colle (Figuras 8 e 9). Em verdade, essas duas partituras são exemplo tanto da importância que os grupos bandísticos também disfrutavam na Europa, como a expansão geográfica desta tendência. Mais que isto, atesta o interesse e a relevância que a banda de Bocaina emprestava à sua função de fazer música em uma comunidade;

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Figura 9 – Partitura de obra impressa especificamente para o repertório bandístico.Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

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Figura 10 – Outro exemplo de partitura de obra impressa especificamente para o repertório bandístico.Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

O repertório da Banda Carlos Gomes e sua evolução.

As bandas civis, escopo deste trabalho, tem relevância no tecido social de uma comunidade seja pela sua função agregadora comunitária, seu papel no entretenimento social e, em plano mais focado, na formação musical de grupo que lhe constitui. Tornando-

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-se comum no Brasil desde o início do século XIX, a banda, por diferentes razões, representava também uma forma de expressão de grupos étnicos. Nesse sentido, a Banda Carlos Gomes surge como uma necessidade de representação social de grupo de imigrantes ita-lianos que demandaram a região de Bocaina na década de 1880. Nes-se sentido, em seu repertório inicial predomina a música de ópera e outros gêneros peninsulares. De fato, a ópera apresentava relevante gosto no Brasil do século XIX, principalmente com a vinda da Fa-mília Imperial em 1808 e a organização de uma banda por imigran-tes italianos significava a utilização de um repertório que também lhes era caro e representativo de identidade. Se o acesso ao teatro de ópera era limitado ao Rio de Janeiro e outros poucos centros, como São Paulo, Manaus e Belém (PASCOA, 2009; 2009b ), entre outros, o interesse pela ópera era ubíquo. O repertoria dessa primeira fase da Banda Carlos Gomes atesta tal condição. Entre as obras de seu acervo encontramos trechos selecionados de ópera tais como Il Gua-rany de Carlos Gomes (Ave Maria e Finale; Pot-pourri) (Figura 10), Un Ballo in Maschera de G. Verdi, Giulietta e Romeo de V, Belinni (dueto), Da galeotto a marinado de Giovani Ercolani. . Neste âmbi-to, outra obra que revela a contemporaneidade da banda é a presença da Marcha Fúnebre da ópera Jone de Petrella. Trata-se de uma ver-são para banda da marcha do início do 4º ato desta ópera, trecho que notabilizou esta ópera e que ocupou espaço no repertório das bandas desde sua estreia até os dias atuais.

A ópera continua popular no repertório. O ano de 1924 marca a cópia de uma partitura de uma seleção de trechos de Il Guarany, Mas, com o avanço dos anos, verifica-se a introdução de obras de sa-bor mais popular, tais como tangos, valsas, marchas e dobrados. Um nome que se salienta neste período é o de Francisco Farina, compo-sitor de São Paulo com interessante produção, ao que tudo indica, específica para bandas.

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Figura 11 – partitura de regente da Ave Maria e Finale, trecho do primeiro ato da ópera Il Guarany de Antonio Carlos Gomes.Fonte: acervo Banda Carlos Gomes, Bocaina, SP.

Dele se encontra no acervo da Banda Carlos Gomes um do-brado (Pranto de Alegria) e uma Marcha Triunfal (A Bandeira), em cópia datada de 27 de julho de 1930. Este compositor está ligado a cidade de Jundiai, tendo nascido na Itália em 1862 e falecido em São Paulo em 1933. Aparentemente, sua produção teve larga circulação entre bandas de São Paulo e outros estados do Brasil.

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Novos gêneros vão se agregando ao repertorio. A ópera e o os dobrados passam a ficar menos presentes e o títulos mais evidentes divulgado pelo onipresente rádio e, agora, a televisão, começam a se fazer ouvir na banda. Pode se dizer que isto reflete principalmente uma tentativa de atender a um gosto mutante da própria audiência da banda. Quem dita o que se ouve é o momento e os títulos que se encontram em evidência nos meios de comunicação da época.

