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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB Faculdade de Direito

    RODRIGO RIBEIRO DE MAGALHES ALVES

    RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA POR CRIMES AMBIENTAIS

    Braslia-DF

    2009

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    RODRIGO RIBEIRO DE MAGALHES ALVES

    RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA POR CRIMES AMBIENTAIS

    Monografia produzida como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Bacharel em Direito pela Universidade de Braslia, sob a orientao do Professor Mestre Nicolao Dino de Castro e Costa Neto.

    Braslia-DF

    2009

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    SUMRIO

    1. Introduo...............................................................................................................................4

    2. O bem jurdico meio ambiente e sua proteo constitucional ................................................5 2.1 Conceito de meio ambiente...............................................................................................5

    2.2 Desenvolvimento da proteo normativa ao ambiente no ordenamento brasileiro ..........6

    2.3 Meio Ambiente e a Constituio de 1988.......................................................................10

    2.3.1 A responsabilidade penal do ente coletivo na Constituio de 1988...........................12

    2.3.2 Princpio da interveno mnima e os arts. 173, 5, e 225, 3 da Constituio Federal ..................................................................................................................................17

    3. Estruturas tericas de responsabilizao da pessoa jurdica.................................................20 3.1 A responsabilidade direta da pessoa jurdica .............................................................21

    3.1.1 Natureza jurdica do ente coletivo: teorias da fico, da realidade objetiva e da realidade jurdica ...............................................................................................................21 3.1.2 A conduta e a vontade da pessoa jurdica ................................................................24 3.1.3 A culpabilidade da pessoa jurdica...........................................................................28

    3.2 A responsabilidade indireta da pessoa jurdica...............................................................30 3.3 O modelo adequado ao ordenamento brasileiro..............................................................33

    3.3.1 Responsabilidade penal da pessoa jurdica na lei 9.605/98 .....................................33 3.3.2 A jurisprudncia ptria sobre o tema........................................................................36

    4. Responsabilidade penal da pessoa jurdica de direito pblico .............................................38 4.1 Argumentos contrrios responsabilizao das pessoas jurdicas de direito pblico ....39 4.2 Pontos favorveis responsabilizao do ente pblico ..................................................42

    4.3 Das penas aplicveis .......................................................................................................46

    5. Concluso .............................................................................................................................48

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .....................................................................................51

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    1. Introduo

    A discusso quanto possibilidade de responsabilizao da pessoa jurdica em mbito penal ganhou novos contornos com a promulgao da carta constitucional brasileira de 1988, gerando um amplo debate em mbito doutrinrio. De um lado, ambientalistas que reconheceram na norma insculpida no art. 225, 3, da Constituio Federal o avano necessrio concretizao da tutela efetiva do meio ambiente. De outro, penalistas mais conservadores, que reafirmam a presente vigncia do princpio societas delinquere non potest em que pese o mandamento constitucional, rechaando qualquer possibilidade de responsabilizao penal coletiva.

    As questes levantadas nesse debate so muitas: pertinncia da aplicao dos conceitos jurdico-penais de dolo, conduta e culpabilidade responsabilizao penal do ente coletivo, violao ou no ao princpio da individualizao da pena, bis in idem, objetivao da responsabilidade penal, penas aplicveis s pessoas jurdicas, ineficcia da ampliao da represso estatal e confronto com a idia de direito penal mnimo, dentre outras tantas que norteiam a discusso do tema. Tais exemplos expem a riqueza de detalhes envolvidos no debate quanto possibilidade de se responsabilizar criminalmente o ente coletivo, o que corrobora a dificuldade encontrada no momento de sua implementao na prtica judiciria brasileira e em todo o mundo.

    Em meio a essa multiplicidade de aspectos que abrangem a responsabilizao penal da pessoa jurdica, surge um ponto ainda mais instigante: possvel responsabilizar o ente pblico penalmente? Essa uma das perguntas que o presente estudo se digna a, ao menos, tentar responder, valendo-se, para tanto, de pesquisas e trabalhos realizados sobre assunto em mbito nacional e internacional, bem como de algumas experincias relatadas at hoje.

    Nesse sentido, o primeiro passo neste trabalho se volta anlise do meio ambiente como bem jurdico protegido pelo ordenamento ptrio e digno da tutela penal. Quanto a esse ponto relevante analisar o caminho percorrido pelo legislador brasileiro at a consolidao do meio ambiente como bem jurdico autnomo, desvinculado, de certa maneira, de outros objetos de tutela pela constituio, a exemplo da vida e sade humana. Em

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    seguida, expor o tratamento dado pela Constituio de 1988 ao meio ambiente, com destaque expanso dos meios de salvaguarda desse bem jurdico.

    O ressalte dado a essa parte do trabalho busca primordialmente retratar a crescente preocupao com os temas ambientais e a necessidade de se aprimorar os instrumentos de proteo e conservao do meio ambiente em face do reconhecimento da ineficcia atual dos dispositivos que se prestam a esse fim. Ao mesmo tempo, a abordagem do meio ambiente como bem jurdico tutelado constitucionalmente permite responder aos questionamentos que envolvem a compatibilizao da criminalizao da pessoa jurdica aos princpios penais da necessidade e da fragmentaridade, fundamentos esses utilizados por muitos para o no-reconhecimento da responsabilidade penal do ente coletivo.

    Em um segundo momento, pretende-se abordar os diversos modelos de responsabilizao da pessoa jurdica, apresentando como so estruturados os elementos de conformao da responsabilidade penal em cada um deles, de modo a analisar ao final qual se coaduna melhor nossa realidade normativa.

    Finalmente, passa-se a perquirir a possibilidade de responsabilizao penal do ente pblico frente atual situao do ordenamento ptrio sobre o tema, levantando-se os argumentos prs e contrrios a essa tese, as penas aplicveis ao Estado e os benefcios que estas podem trazer tutela ambiental.

    2. O bem jurdico meio ambiente e sua proteo constitucional

    2.1 Conceito de meio ambiente

    A discusso sobre a possibilidade de responsabilizao penal dos entes morais em crimes contra o meio ambiente abrange, em carter inicial, a compreenso precisa do bem jurdico tutelado pela norma incriminadora, de modo a esclarecer os fundamentos que legitimam a tipificao do ponto de vista da necessidade de proteo. Nesse sentido, faz-se necessria uma prvia anlise da conformao jurdica dada pelo ordenamento ptrio a esse bem de natureza to peculiar, apresentando suas principais caractersticas e seu desenvolvimento ao longo do tempo.

    Guilherme PereiraHighlight

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    Como ponto de partida, vlida a tradicional lio de Jos Afonso da Silva ao se referir aparente redundncia no emprego do termo meio ambiente nos textos legislativos brasileiros, destacando a maior riqueza de sentido na utilizao das duas palavras em conjunto, j que, segundo o renomado constitucionalista, esta composio exprime no s o conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que integram a esfera de convivncia social, mas tambm a interao entre esses elementos 1. Essa primeira concepo j indica o aspecto dinmico e a complexidade envolvida na definio do bem jurdico ambiental.

    A Lei n 6.938/81, que dispe sobre a Poltica Nacional do Meio Ambiente, define em seu art. 3, inciso I, meio ambiente como o conjunto de condies, leis, influncias e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas, restringindo seu contedo somente aos recursos naturais, em contrapartida concepo mais ampla defendida na atualidade, a qual engloba, alm da natureza, outros dois aspectos: a) meio ambiente artificial, formado pelas transformaes operadas pelo homem no espao fsico em que vive; b) meio ambiente cultural, constitudo pelo patrimnio histrico, arqueolgico, paisagstico e turstico, ao qual se agrega especial valor 2. Vale ressaltar aqui

    que a diviso acima proposta no afasta o carter unitrio do conceito de meio ambiente, tendo por objetivo apenas facilitar a indicao do fator de agresso ao bem e os valores diretamente atingidos, como bem aponta Fiorillo 3.

    O breve exame da evoluo da proteo ao meio ambiente no ordenamento jurdico brasileiro auxiliar na compreenso da percepo holstica que se tem hoje desse bem jurdico 4.

    2.2 Desenvolvimento da proteo normativa ao ambiente no ordenamento brasileiro

    O histrico de desenvolvimento normativo da proteo ao ambiente comumente dividido pela doutrina em trs fases, partindo-se do perodo compreendido entre o descobrimento do Brasil no ano de 1500 at quase metade do sculo XX. Essa primeira etapa

    1 SILVA, Jos Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6 Edio, So Paulo: Malheiros, 2007, p. 20.

    2 FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza. 8 Edio, So

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 18. 3 FIORILLO, Celso Antnio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4 Edio, So Paulo: Saraiva,

    2003, p. 20. 4 MILAR, Edis. Direito do Meio ambiente. 4 Edio, So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 100.

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    conhecida como fase da explorao ambiental desregrada 5. Tal contexto, como bem sugere a nomenclatura, caracteriza-se pela ausncia de regramento sobre a proteo do meio ambiente, muito em razo da limitao atuao do Estado gerada pelas noes clssicas de direito de propriedade e livre iniciativa 6.

    Em que pese falar-se em ausncia de proteo normativa, encontram-se nas ordenaes portuguesas que regeram o pas at a promulgao da carta civil de 1916 tratamentos pontuais e esparsos sobre temas relacionados ao meio ambiente, mas sob enfoque totalmente diverso do escopo de proteo desse bem jurdico. A ttulo de exemplo, cite-se aqui a proibio esculpida nas Ordenaes Filipinas em seu Livro V, Ttulo LXXVIII, quanto ao abate de animais por mera malcia, cuja violao poderia proporcionar o cumprimento de pena em carter perptuo no Brasil. Todavia, a finalidade por trs da referida norma se dirige preservao do patrimnio individual, dos interesses da Coroa Portuguesa e das classes dominantes fixadas na colnia, e no proteo do ambiente, como bem revela Edis Milar:

    Toda essa legislao antiga, complexa, esparsa e inadequada, deixava imune (se que no o incentivava) o esbulho do patrimnio natural, despojado do seu carter de bem comum e tratado ignominiosamente como propriedade privada, gerido e explorado sem escrpulos, com discricionariedade acima de qualquer legislao coerente, de qualquer interesse maior 7

    O marco inicial da segunda fase de desenvolvimento da proteo normativa ao meio ambiente coincide com o florescimento da Repblica brasileira e, mais especificadamente, com a promulgao do Cdigo Civil de 1916.

