Michel Bastit - Nascimento da Lei Moderna.pdf

506
MICHEL BASTIT  N A S C IME N T O DA LEI MODERNA

Transcript of Michel Bastit - Nascimento da Lei Moderna.pdf

  • MICHEL BASTIT

    NASCIMENTO DA LEI MODERNA

  • NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    O pensamento da lei de Santo Toms a Suarez

    Michel Bastit

    T rad uoMARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVO

    Reviso da traduo CLAUDIA BERLINER

    ,1umfimartinsfontes

    SO PAULO 2010

  • Esta obra fo i publicada originalmente em francs com o ttulo NAISSANCE DE LA LOl MODERNE

    por Presses Universitaires de France, Paris Copyright Presses Universitaires de France

    Copyright 200, Editora WMF Martins Fontes Ltda.,So Paulo, para a presente edio.

    1? ed io 2070

    T raduoMARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVAO

    R eviso da traduoClaudia Berliner

    A com p an h am en to ed itoria l Luzia Aparecida dos Santos

    Preparao do o rig in al llelena Guimares liittcncourt

    R evises gr ficas Maria Regina Ribeiro Macliado Ana Maria de ( ) . M. Machado

    Produo g rfica Geraldo Aloes

    Pagi nao/ To to I i tos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    D ados Internacionais de Catalogao na Publicao (ClP)(Cmara Brasileira do Livro, SP , Brasil)

    Basti t, M ichelN ascim ento d a lei m oderna : o pensam ento da lei d e Santo

    T om s a Su arez / M ichel B a s t it ; tradu o M aria Erm antina d e A lm eida Prado G alvo ; reviso da tradu o Claudia Berliner. - So P au lo : Editora W M F M artins Fontes, 2010. - (Biblioteca ju rd ica W M F)

    T tu lo orig inal: N aissan ced e la loi m oderne.Bibliografia.ISBN 978-85-7827-144-2

    1. D ireito - Filosofia 2. D ireito - H istria 3. D u ns Scot,Jo h n , 1266-1308 4 . G uillaum e, d 'O ccam , ca . 1285-ca. 1349 5. Su arez , Francisco , 1548-1617 6. T om s, d e A quino, Santo, 1225?-1274 I. Ttu lo . II. Srie.

    09-04725_____________________________________________C D D -34(Q 9I)

    n d ice s para catlogo sistem tico :1. D ire ito : H istria 34(091)

    Todos os direitos desta edio reservados Editora WMF Martins Fontes Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042

    -mail: [email protected] http://nrwzv.wmfmartinsfontes.com

  • NDICE

    Principais abreviaes............................................................... IXIntroduo.................................................................................... XI

    PRIMEIRA PARTESANTO TOMS OU A LEI ANLOGA

    CAPTULO I A adm irao das co isas............................... 3A tendncia ao esquecimento das coisas................... 5Olhares sobre as coisas..................................................... 21

    CAPTULO II A definio realista da le i........................... 31"De essentia legis"............................................................. 36

    A lei razovel.................................................................. 36A lei fin a lizad a ............................................................... 49A lei conhecida ............................................................... 53

    Os efeitos da lei.................................................................. 58

    CAPTULO III A ordem das leis........................................... 71As leis na ordem de participao.................................. 73

    A le i etern a ..................................................................... 74A lei natural.................................................................... 78A lei hum ana .................................................................. 83A lei divina ...................................................................... 87

    As leis na ordem dos fins.............. .......................... j...... 91

  • A lei eterna e o bem do universo .................................. 91A lei natural e o ban dos homens no cosm os ............ 100

    A lei natural est alm da conscincia ................ 102A lei natural, lei do cosmos e lei dos Iwm cns...... 106

    A lei humana e o bem da cidade .................................. 121

    CAPTULO TV A lei hum ana e as c o is a s ........................... 132A lei da cidade e a razo universal................................ 134A lei e o particular.............................................................. 139

    A lei e a diversidade das com unidades...................... 140A lei e a diversidade dos casos ..................................... 142

    A interpretao c a cp ieikeia................................ 142A dispensa................................................................. 146O julgam ento ........................................................... 147

    A lei e o movimento das coisas: o costum e............... 152A lei divina, perfeio da lei humana........................... 157

    CAPTULO V " Ju s "e " le x " ...................................................... 176Os dois "jus": justia geral e justia particular......... 177A lei, causa parcial do direito.......................................... 184

    SI'GUNDA PARTKDUNS ESCOTO, OCKHAM

    A RUPTURA NOMINALISTA OU DA LEI UNVOCA LEI EQUVOCA

    CAPTULO VI Prim eiros sinais de d ese q u ilb rio ........ 195O processo da inteligncia.............................................. 196O recurso f ...................................................................... 202

    C APTULO vil As le is separadas das co isa s ................... 211A lei divina estabelecida por D eus................................ 217A lei natural dividida entre o necessrio e o voluntrio......................................................................................... 232O artifcio da lei hum ana................................................. 248A hierarquia das leis: da vontade divina vontadedo Prncipe........................................................................... 260

  • CAPTULO VTII O direito assim ilado l e i ....................... ...270Confuso entre lei e direito............................................ ...272O direito, obra da vontade divina....................................279Concluso............................................................................. ...284

    CAPTULO IX A lei entre D eus e o Im p e ra d o r ................288Jus p o l i .................................................................................... ...301Jus f o r i .................................................................................... ...311A desnaturao do direito natural............................... ...324

    CAPTULO X A lei entre os sditos e o P r n c ip e ......... ...338O conflito entre a lei geral e as coisas particulares .. 338

    A deciso do leg islador ................................................. ...340A forma lgica da le i .........................................................351

    C) conflito entre o Prncipe e os sditos...................... ...359Concluso............................................................................. ...370

    TRRCLRA PARTI!SUAR HZ OU A LEI DIALTICA

    CAPTULC) XI A dvento dc um a nova ratio leg is ................375A lei um preceito................................................................383A lei um precei to ju sto .................................................. ..389A lei um preceito com um ............................................ ...392A lei um preceito justo comandado por quemdetm o poder poltico .................................................... ..399A lei um preceito estvel.................................................401Um preceito suficientemente promulgado............... ..406

    CAPTULO XII A ordem das le is ............................................411A vontade divina e a lei eterna...................................... ..411A lei natural................................................................ v....... ..415A lei hum ana....................................................................... 427

    Concluso..................................................................................... 445B ibliografia .................................................................................. 467

    I. F on tes .................................................................................. 467II. Autores modernos e estudos ......................................../. 469

  • PRINCIPAIS ABREVIAES utilizadas para citar as fontes

    SANTO TOMS S. Th.Iala llae lia llae Quaest. Art. in Met. in Eth. in Pol. lec.

    DUNS ESCOTO Op. Ox. Rep. Par. Dist.

    O CKI IAM

    in I Sent,

    in II Sent,

    in III Sent,

    in IV Sent.

    Summa Theologica Prima parsPrima pars Secundae partis Secunda pars Secundae partis Quaes tio ArticulusExpositio in XII libras metaphysicorum Aristotelis Expositio in X librou ethicorum Aristotelis Expositio in VIII libros politicorum Aristotelis Lectio

    Opus Oxoniense Reportata parisiana Distinctio

    Commentarium in primum librum setentiarum Petri LombardiCommentarium in secundum librum sententiarum Petri LombardiCommentarium in tertium librum sententiarum Petri LombardiCommentarium in quattrum librum sententiarum Petri Lombardi

    As abreviaes referentes s revistas esto explicitadas na bibliografia.

  • INTRODUO

    A poca do reinado majestoso da lei parece ter sido sucedida, hoje e j faz certo tem po1, pelo reino das dvidas e interrogaes sobre essa categoria de regras de direito. Os juristas contemporneos no deixam de constatar que a lei, que alguns deles h pouco consideravam seu brevirio, levanta agora tantas questes quantas resolve, se no mais. Embora parecesse ter conquistado definitivamente seu lugar no topo das fontes de direito, eis que a soberania da lei parece abalada pela inovao que, desde a Constituio de 4 de outubro de 1958, os limites impostos lei constituram. O campo da lei se acha agora restrito pela transferncia ao poder regulamentar da exclusividade de certas m atrias, mas tambm a lei submetida a um controle de cons- titucionalidade exercido no pela representao nacional, mas por um juiz2. Decretos e regulamentaes de administrao pblica fazem concorrncia lei e formam categorias de regras de direito que nela no encontram sua fonte.

    1. Burdeau, "Essai sur l'volution do la notion do loi en droit franais", APD, 1939, p. 7; Burdeau, "Le dprissement do la loi", APD, 1963, p. 35.

    2. Durand, "La dcadence de la loi dans la constitution de la VRpubli que", ]CP, 1959, I, 1470; Chapus, "D e la soumission au droit des rglements autonomes", D., 1960, chr. 119; Waline, "Les rapports entre la loi et le rglement avant et aprs la constitution de 1958", RDP, 1959, p. 699; Hamon, "Les domaines de la loi et du rglement, la recherche d'une frontire", D., 1960, chr. 253; Favoreu et al., Le domaine de la loi et du rglement, Aix, 1978.

  • XII NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    Entretanto, poderamos dizer que elas decorrem da competncia atribuda pela lei constitucional aos rgos titulares do poder regulamentar. A constitucionalidade das leis, porm, j no depende somente da conformidade letra da constituio; o Conselho Constitucional, seguindo o Conselho de Estado, teve de depreender princpios gerais do direito constitucional em nome dos quais ele julga a lei3.

    Ao lado da lei e dos textos regulamentares, apareceram outras fontes que dificilmente se encaixam na sua descrio clssica. o caso, por exemplo, das convenes coletivas em direito do trabalho que, antes mesmo de sua extenso por via regulamentar, constituem regras que se impem para alm do crculo das partes contratantes. costume, que podamos considerar totalmente desaparecido desde o advento do direito escrito, m antm -se no s em direito privado como resduo, mas tambm em direito pblico. Uma leitura da Constituio sem referncia s prticas que surgiram sob o impulso do fundador da Quinta Repblica no teria muito sentido, no mais do que tinha a leitura das leis constitucionais da Terceira Repblica, se no se levasse em conta a regra consuetudinria de no dissoluo da Cmara. C) direito comercial, o direito do trabalho, o direito rural conhecem "usos", d-se o mesmo com certas deontologias como as regras prprias de certos tribunais4. Apesar da vontade dos autores de manter o costume num papel supletivo, ele se impe s vezes contra a lei5.

    A segunda parte do sculo XIX e a primeira parte do sculo XX viram nascer enormes construes jurisprudcn- ciais que formam partes inteiras de nosso direito. A maior

    3. Cons. Const., 28 dc novembro de 1973, /)., 74, 269; Cons. Const., 16 de julho de 1971, D., 72, 685.

    4. Ainda que esses usos estejam codificados em nome de uma lei (Car- bonnier, Droit civil, t. 1, p. 121), a incorporao deles ao direito no depende da lei, mas da existncia deles como regras de direito. Existem, por exemplo, servides de uso das guas, costumes referentes s terras baldias na Bretanha, ou s partes de pntano com diviso da propriedade; Braud e Debeaurain, Mitoycnnct, clotures, homage, servitudes, Paris, 1981, p. 71.

