Les Éphémères Cinema em Cena no Théâtre du Soleil...JULIA DA SILVEIRA CARRERA Les Éphémères...

165
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO JULIA DA SILVEIRA CARRERA Les Éphémères Cinema em Cena no Théâtre du Soleil

Transcript of Les Éphémères Cinema em Cena no Théâtre du Soleil...JULIA DA SILVEIRA CARRERA Les Éphémères...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

JULIA DA SILVEIRA CARRERA

Les Éphémères

Cinema em Cena no Théâtre du Soleil

JULIA DA SILVEIRA CARRERA

Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Artes da Cena da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre em Artes da Cena.

Orientadora: Profa Doutora Gabriela Lirio Gurgel Monteiro.

Co-orientadora: Profa Doutora Elizabeth Jacob.

Rio de Janeiro

2017

Para Nicholas, Valentina, Vicente e Stella,

amores e amoras.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a comunidade acadêmica da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, sem a qual esse trabalho não seria possível, em especial aos meus

colegas da turma de 2015 do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena.

Agradeço, especialmente, as queridas Gabriela Lírio e Elizabeth Jacob, mais do que

orientadoras, verdadeiras amigas, pela paciência, dedicação, olhar atento, incentivo e

carinho, sem os quais eu certamente não teria chegado até aqui.

Agradeço a banca tão especial para a minha defesa, Alessandra Vannucci e Ana

Achcar, professoras e amigas da minha mais alta estima. Agradeço ao Eduardo Vaccari,

grande amigo e parceiro, pelo empréstimo de fontes de pesquisas valiosas sobre o Théâtre du

Soleil.

Agradeço, infinitamente, a Juliana Carneiro da Cunha e Ariane Mnouchkine, pela

inspiração de uma vida e por tamanha atenção e carinho, na esperança de que esse trabalho

seja uma retribuição à altura.

Agradeço a FAPERJ pela bolsa de pesquisa que tornou possível uma verticalização e

dedicação ao trabalho imprescindíveis para eu atingir os resultados esperados.

Agradeço aos meus pais, Doia e Oscar, cujo apoio tem sido uma constante em minha

jornada, e nesses últimos anos não poderia ter sido diferente. Agradeço ao Paulo, meu

companheiro, pelo carinho e pelas horas de sono, repostas aqui e ali. Agradeço e ofereço

esse trabalho também a Clara e João, melhores parceiros de caminhada, assim como a Alice

e Cacau.

Às minhas estrelas-guias, Nicholas, Valentina, Vicente e Stella, peço perdão pelas

ausências e agradeço toda a inspiração e energia que recebo em todos os dias de nossas

vidas.

GRATA! Pouco importa a espera de duas horas na lista do mesmo

nome, pouco importa o frio e a incerteza. E mesmo: encontrar

finalmente um lugar conseguido “depois de muita luta”, graças à

magia da jovem moça que fazia tudo para fazer entrar todo mundo, é

ainda mais magnífico ter a sorte - que sorte! - de poder entrar neste

“Quarto na Índia” onde todos os horrores deste mundo nada podem

contra o calor humano e o mundo das artes. GRATA de todo o

coração. À Ariane Mnouchkine e à trupe maravilhosa.

Kathrin Rousseau, carta ao Théâtre du Soleil em 14/01/2017

Acontece que estamos fazendo um espetáculo que fala de instantes…

Do presente que já não é presente no momento em que digo a palavra

“presente”. Talvez da beleza dos seres, da dificuldade que temos em

apreender essa beleza, e quando, às vezes, nos damos conta do quanto

esse instante era belo, ele já passou. É um espetáculo feito dos

instantes que nos fizeram.

Ariane Mnouchkine

RESUMO

CARRERA, Julia da Silveira. Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil. Rio

de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena). Escola de Comunicação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

A dissertação propõe uma análise da obra de Ariane Mnouchkine e do Théâtre du

Soleil a partir do estudo sobre as relações entre cinema e teatro, tendo como objeto principal

de pesquisa o espetáculo Les Éphémères (2006). Interessa investigar, para além dos “filmes

de teatro” (PICON-VALLIN, 2001) produzidos pela companhia, a influência da linguagem

cinematográfica no processo de criação da cena teatral no espetáculo Les Éphémères e os

desdobramentos deste no espetáculo seguinte da companhia, Os Náufragos do Louca

Esperança. Este espetáculo é relevante na trajetória do grupo pela ruptura temática e pela

originalidade da encenação, da relação ator x espectador e do processo de criação,

distanciando-se do que foi realizado anteriormente.

Muito já foi dito sobre as criações épicas do Théâtre du Soleil, cunhadas pelo uso da

máscara teatral e o universo estético implicado nessa escolha, sobre a potência de suas

criações coletivas, a relação dos espetáculos com o ativismo político da companhia, e sobre a

face humanitária de seus espetáculos. Esta dissertação pretende, portanto, ampliar o campo

de discussão sobre a obra da companhia, levantando questões em relação à natureza híbrida

dos espetáculos realizados depois dos anos 2000 e sua convergência para o teatro

contemporâneo, especialmente no que tange às imbricações entre teatro e cinema e a

experiências de intermedialidade.

RÉSUMÉ

CARRERA, Julia da Silveira. Les Éphémères - Cinema em Cena no Théâtre du Soleil. Rio

de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena). Escola de Comunicação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

La thèse propose une analyse de l'œuvre d'Ariane Mnouchkine et le Théâtre du Soleil,

à propos de l'étude sur la relation entre le cinéma et le théâtre, dans laquelle l'objet principal

de la recherche c’est le spectacle Les Éphémères (2006). Centres d'intérêt enquêtent au-delà

des « films de théâtre » (PICON-Vallin, 2001) produit par la troupe, l'influence du langage

cinématographique dans le processus de création de la scène de théâtre dans le spectacle Les

Éphémères et les ramifications de cela dans le prochain spectacle de la compagnie, Les

Naufragés du Fol Spoir. Cette spetacle est importante dans le chemin du groupe à cause de la

thématique et l'originalité du scénario de rupture, le spectateur relation x et le processus de

création d'acteur, en se éloignant de ce qui a été fait auparavant.

Beaucoup a été dit sur les créations épiques du Théâtre du Soleil, frappées par

l'utilisation du masque de théâtre et de l'univers esthétique implicite que le choix de la

puissance de leurs créations collectives, la liste des spectacles avec l'activisme politique de

l'entreprise, et sur la face leurs spectacles humanitaires. Ce document vise donc à élargir le

champ de la discussion sur le travail de l'entreprise, ce qui soulève des questions quant à la

nature hybride des spectacles réalisés après l'an 2000 et la convergence au théâtre

contemporain, en particulier en ce qui concerne chevauchement entre le théâtre et le cinéma,

les expériences intermedia.

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Duccio Bellugi Vanuccini em Tambours Sur La Digue........................................... 18

Imagem 2 - Tambours Sur La Digue (2001) ............................................................................... 19

Imagem 3 - Cena de Les Éphémères (2006) ................................................................................ 20

Imagem 4 - Ator em cena em de L’age D’or (1975) ................................................................... 48

Imagem 5 - Cartaz do filme Au Soleil même la Nuit.................................................................... 52

Imagem 6 - 1789 ......................................................................................................................... 53

Imagem 7 - Les Éphémères, Sesc São Paulo, 2007...................................................................... 53

Imagem 8 - L’age D’or................................................................................................................. 54

Imagem 9 - Programa de Les Éphémères (2016) .......................................................................... 66

Imagem 10 - Programa de Les Éphémères................................................................................... 68

Imagem 11 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 69

Imagem 12 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 70

Imagem 13 - Página do programa Les Éphémères....................................................................... 72

Imagem 14 - Página do programa Les Éphémères....................................................................... 73

Imagem 15 - Contracapa do programa Les Éphémères................................................................ 74

Imagem 16 - Páginas do programa Les Éphémères...................................................................... 75

Imagem 17 - Les Éphémères (2006) ............................................................................................ 84

Imagem 18 - Le Dernier Caravanserail....................................................................................... 90

Imagem 19 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 92

Imagem 20 - Jean-Jacques Lemêtre.............................................................................................. 96

Imagem 21 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 99

Imagem 22 - Les Éphémères (2007) ............................................................................................ 100

Imagem 23 - A atriz Shasha.......................................................................................................... 101

Imagem 24 - Atores saem de cena................................................................................................ 107

Imagem 25 - A atriz Delphine Cottu............................................................................................ 110

Imagem 26 - Arquibancadas......................................................................................................... 112

Imagem 27 - Juliana Carneiro da Cunha e Delphine Cottu.......................................................... 115

Imagem 28 - Juliana Carneiro da Cunha...................................................................................... 118

Imagem 29 - A pequena Aline...................................................................................................... 119

Imagem 30 - Pai e filha................................................................................................................. 123

Imagem 31 - As atrizes................................................................................................................. 125

Imagem 32 - Montagem da estrutura principal............................................................................. 133

Imagem 33 - Capa do programa da turnê brasileira (2011) ......................................................... 133

Imagem 34 - Jovem ator do filme (2013) .................................................................................... 135

Imagem 35 - Montagem da cena.................................................................................................. 137

Imagem 36 - Cartoucherie............................................................................................................ 139

Imagem 37 - Atores em cena no espetáculo................................................................................. 140

Imagem 38 - Juliana filma através da “grua” .............................................................................. 140

Imagem 39 - Cartoucherie ........................................................................................................... 141

Imagem 40 - Juliana Carneiro da Cunha (2013) .......................................................................... 143

Imagem 41 - Charles Darwin........................................................................................................ 144

Imagem 42 - Legendas em português........................................................................................... 145

Imagem 43 - A proa do navio “Louca Esperança” ...................................................................... 146

Imagem 44 - Atores olham pelas escotilhas do navio...................................................................... 147

Imagem 45 - Todos projetam como será a vida............................................................................ 147

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 - Hibridações entre teatro e cinema: teoria e prática

1.1 Reflexões sobre as influências entre o cinema e o teatro: aproximações......................... 24

1.2. Teatro e cinema na cena contemporânea......................................................................... 34

1.3. O Théâtre du Soleil e sua dupla vocação como teatro e cinema..................................... 44

CAPÍTULO 2 - O processo criativo de Les Éphémères: um meteoro ofusca o Soleil de outrora

2.1. Escritos de artista: notas de ensaio catalogadas no programa original da temporada

francesa.................................................................................................................................

63

2.2. Cenas performativas: imagens de si e do outro em Les Éphémères.................................... 75

2.3. Gatilhos da memória: lembranças do processo de criação por suas criadoras.................... 87

CAPÍTULO 3 - A Potência do Efêmero

3.1. O hibridismo da linguagem em Les Éphémères: teatro e cinema tornam-se uma outra

linguagem.............................................................................................................................

104

3.2. Um novo ponto de partida: Os Náufragos do Louca Esperança .................................... 131

CONCLUSÃO........................................................................................................................... 148

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 152

ANEXOS

Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha.......................................

159

Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine....................

162

13

INTRODUÇÃO

Podemos erguer um monumento ao efêmero? Todo livro sobre teatro é um pouco

este monumento. Melhor e pior. Trabalho incompleto de ressurreição impossível. É

um pouco disto que nós tentamos alcançar aqui: fazer ressurgir o impossível na

tentativa de fixar o efêmero. (FÉRAL, 1995, p. 13)

“Ephémeros”, ou “apenas por um dia”, é a origem grega do termo “efêmero” utilizado

para designar tudo aquilo que tem caráter passageiro, transitório, fugaz. Se diz que o teatro é a

arte do efêmero, cada apresentação se esvai durante a sua duração, sobrevivendo somente na

memória dos que estavam ali presentes, atores e público. E o cinema seria a tentativa de reter

o momento, eternizar o instante, reverter este efêmero estado de coisas, mas,

Como afirma Lúcia Santaella, a eternização do instante da fotografia

“inevitavelmente aponta para seu avesso: a irrepetibilidade e morte irremediável do

flagrante capturado”. É intrigante como os primeiros filmes nos trazem essa

consciência incômoda do instante assassinado com muito mais força do que os

filmes mais recentes, o que certamente ajuda a explicar o poder dos atuais modelos

narrativos sobre nossa percepção. (...) Além disto, o espectador é repetidamente

chamado a participar da cena e responder aos acenos e piscadelas dos atores, que se

dirigem ostensivamente à câmera e deixam claro que sabem da nossa presença.

(CESARINO COSTA, 2008, p. 31)

Atores que sabiam da nossa presença, assim com os personagens de Tchecov que se

exercitavam em imaginar como seria a vida na terra dali a duzentos anos… Tentativas de

capturar o tempo e a vida, esta “sombra que passa”, para trazer sentido, fazer relevância,

animar nossa monótona caminhada, isto é a arte. Como fogos de artifício, nós, artistas, nos

esforçamos para recriar a beleza da chama que ilumina nossos labirintos e conforta nossa

alma, ainda que saibamos da brevidade de tudo. Começamos novamente, e mais uma vez,

teimando contra a inexorabilidade da passagem do tempo. O bufão que aponta para as

estrelas, especialmente quando o céu está nublado, é o mago do tempo, aquele que se

aproxima de Deus porque cria mundos e os dá a ver, os coloca à mostra, lembrando que o

mundo é um palco, um teatro. De efêmero em efêmero, o artista cria pontes e escreve histórias

únicas.

A minha história com o Théâtre du Soleil começou em março de 2002, quando

conheci a atriz Juliana Carneiro da Cunha em uma oficina que ela ministrou no Teatro do

Jockey no Rio de Janeiro. Entrei ali como ouvinte e saí preparando as malas para a maior das

viagens da minha vida, o estágio que aconteceria em agosto daquele mesmo ano, no Théâtre

du Soleil, em Paris.

14

Durante as semanas do estágio em que me juntei a outros quatrocentos atores para

tentar, com todas as forças, “fazer um pouco de teatro, do verdadeiro teatro” como nos

convidava Ariane Mnouchkine todas as manhãs, vivi alguns dos momentos mais intensos de

toda a minha vida. Tinha então 22 anos, dos quais 9 eu havia vivido, também intensamente,

sobre o palco do Teatro O Tablado, no Rio de Janeiro. Naquele tablado, aprendi que atuar era

muito mais do que viver personagens; ali, com a generosidade de grandes professores como

Guida Vianna, Cico Caseira, João Brandão, Bernardo Jablonski, Cacá Mourthé, Eddy

Resende e, last but not least, Maria Clara Machado, entre tantos outros, aprendi a ser atriz,

dramaturga, diretora, cenógrafa, figurinista, diretora musical, iluminadora e, principalmente,

produtora das minhas cenas, e, posteriormente, dos meus espetáculos. Isto tudo amadureci

n’O Tablado, um teatro nascido do sonho de outra diretora visionária, Maria Clara Machado

(uma artista amadora no maior dos sentidos), fundado em 1951, ano em que ela voltou de sua

viagem iniciática à Paris, onde, entres muitas aventuras, estudou técnicas de improvisação

com Charles Dullin. Lembro que eu, andando naquele fim de verão parisiense de 2002,

imaginava se passaria por alguma ruela onde poderiam ter se cruzado Maria Clara Machado e

Ariane Mnouchkine, em um encontro imaginário em um fim de dia qualquer no verão

parisiense de 1950. Duas belas jovens, sonhando e projetando seus incríveis percursos

porvires, os quais alimentariam, depois, meus sonhos de teatro, eu, uma jovem do início do

século XXI. Devaneios.

Uma passagem pelo Théâtre du Soleil marca a vida de qualquer pessoa, especialmente

a de uma jovem atriz em uma rotina de várias semanas vivendo uma vida dedicada ao teatro,

desde às oito da manhã às oito da noite, improvisando cenas mas também lavando os

banheiros, cozinhando, arrumando figurinos e adereços, organizando sessões de filmes,

operando refletores e fazendo festas. Com Ariane Mnouchkine aprendi a respeitar o silêncio

do teatro e a lavar louça economizando água. No Théâtre du Soleil assisti a uma máscara em

cena pela primeira vez; compartilhei da energia de viver as dores e as delícias do teatro ao

lado de atores de todos os continentes, de quase todas as nacionalidades; recebi a

generosidade com a qual os maiores atores que já vi em cena arrumavam o meu figurino e me

davam coragem para entrar no palco. Nunca mais esqueci tudo que vivi ali e, até hoje, foram

poucos os dias da minha vida em que o Soleil não habitou meus pensamentos por alguns

minutos que fossem.

Quando o estágio de 2002 terminou e voltei ao Brasil, estava obstinada em tentar

perpetuar tudo o que aprendi, de alguma maneira. Mantive fortes laços afetivos com Juliana

Carneiro da Cunha, além dos profissionais. Assim, produzi muitas das oficinas que ela

15

ministrou no Brasil, desde então, além de ter participado da produção brasileira dos

espetáculos da companhia que por aqui fizeram turnê: Les Éphémères (2007) e Os Náufragos

do Louca Esperança (2011), neste último de forma bastante intensa.

Por conta de tantos anos de envolvimento, assisti a todos os DVDs da companhia e li

todos os livros que me chegavam às mãos, de forma que me tornei uma pesquisadora do

Soleil por curiosidade e admiração. Em minha trajetória como atriz, o trabalho com máscaras

ganhou destaque, tornando-se também uma linha de pesquisa pessoal que culminou com a

realização de um espetáculo de commedia dell’arte, dirigido pelo italiano Roberto Innocente,

Arlequim e Mirandolina (2008), além de muitos grupos de estudos.

Assim, quando decidi reingressar na vida acadêmica para a realização do mestrado,

não tinha dúvidas quanto ao meu objeto de estudo: o Théâtre du Soleil. E quando me vi diante

da necessidade de fazer um recorte específico, lembrei do impacto que senti quando assisti à

Les Éphémères pela primeira vez, em São Paulo, no Sesc Belenzinho, em 2007. Chamou a

minha atenção o fato de ser esse um espetáculo do Soleil com uma natureza absolutamente

diferente dos demais. Era teatro, mas nós, os espectadores, saíamos com a sensação de ter

visto um filme; havia a teatralidade do Soleil mas em uma estrutura que nada tinha a ver com

o universo das máscaras ou do teatro épico. O efeito em mim foi apoteótico, de fato me senti

incluída entre os deuses. Lembro também de estar na plateia e cruzar o olhar com um senhor à

minha frente, na arquibancada diante da minha, e nós dois estarmos com os olhos marejados

diante da cena que havia acabado de acontecer a nossa frente. Imediatamente, associei esta

sensação a toda a comunhão que vivi durante a minha experiência no estágio francês. Por tudo

isto, escolhi me dedicar nesta dissertação à análise de Les Éphémères e, a partir disto,

verticalizar minha pesquisa sobre o Théâtre du Soleil, descobrindo muitas das lacunas que

ainda existem neste percurso, no qual, percebo, ainda sou mera iniciante.

Les Éphémères, espetáculo que estreou, em Paris, no ano de 2006 e, em São Paulo, em

2007, marcando a primeira visita do Théâtre du Soleil ao Brasil, é o vigésimo trabalho da

companhia. Fundada em 1964, por um grupo de estudantes, é dirigida por Ariane

Mnouchkine, considerada uma das maiores encenadoras de todos os tempos, ainda em plena

atividade. Em 1970, quando a diretora e sua trupe conseguiram permissão para ocupar um dos

galpões da Cartoucherie, no Bois de Vincennes,1 na periferia de Paris, para ensaiar 1789 – La

1 A Cartoucherie de Vincenne, situada no Bois de Vincennes, nos arredores de Paris, foi construída em 1874

para abrigar as fábricas de cartuchos e pólvoras que alimentariam o exército francês. Durante a Primeira Guerra

Mundial foi amplamente utilizada, sendo tomada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Os galpões

chegaram a ser usados como Centro de Identificação para retenção de africanos na década de 1950, sendo

completamente abandonados nas décadas seguintes. Em 1970, o Théâtre du Soleil, ensaiou ali seu espetáculo

16

Révolution doit s’arreter à la perfection du bonheur, foi iniciada a trajetória de uma das mais

bem aventuradas companhias de teatro da história.

O início da trajetória de Mnouchkine, porém, antecede à criação da companhia por

estudantes franceses que, reunidos no que chamaram de Sociedade Cooperativa de Trabalho

de Produção – Théâtre du Soleil, em 1964, já anunciavam os movimentos estudantis e sociais

que tomariam a França alguns anos mais tarde, em maio de 1968. Dos dez estudantes que

fundaram esta que é uma das companhias de teatro mais antigas em atividade, duas jovens (a

estudante da Escola do Louvre, fotógrafa de muitos espetáculos da companhia, Martine

Franck, e, a então estudante de psicologia, Ariane Mnouchkine), alguns anos antes, em 1959,

criaram a Associação Teatral dos Estudantes de Paris (ATEP). Entre as atividades produzidas

estavam a organização de cursos e conferências de teatro para estudantes com professores das

escolas de Charles Dullin2 e de Jacques Lecoq, a recepção de companhias de teatro

estrangeiras envolvidas no Teatro das Nações e a produção de espetáculos próprios.3 Depois

de alguns anos, a ATEP foi dissolvida, já que seus integrantes precisavam terminar seus

estudos e prestar serviço militar, com a promessa de retomarem o projeto de criação de uma

comunidade teatral, onde todos investiriam uma mesma soma em dinheiro, portando, assim,

direitos e deveres iguais, e acumulando funções técnicas e administrativas às funções

artísticas. Neste período de retiro, Mnouchkine partiu em uma viagem iniciática pela Ásia,

onde mergulhou na arte oriental, sendo especialmente tocada pelo Kathakali e pelas máscaras

do teatro oriental. Ao retornar a Paris, retomou o grupo para a fundação efetiva do Théâtre du

Soleil, tendo como objetivo:

1789 La Révolution doit s’arrêter à la perfection du bonheur e, após o sucesso na estreia em Milão, e em busca

de um espaço para apresentações e trabalhos posteriores que não fosse, de forma nenhuma, um teatro,

conseguiram a permissão para ocupar alguns de seus galpões. Apesar dos esforços empregados na restauração

dos espaços pelos próprios integrantes da companhia e da ocupação dos outros galpões por outros grupos,

durante a mesma época, a autorização oficial da prefeitura para a ocupação se deu apenas em 1985, quando a

Cartoucherie de Vincennes passou a ter o aspecto que se pode conhecer atualmente. 2 Charles Dullin (1885-1949) foi um importante ator e homem de teatro francês, responsável pela renovação do

teatro popular da França, calcada na improvisação, na mímica e no estudo sobre textos clássicos. Foi grande

colaborador de Jacques Coupeau. 3 O Teatro das Nações foi uma série de festivais internacionais de teatro organizados a partir de 1954, por Aman

Maistre-Julien e Calude Planson, ambos engajados no movimento de reconstrução da identidade europeia no

pós-guerra, trazendo à França grandes companhias de teatro e artistas de todo o mundo. O espírito que inspirava

a todos era a necessidade latente de alcançar uma solidariedade maior do que em qualquer outro momento

histórico, tendo em mente que o conhecimento das culturas estrangeiras era uma condição essencial para isto.

Com a presença de diretores como Joan Littlewood e Peter Brook, e companhias como A Ópera de Pekin,

Piccolo Teatro, Berliner Ensemble, durante muitos anos houve um intenso intercâmbio artístico e cultural que

marcou essencialmente a produção artística das gerações que o assistiram, e que se mantém até a atualidade,

seja através da perpetuação de processos criativos pautados pela interculturalidade, seja pela manutenção de

festivais internacionais por todo o mundo.

17

Fazer teatro. Mas não aquele que lhes mostravam. Não um teatro de vedetes onde se

implora um cachê, onde cada um quer fazer carreira, onde cada um puxa a coberta

para si. Não. Um teatro de grupo. Durante o dia, eles ganhariam a vida. À noite e na

madrugada, trabalhariam juntos. Reinventariam o teatro. Foi o que fizeram.

(BABLET, 1979, pp. 7-9)

O Théâtre du Soleil tem sua origem marcada por fatos que iluminam sua trajetória e

escolha de repertório: a vivência comunitária de todos os seus integrantes, o ativismo político

e a criação de espetáculos com forte engajamento, voltados para a construção do bem comum,

ao gosto dos princípios universais da Revolução Francesa, uma tendência incutida em seus

processos criativos. Outra característica é o interculturalismo, presente primeiro em seus

espetáculos, depois na própria escolha dos integrantes da companhia.

Em termos das relações entre arte e política, ainda que o Théâtre du Soleil nunca tenha

abdicado da formalização estética em seus espetáculos, é fato que a vivência comunitária de

seus integrantes sempre caminhou para a finalidade revolucionária da arte, seja por propor

meios de produção absolutamente radicais frente ao teatro comercial e de pesquisa, por incluir

em suas atividades e espetáculos manifestações de engajamento político.

Por conceito e por força das circunstâncias, fundou-se, então, uma empresa coletiva,

nos moldes das antigas companhias de commedia dell’arte, onde a vida solidária foram as

locomotivas para a devida ocupação do espaço e a manutenção do trabalho continuado de

seus membros. No entanto, é interessante notar que a excelência artística de seu repertório

está vinculada, principalmente, à capacidade de reinvenção do grupo que, em escuta

permanente e precisa sobre a realidade circundante, vem sendo capaz de se metamorfosear e

manter acesa a chama do encontro entre o teatro e seu público.

Dentro deste contexto, optei por delimitar esta pesquisa ao repertório da companhia a

partir dos anos 2000, quando foi realizado o filme de Tambours sur la Digue, um “filme de

teatro” (PICON-VALLIN, 2002), assinado por Mnouchkine, enquanto cineasta. Foi nesta

experiência que a diretora e sua trupe se depararam com a prática de recriar para o olhar da

câmera as cenas teatrais que compunham o espetáculo. A peça era uma criação coletiva em

harmonia com a dramaturga Hélène Cixous, inspirada no teatro oriental antigo, em que os

atores atuavam como marionetes de Bunraku,4 sustentados por atores/titereiros (kokens) e

apresentava soluções fortemente teatrais na encenação.

4 O Bunraku, também conhecido como Ningyō jōruri, é um gênero do teatro japonês, bastante popular, que se

dedica a contar as histórias do Japão antigo, através da manipulação de bonecos de mais de um metro de altura,

feita por titereiros. Os bonecos são construídos com tamanha perfeição e possuem uma técnica de manipulação

tão refinada que parecem ter vida.

18

Para a realização do filme sobre o espetáculo, captado na própria Cartoucherie,

Mnouchkine dedicou-se à transposição da teatralidade do espetáculo para a linguagem

cinematográfica. Profunda conhecedora desse métier, a diretora já havia realizado o filme

Molière (1978), um longa-metragem de quatro horas de duração e mais de 120 atores,

aclamado pelo público e crítica da época, além de assinar a co-autoria do documentário Au

Soleil Même la Nuit (1997) e de registros em vídeo de alguns de seus espetáculos. Porém,

durante as filmagens de Tambours sur la Digue, Mnouchkine optou por mergulhar nas

profundezas das técnicas do cinema e do teatro, para fazer o trânsito artístico entre uma e

outra.

Imagem 1 - Duccio Bellugi Vanuccini em Tambours sur la Digue. Théâtre du Soleil, Paris, 1999.

19

Imagem 2 - Tambours sur la Digue (2001),

Imagens da filmagem na Cartoucherie, Paris

Foi a partir de então, como consequência, que as técnicas do cinema foram absorvidas

na rotina criativa da companhia, que aderiu também ao uso do vídeo para a gravação dos

processos de criação, e do computador para organização da logística e rotina de trabalho na

sala de ensaio. Organicamente, alguns recursos do cinema passaram a participar da criação

cênica, em harmonia com o conceito de “cineficação da cena” (PICON-VALLIN, 2011). Le

Dernier Caranvansérail (2003), espetáculo seguinte da companhia, apresentou não só o uso

de telas e projeção em seu espaço cênico, mas também introjetou a linguagem do cinema na

cena, como, por exemplo, nas plataformas que conduziam plataformas de cenários e atores,

fazendo alusão aos dollys.5

Mas foi no espetáculo seguinte, Les Éphémères, que Mnouchkine pareceu aprofundar

a relação entre teatro e cinema, unindo o uso das técnicas de cada arte a serviço do tema e da

pesquisa estética que o espetáculo propunha. Para falar dos momentos efêmeros que

compõem a vida de todos e de cada um, Mnouchkine abriu mão do palco italiano, acolhendo a

plateia em dois grandes balcões, um a frente do outro, com uma grande passarela ao meio por

onde percorriam as pequenas plataformas redondas de cenários realistas conduzidos por

atores/impulsores, sobre os quais interagiam os atores da cena, em movimento contínuo.

Neste espetáculo o cenário tomou ares de direção de arte cinematográfica, a ponto de ter fogo

5 Dollys são mecanismos com rodas ou algum tipo de rolamento usados para deslizar a câmera de um ponto a

outro.

20

em cena, abajures que se acendiam e fornos que cozinhavam, como mágica, posto que não

havia condutores de energia aparentes pelo espaço.

Imagem 3 - Cena de Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2006.

Na temática, Mnouchkine também inaugurou um novo caminho ao tratar das pequenas

anedotas da vida íntima, de modo que os atores propuseram suas “visões” a partir de material

documental, tanto de jornais e revistas, quanto da biografia de cada um.6 Estas pequenas

pérolas íntimas, distribuídas ao longo do espetáculo de sete horas de duração divididas em

duas partes, eram pequenos episódios da vida comum que evoluíam em série, compondo um

mosaico da experiência humana contemporânea, de forma delicada e sutil.7 É interessante

notar que o principal fio condutor (ou série principal de cenas), a história cujo enredo

entrelaçava o espetáculo da primeira à última cena, incluía parte da biografia da própria

Ariane Mnouchkine, trazendo à cena um pouco da história vivida por seus antepassados

judeus, tentando escapar dos horrores do nazismo que deflagrou a Segunda Guerra Mundial.

Uma avó, costureira, e um avô, distribuidor de filmes de cinema – veja só! – fugiram para

Bruxelas em procura de asilo sem, no entanto, serem bem-sucedidos.

6 Para a diretora, o processo de criação do ator calcado na improvisação deve partir não de uma ideia

intelectual, mas de uma visão ou imagem mental sobre determinado personagem ou situação. O ator deve,

então, reunir um pequeno grupo de atores para combinar a improvisação impulsionada por esta visão para,

posteriormente, apresentar o trabalho aos demais colegas da companhia. 7 Houve ainda um grupo de cenas que formaria uma terceira parte do espetáculo que, porém, nunca chegou a ser

finalizado e mostrado ao público.

21

Essa história, trazida à cena com riqueza de detalhes, entre tantas outras, encontrou sua

forma material no efêmero espaço da cena, assumindo aspectos do teatro documental e

autobiográfico e apresentou, ainda, traços do Teatro Performativo (FÉRAL 2015),8 colorindo

com novos matizes o processo criativo do Théâtre du Soleil. Os desdobramentos deste

espetáculo estiveram à altura da pesquisa que lhe deu origem, não só pela profunda

identificação e empatia do público em todos os países visitados em turnê,9 mas também pela

unanimidade de teóricos como George Banu e Beatrice Picon-Vallin (que acompanham o

trabalho da companhia há muitas décadas) ao afirmar que se tratava de um momento único e

especial da companhia quinquagenária. Por estes motivos e pela relevância do trabalho de

Ariane Mnouchkine e do Théâtre du Soleil, em termos artísticos, sociais e políticos na história

recente do teatro ocidental, realizo a presente pesquisa no intuito de verticalizar a análise do

espetáculo Les Éphémères, em especial.

Parto da hipótese de que o espetáculo se destaca no repertório da companhia

justamente por incluir lacunas em sua tessitura como consequência da narrativa híbrida,

presentes em um teatro que absorve a linguagem do cinema e apresenta traços do teatro

performativo, oferecendo ao espectador uma experiência cinética que procura instaurar um

presente, atualizado a cada instante, efêmero. Sendo um presente permanente, passado e

futuro desaparecem, levando consigo a ideia de conflito e deixando o espectador livre para a

contemplação, – seja da cena, seja do outro espectador ou ator diante de si. Neste lugar,

portanto, não se pode pensar em um espetáculo que “re-presenta” a realidade, posto que não

há um único referencial de origem que deve ser evocado novamente, mas, sim, a constante

instauração de um tempo/espaço que se atualiza a cada experiência compartilhada por todos,

diante de todos.

Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil nos acostumaram a tomadas de posições

fortes, a engajamentos explícitos às vezes criticados pela clara propensão de reduzir

a complexidade do mundo em nome de um processo autoritariamente instruído. Essa

incisividade de opiniões agora se atenua, pois, situação inesperada, o Soleil, já não

dissocia, com sua costumeira nitidez, os culpados das vítimas. Pela dor e também

pela ternura desses relatos (do espetáculo Les Éphémères) ninguém mais é

responsável, tampouco levado ao pelourinho. A não ser a vida, simplesmente, a vida

que se apresenta como uma meada de contradições, desastres, confusões,

reencontros. Não há em Les Éphémères nem acusados, nem acusadores, nem

vencidos, nem vencedores… E o espetáculo adota a postura cara a Tchekov, a do

“testemunho imparcial”. Não julga, não responde, só conta “relatos que poderiam

8 No espetáculo, parece justo perceber o percurso do processo criativo da companhia que parte da biografia

íntima dos envolvidos, mas acaba por desembocar em uma encenação altamente complexa, em um entrelace de

tramas e personagens que naturalmente provocam no espectador o desejo de criar suas próprias narrativas

ficcionais. 9 O espetáculo foi levado a todos os continentes.

22

ser objetos de vários contos”, parafraseando a célebre fala de Trigorin em A Gaivota.

(BANU, 2007, p. 32).

Analisei o processo de criação da peça em relação aos demais espetáculos da

companhia, observando sua consonância com o teatro contemporâneo, ainda que a companhia

não apresente como meta a inserção em nenhum rótulo ou gênero de criação artística, e

analisei as interlocuções que se dão entre o cinema e o teatro, em termos técnicos e estéticos,

trazendo um contexto teórico como baliza. Assim, no primeiro capítulo, introduzi algumas

reflexões sobre o cinema e o teatro, suas imbricações e influências, tendo como referências

teóricas as análises dos autores Bazin, Aumont, Sontag, Xavier e Pavis.

Em seguida, me detive sobre os conceitos de “Filme de Teatro” e “Cineficação da

Cena”, propostos por Beatrice Picon-Vallin, e “Intermedialidade”, por Isabella Pluta, como

ferramentas para uma análise das relações entre teatro e cinema no teatro contemporâneo. Ao

final deste capítulo apresento uma análise histórica do percurso do Théâtre du Soleil, tendo

como guia a sua dupla vocação como companhia de teatro e equipe de cinema.

No segundo capítulo, iniciei a análise do espetáculo em questão com um estudo sobre

as notas de ensaio de Les Éphémères presentes no programa oferecido ao público na

temporada francesa, sob a ótica dos escritos de artista e das pesquisas sobre material de

arquivo. Em seguida, propus um aprofundamento na análise do processo criativo que originou

o espetáculo, seu alinhamento com o teatro performativo (FÉRAL, 2015) e com a ideia da

“autoetnografia” (VERSIANI, 2002), tendo como foco principal o trabalho do ator do Théâtre

du Soleil. Por fim e para exemplificar, tomando como base a entrevista realizada com a atriz

Juliana Carneiro da Cunha em junho de 2016 e com Ariane Mnouchkine em março de 2017,

analisei o processo criativo a partir do olhar das artistas, desde o ponto de partida do processo

até as reações do público que se seguiram durante a temporada e turnê mundial do espetáculo.

No terceiro capítulo, propus uma análise do espetáculo elegendo algumas cenas

emblemáticas, observando os efeitos da hibridação da cena e do filme produzido a partir

deste. Procurei mostrar por que Les Éphémères se caracteriza como um momento único no

percurso do Théâtre du Soleil. Também procuro enfocar o teatro biográfico e autobiográfico

sob a ótica da diretora Ariane Mnouchkine, que tem episódios marcantes da sua vida pessoal

transformados em cenas do espetáculo. Em seguida, proponho uma análise do espetáculo

seguinte, Os Náufragos do Louca Esperança (2010), levando à hipótese de que Les

Éphémères inaugura uma nova plataforma de trabalho para a companhia. Por fim, segue-se a

conclusão desta pesquisa, além da entrevista com Juliana Carneiro da Cunha e Ariane

Mnouchkine na íntegra.

23

A metodologia de trabalho adotada se iniciou através do mapeamento da bibliografia e

videografia a respeito do Théâtre du Soleil, sua história, processos de criação e, em especial, a

produção intelectual realizada em torno do espetáculo Les Éphémères, além do registro

fílmico e programas das temporadas do espetáculo a que pude ter acesso. Vale atentar que a

maior parte deste material encontra-se em língua estrangeira, sobretudo francês e inglês.

Também pesquisei as principais linhas de pensamento teórico no que tange às relações entre o

cinema e o teatro, desde o início do século XX, e suas influências na contemporaneidade.

Pesquisei as principais análises teóricas voltadas ao trabalho do ator com relação ao

teatro performativo. Realizei uma entrevista ao vivo com a atriz Juliana Carneiro da Cunha,

na presença de alguns alunos do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da

UFRJ, iluminando muitas das lacunas que foram surgindo ao longo da pesquisa. Também tive

a chances de obter algumas respostas da própria diretora, Ariane Mnouchkine, o que elevou o

patamar desta pesquisa e aumentou a responsabilidade diante dos resultados a se alcançar. Por

fim, reuni todo este material para a escritura desta dissertação, procurando trazer um enfoque

original ao trabalho, tanto pelas articulações quanto linha de análise, mas especialmente por

realizá-lo em língua portuguesa, traduzindo textos importantes para a análise e contribuindo

para ampliar as fontes de pesquisa sobre o Théâtre du Soleil no Brasil.

Qualquer atitude nossa é evidentemente sempre determinada por um conjunto de

motivos [...] Mas nesse “conjunto” de motivos há sempre um, geralmente o mais

estranho, abstrato, ilógico, na maior parte das vezes absurdo, e muito

frequentemente irracional, “secreto” – que entretanto decide tudo. (OLIVEIRA,

2008, p.1)

24

CAPÍTULO 1 – Hibridações entre teatro e cinema: teoria e prática

1.1 Reflexões sobre as influências entre o cinema e o teatro: aproximações

Existe, com efeito, um hiato intransponível ou mesmo uma oposição entre as artes

teatral e cinematográfica? Há alguma coisa genuinamente “teatral”, de espécie

diferente do que é verdadeiramente “cinematográfico”? (SONTAG, 1987, p.99)

Quando surgem as primeiras experiências com filmagem e projeção de imagens em

movimento diante de um público, o teatro já completava mais de oito mil anos, a contar da

primeira vez em que um indivíduo do coro destacou-se do grupo para emitir em voz única

versos escritos por um poeta. Ainda assim, houve quem vaticinasse o fim deste último, um

“dinossauro” diante da meteórica chegada do cinema e suas imagens animadas. No século

XXI, quando o cinema completa um percurso histórico de mais de um século repleto de

transformações técnicas, hibridismos e revoluções estéticas, e o teatro ao invés de extinguir-se

vê a amplificação de seus domínios com o advento da “cena expandida”, há quem invista na

catalogação das diferenças entre as duas formas artísticas, para delimitar especificidades e

rupturas.10 Do ponto de vista do cinema, diretores como Sergei Eisenstein e D. W. Griffith

ilustraram, na teoria e na prática, a convergência das duas artes no início do século XX, e no

passado recente, outros grandes mestres como Luchino Visconti e Ingmar Bergman, entre

muitos, se aliaram aos últimos, atuando nos dois campos.11 Do ponto de vista da cena teatral,

Meyerhold foi pioneiro na utilização de telas e projeções em seus espetáculos, e grandes

10 “No teatro, chamo de cena expandida àquela que não se circunscreve apenas ao fazer teatral, como àquele

associado aos modos de produção e recepção teatrais convencionais, mas também se articula diretamente a

áreas artísticas distintas, em uma espécie de convergência que tangencia conhecimentos oriundos das artes

cênicas, visuais, das mídias audiovisuais, da performance, da dança, da literatura, da fotografia.” (LIRIO: 2016,

p. 4) 11 Sergei Mikhailovich Eisenstein (1898-1948), nascido na Rússia, foi um dos maiores nomes do cinema de

todos os tempos, não só como roteirista, cineasta, editor e professor, mas, principalmente, por suas tentativas de

teorização da montagem cinematográfica, em consonância com suas experiências no campo das artes cênicas,

na qualidade de discípulo de Vsévolod Meyerhold. D. W. Griffith (1875-1948) foi o cineasta norte-americano

responsável por articular a linguagem cinematográfica do cinema narrativo clássico, inaugurando o uso dos

planos numa montagem que objetivava uma provocação emocional no espectador. Inovador também na direção

minimalista dos atores e na sofisticação do uso da iluminação para criar uma fotografia que se aproximasse

mais da experiência do real, Griffith foi o pioneiro na utilização do posicionamento de câmera como efeito

narrativo. Luchino Visconti di Modrone (1906-1976) foi um diretor e roteirista de teatro, ópera e cinema

italiano. Iniciando-se no cinema como assistente de Jean Renoir, Visconti foi um dos precursores do

neorrealismo italiano. Diretor de obras-primas como Rocco e seus irmãos (1960) e Morte em Veneza (1971), foi

premiado diversas vezes durante toda a sua vida. Ernst Ingmar Bergman (1918-2007) foi um cineasta,

dramaturgo e diretor de teatro sueco que faz parte da geração de cineastas surgidos no período pós-Segunda

Guerra Mundial, cujos filmes apresentam narrativas complexas e temática existencialista. Diretor de inúmeros

filmes clássicos como O Sétimo Selo (1956), Personna (1966) e Sonata de Outono (1978). Dividia seu tempo

entre o cinema e o teatro, onde dirigiu diversos espetáculos durante toda a sua vida.

25

encenadores, como Peter Brook, Robert Lepage e Ariane Mnouchkine, transitam entre as duas

artes, de forma que seria quase incorreto referir-se a eles somente no âmbito do teatro.12 E,

finalmente, no século XXI, não é novidade o uso do cinema, e da tecnologia digital, na cena

teatral. O “efeito cinema” (DUBOIS, 2009), caracterizado pela utilização do cinema enquanto

linguagem para a criação da cena teatral e pela utilização de seus aparatos técnicos no

espetáculo, é um conceito absolutamente introjetado no teatro, seja ele comercial ou

alternativo.