    Moacir Martini de Arajo denomina essa segunda etapa de fase fragmentria, em que se observa no ordenamento ptrio uma maior ateno preservao de certas categorias de recursos naturais. Todavia, a escolha dos mbitos de tutela da norma ainda se apresenta vinculada a reas de interesse econmico, de modo a proteger apenas de forma pontual alguns aspectos do ambiente 8. Nesse sentido, podem ser apontados como

    5 ARAJO. Moacir Martini de. Da Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica Responsabilizao Criminal

    da Pessoa Jurdica de Direito Pblico em relao aos Crimes Ambientais. So Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 61. 6 SILVA, Jos Afonso da. Direito ambiental constitucional. So Paulo: Ed. Malheiros, 2007, p. 35.

    7 MILAR, Edis. op. cit. p. 136.

    8 ARAJO. Moacir Martini de. op. cit. p. 62.

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    primeiros avanos nessa nova fase as prescries trazidas pelos artigos 554 e 584 da legislao civil de 1916:

    Art. 554. O proprietrio, ou inquilino de um prdio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurana, o sossego e a sade dos que o habitam

    Art. 584. So proibidas construes capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinrio, a gua de poo ou fonte alheia, a elas preexistente

    Tais normatizaes abriram caminho para a construo de uma orientao jurisprudencial mais atenta aos fatores de degradao ambiental, a partir da ampliao da noo de vizinhana, entendida como a rea em que eram sentidos os efeitos nocivos do uso da propriedade, e pela preocupao com a poluio gerada pelas indstrias 9. Pode-se citar tambm como resultado dessa nova abordagem o surgimento de diversas codificaes (Cdigo de guas, Cdigo Florestal, Cdigo de Pesca, etc., todos ainda em vigor) a regular a explorao de atividades econmicas e a utilizao da propriedade de modo a prevenir consequncias danosas ao meio ambiente, principalmente no tocante aos recursos naturais.

    Em que pese a ntida evoluo observada nesse perodo no que se refere tutela ambiental, as questes relacionadas ao meio ambiente ainda eram tratadas de maneira secundria pela legislao, condicionadas a temas como sade pblica e preservao dos recursos naturais indispensveis vida humana, no havendo uma preocupao direta com a preservao do meio sob uma tica unitria.

    Uma possvel causa para a dificuldade enfrentada ao se enfocar a necessidade de preservao do ambiente sob um ponto de vista universal reside na percepo que se tinha quanto a existncia de uma relao paradoxal entre crescimento econmico e preservao ambiental. Citada impresso decorre principalmente da viso puramente econmica dos recursos naturais, voltada expanso do capital independentemente de quaisquer efeitos que porventura repercutam no prprio homem e no meio em que vive, onde os limites impostos sob o argumento de preservao do ambiente nada mais seriam do que entraves ao progresso financeiro e social de uma nao. Nesse sentido, o meio ambiente nada mais seria do que um objeto de explorao pelo ser humano.

    9 SILVA, Jos Afonso da. op. cit. p. 35.

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    O ponto de abertura preocupao ambiental como um todo passou pela gradual substituio da noo de crescimento econmico pela de desenvolvimento econmico, a qual trabalha a evoluo da economia de um pas sob uma perspectiva tambm qualitativa e no puramente quantitativa. Essa mudana possibilitou a alterao do modo como o sistema jurdico abordava as questes ambientais, a ponto de hoje falar-se em ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentvel como resultado desse novo modo de ver a relao entre economia e meio ambiente 10.

    na dcada de 70 que se d incio a uma nova fase de desenvolvimento do direito ambiental.

    O avano da devastao dos recursos florestais, hdricos e minerais, a reiterao de fenmenos naturais catastrficos (enchentes e furaes, por exemplo), bem como a aumento da poluio e da percepo de seus efeitos em escala transnacional abriram os olhos da comunidade internacional para a ausncia de fronteiras quanto s repercusses geradas pela interveno humana no ambiente. A tutela fragmentada do meio ambiente se mostrou ineficaz ao se perceber a impossibilidade de controle dos resultados causados pela interferncia humana no meio. A soberania estatal passou a ser questionada com maior vigor em relao ao tema ambiental justamente em funo da ausncia de limites territoriais dos efeitos provenientes da atuao dos indivduos em seus respectivos pases.

    Em mbito internacional, o ano de 1972 marcado com a realizao da primeira conferncia mundial a tratar dos problemas ambientais: a Conferncia de Estocolmo. Dita conferncia buscou trabalhar basicamente duas idias, a de desenvolvimento sustentvel e a de solidariedade inter-geracional, entendida esta como a necessidade da presente gerao propiciar prxima um meio ambiente em condies iguais ou melhores que as recebidas da gerao anterior, tendo por fundamento a interligao entre fruio de direitos humanos e o direito a um meio ambiente sadio.

    A Conferncia de Estocolmo obteve como resultado a Declarao do Meio Ambiente, cujos princpios enunciados constituem, nas palavras de Jos Afonso da Silva, prolongamento da Declarao Universal dos Direitos Humanos 11. Tais princpios influenciaram posteriormente no tratamento constitucional dado ao meio ambiente em diversos pases, inclusive na Constituio Brasileira de 1988.

    10 BENJAMIN, Antonio Herman V. Funo Ambiental. In: Dano ambiental: preveno, reparao e represso.

    So Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 13. 11

    SILVA, Jos Afonso da. op. cit. p. 58.

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    Em mbito interno, a terceira fase de desenvolvimento da normatizao ambiental, denominada fase holstica 12 do meio ambiente, inaugurada com a promulgao da Lei n 6.938/81 a qual institui a Poltica Nacional de Meio Ambiente. Referido texto normativo buscou dar tratamento integrado s diversas facetas do meio ambiente, articulando um sistema de proteo ambiental voltado a um tratamento unitrio do tema. Juntamente com mudana de postura em relao ao objeto protegido, houve a expanso dos instrumentos de tutela do bem ambiental, a exemplo daqueles esculpidos no art. 9 da Lei n 6.938/81 e na Lei de Ao Civil Pblica. Quanto ltima, afirma Milar:

    Mediante essa lei, as associaes civis ganharam fora para provocar a atividade jurisdicional e, de mos dadas com o Ministrio Pblico, puderam em parte frear as inconseqentes agresses ao ambiente. Aqui, para bem dar a dimenso real e a importncia efetiva do afrouxamento das regras de legitimao para agir, basta lembrar que pases mais desenvolvidos da unio Europia e to prximos de nossa tradio jurdica, como Alemanha, Frana, Blgica, Portugal e Espanha para citar alguns , ainda buscam, sem resultados concretos mais evidentes, um sistema de acesso coletivo Justia 13

    Todas essas transformaes na seara infraconstitucional j anunciavam uma nova mudana de paradigma quanto proteo jurdica ao meio ambiente, o que veio a ser confirmada com a promulgao da Carta Constitucional Brasileira de 1988, elevando o meio ambiente categoria de direito fundamental. Na lio de Milar, nessa nova perspectiva, o meio ambiente deixa de ser considerado um bem jurdico per accidens e elevado categoria de bem jurdico per se, isto , com autonomia em relao a outros bens protegidos pela ordem jurdica, como o caso da sade humana 14.

    2.3 Meio Ambiente e a Constituio de 1988

    A Constituio da Repblica de 1988 representa a sntese da gradual e crescente relevncia que veio ganhando o tema ambiental nos textos normativos ptrios.

    12 ARAJO. Moacir Martini de. op. cit. p. 79.

    13 MILAR, Edis. op. cit. p. 142.

    14 Idem. Ibidem. p. 180.

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    Nenhuma outra constituio brasileira abordou o meio ambiente como bem especfico e autnomo, digno de ser elevado ao patamar de direito fundamental. A extenso do tratamento constitucional deferido ao tema na Carta de 1988 se refletiu na alcunha a si posta de Constituio verde, considerada um dos textos constitucionais mais avanados do mundo em matria ambiental.

    O art. 225, caput, da Constituio dispe que Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    A primeira considerao a ser feita sobre esta definio se refere caracterizao do meio ambiente como bem de uso comum do povo. Tal denominao se difere da utilizada no Direito Administrativo por no retratar um bem que seja de propriedade de um ente de direito pblico, mas de titularidade difusa, com atributos que rompem a dicotomia clssica entre o direito pblico e privado. Moacir Martini de Arajo ilustra essa peculiaridade do bem ambiental ao afirmar:

    A natureza jurdica diferenciada do bem ambiental leva ainda a um pequeno reparo: no o meio ambiente um direito de que se possa dispor na acepo da palavra. Trata-se de bem jurdico que, por ser dirigido a todos, conforme reza o prprio caput do art. 225 da Constituio Federal de 1988, deve ser meramente gozado por todos, no podendo ningum, individual ou coletivamente, impedir este gozo, dele apropriando-se indevidamente, quer diretamente, impedindo que outros venham dele se beneficiar, quer indiretamente, por meio de degradao que prejudique as suas funes essenciais 15

    Essa afirmao possui igualmente uma aplicao prtica relevante, pois

    assegura a preservao do ambiente no s em relao aos bens pblicos, mas tambm em mbito privado, por meio de intervenes na propriedade particular, como bem lembra Paulo de Bessa Antunes:

    No se olvide, contudo, que o conceito de uso comum de todos rompe com o tradicional enfoque de que os bens de uso comum s podem ser bens pblicos. No, a Constituio Federal estabeleceu

    15 ARAJO. Moacir Martini de. op. cit. p. 88.

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    que, mesmo no domnio privado, podem ser fixadas obrigaes para que os proprietrios assegurem a fruio, por todos, dos aspectos ambientais de bens de sua propriedade. A fruio, contudo, mediata, e no imediata. O proprietrio de uma floresta permanece proprietrio da mesma, pode estabelecer interdies quanto penetrao e permanncia de estranhos no interior de sua propriedade. Entretanto, est obrigado a no degradar as caractersticas ecolgicas que, estas sim, so de uso comum, tais como a beleza cnica, a produo de oxignio, o equilbrio trmico gerado pela floresta, o refgio de animais silvestres, etc. 16

    Segunda considerao a respeito da conceituao constitucional trata do dever conjunto tanto do Poder Pblico como da sociedade de proteger e preservar o meio ambiente. Essa determinao retira o indivduo da posio meramente passiva em relao ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se a ele a atuao direta na defesa do ambiente, no s frente aos demais cidados como tambm frente ao prprio Estado.

    Como se pode observar, o destaque dado ao meio ambiente na Constituio Federal de 1988 resulta de um progressivo processo de conscientizao da essencialidade desse bem jurdico manuteno da vida humana sadia e da acelerada degradao de suas caractersticas. Assim, como de outra forma no poderia ser, a preocupao constitucional com a manuteno de um meio ambiente ecologicamente equilibrado foi acompanhada da necessidade de incremento dos instrumentos de sua proteo, tanto do ponto de vista jurisdicional como administrativo. nesse contexto de ampliao da tutela ambiental que nasce a previso de responsabilizao da pessoa jurdica em mbito penal.