    5. Marty e Raynaud, Droit civil, 1.1, 2'.' ed., Paris, 1972, pp. 208-9.

  • INTRODUO XIII

    parte do direito administrativo oriunda das decises do Conselho de Estado, trate-se das regras do contencioso da legalidade ou das concernentes responsabilidade da administrao pblica. O direito civil no fica atrs; no s no haveria direito da responsabilidade sem os acrdos da Corte de Cassao que acompanham os arts. 1382 ss., mas tambm o direito de filiao bem como a proteo do consentimento contratual dependem largamente das regras ju- risprudenciais.

    Em face desse fenmeno, a doutrina jurdica est hesitante. Im pe-se a ela o problema da coordenao das suas fontes e da sua eventual hierarquia. Os publicistas esto divididos entre saber qual o valor dos princpios gerais do direito e saber se possvel o controle da legalidade das regulamentaes considerado fora da aplicao de uma lei". Os autores no conseguem expressar de modo satisfatrio o lugar da jurisprudncia entre as fontes do direito. Para a Corte de Cassao, a jurisprudncia solidria da lei7, mas, ento, como explicar esse poder quase legislativo que ela assim se confere?8 Como explicar eventuais reviravoltas sem mudana de legislao? Para certos autores, a jurisprudncia uma fonte que permanece subordinada lei, ao passo que outros a consideram uma autoridade4.

    O papel do juiz com relao lei tambm mal determinado. Lia-se em Montesquieu a tese do juiz nulo e ouvia-se Robespierre pretender riscar a palavra "jurisprudncia" do vocabulrio10, ao mesmo tempo que o novo Tribunal

    6. Laubadre, Traite, t. I, p. 80, Paris, 1980; Marly o Raynaud, op. cit., pp. 154-5.

    7. I lbraud, RTDC, 1953, p. 735.8. Que chega a t a dirimir uma questo que no de sua alada, Civ. 20

    de maio de 1969, >., 69, 429.9. Maury, "Observations sur la jurisprudence en tant que source du

    droit", Etudes Ripert, 1.1, p. 43; S. Belaid, Essai sur le pouvoir crateur et normatif du juge, Paris, 1974; Esmein, "La jurisprudence et la loi", RTDC, 1952, p. 17; O. Dupeyroux, "La jurisprudence source abusive de droit", Mlanges Maunj, II, p. 349; Carbonnier, op. cit., p. 159; Ghestin, Trait de droit civil, 1.1, pp. 356-7.

    10. Citado por Gny, Mthodes d'interprtation, I, p. 61.

  • xrv NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    de Cassao estava estreitamente subordinado ao Poder Legislativo graas instituio da liminar legislativa11. Pouco depois, o novo Cdigo Civil era visto como a realizao definitiva do direito racional que, sob o nome de direito natural, a escola do direito natural moderno no cessara de almejar. Supunha-se ento que o juiz descobria nessa fonte a totalidade do direito12.

    O prestgio do novo Cdigo era tal que, apesar do prudente ceticismo de Portalis13, pensavam que ele ia regenerar a sociedade francesa segundo as aquisies da Revoluo.

    Hoje se reconhece, ao contrrio, que a jurisprudncia intervm na elaborao do direito. No entanto, as divergncias sobre as justificaes que devemos aplicar ao fenmeno so inmeras. Existem sistemas que recorrem fico da delegao de poder dada pelo legislador ao juiz; outros que estimam que a jurisprudncia um costume; para outros, enfim, sua autoridade est ligada ao conhecimento e sistematizao que a doutrina lhe im pe14.

    Alm das questes que provm do lugar da lei com relao a essas outras fontes do direito, h problemas que incidem sobre a prpria leitura da lei. Trata-se ento da questo da interpretao. Tambm a, aps ter pensado que se podia fazer a interpretao por referncia ao texto da lei, para nele procurar a inteno do legislador, ainda que fosse com a ajuda, a ttulo subsidirio, dos trabalhos preparatrios, segundo o ensinamento da escola da exegese, as situaes novas exigiram considerar com muito maior liberdade o texto da le i15. Fica claro, ento, que no existe intcr-

    11. Montesquieu, L'esprit des lois, LXl, 6. O termo volta duas vezes no decorrer do captulo.

    12. Gcny, Mthode d'interprtation, Paris, 1899; Bonnecasse, L'cole de l'exgse en droit civil, Paris, 1924; Husson, "Analyse critique de la mthode de l'exgse", APD, 1972,115.

    13. "O s cdigos dos povos se fazem com o tempo, mas, para dizer a verdade, eles no so feitos"; Portalis, Discours prliminaire, Fenet, Travaux prparatoires du Code civil, I, p. 476.

    14. Cf. n. 9.15. Cf. n. 12.

  • INTRODUO XV

    pretao nica de um texto. A jurisprudncia teve de dar definies diferentes do termo "noite" no artigo 386 do Cdigo Penal16. Ela tambm deu interpretaes muito diferentes da regra nemo auditur e do artigo 1.131 do Cdigo Civill7, sem falar das divergncias de interpretaes entre duas ju risdies a propsito de um mesmo texto, como o caso do artigo que interpretado diferentemente pela Corte de Cassao francesa e pela Corte de Cassao belga18, ou divergncias no seio de uma mesma jurisdio19.

    Por essa razo, chegou-se a falar de lacunas no direito, considerando este um sistema que deveria ser completo mas no o . Olhando mais de perto, parece que as lacunas so a regra c os casos j determinados uma exceo. Seja qual for o desejo de segurana jurdica, a persistncia da discusso perante os tribunais a manifestao mais flagrante da incerteza e da descoberta progressiva do direito.

    Os fenmenos que acabamos de assinalar se referem aplicao da lei; h outros tocantes sua criao e que revelam um mesmo enfraquecimento da lei.

    No entanto, atendo-se sua quantidade, ficaramos tentados a dizer que a lei jamais se portou to bem. O legislador francs parece cada vez mais fecundo, a tal ponto que h uma recente publicao jurdica consagrada unicamente s leis novas. O Parlamento vota mais de mil leis por ano, ou seja, quase o que Roma produziu nesse campo no curso de dois milnios. Deram o nome de inflao legislativa a essa situao que tem inmeros inconvenientes para o jurista; o menor deles a dificuldade em conhecer as leis20.

    16. Cas. Pen., 12 de fevereiro de 1813, Sirey, 1812-1814, p. 284; Nmes, 7 de maro de 1829, Dalloz, 5 vol., n" 469; e os comentrios de M. Miedziana- gora, Philosophies positivistes du droit et droit positif, pp. 133 a 136, Paris, 1970.

    17. Miedzianagora, op. cit., pp. 15 ss.18. Miedzianagora, op. cit., p. 29.19. As divergncias entre as Cmaras Civil e Pnal sobre a indenizao

    da coriC^bina antes do acrdo das Cmaras Mistas de 27 de fevereiro de 1970, D., 1970, 201, nota Combaldieu.

    20. Carbonnier, "L'inflation des lois", Essais sur les lois, p. 271, Paris,1979.

  • XVI NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    No s a grande quantidade delas tom a sua leitura praticamente impossvel, at para o jurista, mas a rapidez com que elas se sucedem leva a negligncias de redao, at mesmo a contradies, que tornam muito difcil o conhecimento das regras legislativas. A fortiori, a presuno de conhecimento da lei que pesa sobre o simples cidado j no tem muito sentido.

    Na origem dessa inflao encontra-se a ideia de que preciso solucionar, de maneira geral e igual para todos, to das as questes que surgem na vida de um pas. Parece que j no se compreende que certas questes poderiam ser resolvidas pelo juiz21. Como este fica, teoricamente pelo menos, encerrado num estreito formalismo, toda questo que exigiria uma compreenso menos literal da lei sobe ao legislador; e, inversamente, se o juiz d uma interpretao no literal tia lei, pensam que ele no aplica a lei, o que lhe imputado como erro ou, ao contrrio, utilizado abusivamente para demonstrar que a lei deve ser reformada22.

    Contudo, persiste e se fortalece a ideia de que a lei uma segurana, por isso toda situao nova parece exigir uma lei23. Km vez de deixar se desenvolverem prticas con- suetudinrias, cada qual cr encontrar numa consagrao legislativa a soluo jurdica que "legalizar", por exemplo, novos contratos comerciais. Os casos que j foram resolvidos por via legislativa so, por sua vez, fonte de contencioso que provoca novas intervenes legislativas destinadas a resolver o novo contencioso. O legislador se v arrastado numa verdadeira corrida sem fim para alcanar uma realidade que lhe escapa eternamente. Desse modo, s grandes

    21. Carbonnier, o /j . cit., p . 277.22. A utilizao da sentena de equidade pronunciada pelo tribunal de

    Bobigny em matria de aborto para tirar da a ideia da necessidade de reformar a lei, quando na verdade essa sentena mostrava a possibilidade de o juiz se adaptar apesar da lei.

    23. No s a opinio pblica, mas tambm, o que mais grave, a doutrina jurdica pedem ao legislador que lgifr. Por exemplo, G. Viney, "L 'in demnisation des victimes de dommages causs par le fait d'une chose aprs l'arrt de la Cour de cassation du 21 juillet 1982", D., 1982, 282.

  • INTRODUO XVII

    leis que reformam uma matria inteira sucedem bem depressa leis ditas de "toalete" para reformar as reformas24. A acelerao da atividade legislativa tambm encontra sua fonte nas questes tcnicas que o legislador contemporneo chamado a resolver. A lei um instrumento tanto de poltica econmica como de poltica penal, ento no se trata em absoluto de legislar no longo prazo, mas de solucionar m omentaneamente situaes pendentes cuja natureza logo requer prximas disposies. A lei se torna um instrumento nas mos dos tcnicos dos gabinetes que a transformam em plano25 a servio de seus objetivos.

    Por trs dos gabinetes, descobrimos em geral interesses profissionais ou outros que procuram obter os favores da lei, e o legislador, constitudo apenas de deputados, nem sempre ao corrente das questes ou, ao contrrio, prximos demais dos interesses em causa, cede a essas presses1'. Caso tpico no o das leis eleitorais que o ministro do Interior, ajudado por seus servidores, elabora a fim de que a maioria conserve o poder? A multiplicao das leis desse tipo leva o legislador a vacilar entre interesses contraditrios sem conseguir depreender o que constitui o bem comum. Chega-se caricatura da lei quando, no mesmo dia, o legislador anula por outra lei a deciso tomada algumas horas antes27. Os interesses no so somente profissionais, tambm costumam ser partidrios e ideolgicos, ento a lei se torna o meio de realizar um programa poltico que logo suscita a promessa feita pela oposio de desfazer o que a maioria fez. Certas reas em que o que est em jogo ultrapassa de longe as disputas partidrias se tornaram, porm, campos de combate onde reformas sucedem a reformas. Basta pensar na educao nacional e na Universidade.

    24./rerr, "La crise de la loi", APD, XXV (1980), pp. 20-3.25. Terre, op. cit., p. 20.26. Terr, op. cit., p. 20.27. Terre, op. cit., p. 26.