Também é recorrente o cinema cujo tema é o teatro em si, sua rotina e ambiente, ou

mesmo textos clássicos do teatro mundial. A título de ilustração, vale lembrar de Tiros na

Broadway (1995), Os Produtores (2006), Ricardo III – Um Ensaio (1996) e as versões

fílmicas de Kenneth Branagh para as peças de William Shakespeare, entre tantos. Na

atualidade se pode enumerar tantos outros que reforçam a ideia de que, mais do que uma

tendência, esses filmes constituem um gênero do cinema, como Pina 3D (2012), Birdman

(2014), O Último Ato (2015), Florence (2016), La La Land (2017), e os brasileiros, Uma

Noite em Sampa (2016), e Olmo e a Gaivota (2015), este último com elenco formado por

atores do Théâtre du Soleil, curiosamente.

Nesse contexto, há um sentido interessante neste movimento de hibridização das

mídias que é a ideia do cinema não só como arte, mas também da captação da imagem como

uma ferramenta de “registro”, de forma que qualquer objeto observado pode se tornar

cineficado. Nestes casos, as fronteiras entre o cinema e as outras artes podem se apagar já que

o primeiro pode se caracterizar como a “versão cinema” de todas as outras obras (SONTAG,

1987). O melhor exemplo desta relação de invisibilidade do cinema diante do objeto filmado,

para Sontag, seria a televisão, e, considerando os avanços tecnológicos das mídias nas últimas

décadas, e especialmente a presença maciça da comunicação através da Internet, os vídeos

produzidos por telefones celulares compartilhados em redes sociais interconectadas, ao vivo

ou editados, são o ponto máximo desta invisibilidade ou, em oposição, a ilustração máxima

do “efeito cinema” nas relações cotidianas.

Ainda assim, para os fins desta pesquisa, será interessante aprofundar uma análise

sobre os aspectos inerentes a cada uma destas expressões artísticas, de modo a apontar as

características que demonstram as interseções entre o teatro e o cinema no que diz respeito

aos aspectos estruturais de ambos. Os dois gêneros artísticos apresentam complexidades

12 Data de 1923 a montagem de A Terra Erguida, um espetáculo dirigido por Meyerhold que intercalava cenas

com projeções de títulos de cenas, textos, trechos de diálogos e fotografias da revolução russa (ISAACSON

2011, p.11)

26

estéticas e estilísticas e o seu cruzamento pode encaminhar a uma análise comparativa mais

profunda, que vá além das questões técnicas. Trata-se aqui, portanto, de compreender que as

variações de experiências artísticas residem mais nas formas de concepção do espetáculo,

considerando que os aspectos técnicos são parte intrínseca e determinante de cada processo.

Quando surge o designado “primeiro cinema” (1894-1908), o conjunto de filmes e

imagens em movimento, exibidos através das mais variadas técnicas e engenhocas,13 em

diversos países quase concomitantemente, o teatro de boulevard, de cunho francamente

comercial, entre outros estabelecimentos, abriu suas portas para mais esta novidade,

reafirmando sua função como espaço de entretenimento voltado ao grande público. Àquela

época, nas salas dos grandes teatros, o espectador podia assistir a espetáculos de vaudeville

compostos por diversos atos com atrações variadas, incluindo acrobacias, música, pequenas

cenas de comédia pastelão e declamações de poesias, sem nenhum fio condutor ou construção

narrativa. Assim, a absorção dos primeiros filmes, incluídos nestes shows de variedades, de

curta duração e estrutura rudimentar (feitos em tomada única, com pouca ou nenhuma

pretensão narrativa), aconteceu de forma bastante natural, especialmente devido às

características técnicas que garantiam autonomia para o produtor mediante um enorme retorno

financeiro a cada exibição. Para ilustrar, vale ressaltar a grande popularidade alcançada pela

apresentação dos primeiros experimentos com imagens animadas na Exposição Universal de

Paris, em 1900, quando os irmãos Lumière apresentaram o seu cinematógrafo, – uma máquina

que capturava imagens em movimento e as projetava como filmes e fotografias em cores, em

uma tela de 21m de largura por 18m de altura –, contabilizando 326 sessões, vistas por 1,5

milhão de pessoas. (CESARINO COSTA, 2005). Então, à margem do romantismo que

envolve o desenvolvimento do cinema enquanto fenômeno artístico autônomo, o que de fato

possibilitou a evolução desta forma de entretenimento e orientou os realizadores do primeiro

cinema rumo aos avanços técnicos, de linguagem e estilo que se seguiram, foi a percepção de

que o feito apresentava grande potencial de público – e, consequentemente, econômico –, e

necessitava de renovação constante dos filmes, garantindo, potencialmente, uma estratégia de

produção em escala industrial.

O fato essencial, o ponto de partida que conduziu enfim à realização prática das

projeções animadas, é o níquel que o espectador americano fazia deslizar na fenda

do quinetoscópio Edison, são os 25 centavos que o passante parisiense pagava em

13 “A delimitação do período abarcado pelo primeiro cinema fundamenta-se na constatação, por parte da

historiografia recente, da presença de algumas características constantes no cinema até 1908. São características

relativas aos modos de produção e exibição dos filmes, à composição e comportamento do público e às formas

de representação destes filmes.” (CESARINO COSTA, 2005, p. 35)

27

setembro de 1894 para poder grudar os seus olhos no visor do quinetoscópio (...). É

isto que explica o nascimento do espetáculo cinematográfico na França, na

Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, durante o ano de 1895. As fotografias

animadas não eram apenas experiências de laboratório, curiosidades científicas, mas

elas podiam, de agora em diante, ser consideradas como uma forma rentável de

espetáculo. (CESARINO COSTA, 2005, p.39)

Naturalmente, os filmes de ficção que eram produzidos e exibidos nos teatros de

vaudeville acompanhavam a dinâmica destes shows, misturando trechos de filmes

documentários a tomadas de ficção, muitas vezes comédias e gags (geralmente filmadas no

próprio teatro), o que contribuía para manter a fidelidade do público já acostumado a esta

forma de espetáculo. Por outro lado, considerando que, àquela época, o próprio cinegrafista

era também o responsável pela projeção dos filmes no teatro, este formato de experiência

(tanto para o produtor/distribuidor quanto para o público), retardou o desenvolvimento do

cinema enquanto experiência autônoma, impedindo um movimento acelerado no sentido de se

criar um esquema industrial. Com isto, foi mantido por um tempo maior o caráter anárquico

destes filmes primordiais, que misturavam realidade e artifício com bastante naturalidade,

provavelmente porque o público espectador não tinha dúvidas de que estava diante de uma

máquina de trucagem (CESARINO COSTA, 2005).

Paulatinamente, diante da necessidade de manter a audiência do público que começava

a se aborrecer diante da repetição do formato dos filmes, as comédias que representavam a

maior parcela das películas produzidas passaram a dividir o espaço com os filmes de

perseguição, que se constituíram como a primeira forma narrativa do cinema (1903- 1906).

Ainda que imbuídas pela irreverência dos filmes de pastelão, esses filmes passaram a ganhar

mais atenção pois requeriam um maior preciosismo na sua feitura. Geralmente filmados em

cenários naturais que compreendiam pequenas multidões envolvidas em narrativas

rudimentares, deveriam ser compostos por uma sucessão de planos capazes de transmitir a

ação da perseguição para o público.

A existência destes filmes demonstra, para Gunning, que “estava em curso uma

síntese entre atrações e narrativa”. Por um lado “a perseguição tinha sido a narrativa

verdadeiramente original do cinema, fornecendo um modelo para a causalidade e

para a linearidade assim como para a montagem em continuidade. Mas por outro

lado, as perseguições construíam cada plano como uma verdadeira atração, na

medida em que cada plano mostrava o perseguido e os perseguidores tendo que

ultrapassar obstáculos variados: cercas, lagos, subidas etc. (...) A perseguição

esboça uma tentativa de construção de um plano contínuo fictício. Mas esta

construção não se completa, fica apenas indicada. Se para o cinema narrativo

clássico foi fundamental inventar gradualmente uma maneira de representar, através

das imagens, uma ficção de continuidade do tempo e homogeneidade do espaço,

este não era o projeto do cinema antes de 1906. (CESARINO COSTA, 2005, p. 49)

28

Nesse contexto, vale ressaltar a utilização do termo “atração” para analisar

tecnicamente a linguagem cinematográfica que começava a se esboçar. Este conceito,

cunhado por Tom Gunning e André Gaudreault para definir o que seria a essência do cinema

destes primeiros anos, surge como uma forma de dar visibilidade às implicações físicas da

experiência cinematográfica no corpo do espectador. É inspirado pelo conceito de montagem

de atrações, cunhado por Sergei Eisenstein, que caracteriza uma encenação na qual todo

elemento utilizado deve submeter o espectador a uma ação sensorial e psicológica, com o

propósito de produzir choques emocionais (BALTAR, 2016). “Atração”, portanto, evoca a

ideia de um acontecimento que se exibe e atrai o olhar do público, justamente como as

apresentações que aconteciam nos teatros, feiras e parques, performances que surpreendiam o

espectador, capturavam sua atenção no ato de exibição. Desta mesma forma, na análise sobre

o primeiro cinema se pode utilizar o termo atração, tanto no sentido de caracterizá-lo como

mais um evento que aparece e espanta o espectador,14 quanto no sentido de reforçar a ideia do

cinema como uma sucessão de imagens/vistas (views) que se apresenta em série, em uma

definição que independe da categorização do cinema entre narrativo ou não-narrativo

(CESARINO COSTA, 2005).

A partir dessa delimitação histórica, inúmeros são os exemplos que demonstram a

correlação íntima entre o cinema, ainda incipiente, e o teatro, já que, para se formular

enquanto uma linguagem expressiva palatável ao espectador, o cinema se viu diante da

necessidade de traduzir para a tela bidimensional a forma de se contar histórias no teatro.

Assim, todo o sistema técnico do cinema – alternância de tempos e espaços, os closes, os

campos/contracampos, as tomadas subjetivas, a centralização, os travellings, as panorâmicas,

as fusões, etc (CESARINO COSTA, 2005) – surge como alternativa para os códigos do

teatro, especialmente do vaudeville, e só depois de vinte anos, segundo a maioria dos

historiadores, é que a linguagem cinematográfica alcança um lugar entre as artes.

A chegada do cinema como uma forma de arte autônoma e amadurecida pode ser

datada pela apresentação, em 1915, de O nascimento de uma nação, de D. W.

Griffith. Do tempo das primeiras projeções do vitascópio Edison-Armat em 1895 e

1896 até a conquista de uma forma de arte cinemática em 1915 decorreram duas

décadas, antes que as técnicas da câmera e da encenação (photoplay) conquistassem

seletividade, unidade de propósito, dinâmica e estática, em suma, antes que elas

14 “Gunning explica que o futurismo de Marinetti “não apenas prezava a estética do espanto e da estimulação,

mas particularmente o fato de ela criar um novo espectador, que contrastava com o voyeur estúpido e estático

do teatro tradicional. O espectador do teatro de variedades sentia-se diretamente atingido pelo espetáculo e

juntava-se a ele.” (CESARINO COSTA, 2005, p.52). Isto nos faz pensar na força de aderência do público

contemporâneo às formas de entretenimento que pressupõe o envolvimento direto do espectador, como

programas de reality show e jogos de simuladores.

29

atingissem o status de uma forma de arte. Seus dispositivos básicos, como o cutback,

a dissolução, o fade-in, o fade-out, a panorâmica e o close-up podem ter-se tornado

técnicas úteis logo depois da chegada do vitascópio, mas o seu desenvolvimento

para o efeito artístico e dramático, para a integração de um todo estético, dramático e

pictural não veio antes de decorridos vinte anos. (CESARINO COSTA: 2005, 74)

É, portanto, neste contexto que o primeiro cinema procurou respostas para solucionar

as questões que se apresentavam como a noção de espaço e, especialmente, a ausência do

diálogo dramatúrgico, que ocupava o lugar central no teatro em voga na época, modelo para o

cinema emergente.

Em relação ao texto dramático, considerando a impossibilidade da palavra pela

ausência de som mecânico na fita, a alternativa mais comumente utilizada para estruturação

narrativa foi a acentuação dos gestos expressivos dos atores, através do uso da mímica, da

pantomima e de gestos codificados, que constituíram uma espécie de dicionário de imagens.

Isto não impediu, no entanto, que coexistissem outras formas gestuais, menos artificiais e

mais espontâneas, especialmente nos filmes com maior tendência documental. E, em paralelo,

a introdução de imagens de legendas ou subtítulos contribuiu para construir uma linguagem

própria do cinema (PAVIS, 2006, p.27). Isto ilustra bem o fato de que o movimento criativo

em ebulição naquela época não seguiu uma linha evolutiva única, pelo contrário, inúmeras

experiências aconteciam simultaneamente. E justamente pelo fato do cinema ser este

caldeirão de experiências múltiplas é que, durante muito tempo, vigorou entre os teóricos do

cinema a ideia de que o período anterior ao estabelecimento do cinema narrativo clássico não

possuía uma força estética que garantisse o surgimento de uma linguagem. Tratava-se de um

cinema primitivo.

Lentamente, portanto, os cineastas foram ganhando domínio técnico sobre suas

ferramentas e confiança na especificidade de sua arte, distanciando-se do formato da cena à

italiana, na qual o espectador tudo vê e o movimento está no corpo do ator, para assumir a

profundidade do espaço da locação e o movimento na captação da imagem (PAVIS, 2006,

p.36).

Em relação ao espaço, o desafio que logo se apresentou foi a questão do ponto de

vista. Se no teatro convencional a relação estabelecida pelo palco italiano entre o olhar do

espectador e a cena é calcada na ideia de que o palco é como um cubo cenográfico do qual se

retira um dos lados para que o espectador possa observar o que se passa lá dentro; no cinema

esta relação não existe. Se no teatro o ponto de vista do espectador é condicionado por esta

frontalidade; no cinema, a câmera tem total liberdade de escolha sobre qual ponto de vista

tomar, além de ter movimento próprio, multiplicando geometricamente as formas de se contar

30

uma história. Por outro lado, diante da cena teatral o espectador pode escolher que “recortes”

quer produzir através dos seus recursos (olhar para um ator que está em silêncio enquanto

somente escuta outro ator falar, por exemplo), enquanto, no cinema, o enquadramento da cena

e sua montagem conduzem definitivamente o olhar e a percepção do espectador.

É, portanto, através dos elementos que constituem as formas de representação das duas

artes que se fundamentam diferenças e similaridades, sendo que estas se alternam ao longo do

século XX e XXI, acompanhando movimentos estéticos e avanços tecnológicos. Conforme

Ismail Xavier, “a condição para que haja “representação” é o olhar de um sujeito (autor,

leitor, espectador ou voyeur) que mira numa certa direção e corta uma superfície de modo a

formar com esta um cone do qual o seu olho (ou seu espírito, como diz Barthes) é o vértice.”

(XAVIER, 1996, p. 249). No cerne desta questão, está implícita a ideia de que há uma relação

de oposição entre o observador e o observado – sendo este último fruto de uma delimitação de

contornos bastante definidos –, e de interdependência entre as partes, ainda que a hierarquia

entre eles sofra variações de acordo com o contexto social que baliza cada época. Além disto,

fica implícita, também, a ideia de uma zona de limite, uma fronteira entre os dois lados que

constituem o todo, uma separação entre o espaço da realidade e o da representação, sendo que

as molduras desta “janela que se abre para o mundo imaginário da cena” (XAVIER, 1996, p.

250) relembram o observador de que ele está diante de uma versão do real, ilusória ou não,

alcançada através do descarte e da invisibilidade de outros elementos, anulados atrás das

cortinas/corte. Esta conceituação para “representação” pode ser aplicada quando se pensa a

experiência do teatro, mas também do cinema, deixando clara a condição primordial pela qual

o cinema poderia estar inserido na tradição das artes cênicas de forma definida – ainda que

uma corrente da teoria cinematográfica se esforce para elencar os elementos pelos quais o

cinema se constitui como a sétima arte.15

Neste contexto, é válido retomar as questões técnicas que aproximam e diferenciam o

aspecto da visualidade de cada arte. Em primeiro lugar, enumero aqui algumas das

características que definem cada arte de forma identitária. No teatro, é possível elencar a

presença do público, o som direto dos atores (ainda que haja presença de microfones em

alguns espetáculos), possibilidades de música, ruídos, efeitos sonoros, liberdade no olhar (e

15 “A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não deixou de ser motivo de

incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica. Em particular, no início do século, por força do interesse

em inserir o cinema como esfera autônoma no sistema das artes, a tônica dos cinéfilos foi a defesa das novas

virtudes da nova arte muda contra os vícios da cena teatral entendida, de maneira redutora, como mundo da

palavra. Numa combinação de argumentos técnicos e morais, em particular o elogio à verdade dos gestos e às

revelações do rosto em close-up no cinema, montou-se um esquema teleológico que perdurou por décadas.”

(XAVIER, 1996, p. 247)

31

recorte) do público, processos de iluminação e projeção diretas, cenários em um só espaço

físico (mesmo em espetáculos itinerantes o cenário é circunscrito às áreas de encenação),

presença física dos atores, infinitas possibilidades de abordagem sobre personagens e

dramaturgia, direção/encenação com foco em atender à plateia e desenvolver a atuação dos

atores nas cenas, levando à predominância das convenções sobre a verossimilhança.

No cinema, pode-se pensar no filme como um produto destinado a um público

especializado (BENJAMIN), com som direto ou dublado, efeitos de som, imagem e luz na

pós-produção, no olhar do espectador limitado ao enquadramento da câmera e da montagem

final, com a direção determinada pela sua relação com a imagem filmada a ser captada em

acordo com o roteiro, a iluminação podendo ser modificada plano a plano, as filmagens

podendo ocorrer em diferentes espaços físicos, a presença dos atores sendo virtual no produto

final, sendo este formado por um conjunto de sequências de cenas – estas constituídas por

alguns planos rodados em diversas tomadas –, na maior parte das vezes montadas de forma a

garantir a verossimilhança que domina o modelo do cinema hegemônico. Ainda sobre o

cinema, as características essenciais para pensá-lo enquanto linguagem são as várias

possibilidades de planos e ângulos de filmagem, gerando os diversos enquadramentos, os

movimentos de câmera, dentro do quadro e da lente objetiva, as câmeras objetiva e subjetiva,

os cortes dos planos e como este material é montado posteriormente na edição, através de

movimentos como fusão, superposição de imagens, fade-in, fade-out, além de inúmeros

efeitos digitais que podem ser feitos na ilha de edição.

Nos processos de hibridização das mídias, todas essas características ganham novos

contornos posto que se multiplicam as possibilidades de combinação dos elementos. Em um

espetáculo teatral, por exemplo, quando um filme ou vídeo é projetado na cena e sobre os

atores – que inevitavelmente contracenam com este material – cria-se uma superposição de

imagens e qualidades de presença que afeta o espectador de forma inteiramente original.

Todas as possibilidades de relação que surgem neste contexto triangular

(cena/vídeo/espectador) constituem uma estética única que não pode ser mais reduzida à

essência dos elementos que a constituíram. No entanto, para fins de análise, a seguir aponto

alguns elementos e como estes são desenvolvidos no teatro e no cinema com o intuito de

verificar as diferenças de tratamento em cada um dos campos. Ao longo da pesquisa, irei

apresentando a relação entre cada uma destas características, aproveitando os exemplos que

serão analisados.

Portanto, novamente há a questão do uso do espaço na experiência estética. No teatro

32

clássico,16 a posição estática e frontal do espectador (plateia) em relação ao espaço de

representação (palco) levaria à suposição de que haveria uma limitação maior no que tange os

elementos de representação. De fato, ainda que outros edifícios e espaços teatrais (como a

arena, a semi-arena) alternem sua relevância em cada contexto social ao longo da história, o

palco italiano é o que se apresenta como melhor veículo para a experiência da comunicação

de massa, fato bastante explorado em termos de mercado. Não por acaso, o primeiro cinema

alimentou-se fartamente do teatro burguês, reproduzindo esta lógica mercadológica no espaço

de exibição,17 e, não por acaso, exibindo roteiros adaptados de peças teatrais, filmados

segundo a lógica de enquadramento da cena teatral, ou seja, uma tentativa de manter a

adequação do meio à mensagem.18

Assim segue também a reflexão do cinema enquanto meio de comunicação de massa.

Em um primeiro momento, o cinema foi percebido como um modo de entretenimento

bastante popular, por isto rentável, o que conduziu a temática dos filmes a conteúdos

moralizantes e politicamente corretos (CESARINO COSTA, 2005). Posteriormente, disto

resultou o senso comum que caracteriza este cinema hegemônico como uma arte

comprometida com uma comunicação superficial, pouco verticalizada, retratando a realidade

de forma natural, fidedigna. Assim surgiu a reflexão de que o cinema seria uma arte popular,

natural e espontânea, em contraposição ao teatro, inserido no campo do simulacro, da mentira,

de gosto aristocrático, afetado. Assim, quanto mais o cinema se distanciasse dos elementos

teatrais, mais ele se reafirmaria enquanto arte popular, de massa, uma conclusão que carrega

uma forte posição político-moral (SONTAG, 1987).

Outro aspecto digno de nota é a criação de personagens no teatro e no cinema. Ainda

que a análise de Sontag esteja inserida no contexto americano de 1966 e que atualmente

muitas destas questões já tenham caído por terra, é interessante perceber o percurso histórico

16 Para efeito desta análise, se considera aqui o sistema estabelecido pelo palco italiano (1530), em que palco e

plateia se opõe frontalmente, essa última composta por diferentes espaços (plateia, balcões e galerias, para

diferentes públicos). Este sistema reproduz a estratificação social no contexto do espaço de representação,

induzindo à ideia literal de um único ponto de vista – a cena dramática como ponto de fuga da tela –, na

tentativa de neutralizar o pensamento crítico dissonante. 17 Interessante lembrar que na língua inglesa, se usa palavra “teatro” também para designar o espaço onde se

assiste a filmes cinematográficos. 18 Este contexto é válido para evocar a máxima de Marshall McLuhan que diz “o meio é a mensagem”,

deslocando o foco do conteúdo como elemento central da comunicação, para o meio de transmissão deste

conteúdo. “Uma pintura abstrata representa uma manifestação direta dos processos do pensamento criativo, tais

como poderiam comparecer nos desenhos de um computador. Estamos aqui nos referindo, contudo, às

consequências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões, na medida em que ampliam ou aceleram os

processos já existentes. (...) Este fato apenas serve para destacar o ponto de que “o meio é a mensagem”, porque

é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas. O conteúdo ou usos

desses meios são tão diversos quanto ineficazes na estruturação da forma das associações humanas.

(MCLUHAN,1974, p.22)

33

desta discussão. Segundo Sontag, Nicoll (1936) afirmava que, enquanto os personagens mais

bem talhados no teatro frequentemente eram caracterizados por tipos, no cinema havia uma

tendência à criação de personagens mais individualizados, sobre os quais o espectador seria

capaz de atribuir mais credibilidade e empatia. Em 1966, para aprofundar este aspecto, Sontag

introduziu a ideia da descentralização como elemento narrativo pego de empréstimo à técnica

comum da pintura e da fotografia (artes elementares do cinema) como responsável pelos

“momentos plástica e emocionalmente mais bem sucedidos, e os mais eficazes elementos de

caracterização” (SONTAG, 1987, p.106). E finaliza lembrando que o teatro também utiliza a

técnica da descentralização quando reforça a continuidade como regra para estabelecer

códigos coerentes para personagens e cenas que, possivelmente, podem levar à ideia da

criação de tipos. Ainda sobre a credibilidade, ou não, dos personagens em ambas as formas

artísticas, Sontag destaca o elogio à credulidade e à não-artificialidade do cinema em

contraposição à codificação da cena teatral.

De acordo com Nycoll, quando estamos em um teatro, “‘a falsidade’ da produção

teatral recai de todas as maneiras sobre nós, de modo que nos preparamos para não

exigir nada além da verdade teatral”. Uma situação adversa se obtém do cinema,

sustenta ele. Cada membro do público cinematográfico, não importa quão

sofisticado ele seja, está essencialmente no mesmo nível; todos acreditam que a

câmera não pode mentir. Como o ator de cinema e seu papel são idênticos, a

imagem não pode ser dissociada do que aparece na imagem. Experimentamos o que

nos dá o cinema como a verdade da vida. (SONTAG,1987, p.106)

Ora, se esta argumentação já encontrava pouca sustentação em 1966, quando Sontag

questionava a possibilidade do teatro vencer a barreira do artifício através do teatro ritual

enquanto intercâmbio entre o ator e seu público, o que dizer das recentes experiências do

teatro autobiográfico, pós-dramático ou teatro-performativo?

Em relação à questão da imagem propriamente dita, fica claro que neste momento

histórico ao qual se refere Sontag, o cinema guardava certa proximidade às artes de formas

fixas, como a pintura e a fotografia, talvez mais do que ao teatro da época (que apresentava a

mobilidade como característica). Neste sentido, o que caracterizaria a unicidade do cinema

não seria a imagem propriamente dita, mas a conexão entre elas, a ideia da montagem, do

sequenciamento dos planos, em contraposição ao teatro que se apresentaria de forma

evolutiva e orgânica diante do espectador. No entanto, basta pensar no esforço de invisibilizar

o processo técnico de captação das imagens no cinema, deixando fora de quadro todo e

qualquer elemento como equipamentos técnicos e operadores, e realizando uma montagem

que contribui para a naturalização de códigos de continuidade, formalizando uma pontuação e

34

um ritmo que visam garantir o domínio sobre a atividade do espectador. Seria uma forma de

inserir a ideia do espectador que tudo vê no teatro através da linguagem do cinema.

(AUMONT). Análoga seria a ideia do uso do espaço/tempo: o teatro é limitado ao uso físico e

contínuo do espaço e do tempo, enquanto o cinema encontra mais ferramentas para romper

estas barreiras, através da edição. No entanto, basta rememorar as experiências

contemporâneas no contexto da cena expandida para dissolver esta afirmação.

Historicamente houve um exercício de pensamento projetivo sem fim sobre a

supremacia de uma forma de arte em relação a outra, sempre de forma tendenciosa para qual

formato se pretende exaltar. Em seu artigo de 1966, Sontag trouxe como provocação a ideia

de que haveria muito mais pontos de convergência entre o teatro e o cinema do que

diferenciações. Como ilustração, ela cita Kracauer, que conta que, ainda no início do século

XX, o desenho de iluminação do filme O Gabinete do Dr. Caligari (1920) fazia alusão a uma

experiência realizada por Max Reinhardt em sua montagem cênica de O Mendigo, feita pouco

tempo antes e, da mesma forma, em relação inversa, o teatro criou o isolamento de um ator ou

de uma cena no palco através da iluminação estimulado pela técnica do iris-ring, e cenários

móveis para simular o deslocamento instantâneo da câmera. Ainda nos anos 60, a

convergência entre as mídias começa a tomar forma através das experiências de vídeo-arte e

das performances e desde o final dos anos 70, as projeções no teatro começam a ser cada vez

mais frequentes, remodelando a relação entre os artistas de cinema e teatro e, principalmente,

a experiência do espectador de ambas as artes.

Atualmente, o foco sobre as interferências entre o teatro e o cinema habitam a esfera

da cena expandida, conforme foi visto, principalmente no sentido de desenvolver o arcabouço

teórico e prático que dê conta destas experiências. O foco inclui também as percepções por

parte do espectador que detecta este hibridismo e se instrumentaliza para a absorção destas

obras, passando do espanto à naturalidade.

1.2. Teatro e cinema na cena contemporânea

Partindo do princípio de que a transposição do espetáculo teatral para a tela do cinema

nasceu ao mesmo tempo que o próprio cinema, sendo que este, por sua vez, se dedicou em

grande parte à adaptação de peças e textos teatrais para o desenvolvimento de sua linguagem

própria, é lógico pensar que as duas artes se interpenetram a ponto de a história evolutiva

destas formas artísticas somente poder ser analisada considerando os avanços técnicos – e

estéticos – de ambas as partes, de forma imbricada. Enquanto a linguagem cinematográfica

35

se desenvolve a partir dos avanços tecnológicos que possibilitam novos experimentos

estéticos, as formas teatrais acompanham esta evolução em sua permanente busca por

comunicação e conexão com o espectador. Ao diálogo de linguagens soma-se a intervenção

não só de formas derivadas, como a televisão e o vídeo de forma geral, mas de outros campos

ampliados de experimentação artística e, recentemente, das tecnologias da informação que

moldam a percepção do artista e de espectador de forma irreversível.19

Em meio à pesquisa que envolve o cinema e o teatro, atualmente, destaco duas formas

de hibridação dessas artes, bastante presentes entre seus realizadores e que servirão de balizas

principais para esta pesquisa: os filmes de teatro e a cineficação da cena. Ambos os conceitos

foram cunhados por Béatrice Picon-Vallin em seus estudos sobre a cena contemporânea e

procuram dar o contorno científico aos fenômenos que podem ser constatados na quase

totalidade de espetáculos teatrais e experiências cinematográficas que nascem no fazer

teatral.20 Ainda que hoje, após quase dez anos, as análises estejam defasadas em alguns

aspectos que tangem ao uso da imagem digital e seus efeitos de interatividade e conectividade

através da presença da Internet em espetáculos, no cinema e em todas as manifestações

artísticas, os conceitos cunhados ainda permanecem como uma das plataformas possíveis para

se pensar a hibridação entre teatro e cinema, especificamente.

Nesse contexto, o “teatro filmado”, ainda que tenha sido criado por André Bazin em

1951, como uma parte intrínseca do fazer cinematográfico, dada a natureza teatral de toda a

representação no cinema, passa a ocupar outro status no imaginário da sétima arte no século

XXI (PICON-VALLIN, 2008, p.151). Em paralelo, é justo pensar que o advento histórico do

encenador teatral no início do século XX é concomitante ao surgimento da imagem animada

do cinema e a formação estética deste encenador está naturalmente vinculada as suas

vivências e memórias dentro da sala escura, diante da tela, desde então. É como se o

encenador assumisse o ponto de vista da câmera em um plano geral, e procurasse, com os

recursos da cena teatral, dar conta amplitude de recursos que o cinema proporcionou. E, por

outro lado, cineastas de todos os tempos vêm suprindo suas fontes de criação com o teatro,

inspirando-se em suas formas, possibilidades sensoriais e estratégias de ilusão, além das

performances dos grandes atores, evidentemente. Há também aqueles artistas que

assumidamente trabalhavam sobre as duas plataformas concomitantemente, como Ingmar

19 “Princípios de interatividade e conectividade exigem novos paradigmas para a crítica da arte, tal como aponta

Couchot quando discorre sobre o modo como as imagens digitais estabelecem novas formas de interação entre

aqueles que as criam e as vêem. (LIRIO, 2016, p.38) 20 Tive acesso a esses estudos no livro A Cena em Ensaios (2008) e na entrevista Teatro híbrido, estilhaçado e

múltiplo: um enfoque pedagógico publicado na Revista Sala Preta (2001).

36

Bergman e Luchino Visconti, como foi dito, sem falar de Sergei Eisenstein que inaugurou a

interrelação das duas artes, considerando aspectos artísticos (direção de arte, roteiro, atuação)

e técnicos (câmeras, película, captação de luz, som e, especialmente, a montagem).

Para contribuir com a discussão acerca do teatro filmado, Picon-Vallin introduz uma

inversão de palavras, propondo o “filme de teatro”, um termo que, segundo a autora,

desnaturaliza a ideia genérica e superficial de que o teatro é um bloco único, que permite uma

única percepção estética.

Quando Robert Bresson condena o teatro no cinema em fórmulas definitivas – “Não

há o que esperar de um cinema ancorado no teatro” ou “Não há possibilidade de

união entre o teatro e o cinematógrafo sem o extermínio de ambos” – de que teatro

se trata? De uma ideia do teatro, de um teatro dominante e ultrapassado, do teatro

moderno ou, em realidade, da rotina de uma arte e de um certo tipo de atuação?

(PICON-VALLIN, 2008, p. 154)

Evocando o fato de que há pouca interrelação entre os criadores do cinema e da arte, a

autora propõe que, durante muitas décadas, a oposição entre teatro e cinema levou a muitas

análises catastróficas sobre a morte do teatro, e que seria preciso reconhecer que a disputa não

se daria mais nesta dualidade, haja vista a complexidade das mídias que se apresentavam.

Picon-Vallin, então, propunha que melhor seria pensar na crise que dividia o teatro e o cinema

de um lado, e o vídeo e o digital do outro, na disputa pela segmentação que teoricamente

garantiria a essencialidade de cada plataforma. Hoje esta dualidade está ultrapassada, é

impossível pensar o teatro, e mesmo o cinema, sem o digital, haja vista que a absorção da

imagem digital já se deu por completo na sociedade contemporânea, modificando as relações

humanas de forma irreversível e moldando novos formatos de criação e percepção da obra de

arte.

Sustentava a autora que, daquela forma, cinema e teatro passariam a pertencer a uma

mesma vertente estética, em “uma sociedade fundada na comunicação, na qual tudo deve

entrar em circulação mundial, em um movimento circular e em um turbilhão engendrado pela

multiplicação tecnológica dos procedimentos de reprodução e das superfícies de inscrição –

telas.” (PICON-VALLIN, 2008, p. 156). Neste contexto, o cinema estaria evocando o que

haveria de artesanal em sua essência ao aproximar-se do teatro, para diferenciar-se da

reprodução frenética e estéril de imagens que sequer guardariam um referente no mundo real,

como a imagem digital.21 Portanto, a oposição passaria a ser entre as experiências calcadas no

21 Segundo Philipe Dubois, a imagem digital seria a última etapa da trajetória da busca da imagem como

representação do real. Se desde as pinturas paleolíticas, o homem emprega sua téchnè no sentido de recriar a

realidade, visando subtrair ao máximo o hiato entre o mundo real e sua produção de imagens, é somente no

século XXI, com a imagem digital (ou informática, de síntese), produzida totalmente pela tecnologia, que este

37

real e aquelas produzidas na superabundância da reprodutibilidade em escala industrial,

pautadas, por exemplo, pela publicidade e pelo videoclipe, entre as muitas apropriações do

uso da imagem como ferramenta mercadológica de comunicação. Desta forma, o cinema

novamente assumiria seu caráter artesanal pela aproximação com o teatro, reforçando sua

posição como espaço criativo de produção de representações de mundo.

Como foi dito, no entanto, passada uma década desde que Picon-Vallin apresentou

suas análises, há que se considerar que o cinema é majoritariamente digital hoje, assim como

a maior parte das imagens produzidas e empregadas na cena contemporânea. Portanto, a

problematização entre teatro e cinema necessariamente envolve outras questões que miram a

intermidialidade das artes, posto que é na articulação entre os meios que está o cerne da

experiência estética contemporânea.

Para Isabella Pluta (2011), em seus estudos sobre a intermidialidade na cena teatral

contemporânea, as questões que se colocam acerca da presença das tecnologias em cena

apontam para dois caminhos: a relação entre as mídias e o teatro no plano estético e a relação

entre as mídias e o indivíduo dentro de uma coletividade no plano da cultura. No entanto,

ainda que assim se possa dividir, é na convergência destes dois aspectos, estético e cultural,

que se deve problematizar a criação de novos conceitos que caracterizem a cena

contemporânea, e esta convergência se materializa especialmente na figura do ator que

absorve a presença de todas as mídias através do jogo cênico e devolve ao espectador uma

experiência estética renovada. Ele torna-se, portanto, o operador técnico desta

intermidialidade, um decodificador, em um momento em que não há mais dúvidas sobre a

inclusão das novas mídias nas artes, nem sobre o entrecruzamento destas modalidades.

Momento este que, no teatro, é caracterizado pela cena expandida, como abordado

anteriormente. A compreensão do novo paradigma estético passa também pela consciência

sobre a organização da sociedade em rede como resultado da combinação entre as tecnologias

da comunicação e a interconectividade que elas permitem e que as retroalimentam. É dentro

deste contexto, portanto, que a intermidialidade na cena ultrapassa o contexto do início dos

anos 2000 – de onde Picon-Vallin teceu suas análises sobre teatro e cinema em verificação

aqui – e torna-se a própria marca, a condição da criação artística na cena atual.

Surge, então, a problematização sobre como desenvolver um pensamento reflexivo

que dê conta desta nova experiência estética: se, por um lado, há uma tendência a descrever a

ideal é alcançado, subvertendo a lógica vigente até então: a imagem deixa de ser uma reprodução do real, mas

torna-se um outro modelo de real, o qual se procura reproduzir. “Não há mais necessidade destes instrumentos

de captação e reprodução, pois de agora em diante o próprio objeto a se “representar” pertence à ordem das

máquinas. Ele é gerado pelo programa de computador, e não existe fora dele.” (DUBOIS, 2004, p. 47)

38

utilização dos equipamentos na cena em comparação aos dispositivos meramente teatrais ao

invés de analisá-los dentro do contexto do espetáculo, por outro lado, se pode incorrer no erro

de categorizar os espetáculos francamente intermidiáticos como um gênero teatral

segmentado e, novamente, limitar as reflexões por falta de ferramentas analíticas adequadas.

Há, portanto, que se ampliar este campo de análise para que estas experiências cênicas

possam ser compreendidas tanto pela perspectiva teatral quanto pela intermidiática. No que

tange à perspectiva intermidiática, Pluta propõe que se observe os elementos pelos quais esta

perspectiva se torna uma provocação que desafia a teoria da comunicação, posto que o

entrecruzamento deflagra mutações tecnológicas, artísticas e mesmo no plano da

comunicação. Nem sempre as mesmas ferramentas de análise servirão para dar conta de todas

as experiências técnicas e estéticas insurgentes, por isso o foco se desloca para a análise sobre

o suporte de visualização (tela, monitor, captador) e a própria imagem, na sua natureza

analógica ou numérica, concentrando-se na figura do ator onde a encenação está centrada, na

sua presença e na do público. Público este que é o primeiro a confrontar a influência da

tecnologia de visualização e sonorização em um espetáculo ao vivo (PLUTA, 2011, p. 58).

Assim, cada artista ou coletivo acaba por criar uma espécie de tipologia particular com o

entrecruzamento específico das mídias e dos atores, de forma que os espetáculos

intermidiáticos poderiam estar inseridos no campo do cinema e do vídeo posto que seus

limites transbordam o reduto do teatro.

Se faz mais que necessário procurar um novo quadro conceitual para o teatro que

facilitará a análise dos espetáculos no contexto do desenvolvimento espetacular das

tecnologias de ponta. Se estas páginas impressas pudessem adquirir uma dimensão

suplementar, a melhor solução formal desta obra teria sido um hipertexto concebido

como o espaço virtual e que permitiria ao leitor uma navegação e uma

simultaneidade do fluxo textual. Com pendências, nós nos contentaremos aqui de

nos interrogar sobre a metodologia que responde a este campo interdisciplinar,

reunindo os domínios artísticos e científicos, e conjugando métodos analíticos

diferentes. (PLUTA, 2011, p.61)

Apresentadas estas questões teóricas acerca da intermidialidade, retomo as

proposições de Picon-Vallin posto que elas são primordiais para fins da análise da pesquisa.

Em outras palavras, “filme de teatro” e “cineficação da cena” são conceitos que dão conta da

“tipologia intermidiática” adotada no Théâtre du Soleil.

Em sua análise, entre mais alguns elementos propostos por Picon-Vallin que ainda

encontram eco, em primeiro lugar está o fato de que a encenação de teatro é sempre

cineficada, não só pelo repertório estético do encenador, mas principalmente pelo apuro do

39

olhar do espectador, exercitado pelo cinema e pela fotografia no que tange à quantidade de luz

e ao foco na imagem, à alternância de planos e ao ritmo de montagem sequencial, e à própria

ideia de edição e corte das cenas. Em segundo lugar, a autora exemplifica a quantidade de

filmes de diversos gêneros (comerciais, experimentais) cujo tema é o teatro em si, sua rotina e

ambiente, ou mesmo textos clássicos do teatro mundial – Tiros na Broadway (1995), Os

Produtores (2006), Ricardo III – Um Ensaio (1996) e as versões fílmicas de Kenneth Branagh

para as peças de William Shakespeare, para citar alguns que foram produzidos à época de

produção daquele texto. Como visto anteriormente, essa vertente do cinema chega até os dias

de hoje com fôlego revigorado, basta se pensar no ganhador do Oscar de 2017, La La Land.

Em terceiro lugar, Picon-Vallin aponta a absorção pelo teatro de narrativas nascidas no

cinema, exemplificadas pela proliferação de filmes que recebem sua versão teatral, em

montagens no teatro bastante festejadas por espectadores e encenadores. Neste sentido, o

cinema abandona a chancela de obra de arte sintética, total, para inserir-se na cadeia de signos

que alimentam os processos criativos da arte contemporânea.

Dentro deste contexto, o filme de teatro nada mais é do que a certeza desta porosidade

entre as experiências artísticas, deflagradas em momentos de crise na percepção estética da

sociedade como um todo e que reafirma a horizontalidade entre os dois campos, reforçando a

inoperância da ideia de obra acabada, diante dos infinitos desdobramentos que guarda em si.22

O teatro reconhece sua natureza efêmera e sua força que repousam na emoção da experiência

compartilhada pelo coletivo teatral (artistas e espectadores), o que faz de cada apresentação

uma versão possível, mas não definitiva. Assim, a captação das imagens do espetáculo para a

edição em um filme produz apenas mais uma versão possível, evocando a perenidade da

natureza da linguagem cinematográfica também. Portanto, o filme de teatro valida-se como

uma obra híbrida que guarda sua natureza dual, especialmente quando ultrapassa seu caráter

de registro e ganha o status de filme, e funda uma plataforma outra que se insere na lógica da

multiplicação e da circulação da imagem sem perder de vista o seu original, materializado

pelo trabalho dos atores, em especial.