    2.3.1 A responsabilidade penal do ente coletivo na Constituio de 1988

    A questo da possibilidade ou no de se responsabilizar penalmente o ente coletivo tema a muito debatido na doutrina brasileira desde a promulgao da Carta Constitucional de 1988. Antes da mudana constitucional, no se questionava a vigncia no direito penal brasileiro do princpio societas delinquere non potest, havendo poucas vozes na

    16 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 7 Edio, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 68

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    doutrina ptria a ventilar a possibilidade de criminalizao das pessoas jurdicas, a exemplo de Affonso Arinos de Mello Franco 17.

    Contudo, a Constituio Federal de 1988 trouxe em dois dispositivos os fundamentos para a quebra da irresponsabilidade penal dos entes morais, quais sejam, o art. 173, 5 (A lei, sem prejuzo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurdica, estabelecer a responsabilidade desta, sujeitando-a s punies compatveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econmica e financeira e contra a economia popular) e o art. 225, 3 (As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitaro os infratores, pessoas fsicas ou jurdicas, a sanes penais e administrativas, independentemente da obrigao de reparar os danos causados).

    Em que pese a clara dico dos dispositivos acima referidos, importantes nomes da doutrina penal sustentaram a manuteno do princpio societas delinquere non potest se valendo de interpretaes dos citados dispositivos das mais diversas.

    Juarez Cirino dos Santos 18 afirma, ao interpretar a norma contida no art. 173, 5 da Constituio Federal, que o texto constitucional no especifica o tipo de responsabilidade a que se refere a norma, tampouco especifica a rea de incidncia dessa possvel responsabilidade penal. Segundo o autor,

    a Constituio fala em responsabilidade e no em responsabilidade penal; a Constituio fala em atos e no de crimes; finalmente, a Constituio delimita as reas de incidncia da responsabilidade pela prtica desses atos, exclusivamente, ordem econmica e financeira e economia popular, sem incluir o meio ambiente 19

    No tocante ao art. 225, 3, da Constituio, defende o ilustre penalista haver diferena semntica relevante entre condutas e atividades, a qual serviria de base para se estabelecer correlaes distintas: as condutas de pessoas fsicas estariam sujeitas a sanes penais, enquanto que as atividades de pessoas jurdicas se sujeitariam a sanes administrativas.

    17 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. Responsabilidade criminal das pessoas jurdicas. Rio de Janeiro:

    Grfica Ypiranga, 1930. 18

    SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte geral. 2 Edio, Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 428-430. 19

    Idem. Ibidem. p. 429.

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    No parece ser essa a interpretao que melhor se amolda ao texto constitucional.

    Na viso de Fernando Antnio Nogueira Galvo da Rocha, a interpretao acima referida exclui a possibilidade de o indivduo ser responsabilizado administrativamente pelos danos causados ao meio ambiente, o que com certeza no foi o intuito do constituinte:

    o entendimento de que a Constituio teria deferido tratamento distinto s pessoas fsicas e jurdicas levaria a concluir, tambm, que a responsabilidade da pessoa fsica ficaria restrita s sanes penais e a obrigao de reparar os danos. O que no correto. Com certeza, a pessoa fsica pode ser responsabilizada administrativamente pela leso ao meio ambiente. Prova disto so as multas institudas pelo Decreto n. 3.179, de 21 de setembro de 1999, que regulamenta a Lei n. 9.605/98 e estabelece os parmetros de responsabilidade administrativa para os casos de leso ao meio ambiente 20

    Outros autores, a exemplo de Luiz Vicente Cernicchiaro, defendem que a interpretao conjunta do art. 225, 3, com os princpios fundamentais expressos no art. 5 da Constituio impede aceitar que o constituinte tenha rompido com a irresponsabilidade penal da pessoa jurdica 21, posicionamento que foi alvo de duras crticas por parte de Guilherme Guimares Feliciano, negando que a referida norma constitucional tenha tratado, de modo exaustivo, de todos os princpios ligados responsabilizao criminal:

    Pensamos, concessa venia, que o constituinte no pretendeu exaurir toda a matria penal relevante no art. 5 da Constituio Federal. Ao contrrio, h princpios penais contidos no art. 5 que esto expressamente excepcionados fora dele, como h tambm normas de garantia e responsabilidade penal situadas alm do art. 5, com azo no seu prprio par. 2 22

    20 ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica. In: Direito

    Ambiental na Viso da Magistratura e do Ministrio Pblico. Coordenadores: Jarbas Soares Jnior e Fernando Galvo. Ed. Del Rey, 2003, p. 449 21

    CERNICCHIARO, Luiz Vicente; JNIOR, Paulo Jos da Costa. Direito Penal na Constituio, So Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 242. 22

    FELICIANO, Guilherme Guimares. Teoria da Imputao Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. So Paulo: LTr, 2005, p. 208.

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    E continua:

    O constituinte no estava premido por coisa alguma (tanto menos pelos limites do ttulo II), podendo inserir, onde melhor lhe aprouvesse, normas de garantia e responsabilidade penal, mesmo porque se tratava de uma carta de ruptura. Compreende-se, desse modo, que tenha estabelecido excees relativas e pontuais ao princpio da responsabilidade pessoal nos arts. 173, par. 5, e 225, par. 3 da CRFB, em vista da especial gravidade, para o meio ambiente e para a ordem econmico-financeira, da delinqncia estritamente corporativa 23

    Necessrio observar que normalmente os argumentos contrrios tese da responsabilizao penal da pessoa jurdica se prendem a questes de ordem puramente dogmtica, com ressalto s inspiraes individualistas sob as quais nasceram os princpios do garantismo penal e os conceitos jurdico-penais clssicos. Busca-se a partir das concepes pr-definidas no campo doutrinrio a conformao das alteraes propostas pelo legislador, em um movimento inverso ao que normalmente deveria ocorrer, ou seja, a adequao da doutrina lei.

    Sobre esse ponto, a lio valiosa de Galvo da Rocha:

    Vale observar que as opes polticas no so condicionadas pela dogmtica jurdico-penal. Este um mito que se torna necessrio superar. A dogmtica no construda segundo a natureza das coisas, mas segundo os padres valorativos predominantes e os objetivos a que se prope o poder poltico 24

    Outra questo posta como barreira responsabilizao do ente coletivo diz respeito impossibilidade de serem aplicadas sanes tipicamente penais s pessoas jurdicas, mas apenas sanes de natureza administrativa. Ora, entendimento quase pacfico em mbito doutrinrio que a pena privativa de liberdade no o nico tipo de sano criminal passvel de ser aplicada, recobrindo-se igualmente dessa caracterstica as penas restritivas de direitos e a multa, estas aplicveis tambm em mbito administrativo. O que determinar a

    23 Idem. Ibidem. p. 209-210.

    24 ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. op. cit. p. 455.

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    natureza da sano em cada caso ser a autoridade competente para aplic-la, no sendo possvel a indicao prima facie da natureza penal ou administrativa da sano imposta. Isso decorre justamente da ausncia de diferena ontolgica entre a responsabilidade administrativa e penal.

    Para aqueles mais apegados vinculao entre direito penal e pena privativa de liberdade, poder-se-ia alegar que as penas restritivas de direito so aplicadas somente de forma substitutiva s privativas de liberdade, nunca de modo direto. Tal argumento, todavia, no encontra respaldo legal, j que, alm da previso clara de aplicao direta dessas penas s pessoas jurdicas na Lei n 9.605/98, outro dispositivo legal ainda mais recente, art. 28 da Lei 11.343/06 (Lei de Txicos), alm de determinar a aplicao de pena restritiva de direito de forma autnoma no prev sano privativa de liberdade.

    Fica claro, portanto, a mudana de paradigma provocada pelo Constituio de 1988, fruto da percepo do poder de degradao ambiental das atividades empresariais e ao mesmo tempo a ineficcia dos instrumentos civis e administrativos de proteo do meio ambiente em face desse panorama. O direito penal deve necessariamente acompanhar as transformaes trazidas pela modernidade de modo a adequar sua estrutura de funcionamento a essa nova realidade. A necessidade de uma atuao mais enrgica em face da criminalidade empresarial foi sentida mesmo nos pases em que no se aceita a criminalizao das pessoas morais, aplicando-se a elas o chamado direito administrativo sancionador, que no guarda diferenas qualitativas em relao ao direito penal. Como j antes ressaltado, a escolha pelo direito penal ou pelo direito administrativo sancionador mera questo de poltica criminal, como bem lembra Galvo da Rocha:

    Quando se discute o tema da responsabilidade penal da pessoa jurdica, no se pode esquecer que o equacionamento da questo deve ser feito no mbito poltico. E a opo poltica sobre o tema j foi feita, e por aqueles que detinham legtimo poder para tanto. O ponto de vista contrrio responsabilizao penal da pessoa jurdica foi vencido no debate institucional, segundo regras do jogo democrtico. A opo poltica foi inserida no ordenamento jurdico, o que significa a preponderncia do entendimento da convenincia e oportunidade de utilizar a responsabilidade penal da pessoa jurdica como instrumento eficaz no combate criminalidade ambiental 25

    25 Idem. Ibidem. p. 453.

  • 17

    2.3.2 Princpio da interveno mnima e os arts. 173, 5, e 225, 3 da Constituio Federal

    H ainda outras barreiras, sob o ponto de vista constitucional, impostas por doutrinadores mais conservadores no que toca responsabilidade penal da pessoa jurdica. Seriam elas decorrentes do princpio da interveno mnima do direito penal. Tal princpio vincula a atuao do direito criminal noo de proteo de bens jurdicos relevantes como sua finalidade precpua, referindo-se tanto questo da escolha desses bens pelo ordenamento jurdico como exigncia ou no da interferncia penal para a tutela daquele bem especfico, ou seja, a existncia de meios eficientes no campo civil e administrativo para a proteo do bem que sejam menos gravosos ao destinatrio da sano.

    Em relao ao primeiro aspecto, o direito penal deve tutelar somente aqueles bens jurdicos essenciais convivncia em sociedade, como forma de controle de sua prpria legitimidade. Na lio do ilustre penalista Luigi Ferrajoli:

    Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidados e de minimizar a violncia, as nicas proibies penais justificadas por sua absoluta necessidade so, por sua vez, as proibies mnimas necessrias, isto , as estabelecidas para impedir condutas lesivas que, acrescentadas reao informal que comportam, suporiam uma maior violncia e uma mais grave leso de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal 26

    A afirmao do nobre jurista italiano nos traz um critrio muito razovel do controle que pode ser feito sobre as normas incriminadoras no tocante ao princpio da interveno mnima, qual seja, o balanceio entre a gravidade da leso ao bem protegido e a resposta estatal subsequente.