  • XVIII NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    A estabilidade que parecia a caracterstica da lei28 desapareceu e, com ela, um dos elementos da confiana na lei. Tal instabilidade no seno sintoma da imoralidade da lei. Com efeito, se a lei resolve ser apenas uma simples regra tcnica, se no visa verdadeiramente o que bom para a comunidade poltica, ela fica imoral. Sua imoralidade no reside no fato de no respeitar uma lei natural da qual ela deveria ser deduzida, mas do fato de no visar o que o verdadeiro bem comum da comunidade qual ela pretende, no obstante, impor-se. Assim sendo, ela s se impe cm razo da vontade do legislador, cujo poder se torna injustificada- mente pesado e suscita revolta equivalente. Fica fcil avistar por trs desse poder os interesses particulares cujo descobrimento s pode reforar a recusa de obedincia.

    Chega-se ao quadro bizarro de uma lei cada vez mais invasiva e cada vez mais impotente. Ela parece ter a pretenso de abranger a totalidade das relaes entre os cidados, de ficar no lugar das relaes entre particulares, de ditar aos juizes suas solues. Essa extenso alis almejada por muitos, que s veem salvao e segurana mediante a interveno do legislador. Ao mesmo tempo, ela cada vez menos obedecida, seu prestgio esvai na instabilidade, na injustia e, por fim, na revolta. Evidentemente, tal situao no deixou de suscitar h muito tempo a reflexo.

    Embora detectassem esses sintomas, os juristas com earam por reafirmar os grandes princpios da teoria dita clssica29. A lei se imporia porque a expresso da vontade

    28. Em Locres, o cidado que prope uma lei nova o faz com a corda no pescoo (Demstenes contra Timocrato, 139). Hm Atenas, o processo da Ailcia e a possibilidade da graph paranmim asseguram a estabilidade (]. de Romilly, La loi dans la pense greeque, Paris, 1971, p. 204).

    Sabe-se que em Roma, depois das primeiras leis republicanas, essa fonte tende a esgotar-se na idade clssica para retomar um lugar desproporcionado no Baixo Imprio (R. Villers, Romc et Ic droit prive, Paris, 1977, pp. 110 ss.). O direito cannico clssico se caracteriza, tambm ele, por sua estabilidade (Le Bras, in Histoire de 1glise, Fliche e Martin, t. XII, Paris, 1959, p. 96, n. 4).

    29. O classicismo dos civilistas o do sculo XIX. Cf. Bonnecasse, Science du droit et romantisme, Paris, 1928.

  • INTRODUO XIX

    geral, como o dizem certos textos do direito francs. Dessa vontade ela extrai sua fora e sua legitimidade, possvel e necessrio vincular todos os fenmenos jurdicos ao desenvolvimento dessa vontade que lhes assegura o valor30. Em- penhar-se-o, portanto, em geral custa de numerosas fic- es, em mostrar, de um lado, que a lei tem sua origem na delegao de vontade que os sujeitos fazem ao legislador e, do outro, que todas as fontes do direito procedem de um modo mais ou menos direto da lei.

    Em primeiro lugar, isso levar a interpretar muito artificialmente a delegao de poder realizada por ocasio da elaborao constitucional ou da designao dos representantes como a execuo de um muito hipottico contrato social, que, claro, os cidados no tm a menor conscincia de firmar, o que assaz inoportuno para um contrato. Em nome desse ato fictcio, e de encontro evidncia de leis parciais ou perigosas, aceitaro o conjunto dos atos em itidos pelo legislador. Esforar-se-o em seguida cm fazer que derivem da lei no s as fontes regulamentares - o que no contexto da Constituio de 1958 necessitar de um desvio pela lei constitucional que concede delegao ao poder regulamentar de praticar certos atos autnomos - , mas ainda os princpios gerais do direito, inclusive os do direito constitucional, que s teriam valor por sua presena ao menos explcita em certos textos31. A jurisprudncia se ver de uma forma ou de outra vinculada lei, quer ela aparea como uma declarao da inteno do legislador32, quer se preten

    30. Waline, "Dfense du positivisme juridique", APD, 1939, p. 94. verdade que outros autores da mesma escola se isentam de passar pelo contrato social ou pela delegao de soberania para substitu los pelo fato do poder poltico; cf. Carr de Malberg, Thorie gnrale de l'tat, Paris, 1930, t. I, p. 65. Cf., do mesmo autor, La loi, expression de la volont gnrale, Paris, 1931, reed. 1985; Soto, "La loi et le rglement dans la ConstitutiorT du 4 octobre 1958", RDP, 1959, p. 2480.

    31. Chapus, "D e la soumission au droit des rglements autonomes", D.,1960, Chron. 119; Chapus, "D e la valeur juridique des principes gnraux du droit", D., 1966, Chron. 99.

    32. Duguit, Trait, I, pp. 142 ss.

  • XX NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    da que ela encontre sua fora na delegao que o legislador teria consentido ao juiz33. O prprio costume, embora no se lhe negue a existncia, s ser aceito por intermdio de sua consagrao jurisprudencial ou em virtude de uma permisso legal, o que conduzir necessariamente recusa do costume contra legem.

    A essas construes, os juristas mais sensveis s realidades respondem com toda facilidade mostrando que a vida social mais rica do que essas pirmides bem organizadas. No apenas no se conhece nenhum exemplo histrico de contrato social, mas parece totalmente impossvel encontrar um, pois cumpriria que existissem regras para determinar as leis do contrato. Mostra-se impossvel histrica e logicamente remontar a uma origem absoluta da vida poltica. muito duvidoso que os cidados, quando ratificam uma mudana constitucional, queiram realmente de modo muito consciente dar seu assentimento a fenmenos histricos dos quais eles foram mais os objetos do que os sujeitos ativos, a maioria deles pelo menos. E ainda mais desarrazoado pretender que os textos regulamentares preparados pelos tcnicos que trabalham nos gabinetes dos ministrios sejam uma expresso da vontade dos cidados. O desvio necessrio para estabelecer esse vnculo tal que ele manifesta, ao contrrio, a grande autonomia das fontes regulamentares.

    fcil mostrar que no se pode pretender que o juiz tire suas solues da lei quando ele l essa lei de modo muito diferente conforme as circunstncias, ou ento quando a lei lhe cria o dever de estatuir fora de qualquer disposio prevista por ela34, abeberando-se, como j o dizia Portalis35,

    33. Dupcyroux, op. cit., "Sur la thorie de la rception implicite", cf. Wa- line, "Le pouvoir normatif de la jurisprudence", Mlanges Scelle, t. II, p. 613. Para uma crtica detalhada dessas teses, cf. S. Belaid, Essai sur le pouvoir cratif du juge, Paris, 1974, pp. 22 ss.

    34. Art. 4 C. Civil.35. Portalis, "Discours prliminaire", in Locr, La lgislation civile com

    merciale et criminelle de la France, 1.1, pp. 401 ss., 480 ss.

  • INTRODUO XXI

    na experincia e buscando o que justo. Cumpre mesmo admitir que o juiz dispe em seu nvel de um poder prprio quando dirime uma questo no s de encontro ao texto da lei, o que autorizado em certas legislaes, mas ainda quando ele no se atm a seus prprios precedentes ou quando julga uma questo que no lhe submetida36. Quanto aos costumes, a lei se refere a eles expressamente, e certo que existem costumes que so contrrios a ela. o caso do anatocismo vedado pelo artigo 1.154 do Cdigo Civil e, entretanto, universalmente praticado sobre as contas correntes, assim tambm o caso da presuno de solidariedade contra comerciantes, que se ope nitidamente ao artigo 1.202 do Cdigo Civil e que , porm, praticada e admitida pela jurisprudncia. As leis no praticadas e ab-rogadas so inmeras, apesar das hesitaes da Corte de Cassao em admitir esse fenmeno, pelo menos em questo de lei penal37. Fora do direito francs, o costume recebido como uma fonte verdadeira, por exemplo, no "Common law" ou em direito cannico. Afirma-se, ento, a primazia sobre a lei dos fenmenos sociais que produzem espontaneamente o direito. Dever-se-ia privilegiar as prticas efetivas, livrar-se das regras que, alis, so oriundas, no dizer de alguns autores, de um jogo de foras, e procurar o direito tal como , ou seja, como um fato, um conjunto de condutas sociais que h motivos para levar em considerao.

    Portanto, livrar-nos-emos dos textos para dar preferncia a um sentimento espontneo da justia muito mais de acordo com a realidade. O juiz se tornar criador, o direito no ser uma busca delicada, realizada com a ajuda da inteligncia, ser o produto de uma intuio38. Salientar-se- a revolta dos fatos contra o cdigo. O direito dever ser posto de acordo com o estado da sociedade. As leis devem alinhar-se s prticas, o fato deve penetrar na lei. Esta no

    36. S. Belaid, op. cit., cod. loc.; Carbonnier, op. cit., p. 165.37. Marty e Raynaud, op. cit., cod. loc.; Carbonnier, op. cit., pp. 146-7.38. A escola do direito livre.

  • XXII NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    deve impor diretrizes, no deve procurar impor valores que no so os da sociedade; deve, ao contrrio, modelar-se pelo que se faz, pelo costume39. A fonte de sua legitimidade consiste precisamente no fato de ela ser o reflexo da sociedade; quando esta se modifica, a lei deve modificar-se para traduzir o novo estado das prticas sociais ou a nova relao de foras.

    Mas tal concepo da lei tambm redunda em numerosos impasses. Contrariamente ao que se poderia imaginar, ela est longe de se livrar do legalismo, pois, embora as leis sejam em largussima medida reflexo das prticas sociais, novamente lhes conferido um papel quase exclusivo, por certo diferente do que ele numa concepo legalista, pelo fato de a vontade do legislador j no ser sua fonte, mas no obstante privilegiado. Uma vez que a lei foi posta de acordo com os costumes, torna-se por isso a expresso destes e encontra a uma legitimidade nova. Ela pode, em razo de seu carter obrigatrio, dar azo a uma cincia que constata o fato da coero legal4".

    Dedicando-se a uma pesquisa sobre os fundamentos obscuros da lei e tornando-os a causa nica desta, a pesquisa sociolgica, longe de devolver lei o seu lugar, arru- na-lhe definitivamente a autoridade. Crendo justific-la pela cincia, ela a reduz a um fenmeno de fora econmica ou poltica; por isso mesmo, suprime definitivamente qualquer razo que podamos ter de obedecer-lhe.

    Se a lei apenas a traduo de dado estado social, do que se faz em determinado pas, no h razo alguma para obedecer-lhe, prefervel revoltar-se para procurar mudar a lei em seu benefcio. Se se quiser reafirmar a legitimidade da lei, cumprir invocar novamente a vontade do legislador ou ento a dos membros da sociedade que se expressa pe-

    39. Savigny e o historicismo e depois o sociologismo; Kantorowics, Rechtunssenschaft und Soziologie, Karlsruhe, 1962; Gurvitch, L'ide du droit social, Paris, 1932; Duguit, Le droit social, le droit individuel et la transformation de l'tat, Paris, 1901.

    40. Durkheim, Les rgles de la mthode sociologique, 20-' d., Paris, 1981, p. II.

  • INTRODUO XXIII

    las prticas analisadas. No entanto, h toda razo de duvidar que tal recurso aos meios do velho positivismo volunta- rista seja capaz de salvar a lei. Seus mitos denunciados anteriormente pela prpria sociologia seriam, ao contrrio, capazes, pela combinao de sua ingenuidade e de sua brutalidade, de incentivar a desconfiana para com a lei.