O cinema tem a ver com o teatro e vice-versa, o teatro representa um esteio contra a

armadilha naturalista, e a filmagem da imagem teatral cria as distâncias que

diminuem os efeitos de fascínio característicos da imagem cinematográfica. O palco,

como concretude e não como metáfora, impõe à câmera inúmeras limitações,

deixando-a acuada. No movimento de circulação que engloba pintura, foto, vídeo,

cinema, e no qual se produz uma equalização entre os diferentes tipos de imagens, o

teatro tem o seu lugar, a um só tempo à margem e em seu interior. (PICON-

VALLIN, 2007, p. 161)

22 Picon-Vallin cita as crises de 1920 e 1960.

40

Ampliando a análise sobre as relações entre teatro e cinema no que diz respeito à

encenação teatral, Picon-Vallin, evocando a fala de Meyerhold, que já em 1930 afirmava que

“somente um teatro que se cineficará poderá rivalizar com o cinema.” (PICON-VALLIN,

2011, p. 207), propõe o conceito de “cineficação da cena”. Esta ideia relaciona-se ao modo

como os procedimentos cinematográficos são absorvidos pelo teatro, através de duas

ramificações: externa e interna.

A cineficação externa engloba todos os procedimentos que permitem a inclusão do

aparato cinematográfico na cena, como telas, projeções de vídeo, projeção e elaboração de

imagens captadas ao vivo, e toda sorte de utilizações de imagens. Ela pressupõe, ainda, um

árduo esforço de pesquisa, no intuito de elaborar ferramentas que permitam que o uso destes

procedimentos seja cada vez mais orgânico, frequente e fluido.

Já a cineficação interna procura dar conta de como as técnicas do cinema são

absorvidas enquanto linguagem da cena. A ideia é que, mesmo sem a utilização de

equipamentos e tecnologias próprias do cinema, a cena teatral tende a absorver os aspectos da

linguagem cinematográfica, no intuito de aproximar-se desta estética da qual o espectador está

tão e cada vez mais familiarizado. A título de exemplo, Picon-Vallin cita a utilização do close

cinematográfico, reproduzido na cena através do foco sobre um ator conseguido pela

imobilidade dos outros atores/elementos em cena, pelo jogo de luz ou pelo espaço. Assim

como o movimento do travelling da câmera, pode ser produzido pelo ator que conduz o olhar

do espectador através da cena pelo seu movimento ou foco de atenção. Sobre este aspecto

específico, muitos exemplos serão citados, adiante, na análise do espetáculo Les Éphémères,

como elementos que resultaram do processo de cineficação interna, e que interferiram

diretamente no processo criativo dos atores e na percepção do espetáculo pelos espectadores.

Picon-Vallin avalia o quanto estes processos estão entrelaçados ao defender a ideia de

que tanto o espectador quanto o artista criador (ator, encenador) tem a estética do cinema

introjetada em seu repertório de linguagem, de forma que, inevitavelmente, ela delineia

muitos aspectos da sua criação. A autora propõe, ainda que, se em um primeiro momento, o

olhar do indivíduo seja adestrado pela estética televisiva, caracterizada atualmente, de forma

principal, pela edição e formato dos videoclipes e das séries televisivas – aqui penso ainda na

estética dos videogames e do conteúdo audiovisual produzido e consumido na Internet – é

justo pensar em uma formação artística para os jovens encenadores e atores que inclua os

grandes clássicos do cinema, com a finalidade de depurar seu repertório e seu olhar sobre a

cena e a interpretação. Indo além, a autora comenta como a visibilidade e o consumo de

41

programas de reality shows também alteraram o gosto do grande público, acostumando o

espectador à ideia de que ele pode estar virtualmente em outros lugares, “testemunhando” a

realidade da vida alheia. Importa perceber que a permanência dos reality shows no consumo

cultural do grande público, depois de quase vinte anos do seu surgimento, alinha-se à

experiência da interatividade e conectividade que a Internet proporciona e ao fenômeno das

redes sociais que alimentam a espetacularização do eu. Isto justifica, em certa medida, o

interesse pelo teatro “autobiográfico”, que traz à cena a biografia do próprio artista, e o teatro

“documental”, que procura se pautar pelo acontecimento factual que tem valor de verdade

histórica, ambos em franco desenvolvimento. Percebe-se que estas duas tendências também

problematizam o ato representativo e a presença do ator, e alinham-se à ideia do teatro

performativo.23 E todo este movimento deriva da presença da televisão e das ferramentas que

a Internet e suas plataformas de interatividade oferecem, interferindo no imaginário e

cotidiano da sociedade de forma irreversível, e possibilitando a utilização da cena como um

espaço de reflexão e crítica.

O teatro documentário está ligado à ideia de um teatro como espaço de “informação

alternativa” no mundo submerso por informações no qual nós vivemos, e que pode

organizá-las, pensá-las pelo viés do sensível, valendo-se de toda a prática teatral dos

séculos precedentes, das culturas populares ou estrangeiras. Ele apresenta também

formas muito diversas, facetas múltiplas. (PICON-VALLIN, 2011, p. 209)

A análise destes conceitos propostos por Picon-Vallin pode ser ilustrada através de

diversos espetáculos da cena contemporânea internacional e brasileira. Da obra de Peter

Brook, encenador contemporâneo à Ariane Mnouchkine, cujas pesquisas cênicas também se

ampliam ao âmbito do cinema, destaco a montagem, e posterior filmagem, de Marat/Sade,

espetáculo de 1964, criado a partir de pesquisas e experimentos do diretor com os atores do

Lamda Theatre voltados para a prática de improvisações, utilizando técnicas corporais e

respiratórias inspiradas nas proposições de Artaud (LIRIO).24 Conforme analisa a autora, a

proposta da montagem era pesquisar uma linguagem teatral que garantisse uma comunicação

real e mais ampla entre atores e público. Aos atores era conduzido um trabalho de

desconstrução de repertório pessoal físico para que estes alcançassem maior liberdade

artística, exercitando a capacidade de adaptação a mudanças e novos pontos de vista através

23 “Se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros permitindo-nos pensar a arte hoje, é evidente

também que a prática da performance teve uma incidência radical sobre prática teatral como um todo. Dessa

forma, seria preciso destacar também, mais profundamente, essa filiação que opera uma ruptura epistemológica

nos termos e adotar a expressão ‘teatro performativo’.” (FÉRAL:2009, p. 200) 24 O Lamda Theatre foi um grupo formado dentro da Royal Shakespeare Company, em Londres.

42

de técnicas de improvisação direcionadas. Neste sentido, o conceito de “espaço vazio”, caro

ao encenador, é experienciado no trabalho prático dos atores, convidados a uma constante

desconstrução e abertura para o novo. Essa montagem tornou-se um marco na trajetória do

encenador, ao inaugurar um trabalho experimental de pesquisa de linguagem que,

posteriormente, levou à criação do Centre International de Créations Theatrales (C.I.C.T.) em

Paris. Em termos de encenação, o espaço da cena era circular, compreendendo a interação

com o público, de forma ativa, dentro deste círculo, de forma que os atores pudessem, de fato,

interferir nas reações da plateia (LIRIO).

Ao transpor o espetáculo à linguagem do cinema, Brook se viu diante de impasses

técnicos como questões de espaço, tempo e reservas financeiras, ainda que utilizasse como

plataforma de trabalho a mesma pesquisa desenvolvida para o teatro (elenco e encenação),

que o levaram a conceituar a natureza dos dois meios de expressão artística.

Quando dirigira a peça, não buscara impor meu próprio ponto de vista à obra; pelo

contrário, procurara torná-la tão multifacetada o quanto pudera. Como consequência,

o público estivera continuamente livre para escolher, a cada cena e a cada momento,

os aspectos que mais o interessavam. É evidente, no entanto, que eu também possuía

minhas preferências e fiz, no filme, aquilo que um diretor de cinema não pode evitar,

que é mostrar aquilo que seus próprios olhos vêem (BROOK, 1992: p.250 in LIRIO,

2010, p. 8)

Ainda segundo Lirio, Brook apontou para a natureza da participação do espectador

diante das duas naturezas distintas de apreensão da obra: se no teatro o espectador tem a

liberdade de conduzir seu olhar por todos os detalhes da encenação, criando sua própria e

única “montagem” das cenas, no cinema só lhe resta uma maior passividade ao absorver a

edição proposta pelo cineasta. Ainda no contexto da análise sobre a participação do

espectador, Brook levantou a hipótese da absorção das imagens, colocando que a natureza

abstrata da encenação teatral conduz o espectador a preencher as lacunas com sua própria

imaginação, enquanto que diante do realismo das imagens cinematográficas, ao espectador só

resta a absorção do impacto da “literalidade das imagens” (LIRIO, 2010, p. 09).

No filme, assim como no espetáculo, a plateia também estava inserida, reforçando o

caráter de “filme de teatro” da obra, mantendo, também, a ideia de risco real que marcava a

encenação teatral. Se o trabalho dos atores transitava sobre uma imprevisibilidade calcada na

liberdade de movimentação e proximidade com o público, Brook, ao inserir grades entre

público e atores para a filmagem das cenas, garantiu que esta ideia de risco ganhasse

plasticidade e realismo também no cinema. E, no filme, o risco alcança seu ápice na cena

final, quando os atores literalmente destroem todo o cenário, filmada em um plano único, feito

43

por três câmeras, de modo a captar o momento e a materialidade da cena.

Também se destaca a montagem do filme que procura dar conta da experiência estética

teatral, através de planos curtos e de tomadas que focalizam todos os personagens, em ângulos

múltiplos, permitindo ao espectador desfazer a hierarquia entre imagens principais e

secundárias, assim como lhe é permitido no teatro. No mesmo sentido segue a iluminação do

filme, que utiliza-se dos elementos do próprio set para garantir a naturalidade da sua inserção

– é o jogo das cortinas que conduz a quantidade de luz de cada cena –, bem como a utilização

dos objetos de cena ocultados pelos atores que estão em cena praticamente todo o tempo.

Todos estes elementos, alinhados à captação das cenas de forma íntima e múltipla, que

culminam na catártica cena final da destruição de todo o ambiente, levam o espectador a

experimentar no cinema a sensorialidade própria do teatro de forma única. Isto marca

definitivamente a obra de Peter Brook como um exemplo ilustre dos “filmes de teatro” e a sua

relevância enquanto experiência estética para espectadores de cinema e teatro.

No sentido de ilustrar a amplitude dos efeitos da hibridação entre cinema e teatro,

recentemente, no Brasil, a diretora Cristiane Jatahy vem conduzindo experiências bastante

férteis neste território. Destaco, aqui, os últimos espetáculos da encenadora que desde 2005,

com o espetáculo “A falta que nos move ou Todas as histórias são ficção”, passou a pesquisar

os limites entre teatro e cinema, numa constante hibridação das duas linguagens, culminado

no espetáculo E se elas fossem para Moscou (2014-2015), um espetáculo-filme, ou filme-

espetáculo, apresentado ao público no Mezanino e Sala Multiuso do Espaço Sesc

Copacabana, Rio de Janeiro, simultaneamente como teatro e cinema. Neste espetáculo, a

diretora explora a fronteira entre as duas artes, com a captação de cenas da peça, ao vivo,

pelos atores, diante do público, editadas em tempo real e projetadas, simultaneamente, para

outro grupo de espectadores.

O espectador é testemunha de um presente construído em cena através da exposição

de dispositivos. Na versão teatral, o cenário é trocado a todo instante, são paredes,

estantes e porta móveis, sofás e mesas arrastados, mudanças de perspectivas. O palco

assemelha-se a um set de filmagem, com tripés e câmeras transitando pelos espaços,

captando gestos, momentos, depoimentos. As trocas são assumidas, lembrando a

todo momento que se está diante de um filme, realizado para aqueles que estão do

outro lado – metáfora da morte, prenúncio de futuro. O outro lado não é visível, é da

ordem do imaginário. Entretanto, na versão cinematográfica, o tempo teatral já é

passado. (LIRIO, 2015, p. 308)

44

1.3. O Théâtre du Soleil e sua dupla vocação como teatro e cinema

Ariane Mnouchkine cultiva os aparentes paradoxos. Nela muitas mulheres se

fundem. A líder da trupe que funda com seus colegas estudantes da Sorbonne, em

1964, a Sociedade Cooperativa aberta de produção Théâtre du Soleil e a escritora-

poeta de linguagem leve e doce; a cineasta extravagante de Molière e a

superintendente da Cartoucherie que não delega nada; a encenadora visionária e a

confessora-enfermeira dos atores; a professora e a chef gourmet; a general e a

menina; a militante e a hedonista; a santa e a aventureira. Quais adjetivos, quais

metáforas não foram empregadas por isto: rainha, papisa, leoa, sacerdotisa, ogra,

apaixonada… Ela é tudo isto e muitas outras coisas ainda, que ela não dirá. Uma

personalidade fora da norma, para uma trupe fora da norma. Um percurso fora da

norma. (PASCAUD, 2005, p. 212-213)

A trajetória do Théâtre du Soleil, a quinquagenária companhia de teatro francesa que

também flerta com o cinema, se confunde com a biografia de uma de suas criadoras, única

remanescente da formação inicial da companhia. Ariane Mnouchkine, a diretora de teatro

francesa que está à frente do Théâtre du Soleil há cinquenta e três anos, responsável por todos

os espetáculos desta companhia que já se apresentou nos cinco continentes e é considerada

referência no teatro contemporâneo mundial, reconhece que suas principais inspirações

artísticas sempre foram mais cinematográficas do que teatrais. Isto se deve, talvez, ao fato de

ela ter nascido em março de 1939, filha de um dos maiores produtores de cinema francês do

período pós-guerra, Alexandre Mnouchkine, e da atriz inglesa Jane Hannen, oriunda de uma

linhagem de atores britânicos. Apesar de pouco falar sobre sua mãe, Mnouchkine credita a ela

sua grande capacidade de contar histórias, enquanto seu pai ocupa lugar de destaque em sua

formação. A diretora cresceu acompanhando o pai nos sets de filmagem. Ela se recorda

especialmente de quando assistiu à filmagem da última cena de A Águia tem duas Cabeças

(1947), de Jean Cocteau, na qual a atriz Edwige Feuillère caía majestosamente por toda uma

longa escada e morria, tendo ficado encantada com toda a atmosfera tão excitante e vibrante

(PASCAUD). Foi, porém, em outro filme que percebeu o lugar que gostaria de ocupar

naquele mundo, Fanfan la Tulipe (1951), de Christian-Jacque com o célebre ator Gérard

Philipe:

Eu saía com ele às cinco horas da manhã; eu ajudava a pentear seu cabelo; eu me

metia em tudo; eu me preocupava com todo mundo, eu era repreendida. Mas eu

estava maravilhada, eu tinha a impressão de estar num navio no meio do oceano. E

eu ficava tão mais fascinada pelos técnicos, os especialistas – aqueles que “faziam” –

que pelos atores que, para mim, viviam numa espécie de Olimpo no meio dos

deuses. E eu não tinha vontade de viver no Olimpo! A aventura verdadeira estava no

lado da técnica, eu me sentia bem mais próxima daqueles artesãos que faziam o

milagre possível. Eu adorava ajudar a instalar os travellings, a empurrar um

caminhão na lama, a preparar os efeitos, a montar a cavalo. (PASCAUD, 2005, p.

41)

45

Este foi o ambiente no qual Mnouchkine cresceu, tendo vivido na primeira infância os

horrores da Segunda Guerra Mundial quando seus avós paternos, judeus russos denunciados

ao nazismo pela porteira do edifício onde moravam em Paris, foram assassinados. Embora ela

própria tenha assumido que não foi criada de acordo com a cultura judaica, sua ancestralidade

marcou a sua vida, dedicada a dar visibilidade às minorias, às questões da mulher, às vítimas

da discriminação, da violência política e da marginalização, através do ativismo pessoal e do

repertório artístico da companhia: em Méphisto (1979), sua adaptação para o romance de

Klaus Mann condenando a evolução do nazismo em Hamburgo em 1930; no melancólico

cemitério do cenário de La Ville Parjure (1994), ou nos genocídios retratados em L’Histoire

terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge (1985), em L’Indiade

(1987), em Le Dernier Caravansérail (2003) e, na forma de biografia em cena, em Les

Éphémères (2006).

Sua experiência no cinema envolveu a participação em muitos outros filmes como

L’Homme de Rio (1964), de Philippe de Broca, no qual colaborou na escrita do roteiro, e

também sendo homenageada pelo pai, inclusive no nome da sua própria produtora, Les Films

Ariane: “A cada momento da minha vida a única coisa que eu tive certeza absoluta foi que

meu pai me amava.” (PASCAUD, 2005, p.26). Foi através da paixão com que seu pai se

dedicava também ao cinema que Mnouchkine compreendeu a necessidade de conhecer e se

envolver com cada detalhe da produção, desde o roteiro até a montagem final do filme,

passando pelo set de filmagem. Esta forma de trabalhar foi absorvida pela diretora a ponto de

tornar-se, posteriormente, o próprio método de criação da companhia Théâtre du Soleil, no

qual não só ela, mas todos os integrantes se responsabilizam por cada detalhe da realização

dos espetáculos, confeccionando, eles próprios, cenários, figurinos, música, gastronomia e o

que mais fizer parte de cada empreitada.

Voltando a sua biografia, Mnouchkine, no entanto, percebeu que, mais do que o

cinema, o teatro seria seu espaço de atuação. Depois de conhecer as entranhas da sétima arte e

perceber o quanto aquele universo brilhante e mágico poderia esconder um mundo

autocentrado e hedonista – além de envolver muito dinheiro, o que o transformava em um

sistema industrial –, ela se voltou ao teatro, na expectativa de dar vazão a sua necessidade de

transformar o mundo, cercada de indivíduos que compartilhassem da mesma vontade. Quando

partiu para Oxford, em 1957, se deparou com uma forte atividade teatral amadora, sustentada

por jovens universitários envolvidos em seus primeiros projetos de encenação, como John

Mac Grath e Ken Loach, que acabara de se formar. Ali ela deu seus primeiros passos como

46

assistente de direção até que um dia, no ônibus, ao voltar de um ensaio de Coriolano, em que

era também figurante, sentiu um “amor à primeira vista”: “É esta a minha vida, eu pensei, este

jogo coletivo, entrar todos juntos em um navio que parte para longe, muito longe, descobrir

uma terra lendária e intacta” (PASCAUD, 2005, p.42).

Depois de voltar a Paris, em 1959, Mnouchkine fundou a Associação Teatral dos

Estudantes de Paris (ATEP), com o intuito de oferecer uma formação teatral aos estudantes e

montar espetáculos. Diante da oportunidade de montar Gengis Khan, de Henri Bauchau, e

ainda com pouca experiência, a diretora buscou inspiração na Ópera de Pequim, que havia

deixado fortes lembranças por sua apresentação durante o Teatro das Nações (1954-1968), e

montou o espetáculo com êxito. Surgiu aí o desejo de criar uma companhia profissional, o que

deveria acontecer dois anos depois, para que cada integrante pudesse terminar seus

compromissos com estudos e serviço militar. Neste período, decidiu viajar para a China, em

uma viagem iniciática, influenciada não só pela paixão à cultura asiática, mas também pelas

histórias que a tia paterna, Galina, contava, acerca do período em que ela e o irmão,

Alexandre, viajavam de trem pela Rússia durante a Revolução. A mais marcante das histórias

descrevia uma passagem na qual os dois irmãos, ainda crianças, puderam ver, da janela do

trem, no meio da noite, em plena neve, um batalhão de soldados de traços asiáticos, vestidos

com magníficos casacões dourados, montados em cavalos que trotavam ao longo dos trilhos

e, aos poucos, as crianças foram percebendo que todos os soldados estavam mortos,

congelados pelo frio. Esta visão foi determinante na vida de seu pai, mas também na sua,

criando associações permanentes com o imaginário da guerra, do apocalipse, do mistério das

viagens asiáticas. Aos 22 anos, sem conseguir o visto para entrar na China, Mnouchkine

acabou partindo para o Japão e, posteriormente, para Hong Kong, onde aprofundou seu

conhecimento sobre o teatro oriental, apaixonando-se pelo teatro Kabuki, que virou referência

em diversos de seus espetáculos (PASCAUD).

Após a viagem iniciática, Ariane Mnouchkine retomou o projeto de criação de uma

companhia profissional com alguns amigos, estudantes como ela, e fundaram o Théâtre du

Soleil, com a estreia de Pequenos Burgueses (1964), de Gorki, traduzido por Arthur Adamov.

Influenciados pelos ensinamentos de Jacques Coupeau, um dos primeiros a evocar a máscara

como ferramenta pedagógica em sua escola de atores vinculada ao Théâtre du Vieux –

Colombier, Mnouchkine e sua trupe mergulharam no universo das máscaras para o espetáculo

Sonhos de uma Noite de Verão, em 1967. Desde então, as máscaras passaram a fazer parte do

imaginário criativo da companhia.

47

Com a máscara, é preciso mostrar sem esconder nada, o público deve compreender

imediatamente, reconhecer. O ator deve abandonar o excesso, a gesticulação

frenética cuja energia leva à confusão. Não deve atuar duas coisas de uma só vez.

Procurar o andar, saber como entrar. Fazer paradas, fixar no espaço o desenho do

corpo e da máscara. Transpor o tempo cotidiano para o tempo teatral. (PICCON-

VALLIN, 2014, p. 100)

É importante ressaltar que no Théâtre du Soleil o uso das máscaras é feito respeitando

suas características físicas originais, evocando os personagens para os quais elas foram

confeccionadas em sua origem, tanto as italianas quanto as orientais (balinesas e japonesas),

uma vez que seus traços guardam informações valiosas sobre a fisicalidade e energia dos

próprios personagens, também na sua contra-máscara. No entanto, homens e mulheres podem

vesti-las e o aspecto ritual é deslocado dando espaço para a cena teatral acontecer através do

jogo e da improvisação. Desta forma também é usual ver na mesma cena máscaras de origens

diversas contracenando, desde que mantenham, entre si, as mesmas relações de hierarquia que

guardam em sua cultura original.

É sobre o palco do Théâtre de la Gaîté Lyrique, onde, convidados pelo Théâtre du

Chaillot, os balineses apresentaram La Sorcière de Dirah, que as duas companhias

se encontraram pela primeira vez diante da tradição uns dos outros. Depois de

dançar com seus companheiros mascarados, M. Pugra escolheu, entre as máscaras

trazidas por Stiefel, aquela do Pantaleão, transformou seu figurino e se pôs a dançar.

Stiefel conta: “Todos os seus movimentos e paradas estavam tão corretos, tão

verdadeiros, foi evidente e fascinante para nós todos. Uma verdadeira lição! Nós

estávamos absolutamente surpresos com a fraternidade das máscaras de tradições tão

diferentes!” 25 (PICCON-VALLIN, 2014, p. 105)

É possível enumerar alguns espetáculos icônicos da trupe francesa em que a presença

das máscaras ultrapassou o processo criativo, chegando à cena como estética e linguagem. Em

1999, a máscara pôde ser vista em Tambour sur la Digue que, como dito em seu subtítulo, é

uma “peça para marionetes encenada por atores”. Inspirada no teatro Bunraku, os atores

atuavam como verdadeiros bonecos, sendo, inclusive, manipulados por atores titereiros,

exatamente como manda essa tradição. Aqui a utilização da máscara foi radical, já que todo o

corpo do ator era recoberto por materiais que o enrijeciam, formalizando seus movimentos

como um todo e causando a impressão de que se estava diante de bonecos em tamanho real,

de fato. A transposição do espaço também seguiu a mesma linha, com a utilização de tecidos

e madeira para confecção de cenários e efeitos de cena, além de atores músicos executando a

trilha ao vivo, incluindo tambores coreanos.

25 Eirhanrdt Stielfel é o escultor responsável pela criação e confecção das máscaras do Théâtre du Soleil desde

1967, assim como de outras companhias.

48

Outros espetáculos anteriores também foram frutos de investigações verticais na

utilização da máscara como dispositivo criativo e estético como Os Átridas, de 1990 a 1993 e

o Ciclo Shakespeare, de 1981 a 1984, ainda que poucas máscaras viessem à cena, em meio a

atores caracterizados com visagismos acentuados, inspirados no teatro Nô.

No entanto, foi somente em 1975, no espetáculo L’Age D’Or, que as máscaras

ganharam a cena no Théâtre du Soleil, verdadeiramente. Na ocasião, a commedia dell’arte foi

não só a inspiração, mas a condição para a criação do espetáculo, uma tragédia sobre a

contemporaneidade.

Utilizamos a máscara porque imediatamente ela se impôs. Se atores que querem

improvisar no teatro contemporâneo não encontram rapidamente os meios de tomar

uma certa distância a fim de chegarem a uma forma, correm o risco de se

atrapalharem, de caírem no psicológico, no paródico, na zombaria e em outras

armadilhas que nós queríamos evitar. Percebemos que a máscara impunha um tal

trabalho sobre o signo teatral, sobre a maneira de representar as coisas, que ela

constituía uma disciplina de base e esta disciplina tornou-se disciplina tornou-se

indispensável para nós. (ASLAN,1999, p.23).

Imagem 4 - Ator em cena de L’Age D’Or (1975)

Data, portanto, desta experiência a utilização da máscara como o dispositivo

imprescindível no processo criativo da companhia, enquanto ferramenta de criação e

disciplina do ator, mesmo que nos espetáculos mais recentes suas influências estejam menos

expostas na encenação em si.

49

Eu dizia que a máscara era nossa disciplina de base porque ela é uma forma e

qualquer forma impõe uma disciplina. O ator produz no ar uma escrita, ele escreve

com seu corpo, é um escritor no espaço. Ora, nenhum conteúdo pode exprimir-se

sem forma. Existem várias formas mas talvez para alcançar algumas delas haja uma

única disciplina. Acredito que o teatro é um vaivém entre o que existe de mais

íntimo em nós, de mais ignorado, e sua projeção, sua exteriorização máxima em

direção ao público. A máscara requer precisamente esta interiorização e

exteriorização máximas. (ASLAN, 1999, p. 29)

Abro aqui um parêntese para analisar a essência da máscara no sentido de entendê-la

como disciplina de criação artística, como é o caso do Théâtre du Soleil. A máscara pode ser

pensada como o veículo entre o indivíduo e seu duplo, e, assim, possuir duas faces

produzindo uma terceira materialidade, testemunhada por aqueles que presenciam o ato,

atores e espectadores, lançando, portanto, as ideias de transe ou possessão. Há, neste sentido,

toda uma aura imaterial que circunda a experiência e é responsável pelo aspecto místico,

absolutamente visível e tangível. No entanto, existem questões técnicas que envolvem a

experiência e que não podem ser negligenciadas, visto que são através delas que toda a coisa

se dá. Tanto o portador da máscara quanto o seu observador experienciam sensações únicas

que remetem à presentificação do sagrado, em que novos elos são criados e consumados.

Para o portador da máscara, fica evidente a alteração da visão e da respiração, ambas

encurtadas, o que dispara uma nova fisicalidade em todo o corpo, evidentemente incluindo a

emissão vocal. No romance A Máscara de Apolo de Mary Renault, um trecho ilustra este fato:

O que aconteceu, Nico? O que há com o público? Sabe que cortou vinte versos e

improvisou o resto? Essa máscara tem buracos de olhos horríveis, também. Eu não

disse "Você não precisa representar para mim, amigo", o que bem poderia ser a

verdade. Mesmo com bons orifícios de olhos, não podemos ver senão em linha reta,

com as máscaras; para olhar para os lados, é preciso voltar a cabeça. Qualquer coisa

poderia ter acontecido, pelo que lhe era dado saber, fora de sua linha de visão, e

capaz de provocar a agitação da plateia. (RENAULT, 1985, p. 226)

Para os observadores é a sensação do horror e do fascínio pelo ser deformado que se

apresenta instaurando uma realidade transitória, da qual é impossível escapar. Este ser

estranho faz o observador lembrar-se de seu próprio duplo, grotesco e disforme, escondido e

encoberto por camadas de civilização e consenso, causando fascínio e repulsa. Por isso se

instaura o momento ritual que o observador percorre sem deixar de problematizar sua própria

condição. Finaliza, ele também, transformado pela experiência:

Então, o que é que se passa no momento do deslocamento, isto é, no momento exato

em que a ordem de percepção que existia até então é perturbada mas em que a outra

ordem ainda não foi estabelecida: esse momento de passagem da ordem de presença

à ordem de representação ou inversamente? Aparece um estado de instabilidade. Ele

transporta o sujeito perceptor entre duas ordens em um estado intermediário. Desta

50

forma, o sujeito perceptor encontra-se num umbral – o umbral que informa e marca a

passagem de uma ordem a outra. O antropólogo Victor Turner chamou o fato de

encontrar-se num tal umbral de “liminaridade” (TURNER, 1969).

Portanto, Mnouchkine passou a conduzir seus processos criativos utilizando a máscara

como dispositivo para alterar imediatamente a energia e a expressividade do ator em cena,

com o intuito de instaurar realidades outras e presentificar a epicidade dos seus espetáculos,

especialmente os que datam das primeiras décadas de existência da companhia. Esta vontade

de transformação pôde ser notada não apenas na pesquisa prática e no processo criativo,

englobando o trabalho de atores e demais artistas envolvidos, mas também nas escolhas do

repertório dramatúrgico e da encenação.

Também é importante ressaltar que, em seus processos de criação, ao lado da máscara

e de todo o dispositivo criativo que deriva do seu uso (a improvisação como método de

criação da cena, a forte presença de figurinos e adereços que “ampliam” a máscara na estética

visual dos atores, a dramaturgia como consequência do jogo da cena), Mnouchkine sempre

fez jus às suas origens e incluiu o cinema como fonte de inspiração dos espetáculos.

Durante sua infância e juventude, ela pôde assistir aos clássicos dos grandes cineastas

como Ford, Hawks, Minelli, Cukor, Chaplin e Keaton, “sempre nas tardes de quinta-feira”

(PICON-VALLIN, 2006, p. 46). E tanto estes quanto outros cineastas tiveram seus filmes

apresentados aos atores do Soleil, ao início de cada processo de criação de espetáculos, tendo

como foco os aspectos formais do cinema e, principalmente, o jogo e a atuação dos grandes

atores. O cinema mudo sempre foi uma fonte de inspiração especial por guardar uma forte

teatralidade na atuação dos atores, remetendo à expressividade que também se encontra no

jogo da máscara, assim como o cinema japonês. Nesta condição, o cinema surgiu como fonte

de inspiração e repertório artístico no universo criativo não só da diretora, mas de todo o

Théâtre du Soleil, tornando-se uma chancela do trabalho da companhia.

Importa ressaltar, no entanto que, ainda que o cinema figure entre as principais

inspirações para a criação da companhia e que Mnouchkine tenha obtido grande êxito com a

realização do seu primeiro filme Moliére ou La Vie d’un Honnête Homme (1978),26 durante

muito tempo ela resistiu a registrar seus espetáculos em vídeo ou filme, fato do qual se

26 O filme conta a história da vida de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Moliére, o célebre

dramaturgo, ator e encenador do teatro francês, tendo como pano de fundo a França do século XVII. Com quase

cinco horas de duração, foi realizado em dois anos de trabalho, com a participação dos atores do Théâtre du

Soleil e de outras companhias também sediadas na Cartoucherie, totalizando 120 atores, mais 600 figurantes,

1.300 figurinos e 220 cenários. Com roteiro e direção de Ariane Mnouchkine, o filme contou com a fotografia

de Bernard Zitzermann, direção de arte de Guy-Claude François, figurinos de Daniel Ogier e Françoise

Tournafond, música de René Clemencic e produção de Claude Lelouch. Recebeu os prêmios César de Melhor

Fotografia e Melhor Direção de Arte.

51

arrependeu tempos depois. No entanto, sua decisão era motivada pela ideia de que, diante dos

dispositivos da época, que capturam o tempo, qualquer filmagem ou gravação se tornaria uma

“traição” ao espetáculo em si (pois subtrairia o frescor do momento) e ainda pelo fato de que

os espetáculos, assim como as pessoas, envelhecem. Assisti-los após muitos anos traria,

então, mais sofrimento do que alegria, sobretudo pelo aspecto técnico da encenação e do

trabalho dos atores (PICON-VALLIN, 2006, p. 48).

O único espetáculo que fugiu à regra e foi filmado pela própria encenadora foi 1789

(1973), pois, naquela encenação, Mnouchkine enxergou a possibilidade de ir além do simples

registro do espetáculo, podendo jogar com diversos planos na montagem, e reconheceu a

necessidade de não deixar desaparecer um espetáculo já histórico pelo seu sucesso e grande

repercussão.

Após essa experiência, somente com Tartuffe (1995), as câmeras voltaram a estar

presentes no galpão da Cartoucherie, para o registro, não do espetáculo, mas do seu processo

de criação, desde o estágio para atores que antecedeu seus ensaios até o primeiro dia de

apresentação do espetáculo. O filme Au Soleil même la Nuit (1997), de Éric Darmon e

Cathérine Vilpoux,27 em harmonia com Ariane Mnouchkine, tornou-se um dos mais célebres

documentários sobre o teatro contemporâneo, onde se pode conhecer e compreender a fundo a

metodologia de criação do Théâtre du Soleil, envolvendo não só os processos artísticos dentro

da sala de ensaio, mas todas as etapas de criação técnica do espetáculo, em todas as

dependências do teatro. Nele se pode ver como são atribuídas as funções na companhia, como

se montam os figurinos, cenários, as reuniões na cozinha, as decisões de produção, de

escalação de elenco, de exigência e acolhimento, enfim, é um retrato preciso e precioso da

companhia.

É como o livro não escrito pela diretora da companhia (ela aparece genericamente

“em harmonia” com É. Darmon e C. Vilpoux) sobre as alegrias e adversidades, os

deveres e os riscos, as finanças e o cotidiano de uma vida consagrada a uma arte, o

teatro, à pesquisa inquietante, incerta, de suas leis. (...) Sobre a tela, a vida e a arte se

entremeiam sem romantismo, o espectador circula do palco ao escritório, das

cozinhas aos ateliês, dos bate-bocas aos encantamentos. É um filme de

aprendizagem como se fala de um romance. (PICON-VALLIN, 2006, p. 49)

27 Éric Darmon, um “cineasta-etnólogo discreto”, constante parceiro de Ariane Mnouchkine, também fez a

captação das imagens em Tambours sur la Digue (2003) e em Le Dernier Caravansérail (2006). Cathérine

Vilpoux, também parceira de longa data de Mnouchkine, trabalhou na edição dos filmes Tambours sur la Digue

(2003), Le Dernier Caravansérail (2006), Les Naufragés du Fol Spoir, além de roteirizar e dirigir o

documentário Ariane Mnouchkine – L’Aventure du Théâtre du Soleil. Por ocasião da vinda da companhia ao

Brasil, em 2011, para a turnê de Les Naufragés du Fol Spoir (Os Náufragos do Louca Esperança) que se deu

durante a montagem do filme do espetáculo, Cathérine Vilpoux acompanhou a companhia e participou do

lançamento e da primeira exibição de seu documentário no Rio de Janeiro, no Espaço Sesc Copacabana

(novembro de 2011).

52

Imagem 5 - Cartaz do filme Au Soleil même la Nuit.

Cartoucherie, Paris, 1997.

Houve duas circunstâncias paralelas que fizeram Mnouchkine mudar seu ponto de

vista, passando a criar filmes a partir de seus espetáculos: em primeiro lugar, ao assistir a

alguns minutos da montagem de O Inspetor Geral (1926) de Vsevolod Meyerhold,28 a

encenadora ficou absolutamente tocada diante da “prova” de que aquele espetáculo realmente

aconteceu, de que a beleza ali contida podia não somente ser lida nos livros, mas também

experimentada sensorialmente, depois de décadas; com isso ela se deu conta da importância

do registro dos grandes espetáculos para as gerações seguintes, especialmente estudantes e

jovens atores. Em segundo lugar, com o desenvolvimento das tecnologias de captação de

imagens, e sua consequente diminuição de custos financeiros, seria “menos impossível”

conseguir financiamento para que suas aspirações cinematográficas pudessem voltar às vias

de fato (PICON-VALLIN, 2006, p. 48).

A partir deste momento, as câmeras passaram a frequentar os galpões da Cartoucherie

com assiduidade e confiança de todos, e a escolha de rodar filmes a partir dos espetáculos

teatrais envolveu não só o desejo de eternizar o efêmero momento teatral, mas principalmente

servir como um espelho onde teatro e cinema se refletem e se entrelaçam. Os “filmes de

28 Esta montagem tornou-se célebre pelo trabalho de pesquisa que Meyerhold realizou na tentativa de fazer

ressurgir o projeto de Nicolai Gogol, que teve a peça censurada em 1836. A montagem apresentou um

surpreendente trabalho de composição de coletivo único, criando diferentes quadros de cores e luzes. A atuação

dos atores era totalmente partiturada, composta por jogos com objetos, movimentações acrobáticas e trabalho

coral, tudo sobre um plano inclinado.

53

teatro” do Théâtre du Soleil são de fato incluídos no seu repertório artístico, apresentando o

hibridismo das obras da companhia e sua comunicação autêntica e constante com o público.

Imagem 6 - 1789 – La Révolution doit s’arreter

à la perfection du bonheur em turnê.

Tendo em mente os dispositivos de criação da companhia, que transitam entre o olhar

teatral e o cinematográfico, sempre houve, em paralelo, uma atenção ao espaço da encenação

em toda a sua arquitetura, incluindo aí o hall de acolhimento ao público, como predisposição

essencial do processo criativo de cada espetáculo como um todo. Desta forma, cada uma de

suas obras teatrais tornou-se potente na geração de diferentes ambientes de interação e fruição

do espectador.

Como exemplos dessa criação de ambientes estão os tablados elevados de onde os

atores interagiam com o público em 1798- La Révolution doit s’arreter à la perfection du

bonheur (1970), as dunas de L’Age D’Or (1975), ou mesmo, as arquibancadas bifrontais de

Imagem 7 - Cena do espetáculo Les Éphémères,

no Sesc São Paulo, em 2007

54

Les Éphémères. Outro elemento é a decoração original e única que é realizada nos galpões de

acolhida ao público a cada espetáculo, onde são vendidas refeições (cujo cardápio segue a

temática da peça), além de objetos e livros, criando um ambiente imersivo único a cada vez.

Ao realizar uma análise cronológica do repertório da companhia sob o enfoque do

espaço, é possível distinguir o tipo de espaço cênico mais utilizado, sendo que a relação ator

versus espectador proposta pelo palco italiano foi a de maior preponderância durante as cinco

décadas de trabalho. Isso se deve, provavelmente, à adequação ao processo criativo habitual

da companhia, que parte de técnicas de improvisação com máscaras e que, portanto,

pressupõe a frontalidade para sua recepção. No entanto, como foi dito, a partir dos anos 2000,

novos caminhos de pesquisa se apresentam à companhia.

Imagem 8 - Cena de L’Age D’Or. Cartoucherie, Paris (1975).

Foi, de fato, através da realização do filme Tambours sur la Digue (1999) que a

companhia entrou em um outro sistema de criação de espetáculos. Nesta experiência, a

“tradução” do espetáculo para a linguagem cinematográfica foi o gatilho pelo qual se abriram

as portas de um novo universo criativo e estético no trabalho da companhia.

No artigo Le Cinethéâtre d’Ariane Mnouchkine (2006), Beatrice Picon-Vallin

apresenta uma análise detalhada dos mecanismos de adaptação utilizados na filmagem deste

espetáculo e em Le Dernier Caravansérail (2003) e introduz os elementos cinematográficos

presentes na montagem teatral de Les Éphémères (2006). Faço-me valer deste estudo para

expor alguns mecanismos como ilustração desta nova etapa dos trabalhos do Théâtre du

Soleil, que pressupõe uma intensa interlocução entre o teatro e o cinema.

Segundo a autora, o primeiro desafio que se apresentou foi como filmar o espetáculo

com a ausência do público. A resposta a isto seria descobrir um dispositivo específico capaz

55

de transpor à tela a extrema radicalidade do espetáculo teatral.29 Assim, ao invés de procurar

um tratamento cinematográfico, Mnouchkine optou por acentuar a teatralidade do espetáculo,

lançando mão de determinados artifícios. Distanciando ainda mais a organicidade dos atores

do trabalho sobre as marionetes, ela os dirigiu de forma que aqueles que estavam em cena

seriam dublados pelos que estavam fora dela – com isso, inclusive, registrou-se uma etapa do

processo de criação do espetáculo, quando os atores fizeram este tipo de exercício

pesquisando a fisicalidade das marionetes. Complementando esse artifício, em um segundo

momento, Mnouchkine filmou os atores dublando a si mesmos diante do próprio filme pré-

montado, vestidos de preto como os atores/titereiros que os “manipulavam” em cena

(tornando-se os kokens da voz), e montou as diversas cenas em planos alternados, reforçando,

assim, a teatralidade da obra através dos dispositivos do cinema. Este efeito de profusão do

teatro também provém da multiplicação de relações entre as figuras do espetáculo no filme:

atores são marionetes na cena, suas expressões vocais descoladas, relacionam-se com suas

próprias imagens na tela e com seus titereiros. Soma-se a isto a diferença de iluminação entre

o teatro e o cinema, sendo que, neste último, o efeito que se consegue parece transformar o

rosto humano coberto de maquiagem, realmente, multiplicando-se os sentidos.

Outra adaptação realizada diz respeito ao cenário e aos efeitos teatrais conseguidos

com simples movimentações verticais de grandes telões de seda pintada. No cinema, este tipo

de “descortinamento” não causa o efeito pretendido e a solução foi transpor estas

movimentações para o chão do teatro, acentuando uma vez mais o espaço teatral ao privilegiar

o palco e o jogo dos atores sobre este.

Por fim, houve a necessidade de transposição na direção dos atores. Se a peça

alcançava determinados climas para cada cena completando a fisicalidade das marionetes com

elementos teatrais – como tecidos vermelhos que revelavam a paixão entre os personagens – o

filme exigia alguma dose de realismo no jogo para suprir o grau de verossimilhança que o

espectador do cinema espera. Neste sentido, por exemplo, uma cena de amor entre dois

enamorados abraçados ao mar transformou-se em um caloroso beijo debaixo d’água.