    No caso do meio ambiente, no restam dvidas quanto relevncia desse bem frente a sua incluso, pela Constituio Federal de 1988, no rol dos direitos fundamentais. A dificuldade encontrada na sua aceitao no plano penal reside no seu carter difuso, que foge fcil visualizao da leso como ocorre nas violaes de bens individuais.

    26 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razo Teoria do Garantismo Penal. Traduo: Ana Paula Zomer Sica et al. 2

    Edio, So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 427.

  • 18

    Eladio Lecey 27 ilustra bem a situao ao lembrar a fcil determinao dos tradicionais bens penais, ligados diretamente pessoa humana e em carter microssocial, em contraposio ao panorama moderno onde se tem bens jurdicos voltados no diretamente pessoa, mas ao funcionamento do sistema, em carter macrossocial, cuja determinao se torna um tanto complexa.

    Em contrapartida, o enquadramento do ente coletivo no plo ativo da criminalidade ambiental se justifica em razo do fato de que os mais graves ataques sofridos pelo meio ambiente derivam hoje da atuao empresarial, principalmente no mbito da grande indstria, ao mesmo tempo em que a responsabilizao individual no plano penal pelos danos causados ao ambiente se apresenta pulverizada na estrutura de atuao do ente coletivo, gerando assim, no mais das vezes, impunidade. Esse incremento da danosidade empresarial na atualidade j se refletiu na esfera civil, com a adoo da responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente na rbita da reparao, e agora se volta ao prximo passo, a criminalizao da pessoa moral em mbito penal, necessria a uma efetiva tutela jurdica do ambiente. Nesse sentido, Ney de Barros Bello Filho afirma que Diariamente em seu af de lucros e na cega inteno de se desenvolver sem atentar para as peculiaridades da natureza, empresas poluem, desmatam e matam, causando um desequilbrio ambiental cada vez maior 28

    e complementa:

    Em regra, os maiores criminosos ambientais so as pessoas jurdicas que capitaneiam as grandes agresses ambientais. Um Direito Penal Ambiental que no reconhea esta realidade est fadado a se tornar incuo, deixando a latere da represso criminal exatamente o maior responsvel pelos crimes ambientais em grande escala 29

    Quanto ao segundo aspecto do princpio da interveno mnima, a subsidiariedade do direito penal, alega-se em desfavor criminalizao da pessoa jurdica que os instrumentos fornecidos no plano civil e administrativo seriam suficientes adequada tutela do meio ambiente. Rebate-se essa afirmao, basicamente, sob dois fundamentos.

    27 LECEY, Eladio. Responsabilidade penal da pessoa jurdica efetividade na realidade brasileira. In: Actas

    das I Jornadas Luso-Brasileiras de Direito do Ambiente. Porto: Instituto Lusada para o Direito do Ambiente, 2002, p. 27. 28

    FILHO, Ney de Barros Bello. A responsabilidade Criminal da Pessoa Jurdica por Danos ao Ambiente. In: Direito Ambiental Contemporneo. Ed. Manole, 2004, p. 134. 29

    Idem. Ibidem. p. 137.

  • 19

    O primeiro deles se situa no plano ftico, referente baixa eficcia dos rgos da Administrao Pblica responsveis pelo controle das atividades potencialmente prejudiciais ao meio ambiente e pela represso das condutas lesivas a esse bem, muito em razo da deficincia de recursos materiais e humanos necessrios ao desempenho de suas funes institucionais. Vale lembrar ainda que tanto as multas administrativas como tambm as reparaes civis pelos danos ao ambiente, alm da longa demora em suas aplicaes, no detm a fora necessria a desestimular a degradao ambiental em razo de sua incluso no clculo dos custos inerentes prpria atividade empresarial. A sano criminal, ao contrrio, produz um efeito estigmatizante que, se na responsabilidade individual de todo indesejado, na responsabilizao do ente coletivo praticamente essencial em termos de eficcia protetiva. Sobre o assunto, afirma Antnio Baptista Gonalves:

    Nossa sugesto uma pena alternativa especfica pessoa jurdica, qual seja, uma responsabilizao que atinja a imagem deste ente coletivo, pois o que uma empresa mais busca sedimentar um conceito positivo, uma boa imagem, de confiabilidade sociedade. Ento, se o direito penal est sendo procurado para resolver questes, que teoricamente no lhe seriam devidas, justamente pela cultura brasileira que tanto referencia o direito penal e to repercute a existncia de uma sentena condenatria, que praticamente pode acabar com as pretenses de um indivduo, pode-se muito bem utilizar este conceito para a pessoa jurdica 30

    No mesmo sentido a lio de Svio Renato Bittencourt Soares Silva:

    Dentro desse novo contexto, a incriminao da pessoa jurdica assume especial relevo e utilidade: qual a reao de um banco internacional que exige a certificao da empresa tomadora do emprstimo, ao deparar com uma condenao por crime ambiental? Note-se que no soa tal constatao como uma simples multa administrativa ou uma condenao civil de reparao da [sic] dano. A empresa que pretende o financiamento criminosa. Este ttulo, imposto aps o devido processo legal e respeitada a ampla defesa, torna a vida financeira da pessoa jurdica bem mais difcil. Talvez por esta razo algumas empresas, sabedoras da importncia internacional que assumiu a questo ambiental, vm procurando o Poder Pblico

    30 GONALVES, Antnio Baptista. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica. Pena Dano imagem da

    empresa. Revista dos Tribunais, Ano 93, Volume 823, maio de 2004, p. 463.

  • 20

    para formalizar termos de ajustamento de conduta, aderindo voluntariamente ao respeito que a Lei exige 31

    A exigncia de responsabilizao penal do ente coletivo se apresenta igualmente no plano normativo. A Constituio Federal de 1988 trouxe em seu art. 225, 3, a necessidade de se responsabilizar tambm em mbito penal as pessoas morais, demonstrando de forma clara a insuficincia dos instrumentos civis e administrativos de proteo frente atividade empresarial. Constate-se ainda que a maioria dos instrumentos de tutela ambiental no-penais so anteriores promulgao da Carta de 1988, fato este que fortalece o entendimento de que o constituinte brasileiro no incluiu a criminalizao da pessoa jurdica ao acaso, mas atendendo s exigncias de meios coativos eficazes ao combate da destruio do meio ambiente.

    V-se, portanto, que a responsabilizao penal da pessoa jurdica se adqua perfeitamente ao princpio da interveno mnima, no sendo devidas as alegaes pautadas nesse princpio no intuito de negar essa possibilidade no ordenamento jurdico brasileiro.

    3. Estruturas tericas de responsabilizao da pessoa jurdica

    Partindo-se da conformao constitucional dada responsabilidade penal das pessoas morais no ordenamento jurdico brasileiro, abrem-se, sob o ponto de vista da estruturao dogmtica dessa nova realidade, basicamente 3 alternativas: a) responsabilizar o ente coletivo com base nos elementos fornecidos pela teoria clssica do delito, com as adaptaes necessrias a sua aplicao s pessoas jurdicas; b) criao de uma teoria do delito prpria responsabilizao dos entes morais; c) manuteno da teoria tradicional do delito aplicada s pessoas fsicas com a ampliao da responsabilidade s pessoas jurdicas beneficiadas com a infrao penal.

    As duas primeiras alternativas trabalham com a noo de responsabilizao direta da pessoa coletiva por crimes ambientais praticados por seus integrantes enquanto que a

    31 SILVA, Svio Renato Bittencourt Soares. A responsabilidade penal da pessoa jurdica: uma nova teoria da

    culpabilidade. Revista do Ministrio Pblico n. 16, julho/dezembro. Rio de Janeiro: Ministrio Pblico, 2002, p. 181.

  • 21

    ltima opo traa um perfil de responsabilizao secundria do ente moral. A anlise que ser feita em seguida abordar a possibilidade de responsabilizao direta ou indireta de modo individualizado.

    3.1 A responsabilidade direta da pessoa jurdica

    3.1.1 Natureza jurdica do ente coletivo: teorias da fico, da realidade objetiva e da realidade jurdica

    A construo da estrutura dogmtica de responsabilizao penal do ente coletivo tem como pressuposto inicial o estudo da natureza da pessoa jurdica, como forma de verificar a compatibilidade entre suas caractersticas essenciais e os elementos que implicam a sua responsabilidade nesse campo. A definio quanto a esse ponto relevante principalmente na discusso quanto capacidade de ao da pessoa jurdica para a comisso de um ilcito penal.

    Primeiramente, vale lembrar aqui o conceito de pessoa jurdica. Esta pode ser definida como a reunio de pessoas naturais ou de bens vinculados a consecuo de certa finalidade aceita pelo direito, formando uma unidade reconhecida juridicamente como sujeito de direitos e obrigaes. V-se, portanto, que a pessoa jurdica rene como caractersticas essenciais a personalidade distinta da de seus instituidores, donde decorre sua existncia jurdica autnoma, o fim lcito de suas atividades, bem como a composio de patrimnio prprio.

    Em que pese a existncia de inmeras teorias para explicar a natureza jurdica do ente moral, trs delas possuem especial relevo, quais sejam, a teoria da fico jurdica, da realidade objetiva ou orgnica e, finalmente, a da realidade jurdica.

    Comecemos pela teoria da fico. Segundo esta teoria, que teve destaque na figura ilustre de Savigny, somente o ser humano seria capaz de titularizar relaes jurdicas, por ser o nico dotado de real vontade e capacidade de ao. Nesse sentido, a personificao de grupos humanos ou patrimoniais no passaria de uma criao legal, sem qualquer aplicao prtica, no havendo sentido em se estabelecer a possibilidade de cometimento de um ato ilcito por parte do ente coletivo que se destina realizao de um fim lcito.

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    A primeira crtica voltada a essa concepo da natureza jurdica do ente moral reside justamente na ausncia de utilidade prtica da pessoa jurdica, pois se s o ser humano pode ser responsabilizado pelos atos praticados em mbito coletivo, no se justificaria a criao de outro sujeito de direito.

    Outro ponto de questionamento ainda mais robusto se refere existncia do prprio Estado. Ao considerar que toda pessoa jurdica uma criao jurdica sem respaldo na realidade, a teoria da fico acaba por negar tambm a existncia do Estado, tendo por consequncia o entendimento de que a lei, como expresso mxima de sua soberania, fruto de uma mera fico, ou seja, seria possvel afirmar que uma criao sem existncia real poderia atribuir a si mesmo efeitos jurdicos 32.