    Parece que esse caminho nos leva a um impasse, ficamos presos na armadilha de um crculo que vai da lei aos fatos e vice-versa. O embarao dos juristas diante dessa questo suscita a reflexo dos filsofos. Mas no certo que as principais doutrinas que, na filosofia do direito contemporneo, examinaram essas questes nos permitam sair de nossa perplexidade.

    No difcil perceber que elas se dividem, com pouca diferena, segundo as mesmas tendncias que as do pensamento jurdico. Um primeiro grupo de autores parece afer- rar-se ao princpio da soberania extrado da vontade do legislador ou dos cidados. Enfatizaro a coerncia de um sistema em que todos os elementos se vinculam a uma vontade primeira. Essa coerncia no interior do campo da coero exercida pelo legislador ser assegurada por uma rigorosa racionalidade como em Kelsen41. Poder tambm provir de um sistema de delegao de poder como em Hart42, ou encontrar sua origem numa coerncia teleolgica de carter moral como em Fuller43.

    Alguns autores seguiram as pegadas da sociologia. Na esteira das crticas emitidas com toda razo contra o positivismo legalista, vemos formar-se uma escola que pretende dispensar os textos. Dentre esses autores, cumpre citar Erhlich ou Kantorowicz. O realismo anglo-saxo chega a posies bem vizinhas; o direito para Holmes44 no passa da arte de prever o que o juiz decidir, enquanto Jrme

    41. Kelsen, Reine Rechtlehre, Viena, I960, 2 ? ed.42. Hart, The Concept o f Law, Londres, 1961.43. Fuller, The Morality o f Law, Yale, 1964.44. Holmes, The Path o f the Law, Boston, 1881.

  • XXIV NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    Frank45 denuncia, na esteira da psicanlise, o infantilismo do apego s leis s quais cumpre preferir as decises particulares. De outra maneira, os filsofos do direito que se vinculam ao utilitarismo pretendem desvencilhar-se do velho positivismo legalista encurralado em seus princpios e em seus textos para substitu-lo por polticas eficazes das quais a lei se tornaria o instrumento46.

    Nisso poderia haver motivos para desencorajar a reflexo; encontraremos, ao contrrio, uma razo de aprofund-la. Se parecemos estar encerrados dentro de um crculo, talvez no seja temerrio formular-nos a questo do motivo dessa oscilao do pensamento entre dois poios que so to opostos e simultaneamente incompletos. No nos formulamos essa questo para nos orientar para a busca de uma posio falsamente sincrtica ou para tombar no ceticismo. Entretanto, podemos conjcturar, entre posies to pouco satisfatrias, a existncia de um elemento em comum.

    Sc confirmada, tal suposio seria muito fecunda; permitiria pr em evidncia uma recusa comum que poderia explicar por que nenhuma dessas doutrinas consegue dar espao s realidades descritas pela outra. Permitir tambm descobrir a recusa comum de uma parte da realidade, que explicaria a impotncia de ambas para criticar de modo totalmente vitorioso a doutrina adversa.

    O acordo final das duas correntes de pensamento, sobre a necessidade de recorrer lei, pode pr-nos na via desse elemento em comum. No positivismo legalista aparece claramente que encontramos o direito na lei. A prpria lei pensada como uma construo operada por intermdio do poder poltico ao qual os sujeitos primeiro entregaram parte do seu poder para em seguida receberem de volta um direito tirado da lei. H na origem uma vontade dos sujeitos que se torna em seguida a vontade do Prncipe. Ora, apesar das aparncias, parece possvel afirmar que as

    45. Frank, Law and the Modern Mind, Nova York, 1963.46. El Shakankiri, La philosophie juridique de Jeremi/ Bentham, Paris, 1970.

  • INTRODUO XXV

    doutrinas sociolgicas compartilham esse ponto inicial. Claro, no se trata aqui da vontade do indivduo isolado, pelo menos na maioria das doutrinas sociolgicas, mas trata-se da vontade do grupo que, como tal, faz a lei por intermdio de um legislador que no passa de seu delegado47. por isso que tambm a lei se mostra aqui a expresso de uma vontade que se impe na origem. Essa a razo pela qual, depois de ter criticado a lei que j no est de acordo com essa vontade, volta-se exaltao do legalismo quando ela est de novo de acordo com a vontade do grupo48. Decerto essa vontade no necessariamente pessoal e im- pe-se unicamente como o fato emprico de uma fora perante a qual o legislador deve curvar-se. De qualquer modo, a origem da lei de novo pensada como o que sobe das profundezas originais, e a lei, embora j no defina aqui to dos os direitos, torna-se novamente, cm seguida, sua fonte nica. Por trs de ambas as teses confrontadas, encontramos a vontade, pelo fato de ela se opor a uma ordem das coisas independente dela, o que significa que essas duas te ses so na verdade positivismos jurdicos, pelo fato de que, segundo elas, o direito e a lei devem ser observados como fatos que existem, fora de uma referncia ordem do m undo. So tambm positivismos filosficos para os quais a realidade no tem ordem nem, consequentemente, capacidade para dar indicaes sobre a lei.

    Portanto, somos levados a emitir a hiptese segundo a qual o positivismo legalista e o positivismo sociolgico no conseguem dar conta da totalidade do fenmeno legal, de suas caractersticas prprias bem como de seus vnculos com as outras partes do direito em razo da recusa comum de uma parte da realidade. Ambos comungam na rejeio de uma realidade suscetvel de fornecer indicaes sobre as leis

    47. Inversamente, a ideia da vontade do grupo est presente num positivista como Carr de Malberg, apesar de sua oposio ao contrato social e a despeito de seu formalismo. Cf. Carr de Malberg, op. cit., eod. loc.

    48. Carbonnier, op. cit., pp. 16-7.

  • XXVI NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    necessrias ao bem da cidade e capaz de assegurar lei um lugar especfico com relao aos outros fenmenos do direito e da tica.

    As questes tcnicas que formulamos adquirem sua verdadeira dimenso. Por trs delas escondem-se posicionamentos filosficos. Trata-se nem mais nem menos das relaes que a lei mantm, com a totalidade da realidade e, portanto, da natureza dessa realidade. Essa vastssima questo se desdobra de imediato: temos de nos interrogar primeiro sobre o suposto ponto inicial comum das doutrinas que podemos chamar de modernas para nos perguntar se elas nascem mesmo dos posicionamentos ontolgicos que desconfiamos ser a origem esquecida delas. O aclaramento dessa origem exigir, pois, remontar, mais alm da oposio delas, a uma raiz filosfica presumidamente comum. Se a hiptese de uma origem comum se confirmar, ter como resultado mostrar com relao a qual outro pensamento h ruptura.

    Descobrindo isso contra o que a lei moderna foi concebida, mostraremos por contraste as qualidades de que a realidade deveria se revestir para encontrar-se na fonte da lei sem a reduzir a um ato da vontade ou a um fato. Os dois aspectos de nossa hiptese podem, ento, confirmar-se mutuamente. As rupturas fundamentais, que talvez constituam o patrimnio comum das doutrinas contemporneas, aparecero por contraste com outro tipo de pensamento capaz de esclarecer diferentemente e, talvez, de fornecer princpios de soluo s dificuldades apresentadas pela questo da lei.

    A via que se abre obriga a remontar aos princpios e s origens da noo moderna de lei.

    Descobrir esse ponto de ruptura fundador do pensamento moderno da lei, ponto ligado aos princpios ontolgicos do pensamento moderno, fora-nos a remontar para alm daqueles que so considerados os mestres da modernidade e que, sejam quais forem as diferenas extremamente profundas de seu pensamento, tm em comum

  • INTRODUO XXVII

    certa recusa da ordem objetiva das coisas que, de uma forma ou de outra, os leva a pensar a lei como um efeito da vontade.

    Temos, pois, de ir alm de Hegel, para quem a lei se insere no desenvolvimento de uma histria do esprito imanente49; o que o impele a partir de uma separao abstrata50 do esprito impondo-se realidade para absorv-la51. Por essa razo, a lei concebida como um dos momentos pelo qual o esprito assimila a si o mundo, impondo-lhe sua ordem que a ordem real. A lei ser, portanto, caracterizada pela universalidade que nivela as diferenas, tornando-se a fonte nica do direito52. Por isso ser desejvel substituir os costumes e os direitos tradicionais por um cdigo que no ser uma mera coleo de leis dspares como o direito romano, mas um sistema racional verdadeiro53. A universalidade e a identificao entre lei e direito que se segue o ponto final ao qual Hegel chega na terceira parte de seus Princpios dc fdosofia do direito.

    Tampouco possvel deter-se em Kant, que considera que a lei obra da vontade de um legislador que aplica uma razo a priori54, seja ela obra de um legislador supremo no caso da lei moral, seja ela o produto da vontade do legislador civil no caso da lei jurdica55. Portanto, ele chega com toda lgica a pensar a lei como a fonte do direito, com a qual ela se confunde, formando um sistema de racionalidade jurdica que se impe pela coero56, como seu discpulo nessa rea, Kelsen, compreendeu muito bem.

    49. F. Hegel, Principes de la philosophie du droit, trad. fr. Derath, Paris, 1982, 4.

    50. F. Hegel, Leons sur la philosophie dc l histoire, trad. fr. Gibelin, Paris, 1945, p. 289, op. cit., 5.

    51. Op. cit., 4; igualmente, La raison dans l'histoire, trad. fr. K. Papaioan- nou, Paris, 1965, p. 296.

    52. Ibid., 210-1.53. Ibid.54. E. Hant, Doctrine du droit, trad. fr. Philonenko, Paris, 1971, p. 100.55. Ibid., pp. 101-2.56. Ibid., pp. 103-5.

  • XXVIII NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    Hobbes no tem condies de nos esclarecer muito mais, embora parea ser um dos que expressam com mais clareza as premissas a um s tempo ontolgicas e jurdicas da concepo moderna da lei. A sociedade o produto da vontade artstica dos indivduos que delegam um poder subjetivo ao soberano. Este legisla mandando nos sditos: "Law is the command of him or them that have the sove- reign power."57 Com um perfeito rigor, Hobbes tira todas as concluses desse princpio; a interpretao no dever se impor em razo, nem ser obra da doutrina, ela ser tambm uma expresso da vontade do legislador58.

    Mas Hobbes se reveste para ns de uma particular importncia, pois est muito consciente de se fundamentar em princpios ontolgicos particulares que o opem a toda tradio anterior, ele se louva muito abertamente no nominalismo54 e nos d, com isso, uma preciosssima indicao sobre as fontes do pensamento moderno da lei. No m omento em que ela se expressa pela primeira vez fora da "Escola", toma o cuidado de referir-se tradio do nominalismo medievo. Fazendo assim, fornece-nos uma das chaves do pensamento moderno, que nos incitar a explorar o pensamento nominalista em seu nascimento para tentar compreender em que ele parece ser um dos fundamentos necessrios do pensamento moderno da lei.

    Isso no esgota o que Hobbes nos ensina: este elabora conscientemente sua doutrina contra uma outra tradio. Constri suas definies da lei e do direito de modo polmico contra a tradio dos juristas impregnados de cultura aristotlica, cujo eminente representante SirEdward Coke60. Dessa maneira, Hobbes pe o dedo no ponto de ruptura

    57. 1 lobbes, A Dialogue between a Philosopher and a Student o f the Common Law o f England, Paris, 1966, p. 91. [A lei o mando daquele ou daqueles que detm o poder soberano. (N. da T.)]