Importa reforçar que todo o filme foi feito no próprio galpão do teatro que inclui a sala

de espetáculos e o hall do público, sendo que a plateia em degraus foi toda desmontado para

dar lugar à plataforma que abrigaria os equipamentos e equipe técnica de filmagem. Assim, as

entradas e saídas, caras ao teatro, foram substituídas por jogos de distância e aproximação das

29 Tambours sur la Digue (1999) é um espetáculo onde os atores interpretam e interagem como marionetes que

vivem uma “história antiga”, inspirados pelo teatro Bunraku (estilo japonês de teatro onde bonecos, com quase

o tamanho real de um homem, são manipulados por diversos titereiros).

56

câmeras, garantindo a transposição do movimento cênico, de um formato a outro. Todos estes

artifícios e adaptações foram resultado do intenso trabalho de pesquisa tanto da companhia

quanto da equipe de filmagem: se os atores assistiram a diversos filmes japoneses para

encontrar a tônica do espetáculo (complementando a viagem pela Ásia em que todos os atores

puderam conhecer diversos gêneros de teatro oriental), a equipe de filmagem assistiu a filmes

de teatro como A Flauta Mágica (1974) de Ingmar Bergman e Tio Vânia em Nova York

(1994) de Louis Malle. Na etapa final de edição e tratamento, alguns planos tiveram a cor

modificada para sépia, ao passo que o som ganhou diversas camadas como a trilha sonora

incidental executada pelos próprios atores, uma narração da própria Ariane Mnouchkine e os

diálogos dos atores que, em alguns momentos, são transformados em pequenas legendas sobre

a imagem. Assim como a invenção de uma estética “bunraku” própria no espetáculo, o

resultado desta empreitada foi a realização de um filme que inventa sua própria estética de

“animação” cinematográfica e guarda, em sua essência a mesma centelha de pesquisa artística

verticalizada da companhia (PICON-VALLIN).

A questão do tempo é uma tônica no Théâtre du Soleil. Ao passo que, na realização

dos espetáculos, Mnouchkine frequentemente afirme que o único luxo de que a companhia

dispõe é o tempo (ela se permite adiar a estreia o quanto for necessário para que o espetáculo

alcance o amadurecimento para ir a público, estendendo-se às vezes por até oito meses de

ensaio), no cinema há a equação tempo versus custos de manutenção de equipamentos e

pessoal. Isto é parcialmente resolvido com a transformação da Cartoucherie em set de

filmagem, ainda que isto traga consequências estéticas que exigem um apuro maior quanto à

decupagem dos planos. Porém, novas possibilidades são abertas a cada filme.

Em Le Dernier Caravansérail (2003), espetáculo seguinte, a companhia, já habituada

a presença das câmeras em seu espaço de trabalho, fez um novo uso do audiovisual: as

improvisações propostas pelos atores passaram a ser registradas em gravações de vídeo e este

material tornou-se plataforma de estudo para todos. Nestas gravações, atores e diretora

puderam avaliar com precisão os pontos positivos e negativos de cada trabalho e discutir

soluções para a cena que passavam não só pela qualidade de atuação dos atores, mas de

composição plástica da encenação, constituindo-se um novo paradigma para o fazer teatral.30

30 Sobre isto Ariane Mnouchkine comenta como o vídeo permite uma etapa totalmente nova ao trabalho de

composição teatral, pois, se em anos anteriores, quando somente o registro de som era possível, as cenas

gravadas apresentavam algum silêncio, era impossível saber o que estava se passando na cena. Com o recurso

do vídeo esta questão fica totalmente solucionada, pois tudo está ali – palavras, gestos, ritmo, cores, jogo,

espaço –, de modo que os atores têm uma base sólida para retrabalharem as cenas, não mais com o olhar

narcisista próprio do ator, mas quase como encenadores (PICON-VALLIN, 2006, p. 54).

57

Neste movimento de alargamento das ferramentas para o fazer teatral entram em cena,

também, os computadores, que se tornaram cada vez mais frequentes no espaço de ensaio,

assim como toda a tecnologia presente (luzes, microfones, etc), agilizando a organização e o

compartilhamento de materiais de arquivo para inspiração, e permitindo a atualização e edição

de textos em tempo real, o que conferiu um frescor e uma vivência nunca antes experimentada

na sala de ensaio.

Ainda segundo Picon-Vallin, a partir destas novas bases de trabalho, Le Dernier

Caravansérail (2003) tornou-se o mais cinematográfico dos espetáculos da companhia. A

utilização de praticáveis móveis com cenários e atores sobre estes, como metáforas para os

movimentos migratórios de refugiados que compunham o tema do espetáculo, na verdade

reproduzem na cena teatral o movimento de travelling das câmeras, criando planos abertos e

fechados, zooms e diferentes enquadramentos através de portas, janelas e escotilhas. Todo o

cenário das cenas foi fabricado pelos próprios atores atendendo às necessidades que surgiam

durante as improvisações, assim como as projeções de pequenos textos de tradução entre os

diversos idiomas que compunham as cenas, fazendo alusão ao cinema mudo.

No entanto, ao imaginar o filme do espetáculo, Mnouchkine lançou mão de outras

ferramentas cinematográficas que não as que já compunham a cineficação interna. Fazendo

uso das facilidades de uma DV Cam PD150, do programa FinalDraft e de um computador, a

encenadora/cineasta realizou três semanas de preparação e ensaios em que pôde resolver

oitenta por cento dos problemas da transposição do espetáculo para a tela, com a ajuda dos

atores que já propunham as soluções em termos práticos (PICON-VALLIN, 2006, p.55). Com

isto ela diminuiu consideravelmente o tempo de filmagem, mantendo o clima de criação

artesanal também com a equipe de cinema, composta por parceiros de longa data.31 Picon-

Vallin destaca a semelhança entre as visões de Peter Brook e Ariane Mnouchkine sobre a

diferença entre os trabalhos do encenador e do cineasta.

Um diz: “O encenador faz parte de um coletivo onde o objetivo essencial é fazer

circular uma certa corrente na sala, enquanto que o cineasta mostra alguma coisa de

31 Sobre isso reproduzo um pequeno trecho da carta de intenção do filme, posterior à montagem em teatro: “Le

Dernier Caravansérail (Odyssés) já existe. É um espetáculo de teatro, criado em 2003 pelo Théâtre du Soleil. É

uma série de histórias, de migalhas de destinos, de partes da vida de homens e mulheres. Le Dernier

Caravansérail (Odyssés) deseja virar um filme, agora, um verdadeiro filme. De cinema. Não se trata de realizar

uma simples captação, mas de colocar-se à disposição para viver uma nova aventura artística e, graças ao

cinema, aprofundar ainda mais o material original e quase inesgotável. De oferecer também ao teatro as

possibilidades de reforçar a potência de seu testemunho e amenizar sua efemeridade. E sobretudo de cumprir a

promessa feita àqueles que nos contaram suas histórias: lhes passar a palavra. Deixar um rastro daqueles que

não o podem fazer, daqueles de quem não escutamos nem os gritos nem os murmúrios. Aqueles que nós

calamos, sempre.” (PICON-VALLIN, 2006, p.55).

58

pessoal a cada instante.” A outra: “A direção no cinema não tem o caráter coletivo

do teatro, a câmera pertence ao diretor, não a dez pessoas.” (PICON-VALLIN, 2006,

p. 56)

Uma questão que surge nesses esforços de adaptação de uma mesma obra entre o

cinema e o teatro é a utilização do espaço vazio. Se no teatro, o espectador foi treinado, por

séculos, a preencher os vazios da cena com sua própria imaginação, quando o espaço vazio

porventura surge na tela de cinema, o espectador pode vir a se descolar da narrativa

apresentada, justamente por não ter âncoras verossímeis nas quais se apoiar. Portanto, o

esforço em resolver esta questão baseia-se em encontrar as imagens certas, tanto no teatro

quanto no cinema, de forma que o espectador possa ter experiências equivalentes, diante de

abordagens diversas, considerando os vazios presentes na imagem e na montagem.

A filmagem de Le Dernier Caravansérail apresentou diferentes respostas aos

problemas específicos que surgiram diante da natureza do próprio espetáculo, composto por

três tipos de momentos – cartas introdutórias, testemunhos e documentos e as “óperas”.32 Se

as cartas introdutórias, explicando as premissas do espetáculo e endereçando-se a todos

aqueles cujas histórias estariam representadas, serviam como plataforma para a translação dos

espectadores entre o tempo/espaço cotidiano para a cena, no cinema isto não funcionou. Por

isso, o filme se inicia diretamente na primeira cena, onde a ação dos refugiados em plena fuga

se dá em primeiro plano. Desta forma, uma das cartas passou a estruturar o filme como um

todo, através de uma narração que fez a “costura” entre as cenas e ofereceu os espaços de

respiro ao espectador, assim como as “óperas” no teatro. No entanto, essa solução surgiu já

durante a montagem do filme, de forma que uma nova questão se impôs: qual imagem deveria

acompanhá-la? A solução foi filmar a mão de uma “tradutora” ao escrever em persa, a carta

lida em francês (narração em off), o que acabou conferindo um grau maior de intimidade com

o tema e com o espectador do filme. Por vezes, estas imagens foram superpostas às cenas dos

atores, trazendo um ambiente fantasmagórico ao filme, como se aquelas palavras escritas

tomassem a forma de ação imediatamente e reforçando o hibridismo entre o teatro e o cinema

(PICON-VALLIN, 2006, p. 61).

Em relação aos testemunhos e documentos dos refugiados, a questão que se impôs foi

como transpor as longas cenas com textos ditos e projetados sobre as cortinas de fundo do

teatro com o palco vazio, para a linguagem do cinema que não suporta a voz em off por

longos períodos. A solução encontrada foi filmar cada ator representando os verdadeiros

32 As “óperas” eram momentos do espetáculo em que os atores se ocupavam de tarefas teatrais, varrendo o

palco, transportando, empurrando e deslocando praticáveis e objetos, arejando o espectador entre as emoções

específicas de uma cena e outra. (PICON-VALLIN, 2006, p. 58)

59

emigrantes, em diversas línguas, não em formato de falso documentário, mas criando

pequenos contextos para cada momento: a leitura de um poema em um café, a escritura de

carta em um jardim, etc., re-teatralizando estes momentos, chamados também de

“experimentos”. Para que a despersonalização das testemunhas/personagens no teatro fosse

mantida no filme (oferecendo aos espectadores a chance de preencher com seu imaginário os

espaços vazios, potentes de sentidos), os atores eram filmados frequentemente de costas ou

perfil, ou na contra-luz, ou, ainda, em movimento, estando sempre presente na cena um

gravador ou microfone, reforçando a ideia de dar voz aos inaudíveis.

Quanto à questão dos praticáveis móveis no set de filmagem, mais uma adaptação foi

necessária. Das tantas plataformas que formavam o cenário do espetáculo, apenas alguns

menores foram mantidos para a filmagem das cenas, geralmente aqueles que transportavam os

atores de um lado a outro. Neste sentido, os atores propulsores tiveram a sua ação original

diminuída, apesar de estarem presentes às cenas como um coro, observando com atenção o

que se passava, contribuindo para o foco de concentração da câmera e, mais uma vez,

teatralizando o plano filmado. Algumas cenas também tiveram que sofrer maiores adaptações,

especialmente aquelas situadas nas cabines telefônicas – cenas frequentes em que os

personagens se comunicavam com parentes e amigos distantes. Por serem espaços muito

exíguos, estes cenários não comportavam a presença da câmera e equipe, além dos atores, e as

soluções de enquadramento vieram através de movimentação das câmeras, inclusive

utilizando uma grua especialmente confeccionada para estas filmagens pela equipe de

cenotécnicos do Théâtre du Soleil. Assim também foram solucionadas outras questões que

surgiam ao avançar de uma cena a outra, trazendo à cena cinematográfica um pouco das

trucagens artesanais dos filmes do primeiro cinema (PICON-VALLIN).

Nas primeiras exibições do filme, houve quem sentisse falta dos praticáveis móveis,

uma marca muito forte da encenação, ainda que pela movimentação contínua dos atores

diante da câmera, se possa deduzir a presença e utilização destes. Diante disto, é curioso

pensar como a hibridação entre cinema e teatro é cada vez mais marcante na cena de

Mnouchkine: no teatro, o que impressionou o público de forma indelével foi a presença destes

praticáveis móveis que faziam clara alusão ao travelling do cinema; no filme, são as trucagens

artesanais e as soluções teatrais das encenações e do trabalho dos atores que reforçam a

identidade da obra.

Porque quando plataforma e câmera movem-se juntos, os atores/propulsores usam

um figurino preto (e escondem seus rostos sob véus negros). Este figurino, ao torná-

los invisíveis, reencontra a referência ao teatro japonês e aos “kokens”... A lenta

60

rotação da plataforma-cabine (telefônica), carregada de suspense e também geradora

de uma emoção específica, liga os esforços comuns das ferramentas das duas artes.

(PICON-VALLIN, 2006, p. 65)

Para que se alcançassem os mesmos efeitos que o espetáculo causava no espectador, a

equipe de cinema também fez alguns acréscimos, pequenas cenas, detalhes, novos

personagens ou planos gerais que contribuíram para que a narrativa do filme ganhasse a

intimidade ou a clareza da encenação teatral. Esses acréscimos tinham também a função de

abrir janelas no filme, criando tempos para que o espectador ampliasse suas condições de

observação e fruição. Um exemplo disto é a cena intitulada Les Cinéphiles (Os Cinéfilos, em

tradução livre), em que um pai e uma filha assistem animados à projeção de uma bobina do

filme O Garoto, de Charles Chaplin (no teatro e no cinema só se pode ver de qual filme se

trata através da luz projetada em seus rostos e pela música inesquecível).33 Assim se passa a

cena: um vizinho chega em sua casa e lhe entrega a bobina de La Nuit du Chasseur (O

Mensageiro do Diabo), de Charles Laughton, enumerando todo o elenco do filme, o que os

deixa vibrantes, e se vai. Nas paredes da casa se pode ver, entre outros, o cartaz de Rome ville

ouverte (Roma, Cidade Aberta) de Roberto Rosselini. Então eles são avisados de que os

talibãs estão a caminho, porém só há tempo da filha se esconder. Após um curto diálogo o pai

é assassinado pelos talibãs que colocam fogo no local, em especial no cartaz e nas bobinas de

filmes, depois de também atirar no “diabo-projetor”, que apesar do golpe insiste em projetar o

filme de Chaplin, sobre o pai, agonizante. A essa sequência no cinema, foi acrescentada uma

curta cena de O Garoto, encerrando esta passagem (PICON-VALLIN). Neste exemplo

também fica claro o quanto o espetáculo é influenciado pelo cinema, não só nos aspectos

técnicos, mas também como referência temática e estética.

Ao assistir ao filme fica claro também como supostas oposições se esvanecem diante

da experiência do espectador: plantas verdadeiras convivem bem com suas versões em

plástico do cenário, recursos teatrais conferem identidade às cenas filmadas, momentos

documentais se entrelaçam a cenas de ficção com naturalidade.

O rugido ensurdecedor e incessante do rio enfurecido, como no teatro, cobre a

imagem (no filme) e lhe confere uma dose de realidade. O imenso pano pode ser

agitado como ondas irregulares inquietas que o incham, ele pode também deslizar

rapidamente entre as mãos da brigada dos efeitos especiais. Quando, nesta

manipulação fluida, se associam o rugido e as nuvens de fumaça projetadas em

segundo plano, ou o obstáculo de uma rocha, o espectador vê a água, e a corrente,

33 Les Cinéphiles foi uma cena inspirada em um documentário sobre a cinemateca de Kabul, onde os

funcionários emparedaram os filmes para salvá-los dos talibãs, dispostos a destruir tudo (PICON-VALLIN,

2006, p.47).

61

fria, ameaçando, espumando: tudo tornando-se maravilhoso, ele esquece a seda, para

a reencontrar um pouco mais tarde, sem desconforto. Se agita o pano como o rio, da

convenção aceita pela ilusão, do teatro ao cinema, em uma sutil alternância ou talvez

as duas artes parecem se confundir. “Eu acho que existem em Le Caravansérail

coisas que são um novo gênero: você vê as cordas do teatro, mas é cinema”, dizia

Ariane Mnouchkine durante a montagem. (PICON-VALLIN, 2006, p. 67)

Ainda conforme a análise de Picon-Vallin, outros aspectos interessantes podem ser

destacados sobre a transposição do espetáculo em filme. Em relação às cenas de ação, não se

lança mão de “artilharia pesada” ou grandes efeitos. Basta, por exemplo, o som de um

helicóptero sobrevoando para que atores e espectadores acreditem em sua existência (fora do

enquadramento da câmera) e aceitem a imersividade a que são convidados. Em relação a

enquadramentos de câmera, na versão do espetáculo, as cenas ofereciam visões

cinematográficas ao espectador. Portas, janelas e o próprio plataforma em movimento

contínuo traduziam os planos à linguagem teatral. No filme, a decisão foi a de acentuar tal

estética, de modo que os enquadramentos se mantiveram e reforçaram a sensação de

confinamento e constrição das figuras em cena. Estes também serviram como molduras para

momentos em que a tela era dividida por duas cenas, reforçando a ideia do jogo. O jogo

teatral, no entanto, está presente em todo o filme, sem que o espectador tenha tempo para

distanciar-se de modo a analisar todos os elementos: em qual língua determinada cena foi

feita (os atores utilizaram as línguas de suas diversas nacionalidades, muitas vezes alternando-

se entre si, em uma verdadeira Babel), o quanto há de teatro no filme, quais os detalhes do

trabalho dos atores, ou figurinos e maquiagens, que levam o espectador à identificação com a

situação e sua decorrente emoção?

Le Dernier Caravansérail, portanto, marca uma nova etapa do trabalho da companhia

no que concerne à utilização de documentos reais atrelados à ficção, à transformação de

figuras reais em personagens, de utilização do espaço e do movimento na cena, do parentesco

entre o teatro e o cinema. Na versão fílmica, o objetivo principal era que este formato pudesse

conter em si as duas possibilidades de afetar o espectador: a teatral e a cinematográfica. Ainda

que tenha sido impossível desvencilhar-se da ideia de filme de teatro, enxergam-se traços

absolutamente cinematográficos no filme.

Naturalmente essas pesquisas se prolongaram alcançando o espetáculo seguinte da

companhia, Les Éphémères (2006), que foi sendo concebido enquanto ideia e visão durante as

filmagens e montagem de Le Dernier Caravansérail. Nas próximas páginas me proponho a

analisar detalhadamente o processo de criação de Les Éphémères, justamente através dessas

imbricações entre teatro e cinema na pesquisa da companhia.

62

Portanto, o entrelaçamento do teatro ao cinema nos espetáculos recentes da companhia

não se deu de forma planejada. Todos estes aspectos estão de alguma forma ligados às

pesquisas práticas que trouxeram a linguagem cinematográfica à cena teatral (e vice-versa),

instaurando uma nova etapa no trabalho da companhia. Fazendo uso da ideia de cineficação,

proposta por Picon-Vallin (2011), que consiste na apropriação pelo teatro de alguns elementos

do cinema, é possível verificar ao longo dos trabalhos da companhia, a co-existência das duas

vertentes expostas pela autora: a externa, caracterizada pela utilização das tecnologias de

projeção e captação de imagens no espaço teatral, e a interna, que implica na utilização das

técnicas cinematográficas para a construção da cena. Não por acaso, a ferramenta pedagógica

de base da companhia é o jogo das máscaras, que provoca a criação de estruturas narrativas

simples e diretas, presentes também nos filmes do “primeiro cinema”. Tais filmes são a

própria transposição do teatro da época para a nova mídia que se apresentava. Constata-se,

portanto, uma superposição de referências, nas quais o teatro e o cinema perdem suas

fronteiras.

O Théâtre du Soleil desenvolveu um repertório de espetáculos que reflete, ao mesmo

tempo, a dedicação e a paixão pelo teatro artesanal, de pesquisa, laboratorial, e a estrutura

próxima ao esquema empresarial que gerencia uma empresa criativa, e envolve, atualmente,

mais de 70 pessoas entre artistas, técnicos e pessoal de escritório, tendo apresentado suas

obras em todos os continentes do planeta. Vejo, uma vez mais, nessa dualidade, as vocações

pelo teatro e pelo cinema caminhando de mãos dadas e, novamente, é o espaço da

Cartoucherie, com seus vários galpões para usos diversos, onde a companhia permanece

sediada, e, evidentemente, os recursos públicos destinados à companhia, que permitem a

experimentação e diálogo de linguagens, tornando sempre profícua a criação de cada

espetáculo e garantindo a renovação de suas plateias.

63

CAPÍTULO 2 – O processo criativo de Les Éphémères: um meteoro ofusca o Soleil de outrora

2.1 Escritos de artista: notas de ensaio catalogadas no programa original da temporada francesa

Todo enunciado lido no arquivo é, literalmente, uma transposição, uma tradução, o

vestígio de um corpo ausente que tocou essa matéria (uma página, a tela). Sua

compreensão inscreve-se, portanto, na lógica da literatura, mas também fora dela, na

da fotografia. (ANTELLO, 2007, p. 44)

Um diário – breve suspensão do espaço tempo vivido para o registro de toda a vida

vivida fora daquele momento. Um exercício de repetição, constante, que mobiliza o escritor

para dentro e para fora de sua vida, como autor e objeto de sua própria obra. Um pequeno

oásis que se auto confere o poder de reter e, assim, dominar, todo o deserto a sua volta.

Deserto, porque a vastidão e o vazio engendram as mais inusitadas miragens e possibilidades

de caminhos. Oásis, porque comporta o possível conforto da elaboração e ordenação do caos

pela linguagem e sua fixação, configurando-se então como uma possível leitura do real. Um

diário, uma janela pela qual o leitor se debruça procurando conhecer o interior da casa,

impossibilitado de ir além deste único ponto de vista e foco de luz, o que o leva a completar

as lacunas da visão com sua própria imaginação, esta função criativa do cérebro, que

complementa a memória, conforme ilumina Vygotsky.34 Ou ainda, conforme a nota de ensaio

registrada no programa da temporada francesa do espetáculo Les Éphémères: “A imaginação

é um ato criador da memória. Borges/24 de agosto.” (MOUCHKINE, 2006, s/p).

A escrita de artista é o diário em sua total potência. O fetiche da possibilidade de

capturar a centelha divina que, por instantes, “animou” aquele indivíduo, permitindo que o

insight acontecesse. O fetiche de adentrar a intimidade do ser idealizado como divino e, quem

sabe, descobrir seus segredos nas entrelinhas, nos rastros deixados inadvertidamente. Como

na fábula, pequenos farelos de pão deixados pelo caminho que se trilha em busca da fantástica

casa feita de doces.

Em constante tentativa de capturar o momento, como se fosse possível reter a

experiência e eternizá-la, o ser humano, desde sempre, dedica-se à escrita íntima que se

34 Lev Semyonovitch Vygotsky (1896-1934), um dos teóricos mais influentes na área de Educação e Psicologia,

teve passagem por várias áreas do conhecimento, especialmente a literatura e o teatro. Foi um dos primeiros

defensores da associação da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a fisiologia, ao insistir que as

funções psicológicas são produtos da atividade cerebral.

64

alterna entre a vaidade e a preocupação com o devir. Ingenuidade tomar esses registros como

um retrato do real; é evidente que eles contêm e expõem mais pistas sobre a concretude dos

fatos que circundam as experiências descritas do que registros históricos oficiais ou

científicos, dado, justamente, o caráter político implicado nestes últimos em oposição à

suposta, liberdade da escrita íntima. Ainda que no processo de elaboração da escrita estejam

presentes dispositivos que não deixam de ser políticos, como autocensura, pretensões,

escolhas e afetos, o caráter íntimo da atividade acaba por desmontar algumas armadilhas,

deixando escapar breves borrões, os quais, posteriormente, podem ser lidos e interpretados a

partir do interesse de quem lê.

A escrita de artista, como se denominam os registros de processos de criação, diários,

manifestos e demais exercícios de linguagem de artistas que usaram também a plataforma da

escrita para elaborar sua obra – e vida – podem ser tomados como parte inerente do seu

legado, ainda que possam ter sido concebidos com o intuito de explicar ou delinear

determinadas visões e possíveis tangenciamentos. Dessa forma, a escrita e a obra de um

artista formam duas faces complementares de um todo, tendo a primeira certa preponderância

sobre a última, já que guardaria vestígios do processo de criação que não necessariamente

sobrevivem na obra final, como é o caso do teatro, uma obra efêmera por natureza. Dessa

hipótese surge a possibilidade de considerar a obra final como uma dramaturgia residual

daquilo que seria o verdadeiro legado do artista, ou seja, o registro do seu processo de criação.

Pois é a partir do momento em que o artista toma para si o instrumento de construção teórica

do seu fazer, problematizando o diálogo com outras instâncias como a crítica, a teoria pura e a

história da arte, que ele amplia o domínio sobre o seu discurso e suas intenções e, alcança,

portanto, novos horizontes para sua obra.

É evidente, porém, que a escrita de artista guarda em si mais informações do que o seu

autor previa, como acontece em todos os âmbitos da construção humana – e os arqueólogos

insistem em lembrar –, impregnada que está por seu contexto, inspirações, afetos e aptidões.

Nesse âmbito, é possível evocar o conceito de autoetnografia de Daniela Versiani (2002). A

pesquisadora apresenta um novo modelo de autobiografia, proposto por Julia Watson, no qual

se substitui a voz unívoca e estável do autor da modernidade por uma escrita capaz de abarcar

a alteridade que surge na relação dialógica da multiplicidade de vozes internas do indivíduo,

seguindo um novo paradigma, que põe em xeque o sujeito metafísico para dar visibilidade a

outras subjetividades. Ao lado disso, Versiani introduz um novo “recorte” para etnografia

proposto por James Clifford (2008) que ilumina o caráter também dialógico do registro

etnográfico contemporâneo, no qual o pesquisador não só está inserido na escrita (em

65

oposição ao modelo de Malinowski, de 1922, onde o autor coloca-se em terceira pessoa, na

tentativa de distanciar-se do objeto). Mas este, principalmente, apresenta-se implicado no

próprio objeto, de modo que sua subjetividade é assumida como recorte do olhar. Assim,

Versiani reúne os conceitos apresentando a “autoetnografia”, ou seja, uma escrita que encerra,

em si própria, a relação dialógica do sujeito e seu outro/duplo.

As possibilidades abertas tanto por Watson (...) na busca por modelos alternativos de

autobiografias e etnografias – construídos não mais a partir do pressuposto do

sujeito unívoco, estável e metafísico, ou da autoridade do etnógrafo e de seu

distanciamento em relação ao seu “objeto de estudo”, mas sim a partir de uma noção

de subjetividade construída de um modo relacional, ou dialógica – também

permitem pensar que textos de autoconstrução de subjetividades (coletâneas de

autobiografias, as próprias autobiografias e memórias, cartas, e-mails, etc.) podem

ser lidos como textos com valor de etnografia e vice-versa, havendo entre as duas

formas de escrita (auto e etno-grafias) aspectos intercambiáveis. (VERSIANI, 2002,

p. 69)

Diante disso, ainda que a escrita de artista guarde em si um valor inquestionável como

memória de um processo de criação, há que se fazer ressalvas quanto a tomá-la como reflexo

do real, invisibilizando possíveis imbricações ficcionais. Aplica-se aqui a referência à “ilusão

tautológica”, segundo Raúl Antelo (2007), na qual se toma o texto conservado em arquivo

como um relato fiel de si, apenas pela ilusão de sincronicidade a qual se apela, no intuito de

invisibilizar o aspecto de casualidade e de fantasmagoria que está implícito na própria

conservação de sua memória. Neste sentido, proponho aqui reflexões sobre o processo de

criação do espetáculo Les Éphémères, do Théâtre du Soleil, tomando como referencial inicial

único os relatos e memórias inscritos no programa da temporada francesa, que reproduz

trechos de notas da diretora Ariane Mnouchkine durante os ensaios do espetáculo, em formato

de diário simulado.

De antemão, é importante assumir os riscos implicados, já que, conforme está

registrado na contracapa do programa, trata-se de “extratos de notas de Ariane Mnouchkine,

organizados por Charles-Henri Bradier; escrita e desenhos de Catherine Schaub. Portanto

estão mais do que expostas as várias subjetividades envolvidas nestes relatos, o que não

diminui o seu valor enquanto memória/registro do processo criativo da companhia, e, pelo

contrário, deflagra o caráter coletivo da criação, deixando os dispositivos que poderiam criar

as armadilhas da leitura de arquivos iluminados. A saber: as armadilhas envolveriam, entres

outros conceitos, além da “ilusão tautológica”, a “ilusão na crença”, também proposta por

Raúl Antelo que observa um aspecto inerente ao arquivista ao lidar com o vazio de

significação revelado pelas lacunas do arquivo; se pela ilusão tautológica, ele procura

66

transbordar a significância para preencher as lacunas, na ilusão na crença, ele apela à

transcendência como forma para o preenchimento, e ambas podem se apresentar como

desvios para uma pesquisa de arquivo eficaz e lúcida.

As Origens: o cometa (6-20 de março) O público, as pessoas/ (...) E vocês são as

visões dos espectadores quando vocês entram... / (...) Eu procuro que montagem que

é.../ Que reuniu todas estas pessoas aqui para que elas tenham todas estas visões,

todos estes desejos... 6 de março” (MNOUCHKINE, 2006)

O trecho citado abre o programa/diário de montagem do espetáculo Les Éphémères,

que estreou em 2006, em Paris. No sentido de investigar os desdobramentos da leitura do

arquivo, tomado aqui pelas memórias fixadas no diário/programa do espetáculo, a proposta

foi ater-me somente a esta fonte de informação e confrontá-la com a obra resultante, no caso o

espetáculo, materializado pelo seu registro filmado.

Imagem 9 - Primeiras páginas do programa de Les Éphémères digitalizadas (2016)

O diário/programa é composto por pequenos textos em caligrafia manuscrita,

acompanhados de datas e alguns desenhos que ilustram ideias e instantes de ensaios, dispostos

em ordem cronológica e sob pequenos títulos. A estrutura dos textos evidencia sua origem na

oralidade, haja vista a construção das frases, sempre direcionadas a alguém ou a um grupo,

ainda que contenham indicações práticas ou propostas reflexivas e conceituais. Portanto, o

encontro entre o “calor” da fala da diretora Ariane Mnouchkine na sala de ensaio e seu

registro feito pelo assistente de direção Charles-Henri Bradier, além da posterior edição do

67

material, incluindo o projeto gráfico de Catherine Schaub, modulam um novo original que

revela ao leitor as pistas pelas quais se pode acessar a memória do ato criador.

Seguindo a cronologia do diário, logo no início lê-se: “La Piazza Navona/ (...) Nós

estamos diante de uma mesa de autópsia, uma arena, uma lupa, uma Piazza Navona.35 Mais

perto, não podemos, mais perfurante, não podemos... 7 de março” (MNOUCHKINE, 2006). À

nota, segue-se o desenho da área cênica e da disposição do público, que são ilustrados

mutuamente, justificando a escolha do espaço para o espetáculo. Logo em seguida, mais duas

notas evocam as escolhas conceituais: “Tempo/ (...) Atenção ao tempo, não se pode deixar

que a cena se instale, não atuar uma cena, mas um momento... 8 de março” e “Política/ (...) É

íntimo sim, e muito político, político pela carne, porque nós somos, pela diferença entre nosso

discurso e nossos atos.... 8 de março” (MNOUCHKINE, 2006). Percebe-se, por estas notas

escolhidas para iniciar o “diário”, uma possível preocupação com o efeito narrativo decorrente

do encadeamento das ideias: o diário começa estabelecendo o tempo e o espaço da “história”,

bem como o seu conceito geral.

Em uma harmoniosa ilustração da “Autoetnografia” de Versiani, e da “Ilusão na

Crença” de Antelo, dentre todas as possibilidades, as notas provocam a reflexão sobre o que

as motivou, levando o leitor a preencher as possíveis lacunas com aquilo que poderia se

relacionar a elas, em termos cronológicos e de oposição de ideias. É essencial lembrar aqui

que Mnouchkine, ao contrário de outros encenadores como Peter Brook e Eugenio Barba, não

tem entre seus focos principais a produção teórica a partir de suas experiências práticas, de

modo que produz pouca literatura sobre o seu processo criativo. Assim, suas reflexões

teóricas podem ser conhecidas, quase que exclusivamente, através das entrevistas e debates

dos quais participou e que foram publicados e registrados em vídeo ou filme.

A partir das notas citadas importa dizer que, desde sua fundação em 1964, os

espetáculos da companhia expunham uma encenação exuberante, fruto das influências do

teatro oriental (o Nô japonês e o Topeng balinês, em especial) e da forte expressividade física

de seus atores, aliada a textos de declarado engajamento político, alternando-se entre clássicos

(como Os Átridas e Macbeth, mais recentemente) e criações coletivas, em harmonia com a

escrita final de Hélène Cixous. As máscaras sempre estiveram presentes como ferramenta

35 A praça Navona é uma das mais célebres de Roma e tem sua forma arredondada como os antigos estádios de

Roma antiga. Acredita-se que suas arquibancadas tinham espaço para até 20.000 espectadores, as quais foram

sendo substituídas por casas, ganhando seu aspecto de praça no século XV, com a transferência do mercado da

cidade para seu interior.

68

Imagem 10 - Digitalização da página do programa citado.

pedagógica durante o processo, chegando a vir à cena em determinados espetáculos, sendo o

mais emblemático L’Age D’Or, quando foram evocados os personagens e o espírito da

commedia dell’arte para formalizar o que seria uma tragédia sobre o mundo contemporâneo.

Na ocasião, em 1975, já sediados nos galpões da Cartoucherie, aproveitando o espaço vasto

recém-ocupado, Mnouchkine idealizou um espetáculo com a itinerância do público entre

dunas de areia e espaços de cena. Após a experiência, a companhia montou Mephisto, em

1979, retornando à frontalidade do palco italiano, que dominou a relação entre cena e plateia

até o espetáculo Le Dernier Caranvanserail, em 2003, imediatamente anterior à Les

Éphémères. E, justamente nesse último, pela primeira vez em décadas, o galpão do teatro

transformou-se acolhendo dois grupos de arquibancadas em lados opostos, separados por uma

passarela onde se passava a cena – tal qual o Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa,

projetado por Lina Bo Bardi. Portanto, o público assistia à peça diante de si, tendo, como

fundo, a outra plateia, na mesma situação, criando um espaço de comunhão essencial para a

atmosfera e o conceito do espetáculo.

69

Em Les Éphémères a companhia mergulhou nos pequenos e efêmeros instantes que

marcam a vida de todos e de qualquer um, e as plataformas móveis do cenário permitiram ao

espectador ser um voyeur íntimo da cena, estar over the shoulder do protagonista,36 ser a

própria câmera subjetiva do cinema que capta as entrelinhas onde tudo se deflagra. Em uma

nota direcionada aos impulsores, Mnouchkine demonstra claramente esta escolha:

Os Impulsores/ (...) Impulsores, vocês não são obrigados a ser uma galáxia

permanente, encontrem as pausas. Não é necessário que vocês compensem. (...) Os

impulsores devem acompanhar os impulsos de seus corações ou de seus ventres... 14

de março”. (MNOUCHKINE, 2006)

Nesta cadência, a cronologia das notas de ensaio, bem como a edição proposta pelo

organizador do diário/programa, torna possível ao leitor acompanhar a evolução do processo

de criação do espetáculo, de forma articulada ao método de ensaio utilizado pela companhia.

Novamente aqui, ilustrando as provocações da “ilusão tautológica” de Antelo, é pelo

reconhecimento das informações do arquivo através de sua repetição em outras fontes de

informação que se propõe um recorte “tautológico” das notas sublinhadas.

Imagem 11 - Páginas do programa citado.

36 Over the shoulder, ou “por trás do ombro”, é um tipo de ângulo de filmagem muito usado em cinema para

garantir que o espectador compreenda a perspectiva entre os personagens em cena, sob um ponto de vista

neutralizado, de onde ele, espectador, pode tirar suas próprias conclusões.

70

Tanto na montagem dos clássicos quanto em dramaturgias originais, o método de

criação do Théâtre du Soleil envolve a criação coletiva de cenas improvisadas que se repetem

diariamente, em busca da lapidação dos seus elementos: personagens, trama, conflito,

espacialização da cena, materiais, figurinos e, principalmente, a música interior que eleva a

cena. Pinçando notas ao sabor da sorte, encontram-se referências a estes momentos, seguindo

o vocabulário já familiar aos integrantes da companhia bem como aos leitores menos

iniciantes, como “Incandescência/ (...) Vocês devem manter a incandescência sem que o leite

derrame. 09 de março”, e, “Os adereços/ (...) Sim, mesmo se são decorativos, os adereços

devem exprimir o caráter do personagem”, ou ainda “Música/ (...) A doçura vem também da

sua extrema obediência à música – 05 de abril” e, por fim, “Método/ (...) Não é “o que você

vai fazer desta cena?”, é “o que esta cena vai fazer de você?” 11 de abril” (MNOUCHKINE,

2006)

É importante ressaltar também que, para os mais familiarizados com a obra da

companhia e toda a literatura que a circunda, é interessante perceber esta repetição de célebres

citações da diretora, que deflagram o arcabouço teórico que orbita suas reflexões,

contextualizados em exemplos concretos da sala de ensaio. Este é o caso da citação de

Charles Dullin, “Os deuses/ Não são as máquinas que fazem descer os deuses na cena que nós

precisamos, mas dos deuses. 29 de março” (MNOUCHKINE, 2006), que costuma vir à tona

quando é chegado o momento em que uma cena se concretiza em sua máxima potência e que,

portanto, sintetiza “A Chegada dos Deuses (21 de março – 04 de abril) / Absoluto/ Eu digo a

vocês, eu vejo tudo. 29 de março.” (MNOUCHKINE, 2006).

Imagem 12 - Páginas do programa citado.

71

Trazendo aqui a ideia de “Autoetnografia” para o contexto da escritura do material de

arquivo, e considerando que se trata de um material escrito a, no mínimo, seis mãos (as notas

da diretora, capturadas e editadas pelo assistente de direção e “desenhadas” pela artista

gráfica), são múltiplas subjetividades dialogando nesta escrita.

No que tange às falas da diretora Ariane Mnouchkine, percebe-se, por exemplo, o

sujeito que escolhe as palavras certas para tornar as indicações precisas, evidenciando a

funcionalidade do discurso.

Ser Autor/ (...) Nós não somos nem Shakespeare nem Tchekhov, suas qualidades

como autores estão em outro lugar, elas estão dentro dos seus estados. 13 de

junho.”, ou ainda, “Ferramentas/ É um espetáculo no qual vocês precisam de suas

ferramentas como um cirurgião precisa das suas, se vocês não têm o bom bisturi, o

doente morre. Vocês precisam de seus instrumentos em cena, e entre eles, está o

tempo... 01 de Novembro.” (...) É verdade que este espetáculo está relacionado com

a consciência da morte, da perda, do desaparecimento... “não percam antes de ter

perdido” (...) Vocês irão viajar dentro de suas lembranças pessoais, mas é preciso

manter a forma “autopsia do real”; são os gatilhos, não uma viagem dentro da

memória... 25 de Abril”, e também em “A perda/ (...) é na perda que ganhamos a

consciência do que temos, o dom da vida, o que lhe dá seu açúcar e seu mel. 15 de

maio”. (MNOUCHKINE, 2006)

Há, ainda, um sujeito que se orienta em busca de reflexões precisas, capazes de situar

o ator no sentido de se engajar à unidade em que se instala, talvez percebendo sua própria

força como dispositivo de criação. Os exemplos revelam algumas das muitas subjetividades

cujas vozes podem ser ouvidas através das notas, sob pena de esta dissecação diminuir a

potência que flui, justamente, pela interseção de todas elas que, finalmente, compõem a

individualidade da artista criadora.

Balancete do primeiro entreato: “Pequenos mundos e vastos palácios”. (...) O

espetáculo poderia também chamar-se “Pequenos Mundos e Grandes Palácios”.

Estes pequenos mundos (aqui aparece a palavra “presentes” riscada) do presente,

tudo contemporâneo, no meio deste vasto palácio da história, da memória. A força e

o perigo da proposta é que tudo está aberto... 16 de maio. (MNOUCHKINE, 2006)

Em relação à operação de Charles-Henri Bradier como arquivista e editor do material,

também se pode evocar o que há de “auto e etno-gráfico” em suas escolhas. Selecionando a

cronologia como fio condutor da memória, Bradier, possivelmente intenciona tecer uma

dramaturgia que ilumina a evolução do processo, como se esta avançasse em linha reta.

... um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um percurso

orientado, um deslocamento linear, unidirecional, (a “mobilidade”), que tem um

72

começo (“uma estreia na vida”), etapas e um fim, no duplo sentido, de término e de

finalidade (...), um fim da história. (BOURDIER, 2005, p. 183).

No entanto, apesar da cronologia alinhada, fica evidente o avanço circular do processo

de criação, ilustrado pelas notas que se aludem entre si, seja pelo tema, seja pelas imagens

evocadas:

Lembranças/ (...) Não é preciso fazer grandes mausoléus de suas lembranças. Por

exemplo, o broche da minha avó é, ele próprio, o templo da minha avó... 10 de

(“abril” riscado) maio”, seguido em poucas páginas por “Famílias e solidões/ No

fundo, nós contamos famílias e solidões. 23 de maio. (MNOUCHKINE, 2006)

Considerando ainda o esforço de edição do vasto material para chegar ao produto

final, esta reiteração reforça o aspecto cíclico do fazer artístico. Também é possível iluminar a

escolha pela edição de notas que expõe intimidades do processo e imaginar o efeito que se

procura causar no seu leitor, como em “Ode à vida/ Existe uma espécie de ode à alegria na

música de Jean-Jacques, uma celebração das coisas mais simples da vida. Não devemos

querer transformar isso em comédia americana. 04 de Setembro” (MNOUCHKINE, 2006),

seguido de uma ilustração de uma cena do espetáculo. Teria essa cena provocado esta

reflexão? Há uma ironia nesta frase? Seria uma crítica aos atores, à qualidade da sua atuação?