    Como bem se pode observar, a teoria da fico jurdica alm de no apresentar relevncia prtica nos moldes em que proposta, no consegue explicar a existncia do Estado como pessoa autnoma dos indivduos que o integram. Roberto de Ruggiero subscreve a inconsistncia dessa teoria:

    Compreende-se facilmente como uma tal concepo seja inadequada para descrever a verdadeira essncia da pessoa jurdica. A fico um mero artifcio e no com ela que se cria um ente, que seja distinto das simples pessoas dos componentes da corporao, ou dos administradores ou destinatrios dos bens da fundao. Se o sujeito de direitos s pode ser o homem e aqui no existe tal sujeito, nada se obtm fingindo que le existe. Nem vale de muito declarar que a fico se deve reduzir a uma relao de analogia, em virtude da qual, devendo o direito referir-se a um sujeito diverso do homem, a entidade se concebe antromrficamente, sendo a ela que como sujeito se atribui o direito, anlogamente ao que sucede com a pessoa fsica. Na verdade, tambm nada h de real no sujeito se a sua existncia e permanece apenas imaginria 33

    Visto que a teoria da fico no se presta responsabilizao da pessoa jurdica em mbito civil, tampouco penalmente, passemos a anlise da teoria da realidade objetiva.

    32 BEVILAQUA, Clvis. Teoria Geral do Direito Civil. 4 Edio, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1972, p.115.

    33 RUGGIERO, Roberto. Instituies de Direito Civi Introduo e Parte Geral, Direito das Pessoas, vol. I. 3

    Edio, So Paulo: Saraiva, 1971, p.382-383.

  • 23

    O ponto chave para a determinao da natureza da pessoa jurdica segundo a teoria da realidade objetiva estaria, num primeiro momento, na vontade. Para essa teoria, a vontade dos instituidores da pessoa jurdica seria o ncleo de surgimento do ente coletivo, capaz de criar um novo sujeito de direitos. Defende-se que essa vontade que cria a entidade estaria apartada das vontades individuais dos membros que a instituram, no se traduzindo igualmente na reunio dessas vontades, formando assim uma vontade complexiva.

    Contudo, essa teoria acabou por sofrer igual crtica anterior, sob o argumento de que desde que no se finja existir uma pessoa, se eleva categoria de sujeito uma entidade abstrata: a vontade, personificando-se esta vontade com um procedimento que no corresponde realidade das coisas 34. Tal empecilho permitiu o desenvolvimento da teoria da realidade objetiva sob fundamento diverso, qual seja, o carter orgnico do ente coletivo. Nesse sentido, tem-se uma comparao entre o organismo humano e a estrutura organizacional da pessoa jurdica no tocante independncia do todo em relao s partes que o compe. Segundo essa teoria, a pessoa jurdica um ente dotado de interesses prprios, realizando atividades no meio social para a consecuo de seus fins. Bevilaqua, defensor da teoria orgnica da pessoa jurdica, explica de maneira magistral a lgica de personificao dos entes morais:

    O direito alguma coisa de vivo, que consiste em transformaes constantes e que necessita de renovaes ininterruptas, pois que a natureza se evolve, mudam as necessidades e, com estas, o direito. Da resulta que o sujeito do direito deve ser formado de modo que possa acompanhar as mutaes do movimento, de modo que possa entrar nesse movimento de uma maneira correspondentemente racional, isto , conforme s [sic] determinaes do direito. Por isso a ordem jurdica exige que os sujeitos de direito sejam, ao menos em sua generalidade, capazes de agir racionalmente. Na primeira linha, aparece o homem, que um ser dotado de razo, e, depois, os sres aos quais se pode fornecer a razo humana pela anexao de rgos. Assim, naturalmente, se constituem dois gneros de pessoas: as corpreas ou fsicas e as morais ou jurdicas. Umas e outras so igualmente reais; a distino est em que uma so dotadas, naturalmente, de razo, ao passo que, s outras, a racionalidade parcialmente adquirida, mediante um arranjo especial do homem; umas receberam o seu organismo da prpria natureza, ao passo que as

    34 Idem. Ibidem. p. 383.

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    outras smente conseguem a forma orgnica, porque as penetra a natureza humana 35

    Apesar de a referida teoria distinguir as personalidades da pessoa fsica e da pessoa jurdica, no ficou ela isenta de crticas, principalmente sob o ponto de vista ontolgico, devido permanncia de srias restries concepo do ente coletivo como um ente natural.

    justamente com base nesse ponto que se constri a teoria da realidade jurdica. Segundo esta, a pessoa jurdica dotada de existncia real, porm, sua realidade no igual a das pessoas naturais. No se pode negar a atuao dos entes coletivos no seio social, com direitos e interesses prprios, todavia isso no os torna seres integrantes do mundo naturalstico, estando sua existncia condicionada ao plano abstrato criado ordem jurdica.

    Em que pese a referida teoria guardar mais semelhanas do que diferenas em relao teoria da realidade objetiva, a questo referente distino de realidades entre a pessoa fsica e jurdica ser importante na determinao do modelo terico de responsabilizao criminal do ente coletivo, como se ver mais a frente.

    3.1.2 A conduta e a vontade da pessoa jurdica

    Aplicando-se a teoria tradicional do delito, na qual se trabalha o conceito analtico de crime como fato tpico, antijurdico e culpvel, s pessoas jurdicas, h que se analisar, necessariamente, os pontos relativos capacidade de ao e de vontade do ente coletivo.

    Muitos dos argumentos contrrios responsabilizao da pessoa jurdica partem desses dois elementos para negar a sua possibilidade sob a alegao de que o ser humano o nico capaz de realizar o ncleo do tipo penal com conscincia e vontade, dirigindo-se realizao de certa finalidade. Ren Ariel Dotti 36 um dos defensores da exclusividade humana na realizao de uma conduta relevante no mbito jurdico-penal, apontando uma srie de conceituaes de conduta, retiradas de obras de ilustres penalistas do

    35 BEVILAQUA, Clvis. op. cit., p. 127-128.

    36 DOTTI, Ren Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurdica. In: Responsabilidade penal da pessoa

    jurdica. Coordenador: Luiz Rgis Prado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 155-158.

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    direito nacional, para ratificar seu ponto de vista, destacando em todas elas a meno ao termo humano. Ainda segundo o referido autor, o entendimento de que somente o ser humano capaz de realizar conduta se justifica pelo fato de que a atuao de modo voluntrio lhe exclusiva. No mesmo sentido, defende Luis Gracia Martn que

    Si la accin es concebida, como yo la entiendo, como ejercicio de actividad finalista y la omisin como no realizacin de una accin finalista, entonces es evidente que la persona jurdica carece de capacidad de accin en el sentido del Derecho Penal 37.

    Cezar Roberto Bittecourt compartilha esse entendimento ao afirmar:

    Enfim, sem estes dois elementos conscincia e vontade - exclusivos da pessoa natural, impossvel se falar, tecnicamente, em ao, que o primeiro elemento estrutural do crime. A menos que se pretenda destruir o Direito Penal e partir, assumidamente, para a responsabilidade objetiva. Mas para isso adoo da responsabilidade objetiva - no preciso suprimir essa conquista histrica da civilizao contempornea, o Direito Penal como meio de controle social formalizado, na medida que existem tantos outros ramos do direito, com menores exigncias garantistas e que podem ser muito mais eficazes e funcionais que o Direito Penal, dispondo de um arsenal de sanes avassaladoras da pessoa jurdica, algumas at extremistas, como, por exemplo, a decretao da extino da corporao que, em outros termos, equivaleria pena de morte da empresa, algo inadmissvel no mbito do Direito Penal da culpabilidade 38

    V-se, pois, que as consideraes feitas pelos doutrinadores acima citados buscam resguardar o carter psicolgico da noo de vontade de modo a obstaculizar sua expanso s pessoas jurdicas.

    Em contrapartida, parte da doutrina, apoiada na teoria da realidade orgnica da pessoa jurdica, no visualiza qualquer empecilho considerao da capacidade de ao e vontade do ente coletivo. Segundo ela, como a vontade da pessoa jurdica no se traduz na

    37 MARTN, Luis Gracia. La cuestion de la responsabilidad penal de las propias personas jurdicas. In:

    Responsabilidade penal da pessoa jurdica. Coordenador: Luiz Rgis Prado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 41-42. 38

    BITTENCOURT, Cezar Roberto. Consideraes penais sobre pessoa jurdica. Disponvel em , acessado em 20/10/2009.

  • 26

    expresso da vontade individual de seus integrantes, nem representa a reunio dessas vontades, a atuao de seus agentes, no papel de membros da corporao, que caracterize a prtica de um ilcito penal no corresponder a um ato da pessoa fsica individualmente considerada, mas sim da prpria pessoa jurdica, por intermdio de um dos seus representantes, j que sua atuao se pauta na vontade autnoma do ente coletivo 39. A esse respeito, Rothenburg ressalta, com base na psicanlise freudiana, a mudana comportamental do indivduo quando atua de forma associada, em funo do que denomina funes inconscientes homogneas 40, para ao final concluir:

    Admitindo-se que o princpio da personalidade no diz respeito somente s penas, mas principalmente imputao, pretender sujeitar o indivduo ao invs de o grupo em funo do qual aquele agiu (ou vice-versa) seria desrespeitar a prpria personalidade. Vai da que no apenas seria um equvoco desconhecer que a pessoa jurdica atua atravs de rgos onde esto, nessa condio, antes presentantes da entidade do que indivduos em si considerados, mas igualmente um contra-senso: enquanto indivduos particulares, no se teriam comportado como se comportaram enquanto presentantes da pessoa jurdica 41

    Observa-se, portanto, que a ao praticada pela pessoa jurdica, denominada pela doutrina de ao institucional 42, possui natureza diversa daquela realizada pela pessoa natural, decorrendo da interrelao entre a instituio e os seus integrantes, resultando na confluncia de fatores independente da vontade de seus membros ou dirigentes.

    Sobre esse ponto, David Baign 43 defende que a ao institucional se forma a partir da reunio de trs aspectos: normativo, organizacional e interesse econmico.

    O primeiro diz respeito ao estatuto social, no qual so delimitadas as funes de administrao (mbito interno) e representao (mbito externo) da pessoa jurdica, prevendo assim um conjunto de disposies estabelecendo os requisitos necessrios tomada

    39 NETO, Nicolao Dino de Castro e Costa. Crimes e infraes administrativas ambientais comentrios lei

    9.605/98. 2 Edio, Braslia: Braslia Jurdica, 2001, p. 55. 40

    ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurdica criminosa. 1 Edio, 2 Tiragem, Curitiba: Juru, 2005, p. 54-55. 41

    Idem. Ibidem. p. 57. 42

    SMANIO, Gianpaolo Poggio. A responsabilidade penal da pessoa jurdica. In: Revista Magister de Direito Imobilirio, Registral, Urbanstico e Ambiental, vol. 1, ago./set. 2005. Porto Alegre: Magister, 2005, p. 54. 43

    BAIGN, David. Naturaleza de la accin institucional em el sistema de la doble imputacin resposabilidad penal de las personas jurdicas.In: De las penas. Coordenao: David Baign et al. Buenos Aires: Depalma, 1997, p. 37-53.