    58. De eive, XIV, 13, Dialogue, p. 74.59. Por exemplo: Leviat, cap. 1, contm uma crtica nominalista da

    species.60. Dialogue, op. cit., p. 77.

  • INTRODUO XXIX

    que procurvamos, indica-nos simultaneamente as razes da lei moderna e a rejeio do aristotelismo que lhe presidiu o nascimento.

    Embora a tradio aristotlica esteja representada no Dilogo de Hobbes pelo jurista Sir Edward Coke, isso no significa que apenas os juristas, na cultura que precede o advento do pensamento moderno, estejam impregnados do ensinamento do Estagirita. Sabe-se, ao contrrio, que esse pensamento est muito presente nos filsofos e nos telogos dos quais os juristas o recebem; ora, o mais conhecido dos telogos aristotclicos Santo Toms. Ocorre igualmente que o nominalismo, antes de atingir o pensamento dos juristas, formou-se em oposio ao pensamento de Santo Toms. Por conseguinte, fica evidente que nossa pesquisa deve determinar os pontos sobre os quais esses dois pensamentos se enfrentam para dar nascimento ao pensamento moderno. Teremos de nos perguntar se no no decorrer dessa ruptura que se elaboraram, cm oposio ao pensamento de Santo Toms, novos fundamentos ontolgicos capazes de destruir e de substituir os que Santo Toms elaborara em sua relao com Aristteles. Evidentemente, tambm deveremos nos perguntar se, j nessa poca de ruptura ontolgica, a concepo que Santo Toms tinha da lei vinculada a essas premissas tambm no era questionada e j substituda por teorias da lei que deixam prever o advento das concepes modernas. Isto nos levaria no s a esclarecer os fundamentos da concepo m oderna da lei, mas, consequentemente, a mostrar o que foi perdido por ocasio do advento do nominalismo. O que talvez nos possibilite descobrir uma concepo da lei mais prxima da verdade e da experincia.

    A bem dizer, no so unicamente as indicaes de Hobbes que nos incentivam a buscar no perodo que se estende entre o advento de Santo Toms e o incio do sculo XVII os elementos constitutivos de uma tradio capaz de gerar a lei moderna. Certo nmero de trabalhos mostrou a importncia, para o pensamento moderno, da ruptura no-

  • XXX NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    minalista, seja em ontologia61, seja em histria das cincias62, seja em teologia63. Na rea que nos interessa mais diretamente, no s os historiadores do direito puseram em evidncia o advento de uma nova maneira de pensar e de tratar o direito no final da Idade Mdia e no incio da poca moderna que no deixa de ter ligao com o nominalismo64, mas tambm os historiadores da filosofia do direito acentuaram com frequncia a importncia do advento do voluntarismo escotista e ockhamiano65.

    Michel Villey, em particular, mostrou de modo convincente que a concepo do direito como poder do indivduo marca uma virada decisiva na histria do pensamento jurdico, a qual se deve a Guilherme de Ockham66. Isso nos incita a pensar que, se h mesmo advento do direito como poder, deve seguir-se de algum modo o advento da lei como mando separado da ordem das coisas. A no ser que se possa estimar que a concepo da lei como mando precedeu a da lei como poder e forneceu-lhe suas premissas. Pois, se a lei o que confere o direito ao indivduo, seu advento deve, logicamente, ser anterior ao do direito-poder. Pode ser que a essa anterioridade lgica corresponda uma anterioridade histrica. Por essa razo concederemos uma

    61. Largeault, Enqute sur Ir nominalisme, Louvain Paris, 1971; G. Leff, William o f Ockham, lhe Metamorphosis o f M edievaI Discourse, Manchester, 1975.

    62. Du hem, Le systme du monde, laris, 1913.63. Gilson, Histoire de la philosophie mdivale, Paris, 1976, t. Il, p. 639;

    Urs von Balthasar, La gloire et la croix, t. IV, Le domaine de la mtaphysique, trad. fr. Givord, Paris, 1982, p. 92.

    64. Welzel, Diritto naturale e giustizia materiale, trad. it. Di Stefano, Milo, 1965, pp. 99 s., 121 s.; G. de Lagarde, La naissance de l'esprit lac au Moyen ge, t. IV, Louvain-Paris, 1963, t. V, ibid., 1963; Tierney, "Ockhan, the Conciliar Theory and the Canonists", Journal o f the History o fldeas, 15, 1954, p. 40.

    65. Sten Gagner, Studien zur Ideengeschichte der Gezetzgebung, Gotemburgo, 1960; Oakley, Medieval Thories o f Natural Law, Natural Law Forum - Notre Dame, Indiana, 1961; Tuck, Natural Right Thories, Cambridge, 1979, p. 21.

    66. Villey, "La gense du droit subjectif chez Guillaume d'Occam", in Seize essais de philosophie du droit, Paris, 1969, p. 140.

  • INTRODUO XXXI

    importncia particular explorao do pensamento de Es- coto, que precede imediatamente o de Ockham.

    Uma vez apontado o que foi rompido pelo nominalismo, restar a tarefa de descobrir as vias pelas quais esse abalo chegou at o pensamento moderno. No totalmente evidente que especulaes mais ou menos abstrusas realizadas no latim brbaro das escolas se tenham transmitido a ponto de contaminar o conjunto do pensamento moderno que no conseguiria livrar-se delas. Para poder, sem muito paradoxo, afirmar essa tese, cumpre estabelecer a transmisso do ockhamismo e do nominalismo no seio dc sua prpria tradio, e cumpre ainda perguntar qual pode ser o pensador que transmitiu as premissas nominalistas no s a Hobbes, mas tambm aos fundadores alemes da modernidade. A esse respeito, comea-se a salientar o papel capital de Suarez, que formou tanto os mbitos de pensamento da metafsica clssica at Kant quanto os da escola do direito natural moderno67. Por isso, com ele que concluiremos nossa pesquisa para nos interrogar sobre o seu papel na transmisso aos modernos dos princpios nominalistas e das concepes da lei a eles vinculadas.

    Percorrendo essa histria, nossa nica ambio no lembrar os vnculos entre este ou aquele tipo de pensamento; nossa esperana conseguir depreender os princpios que permitiam que a lei fosse pensada no mbito dc uma ordem capaz de ligar a lei realidade e de pr a lei "em seu lugar". Pretendemos assim, por contraste, conseguir circunscrever o elemento fundamental que desapareceu nos pensamentos modernos e que forma para eles como que um pecado original compartilhado por todos os descendentes do nominalismo.

    67. Mesnard, "Comment Leibniz se trouve plac dans le sillage de Suarez", Arch. Phil., 1947 (52), p. 7; Courtine, "Le projet suarzien de la mtaphysique", Arch. P hil, 1979 (42), p. 235. H em Grotius e em Hobbbes preceitos que parecem provir diretamente de Suarez.

  • PRIMEIRA PARTE

    Santo Toms ou a lei anloga

  • Captulo I

    A admirao das coisas

    Para pensar que as leis so relativas s coisas, cumpre admitir que podemos conhecer as coisas e que estas esto mais alm dos textos. C) conhecimento das coisas, como diz Aristteles, comea pelo espanto diante delas. Ora, no incio e durante boa parte da Idade Mdia, esse espanto est longe de ter sido adquirido. A lio do primeiro mestre do pensamento medieval, Santo Agostinho, esperar a cincia mais de uma iluminao do que da interrogao provocada pelo espanto. Por isso, o pensamento teve de realizar um longo caminho em cujo curso apareceu progressivamente a admirao perante as coisas que tornava possvel a contemplao de Santo Toms.

    O pensamento de Santo Toms se edifica sobre o fundamento j muito rico da cultura medieval. Ele antes de tudo um telogo que se abebera nas Escrituras e nas meditaes dos principais Padres da Igreja que ele conhece muito profundamente. E tambm o herdeiro de uma cultura universitria que se desenvolveu com teologia escolstica desde as primeiras escolas monsticas e episcopais at as grandes universidades, sob a forma de snteses, algumas das quais j terminadas quando ele inicia sua carreira universitria. Mas a cultura de Santo Toms est longe de ser puramente religiosa; alm de bom nmero de autores profanos que formam o fundo da cultura j no sculo XII, como Cce-

  • 4 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    ro1 ou Ovdio, que tm papis importantes na reflexo sobre a tica, , evidentemente, sobretudo Aristteles2, enfim conhecido por completo depois de diversas peripcias, que devemos mencionar aqui. Cumpre acrescentar o conhecimento dos principais comentaristas gregos do Estagirita e de algumas obras platnicas ento conhecidas3. A cultura profana de que se beneficia Santo Toms tampouco se limita filosofia, ele contemporneo do florescimento do direito erudito provocado pela redescoberta do direito romano do qual tem certo conhecimento4.

    Esse patrimnio que Santo Toms vai explorar se constituiu segundo dois movimentos bem diferentes. Aps a queda de Roma, o Ocidente j no conhece cultura profana, dominado pelo pensamento religioso dos Padres e pelo pensamento do maior deles, Santo Agostinho5. Essa situao tem como resultado dirigir as mentes para as realidades separadas e para os textos em que se expressa a palavra divina; a cultura que desabrocha ento uma cultura clerical e gramatical'1. Trata-se sobretudo de comentar os textos da Escritura7. Somente no decorrer da segunda metade do sculo XII que, por influncias diversas, as mentes se abrem cada vez mais s coisas para contempl-las como as maravilhas da criao. Isto conduzir as inteligncias, no, claro, a abandonar os textos da revelao ou os do pensamento, mas a estud-los e a compreend-los como luzes que tm valor com relao s coisas que eles possibilitam conhecer.

    1. Vanstecnkiste, Cicerone nell'opera di sau Tournait, Angelicum, 1959, pp. 343-82; Verbecke, " A l i x origines de la notion de loi naturelle", in La filosofia dlia iinturn m i medievo, Milo, '1966, p. 167; Par, Brunet, Tremblay, La renaissance lin XII1sieele, Paris, Otawa, '1933, pp. 147 ss.

    2. A. Thiry, "Saint Thomas et la morale d'Aristote", in Aristote et saint Thomas, Louvain, 1957, p. 229.

    3. Cilson, op. cit., pp. 338 ss.; Chenu, La thologie au XII1' sicle, Paris, 1957, p. 108; Chenu, Introduction l'tude de saint Thomas, Paris, 1950, pp. 26-33.

    4. Aubert, Le droit romain dans Vnvre de saint Thomas, Paris, 1955.5. Chenu, Introduction, op. cit., p. 44; Chenu, La thologie, op. cit., p. 115.6. Chenu, La thologie..., op. cit., pp. 90, 329.7. Chenu, La thologie..., op. cit., p. 329.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 5Esse movimento autoriza a situar o pensamento de

    Santo Toms como o resultado e o triunfo da redescoberta das coisas iniciada no sculo XII, o que permitir compreender por que Santo Toms no poderia conceber as leis fora da sua relao com as coisas. Isso constituir a trama do presente captulo, que mostrar, no contexto que cerca o nascimento da reflexo tomasiana, uma tendncia para se afastar das coisas, depois outra que impele a voltar a elas.