Ou uma baliza, um norte? Se o espaço de ensaio pressupõe a confiança mínima para que o ato

criador se dê em sua plenitude, salvaguardado das censuras, da direção, etc, qual o limite de

exposição das suas memórias para aqueles que não comungaram do mesmo momento? E as

elucubrações podem se desdobrar ao infinito.

Imagem 13 - Página citada do programa.

73

Por fim, no que tange ao tratamento gráfico do material, ao evocar a estética do diário,

a programadora visual imprime um forte caráter para esta leitura. Ainda que, desde o primeiro

momento, fique claro que o texto impresso se trata de um registro de um discurso oral e

anterior à sua escrita, a caligrafia manuscrita seguida de desenhos manuais, além de borrões

de tinta e pequenas correções aparentes, evoca o universo da escrita íntima despreocupada

com a aparência, limpeza e clareza (gramática e de leitura) diante de um possível leitor.

No entanto, a caligrafia manuscrita que não obedece, necessariamente, as pautas das

folhas, seria um indício do caráter ficcional, simulado, do diário, como se a necessidade da

sua impressão em massa (o programa da peça foi impresso em tiragem grande o suficiente

para ser distribuído aos espectadores durante toda a temporada do espetáculo) vigorasse sobre

o caráter artesanal de um diário, deixando à vista a construção do conceito.

Imagem 14 - Página do programa citado.

Importante também notar os vários tipos de materiais que teriam sido usados para

“escrever” os registros. Pode-se perceber a escolha estética que simula a utilização de lápis de

grafite, canetas esferográficas, hidrocores finos, outros mais grossos, na escrita das notas, com

cuidadosa alternância de materiais, criando uma composição harmônica, o que possibilita,

também, a leitura de textos que se sobrepõem, além de borrões de tinta, evocando tinteiros,

que mancham o papel, trazendo o acaso para a construção desta narrativa.

Há, ainda, os desenhos que ilustram momentos de cena, muitos deles presentes em

fotos que compõem outros materiais do espetáculo, abrindo espaço para se questionar a

cronologia das ilustrações que permeiam a escrita das notas, ou ainda, a intencionalidade de

74

se incluir, dessa forma e não de outra, um material que pode não guardar entre si uma

associação tão direta. O que teria vindo primeiro: as fotos ou as ilustrações? É possível, ainda,

problematizar a escolha da identidade visual da capa, contracapa, e seus versos, com palavras

soltas escritas em diversas caligrafias, acompanhadas da ilustração de um grande casarão que

pode evocar alguns dos cenários propostos no espetáculo.

Por fim, é provável que esse material se matenha de forma autêntica, como uma

reprodução verdadeira do diário de ensaio, onde foram impressos não só as indicações de

cena, mas o calor de alguém preocupado em reter aquela experiência e eternizá-la através do

seu compartilhamento, oferecendo até mesmo páginas em branco para que a escrita continue,

através de novos autores, como uma obra aberta. É delicado avançar no caráter investigativo

da pesquisa e análise de um material de arquivo, que guarda em si várias possibilidades de

interpretação e leitura, correndo-se o risco de, na escolha das traduções, trair-se a intenção

original do seu autor, seja ela qual for. Há um momento em que é preciso fazer uma escolha,

talvez moral, sobre a abordagem que se pretende fazer. Para evitar as ilusões que assombram

a leitura, pode-se buscar a luz dos outros materiais que possam dialogar com o objeto de

análise também. A partir disto, entram em jogo outras obras, a literatura, pistas sobre o

contexto, e quaisquer outras peças que ajudem a montar o quebra-cabeça. Se o arquivo não

comporta a sistematização da biblioteca, ele guarda em si a chance de alinhamento entre

diversos materiais, multiplicando os sentidos. Reside nesta seleção e organização o trabalho

do pesquisador; sua responsabilidade está em assinar um novo original que se cria a partir daí,

tendo em vista que toda leitura de arquivo acaba sendo ficcional.

Imagem 15 - Contracapa final do programa.

75

Imagem 16 – Páginas do programa.

Finalmente, fica claro que a força inerente ao discurso registrado é maior do que

outras possíveis desconstruções e organizações. Ainda que se possa desmontar e expor todo o

caráter ficcional da construção do diário de ensaio, não há dúvidas de que o registro criterioso

do processo criativo está preservado, mantendo o caráter do material como uma escrita de

artista autêntica, com o seu valor e preciosidade.

2.2 Cenas performativas: imagens de si e do outro em Les Ephémères

Como se sabe, Féral cunhou o termo “teatro performativo” para dar conta da

aproximação, cada vez maior da cena contemporânea com o acontecimento único e

os gestos de auto-representação do artista performático. Por recusar a adoção de

códigos rígidos, como a definição precisa de personagens e a interpretação de textos,

a performance apresenta ao espectador sujeitos desejantes, que em geral se

expressam em movimentos autobiográficos e tentam escapar à lógica da

representação, lutando por definir suas condições de expressão a partir de redes de

impulso. (FERNANDES, 2010, p. 06)

Conforme foi dito, por muitas décadas o Théâtre du Soleil apresentou o uso das

máscaras teatrais como disciplina de base e ferramenta pedagógica para seus atores, em

processos de criação e nos estágios abertos a outros atores, como uma de suas características

identitárias enquanto companhia de teatro. Pelo jogo de cena que a máscara incita, e por conta

da estética presente nos espetáculos épicos do Théâtre du Soleil, a máscara sempre foi o ponto

de partida para a criação. No entanto, como foi dito, nos espetáculos que sucedem a

experiência de filmagem de Tambours sur la Digue (2002), um novo paradigma estético se

apresentou, trazendo a reboque a necessidade de um dispositivo de atuação que permitisse

76

instaurar a mesma qualidade de atuação e presença do ator dos espetáculos anteriores, só que

dentro de uma nova lógica. Ao inserir a linguagem do cinema na cena, Mnouchkine

estabeleceu uma nova plataforma de criação, na qual toda a equipe se inseriu para descobrir

outros parâmetros para o processo. Porém, no que tange ao trabalho dos atores

especificamente, percebe-se uma ponte que liga o formato anterior do jogo proposto pela

máscara e a atuação performativa que vigora nos espetáculos recentes, e que passa pela

questão do olhar.

É interessante perceber que no jogo da máscara, para atores e observadores, é através

do olhar que a experiência se processa. O que “anima” uma máscara é, justamente, a presença

do olhar humano através de seus orifícios, é o que dá garantias de vida àquele objeto

inanimado, ainda que de forma um tanto fantasmagórica. No caso do observador, é também

através do seu olhar que o evento se colapsa, dando provas evidentes de sua materialidade.

Em uma sociedade que privilegia a imagem entre as formas de comunicação e que vive às

voltas com a questão da presença, somente o olhar é o elemento catalisador de todo o

acontecimento, mesmo virtualmente.

Introduzo aqui a questão da produção de presença para investigar quais aspectos

podem levar o artista a almejar a ideia do real na ficção, procurando acompanhar o percurso

que, ainda que inconscientemente, Mnouchkine e seus atores possivelmente trilharam para

atingir os matizes do teatro performativo presentes em Les Éphémères. Sobre a ideia de

presença, sigo a proposição de Gumbrecht, ao considerar a presença menos sob um aspecto

temporal e mais “uma relação com o mundo e seus objetos. Uma coisa ‘presente’ deve ser

tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em

corpos humanos.” (GUMBRECHT, 2010, p.13).

Neste mesmo sentido, Mnouchkine, sempre manteve o foco sobre a busca pela

presença, seja através das técnicas empregadas em seus processos criativos – focando a

questão artística da presença cênica do ator –, mas também na construção de elos efetivos

entre sua obra e seu público. Se os motivos pelos quais a diretora dedica grande atenção à

fruição de sua obra pelo espectador também são norteados por questões práticas, como a

dependência do sucesso de bilheteria para a manutenção financeira da companhia, é inegável

que Mnouchkine alcança uma forte comunicação com o público e possui um considerável

poder de aglutinação em torno de si e de seus espetáculos. Por este caminho, se pode pensar

na sua trajetória artística como uma permanente pesquisa sobre a produção de presença e

sobre formas de escuta atenta à sociedade e suas questões. Portanto, em Les Éphémères, pela

77

própria natureza do espetáculo, imagino que a companhia tenha se visto diante de novos

desafios.

As tecnologias da informação e da comunicação produzem, cada vez mais rápido,

condições de afastamento das pessoas: podemos nos comunicar, comprar, namorar,

estudar, à distância. Evidentemente, nos beneficiamos de uma facilidade de

comunicação e contato virtual que aduz a uma proximidade, ainda que virtualizada.

Ao mesmo tempo, quanto maior é nossa mobilidade, quanto mais afastamos os

corpos uns dos outros, mais sentimos vontade de estar próximos, de estarmos em

presença de outras pessoas, de sentirmos a presença de coisas distantes no espaço e

no tempo, mais temos vontade de presença. Assim, o que tomamos aqui como

presença é menos aquilo que se tornou comum no jargão teatral, – a força ou a

qualidade atrativa do ator –, e mais o universo do que escapa à linguagem, ao

sentido, à significação. (ICLE, 2013, p. 182)

Talvez por este motivo, em Les Éphémères, um espetáculo que se propõe uma

“autópsia da alma”, preocupado em visibilizar o efêmero, em produzir sentidos que vão além

da materialidade, a companhia se tenha colocado diante de um desafio radicalmente oposto às

proposições artísticas anteriores. Comprometida com uma escuta autêntica sobre o seu

público e o mundo ao redor, e diante de um tema cujo propósito lhe seria pouco familiar em

termos estéticos – por décadas a estética da companhia foi caracterizada pela expressividade

extrema das máscaras –, Mnouchkine e a companhia se viram diante da necessidade de

pesquisar um espetáculo que ganha contornos da experiência do real na ficção, aproximando-

se também à biografia em cena.

A proposição inicial que serviu de dispositivo para a criação de Les Éphémères foi que

cada ator imaginasse o que faria se soubesse que um meteoro iria cair sobre o planeta Terra,

extinguindo a humanidade, ou seja, o que se faria se soubesse que o mundo iria acabar em

pouco tempo. Esta proposta, nascida em uma conversa com a atriz Shaghayegh Beheshti

(Shasha), essa, angustiada por ter lido uma notícia sobre o suposto meteoro que viria atingir o

planeta, nos jornais (VACCARI), logo caiu por terra (sem trocadilho), transformando-se na

ideia de trazer a cena pequenos momentos cotidianos e banais que refletiriam o que há de

singelo, autêntico e efêmero nas relações humanas que compõem o mundo contemporâneo. E

que contexto seria este? De que mundo se estaria falando? Seguindo a proposta de Tolstoi,

“Fale da sua aldeia e estará falando do mundo”, ou para citar uma das conhecidas frases de

Mnouchkine, “chercher le petit pour trouver le grand” (procurar o pequeno para encontrar o

grande), atores voltaram-se para sua própria biografia e notícias de jornais em busca de

inspiração para as improvisações que deram origem ao mosaico de personagens e histórias

que compõem o espetáculo.

78

Com este ponto de partida, portanto, a encenadora subverteu a tradição de espetáculos

épicos traduzidos em encenações grandiloquentes e que foram a assinatura do Soleil durante

décadas, introjetando o elemento trágico na subjetividade individual de cada integrante da

companhia. Na procura por onde estaria a essência da bondade humana, por quais seriam os

pequenos gestos que marcariam de forma positiva a passagem da humanidade pelo planeta,

cada artista foi buscar os momentos decisivos que pudessem traduzir a efemeridade da vida

em cena teatral.

Naturalmente e de forma intrínseca, todo o universo da sociedade contemporânea veio

à cena através das pequenas plataformas de famílias e de relações sociais retratadas. O foco

principal das cenas foi o relacionamento e as redes de afetos entre os personagens, mostrando

até a ascendência destes personagens em comoventes composições de tempo e espaço em

cena. No entanto, as questões da comunicação e suas tecnologias atuais não poderiam deixar

de estar presentes. Entram em cena aparelhos celulares e computadores, dando a justa medida

da contemporaneidade e seus modos de operação aos espectadores que podiam ver-se

refletidos na cena. Ainda que a virtualidade da presença estivesse em cena mais através das

lembranças e memórias dos personagens do que através das tecnologias produtoras de

virtualidade, os efeitos da “ausência presente” podiam ser percebidos pelos desencontros e

incomunicabilidade entre os personagens. Assim como na vida real, “Aquilo de que […]

sentimos falta num mundo tão saturado de sentido, e, portanto, aquilo que se transforma num

objeto principal de desejo (não totalmente consciente) na nossa cultura […] são fenômenos e

impressões de presença.” (NUNES MELO, 2014, p. 116)

Neste momento, portanto, a escuta de Mnouchkine sobre o mundo contemporâneo

passa a incluir não só as questões sociais e políticas da sociedade, como nos espetáculos

históricos do Théâtre du Soleil, mas, principalmente, a forma pela qual esta sociedade se

expressa e se comunica nesta busca de sentido(s). Ou seja, a companhia, cuja pesquisa até

então esteve calcada na expressividade corporal e no universo das grandes paixões humanas,

neste momento se vê diante da necessidade de trazer à cena as transformações das tecnologias

da comunicação e suas consequências, na perspectiva de afetar o público (e os próprios

artistas) no que há de mais íntimo.

A preocupação com o tempo presente, portanto, não é nova no Théâtre du Soleil,

longe disso. Mas o que constitui a verdadeira ruptura, nos espetáculos desta década,

é que a máscara está desaparecendo. Todas as formas de máscara e de sua

teatralidade encontram-se guardadas na coxia, para que aqueles que fazem o

espetáculo se apóiem apenas nos documentos extraídos de suas vidas, como se agora

79

os atores só representassem a si mesmos, o que é sem dúvida o exercício cênico

mais difícil num palco. (TACKELS, 2007, p. 36)

A teatralidade inerente aos espetáculos clássicos do Théâtre du Soleil até então deu

lugar a uma nova linha de pesquisa. Esta deveria ser capaz de dar um contorno estético ao

universo em ebulição da contemporaneidade que ocupa a cena, guardando, porém, uma

filiação com toda a trajetória do Soleil, garantindo sua assinatura e identidade. Nesta pesquisa,

como evolução dos processos de espetáculos anteriores e pelo alinhamento com uma cena que

busca os mais nítidos contornos do real, as técnicas do cinema – adquiridas enquanto práticas

periféricas ao trabalho da cena – tornam-se evidentes e surgem como estrutura e suporte de

criação, levando a companhia a enveredar por novas trilhas e atingindo novos resultados

cênicos. Entre estas novas aquisições, estão a referência biográfica enquanto tema e estética

do espetáculo e a qualidade performativa na atuação dos atores.

Quanto à experiência do real na ficção, no espetáculo Les Éphémères, se os

dispositivos de criação do espetáculo nasceram da biografia íntima de cada artista, é possível

observar também, e por consequência, que a ação cênica deixou de ser enfatizada na face

exterior do corpo do ator (como impunha o uso da máscara), mas interiorizou-se,

aproximando-se de um determinado cinema, que prioriza o que se passa no íntimo do

ator/personagem enquanto narrativa, que fala sobre o que se passa na alma.

A vida/ (...) é o banal, e é o mais simples banal que é profundo e original (-) A

banalidade da loucura, a banalidade de viver com uma louca, de viver com um

homem violento, a banalidade de um acidente (...) E isto deve ser muito vívido, nós

devemos chegar a ver a veia que pulsa no pescoço... 01 de dezembro.

(MNOUCHKINE, 2006)

Dada a proximidade do público com a cena por conta da disposição das galerias de

plateia na sala de espetáculo, o cenário do espetáculo tem o caráter de direção de arte, com

pequenas plataformas de mobiliário real. Além disto, também por conta dos temas das

histórias que compõem a narrativa do espetáculo, a proposição estética não poderia ser outra

que não fosse a busca pela não-representação no trabalho dos atores, pelo escape à ideia de

representação mimética, sob o risco de não atingir a qualidade de presença que garantiria a

autenticidade do espetáculo.

Jean-Pierre Sarrazac continua as reflexões de Bernard Dort quando observa que a

construção compartilhada do sentido convida os espectadores a se interessarem não

apenas pelo que acontece na narrativa cênica, mas pela ocorrência do próprio teatro

no seio da representação. (...) É uma concepção próxima à do filósofo Denis

Guénoun, para quem o teatro contemporâneo acentua esse gesto de mostrar e

80

costuma oferecer ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o

efeito de ilusão da representação. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK, 2009, p.

15)

Neste contexto, todo o repertório técnico e estético do cinema tornou-se condição para

a realização e concretização da cena. Sob o olhar do espectador funcionando como uma

câmera, e trabalhando sobre a plataforma do depoimento pessoal através da biografia

encenada, os atores se viram na necessidade de lançar mão de novas ferramentas de criação,

aproximando-se do teatro performativo. É neste sentido que se percebe, neste espetáculo, as

características pelas quais se poderia afirmar que a cena ganha contornos de performance.

A transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica

em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na

imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo a uma receptividade do espectador

de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da

tecnologia. (FÉRAL, 2015, p. 114)

O propósito da cena é estabelecer sintonia com o espectador que o assiste, em Les

Éphémères e em qualquer espetáculo, portanto esta deve apresentar elementos de

identificação ou provocação ao universo estético em que o espectador está inserido. Porém,

neste contexto, vale abrir uma janela para se problematizar a natureza do trabalho do ator do

Soleil neste espetáculo, se ela estaria mais próxima do naturalismo ou da performance, uma

vez que algumas de suas características poderiam levar a esta dúvida.

Célia Berrettini, na introdução de O Romance Experimental e o Naturalismo no

Teatro, de Émile Zola,37 destaca o seguinte trecho do prefácio da peça Thereze Raquin

(1875):

As grandes obras de 1830 permanecerão como obras de combate, datas literárias,

esforços soberbos, que lançaram por terra a velha armação clássica. Mas agora que

tudo está por terra, as capas e as espadas são inúteis; é tempo de fazer obras com a

verdade. Substituir a tradição clássica pela tradição romântica, não seria saber

aproveitar a liberdade que nossos antepassados conquistaram. Não mais deve haver

escola; não mais fórmula, não mais clichês de nenhuma espécie. Não há senão a

vida, um campo imenso em que cada um pode estudar e criar à sua maneira. (ZOLA:

1982, p. 81)

Com estas palavras, Zola, o precursor do naturalismo na literatura e no teatro, deixou

clara a necessidade de renovação do teatro através de um pacto com a verdade conseguido

37 Émile Zola (1840-1902) foi um escritor francês consagrado, criador do naturalismo enquanto escola literária

e figura proeminente na política francesa. Seu grande romance Germinal é um marco na literatura naturalista.

Para escrevê-lo, Zola passou dois meses trabalhando como minerador de carvão para sentir na própria pele as

condições de vida e trabalho que descreveria na ficção.

81

através de rigorosa experimentação científica, deixando para trás tudo que contivesse

qualquer teor convencional. Seguindo este rastro, se pode chegar às experiências do Teatro de

Arte de Moscou, onde Stanislavski38 conduziu seus atores na criação de espetáculos que

guardavam a maior fidelidade possível à vida real, desenvolvendo técnicas que levariam o

ator a trabalhar subconscientemente sobre suas criações. No que hoje se denomina “Sistema

Stanislavski”, do qual se derivaram diversas vertentes de pesquisa, o pensador russo procurou

destrinchar uma série de procedimentos que levariam o ator a atuar de forma viva e verdadeira

na cena, tornando-se capaz de afetar seu espectador pela capacidade de empatia e

identificação. Para aumentar este grau de identificação, seus cenários, figurinos, iluminação e

trilha sonora deveriam conter objetos reais e estarem dispostos como se houvesse de fato uma

quarta parede a separar a área da cena do seu espectador. Sobre isto, Vsevolod Meyerhold,

seu discípulo, depois crítico e finalmente grande parceiro, comentou em um artigo de 1906:

Ao colocar em cena peças históricas, o teatro naturalista impõe-se a tarefa de

transformar a cena em uma exposição de verdadeiros objetos de museu, ou na falta

destes, de cópias feitas a partir de desenhos da época ou de fotografias feitas em

museus. Além disso, o encenador e o cenógrafo esforçam-se em fixar com a maior

precisão possível o ano, o mês e o dia em que se desenrola a ação. (...) O teatro

naturalista ensina ao ator uma expressão resolutamente limpa, acabada, precisa;

jamais permite um jogo alusivo, uma forma de representação que conscientemente

não vá até seu limite. Eis porque os exageros são tão frequentes na representação do

teatro naturalista que ignore absolutamente o jogo alusivo. (...) No teatro, o

espectador é capaz de acrescentar com sua imaginação o que permanece alusivo. É

precisamente esse Mistério e o desejo de vivenciá-lo que atrai tantas pessoas ao

teatro. (...) E sem nenhuma dúvida o espectador de teatro tem, ainda que

inconscientemente, sede desse trabalho da imaginação, que às vezes transforma-se

nele em criação. Sem isso, por que haveria, por exemplo, exposições de pintura?

Evidentemente, o teatro naturalista nega ao espectador a capacidade de completar o

desenho e de sonhar, como pode fazer quando escuta música. (MEYERHOLD:

2001, p. 96)

Nesta descrição Meyerhold ressaltou os elementos pelos quais o teatro naturalista, em

seu desejo de re-apresentar a realidade de forma quase científica, se afastaria daquilo que faz

uma obra de arte despertar o interesse do espectador: as lacunas pelas quais esse seria

convidado a preencher com seu trabalho criativo. No entanto, é fato que a pesquisa de

Stanislavski sobre o trabalho do ator não se estagnou na busca pela verdade dentro do teatro

naturalista e passou por inúmeras etapas inconclusivas. Por conta das dificuldades de

publicação de seus escritos na Rússia e posteriores traduções, há, ainda hoje, bastante

38 Constantin Sergeievich Alexeiev (1863-1938), nome de batismo de Constantin Stanislavski, foi ator, diretor,

pedagogo e escritor russo que revolucionou o teatro ocidental no final do século XIX e início do século XX ao

propor uma abordagem científica sobre o trabalho do ator. Fundador do Teatro de Arte de Moscou, propôs o

que passou a ser chamado Sistema Stanislavski, embora o próprio autor reiterasse a constante transformação de

suas pesquisas.

82

controvérsia sobre conceitos, nomenclaturas e interpretações de suas ideias, no entanto é

inegável sua preocupação em não limitar o trabalho do ator:

O sistema é um guia. Abra e leia. O Sistema é um livro de referência, e não uma

filosofia. Assim que começa a filosofia, o Sistema termina. [...] Não existe sistema

nenhum. Existe a natureza. A preocupação da minha vida inteira é me aproximar o

máximo possível daquilo que se chama Sistema, ou seja, da natureza da criação. As

leis da arte são as leis da natureza. (LABAKI: 2015, p. 81)

Vê-se no teatro naturalista, portanto, uma preocupação com a renovação da cena

teatral através do compromisso com a busca pela verdade, tida como natural, compreendida

como oposta à qualquer convenção. Mas, com o filtro do tempo, após mais de cem anos do

nascimento do naturalismo, é possível identificar todo o código convencional que este estilo

trouxe, por sua vez. Na verdade, como se viu, Meyerhold, um contemporâneo, já denunciava

a ineficiência destes procedimentos para alcançar os objetivos a quais o teatro naturalista se

propunha. De fato, o que permaneceu foi a busca pela verdade, ainda que flexibilizada pela

ideia de que a própria verdade guarde em si diversas versões. Fato é também que se o

naturalismo trouxe imbutido em seu manifesto um desejo político de ruptura com um teatro

elitista, este desejo pode ser lido, hoje, como um dos pilares do teatro performativo, quando

pensado principalmente em sua linha mais ligada à arte da performance e das vanguardas

históricas.39

Neste sentido, sim, se poderia pensar que na medida em que os atores e a encenadora

de Les Éphémères lançam mão de uma nova pesquisa cênica que abandona as convenções

teatrais utilizadas até então (máscaras, corpo dilatado, frontalidade do palco italiano) e busca

os elementos que aproximam a experiência do real à experiência da cena, a companhia se filia

ao movimento naturalista neste determinado aspecto. Mas, por outro lado, pela forma com

que realizam esta pesquisa e, principalmente, pelos resultados cênicos alcançados, fica claro

que estes novos caminhos percorridos pelo Soleil levam ao teatro performativo,

definitivamente. Indo além, ainda que se possa dizer que o espetáculo flerte com a

representação naturalista no cinema, através das características principais do cinema narrativo

clássico que, de fato, pairavam sobre a criação de Les Éphémères como se verá mais adiante,

o resultado cênico final não pode ser considerado como um exemplar do teatro naturalista.

Mesmo que os atores executem ações tidas como naturalistas, em situações cotidianas,

lidando com objetos reais, o fato de estarem sobre plataformas que se movimentam em

39 “Huyssen lembra que as vanguardas históricas recusam separar a arte de sua inscrição no real. Sua visão trata

da performance no seu sentido puramente artístico – e não antropológico. (FÉRAL: 2009, p. 199)

83

translação e em linha reta pelo espaço opera sobre o equilíbrio destes e dos espectadores, por

exemplo, eliminando qualquer vestígio de representação da realidade.

Portanto, seja através da qualidade do trabalho do ator que busca na performance um

conjunto de técnicas para abordar o tema, seja na disposição espacial que coloca espectadores

e atores em um ambiente de compartilhamento de sensações, é mesmo a própria ideia de

representação que fica ausente deste diálogo. E este é um dos pontos que destacam este

espetáculo de todo o repertório da companhia – considerando todos os estilos que esta

percorreu em seus cinquenta e três anos de existência.

Novamente, é a crise da noção clássica de representação que está em jogo e irrompe

em experiências cênicas radicais. Ela estaria vinculada, entre outras coisas, à

dificuldade de dar forma a um mundo fraturado por contradições e incoerências, que

está à beira do irrepresentável. (SÁNCHEZ, 2007, p. 140).

Em Les Éphémères, portanto, se estabelece uma etapa no trabalho de atuação da

companhia que a aproxima do teatro performativo proposto por Josete Féral (2015), que

apresenta uma outra leitura para o fenômeno estético causado pelo impacto da noção de

performance nas artes em geral, do qual derivou, inclusive, o conceito de teatro pós-dramático

de Hans-Thies Lehmann (2005), cunhado na tentativa de eleger um novo momento histórico

no teatro. Para Féral, citando Richard Schechner (2002), o performer é aquele capaz de

“superar ou ultrapassar os limites de um padrão”, cuja ação está suportada pelas ideias de

ser/estar, fazer e mostrar o que se faz. Ele mora no campo criativo das artes cênicas desde

sempre, posto que estas características são suas constituintes, ou seja, não há uma ideia de

superação cronológica de gêneros teatrais, mas sim uma constatação de uma qualidade

essencial da cena que passa a prevalecer. Como consequência, as obras de natureza

performativa não podem ser enquadradas no campo do verdadeiro ou falso, em referência à

ideia de representação também ultrapassada, mas no universo do evento. A cena

simplesmente acontece e deixa-se observar, assim como no cinema.

Tal desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos,

forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma

referência a outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a

cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer

instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de

sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a

linguagem.” (FÉRAL, 2015, p. 122).

84

Imagem 16 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris (2006)

Evoco, aqui, a ideia de um teatro que nasce a partir da imagem e do movimento

(novamente aproximando-se do cinema), no sentido da criação da ação do que propriamente

na dramaturgia cênica. Segundo Féral, o teatro performativo se opõe à ideia da teatralidade

caracterizada pela criação de sistemas de sentido, remetendo à memória e à lógica da narrativa

dramática, ficcional. A performatividade levaria o ator, assim, a desenvolver um aspecto

lúdico em seu processo criativo, partindo da ação para estabelecer uma interlocução entre os

múltiplos sentidos de sua expressividade (corpo, texto, imagens, objetos).

Em Les Éphémères, os atores trabalham em constante movimento de rotação circular

sobre as plataformas, impulsionadas pelos outros atores propulsores que deslocam as

plataformas pelo espaço, acumulando, ainda as ações naturalistas que surgem nas cenas, como

cozinhar (o fogão funciona de fato e a atriz cozinha o macarrão em uma delas), lavar as mãos

(com água real), colocar crianças para dormir em uma beliche, assistir à televisão, esmurrar

uma porta, podar uma árvore, andar de bicicleta, no que seria uma ilustração perfeita do teatro

performativo proposto por Féral. É notável que se assume a ideia de “engajamento total do

artista, colocando em cena o desgaste que caracteriza suas ações (...). Não se trata de uma

intensidade energética do corpo no modelo grotowskiano, mas de um investimento de si

mesmo pelo artista.” (FÉRAL, 2015, p. 128).40

40 É preciso, para Grotowski, descobrir as resistências e obstáculos e eliminar esses impedimentos para, só

então, conseguir encontrar novas possibilidades corporais, vocais, dramatúrgicas, espaciais, etc. O teatrista não

quer simplesmente acrescentar técnica e recursos ao ator, mas depurá-lo de seus vícios. “Não educamos um

ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este

processo psíquico.” (GROTOWSKI, 1971, p. 3) É a transcendência das dificuldades e a retirada dos bloqueios

que contribuem para o reconhecimento dos recursos e regras que regem e abrem um novo Universo. Não é uma

dinâmica somatória, mas eliminatória. “A técnica do ‘ator santo’ é uma técnica indutiva (isto é, uma técnica de

eliminação), enquanto a do ‘ator cortesão’ é uma técnica dedutiva (isto é, um acúmulo de habilidades).”

85

Considerando a temática da peça calcada nos momentos íntimos que compõem a vida

cotidiana de todos e de cada um, provocando identificação imediata entre o imaginário do

espectador e aquilo que ele vê, chancelada pelo testemunho dos outros espectadores diante de

si, a sensação de comunhão entre os presentes é absoluta e imediatamente se estabelece uma

aura que poderia ser considerada, por que não, um encontro espiritual. Aqui também se pode

pensar na atribuição que Féral oferece ao espectador diante de um teatro performativo.

Segundo a autora, este pode tanto ser absorvido pelo risco e o imediatismo do jogo quanto se

manter distante através de um olhar analítico diante do que lhe é apresentado, garantindo a

autonomia e escolha individual. Neste sentido, o teatro performativo, ao contrário da maior

parte dos gêneros teatrais, seria aquele que afeta, principalmente e, sobretudo, a subjetividade

do performer.

A peça conta histórias de cada um, de seres humanos particulares, e as pessoas do

público se reconhecem nessas histórias. Essa concepção veio de uma proposta que

depois foi deixada de lado: a de imaginar que a Terra seria atingida por um asteróide

e que todos iríamos desaparecer. Procuramos pensar o que cada um faria se soubesse

que isso iria acontecer. Ensaiamos dois meses com esse tema. Essa era a ideia inicial

mas percebemos que a forma era mais cinematográfica que teatral. Quando você

entra numa sala escura e vê imagens desse tipo, você acredita nelas. Mas num teatro,

muito próximo do público – no formato que Ariane criou –, essa concepção não era

crível. Deixamos a ideia do asteroide de lado, mas ficou a noção de que a vida é

curta e de que somos efêmeros, ficou a possibilidade de perceber o valor da vida,

deste pequeno tempo em que permanecemos sobre a Terra. Penso também que este

espetáculo nos revela o quanto podemos praticar nossos ideais no cotidiano.”

(CARNEIRO DA CUNHA, 2007, p.60)

Em sua articulação teórica acerca do teatro performativo, Féral expõe as duas

correntes de pensamento: a anglo-saxã, voltada para o caráter antropológico do ato

performativo, e a européia, em particular a francesa, que privilegia o caráter estético e

artístico do ato performativo. Refletindo sobre isto diante do espetáculo de Mnouchkine,

parece justo perceber o percurso do processo criativo da companhia que parte da biografia

íntima dos envolvidos mas acaba por desembocar em uma encenação altamente complexa, em

um entrelace de tramas e personagens que naturalmente provocam no espectador o desejo de

criar suas próprias narrativas ficcionais diante do que assiste, identificando-se ora com a cena,

ora com o espectador a sua frente. A encenação, portanto, persiste em sua teatralidade clássica

(mantendo a assinatura artística da companhia) ainda que dê relevo ao ato performativo em

toda a sua plenitude.

(GROTOWSKI, 1971, p. 30). Grotowski apregoava que o ator deveria “ir além de si mesmo”, superando os

limites físicos e psíquicos, dispensando para isso “um esforço insuportável”. (SCHEFFLER, 2005)

86

Destaco aqui a importância de incluir as proposições de Josette Féral nesta análise,

considerando não só suas análises sobre a cena contemporânea mas principalmente por seus

estudos dedicados exclusivamente ao Théâtre du Soleil. Féral, observa, em especial, a

evolução do trabalho do ator durante estas cinco décadas de existência, e sua análise é

especialmente cara neste sentido pois guarda o caráter íntimo dos momentos da companhia

compartilhados consigo, ao mesmo tempo em que suas construções teóricas dão suporte às

análises, multiplicando seus sentidos, especialmente ao se considerar os tempos que

antecederam o vasto e democrático compartilhamento de vídeos através da rede mundial de

computadores.

Neste sentido, entre algumas máximas de Ariane Mnouchkine iluminadas por Josette

Féral (1995) em uma das entrevistas concedidas está a ideia de “Estar no presente.”

ARIANE MNOUCHLINE – (...) Por que subitamente você começa a chorar de

alegria ou de reconhecimento?

JOSETTE FÉRAL – Porque nós percebemos naquele momento a exatidão daquilo

que acontece, a verdade daquele momento ao qual assistimos, independente do que

ele exprime.

ARIANE MNOUCHLINE – Exatamente, a emoção vem do reconhecimento, do fato

de que é verdadeiro.

JOSETTE FÉRAL – Este reconhecimento não é somente do conteúdo, do que se

diz, da vida que é atuada, é o reconhecimento da exatidão daquilo que se passa em

cena percebido pela performance do ator. (...) Há no gesto alguma coisa que se eleva

da necessidade do momento, da urgência. (...) Você diz que o ator deve estar no

presente.

ARIANE MNOUCHLINE – Atenção, eu não digo “estar presente”, mas estar no

presente. O ato teatral acontece no instante e, uma vez que ele passa, outra coisa

acontece. (FÉRAL, 1995, p. 42)

“Estar no presente” também é a diretriz que norteia as escolhas artísticas da

companhia, mantendo vivo o diálogo com seu público, ainda que, em certos casos, os

espetáculos do Théâtre du Soleil possuam certa potência profética da arte diante da vida. Em

seus processos de criação e estágios abertos, Mnouchkine evoca a imagem do artista como um

viajante, sobre um tapete mágico, que, através de sua fé cênica e seu olhar visionário, é capaz

de transportar também a todos os que o assistem. Evocando esta imagem, é como se o artista

viajasse no mágico tapete atravessando o tempo, em um insight, e vislumbrasse o

acontecimento antes da sua transformação em fato, antes de elaborá-lo em linguagem,

oferecendo sua criação como lampejos de consciência, de iluminação. As bruxas de Macbeth,

a famosa peça escocesa de Shakespeare e, curiosamente, um recente espetáculo do Théâtre du

Soleil (2014), importam em sua profecia, que como uma obra de arte, é um enunciado

oferecido a um interlocutor que, sugestionado ao acaso, o atualiza como “verdade”. Penso na

ideia de “atualização” como o “update” inglês, como a aquisição da informação mais recente,

87

que atualiza os dados e os mantém em sintonia constante com o presente. Mas penso também

na ideia de “atualização” como a passagem da potência ao ato, da presentificação do virtual.

Portanto, a potência envolvida no ato criativo não mora somente na obra, mas se constrói

através da obra, na relação entre o artista e o interlocutor, através da atualização, da

presentificação da obra, que está em constante movimento, posto que se renova tantas vezes

quantas forem as suas fruições. É dentro deste contexto que os traços da performance surgem

neste espetáculo do Théâtre du Soleil.

Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil nos acostumaram a tomadas de posições

fortes, a engajamentos explícitos às vezes criticados pela clara propensão em reduzir

a complexidade do mundo em nome de um processo autoritariamente instruído. Essa

incisividade de opiniões agora se atenua, pois, situação inesperada, o Soleil, já não

dissocia, com sua costumeira nitidez, os culpados das vítimas. Pela dor e também

pela ternura desses relatos (do espetáculo Les Éphémères) ninguém mais é

responsável, tampouco levado ao pelourinho. A não ser a vida, simplesmente, a vida

que se apresenta como uma meada de contradições, desastres, confusões,

reencontros. Não há em Les Éphémères nem acusados, nem acusadores, nem

vencidos, nem vencedores… E o espetáculo adota a postura cara a Tchecov, a do

“testemunho imparcial”. Não julga, não responde, só conta “relatos que poderiam

ser objetos de vários contos”, parafraseando a célebre fala de Trigorin em A Gaivota.

(BANU, 2007, p. 32).

2.3 Gatilhos da memória: lembranças do processo de criação

O que se manifesta, tanto no plano teórico como no prático, na nossa preocupação

ativa com o passado? Por que fazemos questão de estabelecer a história verdadeira

de uma nação, de um grupo, de uma personalidade? Para esboçar uma definição

daquilo que, neste contexto, chamamos de verdadeiro, não devemos analisar

primeiramente essa preocupação, esse cuidado, essa “vontade de verdade”

(Nietzsche) que nos move? Entendo com isto que a verdade do passado remete mais

a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente

científica) entre “palavras” e “fatos”. (GAGNEBIN, 2006, p. 39)

O ator deve ser côncavo e convexo, simultaneamente. (MNOUCHKINE)

Para a análise sobre o espetáculo Les Éphémères que aqui proponho, evocando a

performatividade na cena e o aspecto biográfico que alimenta o tema desta encenação, seria

estruturante incluir a voz dos seus criadores entre as fontes de pesquisa para o trabalho. Nesse

sentido, tive a chance de realizar uma entrevista, em 9 de junho de 2016, com a atriz franco-

brasileira, Juliana Carneiro da Cunha,41 integrante da companhia Théâtre du Soleil desde

41 Juliana Carneiro da Cunha é uma atriz e bailarina brasileira radicada na França. Na Europa, trabalhou

com Maurice Bejart, Maguy Marin e Ariane Mnouchkine. Desde 1990, ela faz parte do grupo do Théâtre du

Soleil, dirigido por Ariane Mnouchkine. Destacou-se no cinema brasileiro por sua premiada atuação no

filme Lavoura Arcaica (2001), dirigido por Luiz Fernando Carvalho. Seu trabalho cinematográfico mais

88

1990, pessoalmente e na presença da comunidade da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, acerca do processo criativo de Les Éphémères.42 Suas

contribuições foram imprescindíveis no sentido de trazer vigor, ampliar as possíveis leituras

sobre o objeto de pesquisa, validar articulações intuitivas entre observações e análises

pensadas até então e iluminar um possível caminho para analisar a transposição de parte

importante da biografia de Ariane Mnouchkine para a cena, através de improvisações dos

atores, e o quanto isto semeou o solo para o espetáculo seguinte da companhia, Os Náufragos

do Louca Esperança (2010). Em paralelo, alguns meses depois, pude entrevistar a diretora

Ariane Mnouchkine, através do envio de perguntas via Internet, respondidas com pequenos

trechos de áudio, referentes a algumas das perguntas, os quais transcrevi e traduzi, visando

criar um respaldo coerente e verdadeiro para as minhas análises.

O roteiro que montei para a entrevista com Juliana Carneiro da Cunha teve por base

principal algumas cenas do espetáculo que eram bastante representativas dos aspectos que são

objeto de análise: os processos de cineficação da cena no espetáculo, o trabalho performativo

dos atores (e a passagem da máscara a esta nova etapa) e a abordagem sobre o material

biográfico na criação das cenas. Todas as perguntas que propus à atriz estão disponíveis como

anexo deste trabalho, neste momento, entretanto, irei introduzir a entrevista como ela se deu e

me deter àquelas perguntas que mais elucidaram os aspectos chaves citados. Importa dizer

que tivemos uma pequena reunião, eu e Juliana, anterior à entrevista, onde pude fazer uma

prévia das perguntas. Desta forma, a entrevista seguiu de forma mais fluida, com um

encadeamento das ideias já proposto pela própria atriz, acerca dos temas que gostaria de

abordar.

Para a entrevista com Ariane Mnouchkine, estruturei as perguntas em quatro blocos: a

peça, teatro x cinema, biografia em cena e transposição para o filme/registro. Nem todas as

recente é O Veneno da Madrugada (2004), filme dirigido por Ruy Guerra, onde atua ao lado de Leonardo

Medeiros, com quem trabalhou também em Lavoura Arcaica. Também atuou recentemente na televisão

brasileira na minissérie Hoje é dia de Maria (2005), dirigida por Luiz Fernando Carvalho; na novela Sete Vidas,

dirigida por Jayme Monjardim, e atualmente está no ar em Liberdade, Liberdade, de Vinicius Coimbra, como a

Alexandra, a mecenas dos rebeldes, recém-chegada de Paris. Entre seus trabalhos em teatro, destacam-se: As

lagrimas amargas de Petra Von Kant, de R. Fassbinder, direção de Celso Nunes, com Fernanda Montenegro e

Renata Sorrah (1982); Mão na luva, de Oduvaldo Viana Filho, direção de Aderbal Filho, com Marco Nanini

(1984); Les Atrides, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil(1990); La Ville Parjure, de Hélène

Cixous, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (1994); Le Tartuffe, de Molière, direção de Ariane

Mnouchkine, Théâtre du Soleil (1995); Et soudain des nuits d’éveil, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du

Soleil (1997); Tambours sur la Digue, de Hélène Cixous, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil

(1999); A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, direção de Felipe Hirsch, com Marco Nanini e

Guilherme Weber (2003); Les Éphémères, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2006); Les

Naufragés du Fol Espoir, direção de Ariane Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2010); Macbeth, direção de Ariane

Mnouchkine, Théâtre du Soleil (2013). 42 A entrevista na íntegra segue como anexo deste trabalho.

89

perguntas foram respondidas, por conta do tempo escasso da diretora que estava às voltas com

o espetáculo em cartaz Un Chambre en Inde (2016) e com a mobilização da companhia em

torno das questões políticas envolvendo as eleições para a presidência da França que

aconteciam no momento. No entanto, as principais lacunas foram preenchidas, de modo que

no texto que se segue, irei compor um mosaico com as vozes destas duas artistas, criadoras

essenciais do Théâtre du Soleil, tomando como linha principal a entrevista feita com Juliana

Carneiro da Cunha.