  • 27

    de decises na coletividade. Isso significa que a deciso institucional deve se pautar nas normas de organizao interna do ente coletivo para que expresse a vontade prpria da pessoa jurdica.

    O aspecto organizacional foca as relaes humanas que se desenvolvem no interior da corporao, com nfase na anlise do sistema de comunicao institucionalizado, da hierarquia dentro da empresa e dos instrumentos de resoluo de conflitos internos.

    Finalmente, o interesse econmico representa ao mesmo tempo a origem e a

    finalidade da pessoa jurdica, presente na conduta de todos os integrantes da corporao, constituindo a verdadeira fora motriz da ao da coletividade. A interao destes trs elementos (normatizao, organizao e interesse econmico) forma uma vontade apartada daquela emanada dos indivduos que a compe.

    Outro argumento que enfraquece a tese da incapacidade de ao da pessoa jurdica est relacionado ao fato de que se reconhece ao ente moral em outros ramos do direito (a exemplo do civil e do administrativo) vontade prpria, sendo sujeito das relaes a que venha participar e, portanto, responsvel pela sua atuao tanto lcita quanto ilcita em

    sociedade. A incoerncia em se aplicar concepes diversas a um mesmo instituto jurdico impede que se despenda tratamento diferenciado em cada uma das esferas do conhecimento jurdico.

    Luiz Rgis Prado 44 rejeita a possibilidade do cometimento de uma ao tpica por parte da pessoa jurdica com base no fundamento de que, no campo civil, ela capaz de realizar contratos e, consequentemente, viol-los. Afirma o ilustre penalista que a concluso de contratos no feita propriamente pela pessoa jurdica por si mesma, mas pelas pessoas naturais que atuam em seu nome, vinculando dessa forma o ente coletivo. Alega ainda que o fenmeno da representao no seja aplicvel determinao da sujeio ativa do delito, sendo necessria a realizao pessoal da ao tpica para que se considere autor do fato.

    Tal afirmao, com a devida vnia, no se mostra totalmente correta quando se leva em conta a aceitao hoje, tanto na esfera doutrinria quanto jurisprudencial, da denominada teoria do domnio do fato. Para esta, autor do crime tanto a pessoa que executa materialmente as elementares do tipo penal como aquele que detm o domnio final da ao

    44 PRADO, Luiz Rgis. Responsabilidade penal da pessoa jurdica: fundamentos e implicaes. In:

    Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica. Coordenador: Luiz Rgis Prado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 105.

  • 28

    praticada, tendo o controle sobre a realizao ou no da conduta delitiva e o modo de sua execuo. A aplicao dessa teoria importantssima na configurao da autoria nos chamados crimes de mando, estabelecendo uma co-autoria entre o mandante e o mandatrio da infrao penal. Nesse sentido, a atuao do indivduo na qualidade de integrante da pessoa jurdica que realize a vontade desta dirigida a um fim penalmente ilcito implica a responsabilizao conjunta do ente coletivo e da pessoa fsica.

    3.1.3 A culpabilidade da pessoa jurdica

    A culpabilidade outro fator polmico quando se fala na responsabilidade penal do ente coletivo. A definio do que seja culpabilidade sofreu vrias alteraes no decorrer da histria do direito penal, passando por diversas teorias explicativas de seu contedo, dentre as quais se destacam a teoria psicolgica, a psicolgico-normativa e a normativa pura.

    A teoria psicolgica da culpabilidade busca defini-la como a relao psquica do agente com o fato praticado. Refere-se ao estado psquico do autor frente ao resultado tpico, sendo formada assim pelos conceitos de dolo e culpa. Na viso de Juarez Cirino dos Santos, a culpabilidade na teoria psicolgica formada por dois elementos: a capacidade de culpabilidade (imputabilidade), definida como capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de querer conforme a compreenso do valor do fato, excluda ou reduzida em situaes de imperfeio (imaturidade) ou de defeco (doena mental) do aparelho psquico 45, e a relao psicolgica do autor com o fato, englobando os conceitos de dolo e culpa.

    A crtica dirigida a esta teoria reside na ausncia de explicao da culpa em sentido estrito, j que nesse caso no h relao psquica entre autor e resultado, bem como na impossibilidade de valorao de situaes anmalas de motivao da vontade.

    Ante tais consideraes, passou-se a buscar um liame normativo entre as noes de dolo, culpa e a culpabilidade. Observou-se a existncia de casos de aes dolosas em que no era exigida uma conduta diversa da praticada, levando assim vinculao da culpabilidade noo de reprovabilidade social. Nesse sentido a culpabilidade deixa de ser

    45 SANTOS, Juarez Cirino dos. op. cit. p. 277-278.

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    mera conexo psquica entre autor e fato, englobando igualmente um juzo de valor sobre o fato doloso ou culposo. A essa incorporao de um elemento normativo (reprovabilidade) culpabilidade deu-se o nome de teoria psicolgico-normativa.

    Ocorre que, apesar do avano proporcionado pela teoria psicolgico-normativa da culpabilidade, esta trouxe uma nova fonte de discusses no tocante permanncia dolo como elemento da culpabilidade. Traduzida em um juzo de censura, defendeu-se que o dolo deveria necessariamente estar fora da valorao para que esta incidisse naquele. A transferncia operada pela teoria finalista da ao dos elementos de dolo e culpa para a tipicidade fortaleceram o carter exclusivamente normativo da culpabilidade, formando assim a teoria normativa pura.

    A exposio dessa evoluo terica da culpabilidade tem o escopo de demonstrar o progressivo esvaziamento da caracterstica psicolgica desse elemento do crime acompanhado pelo incremento do aspecto normativo, sob o prisma da reprovabilidade do comportamento.

    Para os defensores da capacidade de culpabilidade da pessoa jurdica, tal evoluo demonstra o descabimento da negao de culpabilidade ao ente coletivo por ausncia de substrato psicolgico a ligar sua conduta ao resultado. Todavia, as crticas culpabilidade da pessoa jurdica ainda permanecem no tocante impossibilidade de compreenso do carter ilcito de sua ao, o que impediria tambm o arrependimento e a reeducao atravs da penalizao. Contra esse entendimento, rebate Schecaira:

    J se verificou que um dos principais objetivos atribudos modernamente pena exatamente o de reprovar a conduta em conflito, a fim de validar o conceito de bem jurdico para a maioria do grupo social. Disso decorre que a imposio da pena deve ter como objetivo precpuo sua relevncia pblica e no objetivos morais. Dessa forma, pensar em impor objetivos morais a uma empresa, mais do que um contra-senso, tentar reavivar algo que mesmo relativamente s pessoas fsicas j no deve ser aplicado 46

    A noo segundo a qual a definio de culpabilidade construda historicamente, tratando-se, portanto, de um conceito normativo, no ontolgico, fundamenta

    46 SCHECAIRA, Srgio Salomo. Responsabilidade penal da pessoa jurdica. 2 Edio, So Paulo: Mtodo,

    2002, p. 107.

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    a flexibilizao de determinadas categorias do direito penal clssico, adaptando-o realidade que se pretende regular. Nas palavras de Muoz Conde:

    A culpabilidade no um fenmeno individual, mas social. No uma qualidade da ao, mas uma caracterstica que se lhe atribui para poder imput-la a algum como seu autor e faz-lo responder por ela. , pois, a sociedade, ou melhor, seu Estado representante, produto da correlao de foras sociais existentes em um determinado momento histrico, quem define os limites do culpvel e do inculpvel, da liberdade e da no liberdade 47

    Ney de Barros Bello Filho tambm aponta para a necessidade de adaptao do conceito de culpabilidade realidade dos entes coletivos:

    A base do pensamento segundo o qual a culpabilidade pode ser conceito presente na atitude da pessoa jurdica surge da certeza de que culpa no algo que possa fluir de uma realidade natural e que possa ser provada com base em uma atitude cientfica. Culpa , na verdade, um conceito de natureza filosfica que pode ser flexibilizado ou revisto a partir de uma tomada de postura diferenciada frente ao fenmeno que se quer estudar. Quando um comportamento est agredindo bens jurdicos tidos por relevantes, h um rompimento de regras de natureza social; o prprio direito que conceitua o que vem a ser culpa, tratando-se, pois, de um conceito normativo e no de um conceito natural 48

    Em vista disso, pode-se falar hoje na reestruturao do conceito de culpabilidade nos crimes praticados pelas pessoas jurdicas, entendida como culpabilidade social, refletida no descumprimento do papel social que se espera de todo e qualquer ente coletivo que atuam nas mesmas condies.

    3.2 A responsabilidade indireta da pessoa jurdica

    47 MUOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Traduo: Juarez Tavares e Luiz Rgis Prado. Porto

    Alegre: Sergio Fabris, 1988, p. 128. 48

    FILHO, Ney de Barros Bello. op. cit., p. 157.

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    H ainda um outro modo de se enxergar a estrutura de responsabilizao penal da pessoa jurdica. Por vezes, considera-se inapropriada a aplicao da teoria do delito responsabilizao do ente coletivo, ainda que se interpretem seus elementos luz das peculiaridades da natureza da pessoa jurdica, adaptando-os a essa nova realidade.

    Tal entendimento decorre principalmente do fato de ter a teoria do delito sido construda e aprimorada no decorrer da histria sob o enfoque da conduta humana, valendo-se, portanto, de referenciais do ponto de vista psicolgico, principalmente no que concerne ao dolo e culpabilidade. Nesse sentido, busca-se a manuteno da teoria clssica do delito aplicada s pessoas fsicas, ao mesmo tempo em que se estende a responsabilidade penal pessoa jurdica com base em outros parmetros.

    Considerando que toda a ao desempenhada pela pessoa jurdica no seio social se d, inexoravelmente, por meio de uma ou mais pessoas fsicas que a compe, realizando a vontade produzida no mbito interno do ente coletivo, fala-se na presena necessria de um substratum humano, sobre o qual deva recair a anlise subjetiva da conduta infracional imputada pessoa jurdica. Segundo esse entendimento, a pessoa jurdica seria incapaz por si s de praticar a conduta prevista no tipo penal, havendo sempre a necessidade de que um representante seu o faa. Assim, a responsabilidade do ente coletivo se daria somente de forma reflexa, denominada tambm por ricochete, j que dependeria necessariamente da realizao de um fato criminoso por indivduo a ele vinculado.

    Nesse sentido, ter-se-iam duas vias de imputao distintas frente a um mesmo feito delitivo, uma voltada pessoa jurdica e outra pessoa fsica, esta ltima nos moldes da teoria do delito clssica. A esse sistema, deu-se o nome de dupla imputao.