    A tendncia ao esquecimento das coisas

    O aspecto essencialmente religioso da cultura do sculo XII e das pocas que o precedem imediatamente , incontestavelmente, um dos fatores que explicam a presena, no pensamento medieval em suas primeiras manifestaes, de certo desprezo pelas realidades temporais em proveito das realidades religiosas das quais elas so uma imagem. Nessa tica, prefervel tentar contemplar cada vez mais diretamente as coisas do cu afastando-se, por separao e purificao, das realidades terrenas. A inteligncia no deve fazer esforo para penetrar a ordem da natureza, que lhe fica, alis, bastante obscura. Ela s a compreender verdadeiramente graas a uma palavra divina que a vir revelar.

    Este , de fato, o primeiro elemento fundamental dos primrdios da cultura medieval. O lgos grego parece ter sido substitudo pela Palavra divina que se expressa do Sinai at o final do Novo Testamento. J em sua origem, essa Palavra concebida como um elemento exterior e transcendente, que desce ao mundo mas lhe permanece estranho e parece opor-se a ele. Os hebreus que a recebem, como mais tarde alguns cristos, veem na afirmao da transcendncia divina uma oposio ao mundo, pelo que ela se diferenciaria de modo brutal de todos os vestgios de imanentismo presentes no pensamento grego. Nessa perspectiva, toda cincia est contida na revelao que vem contradizer os dados sensveis para revelar o verdadeiro sentido dos fen

  • 6 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    menos. Portanto, fica no s intil interessar-se pelas coisas deste mundo, mas tambm estas, que so criaturas finitas, so enganadoras. Elas no podem indicar-nos o que certo, podem somente desencaminhar nossos sentidos e nosso esprito desviando-o de seu fim. Segue-se que a revelao um mandamento que, em razo de sua origem transcendente, separado do mundo e tem o objetivo de separar dele aquele que lhe obedece a fim de faz-lo viver no mais segundo a natureza, mas segundo a vontade divina.

    A transcendncia do mandamento, garantia de sua origem divina, ficar ainda mais marcante porque estar em contradio com o estado de fato do mundo existente. A marca prpria da transcendncia, nessa perspectiva, justamente a capacidade de ficar livre relativamente a toda ordem que no seja a expresso adequada da vontade divina. Ora, por hiptese, nenhuma ordem humana nem natural pode sei perfeitamente conforme a essa vontade divina. Esta , portanto, capaz de ditar seus mandamentos como quiser. Ela no deve ser prisioneira da natureza das coisas ou das cidades. Estas no desempenham nenhum papel na salvao, so totalmente terrenas, so um produto da vontade dos homens e no da vontade de Deus, pelo menos na origem. So convencionais e foram apenas toleradas por Deus depois da queda original, que as tornou em certa m edida necessrias para remediar as consequncias mais desastrosas dessa queda, em particular o desenvolvimento do egosmo que se seguiu. Finalmente, elas so um mal necessrio que h que se tolerar mas que em si no tem valor.

    Esses temas j esto presentes no Antigo Testamento. Nele, a vontade de Jeov costuma ser apresentada como um mandamento que se impe pela fora da vontade que o enuncia. Jeov um Deus poderoso cuja palavra eficaz realiza o que proclama, ao contrrio dos deuses pagos que devem contcnjtar-se com o estado de fato: "Quoniam ipse dixit et facta snt, ipse mandavit et creata siint,"s Esse Deus

    8. Salmo 33, L>: "Pois ele disse, e as coisas foram feitas; ele ordenou, e elas foram criadas."

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 7

    pode subverter os dados da natureza, pode, por uma deciso que s depende dele, exigir a obedincia, mesmo que esta constitua, aos olhos da razo e do corao humano, um escndalo. Ate ao contrrio, suas exigncias, julgadas to duras, sero a um s tempo a prova de sua onipotncia e da f do crente, que permanecer fiel apesar do que lhe parece ser insuportvel. Nada ilustra melhor esse absoluto da vontade divina do que o episdio do sacrifcio de Abrao, cujo alcance Kierkegaard salientou com tanta fora.

    A onipotncia divina se manifesta tambm pela forma como so revelados os mandamentos. em meio a fenmenos csmicos que evocam a potncia que Moiss recebe do alto as tbuas da lei, enquanto o povo ficou acampado embaixo na plancie. Recebe esses mandamentos de um Deus que lhe permanece secreto, e a revelao se faz som ente por esses mandamentos transcendentes9. Esses mandamentos no s sero utilizados para destruir os dolos, mas tambm tm o efeito de separar o povo judeu dos outros povos, de afast-lo das prticas habituais10. dessas tbuas da lei que o povo recebe sua verdadeira Constituio. At ento ele no era um verdadeiro povo, no tinha lei prpria. Portanto, o povo reunido e constitudo num conjunto poltico, no por uma evoluo natural, mas pela prpria vontade divina11. Enquanto Ado e Eva foram tentados e pecaram querendo adquirir o conhecimento do bem e do mal, aqui esse conhecimento lhes comunicado pela revelao do contedo da vontade divina12. Assim, parece im possvel e at blasfematrio procurar conhecer com a ajuda da razo o que conforme lei, cumpre esperar esse conhecimento de um decreto divino, assim como preciso receber a lei sob a forma de tbuas escri tas e no procur-la na observao da natureza. O tema da exaltao da lei dada

    9. Goldstain, Les vacurs de la loi, Paris, 1980, pp. 47, 86.10. Goldstain, op. cit., pp. 51, 80.11. Goldstain, op. cit., p. 82.12. Goldstain, op. cit., p. 74: "Quando Deus se revela, ele prescreve",

    p. 61.

  • 8 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    por Deus e oposta s leis dos homens se tornar um dos componentes importantes do judasmo at a vinda de Cristo e depois dela13.

    Sejam quais forem as diferenas entre a antiga e a nova aliana, certos aspectos do Novo Testamento podem inserir-se na continuidade desse tipo de pensamento e efetivamente foram compreendidos assim pelos doutores cristos. Cristo apresenta-se como a perfeio da Lei, vindo instaurar uma Lei nova; isto quer dizer que seu ensinamento, por sua novidade, manifesta uma mudana da vontade divina que impe novos mandamentos. "Vossos pais vos ensinaram... e eu, eu vos digo."A Lei nova torna caduca a antiga, claro, mas no o faz mudando as caractersticas da Lei; ela se torna uma Lei que, por sua vez, deve ser obedecida com tantos escrpulos quanto a Lei antiga e que pode fornecer ensinamentos morais precisos como a proibio do divrcio. No Evangelho, vemos at os apstolos esperarem do Senhor lies polticas: deve-se pagar ou no o imposto? "Quando vais restaurar o reino de lsrael?"Esta ltima pergunta mostra bem que se esperava de uma nova revelao uma restaurao poltica.

    J nos primeiros momentos de sua constituio, certas correntes imprimiro essa marca no pensamento dos cristos. Sabe-se que foi preciso uma deciso solene do conclio de Jerusalm para permitir aos gentios no submeter-se aos ritos da Lei antiga. A seita hertica ebionita, mesmo se afirmando crist, continuou a observar as prticas da Lei antiga como o descanso do Sab e as festas da liturgia judaica.

    Desde a origem do pensamento patrstico latino no sculo II, Tertuliano um ardoroso representante dessas tendncias. Esse antigo jurista que se tornou telogo desenvolve um pensamento que se pretende em total ruptura com a sabedoria do mundo. A f ensina verdades que so loucuras aos olhos do mundo, e o carter aparentemente

    13. Goldstain, op. cit., p. 258; Neher, Histoire biblique du peuple d'Isral, Paris, 1962, p. 665.

  • SANTO TOMS OU A I.EI ANLOGA 9absurdo delas um critrio da sua verdade14. Logo, cumprir recusar toda aliana entre a f e a filosofia, acusada de estar na origem do gnosticismo15. No plano tico-poltico, o pensamento de Tertuliano igualmente abrupto. O cristo algum que vive sob uma lei especial totalmente separada da lei do mundo16. As leis pags so meras convenes humanas que submetem os homens a seu jugo em razo do pecado; o cristo, por sua vez, obedece outra lei. A vida crist , alis, inteiramente compreendida como uma vida sob uma lei, pois a revelao a histria de um conhecimento cada vez mais preciso da vontade divina expressa pela lei17. A f se manifesta precisamente por essa obedincia completa lei que Cristo veio trazer18. Da resulta um positivismo sacro que arruina as instituies humanas, mas engloba toda a vida dos cristos num legalismo rgido. Um dos pontos importantes da vida crist , por exemplo, o fato de as mulheres usarem um vu na igreja, segundo a palavra de So Paulo, sendo esse pensamento posto no mesmo plano dos mais importantes dogmas19. No entanto, Tertuliano no estende seu fundamentalismo no sentido do desprezo pelas realidades polticas. Embora reivindique a liberdade de todos para professar sua prpria religio20, afirma com a mesma fora sua lealdade poltica para com o imperador, mesmo sustentando que uma lei injusta nula21.

    Essas correntes podiam desenvolver-se com mais facilidade ainda na Igreja, pois, sob certos aspectos, eram refor-

    14. Gilson, op. cit., t. I, p. '>7.15. Gilson, op. cit., end. Inc.16. A f uma regra, Regida fidei, Gilson, op. cit., cod. ioc.17. Cf. Tertuliano, Advcrsus Judacos, II, 2, 4.18. Ibid., 6 ,1 0 e l l .19. Tertuliano, De virgitiibus velandis; o uso do vu se insere no desen

    volvimento da lei primordial. Cf. op. cit., V, 1.20. Gilson, op. cit., p. 100.21. Tertuliano, Apoiogeticum, 28, 29, PL, 1.1, col. 441 ss.; cf. os coment

    rios e os textos citados por Arquillire, Laugustinisme politique, Paris, 1955, pp. 100-7; "Legis injustae honor nullus", Tertuliano, ad nationes, I, 6, PL, 1.1, col. 566.

  • 10 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    adas pelas ideias filosficas do final da Antiguidade. N essa poca, Plato torna a usufruir grande crdito sob a forma mais extremista do neoplatonismo bem representado por Plotino. verdade que, em sua poca, Plato reagira contra a pretenso dos sofistas de recusar inteligncia a possibilidade de descobrir uma verdade. Plato, ao contrrio, demonstrara com muita fora a necessidade de a inteligncia se pr em busca da ordem objetiva que rege o universo. Afirmava muito vigorosamente que essa ordem no dependia nem um pouco de nossa mente. O conhecimento dessa ordem permitia descobrir verdades morais e construir uma cidade conforme verdade e ao bem. Mas, refutando os sofistas, Plato julgara necessrio afirmar a verdade e, portanto, a imutabilidade da ordem, recusando-lhe ser imanente natureza e ao devir. O bem no podia ser descoberto pela observao das realidades sensveis, cumpria remontar at contemplar a ideia de bem para poder ti rar dela a lei conveniente cidade22. Tratava-se, por certo, de uma lei verdadeira, mas que dependia de uma rea diferente daquela em que se move normalmente o homem poltico. Logo, ser necessrio recorrer ao filsofo que ter contemplado a ideia de bem 1. Issa contemplao ser adquirida por um processo de separao que permitir ao esprito alcanar, mediante a dialtica ascendente, o conhecimento das ideias24. Ele poder ento dar ao legislador as diretrizes necessrias para se conform ar ordem real. Portanto, a lei enquanto tal no tem valor se no estiver na dependncia de uma lei superior, cognoscvel unicamente pelo filsofo e por quem tem a responsabilidade do governo da cidade. Isso abre a possibilidade de uma crtica bastante profunda da lei positiva, que pode no deixar subsistir nadq de seu valor e de sua necessidade se ela no for o reflexo compartido da ideia de bem e de justo25. No se

    22. Plato, Repblica, VII, 519 C -520 C.23. Plato, Repblica, eod. Inc.24. Plato, Leis, 715 C, 716 C; Poltica, 292 d.25. Plato, Poltica, 203 a, 293 .