No início da entrevista apresentei a atriz aos presentes, destacando seus principais

espetáculos no Brasil e na França, como integrante do Théâtre du Soleil, e, desde este

momento, foi possível compreender o quanto sua trajetória foi decisiva para os resultados

atingidos no espetáculo. A partir disto, Juliana tomou a palavra, comentando a rápida

passagem do tempo ao lembrar que a companhia já completaria 52 anos em 2016, posto que

foi fundada em 1964, como fruto do teatro exercido por um grupo de estudantes, que alcançou

bastante êxito com o primeiro espetáculo 1789 e, através do que hoje se denominaria uma

“ocupação”, conseguiu o direito de permanecer nos galpões recém-abandonados pelo

exército, a Cartoucherie de Vincennes. Ela confidenciou que, ainda que sem uma validade

oficial, o documento adquirido em 1964 através da boa vontade da então “Senhora da

Cultura” – uma espécie de secretária de cultura da época – garantiu que a companhia ali

permanecesse e mantivesse sua sede até hoje, através do pagamento de um valor simbólico,

lançando as bases do teatro popular que praticam, com ingressos a preços acessíveis e uma

estrutura de associação comunitária entre os seus integrantes, na qual todos recebem o mesmo

salário e tem as mesmas atribuições e responsabilidades.

Juliana descreveu o processo criativo padrão da companhia, onde os atores propõem as

cenas à diretora, de forma que não há uma hierarquização pré-definida nos espetáculos e em

seus elencos – as cenas e os personagens se consolidam à medida que se tornam evidentes os

avanços e as necessidades do espetáculo, ao olhar de Mnouchkine, e à medida que o tempo se

extingue, próximo à estreia do espetáculo.

Particularizando o espetáculo central da entrevista, a atriz contou que Les Éphémères

veio após o espetáculo Le Dernier Caravanserail. Este retratava o ponto de encontro entre as

várias caravanas de imigrantes que vinham do Oriente para a Europa, como fugitivos das

guerras civis, disputas, etc. Ela ressaltou que Mnouchkine dá bastante importância à forma e à

espacialização dos espetáculos, e nesse último utilizou o dispositivo de pequenos solos

móveis, em plataformas volantes, onde ocorriam as cenas, sem que os atores pusessem os pés

no chão em nenhum momento do espetáculo.

90

Imagem 17 - Le Dernier Caravanserail.

Cartoucherie, Paris, 2003. Foto de Charles-Henri Bradier.

Analisando este fato a partir das colocações de Picon-Vallin acerca do processo de

transposição dos espetáculos Tambours sur la Digue e Le Dernier Caravansérail, arrisco a

proposição de que a “forma”, nas palavras de Juliana é, de fato, um elemento de base para a

criação de Mnouchkine, exercendo mesmo a função de ponte entre uma criação e outra e de

que a estética de cada espetáculo surge da relação espacial estabelecida. Ou, em outras

palavras, cada espetáculo tem sua semente geradora engendrada no seu espetáculo antecessor,

e ela está vinculada à utilização do espaço e do movimento dos atores.

Sobre o “germe” de Les Éphémères, Juliana contou que Mnouchkine partiu de uma

visão (como a encenadora denomina a proposta intelectual e imagética que dispara os

processos criativos da companhia) de que o planeta Terra seria atingido por um asteróide

dentro de determinado espaço de tempo, extinguindo a humanidade por conta da poeira que

impediria a luz do Sol de iluminar a Terra. Portanto, todas as cenas propostas e improvisadas

pelos atores partiriam, então, deste princípio.

Com o desenvolvimento do trabalho, no entanto, e diante do espaço concebido para o

espetáculo (com as galerias de plateias face a face, e a cena percorrendo o canal entre elas),

Mnouchkine julgou que a plateia estaria muito próxima da cena, tendo menos possibilidade de

tomar como verossímil uma proposição tão fantástica. Em sua fala aos atores na ocasião,

Mnouchkine observou que o cinema teria mais recursos para garantir a crença do público no

realismo fantástico de grandes fenômenos físicos através de efeitos especiais e possibilidades

de captação de imagens, cortes e montagem, mas o teatro pediria outros artifícios. Portanto,

91

neste momento, a proposta do asteróide foi abandonada. Mas os atores já haviam introjetado o

elemento trágico em suas proposições, de modo que as cenas improvisadas e apresentadas

continuaram sendo inspiradas em elementos muito profundos e particulares, íntimos da vida

dos atores. É curioso pensar que o elemento alegórico do “fim dos tempos” levou o elenco a

trabalhar com suas autobiografias. É como se, dentro do método de criação da companhia –

comprometido desde sempre com a presença e o estado do ator, e a crença no concreto –, a

única resposta formal criativa à altura de uma proposição absolutamente fantástica residisse

no que há de mais autêntico em cada artista, a sua própria história de vida. Portanto, para dar

um contorno criativo e realista a uma ideia surreal, o artista aninhou-se na realidade palpável

de sua própria memória. O único “fim dos tempos” passível de representação cênica seria o

fim de si próprios.

Em seguida, Juliana comentou a duração do espetáculo, de sete horas, distribuídas em

sessões de três horas a cada dia de apresentação (de quarta a domingo), com intervalos onde o

público era convidado a partilhar entre todos um pequeno lanche trazido pelos atores, em um

ambiente de total confraternização. Parece que, considerando a densidade das situações das

cenas e a proximidade entre o palco e a plateia, esses momentos de suspensão do espetáculo

forneciam “restauração” ao corpo, através do alimento, e ao espírito, através do encontro real

e da possibilidade de elaboração coletiva concretizada na comunhão do encontro verdadeiro.

E a empatia que se estabelecia entre os presentes era tão grande que, após as sete horas, o

público não queria deixar o teatro, assim como os atores, que ainda se sentiam preenchidos de

sentidos. A atriz lembrou que chegaram a preparar uma terceira parte do espetáculo que,

porém, nunca veio a público, tamanha foi a entrega dos atores ao projeto.

Em um determinado momento da entrevista, assistimos às cenas selecionadas exibidas

em projeção.43 Em seguida, Juliana retomou a palavra e descreveu o ambiente do Théâtre du

Soleil, no qual o espectador é convidado a entrar quando chega ao teatro – seja na

Cartoucherie, seja em turnês onde a estrutura arquitetônica do teatro é transportada e

inteiramente reproduzida. Juliana descreveu a imagem do espectador recebido com flores,

alimentos e bebidas, cercado por uma decoração específica que alude a cada espetáculo e

conduz o espectador a um universo de magia e suspensão do tempo/espaço cotidianos,

preparando-o para a fruição de histórias épicas, arquetípicas, que procuram narrar a trajetória

da humanidade pelo mundo ou em diversos mundos.

43 O espetáculo era dividido em quatro partes, assim como o DVD de registro do mesmo. Assim, as cenas

selecionadas para exibição durante a entrevista foram: Recueil 1 (Le Merveilleux Jardin, L’Échographie, La

Saloperie e La Chambre de la Mère) e Recueil 2 (Aux Archives, Un Bel Instant, La Promenade, Le Pardon,

Paris e Un Endroit Merveilleux).

92

Imagem 18 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.

No entanto, como explicitei, Les Éphémères é um espetáculo que se destaca no

repertório da companhia justamente por não apresentar o elemento épico em sua dramaturgia,

tampouco possui uma expressividade exteriorizada. Sobre isto, Juliana comentou que, nas

vezes em que se apontou Les Éphémères como um espetáculo naturalista, Mnouchkine

sempre respondeu que o objetivo era apresentar o lado épico da alma, e não da narrativa. De

fato, ao interiorizar a ideia do fim, ou da morte, o tema passou ser a memória, uma análise

retrospectiva da vida, aquilo que acontece antes do fim. E, naturalmente, os momentos mais

contrastantes, conflituosos, paradigmáticos, serão os que oferecem material mais rico para a

construção das cenas. Assim, o elemento épico surge desta fonte íntima e delicada, assumindo

o protagonismo das cenas e desocupando a narrativa da função de fio condutor do espetáculo.

O que faz a peça avançar, portanto, e talvez até de forma cíclica, são os pequenos impulsos

contidos em cada célula, em cada cena. Não por acaso, o movimento contínuo das pequenas

plataformas circulares de cenário, evocam uma ideia de fluxo, porém sem uma direção única,

apontando para um tempo circular, onde presente, passado e futuro misturam-se

horizontalmente.

Sobre este assunto, indaguei Ariane Mnouchkine a respeito do quanto teria sido

proposital a influência da linguagem cinematográfica no processo de criação do espetáculo,

posto que era possível identificar a construção das cenas, das sequências, a qualidade do

trabalho dos atores, o cenário realista e o próprio tema geral com um determinado tipo de

cinema. A isto Mnouchkine respondeu que, de fato, minha análise estava correta, este

espetáculo teria resultado desta forma, mas que em nenhum momento isto foi uma escolha

93

consciente. Ela comentou que durante o processo não houve essa intenção, que a influência e

o amor pelo cinema, por parte dela e dos atores, é visível e sensível neste espetáculo, mas a

questão principal foi o inconsciente, as lembranças e, principalmente, aquilo que fica gravado

na história de cada um.

E eu me dou conta de que é um conjunto cinematográfico, exatamente como ela diz,

nas montagens de sequência e no movimento geral dos pequenos cenários, que não

eram naturalistas, mas que eram o extrato, a essência do cenário, da direção de arte.

Mas isso veio inconscientemente, como um monte de coisas quando trabalhamos. A

gente procura, mas, no fundo, eu não sei porque nós procuramos nessa direção. Há

coisas misteriosas que nos guiam. Para mim, o teatro e o cinema são duas artes

extremamente “primas”. A única diferença fundamental é que no cinema há o

suporte fílmico, mecânico, e no teatro não há nada além do corpo vivo, dos viventes,

que transforma em meros mortais, os atores. (MNOUCHKINE, 2017)

A partir disso, me pergunto se, já que a fonte de inspiração desta criação foi, nas

palavras da diretora, o “inconsciente”, o conjunto de lembranças e memórias de cada um,

narradas pelo grupo e para o grupo – assim como em um processo psicanalítico –, dadas as

proximidades entre as figuras de linguagem no âmbito do cinema e aquelas descritas na

interpretação dos sonhos de Sigmund Freud, por exemplo, especialmente a condensação e o

deslocamento,44 o cinema não surge como estrutura e linguagem deste espetáculo justamente

porque oferece as ferramentas para lidar com o tema do “inconsciente”, de forma justa e

eficiente. Sobre este assunto, me aprofundarei mais adiante, no próximo capítulo.

Sobre a montagem das proposições cênicas, Juliana observou que todos os atores

traziam narrativas autobiográficas sem que houvesse a obrigação de que cada ator trabalhasse

apenas sobre seu próprio material. Pelo contrário, a título de exemplo, ela comentou que duas

atrizes se apropriaram, aos poucos, de alguns dos elementos da biografia de Mnouchkine e

propuseram cenas que, somente depois, foram sendo reconhecidas pela encenadora.45 E o

mais curioso foi que, mesmo sem conhecer todos os detalhes de cada história, Mnouchkine

comentou como as cenas finalizadas apresentaram fielmente os fatos, da forma como

aconteceram. Juliana contou o modo como a última cena do espetáculo, por exemplo,

44 Para Freud, o sonho seria produzido por dois elementos centrais: a condensação e o deslocamento. A

condensação seria o mecanismo pelo qual ideias que tenham pontos em comum são fundidas em imagens

únicas, estabelecendo uma associação entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Já o deslocamento seria

o mecanismo pelo qual um conteúdo latente seria substituído por um de seus traços característicos, por meio da

censura. Assim há uma transferência da importância deste conteúdo para outro elemento, aparentemente

periférico. Estes dois mecanismos também podem ser reconhecidos como a metáfora, no primeiro caso, e a

metonímia, no segundo. 45 Mnouchkine havia contado algumas passagens da sua história de vida, assim como os outros integrantes da

companhia, durante as rotineiras reuniões e trocas de arquivos que aconteciam – e acontecem – todos os dias na

hora do café da manhã, na própria cozinha do teatro.

94

retratava, exatamente, o encontro acontecido poucos anos antes, entre a própria Mnouchkine e

um geólogo, em uma praia da Bretanha, quando ela perguntou sobre informações acerca de

uma antiga pensão onde as avós, e ela própria aos quatro anos, se refugiaram do exército

alemão nazista. A cena proposta retratou fielmente o ambiente da praia e o estado em que os

“personagens da vida real” se encontraram diante da coincidência: este geólogo, encontrado

ao acaso, vinha a ser o neto da senhora que trabalhava nessa pensão durante a época e os

levou até o local, o que causou enorme comoção em todos.

Quando perguntei à Mnouchkine como tinha sido a experiência de ver extratos de sua

biografia tornados cenas, se a encenadora havia sentido necessidade de interferir de alguma

forma, ou qual teria sido o espaço deixado para a ficção criada pelos atores nesta cena em

específico, ela respondeu que o espaço criativo dado aos atores teria sido total, posto que eles

decidiram pegar este material para a criação, sem o envolvimento dela. Ela contou que o que

aconteceu foi que num momento dado, ela viu os atores atuando sobre tantos assuntos tão

pessoais, que ela resolveu compartilhar do momento contando uma memória forte, mas não

com o intuito de que a transformassem em cena. Quando uma atriz trouxe uma proposição,

evidentemente sobre a sua interpretação de um momento da infância da diretora, esta chegou

a pensar nas várias camadas criativas ali presentes, afinal seria uma reinterpretação de sua

lembrança, essa já contada pela senhora de idade que Mnouchkine era à época, ou seja, uma

senhora de sessenta e cinco anos, contando sobre um fato ocorrido quando ela tinha dois ou

três anos. Mnouchkine contou, ainda, que a impressão que isso lhe causou foi a emoção de

relembrar dos seus avós, perguntando-se se os seus avós ou mesmo os personagens que eles

deveriam ter conhecido na época, “estariam vendo aquilo tudo de alguma parte do céu, ou do

limbo, ou de onde suas almas estão agora. Foi uma emoção, mas não foi, felizmente, uma

libertação. No fundo, curiosamente, os personagens que me fizeram me identificar

verdadeiramente com a menina foram, efetivamente, a criança que atuou a menina e Juliana

quando ela atuou Nora.” (MNOUCHKINE, 2017)

De fato, é bastante interessante perceber o uso que foi feito deste material biográfico

na criação das cenas. Neste caso, a partir de uma memória real, cujo impacto é enorme, pois

mostra o risco do encontro entre uma menina judia e um soldado nazista numa praia deserta

durante a Segunda Guerra Mundial, toda uma trama de ficção foi montada, misturando

personagens inventados e figuras reais. Assim, a própria trajetória de vida desta

menina/personagem mostrada no espetáculo, da infância até a sua morte, reúne fatos reais e

fictícios, e, já que se tratava da história da própria encenadora, esta pôde ver a encenação de

um possível percurso de vida seu que, no entanto, não aconteceu realmente. Só na ficção.

95

Talvez pela grande familiaridade e convivência cotidiana entre os membros da

companhia, talvez pela capacidade dos atores em “viverem” a cena verdadeiramente, ainda

que em circunstâncias imaginárias, ou talvez pela energia de comunhão que emanava do

grupo neste trabalho, o fato é que essa cena, como outras, guardavam uma tal fidelidade com

a memória autobiográfica de cada um, que possivelmente se poderia falar delas em nível

psicanalítico. Sobre este assunto, Juliana observou que além das biografias, outras histórias

reais vieram à cena, porém trazidas de reportagens jornalísticas. Aqui, igualmente, as lacunas

foram preenchidas com o imaginário dos atores, uma das funções da memória.

Aproveito para comentar outra questão que fiz à Mnouchkine, a respeito deste assunto.

Citando a experiência do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, em que o material biográfico

dos participantes estimula o surgimento de questões psicanalíticas, perguntei se houve alguma

situação que se aproximasse disso durante os ensaios, ou se houve a necessidade de alguma

interferência direta da diretora, lembrando que ela teria formação profissional como

psicóloga. A isto ela respondeu de forma direta.

Eu não sou psicóloga, não sou uma médica psicóloga. Meu trabalho não é de

analisar inconsciente, meu trabalho é deixá-lo se expressar. É totalmente diferente.

Deixá-lo se expressar com seus mistérios, suas incompreensões, suas metáforas,

seus sonhos... Então efetivamente em Les Éphémères, provavelmente como em

muitos espetáculos, mas especialmente neste, há muito inconsciente que foi

expresso. Mas eu não tinha nem o poder, nem o direito de pretender analisar o que

se passava. A única coisa que eu podia fazer era escolher e guardar alguns desses

momentos de expressão, porque eu os achei emocionantes, justos, passionais. Mas

artisticamente, não psicologicamente. O encenador não tem o direito de tentar

patrulhar a consciência dos atores ou de dizer aquilo que eles não sabem sobre eles

mesmos, não é esse o meu é ofício. Meu ofício é colocar em forma mesmo o que é

incompreensível. (MNOUCHKINE, 2017)

Em determinado momento falou-se da importância da música de Jean-Jacques

Lemêtre, composta para o espetáculo e executada ao vivo e em pequenos trechos gravados,

que reforçaram o caráter o épico e íntimo das cenas. Pela estrutura do espetáculo que

articulava as diversas narrativas, de forma que as cenas não se sucediam necessariamente de

forma cronológica, a música foi composta como leitmotiv para cada narrativa, lembrando o

efeito amplamente utilizado no cinema e no audiovisual.

96

Imagem 19 - Jean-Jacques Lemêtre durante os agradecimentos

no espetáculo Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.

Uma das minhas questões principais sobre o espetáculo era a origem daquela

disposição de palco e plateia, tão diferente do palco italiano que vinha sendo utilizado há

décadas. Sobre isto Juliana explicou que, na verdade, o espaço havia sido colocado desta

forma por Eugênio Barba, que acabara de se apresentar na Cartoucherie, e Mnouchkine

propôs, então, a utilização daquela mesma disposição espacial como outro estímulo sensorial.

Aqui abro um parêntese para reproduzir a tradução de uma carta escrita por Ariane

Mnouchkine a Eugenio Barba, acerca do espetáculo, que ilustra de forma precisa o tipo de

trabalho desenvolvido por ela e pelo Théâtre du Soleil.

Caro Eugenio,

Nós vamos começar logo. Em um mês, o público estará aqui. Eu posso ver os

seus rostos. Nós incorporamos pequenas luzes nas filas de plateia da sala. Eu posso

ver todos os seus rostos. Todos os nossos rostos. Eles estão bem organizados. Como

para um coral em uma escola inglesa ou uma disciplina da Faculdade de Medicina.

Uma aula de autopsia, ou para um pequeno Parlamento das Origens. De nossas

origens. Aninhados em nosso novo nó de madeira, eles examinam nossa pequena

pista elíptica. Eles esperam. Eu os vejo. Eu creio neles, eu os amo. Os próprios

atores estão ocultos.

Eu fui muito inspirada pela arquitetura do cenário do seu último espetáculo.

Aquele que você atuou em nossa casa. Maior. Nossa família tem significativamente

mais bocas para alimentar do que a sua.

O espetáculo chama-se Les Éphémères. Na desordem. Partimos.

O mundo está explodindo ao nosso redor… e nós, nós tentamos fazer um

espetáculo sobre… sobre o que fazer? Se eu te dissesse que os atores e eu mesma

nos encontramos trabalhando sobre… quase nada. Este quase nada que nós

chamamos de infelicidade, felicidade, frequentes arrependimentos, às vezes, alegres

revelações. Nossos pequenos apocalipses. Nossas trilhas mal traçadas que já

desapareceram. Nossos traços, tão invisíveis quanto os de uma serpente sobre o sal.

Eu não sei porque eu quis te escrever esta carta. Eu fiz sessenta e sete anos este ano.

Eu sou a mais velha. A mais nova tem vinte anos. Entre ela e eu, agora existem

todas as idades.

O mundo está explodindo ao nosso redor… as geleiras estão derretendo, os

oceanos sobem, as ilhas dos nossos sonhos serão engolidas, e nós ainda somos

“analfabetos do sentimento”. Trata-se de nós, de ti e de vocês. Nós investigamos,

mas são pessoas como nós que nós iremos ver. Estes que nos revelam nossa

coragem, nossa bondade, nossa fraternidade, eu os chamarei de Salvadores, e estes

que nos revelam nossa vergonha, nossa covardia, nossa indiferença obstinada, eu os

97

chamarei de Sabotadores. Nós somos salvadores e sabotadores da nossa vida, nós

somos náufragos e salvadores. Náufragos porque nós comemos o bem de nossas

crianças, salvadores porque nós ainda queremos que eles leiam os livros. Eis a

diferença. Eu tento com muita cegueira nos iluminar. A ser continuada. (Trecho do

programa de Os Efêmeros, criação coletiva do Théâtre du Soleil, encenação de

Ariane Mnouchkine, 2007).

A meu ver, esta carta revela o tênue fio condutor deste espetáculo que nasce da

consciência da finitude e do desejo de ultrapassá-la. Demonstra também a irmandade entre

estes artistas, testemunhas dos percursos de cada um, assim como as duas plateias bifrontais,

de ambos os espetáculos, testemunham a experiência uns dos outros. São artistas cúmplices

também na natureza de seus fazeres artísticos, artesãos na contramão das tendências, o que os

leva à consciência de que seus traços possam se tornar “invisíveis”, pela condição efêmera da

arte e da própria vida. E talvez esteja aí também o motivo pelo qual as autobiografias ganham

a cena: se a memória tem a função de turvar o passado, em condensação, a arte tem o poder de

eternizá-la, multiplicando suas leituras.

Sobre a escolha do espaço bifrontal, Mnouchkine comentou. Na entrevista, que já

tinha utilizado esta formação espacial em um espetáculo feito em apresentação única, em

1989, sobre alguns minutos do processo de Václav Havel e de outros signatários da Charte

77.

Outra questão que levantei foi acerca das plataformas circulares como espaços de

cena. Já que elas foram criadas no espetáculo anterior, me interessei pela passagem deste

veículo, literalmente, de um espetáculo a outro. Juliana observou que, a princípio, atores e

diretora combinaram que as “plataformas” não seriam utilizadas por terem sido muito

marcantes no espetáculo anterior. Porém, pouco a pouco, “sorrateiramente” como comentou,

os atores começaram a propor cenas sobre as plataformas e que, dado o espaço elíptico do

corredor, as plataformas foram sendo arredondadas para que pudessem transitar de forma

mais fluida. A partir desta fala da atriz, penso que, de fato, havia a necessidade de um

movimento pela passividade, pelo qual os atores pudessem se deslocar pelo espaço,

guardando a intimidade proposta pelas cenas, como que “carregados pela vida”. Portanto, as

“plataformas”, novamente, surgem da necessidade do momento e não como uma imposição

da encenação.

Essa ferramenta trouxe, ainda, outros benefícios ao espetáculo, pois assim foram

ampliadas as possibilidades de movimento, como a translação, que fortaleceu ainda mais o

caráter cinematográfico da estética da cena: pelo movimento de órbita, o espectador tinha a

sensação do voyerismo diante das cenas, ao observar também aquilo que os atores não podiam

ver (as suas costas, o fundo do cenário, os segredos escondidos); o movimento em moto-

98

contínuo circular materializava o tempo das cenas, que ora ganhava velocidade, ora era

ralentado, de acordo com a dinâmica da cena e o interior dos personagens, e, por fim, permitia

que todos os espectadores tivessem uma visão expandida do espaço. As pequenas plataformas

arredondadas também evocavam a imagem de pequenos satélites em órbita constante,

alinhados entre si, pequenas células que surgiam e desapareciam em um fluxo de movimento

ao qual eram alheias, em uma forte metáfora ao fluxo da vida, ou, ainda, aos asteróides em

movimento que podem, sim, um dia, vir a chocar-se.

Sobre a preparação dos cenários realistas sobre as plataformas, Juliana nos contou que

os atores ficavam por muitas horas preparando essas plataformas, com tal nível de

detalhamento que os espectadores podiam reconhecer os objetos como de suas próprias

histórias e memórias, fortalecendo a familiaridade e a intimidade entre a cena e a memória de

atores e espectadores. “Mas eu via a chaleira da minha avó! Mas você tinha uma cômoda

idêntica a da minha tia! (...) Eram coisas muito familiares, a gente reconhecia os móveis, os

objetos, os brinquedos…”, comentou Juliana.

A preocupação com o naturalismo das ações executadas era tamanha a ponto de os

atores maquinarem, por exemplo, uma traquitana para que uma torradeira funcionasse em

cena, torrando o pão, que saltava para fora. A atriz contou:

As pessoas eram muito entusiasmadas, passavam o dia fabricando uma coisa que

seria o máximo (...) De repente o menino põe dois pães, assim, e de repente, puf, sai

da torradeira! A torradeira funcionou em cena, a gente sentia o cheiro do pão

torrado! (...) Você como espectador, sentir o cheiro do chocolate quente, porque

estava ali do lado! (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)

Juliana explicou, ainda, que os atores ensaiaram por onze meses, chegando às oito e

meia da manhã na Cartoucherie, o horário de chegada rotineiro, mas as apresentações das

cenas à diretora só iniciavam às dezessete horas, devido ao tempo necessário para a

montagem destas plataformas de cenários. No entanto, o esforço fazia-se valer e, conforme

Juliana, algumas cenas permaneceram intactas desde sua primeira improvisação até o

espetáculo final. A preparação das improvisações incluía também os figurinos, a escolha do

tema com o músico, a combinação com os atores que empurrariam as plataformas, guardando,

porém sempre, a lacuna para a improvisação, para que o jogo espontâneo pudesse emergir.

Outra questão intrigante para mim era sobre a sensação vivida pelos atores ao executar

ações tão cotidianas e naturalistas, em cima de plataformas em constante movimento. Minha

hipótese era de que o efeito neutralizaria a naturalidade destas ações, oferecendo uma

plasticidade e uma qualidade ao movimento que devolveria sua teatralidade. Juliana comentou

99

que isto, como tantos outros efeitos, não foi predeterminado, mas que, posteriormente,

puderam concluir:

É como um cinema, só que em vez de ser uma câmera que gira, a câmera fica parada

e as coisas acontecem. Tanto que este filme (registro do espetáculo a que assistimos)

foi um filme de captação, feito nos últimos quatro dias em que a gente apresentou o

espetáculo em Saint Etienne. (...) Tinham quatro câmeras, filmaram dois dias e

depois fizeram a montagem. Não houve um filme feito. Porque nos últimos

trabalhos que a gente tem feito, Ariane consegue fazer um filme, realmente um

filme, não é uma peça filmada. É um filme, até um pouco diferente da peça. Mas aí

não, era uma captação (...). O jeito que ela era feita, já era cinema, não tinha mais

que fazer movimento de câmera nenhum.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)

Imagem 20 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.

Analiso que a sensação de voyeur que o espectador poderia experimentar, de “olhar

pelo buraco da fechadura” aquelas cenas como pequenos espetáculos da vida real. Juliana

reforçou que sim, o público, muito próximo, identificava-se, e se testemunhavam, uns aos

outros, emocionando-se. “Muitas pessoas disseram que nunca haviam chorado no teatro e que

tinham chorado ali. E davam muita risada também. Era muito emocionante (...), uma

confraternização muito forte.” (CARNEIRO DA CUNHA, 2016).

Imagem 21 - Les Éphémères. Cartoucherie, Paris, 2007.

100

Outra questão que quis tratar na entrevista dizia respeito a uma sequência na qual

Juliana participava e que me parecia intrigante por travar um encontro entre uma atriz com

atuação absolutamente naturalista e a outra com um trabalho bastante expressionista, que me

fazia pensar no trabalho com máscaras. Tratava-se de uma sequência de cenas que mostravam

a evolução na relação entre uma senhora de idade bastante avançada e sua médica

ultrassonografista, interpretada por Juliana.

Juliana nos contou um pouco do surgimento dessas cenas e as consequências

decorrentes do trabalho. Ela nos disse que a personagem de Madame Perle, interpretada pela

atriz de origem iraniana Shaghayegh Beheshti (Shasha), nasceu, de fato, através do uso da

máscara de Madame Pantalon, a máscara do Pantaleão jogada por uma mulher, no jargão do

Théâtre du Soleil.46 A atriz, muito jovem, que se propunha a fazer uma senhora de idade,

tinha dificuldade de entrar em cena sem a máscara. No início das proposições, Juliana

interpretaria uma psicóloga, porém, depois tornou-se uma ultrassonografista (operando um

aparelho que funcionava em cena, de fato).

Eu fiquei olhando para ela assim, esperando que ela me dissesse algo, ela respondia

“por que você me olha com este sorriso?”, Madame Pantalon tem uma tal

autoridade, e eu dizia “Madame Pantalon, a senhora me impressiona, o que eu vou

ficar falando aqui com a senhora? Enquanto a senhora tiver a máscara, a pessoa que

está atrás da senhora não poderá falar, tem uma pessoa atrás da senhora, não é?!”.

Era a Perle que não conseguia aparecer ainda, e pouco a pouco, ela foi tirando a

máscara. (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)

Abro um parêntese para comentar como neste exemplo fica bastante claro o uso

pedagógico da máscara, tal como é utilizada no Théâtre du Soleil. Juliana descreve todas as

etapas vividas pela atriz desde a ideia conceitual do personagem até sua realização de forma

verossímil através do corpo e das ações, possibilitando a retirada do artefato máscara da cena,

sem, no entanto, perder o vigor e presença emanados por ela.

Juliana reforçou que a cena foi bem sucedida porque havia uma grande escuta entre as

duas atrizes, apesar de universos tão diferentes em termos de propostas estéticas. E comentou

como foi curioso quando os pais da jovem atriz assistiram à peça na estreia, e, depois do

espetáculo, perguntaram como a filha saberia de tantos detalhes, se nunca haviam lhe falado

sobre a sua tia retratada em cena – uma mulher que sempre quis ter filhos, envelheceu sem o

conseguir, deixando-a obcecada sobre este tema. A atriz surpreendeu-se, pois, realmente não

sabia sobre este fato, e ficou bastante intrigada com a coincidência.

46 No Théâtre du Soleil é comum batizar as máscaras com pequenos apelidos, muitas vezes ligados aos atores

que as portam com muita propriedade ou a improvisações e cenas que funcionaram bem.

101

Imagem 22 - A atriz Shasha preparando-se nos camarins

do espetáculo Les Éphémères, Cartoucherie, Paris, 2007.

Com relação à dramaturgia, já que é comum a presença de uma artista responsável

pela escrita dos espetáculos do Soleil, perguntei como havia sido a criação da dramaturgia de

Les Éphémères. Sobre o assunto, Juliana reforçou que, por se tratar de uma criação coletiva

calcada nas ações e relações dos atores, intuitivamente as cenas apresentaram textos mais

curtos e circunstanciais, de forma que não houve interferência de uma dramaturga neste

espetáculo.

Sobre a cronologia e disposição das cenas no espetáculo, me interessava saber como

havia se dado o cruzamento das histórias, posto que as lacunas e os entrelaces das cenas

permitiam ao espectador criar sua própria narrativa mental, assim como no cinema através da

montagem proposta pela edição. Juliana comentou que Mnouchkine montou a genealogia das

cenas em um quadro branco, nomeando e determinando as ligações. Esta imagem me fez

pensar, justamente, na criação de um storyboard, onde um filme começa a surgir a partir da

ligação entre as pequenas partes, feita, muitas vezes, de forma aleatória para, posteriormente,

carregar-se de sentido.

Pensando nesta questão do processo criativo, introduzi questões sobre o programa da

temporada original francesa, comentando, especialmente, as notas de ensaio ali transcritas.

Detive-me a uma particularmente: “Não se pode deixar que a cena se instale. Não atuar uma

cena, mas um momento”. Expus minha visão de como esta qualidade do trabalho do ator

102

poderia levar à estética do cinema, considerando também a questão autobiográfica. Juliana

comentou, então, sobre a constante procura por estar no presente, em cena.

Mnouchkine dizia que não precisava atuar porque era muito próximo, o ator deveria

vivenciar e contar. Ela falava em atuar o instante, pois, na verdade, nunca se sabe

como a cena vai acabar em cada dia (uma lei primordial da técnica da improvisação

em que cada cena é sempre uma página branca). (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)

Então a entrevista foi aberta a perguntas da plateia ampliando o foco de análise.

Destaco, entre outras coisas comentadas nesta etapa, a fala em que Juliana observou a visão

de Mnouchkine sobre a própria trajetória. Ela comentou como Mnouchine, inúmeras vezes,

afirma ter tido muita sorte em conseguir uma sede para a companhia e ter a chance de

perpetrar um trabalho de tamanha qualidade, ao que Juliana contrapõe dizendo que

Mnouchkine já teria este destino, ainda que não soubesse, graças a sua enorme força de

aglutinação de pessoas em torno de um desejo em comum. Reforçou, ainda, a tamanha

exigência que aplica sobre si própria, em termos de ética, verdade, de trabalho, tornando-se

um exemplo sólido a ponto de se transformar em um modelo a ser seguido. A partir disto, me

ponho a pensar o quanto a empatia que emana de uma liderança positiva é a verdadeira mola

motriz para as grandes criações humanas, mais do que a genialidade ou as circunstâncias do

momento.

Juliana comentou, ainda, sobre o modo de produção e financiamento da companhia,

em que quarenta por cento do custeio geral vem através do governo, e os outros sessenta por

cento vem do público, o que os obriga a conseguir manter a casa cheia durante muitos meses

– criando um comprometimento do trabalho desenvolvido com uma resposta concreta e

autêntica da plateia.

No momento atual de crise financeira mundial, a companhia ficou parada por muitos

meses em 2015. Pela primeira vez em cinquenta anos, as planilhas financeiras passaram a ser

compartilhadas também com os atores, que tiveram consciência das dificuldades e se

dispuseram a imaginar outras formas de gerar receita para o teatro.

Então, destaquei a criação do projeto das Escolas Nômades que surgiu como uma

possibilidade de trabalho naquele momento, e Juliana reforçou a importância do projeto em

termos de pedagogia, mas também por gerar trabalho para os integrantes da companhia, uma

103

grande preocupação de Mnouchkine, que se sente responsável por eles de forma quase

maternal.47

Por fim, Juliana comentou sobre a grandiosidade técnica do espetáculo Macbeth

(2013), cujas apresentações foram interrompidas no início de 2015 por questões de custo,

impedindo que a peça fosse apresentada em nenhum outro teatro além da própria sede da

companhia – uma situação nunca antes vivida. Ela finalizou observando que a vida em

companhia de teatro é uma guerra de resistência (e a isso replico: Viva a resistência!). Assim

diz Juliana:

Ariane é uma mulher do século, um exemplo vivo de perseverança, de crença, de

verdade, de exigência, de arte. Ela diz que teve sorte, nós é que temos a sorte de tê-

la. Ela nos mostra como a gente deve agir da maneira mais simples para que as

coisas aconteçam. (CARNEIRO DA CUNHA, 2016)

47 As Escolas Nômades são um projeto do Théâtre du Soleil onde a diretora e alguns atores da companhia

viajam a diversos países e oferecem um estágio aos moldes de como o processo criativo acontece na sua sede.

As primeiras viagens ocorreram em 2015, com a seguinte distribuição: em julho no Chile, em agosto na Suécia,

em outubro na Inglaterra e em dezembro na Índia. Há o desejo de que este projeto possa percorrer mais países,

inclusive o Brasil.

104

CAPÍTULO 3 – A Potência do Efêmero

3.1 O hibridismo da linguagem em Les Éphémères: Teatro e cinema tornam-se uma outra linguagem

Como expusemos anteriormente, a partir das entrevistas realizadas para nossa

pesquisa, ficou clara a relevância de um bloco de cenas intercaladas durante todo o

espetáculo, que foi utilizado como esqueleto estruturante da encenação. Não por acaso, a

primeira cena dessa série é a primeira cena da primeira parte do espetáculo, e a última cena

desse bloco é também a que finaliza a segunda parte do espetáculo. Nessa série de cenas, onde

são introduzidos os principais elementos biográficos da encenadora Ariane Mnouchkine,

também não por acaso, se apresentam os principais momentos de cineficação da cena, através

da linguagem e do próprio tema. Assim, irei me ater a esse bloco de cenas, ainda que todas as

outras tramas que correm paralelas também tenham derivado das lembranças e memórias dos

artistas criadores, para, em um segundo momento, tecer comentários sobre outras cenas e

encadeamentos do espetáculo.

As cenas analisadas, em princípio, portanto, são Le Merveilleux Jardin, Aux Archives,

Le Pardon e Un Endroit Merveilleux. Assim como diante de um filme que é resultante da

montagem de várias cenas sequenciadas sem que as lacunas que surgem possam ser

preenchidas senão pela imaginação do espectador, irei compor minha narrativa particular

através das impressões em mim causadas pela ordenação destas cenas em específico e pela

sua articulação com as ferramentas teóricas até aqui propostas.

A peça começa com uma música de ouverture, e, na penumbra, atores montam a

primeira plataforma de cenário diante do público. Partem da plataforma vazia, onde, aos

poucos, introduzem móveis, abajures, tapetes, livros, sofá, plantas, e tudo o mais que

representa a sala de estar de uma casa. Isto me faz pensar na ideia/importância do espaço

vazio no teatro, o espaço no qual o espectador pode construir todo o seu imaginário,

ampliando a potência da cena para si. Ao mesmo tempo, o ato de montar o cenário diante do

público evoca uma ideia brechtiana de anunciar/denunciar o meio de produção da ilusão. É,

como diz Mnouchkine, um extrato de um cenário realista, daqueles que remetem ao cinema

narrativo clássico, mas à medida que ele é construído diante de todos, se quebra a ilusão da

identificação, lembrando o espectador que ele está diante de uma construção, eleita entre

outras, para contar a história. Vejo uma operação de desnaturalização da cena. Ao mesmo

tempo, esta cena demonstra a forma de trabalho da companhia, na qual os atores executam

todas as funções técnicas do espetáculo, distanciando-se da ideia do ator/intérprete mitificado,

105

e rende uma bonita homenagem àqueles que, neste espetáculo, ficaram responsáveis pelas

funções técnicas.

Jean-Pierre Sarrazac continua as reflexões de Bernard Dort quando observa que a

construção compartilhada do sentido convida os espectadores a se interessarem não

apenas pelo que acontece na narrativa cênica, mas pela ocorrência do próprio teatro

no seio da representação. (...) É uma concepção próxima à do filósofo Denis

Guénoun, para quem o teatro contemporâneo acentua esse gesto de mostrar e

costuma oferecer ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o

efeito de ilusão da representação. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK, 2009, p.

15)

Depois de montado o cenário, com todos os objetos realistas que o compõe (sofá,

tapete, poltrona, plantas, papéis, telefone de fio, janela, mesa de centro, objetos de decoração),

os atores impulsores o levam de volta à coxia, finalizando este prólogo que, de alguma forma,

apresenta as cartas do jogo que se inicia. Percebo que a presença e a função dos atores

impulsores das plataformas, de alguma forma deriva daquela dos atores/titereiros de Tambour

sur la Digue, ou seja, poderia ser pensado como o desenvolvimento da ideia dos atores e seus

duplos, ou ainda, uma versão encenada da estrutura de coro e corifeu, de mestre-aprendiz, tão

presente na pedagogia da companhia.

Trata-se de um filme de 2009, apresentado como o registro das últimas apresentações

do espetáculo em Saint-Étienne, uma cidade no centro-leste da França, realizado por Bernard

Zitzermann, produzido pela Bel Air e distribuído pela Arte. Possui cinco horas e quarenta e

sete minutos, distribuídos em quatro DVDs na versão à venda em livrarias de todo o mundo.

O filme também pode ser acessado gratuitamente através de um link no sítio eletrônico da

companhia, em parceria com a Arte. As imagens foram captadas por quatro câmeras, duas

centrais e duas anguladas nas partes superiores das arquibancadas, em diferentes dias de

apresentação e, na montagem final, quase não notamos a presença destas câmeras, já que

houve o cuidado de não deixá-las em quadro. É necessário salientar também que mesmo tendo

consciência do trabalho de montagem final deste material, captado não só por uma câmera em

enquadramento geral fixo, mas através de vários pontos de vista em diferentes apresentações,

e lembrando que qualquer que seja o recorte produzido pela captação audiovisual de um

espetáculo já configura uma construção de linguagem cinematográfica, utilizo a expressão

“registro” para me referir a este filme, seguindo a orientação da própria Ariane Mnouchkine.

A encenadora/cineasta considera que, neste caso, diferente dos demais filmes produzidos a

partir de espetáculos da companhia, não há um trabalho de transposição para a linguagem do

cinema, e o que vemos é a edição de cenas que mostram o espetáculo como era apresentado

ao público nos espaços teatrais por onde passou. Portanto, seguimos com a ideia de que o

106

filme Les Éphémères é um registro (um tanto sofisticado) do espetáculo de mesmo nome, de

forma que muitas das análises que se seguem relatam tanto aquilo que podia ser visto ao vivo

no espetáculo, quanto aquilo que é mostrado no filme.

Importante ressaltar que, no filme do espetáculo, durante este início, são exibidos os

créditos iniciais informando que o filme trata-se de um espetáculo do Théâtre du Soleil,

filmado por Bernard Zitzermann, na presença do público de Saint-Étienne. Essa informação

importa porque apresenta ao espectador estes atores involuntários que passam a pertencer e a

criar significados na narrativa do filme. Como um coro grego que comenta suas impressões

sobre os fatos da peça, através das reações do público às cenas que se passam, o espectador

recebe mais uma camada de significação sobre a cena. Além disto, como os atores do

primeiro cinema citados por Cesarino da Costa que acenavam para a câmera, criando um

efeito de comunicação metafísica com o público, a imagem do público de Saint-Étienne situa

a experiência em um determinado recorte de tempo/espaço, em uma época, reforçando a idéia

do efêmero, da brevidade do momento, envolvendo a narrativa em um tom de nostalgia

melancólica que contribui para o tema e para a estética do espetáculo. O tempo passa a estar

presente concretamente, assim como em Marat/Sade, de Peter Brook, no Lamda Theatre

(LIRIO). A presença do público no quadro também evidencia a auto-consciência deste como

integrante do filme: não são raros os momentos em que percebemos algum espectador

arrumando sua aparência discretamente, ou incomodado por perceber a presença da câmera

dentro do seu quadro de visão, ou ainda, sentindo-se privilegiado por compor a cena, com o

estado de presença levemente alterado.