    Segundo o sistema de dupla imputao, o fundamento principal para a extenso da responsabilidade penal ao ente coletivo reside na reprovao da vontade expressada pelos rgos de deliberao da pessoa jurdica e realizada pelo autor material do delito, pautando-se, portanto, em critrios puramente objetivos. Na viso de Fernando Galvo da Rocha:

    Para a responsabilizao da pessoa jurdica utiliza-se a teoria do delito apenas para identificar a autoria de crime naquele que atua em nome ou benefcio do ente moral. Sempre dependente da interveno de pessoa fsica, que responde criminalmente de maneira subjetiva, a pessoa jurdica no apresenta elemento subjetivo ou conscincia da ilicitude que viabilize comparao com as construes

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    da teoria do delito. A responsabilidade da pessoa fsica subjetiva, pois deve-se aplicar a teoria do delito com as suas exigncias de natureza subjetiva. A responsabilidade da pessoa jurdica, no entanto, decorre da relao objetiva que a relaciona ao autor do crime 49

    Jean Pradel, analisando o tratamento dado pela legislao francesa ao tema, defende a adoo da responsabilidade indireta da pessoa jurdica:

    El texto del artculo 121-2 prrafo 1 establece, recordmoslo, que las personas jurdicas son responsables de las infracciones cometidas... por sus rganos o representantes. Resulta as que las infracciones imputables a las personas jurdicas deben haber sido cometidas por personas fsicas.

    Por tanto la intencin o la culpa deben apreciarse en la persona de los individuos. Esta disposicin textual consagra de manera clara la primera tesis, la del reflejo. No obstante, puede hacernos dudar el prrafo 3 del mismo artculo, segn el cual la responsabilidad de la persona jurdica no excluye la de las personas fsicas autores o cmplices de los mismos hechos. Mientras que el prrafo 1 habla de una sola infraccin (cometida por uma persona fsica), el prrafo 3 al hablar de los mismos hechos y no de la misma infraccin sugiere que hay dos infracciones diferentes, una cometida por la persona fsica y otra por la persona jurdica, imputadas a una y a otra en condiciones distintas, lo que abrira la posibilidad de un elemento psicolgico tanto en la persona del ente jurdico como en la persona del individuo. As lo entiende un autor, segn el cual la falta de claridad del artculo 121-2 CP se debe a que fue el resultado de un compromiso entre la Asamblea Nacional y el Senado, la primera partidaria de extender la responsabilidad a los grupos, mientras que el segundo tenda a reducir la responsabilidad del empresario. Sin embargo, no est claro que esta interpretacin del prrafo 3 sea la correcta. Tambin se puede sostener que los mismos hechos imputados a la vez a la persona fsica y a la persona jurdica corresponden en realidad a una sola infraccin. Por tanto, el prrafo 3 no invalida el principio del reflejo consagrado en el prrafo 1, puesto que se limita a recordar lo que era evidente que la infraccin cometida por la persona fsica le puede ser imputada tambin a ella misma y no slo a la persona jurdica.

    En conclusin, admitiremos que el artculo 121-2 CP, globalmente considerado, consagra la tesis del reflejo: la persona

    49 ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. op. cit. p. 513-514.

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    jurdica es responsable de rebote, indirectamente, de modo que es en la persona del individuo donde hay que apreciar el dolo o la culpa 50

    Observa-se, portanto, que no modelo terico de responsabilizao reflexa imprescindvel a indicao da pessoa fsica que realiza o ato delituoso, apesar de haver experincias jurisprudenciais, em pases que adotam esse modelo, que relativizam esse aspecto. Alm disso, faz-se necessria a prova da relao de vnculo entre a pessoa fsica e a jurdica para que se estabelea a responsabilidade desta ltima, bem como a realizao de uma vontade produzida no seio da corporao, tida como prpria do ente coletivo.

    3.3 O modelo adequado ao ordenamento brasileiro

    A diferena prtica entre os dois modelos de responsabilizao do ente coletivo, direta ou indiretamente, pode ser resumida a basicamente dois pontos: a) utilizao ou no da teoria do delito tradicional para imputao da responsabilidade penal da pessoa jurdica; b) possibilidade ou no de se responsabilizar isoladamente o ente coletivo, seja pela no identificao da pessoa fsica autora do delito ou em razo da existncia de alguma excludente que a beneficie. De um lado, a dificuldade em se adaptar os elementos formadores da teoria tradicional do delito s peculiaridades da pessoa jurdica, com a criao de novos conceitos que atendam exigncia de responsabilizao do ente coletivo. De outro, a exigncia de sempre se apontar a pessoa fsica que executa a conduta ilcita para verificao do liame entre o agente do fato e a pessoa jurdica.

    A anlise do tratamento dado ao tema na Lei n 9.605/98 auxiliar na determinao da estrutura de responsabilizao que melhor se encaixa ao perfil normativo brasileiro.

    3.3.1 Responsabilidade penal da pessoa jurdica na lei 9.605/98

    50 PRADEL, Jean. La responsabilidad penal de las personas jurdicas en el derecho francs: algunas cuestiones.

    In: Revista de derecho penal y criminologa, ISSN 1132-9955, N 4, 1999, p. 665.

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    Iniciaremos a anlise da responsabilidade do ente coletivo na lei de crimes ambientais pela sua prpria estrutura de tipificao. Note-se que a estrutura dos tipos previstos na lei 9.605/98 segue a forma tradicional de tipificao encontrada nas demais leis penais, qual seja, a previso de uma conduta humana proibida com a cominao, em seguida, de pena privativa de liberdade. Isso, por si s, no nos permite afirmar que a escolha do legislador afasta a possibilidade de se considerar a responsabilidade direta da pessoa jurdica, ante a considerao levantada pelos seus defensores de que o ato praticado pela pessoa fsica em nome do ente coletivo se traduz na realidade em um ato prprio da pessoa moral. Todavia, a manuteno da estrutura tradicional de tipificao das condutas ilcitas, sem qualquer indicao das penas aplicveis pessoa jurdica no que se pode chamar de parte especial da Lei n 9.605/98, pode indicar uma preferncia pela manuteno da teoria tradicional do delito focada na responsabilizao da pessoa fsica.

    Outro argumento a favor da responsabilidade indireta se refere ao fato de ter o legislador tipificado condutas ao invs de atividades na referida lei. Aponta-se a possibilidade do legislador ter realizado a descrio tpica da prpria atividade da empresa no lugar da conduta da pessoa fsica, como fora feito na Lei n 8.974/95 (posteriormente revogada pela Lei n 11.105/05), permitindo assim a clara visualizao da responsabilidade direta do ente coletivo, mesmo que no caso da lei acima citada a responsabilidade tenha se restringido esfera administrativa. Ocorre, entretanto, que a escolha no se deu nesse sentido. A Lei n 9.605/98 no buscou a referncia direta atividade da pessoa jurdica, mantendo a forma tradicional de tipificao de condutas humanas lesivas, ou potencialmente lesivas, ao meio ambiente, o que refora a tese da responsabilizao indireta. Fernando Galvo da Rocha compartilha tal entendimento ao afirmar:

    A possibilidade de construo de nova teoria do delito, no entanto, no foi consagrado [sic] pelo legislador. Prova disto que todos os tipos penais descritos na Lei n. 9.605/98 se referem conduta proibida e no atividade. Ora, se a lei ambiental que prev expressamente responsabilidade penal para a pessoa jurdica no trabalha tipos referidos atividade, fica claro que a responsabilizao do ente moral se sustenta em outra fundamentao dogmtica. A referida lei tambm no indica deva ser construda nova teoria do delito para responsabilizar a pessoa jurdica 51

    51 ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. op. cit., p. 487.

    Guilherme PereiraHighlight

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    Sob outro aspecto, toda referncia responsabilidade penal da pessoa jurdica encontra-se reunida no art. 3 da Lei 9.605/98. Prev a referida norma o seguinte:

    Art. 3 As pessoas jurdicas sero responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infrao seja cometida por deciso de seu representante legal ou contratual, ou de seu rgo colegiado, no interesse ou benefcio da sua entidade

    Observa-se que a lei ambiental estabelece apenas dois requisitos para a responsabilizao penal das pessoas jurdicas: 1) que o cometimento do crime realize uma vontade que possa ser atribuvel ao ente coletivo; 2) que ocorra no interesse ou benefcio da pessoa jurdica.

    Schecaira 52 aponta ainda outros trs requisitos que estariam implcitos no art. 3 da Lei 9.605/98, que seriam a exigncia de que a infrao ocorra dentro da esfera de atividade da empresa, a execuo do crime por pessoa fsica estreitamente ligada pessoa jurdica e a utilizao do poderio econmico da pessoa coletiva na infrao. Alguns autores ainda defendem como requisito implcito do art. 3 a natureza privada do ente coletivo, o que ser matria de discusso mais a frente no presente trabalho.

    O importante no momento ressaltar que todos esses elementos, tanto explcitos como implcitos, retratam critrios de apurao objetiva, o que nos aproxima mais uma vez da tese de responsabilizao indireta da pessoa jurdica.

    Pode-se citar, por fim, a similitude da redao do art. 3 da lei 9.605/98 com o modelo francs de responsabilizao do ente coletivo, o qual adota, conforme ensina Pradel 53

    , a estrutura de responsabilizao por reflexo, o que retrataria mais um indicativo a favor dessa tese.

    Tais ponderaes nos permitem afirmar a forte tendncia em se considerar como modelo dogmtico de responsabilizao penal da pessoa jurdica a responsabilidade indireta.

    52 SHECAIRA, Srgio Salomo. op. cit.,p. 148.

    53 PRADEL, Jean. op.cit., p. 667.

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    3.3.2 A jurisprudncia ptria sobre o tema

    Apesar da vigncia da lei de crimes ambientais desde 1998, a jurisprudncia sobre a responsabilidade penal da pessoa jurdica ainda se mostra tmida e de certa forma controversa quanto a sua aceitao, havendo um nmero reduzido de precedentes a respeito do assunto. Por muito tempo, mesmo aps a vigncia da Lei n 9.605/98, manteve-se preponderantemente o princpio societas deliquere non potest nas decises judiciais para justificar a impossibilidade de responsabilizao do ente coletivo, apesar de se observar alguns esforos na magistratura de primeiro grau para inverso desse quadro. Aos poucos, a questo comeou a ser apreciada pelos tribunais, principalmente os localizados na regio sul do pas, abrindo espao discusso da responsabilizao penal da pessoa jurdica nesse meio. Exemplo dessa abertura est expressa no julgamento do Mandado de Segurana n 2002.04.01.013843-0 pelo Tribunal Regional Federal da 4 Regio, denegando a ordem que pleiteava o trancamento de ao penal em que figurava no plo passivo pessoa jurdica.