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 11

    segue somente a crtica da lei positiva em nome da lei natural pensada como uma lei superior, mas disso tambm resulta que a lei positiva, para ficar conforme ideia de bem e de justo, dever transpor para a cidade as caractersticas da ideia de que ela participa. O critrio de sua conformidade com a ideia ser a imutabilidade que a faz, decerto, escapar das crticas dos sofistas, j que com isso manifesta-se sua conformidade com a verdade do bem; no mudando, ela fica de acordo com a ideia imutvel e perde todo carter convencional2'1.

    No entanto, Plato forado a admitir a existncia da mudana; o rei-filsofo tambm poder modificar as leis segundo sua vontade27. Inicia-se assim uma dicotomia que reaparecer muito amide entre uma lei ideal imutvel e uma lei positiva modificvel ao sabor de quem possui a cincia da lei perfeita28.

    A adaptao da lei depender do legislador e no do juiz. A lei conduz ao bem e a uma funo de educao m oral, mas no intervm numa partilha dos bens existentes. A justia toma a forma da obedincia lei, pela qual aqueles que no podem contemplar o bem dele participam29.

    A concepo estica da lei e do mundo tambm est muito presente no pensamento cristo do fim da Antiguidade. O estoicismo nessa poca tornou-se sobretudo uma filosofia moral que se difundiu em particular entre certos juristas e com frequncia inspirar, pelo menos sob a forma vulgarizada que lhe deu Ccero, as reflexes ticas dos Padres311. Ademais, Ccero continuar sendo lido e conhecido nos sculos XII e XIII: Joo de Salisbury o cita frequentemente e seu latim mostra sua influncia, ele uma das fontes confessas de Santo Toms31.

    26. Plato, Leis, eod. loc.27. Plato, Poltica, 293 b, 294 b.28. Como lhe censura Aristteles, Poltica, 1287 a.29. Plato, Repblica, 590 c.30. Spanneut, Lc stoicisme cies Peres tie 1'glise, Paris, 1957.31. Vansteenkiste, op. cit.

  • 12 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    Sejam quais forem as transformaes pelas quais passaram as doutrinas mais tcnicas do estoicismo, no curso de uma evoluo que o fez redundar numa espcie de m oral do romano bem-educado, ele conserva desde sua origem a ideia de uma cidade universal comandada por uma lei racional para a qual tende o mundo32. Mesmo depois de ter deixado de lado o sensualismo empirista da teoria do conhecimento de seus primrdios, ele guarda a ideia de um mundo da razo bem estritamente separado do mundo dos "corpos"33, se bem que, sob outro ngulo, ele pretenda que as realidades so todas materiais e esto imbricadas em razo dessa materialidade. O pensamento estoico desenvolve, pois, uma crtica bastante prxima do cepticismo dos sofistas para mostrar que o direito em vigor no o direito ideal. Acima do direito concreto das cidades, h um direito universal conforme razo para o qual o sbio deve dirigir-se34. Esses temas vulgarizados, e, por certo, em boa parte separados de seu pano de fundo filosfico, penetraro na m entalidade de alguns juristas romanos. A separao entre as tendncias sensveis e a razo decerto um dos aspectos mais importantes para ns, pois separa o progresso moral e a busca do que justo da observao concreta das tendncias35. A racionalidade que se trata de praticar no em absoluto encarnada, caracteriza-se, ao contrrio, pela separao36. verdade que, apesar de sua crtica das cidades concretas e das tendncias naturais, os estoicos aceitam as situaes de

    32. Voolkc, Les rapports avec autrui dans la philosophie grecque, Paris,1961, pp. 110-4; Marciano, Inst. I: Stoicorum veterum fragmenta, von Arnim, t.III, 314, p. 77; Filon, de Josepho, 29, SVE, III, 323, p. 79.

    33. E. Brhier, La thorie des incorporels dans l'ancien stocisme, Paris, 1908. ;

    34.\Cicero, Defm ibus, III, 21, 71; De republica, III, 33.35. Da a separao entre os homens e os animais; Ccero, Definibus, III,

    19, 63; III, 20, 67. Embora a moral estoica parta da observao das inclinaes, estas no so bens. O bem consiste no assentimento que a razo pode dar a essas inclinaes. Brhier, Histoire de la philosophie, nova edio, Paris, 1981, p. 225.

    36. Brhier, Histoire, op. cit., eod. loc.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 13

    fato com uma espcie de resignao cptica em razo do seu fatalismo. Simplesmente, devido conscincia que tomam da facticidade das cidades e dos cargos pblicos que eles ocupam podem manter a razo acima das preocupaes por demais concretas da cidade e buscar a virtude por si s sem experimentar o desejo de reformar a cidade, salvo, talvez, em relao a certos pontos como a escravido. Chegam, finalmente, a uma espcie de positivismo que se resigna diante do estado de direito existente, sabendo que existe um direito ideal mas sem alcance prtico. Se a lei racional universal no deve desordenar as cidades, tampouco o direito positivo tem de sustentar a pretenso de ser justo37. Acrescenta-se a isso o desenvolvimento de uma moral que tenta especificar os direitos do sbio em face da situao em que est de dever cumprir seu ofcio38.

    As fontes platnicas e esticas, cujas caractersticas dominantes acabamos de mostrar de modo muito breve, esto parcialmente na origem direta do pensamento do Doutor de Hipona, que teve grande influncia sobre todo o pensamento medieval. Santo Agostinho, que, antes d.e sua converso, se formara nas escolas de retrica, nelas recebeu uma cultura impregnada do estoicismo ambiente39, qual juntou uma busca intelectual e espiritual intensa que o conduziu a ler especialmente Ccero e as tradues latinas das Enadas de Plotino feitas por Mrio Vitorino40. Claro, Santo Agostinho acima de tudo um religioso, mas os mbitos conceituais nos quais exprime sua f permanecem marcados pelas fontes que esto na origem de sua reflexo. Encontraremos nele certo dualismo segundo o qual, de manei-

    37. Brhier, Histoire, op. ct., p. 291, pp. 351 ss.; Villey, Formation de la petisejuridique moderne, Paris, 1968, p. 434, pp. 454 ss.

    38. Brhier, Histoire, op. cit., eo. loc.39. Marrou, Saint Augustin et la fin de la culture antique, Paris, 1938, pp. 55

    ss., pp. 238-8 para a educao retrica e dialtica. A influncia estica no somente difusa, ela existe no prprio seio do aprendizado da dialtica, p. 242, n. 1, p. 578.

    40. Marrou, Saint Augustin..., op. cit., p. 34.

  • 14 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    ra muito fiel a Plato, o corpo instrumento subordinado da alma41. Da resulta uma doutrina do conhecimento que ser transmitida com variantes por todos os doutores que se vinculam a essa corrente, entre outras a tradio francis- cana; ela consiste em afirmar que o conhecimento no passa pelo sensvel, este pode ser sua ocasio, no sua fonte. Nessas condies, o conhecimento o produto de uma iluminao transmitida pela luz divina inteligncia, o esprito recebe essa iluminao sem operar verdadeira busca, o conhecimento no s no implica atividade, mas tambm essencialmente um fenmeno passivo42. O trabalho da inteligncia chamado abstrao no encontra realmente seu lugar aqui. As duas fontes dessa iluminao so o conhecimento incompleto que resulta do que naturalmente transmitido inteligncia, e a segunda a revelao que vem completar, ao que parece na mesma linha, o que a inteli gncia natural recebe. Da resulta que o conhecimento natural imperfeito, permite-nos conhecer apenas sinais das realidades superiores que so reveladas pela f. Portanto, at est na continuidade do conhecimento natural; nesse sentido, a revelao nos dar indicaes diretas sobre as realidades terrenas, indicaes da mesma ordem daquela que a inteligncia nos d. Logo, no h distino verdadeira, do lado do objeto, entre os dados da f e os da razo. As indicaes da f podem, pois, ser diretamente utilizadas em matria profana, o que levar toda uma parte do agostinis- mo a pretender extrair uma poltica da Santa Escritura43. A concepo da unidade da fonte do saber, que encontra sua raiz nas ideias do intelecto divino, segundo uma transposi

    41. Gilson, Introduction Vtude de saint Augustin, Paris, 1943, pp. 76-7, sobre a influncia de Plotino na elaborao dessa doutrina, cf. n .l da p. 76.

    42. Gilson, Introduction..., op. cit., II, p. 125. uma impresso de regras, mas tambm uma intuio, p. 126. Santo Agostinho, De Trinitate, XIV, 15, 21, PL, 42, col. 1052.

    43. Tendncia que se origina no Doutor de Hipona, cf. Arquillre, op. cit., pp. 62-3, e que no parar de se desenvolver. Arquillre..., pp. 142 ss.; Com- bs, La doctrine politique de saint Augustin, Paris, 1927, pp. 109-13, 323-5.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 15

    o das intuies platnicas, levar a afirmar a unidade das ordens do saber e, portanto, buscar na fonte superior da revelao indicaes diretamente transponveis para o campo da cidade terrena, que cada vez mais deve ceder espao para a cidade celeste, representada j nesta terra pela Igreja. Isso incitar os clrigos inspirados pelo agostinismo a desprezar algumas das nuances postas por Santo Agostinho em seu pensamento e os empurrar para a via de uma teoria do direito sacro segundo a qual a lei deve ser descoberta na revelao e nas interpretaes que a Igreja lhe d. Portanto, esta deve dispor da plenitudo potestatis a fim de fazer esse direito reinar. Tal doutrina est na origem, por exemplo, do preceito de Graciano segundo o qual o direito natural est contido no Evangelho44.

    No pensamento de Santo Agostinho, no houve supresso da lei eterna nem da lei natural45, mas esta apenas uma primeira etapa que corresponde ao conhecimento imperfeito que podemos adquirir pela intuio racional46. A lei natural universal e constituda pelos princpios e axiomas que a razo conhece, os quais esto de acordo com uma lei eterna que engloba a totalidade do universo47, a respeito da qual difcil precisar, em razo do carter circunstancial das exposies de Santo Agostinho, se oriunda da razo ou da vontade. Depois da lei natural, que era conhecida desde a origem da humanidade, vem a lei divina revelada a Moiss, a qual repete, de um lado, preceitos da lei natural e, de outro, contm mandamentos destinados a ser suprimidos pela vinda de Cristo48. Santo Toms herdar de Santo Agostinho essa doutrina da histria das leis, embora a

    44. Graciano: "Jus naturale est quod in lege et evangelio continetur", I. dist. 1, in princ.

    45. "Lex vero aeterna est ratio divina vel voluntas dei, ordinem naturalem conservari jubens, perturbari vetans", Santo Agostinho, Contra Faustum, XXXII, 27.

    46. De diversis questionibus, LIII, 2, Epistolae, CLVII, UI, 15.47. "Ordinem naturalem conservari jubens", op. cit., eod. loc.48. Contra Faustum, XIX, 2 ss.