Segue-se um blackout que funciona como o primeiro corte do espetáculo,

corroborando para a ideia de uma cena que se pretende cinema. No filme entra aqui a primeira

legenda, indicando o início do que seria o primeiro ato, em linguagem idêntica aos filmes do

cinema mudo. Lembro que a inclusão de legendas, neste formato, que anunciam o que se

segue é recorrente nos filmes do Soleil, tornando-se mais uma escolha estilística da diretora

enquanto cineasta.

Para que seja possível compreender melhor como se inicia efetivamente o espetáculo,

relembro que o público está disposto em duas arquibancadas idênticas, uma em frente a outra,

com um corredor central. É neste corredor por onde entram, discorrem e saem as cenas,

utilizando as plataformas circulares como cenários empurrados por atores impulsores, além

dos atores que transitam pelo espaço sem maiores convenções. Sobre a cenografia deste

espetáculo, incluo uma passagem interessante, que poderia descrever precisamente o trabalho

realizado.

107

A fascinação das formas de mixed-midia no teatro sugere não apenas um “drama”

mais prolongado e mais complexo (como a ópera wagneriana), como também uma

experiência de teatro mais compacto, que se aproxima da condição da pintura. Esta

perspectiva de compacidade é mencionada por Marinetti, que a denomina

simultaneidade, uma noção fundamental da estética futurista. Como síntese final de

todas as artes, o teatro “deveria usar os artifícios contemporâneos da eletricidade e

do cinema; isso permitiria às peças serem extremamente curtas, uma vez que todos

esses meios mecânicos capacitariam a síntese teatral a ser atingida no menor espaço

de tempo possível, à medida que todos os elementos pudessem ser apresentados

simultaneamente.” (SONTAG: 1987, p.119)

O espaço da cena é separado dos bastidores por cortinas de seda, em ambos os lados,

por onde circulam as plataformas e os atores. Aqui aparece mais uma assinatura do Soleil: as

cortinas de seda são um recurso fundamental para o jogo da máscara, remetem a um

determinado estilo e época e, pedagogicamente, preparam atores e espectadores para o

momento da cena (todos se dão conta da convenção das entradas e saídas da cena, reforçando

a sua teatralidade).

Imagem 23 - Atores saem de cena no espetáculo.

Cartoucherie, 2006. Foto de divulgação da temporada francesa.

Portanto, ainda que não haja máscaras em cena em Les Éphémères e que estejamos

diante de uma cena que já se mostrou filiada ao realismo, as cortinas laterais lembram a

convenção teatral a todos os envolvidos, devolvendo à cena o frisson da surpresa pelo que

será desvelado. No filme, este acontecimento fica explícito, com o enquadramento da câmera

que mostra a cortina em movimento na lateral direita do quadro, o espaço vazio ao centro

"baixo", emoldurado pelas fileiras de espectadores com seus rostos e olhares voltados para a

cortina que se mexe com vento da movimentação do cenário que se prepara para entrar.

108

Abre-se a cortina e começa a cena Le Merveilleux Jardin. Entra em cena uma atriz,

Delphine Cottu, sobre uma pequena plataforma que tem como cenário uma portinhola

envolvida por eras, empurrado por uma atriz impulsora. No filme vemos a atriz de perfil,

olhando para a lateral esquerda do quadro, ou seja, para a cortina. Por isto, no espetáculo, a

primeira imagem que o público tem da atriz são suas costas e, com o movimento da

plataforma, tem-se a impressão de um zoom da câmera, como se partíssemos de um plano

geral para um close da atriz, cujo rosto e expressão se "descortinam" à medida que a

plataforma passa a se mover também de forma circular no centro da cena. Ficam claros, aqui,

os primeiros exemplos de hibridização entre teatro e cinema, que criam uma experiência

totalmente original a todos os envolvidos e que não pode ser reduzida apenas aos campos

estéticos que a criaram – não é mais teatro ou cinema, somente.

Naturalmente, pela disposição do espaço, este mecanismo de apresentação da cena se

repete durante todo o espetáculo, com algumas variações, como o encontro de dois cenários

vindos de ambos os lados simultaneamente, a passagem de atores que caminham – e até

andam de bicicleta – de um lado a outro, e, finalmente, momentos antológicos como a entrada

de um cenário móvel onde uma família assiste à projeção de um filme em um lençol, operada

por um dos atores da própria cena, tudo isto em movimento.

Voltando à cena inicial, portanto, à medida que vemos a expressão da atriz ao colocar

uma placa de "Vende-se" sobre a portinhola (a placa escrita em francês, com a numeração de

um telefone que compreendemos claramente ser atual, estabelecendo o tempo e o espaço da

estória que se seguirá) entendemos também que a proximidade do espectador à cena é um

fator condicionante para a absorção estética do espetáculo. Somente pelo fato do espectador

estar próximo o suficiente para observar o olhar da atriz quase em close é que se pode

perceber a qualidade intimista de sua atuação, seu estado de alma em ebulição, sem que a atriz

mova um músculo a mais do que uma atuação naturalista permitiria. No entanto não se pode

esquecer que ela está sobre uma plataforma que se move em linha reta e gira circularmente,

exigindo um controle do corpo e do equilíbrio que vai muito além de uma atuação naturalista

diante de uma câmera. Novamente, se estabelece aqui mais um exemplo da criação de uma

nova experiência estética para atores e espectadores, fruto desta cena que vê seus limites

ampliados.

A atriz em cena coloca a placa na portinhola, desce da plataforma como que para

observar de longe o resultado de sua ação e, em seguida, volta e transpassa o portão,

estabelecendo a convenção espacial do cenário: de um lado fica a rua; do outro, o jardim de

109

sua casa. Note-se que ao abrir e fechar, o portão range de verdade, trazendo a concretude do

objeto real na cena.

Ao pôr em cena um objeto literal, que não tem por função dramatúrgica e cênica

simbolizar, mas simplesmente estar presente e produzir situações de linguagem,

teatros da literalidade como os de Tadeusz Kantor, Bob Wilson, Romeo Castelicci,

Jan Lauwers, Gilles Maheu e Heiner Goebbels, por exemplo, acionam um

gigantesco efeito de estranhamento, posto a serviço da intensificação e da

manifestação extremada da matéria teatral. (FERNANDES, Silvia IN: WERNECK,

2009, p. 15)

Em seguida, à medida que a atriz se dirige para a outra saída de cena, olhando para a

cortina e, desta forma, conduzindo também o olhar da plateia nesta direção, privilegiando um

determinado ponto de vista através do movimento que garante a continuidade e a organização

espacial para o espectador, uma nova plataforma (aquela a que assistimos a montagem no

prólogo da peça) surge em cena e ganha o centro à medida que a atriz sobe nela, como que

adentrando um novo espaço cênico. Desta forma, a encenação reforça a importância daquele

cenário/núcleo como a locação principal da história, reforça o protagonismo da personagem e,

sem que uma palavra tenha sido dita até então, o espectador passa a compreender claramente

a situação que se estabelece: a moça está colocando uma casa à venda e não está confortável

com esta situação. Esta forma de apresentar os fatos da história também nos remete à

linguagem do cinema, onde as imagens e o movimento do ator pelo espaço é que estabelecem

a cena, com o privilégio da imagem sobre o texto.

Vemos a atriz começar a separar papéis, cartas e documentos, com caixas de papelão,

até que ela telefona para alguém. Com este recurso, ela se apresenta, Jeanne Clement, (ao seu

interlocutor e ao público) e pode contar claramente as circunstâncias dadas da cena: sua mãe,

Aline Clement, faleceu e ela está ligando ao banco para encerrar a sua conta. Entendemos

então que a personagem está às voltas com os documentos da mãe, em sua casa, que acaba de

ser posta à venda. Note-se que toda esta cena acontece sobre a plataforma em constante

movimento circular e pelo espaço, conferindo ao espectador a mesma apreensão da cena que

acontece no cinema, quando o movimento da câmera pelo quadro revela e esconde

determinados elementos, mostrando também os pontos de vista que a personagem não vê: o

que está atrás dela, o fundo do cenário, dos objetos, ou seja, tudo que transborda da

consciência da personagem.

110

Penso aqui na frase de Mnouchkine sobre o ator no trabalho com a máscara, "o ator

deve ser côncavo e convexo, ao mesmo tempo" e vejo que, de alguma forma, neste espetáculo

ela se aplica ao espaço de uma forma geral: vemos, ao mesmo tempo, o interior do cenário (a

Imagem 24 - A atriz Delphine Cottu em cena.

Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.

intimidade e a pessoalidade de seus objetos de cena) e sua casca exterior (os fundos do sofá,

do vaso de planta, do armário e da poltrona). Tudo está exposto. Penso nestes cenários

também como bolhas de sabão, belas, delicadas e efêmeras.

E as lacunas que surgem entre elas, no espaço, seriam os espaços da montagem no

cinema, onde o espectador pode recriar sua própria narrativa, tornando-se ele mesmo um

montador/editor de cinema.

Panofsky concebe a diferença entre teatro e filme como uma diferença entre as

condições formais de ver uma peça e de ver uma fita. No teatro, “o espaço é estático,

isto é, o espaço representado no palco, bem como a relação espacial do observador

com o espetáculo são inalteravelmente fixos”, enquanto no cinema, “o espectador

ocupa uma cadeira fixa, mas apenas fisicamente, não como sujeito de uma

experiência estética”. No teatro, o espectador não pode mudar seu ângulo de visão.

No cinema, ele está “esteticamente [...] em permanente mobilidade, à medida que

seus olhos se identificam com as lentes da câmera, que sempre se deslocam em

distância e direção” (SONTAG:1987, p.103)

Se pensarmos novamente no advento da imagem digital presente na cena teatral, no

cinema de forma irreversível, as condições formais de absorção destas mídias se complexifica

ainda mais, como foi abordado.

Voltando à história, Jeanne, nossa protagonista, recebe a informação do banco de que

sua mãe tinha um cofre, do qual ela não sabia da existência, e combina de ir buscá-lo no dia

seguinte. Neste momento, entra pelo lado direito da cena (e o corte do filme reforça esta

111

convenção), um novo personagem (feito pelo ator Serge Nïcolai), trajando um terno, portando

um capacete em uma mão e um telefone celular na outra, pelo qual entendemos que está

falando com sua mãe, bastante eufórico. Ele conta que acabou de sair da maternidade e que é

uma menina, Anna, que entendemos que se trata da sua filha. Enquanto o ator fala ao telefone,

percebemos a felicidade pela sua movimentação, que sugere que ele está "pulando

amarelinha", um jogo infantil conhecido de todos.

Penso nesta ação como um exemplo perfeito do conceito de ação psico-física,

proposto por Stanislavski em seu sistema, o que levaria a pensar em uma atuação

realista/naturalista. Só que, imediatamente a isto, enquanto o ator se dirige em direção à

lateral pela qual entrou, pelo outro lado, o cenário com a portinhola e a placa "Vende-se"

volta à cena pelo outro lado, empurrado pela atriz impulsora, a tempo de ser percebido pelo

personagem de Serge. Então acontece um delicado ballet: à medida que o personagem se

encaminha para a saída, o cenário se aproxima dele pelas costas, fazendo alusão também a

outro jogo infantil (em que uma criança avança em direção a outra quando esta não está

vendo). Além disso, como neste cenário a única figura humana é a atriz impulsora, essa

personifica a ideia da casa à venda e "seduz" o personagem de Serge, até o momento em que

ele finalmente decide apertar o botão da campainha.

Do ponto de vista do personagem masculino, podemos pensar nesta passagem como

aquele momento em que uma imagem domina o seu pensamento (a placa "Vende-se") e,

inconscientemente, o indivíduo é capturado. Em um filme esta ideia seria mostrada pela

montagem alternada e repetida das imagens do personagem e do objeto de desejo, levando o

espectador a detectar a ligação forte entre ambas e, no espetáculo, esta ideia se traduziu

justamente por este jogo entre o ator e o cenário (personificado pela atriz). Temos aqui mais

um ótimo exemplo deste novo original que se criou a partir da aproximação das técnicas do

teatro e do cinema, reforçando a ideia de cineficação da cena.48

Outro aspecto interessante que pode ser observado neste trecho do filme diz respeito à

presença do público no quadro do filme. Enquanto acontece a cena de Serge descrita acima,

vemos ao fundo duas das fileiras de público que assistem a cena. Pelo ângulo e pela lente da

câmera, percebemos que esta tomada foi feita por uma câmera posicionada ao centro da

arquibancada, na primeira fileira de bancos, ou seja, no nível dos olhos dos atores e do

48 Vale lembrar que, como foi frisado por Mnouchkine, nenhum desses acontecimentos foi criado

conscientemente, ou seja, não houve uma pesquisa no sentido de buscar a transposição de uma linguagem a

outra. No entanto, justamente porque estamos evocando aqui o processo criativo de um grupo de artistas,

partindo para uma aventura de pesquisa, me parece autorizada a tessitura dessas correlações e análises, posto

que se trata também da minha "montagem particular" com as "cenas" que se apresentam.

112

público, de forma que este último tem consciência total de que está sendo filmado. Neste

contexto é curioso observar as diferentes reações de indivíduos diferentes da plateia diante

desta experiência: assistir a uma peça de teatro, sabendo que ela está sendo filmada, e, ainda,

se perceber como parte daquilo que está sendo filmado.

Imagem 25 - Público sentado em uma das arquibancadas do espaço teatral.

Cartoucherie. 2006. Imagem da temporada francesa.

Enquanto alguns estão concentrados na cena que se mostra, outros procuram as

entradas dos bastidores com os olhos, como se quisessem se antecipar a qualquer novo

evento, e, há, ainda, aqueles que se percebendo na filmagem, passam boa parte do tempo

ajeitando as roupas, os cabelos, nos quais percebemos uma leve construção na expressão,

como se também estivessem atuando – e, de fato, estavam. A partir disto, penso novamente na

aproximação da teatralidade deste espetáculo ao teatro performativo, pois “De qualquer

forma, ela (a teatralidade) é fruto de uma disjunção espacial instaurada por uma operação

cognitiva ou um ato performativo daquele que olha (o espectador) e daquele que faz (o ator).

Tanto ópsis quanto práxis é um vir a ser que resulta dessa dupla polaridade” (FERNANDES,

Silvia IN: WERNECK, 2009, p. 16).

Na verdade, independentemente do filme, o espectador deste espetáculo sabe o tempo

todo que está dentro da cena, posto que está sempre sendo observado pela plateia que está à

sua frente. No entanto, pela atmosfera do espetáculo, na experiência de assistir ao espetáculo

no teatro, ficava latente o sentimento de comunhão coletiva entre todos os presentes, enquanto

que nesta apresentação em que foi filmado o registro teatral, nitidamente se percebe o estado

alterado de presença do público, ainda que entre 2006 e 2009 (período entre a estreia do

espetáculo e o lançamento do filme), o grande público já tivesse absorvido as nuances dos

113

reality shows, sem maiores dificuldades em se exibir para a câmera.

Voltando à peça, o personagem de Serge, Alain, toca a campainha e quando Jeanne

Clement vem atender, pede para visitar a casa deixando a personagem um tanto atordoada. O

que se segue é um diálogo bem construído entre este homem, eufórico com a sincronicidade

entre o nascimento da filha e o fato de encontrar a casa à venda, e esta mulher, ainda tonta

pelo luto recente da mãe e pela rapidez com que os acontecimentos se deflagram. Então

Jeanne o convida para ver o jardim, dizendo que “é muito importante, o jardim”. Neste

momento, sempre seguindo o direcionamento do movimento das plataformas cenográficas

que indicam a continuidade do espaço (assim como nos enquadramentos da câmera que

garantem a organização do espaço para o espectador do filme), entra em cena uma pequena

plataforma indicando se tratar de um pedaço do jardim (com grama sintética, um pequeno

banco e uma mangueira de água), onde os dois personagens passam a se situar, seguido de

uma plataforma maior, a ponto de haver uma árvore frondosa sobre ele. O impacto da entrada

deste cenário em cena pode ser percebido pelo burburinho da plateia, surpresa por ver sair

uma verdadeira árvore dos bastidores. A cena se segue de forma que Jeanne vai até a árvore,

mas Alain não. Ele pede para fotografar e Jeanne não permite. Ela pergunta se ele sabe cuidar

de plantas, ao que ele responde perguntando o preço. “Um milhão e novecentos mil francos” é

a resposta que, mais uma vez, situa a cena em um recorte de tempo e espaço. Ele aceita o

valor e imediatamente liga do celular para o advogado para que este venha até a casa, efetivar

a venda. Jeanne mostra-se cada vez mais atordoada, enquanto procura o mapa da região para

que o caminho possa ser indicado. Desta forma, há uma evolução no nível de tensão que se

estabelece desde o início do espetáculo na personagem principal, com a qual o público tende a

se identificar. Existe uma clara oposição entre a melancolia pelo luto da mãe e a euforia de

tornar-se pai, e a interseção entre estes estados se concretiza na imagem da casa à venda como

um ninho que, esvaziado, se disponibiliza para uma nova família.

Vale lembrar que todo este diálogo se dá com os atores executando ações realistas,

como falar ao celular ou folhear um livro, sobre as plataformas que se movimentam em

rotação e translação, evocando, de fato, a imagem de pequenos satélites em órbita. E, ao

fundo, várias fileiras de arquibancadas, com espectadores que lembram ao espectador que a

cena conta a história dos personagens, e de todos nós. No filme, neste momento, há um

grande plano fechado no rosto da atriz, pelo qual podemos perceber os olhos mareados e o

nariz avermelhado pelo choro suave. Naturalmente, no teatro talvez nem mesmo o público da

primeira fileira tenha tido a oportunidade de ver a atuação da atriz tão de perto, o que

corrobora com a ideia da total consciência da montagem do filme para além do conceito do

114

simples registro, posto que os planos tiram partido daquilo que só a câmera cinematográfica

pode captar.

Em movimento contínuo, da atriz, da plataforma e da câmera, para o espectador do

filme fica concreta a sensação de atordoamento que a personagem vive naquele momento,

captada por um ângulo de câmera, subjetiva, que mostra a personagem de costas, tendo o

público como fundo da cena. Durante o espetáculo, esta cena acontece concomitantemente à

saída da plataforma da sala da casa por um dos lados, enquanto que, pelo outro, volta à cena a

plataforma da árvore, agora com um novo elemento: a atriz Juliana Carneiro da Cunha, que

interpreta a mãe de Jeanne, Aline, sobre uma escada, a podar a árvore. Lembro que desde o

início do espetáculo, a música é um elemento presente, fazendo transições a cada novo

momento que se sucede.

Como foi dito, Jean-Jacques Lemêtre é o músico do Théâtre du Soleil, desde 1979,

compondo para os espetáculos e, na maioria das vezes, tocando diversos instrumentos ao

vivo, durante ensaios e apresentações. A música é um elemento condicionante para a estética

da companhia, funcionando como mais um ator da cena. Em profunda consonância com os

processos criativos da companhia, criando não só músicas, mas, principalmente, a sonoridade

de cada espetáculo, Jean-Jacques trabalha sempre com assistentes (atores que se ocupam da

música a cada trabalho sob sua direção), acompanhando todos os ensaios e todas as

apresentações de cada temporada, além de ser um dos melhores cozinheiros da companhia.

Alguns de seus trabalhos com o Soleil são antológicos, como a música de Tambours sur la

Digue, onde ele orquestrou dezenas de tambores coreanos tocados pelos atores em cena. Em

Les Éphémères, a música segue sendo um elemento essencial, oferecendo a atmosfera de cada

série de cenas, o que também aproxima a experiência ao uso da música no cinema (temas para

personagens, situações, cenários, mudanças de clímax), misturando instrumentos tocados ao

vivo com músicas gravadas e efeitos sonoros (campainha, telefone, etc).

Voltando ao filme, neste momento de entrada da personagem de Juliana Carneiro da

Cunha, a montagem se utiliza do recurso do plano fechado no rosto da atriz Delphine Cottu

para fazer a transição de um momento a outro, sendo que a mudança da música anuncia a

nova situação que irá se estabelecer.

115

Imagem 26 - Juliana Carneiro da Cunha e Delphine Cottu contracenam no espetáculo.

Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.

Aqui se inicia uma das cenas mais poéticas do espetáculo: Jeanne, no momento

presente, observa sua mãe, em um momento passado, podando a árvore. Jeanne fala com sua

mãe, como se ela estivesse viva, ao que Aline não responde em um primeiro momento; com

isto fica claro que se trata de uma suspensão do tempo/espaço cronológico, através de um

recurso absolutamente teatral. Jeanne insiste, dizendo que o médico a proibiu de se esforçar

no jardim, ao que Aline responde de forma não linear, fazendo alusão ao tempo. Assim será

todo o diálogo desta cena, contrapondo as ansiedades de Jeanne sobre a doença da mãe e a

venda da casa às falas arquetípicas da mãe (o cuidado com a filha como se ela fosse uma

criança), de forma que se criam lacunas pelas quais o espectador pode transitar e projetar suas

próprias criações de sentido, novamente fazendo alusão à ideia de um espectador que se

aproxima da imagem do montador no cinema, associando cenas para criar um sentido para a

obra.

O ápice da cena se dá quando a mãe passa a se relacionar com a filha como se ela, de

fato, fosse uma criança; pela movimentação da brincadeira e pelas risadas infantis da filha,

identificamos o tipo de jogo que se estabelece, e isto só se torna possível pela teatralidade da

cena. Naturalmente este jogo é absorvido com facilidade pelo espectador, tanto na peça

quanto no registro fílmico, pois compreendemos que esta é natureza do que é mostrado. Caso

se estivéssemos falando de cenas pensadas para um filme narrativo clássico, certamente teria

que haver aqui algum procedimento como a inserção de uma cena de flashback, envolvendo

uma atriz criança, por exemplo, ou algo semelhante, para que o público pudesse manter a

credibilidade na sequência, sem se distanciar da história. A mãe descreve como ama a filha,

cada parte do corpo, ao que a filha, no tempo presente, indaga quem irá cuidar do jardim.

116

Curioso observar aqui que, na vida real, a atriz Juliana Carneiro da Cunha tem uma filha

chamada Jeanne (Jeanne Dosse); querendo ou não, o conhecimento deste fato acrescenta, para

mim, ainda mais uma camada à idéia da biografia em cena, que levaria o ator a diminuir a

fronteira entre a atuação e a vivência; fico ainda mais tocada pelo amor da mãe pela filha na

cena.

Outro dado interessante, do ponto de vista dramatúrgico, é a metonímia da árvore pelo

jardim, e esta como metáfora da vida, da continuidade da vida. Ou seja, quando a filha

pergunta quem irá cuidar do jardim (ao que a mãe responde apenas colocando seu próprio

chapéu na cabeça da filha), possivelmente ela está falando sobre o vazio do luto e sobre a

descendência. No entanto, como veremos na sequência, as cenas que se seguem mostram o

percurso pelo qual esta filha entra contato com o passado da mãe (o tal cofre no banco),

levando a fatos dos seus antepassados que ela desconhecia até então. Então, cuidar do jardim

passa a simbolizar a responsabilidade com a genealogia familiar, ascendentes e descendentes.

Como se verá, há uma repetição na construção de sequências de cenas que fazem uma

fusão entre diferentes tempos e espaços, ou que mostram um trânsito bastante fluido entre uns

e outros, corroborando com a ideia do espetáculo como o universo dos instantes efêmeros da

vida, constituintes do campo da memória, até mesmo do inconsciente, materializados pelos

diferentes mecanismos de linguagem que, na cena, se traduzem pela movimentação no

espaço, pelo choque entre tempos diferentes e pela não-linearidade dos diálogos. Aqui fica

clara a aproximação entre o universo da psicanálise e do cinema na cena: pelos conceitos de

condensação e deslocamento da teoria freudiana, a cena se utiliza dos mesmos mecanismos

técnicos do cinema para garantir a crença do espectador no que vê, servindo-se também e

principalmente, da teatralidade contida nestes princípios de metáfora e metonímia.49 Portanto,

não é à toa que Mnouchkine, quando perguntada sobre a intencionalidade do uso do cinema

enquanto linguagem no espetáculo, afirma que em nenhum momento pensou em cinema, mas

sim no que seria inconsciente na vida destes personagens e dos próprios atores, o que, a meu

ver, corrobora para a hipótese desta pesquisa.

ALINE – As flores, você sabe, a natureza, ela responde imediatamente. Um pouco

49 De forma bastante simplificada, pode-se dizer que os dois elementos básicos para a interpretação dos sonhos

proposta por Sigmund Freud seriam a condensação e o deslocamento. A condensação seria o mecanismo pelo

qual há uma fusão de ideias que possuem traços em comum, envolvendo o conteúdo latente (reprimido) e

manifesto (imagens da memória). O deslocamento, por sua vez, seria o, mecanismo que provoca uma alteração

na ênfase de um elemento relevante (e reprimido) a outro, de caráter aparentemente inofensivo, como forma de

defesa e mascaramento do inconsciente. A estes dois elementos, Lacan associou as figuras de linguagem

metáfora e metonímia, também presentes nas análises teóricas sobre os procedimentos da linguagem

cinematográfica.

117

de água e pffff… elas florescem. Elas são bonitas, não? Não é somente que elas são

bonitas, elas são gentis também. Elas são adoráveis, você não acha? Você tem que

falar com elas, de tempos em tempos. Nunca lhes apontar o dedo. Nós falamos com

elas assim (a atriz acaricia as flores), nunca assim (a atriz aponta o dedo ao rosto da

outra atriz). É simples.

JEANNE – Mamãe, quem vai cuidar do jardim? Eu acho que ele não sabe nada…

ALINE – Meu bebê, minha menininha… (elas se abraçam) Eu te amo.

JEANNE – Mamãe, ele me espera. (Elas se separam e Jeanne faz menção de ir)

ALINE – Jeanne! Espere! (Ela tira uma correntinha com um crucifixo do pescoço e

oferece à filha, que volta e pega a corrente com esforço, já que a plataforma com o

cenário da mãe é puxado para fora da cena, separando mãe e filha. A filha caminha

em direção à mãe, que estende os braços a ela – como se costuma fazer com uma

criança pequena que dá seus primeiros passos –, sem que no entanto elas se toquem,

finalizando a cena, como a memória que se apaga).

ALAIN – Senhorita! (A cortina se fecha diante dela, que volta o olhar e está

novamente no tempo presente). (LES ÉPHÉMÈRES, 2006)

O texto exemplifica concretamente o tipo de emoção que se quer causar no espectador,

misturando lirismo e melancolia com uma harmonia ímpar. Na peça, como disse, esta é uma

das cenas mais marcantes e, no filme, acrescenta-se que ao fundo do quadro, entre as atrizes

que atuam como mãe e filha, está uma criança da plateia, uma menina que poderia ter a idade

da personagem evocada como criança pela mãe, e vemos o olhar complacente das atrizes

impulsoras do cenário, multiplicando as camadas de sentido para o espectador. Assim, a cena

segue até seu final, quando Alain apresenta seu advogado, munido da papelada para o

compromisso de venda da casa, e a convida para sentar e brindar com champagne o

nascimento de sua filha Anna e a compra de sua nova casa. Jeanne, atordoada, silencia. A

cena termina com o cenário que é encaminhado para a saída de cena, ao som da música e da

voz do ator que faz o advogado, criando o efeito de fade out do cinema, no espetáculo teatral.

No filme, este efeito é reforçado pelo distanciamento da plataforma da câmera, seguido pela

cortina que se fecha sobre a imagem desta.

Na peça, e no filme, o que se segue é o início de outra cena, com a plataforma de

cenário entrando pelo lado oposto, apresentando uma nova história, com novos personagens.

Vemos então Juliana Carneiro da Cunha já caracterizada como outra personagem, iniciando

uma nova proposição: uma mãe que se prepara para o casamento da filha. A ideia da

montagem cinematográfica que surge a todo instante é dominante neste espetáculo, fazendo

com que o espectador se mantenha ativamente criativo diante do que vê: é a mesma

personagem? Qual a relação entre as histórias? Elas se cruzam ou são independentes? Cada

um monta seu próprio filme.

118

Imagem 27 - Juliana Carneiro da Cunha como a mãe da noiva.

Cartoucherie, 2006. Imagem de divulgação da temporada francesa.

Atento-me somente às cenas escolhidas para exemplificar esta pesquisa (uma escolha

árdua posto que cada sequência de cenas fornece material para inúmeras análises, igualmente

ricas), voltamos nosso olhar para a cena Aux Archives, que abre o Ato II. Esta cena é

sequência de Un Merveilleux Jardin, que inicia o Ato I, de forma que há uma repetição na

disposição das cenas pela duração do espetáculo. Novamente a cena se inicia com o músico e

sua atriz assistente introduzindo a música tema desta história, enquanto surge a plataforma

com o cenário de uma sala de consulta nos arquivos gerais, onde se vê Jeanne Clement

esperando para ser atendida por uma senhora que tenta, em vão, abaixar o assento de sua

cadeira giratória. Diante desta impossibilidade, a senhora senta-se assim mesmo, o que a faz

ficar bastante superior à outra personagem, criando um efeito cômico que traz leveza à cena.

Em seguida, Jeanne conta sobre uma carta escrita pela mãe, deixada em um cofre no banco

para ser lida após a sua morte, na qual ela conta sobre seus pais, avós de Jeanne, Alexeï e

Tatiana, dos quais ela nunca havia falado em vida. Ela mostra também uma foto de sua mãe,

ainda criança, com uma mulher, Nora, com a inscrição: Bretanha, setembro de 1943. Jeanne

conta que Nora Altunian foi a senhora que criou sua mãe depois que seus avós foram

deportados, conforme estava escrito na carta. “JEANNE – Mas quando e como, eu não sei.

Ela nunca me disse nada. Eu nunca perguntei nada. (ela se emociona) Me desculpe.” (LES

ÉPHÉMÈRES, 2006), assim continua a personagem, informando o pouco que sabe, o

sobrenome Menuhin, e, quando indagada, mostra o crucifixo que ganhou da mãe, sem saber,

no entanto, se ela teria sido batizada. A arquivista pede licença e sai, deixando Jeanne sozinha

na cena, com o olhar fixo, porém absolutamente ativa na cena. Penso aqui em uma breve

associação entre o trabalho do ator neste espetáculo e as experiências de Meyerhold,

considerando a figura do ator no cinema, sintetizada pelo movimento exterior ao seu corpo:

119

Meyerhold trabalha, então, com o que chamo de “imobilidade dinâmica” ou de

“dinâmica do imóvel”. Seus atores podem estar imóveis, mas isso não quer dizer

falta de movimento ou expressão, muito pelo contrário. De forma condensada,

sintética, esse movimento e essa expressão surgiriam potencializados. (OLIVEIRA:

2008, p. 29)

Então a iluminação muda, transformando a sala clara em um espaço na penumbra e o

som de um violino em uma melodia judaica marca o início de um novo momento: Jeanne,

mergulhada nas lacunas de sua memória vê diante de si uma nova cena: Aline, criança, lendo

um livro, enquanto Nora (interpretada por Juliana Carneiro da Cunha) avisa que está subindo

ao sótão, ao seu encontro. A cena toda se passa na penumbra (penso nas sombras da memória

e do inconsciente) e o diálogo entre as duas demonstra um ambiente de afeto e apreensão.

Nora, então, comenta que, naqueles tempos, seria importante que Aline aprendesse uma

oração. Para saber se a menina saberia do que estava falando, Nora pergunta se Aline conhece

alguma oração, ao que Aline começa a declamar o princípio de uma reza judaica. A cena é

auto-explicativa, e começa a trazer ao espetáculo as cores de um discurso político que, como

Mnouchkine explica em notas no programa, se passa no íntimo, dentro da alma, através da

carne.

Imagem 28 - A pequena Aline lê um livro no sótão.

Cartoucherie, 2006. Imagem da temporada francesa.

Aqui aproveito para comentar o trabalho de atuação das atrizes. Quando a menina

declama a oração, Nora se emociona diante do risco de Aline ser pega, por descuido, orando

em hebraico – o que denunciaria sua origem judaica diante da guerra. Imediatamente comenta

o calor no sótão e tira o próprio casaco. Esta ação encerra muitos sentidos, traduz o ato de

desnudamento da situação, mostra a “temperatura” do risco iminente, ilustra a condição da

personagem de fato enrubescida pelo perigo e pela necessidade de ação, e prepara a cena para

a ação seguinte: a retirada da correntinha com o crucifixo e a sua entrega para a criança.

Portanto, poderia se considerar a ação realista, até mesmo naturalista. No entanto, basta

120

lembrar que tudo isto ocorre sobre uma cama devidamente apoiada em uma plataforma

redonda que se movimenta em translação diante do público para compreender que muitos

outros vetores estão em jogo na cena, descolando-a de qualquer estética realista. Penso ainda

que outros elementos corroboram para este efeito, como o ritmo de movimentação das

plataformas trazendo a descontinuidade do cinema para a cena, a atuação de caráter

acentuadamente performativa, a presença de atores impulsores na cena e a ausência de quarta

parede evidenciada pelo público bifrontal. Pode-se falar aqui, novamente, de uma experiência

original, criada pela fusão dos princípios do teatro e do cinema, que não pode ser analisada de

forma a isolá-los.

Nora segue comentando que irá ensinar uma outra reza, que ela própria aprendeu

quando criança em armênio, mas que irá ensinar em francês. A atriz começa a declamar o

“Pai Nosso” e explicar o sentido de palavras como “santo”, “mártir” e “fé”, fazendo alusão

aqueles que preferem morrer a renegar sua fé, enquanto a música cresce, preenchendo a

atmosfera e conferindo dramaticidade ao ato generoso da senhora com a pequena criança

judia em plena Segunda Guerra Mundial. Enquanto Nora continua explicando os fundamentos

do cristianismo à menina, no tom de uma fábula sobre Jesus Cristo, a plataforma de cenário se

encaminha para saída onde se cruza com a arquivista que entra em cena por ali, criando a

sensação de fusão entre as cenas de uma memória projetada e do presente pelo movimento,

fazendo alusão à montagem cinematográfica.

Voltamos, então, para o tempo presente, para a sala da arquivista, enquanto o som da

voz de Nora ensinando sobre a crucificação de Jesus Cristo e sobre as dificuldades de ser

cristão entre os judeus, em oposição ao contexto do nazismo, ainda se pode ouvir, sugerindo

uma superposição de sentidos bastante complexa: na sala dos arquivos, onde se depositam as

memórias de toda uma nação, pode-se compreender que a história da humanidade oscila

pendularmente, transformando o oprimido em opressor, ao sabor dos tempos. Quando a cena

no cenário da sala de arquivos é retomada, a personagem Jeanne encontra-se na mesma

posição em que ficou ao final da sua cena anterior, criando um efeito de continuidade que o

espectador identifica como um código essencialmente cinematográfico, só que, aqui, no

âmbito da teatralidade da cena.

A arquivista, então, conta que os avós de Jeanne foram presos juntos, em um

determinado endereço, em um determinado dia e hora, para depois seguirem para Auschwitz.

Pelas datas encontradas, fica claro que a foto da menina Aline, na Bretanha, foi tirada pouco

antes da deportação, o que nos faz compreender que a menina se salvou por muito pouco,

trazendo um dado trágico para a vida da própria personagem Jeanne. Em seguida a senhora

121

mostra um pequeno recibo feito a mão que prova que Alexeï e Tatiana eram alfaiates e se

oferece para fazer uma cópia do documento. Quando Jeanne pergunta se pode guardar o

original, essa nega, dizendo que o documento pertence aos Arquivos Nacionais. Aqui

novamente percebo uma dimensão política da cena com a assinatura do Soleil, posto que fica

ilustrada a dimensão das consequências das guerras do século XX na França, e em toda a

Europa: os vestígios da vida íntima deflagram os horrores vividos naqueles tempos e, por isto,

deixam de ser propriedade privada para tornar-se ícones do trauma mundial. A cena finaliza,

mais uma vez, em fade out, com a plataforma desaparecendo atrás de uma das cortinas

laterais, ao som da arquivista que comenta os pequenos detalhes descritos no recibo, pequenas

pistas sobre uma ancestralidade sempre projetada, por mais que seja conhecida.

Em Un Bel Instant, a cena começa com Jeanne tocando a campainha de um prédio

que, pelos objetos de cena, percebemos que se trata do tempo atual. Pelo interfone ela fala

com uma senhora que teria sido vizinha e cliente de sua avó (ela identificou o endereço

através do recibo encontrado nos arquivos) e diz que busca informações sobre o que teria

acontecido a seus antepassados. A senhora silencia, criando tensão e, neste momento, entra

em cena uma plataforma com o cenário de uma pequena sala de estar, com um piano tipo

armário sendo tocado por uma das atrizes, a avó, enquanto o ator que seria o avô canta uma

melodia em alemão; as outras atrizes são as duas irmãs, excitadas com o vestido de noiva que

acaba de ficar pronto. Todos tomam xícaras de chá, salientando que provam também

verdadeiros torrões de açúcar (evidenciando a escassez de alimentos pela guerra). Até que a

campainha soa, o casal judeu se entreolha, mas fica evidente que é apenas o noivo, ansioso.

As irmãs cobrem o vestido e saem acompanhadas pelo noivo, cruzando com Jeanne, que

observa o flashback por detrás das grades do portão do prédio, em mais uma alusão aos

procedimentos de manipulação do tempo no cinema. Assim termina o flashback e a senhora

explica que o vestido de casamento teria sido feito para sua irmã, e segue contando o que

havia passado: “Tenho que te dizer uma coisa.” E a plataforma desaparece atrás da cortina.

Em Le Pardon, a cena se abre com duas moças, as irmãs que conhecemos na cena

anterior desta série, jantando uma sopa à luz de velas, com bastante voracidade, a ponto de

lamberem o prato. Ao analisar o cenário, percebemos que se trata do período da guerra. O

telefone toca e uma delas vai atender enquanto a outra retira os talheres e pratos. No rádio,

uma melodia repetitiva, com um chiado intermitente. A moça volta e fala para a outra que o

policial avisou que os alemães estariam no bairro, e haviam bloqueado a rua. A tensão se

estabelece, elas desligam as velas e o rádio. Uma se lembra: “E os Menuhin?”. Imediatamente

entra em cena uma plataforma com uma porta, na qual, “do lado de fora”, batem o casal

122

Menuhin, pedindo abrigo às vizinhas. As irmãs escutam em silêncio o pedido de acolhimento,

“só por uma noite”, paralisadas de medo. Uma delas não aguenta e corre para abrir a porta,

mas a outra a retém em uma breve disputa física, que pode ser ouvida pelo casal do outro lado

da porta.

Neste momento, o movimento de translação do cenário é intensificado pelos

impulsores, aumentando ainda mais a ideia de tensão no ambiente. Até que Alexeï pede as

jóias a Tatiana, as coloca dentro de um envelope e as transpassa pela porta, avisando que se

trata de uma carta destinada à Nora Altunian, com quem está a pequena Aline, na Bretanha.

Desequilibrada pela sensação de impotência, uma das jovens vai até a porta e pega a carta, ao

que Tatiana, em seu desespero, pede para que Fanny, a moça, abra a porta e seu coração, que

não os deixem, pois os alemães os levarão. Diante da porta fechada, o casal foge à procura de

outra saída, e Fanny, procurando justificar sua impotência, pede a outra que esqueça o que

houve. Forma-se aqui um belo quadro no registro fílmico: a plataforma segue se distanciando

da câmera, até que segundos antes de se fechar a cortina, a atriz diz: “Oublie!” (Esqueça!), e a

cena se esvai da visão do público.

Em Un Endroit Merveilleux, uma das cenas mais longas do espetáculo, ao abrir a

cortina vemos uma plataforma repleta de areia representando uma praia da Bretanha onde está

Aline, criança, brincando. A música sugere um ambiente infantil, lúdico, enquanto Aline

procura bichinhos entre as pedras, portando a correntinha com o crucifixo bem à mostra.

Neste instante, entra em cena um soldado alemão, que inicia um diálogo, em alemão, com a

criança, que não responde. À música é acrescentada uma nova melodia, com notas mais

graves, ilustrando a criação da tensão na cena. Abro parênteses para comentar outro exemplo

de fusão entre biografia e ficção. O soldado alemão é atuado por Duccio Bellugi-Vannuccini,

de origem italiana, um dos atores veteranos da companhia, conhecido por seu incrível talento

no teatro físico – apesar da baixa estatura – e no humor, sendo um dos atores principais no

trabalho com as máscaras. Nesta cena, pelo fato de o personagem falar alemão e não ser

entendido pela criança, o ator explora alguns traços da pantomima, o que traz humor e crítica

à cena, fazendo alusão também ao personagem clássico de Charles Chaplin, o Ditador, que

flerta com o clown. Ouso dizer que o tom desta cena tem origem justamente na junção destes

elementos, e que, fosse outro ator, a cena teria um colorido menos amplo. Além disto, é

curioso perceber que, nesta cena, no filme, Aline é feita pela atriz mirim Galatéa Bellugi, que

vem a ser filha do próprio Duccio na vida real (na temporada, as várias crianças que

compunham o elenco da peça, se alternavam nos papéis, garantindo períodos de descanso

entre si).

123

Imagem 29 - Pai e filha dividem a cena, observados por Andreas Simma.

Cartoucherie. Imagem de divulgação da temporada francesa, 2006.

Retomando a história da cena, Aline consegue salvar sua pele e de seu pai (que entra

em cena em seguida), declamando o “Pai Nosso” em francês, conforme aprendeu com Nora.

Esta aparece ao final deste trecho convidando-os para jantar e despedindo-se do soldado.

Outra bela imagem se forma quando Nora, depois de cumprimentá-lo, sobe em sua bicicleta

(sobre a plataforma), e congela em uma imagem que sugere a senhora sobre a bicicleta em

movimento. O soldado segue em cena, intrigado com a menina, até que se distrai caçando os

pequenos animais escondidos na pedra. Enquanto esta cena se esvai pela saída lateral, do

outro lado, aparece Jeanne, nos dias atuais, sentada em um banco na mesma praia da

Bretanha, olhando um mapa. Assim, o passado, ligado à memória, e o presente, se articulam,

o que é indicativo da aproximação da ideia de montagem cinematográfica, acentuada pelo

ritmo da alternância das plataformas.