    Todavia, o marco mais relevante de abandono vedao da responsabilidade penal coletiva na jurisprudncia brasileira ocorreu no julgamento do Recurso Especial n 564960 / SC, relatado pelo ministro Gilson Dipp, no qual se afirmou a superao das barreiras dogmticas impostas pela teoria clssica do delito em favor da realizao do preceito constitucional insculpido no art. 225, 3:

    incabvel, de fato, a aplicao da teoria do delito tradicional pessoa jurdica, o que no pode ser considerado um obstculo sua responsabilizao, pois o direito uma cincia dinmica, cujos conceitos jurdicos variam de acordo com um critrio normativo e no naturalstico 54

    Firmou-se nesse mesmo precedente a idia de responsabilizao indireta do ente coletivo, ao se defender a tese da dupla imputao obrigatria da pessoa jurdica e fsica, como a seguir demonstrado:

    54 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial. Criminal. Crime ambiental praticado por pessoa

    jurdica. Responsabilizao penal do em coletivo. Possibilidade. Resp. n 564960. Recorrente Ministrio Pblico de Santa Catarina e Recorrido Auto Posto 1270 LTDA-ME. Relator Ministro Gilson Dipp. 13 de junho de 2005. p. 7.

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    certo que no se pode compreender a responsabilizao do ente moral dissociada da atuao de uma pessoa fsica, que age com elemento subjetivo prprio (dolo ou culpa) [...] Disso decorre que a pessoa jurdica, repita-se, s pode ser responsabilizada quando houver interveno de uma pessoa fsica, que atua em nome e em benefcio do ente moral, conforme o art. 3 da Lei 9.605/98 55

    O precedente acima citado serviu de base estabilizao da jurisprudncia sobre o tema na esfera do STJ, sendo seguido nos casos que o sucederam (Resp. n 865864, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima; Resp. 889528, relator Ministro Flix Fischer).

    Tanto as ponderaes feitas sobre a Lei n 9.605/98 como a prpria jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia do suporte responsabilizao indireta da pessoa jurdica por crimes ambientais praticados pelos seus integrantes, tendo como consequncia a necessidade de se apontar o elemento humano que executa a conduta tpica.

    Muitos dos defensores da responsabilidade penal da pessoa jurdica entendem que a vedao imputao exclusiva do feito ao ente coletivo representa na verdade um retrocesso na proteo ambiental. Alega-se que o fator primordial para a responsabilizao penal da pessoa coletiva justamente a ocultao, por trs da estrutura organizacional da corporao, das pessoas fsicas responsveis pelo delito, bem como a dificuldade em se estabelecer a responsabilidade de cada uma delas dentro da atividade do ente coletivo. O legislador e a jurisprudncia dariam com uma mo os instrumentos de implementao da tutela ambiental e retirariam com a outra a sua eficcia.

    Todavia, no nos parece ser essa a posio mais correta sobre o ponto. A extenso da responsabilidade penal s pessoas jurdicas nos crimes contra o meio ambiente no tem o escopo de facilitar a investigao dos fatos mediante a simples imputao do crime coletividade. No se trata de questo voltada prova, mas sim a incluso da estrutura pela qual se realizam os atos atentatrios manuteno de um ambiente saudvel na esfera de responsabilizao. O foco da responsabilidade da pessoa jurdica reside na mobilidade da estrutura de atuao das corporaes no meio social, a idia de que a simples punio a um dos elementos que integram a coletividade no suficiente para provocar uma mudana finalstica na atuao do todo. A justificao para a responsabilidade da pessoa jurdica reside justamente nesse ponto.

    55 Idem, Ibidem. p. 8.

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    Ademais, a identificao da pessoa fsica que executa a conduta tipificada na lei ambiental se faz necessria para a verificao dos requisitos impostos pelo art. 3 da Lei n 9.605/98, j que a conduta executada deva ocorrer no cumprimento fiel da deliberao coletiva e deva haver estrita ligao entre a pessoa fsica e jurdica. Fernando Galvo da Rocha ilustra bem a situao:

    Vale observar que para responsabilizar a pessoa jurdica no suficiente que a atuao da pessoa fsica seja determinada por deciso institucional. necessrio ainda que a violao da norma jurdica se d no estrito cumprimento da deliberao da pessoa jurdica. No se pode admitir que a pessoa jurdica seja responsabilizada nos casos de excesso de mandado 56

    Nesse sentido, mesmo com as crticas apontadas, a tese da responsabilizao indireta do ente coletivo nos parece mais adequada ao atual quadro normativo que trata do tema.

    4. Responsabilidade penal da pessoa jurdica de direito pblico

    O ponto que sucede qual o modelo terico que melhor se adqua realidade normativa brasileira a discusso quanto possibilidade de responsabilizao penal da pessoa jurdica de direito pblico por crimes contra o meio ambiente.

    O incremento das intervenes do Poder Pblico na sociedade com a superao das concepes liberais e sua substituio pelo modelo de Bem-Estar Social, alterou o papel do Estado de mero controlador dos atores sociais para o de principal responsvel pelas mudanas e progressos no seio social. Contudo, tal alterao veio acompanhada de uma srie de questes que exigem a reformulao da abordagem tida em diversos campos do conhecimento, dentre os quais se inclui o direito penal:

    56 ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. op. cit., p. 517.

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    Nesse quadro criminolgico, as pessoas jurdicas de direito pblico ocupam espao importante. O Estado de nossos dias, fruto da concepo de Estado-do-bem-estar-social, intervm direta ou indiretamente em uma infinidade de atividades de natureza econmica e social, produzindo quantidades expressivas de condutas potencialmente lesivas ao ambiente. As pessoas jurdicas de direito pblico movimentam oramentos gigantescos e empregam milhes de pessoas para satisfazer necessidades coletivas das mais variadas espcies em reas como as de transporte, comunicaes, habitao, saneamento bsico, biotecnologia, minerao, recursos hdricos, energia, defesa, alm de inmeras outras. Tais atividades, assim como as que so exercidas pelas pessoas jurdicas privadas, oferecem riscos ambientais, que devem ser controlados pelo ordenamento jurdico por meio de tutela penal 57

    Se do ponto de vista da responsabilidade penal do ente privado a aceitao doutrinria e jurisprudencial aumenta crescentemente, o mesmo no se pode dizer quanto responsabilizao penal do Estado. Muitos dos autores que aceitam sem maiores dificuldades a responsabilidade penal das pessoas jurdicas de direito privado no o fazem em relao aos entes pblicos, a exemplo de Fernando Galvo da Rocha 58, Shecaira59 e Guilherme Jos Purvin de Figueiredo 60, sob diversos fundamentos, os quais sero analisados a partir de agora.

    4.1 Argumentos contrrios responsabilizao das pessoas jurdicas de direito pblico

    O primeiro argumento levantado contra a possibilidade de responsabilizao penal de ente pblico se refere necessria distino de natureza entre as pessoas jurdicas de direito pblico e privado. Apesar de nem a Constituio Federal de 1988 e tampouco a Lei n 9.605/98 fazerem restrio expressa responsabilizao penal do Estado, defende-se que as peculiaridades inerentes ao ente pblico no permitem que haja tratamento equnime entre estes e as pessoas de direito privado. Pedro Krebs um dos primeiros a apontar a existncia

    57 ARAJO, Lus Eduardo Marrocos de. A Responsabilidade Penal do Estado por condutas lesivas ao Meio

    Ambiente. Fundao Escola Superior do Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios, Braslia, abr. 2005. Disponvel em: , p. 1. 58

    ROCHA, Fernando Antnio Nogueira Galvo da. op. cit., p. 519-520. 59

    SHECAIRA, Srgio Salomo. op.cit., p. 190-192. 60

    FIGUEIREDO, Guilherme Jos Purvin de; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurdicas por conduta ou atividade lesiva ao meio ambiente: as pessoas jurdicas de direito pblico. Tese apresentada no XXIV Congresso Nacional de Procuradores do Estado. 1998, 26 f.

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    de diversas diferenas de natureza e finalidade entre as pessoas de direito pblico e privado, defendendo de forma enrgica a impossibilidade de se responsabilizar o ente pblico:

    Assim, sendo, ousamos discordar daqueles que afirmam ser possvel a punio das pessoas jurdicas de direito pblico interno pelo simples fato de serem tambm pessoas jurdicas, atestando carecer de importncia a natureza jurdica que lhes imposta. uma concluso apressada cujo raciocnio j se encontra viciado em sua prpria origem. (...) Neste sentido, no podemos acatar o entendimento de que a irresponsabilidade penal do ente pblico acarretaria uma violao do princpio da igualdade. Isto porque as pessoas jurdicas de direito pblico interno so distintas seno em tudo em vrios aspectos das de direito privado. Ora, em no se confundindo, possvel (ou, no mnimo, necessrio) efetivar um tratamento desigual entre elas." 61

    Uma das caractersticas essenciais do Estado que serve de bice a sua responsabilizao penal seria, na viso de Figueiredo e Teles, a sua sujeio ao princpio da legalidade:

    Na administrao, afirma-se: o Estado no tem o dever de seguir e de realizar a norma jurdica, mas sim algo profundamente diverso, o Estado tem o dever de satisfazer o desejo e o interesse coletivo. O Direito Administrativo, por isso, difere da Jurisdio a norma a aplicar ao caso concreto. No confronto de qualquer sujeito (pessoa fsica ou jurdica), que no seja o Estado, a lei representa sempre uma vontade superior, externa a eles: uma vontade transcendente; ao contrrio, para o Estado que age na consecuo de seus fins, a lei sua vontade interna, uma vontade imanente: a sua prpria vontade. A administrao pblica no um sujeito distinto do Estado, mas o prprio Estado em ao para alcanar seus fins. Nem por isto se contrasta a opinio comum, segundo a qual a atividade administrativa funo fundamental de vontade. No Estado atual, onde os fins da Administrao vm estabelecidos pelo Direito, as atividades para a sua consecuo so aquelas que o Direito descreve ou consente 62

    61 KREBS, Pedro. A (ir)responsabilidade penal dos entes pblicos in Revista dos Tribunais; ano: 89; vol. 772;

    fev., 2000; p. 487. 62

    FIGUEIREDO, Guilherme Jos Purvin de. op.cit., p. 11.

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    Relaciona-se ao fundamento acima exposto a alegao de que o ente pblico nunca poderia completar o requisito elencado no art. 3 da Lei n 9.605/98 que estabelece a necessidade de o fato delituoso ocorra no interesse ou benefcio da pessoa jurdica. Ora, se a proteo do meio ambiente se encontra no rol de deveres do Estado conforme estabelece a Constituio Federal em seu art. 225, caput, como poderia a vio