  • 16 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    compreenda de modo muito diferente, como uma histria que mais se insere na ordem do ser do que a subverte. R esulta disso que a verdadeira lei e a verdadeira justia devem ser procuradas nas fontes religiosas e devem visar estabelecer uma ordem que substituir cada vez mais a cidade terrena que vai desaparecendo, como mostra o fracasso da civilizao romana que Santo Agostino, apesar dc to impregnado de cultura antiga, obrigado a constatar ao assistir em vida tomada de Roma pelo brbaro Alarico49. Disso no se segue, porm, que seja preciso, espera do advento completo da cidade celeste, rejeitar o direito humano. Este tem certa autoridade e valor porque Deus permite a existncia dos poderes humanos. No obstante, essas leis so injustas, decorrem apenas da vontade dos homens e dos poderes humanos que Deus tolera; so leis passageiras fundamentadas, apesar de algumas expresses mais favorveis, na injustia da conquista. Segue-se que a cidade pag , em si mesma, injusta, pois no reconhece Aquele que fonte de toda justia50. Obedecer-se-, entretanto, a essas leis injustas para conservar a paz e sobretudo porque esse estado que no mais que um estado de fato , porm, uma expresso da Divina Providncia51. Em contrapartida, quando o Estado se torna pelo menos parcialmente cristo, ele assegura outra funo que dar fora e vigor s disposies que sero tiradas da Escritura para fazer que reine um direito conforme ao Evangelho. Sero leis essencialmente morais, e o direito se confundir com esses m andamentos morais. Nesse contexto, o Estado se torna aquele que deve fazer respeitar, se necessrio mediante coero,

    49. Dc civitatc Dei, V, 19, V, 21.50. "Est plane ille summus Deus vera justitia, vel ille verus Deus summa

    justifia", Ep., 120, 4, 19; "Remota itaque justitia, quid sunt rgna nisi magnalatrocina?", Dc civitatc Dei, IV, 4. Para as crticas da cidade terrena, De civitate Dei, XV, 1, 1, XV, 18-20; XV, 24; XIX, 4, 21. Sobre o dualismo contido nessa oposio, Markus, Saeculum: History and Society in the Theology o f St Augustine, Cambridge, 1977, pp. 86-90.

    51. De civitate Dei, XIX, 12, 21, 24.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 17

    os mandamentos tirados da justia divina e tornados leis do Estado52.

    A influncia do pensamento agostiniano no cessar de afirmar-se sob diversas formas at o sculo XIII, trazendo com ele certo desprezo pelas coisas naturais e pelas tendncias para o positivismo jurdico, sacro ou profano, que nelas se podiam ler. Est tambm muito presente nas obras teolgicas oriundas dos conventos, como a de Santo Anselmo, cuja vontade de afirmar a continuidade entre a razo e a f tem uma ressonncia muito agostiniana. Esse monge nor- mando do final do sculo XI assume uma importncia particular, em meio a outros inumerveis doutores, em razo da doutrina da liberdade que ele transmite e que encontraremos sempre presente e oposta de Santo Toms, de Duns Escoto a Suarez. Ela para ele: "Potestas servandi rectitudi- nem voluntatis propter ipsam rectitudinem."53

    H tambm nele uma definio da justia que ser retomada por Duns Escoto34. O meio monstico no qual elabora sua reflexo decerto no alheio a esses aspectos de seu pensamento; de fato, l os caracteres mais intelectualis- tas e religiosos do pensamento agostiniano podem se desenvolver com bastante liberdade. Com a combinao de ambas as concepes, chega-se ideia de que a justia consiste em seguir livremente uma regra, pois a liberdade tam bm um poder que resulta de uma regra, mas de uma regra de outra ordem, que a lei natural ou a lei divina. Portanto, h em Santo Anselmo uma submisso direta da vontade lei sem passar pela coisa55. Tal pensamento acabar tendo um desenvolvimento considervel; pode-se estimar que a fonte de toda uma corrente que vai se desenvolver no sculo XIV e muito depois.

    52. Santo Agostinho, Lcttrc 93 Vincetinus; De civitatc Dei, V, 24 ss.53. Santo Anselmo, De libero arbitrio, PL, CLVIII, eol. 494: "Possibilidade

    de conservar a retido da vontade por essa prpria retido."54. Santo Anselmo: "Rectitudinem voluntatis, dicimus justitiam esse vo

    luntatis propter se servatam", PL, CXIII, col. 523.55. Santo Anselmo, De libero arbitrio, op. eit., col. 494.

  • 18 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    O neoplatonismo persistir no pensamento medieval e, no sculo XII, conhece um renascimento inesperado na escola episcopal de Chartres, onde se comentam textos neoplatnicos, em especial o Comentrio do "Timeu" de Cal- cdio. Nesse meio que encontramos, ao que parece pela primeira vez, a expresso "direito positivo". As doutrinas filosficas que se desenvolvem sombra da catedral de Chartres so no somente platnicas, mas juntam -lhe, talvez sob a influncia das etimologias de Isidoro de Sevilha ou daquelas de Crtilo, uma primeira tentativa de gramtica especulativa5'. Os mestres de Chartres so praticantes da dialtica que ganha ento impulso sob a influncia da leitura de Bocio57. Para Bernardo de Chartres, as palavras derivam de uma fonte original que significa a Ideia, coisa que tomou conhecimento em Sneca. Mas Bernardo no s sustenta que os indivduos no so substncias, mas tam bem que as ideias so coeternas a Deus. Essas teses so re petidas por Ivo de Chartres e ainda acentuadas por Gilberto Porrelano!l!. A influncia deles se faz sentir no sentido de uma desvalorizao tias coisas materiais, at certo ponto somente. As formas que esto presentes na matria no passam de cpias das ideias subsistentes em si mesmas no intelecto divino. So dessas causas exemplares que os indiv duos substncias tiram sua realidade54. Essas teses vero sua influncia persistir at desabrochar no formalismo es cotista. A Escola de Chartres o meio no qual escrevem os primeiros canonistas, por isso no de surpreender v-los nutrir-se de dialtica platnica'0 e talvez sofrer certas influncias no campo da teoria do direito que consiste, na linha, verdade conjunta, do neoplatonismo cristo e do

    56. Gilson, La philosophie...., op. cit., p. 260.57. Chenu, La thologie..., op. cit., p. 152.58. Gilson, La philosophie, op. cit., eod. loc.59. Gilson, Lu philosophie..., op. cit., p. 264.60. Grabman, Geschichte der scholastischen M thode, Gra/., 1957, t. Il,

    p. 215.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 19

    agostinismo, cm conceder lei divina um lugar que tende a superar o da lei natural61.

    A reflexo teolgica e filosfica no decorrer da segunda metade do sculo XII deixa as escolas monacais e episcopais, criam-se as primeiras universidades. Nelas o ensino ministrado primeiro o dos clrigos seculares, sendo em seguida rapidamente compartilhado, no sem mltiplas discusses, com os monges. Desse ensino nascem os primeiros comentrios das Sentenas de Pedro Lombardo, telogo agostiniano que reunira Sentenas dos Padres a propsito dos principais temas da teologia, e que se deviam comentar antes de se poder lecionar a ttulo de licenciado completo cm teologia. Vemos tambm florescer snteses que surgiram por ocasio do ensino e das discusses que o acompanham. A tendncia dominante desses escritos ainda , no final do sculo XII e na primeira metade do sculo XIII, largamente agosliniana, como o ser a obra de um contemporneo de Santo Toms, So Boa ventura.

    Um bom exemplo dessas primeiras sumas de teologia pode ser dado pela suma teolgica do franciscano Alexandre de Hales, que Santo Toms conheceu62. Na teologia agosti- niana desse franciscano, a lei ocupa um lugar importante, quer se trate da lei eterna ou da lei natural. Mas bastante difcil distinguir as duas, pois conhecemos a lei eterna por uma intuio intelectual que ganha ento o nome de lei natural6'. Essa lei impede, pela iluminao que proporciona

    61. Gaines Post, Studies in Medieval Legal Sources, pp. 405, 521-2, Princeton, 1964; S. Kuttner, "Sur les origines du terme droit positif", RHD, XV, 1936, pp. 736-9; 1,oltin, "Le droit naturel chez saint Thomas et ses prdcesseurs", in Psychologie et morale, Louvain, 1948, t. Il, pp. 16-23, 106-8; Win- terswyl, Il ei trge zum politischen Augustiiiismiis und Neiiplatonisiuus, in der M ittelalterlichen Rechtsichre, mit besonderer Bercksichtigung des Hosticnsis, Munique, 1958.

    62. Lottin, "La loi ternelle chez saint Thomas et ses prdcesseurs", in Psychologie et momie, op. cit., t. II, pp. 53-7, igualmente "La loi cm gnral, la dfinition thomiste et ses antcdents", ibid., p. 19.

    63. A. de Haies, Summa Theologien, Ad claras Aquas, Quarrachi, 1948, t.IV, pars III, inqu. I quaest. I, cap. I.

  • 20 NASCIMENTO DA LEI MODERNA

    ao esprito, cair no erro64. Como ela no nos d um juzo, no sentido em que este implica uma deciso, a lei superior ao juzo, pois nos d apenas um conhecimento65. Considerada em si mesma e no mais no esprito, a lei eterna uma ordem estabelecida por Deus na medida em que ele criador e transmite s criaturas racionais o conhecimento do que bem ou mal61. Parece que Alexandre de Hales toma com firmeza posio quanto natureza racional da lei natural e eterna.

    Embora a autoridade seja necessria para a promulgao da lei, a verdade e a bondade so igualmente necessrias, e a lei nos fornece essencialmente um conhecimento67, mesmo que, como lgico no agostinismo, esse conhecimento no seja o resultado de uma observao, mas de uma intuio. A lei natural , alis, imutvel, a ordem do mundo conhecido por ns na sinderese. Embora as aplicaes da lei possam mudar, assim como o mdico aplica remdios diferentes conforme as doenas sem que, todavia, a medicina mude, a lei natural fica imutvel68. No entanto, a lei natural derivada da lei eterna e conhecida tambm pelo Declogo69. Disso vai resultar a possibilidade de construir um sistema de direito natural conforme aos preceitos do Declogo711. Isso de modo algum significa que a lei humana seja desconsiderada: tambm ela derivada da lei eterna. Dever ser julgada consoante o fim; se conduz para os preceitos da lei natural, boa, se no, m71.

    Encontramo-nos aqui no limite da evoluo do pensamento agostiniano, em face de um tratado da lei cujo es-

    64. A. de Hales, pars II, inqu. II, quacst. I, cap. I.65. Ibid., cap. 266. Ibid., cap. 3.67. Ibid.68. Alexandre de Hals, ibid., caps. 7 e 8; cf. quacst. II, cap. 3, e quaest.

    III, cap. I.69. "Moralia legis Moysi emanant a lege naturali", A. de Hales, np. cit.,

    pars II, inqu. II, quaest. 4.70. E por isso que, apesar de algumas aluses ao direito e justia, sua

    moral fica expressa num tratado das leis, pars II, inqu. II, quaest. 1, art. III.71. A. de Hals, op. cit., pars II, inqu. I, quaest. 1, art. III.

  • SANTO TOMS OU A LEI ANLOGA 21

    quema muito prximo do d