Um outro ponto de interesse, resultante da análise do acervo, é que a banda Carlos Gomes, salvo raras ocasiões, parece atender somente a demanda social civil, não fazendo parte constante de fes-tividade de cunho religioso. De fato, com exceção de marchas fúne-bres, um gênero muito comum às bandas, poucas obras são de cunho religioso. Considerando a forte presença da igreja católica na cida-de que, adicionalmente, se notabiliza pela presença das importantes telas de Benedito Calixto na igreja Matriz de São João Batista, tal peculiaridade é tema relevante a ser estuda em outra oportunidade.

Comentários finais

A Banda Carlos Gomes de Bocaina teve um percurso similar a outras bandas de mesma formação no cenário nacional. Seu acervo revela um trânsito amplo entre gêneros desde sua fundação até a atualidade. Como visto, se no início as obras de caráter erudito eram predominantes, onde a ópera tinha espaço privilegiado, outros gêne-ros foram progressivamente incorporados com fim de atender uma demanda social e não uma proposta autônoma do grupo musical. Certamente, a maciça presença e abrangência do radio, nas primeiras décadas do século XX, posteriormente, a introdução e aperfeiçoa-mento da televisão influenciaram de forma marcante o gosto musical da sociedade e, por conseguinte, a demanda de modificações no re-pertorio da banda Carlos Gomes. Parece ser este o destino e, talvez, a função da banda musical que não esteja cingida à atividade militar ou puramente religiosa, onde o atendimento de uma demanda espe-cífica é que dita seu repertorio principal. De fato, as bandas musicais de cidades do interior tendem a um padrão dinâmica na mudança de seu repertório de acordo com o gosto musical imperante. Neste sentido, o caso da Banda Carlos Gomes é exemplar quando se usa um olhar musicológico sobre seu acervo para suportar tal afirmativa.

Independentemente do interesse das autoridades, as bandas musicais passam, atualmente, por uma crise de formação e manuten-

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ção, talvez exatamente por se tratar de uma mídia complexa e lenta se comparada ao imediatismo e facilidade de acessão à informação e à música com qualidade e custo reduzido que as novas mídias per-mitem de forma acessível a, praticamente, qualquer segmento da sociedade. O ritual da banda, potencialmente, parece não mais ser aceito ou suportado por uma sociedade que se permite acesso ime-diato à informação musical, à seleção rápida e sem constrangimento à diferentes gêneros e formas musicais. Desta forma, verifica-se que os grupos mais sofisticados, como as bandas sinfônicas, parecem ter uma presença mais certa dentro deste tipo de grupamento musical do que a tradicional banda de música. Mais que isto, é possível que, percebendo as modificações do cenário cultural e econômico, alguns grupamentos buscaram a especialização, a complexidade de perfor-mance como maneira de resistência e sobrevivência, configurando--se em bandas sinfônicas. Entretanto, as bandas comuns resistem em diferentes condições. Este o caso da Banda Carlos Gome de Bocai-na. Se o que se apresenta hoje em dia é sobejamente diferente do seu início no século XIX, cabe-lhe a gloria de continuar a existir por força de seus integrantes e almeja-se que a comunidade que lhe é adstrita continue a garantir sua continuidade (Figura 12).

Figura 12 – A Banda Carlos Gomes em 2015.

REFERÊNCIAS

Almanak de São Paulo. Antonio José Baptista de Luné e Paulo Del-fino da Fonseca. Orgs. São Paulo: Thypographia Americana, 1873.

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COSTA, Manuela Areiras. As práticas culturais da sociedade musi-cal “União XV de Novembro”. História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2, p. 278-292, jul./dez. 2012.

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PASCOA, Marcio. Ópera em Belem. Manaus: Ed. Valer, 2009a;

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RANDEL, Dom Michael. The Harvard Concise Dictionary of Music. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1978.

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