Quando terminamos de compreender que ela está neste espaço/tempo, sobre a mesma

praia, pelo outro lado, surge um pesquisador científico que, com seus instrumentos, faz

medições na praia. Eles iniciam uma conversa posto que ela pede informações sobre as

cidadezinhas do entorno. Ela pergunta sobre um hotel que recebia famílias desde a época da

guerra e o senhor responde que sim, conhece o lugar, mas que se tratava de um albergue, no

qual sua tia-bisavó trabalhava, Morgane. Então eles decidem telefonar pelo celular à

Morgane, para falar sobre a hospedaria. Stang Bihan. Gilles, o sobrinho inicia a conversa e

passa o telefone à Jeanne que, posicionada frontalmente para o espaço da cena, mantém seu

124

olhar enquanto que sua plataforma sai pela lateral, sendo a última fala sua antes de se encerrar

a cortina: “Deve ter sido um lugar maravilhoso!”.

Pelo outro lado, fazendo uma montagem por fusão, adentra o espaço outra cena repleta

de poesia: ao abrir a cortina vemos uma plataforma com Morgane, a funcionária da

hospedaria, jovem, e Aline, criança, na cozinha, lidando com baldes de água e, atrás de si, um

lençol branco onde vemos refletido o filme que é projetado ali. Logo em seguida, outra

plataforma se apresenta, com os pais de Aline, Alexëi e Tatiana, e Nora, projetando e

assistindo ao filme Stagecoach (1939) de John Ford. O quadro que se forma no filme é

belíssimo: vemos os atores sobre os cenários, mas desta vez, a única coisa que se move é a

imagem projetada. Em seguida, Alexeï comenta que ganhou a bobina do filme de um primo

que vivia em Nova Iorque e havia enviado dias antes da tomada de Paris pelos alemães.

Neste momento, enquanto o personagem conta curiosidades sobre o filme, a

plataforma com o projetor começa a ser movimentado em translação, de modo que o filme vai

sendo projetado sobre toda a plateia, novamente multiplicando as camadas de sentido. Penso

que, com esta ação, o público passa a estar incluído na encenação, posto que uma

arquibancada de plateia passa a ser o suporte do filme para a outra, tornando concreta a

comunhão de todos os presentes na sala; penso também que se evidencia o procedimento de

projeção do cinema: se até então o público projetou sobre a cena suas impressões próprias,

neste momento o jogo se inverte e são os atores que passam a “projetar” sobre os

espectadores; penso, ainda, que a quarta parede teatral é, assim, absolutamente demolida e

atores e público podem olhar-se diretamente e constatarem suas mútuas presenças, ainda que

tenham a arte (teatro e filme) como filtro. E assistir a isto através do registro fílmico redobra,

literalmente, o ambiente de afeto que se instaura.

De repente se ouve o som de objetos caindo, seguido de um xingamento em alemão,

que nos faz perceber, personagens e público, que aquele soldado alemão está na casa. Todos

se paralisam, Nora, fazendo sinal para que se escondam, com a mão em frente ao projetor, vê

seu sinal ampliado no espaço (como se todos, personagens e público devessem atentar para o

perigo iminente). Ela leva a todos para fora da cena, e ordena que Morgane, distraia o

soldado, o que a deixa em pânico. O soldado aparece na cena derrubando o lençol que fazia as

vezes de tela e a cena que se segue tem novamente o tom de humor clownesco criado pela não

comunicação entre os personagens e pela atitude crítica em relação à situação que se

estabelece. Então Nora aparece e, fingindo uma ligação telefônica com um suposto

comandante, consegue amedrontar o soldado que vai embora, sem se dar conta da presença da

família judia no recinto. Ao final todas comemoram em um riso contagiante que domina

125

também a plateia, em um efeito catártico, bem capturado no filme.

A pequena Aline se junta à dupla de senhoras e, enquanto o cenário desaparece por um

lado, pelo outro entra novamente a praia com Aline adulta e o pesquisador, rindo das

lembranças de Morgane ao telefone (como se toda a sequência de cenas acontecidas no

albergue fossem as lembranças de Morgane). Todos saem pelas laterais e entram em cena o

senhor, marido de Nora, com um pequeno casco com terra e plantas e começa a ensinar à

pequena Aline como se deve tratá-las (lembramos que na primeira cena, Aline poda uma

árvore e ensina à filha como se deve tratar das plantas, ao que Jeanne, preocupa-se com quem

irá cuidar do jardim). A música, a mesma da trilha sonora do filme de John Ford projetado,

reaparece e cresce, reforçando a dramaticidade da cena (o espectador é levado a rememorar

tudo que ele sabe sobre a personagem Aline, revisitando a trajetória dela – e de todo o

espetáculo – com uma dose carregada de empatia). Lembro que Aline é a personagem que

ganha elementos da biografia de Mnouchkine como parte de sua história, portanto, há uma

aproximação muito grande entre a personagem e a encenadora/cineasta.

Imagem 30 - As atrizes comemoram o sucesso do estratagema contra o soldado alemão.

Cartoucherie, 2006. Imagem de divulgação da temporada francesa.

Desta forma, rememorar a trajetória de Aline pelo espetáculo poderia ser também uma

forma de rememorar a trajetória de Mnouchkine em seu Théâtre du Soleil, personificada na

presença de Juliana Carneiro da Cunha, atriz que interpreta Aline adulta e, depois, Nora, sua

cuidadora, figura imprescindível para o trabalho da companhia.

Ao blackout que se segue, vemos os agradecimentos dos atores que tomam a cena por

todo o espaço, agradecendo a ambas as plateias. “Episódios sonhados, invocados, evocados,

improvisados e encenados por… (segue-se a lista com os nomes de todos do elenco)”, assim

126

termina a legenda do registro fílmico de Les Éphémères, informando ainda que o registro foi

feito por quatro câmeras, operadas por Jean-Paul Meurisse, Jordânia Chouzenoux, Bernard

Zitzermann e Helene Brugnes, e que o filme foi rodado nos dias 31 de maio e 1 de junho de

2008, diante do público da Comedie de Saint-Etienne.

Por força do momento, elegi apenas uma sequência de cenas para a análise mais

profunda sobre os mecanismos de hibridização da cena, sob pena de deixar de fora inúmeras

outras possibilidades de associações. Como exemplo, há mecanismos interessantes como a

repetição de nomes entre os personagens de cenas diferentes, multiplicando as possibilidades

de criação de narrativas pelo público: uma criança, cuja mãe sofre maus tratos do pai, tem o

mesmo nome, Gaëlle, de uma introspectiva dona de um bar, que nunca fala (conhecemos seu

nome pelo logotipo da porta: “Chez Gaëlle” (“Casa da Gaëlle”); seriam a mesma pessoa? Há

também cenas com forte engajamento físico por parte dos atores (como o rapaz em crise de

abstinência esmurrando a porta da casa dos avós no meio da madrugada), personagens em

situações aparentemente banais (um casal que corta salames enquanto aguardam o retorno da

filha), entre inúmeras cenas e sequências que compõem um verdadeiro mosaico da alma

humana, reforçando a tônica do efêmero, das breves bolhas de sabão de sentimentos, que se

criam e desfazem a todo momento, mantendo o espaço criativo do próprio espectador.

Les Éphémères desafia o princípio de unicidade do cinema como a arte do

sequenciamento dos planos em relação ao teatro, posto que cria uma montagem das

sequências de cenas ao vivo, diante do público, através do movimento contínuo das

plataformas de cenários e do entrecruzamento das histórias seriadas. O espectador monta o

espetáculo na sua cabeça, de forma que cada um cria sua própria narrativa particular pela livre

associação das imagens.

No cinema, a narrativa procede por elipse (o “corte” ou mudança de plano); o olho

da câmera é um ponto de vista unificado que constantemente se desloca. Mas a

mudança de tomada pode provocar interrogações. A mais simples delas é: do ponto

de vista de quem é feita a tomada? E a ambiguidade de ponto de vista latente em

qualquer narrativa cinematográfica não tem similar no teatro. Na verdade, não se

deve subestimar o papel esteticamente positivo da desorientação no cinema.

(SONTAG:1987, p.109)

Em Les Éphémères, de alguma forma o efeito da desorientação do cinema chega à

cena teatral, oferecendo ao público e aos atores uma experiência estética única, um momento

de raro encontro entre o fazer artístico e o mundo contemporâneo.

Aproveito, ainda, para tecer algumas considerações gerais sobre este espetáculo e seus

elementos. Em primeiro lugar, recuperando o que foi considerado a respeito do primeiro

127

cinema em relação a sua aproximação com o sistema de views/mostras, herdado do teatro

vaudeville, em Les Éphémères, penso que se pode imaginar cada cena como uma destas

“atrações”, especialmente as que não tem sequenciamento longo. Isto corrobora para a criação

da sensação de se estar diante de um filme, ou mesmo diante de uma série televisiva ou da

Internet, onde os mesmos personagens passam por diferentes situações, sem que haja muita

linearidade na narrativa, necessariamente. Através deste recurso, o espetáculo alcança mais

níveis de empatia com o público que lhe é contemporâneo, pois “falam a mesma língua”.

O imaginário cinematográfico está em toda parte, e nos impregna até em nossa

forma de falar ou de ser. Quem, ao percorrer de carro um longo trajeto numa vasta

paisagem aberta, não pensou, com a ajuda da música do rádio, numa figura de

travelling mergulhando na tela panorâmica de seu pára-brisa? (DUBOIS, 2011, p.

25)

Outro aspecto que me chama a atenção é se estas plataformas de cenários móveis,

criadas por meio da adaptação dos dollys de travelling para as câmeras (plataformas), que

passam a transportar as próprias plataformas de cenário, possam ser pensadas como pequenos

sets de filmagem volantes. Tal utilização transfere o movimento e a velocidade que nos

acostumamos a ver no cinema para o teatro. Percebo também uma clara aproximação entre

estes dispositivos cênicos e os screens de Gordon Craig,50 como uma atualização da ideia de

que o próprio cenário seja um discurso do movimento, uma proposta para um novo “palco

cinético” que absorve as ferramentas do fazer cinematográfico, garantindo uma adesão

imediata do olhar espectador domesticado pela popularização da estética audiovisual.51

Também gostaria de comentar a sintonia deste espetáculo e do “projeto” Soleil com as

proposições conceituais de Adolphe Appia, em relação ao espaço do teatro. Proponho uma

análise das modificações do espaço cênico e plateia da Cartoucherie para a montagem do

espetáculo Les Éphémères, à luz dos conceitos de Adolphe Appia no que diz respeito ao

espectador atuante, ao espaço unificado que propicia a ideia da obra como uma ação social de

comunhão, até chegar à hipótese da própria Cartoucherie como a “Catedral do Futuro”

proposta pelo arquiteto e cenógrafo suíço.

É dentro deste contexto que procuro aproximar as experiências práticas do Théâtre du

Soleil às proposições teóricas de Adolphe Appia, quando, em suas palavras, “Pela primeira

vez na história do Teatro o problema da arte dramática é posto nestes termos revolucionários,

50 As screens são espécies de telas abertas que se articulam como biombos que podem se fechar em cubos e que

seriam utilizadas juntamente com a concepção de über-marionette de Gordon Craig, na qual o ator seria

completamente controlado pelo encenador 51 O “palco cinético” seria, portanto, o conjunto das screens de Craig, trazendo para o espaço da cena o

movimento e a tridimensionalidade que irão comungar com o corpo do ator.

128

com a audaciosa negação de que a arte dramática é a síntese harmoniosa de todas as artes,

donde nasce verdadeiramente o Teatro Moderno, teoricamente e no sentido de uma estética de

cena.” (APPIA, 1919, p.24)

Para cada época, um espaço. Estrutura e representação à procura de um conceito capaz

de dar conta da complexa percepção espacial que cada sociedade experimenta. O que

considerar nesta busca? Como traduzir a sensorialidade espacial da vida no espaço da cena?

Se as mesmas questões alimentam o ato criativo de cada época, as suas respostas vêm

imbricadas de tantos elementos quanto se possa pensar, seguindo sempre, porém, a liderança

das inovações tecnológicas que catapultam o ser humano e seus modelos de representação

para adiante. Este “adiante”, no entanto, guarda em si um caráter circular, espiralado que

avança e retrocede também verticalmente, possibilitando o eterno resgate daquele que o

antecede.

Alguns momentos da história da humanidade foram particularmente férteis e

conseguiram traduzir a efervescência do momento político e social no fazer artístico. Assim

foi com as vanguardas européias, por exemplo, que explodiram a representação artística do

século XIX na ânsia de dar conta de um mundo em rápida e efervescente ebulição, no qual

conceitos de liberdade e subjetividade ganhavam matizes absolutamente revolucionários.

Dentro deste contexto, alguns artistas trouxeram contribuições tão potentes e relevantes no

campo da teoria e da prática que ainda hoje apresentam desafios e provocações para artistas e

espectadores. Homens de teatro, por exemplo, extasiados com os avanços tecnológicos do

mundo que os cercava, alinhados às recentes descobertas da psicanálise e da ciência cognitiva,

ansiavam por encontrar a cena que desse conta de dialogar em pé de igualdade com aquele

mundo e com aquele público. A ideia de representação é posta em cheque, portanto, visto que

as ideias de experiência, experimentação e fruição se problematizam diante deste novo

homem científico.

Adolphe Appia, arquiteto e encenador suíço, um dos principais responsáveis pela

renovação da cena no início do século XX, foi preciso ao diagnosticar a impossibilidade do

teatro enquanto representação da realidade, posto que a materialidade bidimensional de

cenografia não pode compor um conjunto plástico harmônico com a tridimensionalidade dos

corpos dos atores em cena, o que leva necessariamente à percepção de que o espaço cênico é

campo para outros tipos de jogos ilusionistas. Com o advento da luz elétrica na cena, são

postos às claras a artificialidade limitante dos telões pintados, fortalecendo a necessidade de

pesquisar outro uso do espaço que não só deixasse de se confrontar com a imagem dos atores,

mas que ampliasse as suas possibilidades de jogo na tridimensionalidade. Se a dramaturgia

129

encontra o tempo como suporte, é o espaço onde a encenação pode atuar de modo a

concretizar a cena como um jogo entre o ator e o espectador. E no momento em que a

encenação passa a figurar no topo da hierarquia entre os elementos da cena é que o espaço

vira objeto de pesquisa e experimentação em diversos sentidos. Afinal, como diz Oliveira

(2008, p.4): “Cada obra deve ter não apenas seu próprio cenário, mas seu próprio teatro (toda

a sala e a fachada inclusive!) sem falar dos princípios da encenação. Cada obra deve criar seu

teatro!”

Para Appia, o ápice da reforma do espaço cênico seria aquele em que o movimento e o

ritmo pudessem ser traduzidos pelas linhas e planos a compor a cena no palco, influenciado

pelas pesquisas de Jacque-Dalcroze, o jogo de luz e sombra criado pela iluminação elétrica e

oxídrica criasse o ambiente simbolista e abstrato que se perseguia à época e que o espectador

estivesse imerso de tal forma neste espaço que deixaria a passividade da observação para se

tornar atuante. Desta forma, a experiência artística atingiria a sua plenitude mais ligada aqui à

concretização da ação social de comunhão e encontro espiritual do que à ideia de “obra de

arte total” de Richard Wagner. Neste sentido, diz Appia:

O autor propõe-se voltar a outro estudo sobre a influência na vida da arte: e

desenvolver-lhe as consequências. Por exemplo: as nossas salas, quaisquer que elas

sejam, adquiriram uma elasticidade que não escapa a ninguém. Reuniões políticas,

religiosas, conferências, concertos, etc., realizam-se frequentemente num circo, num

teatro e, por outro lado, o teatro transporta-se de boa vontade para o circo. A etiqueta

rigorosamente fixada nas fachadas dos nossos edifícios começa a voar a todos os

ventos. A música, a dança, entraram na comédia e o drama na ópera. A nossa

existência privada e a nossa vida em público já não são estritamente limitadas se não

pelo passado. O lar familiar transborda para a rua e a vida ao ar livre irrompe das

nossas janelas, o telefone torna as nossas conversas quase públicas e já não tememos

expor os nossos corpos à luz do dia, e, portanto, as nossas almas. Também

experimentamos uma necessidade cada vez mais imperiosa de nos reunirmos, seja

ao ar livre, seja numa sala que não foi destinada, antecipadamente a uma das nossas

manifestações públicas. Com exclusão das outras, mas, portanto e pelo contrário, a

única razão será simplesmente reunirmo-nos, tal como na catedral do passado. A

palavra escapou-me! Não, retomarei. Sim: é a catedral do futuro que lhe chamamos

com os nossos melhores votos! Recusar-nos-emos sempre a correr de um lugar para

outro para actividades que têm de olhar-se de frente e penetrar-se. Queremos um

lugar onde a nossa comunidade nascente possa afirmar-se nitidamente no espaço; e

um espaço bastante flexível para oferecer-se à realização de todos os desejos da vida

integral! (APPIA, 1919, p. 196)

Vê-se aqui a importância de a obra de arte cênica envolver três aspectos principais,

sem hierarquia de valor entre si, a saber, o texto, o ator e o público, em perfeita sintonia e

comunhão, atingida através da encenação. Voltando o olhar para o espetáculo do Théâtre du

Soleil em questão, Les Éphémères, conseguimos associar as pesquisas de Appia acerca das

características do espaço/obra que levaria à plenitude da experiência à encenação da

130

companhia. Trazendo o espectador para dentro do espaço da cena, Mnouchkine promove o

esperado espaço unificado que propõe Appia, visto que cada arquibancada de plateia

emoldura a cena uma para a outra, ou seja, o que o espectador vê é a cena que transcorre no

espaço cênico, e, atrás, espectadores em condição idêntica à sua, também afetados pelo

espetáculo. Fica clara, assim, a sintonia entre as proposições de Adolphe Appia e as

provocações estéticas que o espetáculo do Théâtre du Soleil promove. Naturalmente, se

pensarmos na própria trajetória artística da companhia e o hábito de transformar os galpões da

Cartoucherie de acordo com a temática de cada peça, percebemos que isto se dá não só em

termos de configuração e decoração do espaço, mas também através da música e da

gastronomia que acompanham o tema e que envolvem completamente o espectador que vem

ao teatro em uma atmosfera outra, mágica, transportada, através da qual se instaura um espaço

ritual que dura uma determinada quantidade de horas das quais saem todos transformados,

atores e espectadores. A Cartoucherie seria, portanto, uma consagração prática e ilustre da

sonhada Catedral do Futuro, onde, em verdade, todas as épocas e sociedades se presentificam,

em constante movimento através das experiências ali vividas, rompendo com a cronologia

para instaurar o tempo aiônico, próprio da fruição artística. Entendo neste sentido a ideia de

tornar os espectadores verdadeiramente atuantes, posto que são peças essenciais para o jogo

que se estabelece.

A enunciação deste postulado (necessidade da tríade atuante, texto, público) é matriz

de toda arte cênica, inclusive da performance e da arte ritual. Por meio das visões

teatrais e das projeções utópicas de Adolphe Appia (A Obra de Arte Viva, 1919) essa

matriz pode ser pensada em seus limites mais extensos: Appia fala numa “sala

catedral do futuro” onde se prescinda de espectadores, só havendo atuantes. Craig

sugere marionetes como intérpretes, em vez de seres humanos. (GUINSBURG,

2002, p 253)

Naturalmente, o público que frequenta a Cartoucherie não é convidado a interferir na

cena, artisticamente. Embora haja bastante interação entre público e artistas nos intervalos de

tempo que antecedem e sucedem a apresentação de cada ato, o público apresenta-se como

voyeur do acontecimento, ainda que eventualmente possa ocupar um lugar ativo (como

quando torna-se suporte para a projeção de um filme, visto por todos os presentes, por

exemplo).

Percebo com emoção quantos matizes surgem a cada vez que relaciono algumas das

principais contribuições dos grandes teóricos das artes cênicas e os espetáculos que surgem

através dos processos de criação absolutamente práticos que o Théâtre du Soleil promove.

Para utilizar uma expressão cara à Ariane Mnouchkine, as “evidências” de que os seus

131

espetáculos estão em sintonia fina, com que se espera como ápice das artes da cena, ficam

bastante perceptíveis, transmitindo a delicadeza e a sutileza que emergem depois de tanta

lapidação e labuta. E, por fim, nos dão a certeza e o privilégio de poder testemunhar esta bela

e trágica aventura dos tempos modernos que é a trajetória do Théâtre du Soleil.

O leitor perdoará antecipadamente ao autor, não esquecendo que a maior e mais

profunda alegria que a arte possa conceder-nos é de essência trágica; porque, se a

arte tem o poder de nos fazer «viver» a nossa vida, sem nos impor simultaneamente

os sofrimentos, ela pede-nos, em contrapartida – para a sentir com alegria – que

soframos antes. (APPIA, 1919, p. 15)

Finalizo aqui, pensando que o germe do espetáculo seguinte, Os Náufragos do Louca

Esperança, residiu justamente na cena final de Les Éphémères, na projeção mambembe de um

filme, na cozinha de aficionados por cinema. E a esta nova aventura da companhia, analiso a

seguir.

3.2 Um novo ponto de partida: Os Náufragos do Louca Esperança

A cada vez se acredita que não se pode ir mais longe, de tanto que a forma (o

dispositivo de jogo) parece radical e extrema na sua coerência. E a cada vez, a busca, no

entanto, continua sem se repetir: dupla procura a do Soleil, que se preocupa com questões

políticas e sociais, ao mesmo tempo em que se interroga sobre a essência e as possibilidades

da arte da cena, cujo campo é ampliado a cada um dos espetáculos.

Um espetáculo gera o outro. No final das representações dos Tambours em turnê na

Austrália, Ariane Mnouchkine, que tinha encontrado naquele continente o tema de

pesquisa da sua trupe para os meses seguintes, havia projetado sobre as preciosas

sedas do cenário as palavras “Free refugies”. Assim, os espetáculos do Soleil

constituem um repertório dentro do qual eles ecoam entre si. E se a sua força e o seu

brilho individual se enraízam no longo e intenso trabalho conduzido pelo grupo (8

meses para Tambours, para Les Éphémères), eles se devem também aos laços que os

unem aos espetáculos de antes e de depois, ao lugar que ocupam na história desse

grupo, assim como na história do Teatro. O tempo do Soleil se conjuga em três

tempos: presente, passado e futuro. E os próprios filmes realizados a partir dos

espetáculos (Au Soleil même la Nuit, Tambours, Le Dernier Caravansérail) fazem

parte dessa “cadeia” e possibilitam compreender melhor a amplitude dessa obra

teatral em curso.” (PICON-VALLIN, 2006. p. 112)

Como dito, a partir dos anos 2000, nas obras da companhia que sucedem o espetáculo

Tambours sur la Digue, há uma aplicação de efeitos que se aproximam dos recursos da

132

linguagem cinematográfica na própria encenação, devido à investigação de técnicas relativas

à movimentação de câmera, escolha e alternância de planos, direcionamento do olhar do

espectador, sobreposição de imagens, velocidade, ritmo e cadência de dispositivos de edição

das imagens. Desse modo, há a construção de uma narrativa híbrida, entre teatro e cinema, e,

no caso que se seguirá, o cinema ganhará o protagonismo não só como linguagem, mas como

tema do espetáculo:

No início de nosso filme havia o teatro. O teatro, divino sujeito da Fatalidade: um

deus do tempo, por um tempo definido. A própria vida. A finitude e o segredo de

sua genialidade. O teatro, onde toda ação é no presente, o teatro que dá lugar ao

presente, o teatro passa. Desde o começo, para começar, o teatro foi assombrado

pela morte e pela louca esperança de imortalidade. Desse sonho de imortalidade

nasceu o cinema. O cinema é do teatro extratemporal. O cinema é a atualização do

sonho, de um sonho que pode se repetir, e não conhece um "fim". (...) O cinema é o

sonho do teatro, enfim realizado. (CIXOUS, 2013)

Os Náufragos do Louca Esperança (2010) foi o espetáculo seguinte a Les Ephémères,

cujo tema teve origem no espetáculo anterior, uma questão recorrente, como foi visto. A peça

se passa em 1914, no período da iminência da Primeira Guerra Mundial, e conta a história de

um grupo de funcionários de um restaurante, o "Louca Esperança", que, apaixonados pelo

cinema que acabava de ser inventado, resolvem fazer um filme amador sobre um livro

inacabado de Jules Verne. Com este pressuposto o espetáculo criou espaços para uma

metalinguagem da companhia, da mesma forma como havia acontecido em Molière (1977),

que contava a história da vida do grande dramaturgo, diretor e ator francês, focando seu

trabalho na sua companhia teatral.

Em Os Náufragos do Louca Esperança os contornos metalinguísticos se dão por meio

dos esforços coletivos para produzir um filme artesanal, amador, ou seja, feito por amor,

enfrentando as adversidades de peito aberto. Assim como o Théâtre du Soleil nos últimos

tempos. Desde os últimos anos, a companhia vem encontrando cada vez mais dificuldades de

manutenção do seu trabalho, apesar da forte ligação com o público que mantém cheias as

arquibancadas durante as temporadas. Além de cortes financeiros, Mnouchkine e sua trupe

vem procurando outros meios para garantir sua subsistência, fazendo, inclusive, associações

com outros grupos e diretores, como é o caso recente da parceria com Robert Lepage.52

Portanto, este espetáculo fala do amor pelo cinema por indivíduos que não se autodenominam

artistas, mas que não podem deixar de atender o chamado da musa: produzem cinema com as

próprias mãos, mesmo sem ter todos os meios para isto.

52 Alguns dos atores da companhia foram convidados a participar de um projeto com o diretor canadense em

2017, como forma de mantê-los em atividade, recebendo salários de outras fontes.

133

Este espetáculo fez uma turnê pelo mundo depois da temporada francesa, vindo ao

Brasil em 2011, para apresentações em São Paulo, Curitiba e, pela primeira vez, no Rio de

Janeiro. Apresentado no espaço HSBC Arena, na Barra (Rio de Janeiro), o espetáculo

envolveu a vinda de sessenta membros da companhia, entre atores, técnicos e equipe

administrativa, para a montagem de uma réplica da sala de espetáculos da Cartoucherie,

incluindo camarins, palco, arquibancadas e hall de entrada com bar.

Imagem 31 - Etapa da montagem da estrutura principal.

HSBC Arena – Rio de Janeiro (2011).

Imagem 32 - Capa do programa da turnê brasileira (2011).

134

Em paralelo às apresentações do espetáculo, vários membros da companhia

ofereceram oficinas e palestras, participaram de mesas redondas e mostras de filmes,

configurando uma ocupação do Sesc Copacabana (onde ocorreram as principais atividades

periféricas). Tive a chance de fazer parte da equipe de produção, me envolvendo em diversas

frentes como recepção, montagem, comunicação e divulgação, administração da temporada e

coordenação das oficinas. Assim, pude conhecer de perto este espetáculo e um pouco do

processo do qual resultou.

Os Náufragos do Louca Esperança, como os outros espetáculos recentes da

companhia também ganhou uma versão fílmica que foi além do mero registro, retomando a

ideia do filme de teatro. Nas próximas linhas irei comentar alguns aspectos da montagem no

teatro e do filme, procurando evidenciar as operações que demonstram a continuação e o

aprofundamento da pesquisa da companhia em direção às hibridações entre teatro e cinema.

Se em Les Éphémères o cinema surge na cena como um conjunto de operações técnicas que

alteram a estética do espetáculo e, minimamente ocupa a função temática da narrativa, em Os

Náufragos do Louca Esperança há uma inversão: o cinema passa a ser o tema central

dispondo dos recursos da teatralidade para se autoafirmar como fazer artístico. A peça não

deixa de render uma homenagem ao primeiro cinema, uma fonte de inspiração artística

recorrente na obra da companhia, como foi abordado.

No espetáculo, foi retomada a relação do palco italiano diante da arquibancada da

plateia, o que tornou o espaço mais disponível para o tema e a encenação do espetáculo: o

laboro cinematográfico. Assim como em Les Éphémères a personagem Jeanne parte do tempo

presente para mergulhar no passado através dos Arquivos Nacionais, aqui também este

recurso é utilizado e a primeira cena mostra duas pesquisadoras que procuram nos armários

do arquivo documentos que comprovem a existência do Louca Esperança e de todos os

anônimos que contribuíram para o nascimento e popularização do cinema. No teatro, esta

cena acontece no proscênio, com iluminação bastante residual, e, à medida que os

documentos vem à tona, a luz do palco revela o grande sótão que servirá de estúdio àqueles

amadores. A cena mostra, então, os resquícios da atividade do andar de baixo, o restaurante, à

medida que os funcionários terminavam suas funções e podiam brincar de artistas. Assim, a

garçonete tornava-se atriz, o imigrante russo, cenógrafo, em um ambiente lúdico e cheio de

afeto. Também havia o nível da metalinguagem na relação entre os envolvidos, como a

dificuldade de hierarquização entre iguais, as disputas por espaço, o esforço voltado ao bem

comum, a vontade de superação acusada por dificuldades inesperadas.

135

Já no filme, houve a necessidade de fazer operações desde no nível do roteiro para

garantir a credulidade da proposta. Os créditos iniciais fazem alusão à estética dos filmes

mudos, com a imagem congelada de um globo, sobre o qual se projetam os nomes dos

principais artistas envolvidos, sob uma música de ouverture, que prepara o espectador para o

que virá. Especialmente cara para nós é a informação de que o Sesc São Paulo é um dos

patrocinadores do filme. A tela se apaga em fade out e corta para duas crianças que andam

numa rua de Paris, no tempo atual, que conversam pelo telefone celular com um terceiro

colega, acamado, cercado de livros juvenis. O choque provocado com esta montagem já

estabelece o campo estético onde o filme se encontra e relembra o espectador sobre a

superposição de tempo/espaço existente em qualquer obra mais nostálgica.

Outro aspecto interessante que noto é a repetição de um recurso de Molière, filme que

também se inicia com cenas protagonizadas por crianças. Penso se, ao mostrar o ponto de

vista infantil como marco inicial do filme, a cineasta não nos convida a desfazer dos “pré-

conceitos” e receber as imagens com o frescor da descoberta ingênua e apaixonada da

infância.

Imagem 33 - Jovem ator do filme (2013).

Na sequência, entendemos que as crianças e sua mãe estavam em busca do Louca

Esperança, desejando saber se o restaurante ainda existiria ou não, e frustram-se diante da

negativa. A mãe chega a comentar sua louca, vã esperança, de que ainda existisse. Tem início

uma sequência de cenas que obedecem aos princípios do cinema narrativo clássico, mostrando

a oposição de ideias entre mãe e filha sobre a permanência de um menino refugiado em sua

casa. A cena chega ao ápice quando a mãe acusa a filha de querer salvar o mundo inteiro

136

sozinha. Faço aqui uma analogia entre o posicionamento da jovem e a personalidade da

própria cineasta/diretora, cuja vida tem sido dedicada às injustiças sociais do mundo. O

figurino da jovem (a mesma atriz mirim que atuou como Aline em Les Éphémères) faz alusão

à própria imagem de Mnouchkine: pulôver sobre camisa com gola social. Interessante, ainda,

observar que a atriz que faz o papel da mãe é Olivia Corsini, que está na companhia desde

2002, e desenvolve trabalhos no cinema, como Olmo e a Gaivota (2016), de Petra Costa – o

filme é um documentário ficcional sobre a o período de gravidez da atriz, casada com outro

ator do Théâtre du Soleil, Serge Nicolaï.

Entendemos que a mãe é uma pesquisadora e que traz para casa o possível roteiro do

filme que teria sido filmado no Louca Esperança, o diário de trabalho e um objeto que a

câmera não mostra, pertencente a Camille, o músico. A cena se passa no sótão, mantendo-se

alinhada ao espaço principal da cena no teatro: o sótão do restaurante. Em seguida, no

computador da mãe lemos o título de sua tese: O cinema de educação e recreação popular em

1914, e se inicia uma narração em off, na voz de Ariane Mnouchkine, daquilo que é digitado:

os agradecimentos e dedicatórias do trabalho, incluindo os bisavôs da personagem, garçons do

Louca Esperança, que lá se conheceram. Vimos a importância dos antepassados de

Mnouchkine no espetáculo anterior e, ouvir sua voz dedicando o trabalho a eles, ainda que

aqui se trate de pura ficção, não deixa de criar uma segunda camada de sentido.

A cena corta para o sótão onde a menina dorme. Ao fundo escutamos a música do que

seria um baile. Então, assumindo o ponto de vista da menina, a câmera revela uma maquete

do Louca Esperança – que se assemelha à própria Cartoucherie –, o tal objeto de Monsieur

Camille, e a música passa a ser fundo do que entendemos ser o som de algazarra de uma festa,

à medida que a câmera se aproxima da maquete. A cena corta para a menina como se

estivesse entrando no espaço do Louca Esperança, em meio a poeira e teias de aranha, criando

uma fusão entre o espaço realista e o plano da memória (que mostra o palco do Soleil com os

cenários da peça).

Aqui encontramos uma profusão de exemplos que deflagram esta pesquisa híbrida do

Soleil, de forma que não conseguimos hierarquizar a influência de uma arte e outra: teatro e

cinema são uma coisa só, a arte de contar histórias. Nesta sequência, alternam-se o ponto de

vista das crianças, que descobrem um tempo passado com o qual percebem alguma filiação –

em atuação absolutamente naturalista –, e o plano da memória, fantástico, onde se passam as

cenas do espetáculo original – aqui os atores se movimentam com algum maneirismo fazendo

alusão à movimentação acelerada que percebemos nos filmes do primeiro cinema. Neste

quadro, em primeiro plano, abaixo, temos o diretor e seu assistente, e a cena se desenrola na

137

sua frente. Lembremos que esse é exatamente o ponto de vista de Mnouchkine em sua sala de

espetáculos, também como a câmera em enquadramento geral: o jogo de projeção e recepção

das imagens que encontram eco no interior da encenadora/cineasta se multiplicam

geometricamente.

Imagem 34 - Atores observam a montagem da cena diante de si (o filme, 2013)

A narração continua apresentando os personagens do Louca Esperança enquanto a

imagem ilustra toda a atividade do local, assim como no cinema mudo. Há também

alternância entre as cenas do teatro e um plano fechado na pesquisadora, enquanto ela

escreve, sorrindo envolvida com as situações que acontecem no plano da

imaginação/memória – a montagem nos leva a pensar na memória como criação mental da

pesquisadora, como se ela projetasse seu "cinema interior" na escrita. Aproveitando as

grandes figuras da época, propõe-se uma brincadeira em que os personagens anônimos

(ficcionais) teriam ligações com os estúdios Pathé, com Diaghilev, entre outros.

A apresentação do músico, Camille, interpretado pelo próprio Jean-Jacques Lemêtre,

músico da companhia há muitos anos, é uma singela homenagem a importância que ele possui

de fato, pois "fornece o ritmo aos atores" (trecho da narração do filme). A cena aos poucos

ganha a excitação e a agitação entre os personagens que podia se perceber na peça, no teatro,

que reproduz o clima que antecede o início dos ensaios durante o processo de montagem, e a

narração expõe os métodos criativos da companhia (como os atores são distribuídos pelos

papéis, a importância da escolha da música, a definição do espaço cênico), ao passo que são

introduzidas novas cenas, de multidão, onde se percebe a presença de todos os integrantes do

Soleil, novamente oferecendo elementos metalinguísticos no filme.

138

Em uma cena subsequente, os personagens Felix Courage (o dono do Louca

Esperança) e Madame Gabrielle (a cinegrafista), atuados por Eve Brüce e Juliana Carneiro da

Cunha respectivamente, vão até a varanda que dá para o exterior, para assistir um número

cômico, de socos e pancadas, apresentado por duas jovens diante de um grupo. Então Felix

pede que as moças comecem a apresentação, fazendo alusão à Mme Gabrielle: “Comecem! O

cinema as observa!”. Esta fala contém em si tantas possibilidades… Trata-se historicamente

do período do primeiro cinema, ou do cinema primitivo que, de fato alimentava-se destas

“atrações” para a produção de suas “vistas” /views. No nível da narrativa do espetáculo, após

assistir ao número, Mme Gabrielle contrata as moças para atuarem no filme (na narração em

off é dito que, pela falta de recursos, o filme seria feito com os desempregados, com os

subalternos do restaurante, e com todos aqueles que tivessem desejo de participar; o

pagamento seria feito em serviços e alimentação, já que o dinheiro era escasso). As moças

chegam ao “sótão/ set de filmagem” e recebem tíquetes de alimentação para o restaurante –

faço uma analogia novamente com o próprio Soleil, onde os salários são apertados, mas todos

os integrantes são convidados a fazer as refeições no próprio teatro.

Então a filmagem irá começar e, mais uma vez, o que se segue é uma movimentação e

organização do espaço para a criação da cena idêntica à rotina de trabalho do Théâtre du

Soleil, como se víssemos a companhia trabalhando sob o filtro do tempo, com roupas de

época. Estas passagens, que se repetem bastante no filme, são emocionantes e melancólicas,

pois, como foi dito, registram o desejo de reter o momento efêmero e, neste ato de

congelamento, descolam a experiência do tempo presente e denunciam o truque;

transformam-se em um teatro passado.

Jean fez um discurso. Ele falou sobre o socialismo, as cooperativas, a fraternidade,

as lutas incansáveis, Ele falou da Europa, do mundo futuro, da França, da arte, do

cinematógrafo, falou sobre as novas auroras, do aeroplano, do telefone, ele falou

sobre o progresso que não acabaria mais, sobre a medicina que curaria todas as

doenças, da felicidade na qual viveriam as gerações futuras. (Trecho do filme Les

Naufragés du Fol Spoir, 2013)

Novamente em uma operação de transposição entre um meio e outro, há uma

montagem alternada entre o plano do menino de cama lendo o livro de Jules Verne (e a voz

do ator mirim passa a ser a narração) e a filmagem das cenas por Mme Gabrielle em sua

câmera. Assim, o filme dentro do filme se mantém mudo (de forma fiel à época), mas

lembramos que estamos no século XXI através da voz do menino, nosso contemporâneo,

ambos os mundos ligados por uma obra de arte clássica, o livro de Jules Verne, nos

lembrando que só a arte atravessa o tempo e o espaço. Nesta sequência, as legendas do filme

139

mudo são projetadas também sobre o próprio quadro do filme, criando mais esta transposição

e fazendo alusão ao espetáculo, onde estas mesmas legendas eram projetadas no cenário,

criando belíssimas imagens teatrais e cinematográficas, ao mesmo tempo.

Imagem 35 - Cartoucherie. Imagens da revista L’Avant Scéne –Théatre (2013)

O filme segue, deflagrando uma profusão de momentos preciosos para destacar a

intermidialidade, como ela vem sendo praticada no Théâtre du Soleil, capaz de fornecer

material para uma pesquisa única sobre este espetáculo, o que não é o caso neste momento.

Assim, de forma sintética procurei categorizar alguns assuntos chaves para fazer observações

sobre este filme, em relação a sua estrutura e em contraposição à peça.

Em relação à pedagogia da construção da técnica cinematográfica, pelo tema da

peça/filme, o primeiro cinema, o espectador tem o deleite de ser apresentado às interessantes

traquitanas e engenhocas que deram origem aos equipamentos de filmagem que moldaram o

cinema até o advento do digital. Neste sentido aparece o travelling, com Madame Gabrielle,

com sua câmera no colo, sentada sobre um baú com rodinhas, sendo empurrada por

Tommaso, seu parceiro de trabalho.

140

Imagem 36 - Atores em cena no espetáculo. Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.

Há a “grua” com Mme Gabrielle sentada em uma traquitana que, por sistema de

roldanas, a suspende no ar para que ela possa fazer tomadas do alto; o zoom out, onde Mme

Gabrielle, com sua câmera, se coloca bem próxima à cena e, quando começa, vai sendo

puxada para trás por Tommaso, reproduzindo o movimento de afastamento do objeto pela

câmera; entre outros.

Imagem 37 - Juliana filma através da “grua”. Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.

Há também a cena do naufrágio: Mme Gabrielle filma uma maquete de um barco em

uma grande bacia com água, com efeitos especiais de luz, fumaça e manipulação dos objetos,

tudo sendo manipulado pelos próprios atores, fazendo uma alusão ao filme primitivo e ao

teatro com objetos; quando a câmera do filme enquadra o barco e todos em volta, tudo está

claro.

141

Imagem 38 - Cartoucherie. Imagens da revista L’Avant Scéne – Théatre (2013)

Também são muitos os exemplos de técnicas de filmagem bastante rudimentares,

cujos efeitos são bastante reconhecíveis, como entrar na cena “como numa batalha” (com a

câmera na mão, adentrar o quadro), ou “fazer o crocodilo” (um ator deitado no chão, abaixo

do enquadramento, lê o texto que o ator no quadro deve balbuciar, uma versão do “ponto”

teatral). Em muitas cenas temos o enquadramento clássico do primeiro cinema, um plano

geral aberto, onde tudo está à mostra, reproduzindo aquela estética e, naturalmente, fazendo

jus à experiência do espectador do teatro, o que acaba criando uma inversão cronológica: o

teatro passa a imitar o cinema. Outra cena bastante divertida e que tem um caráter histórico e

didático é a cena da disputa entre Argentina e Chile pela região da Magellania. A cena mostra

dois personagens militares que representam os dois países, interpretados pela dupla cômica

que foi encontrada na rua, portanto a cena evolui do que seria um diálogo protocolar para uma

cena de pastelão com socos e pontapés, culminando com as tortas de creme no rosto dos

personagens – e das crianças que comem tortas de creme e entram na brincadeira, criando um

momento de humor e melancolia. Outro dado singelo é o nome do personagem de Jean-

Jacques Lemêtre, Monsieur Camille, que faz referência ao primeiro músico do cinema,

Camille Saint-Saëns, autor da trilha do filme A Morte do Duque de Guise (1908), de Charles

Le Bargy e André Calmettes.

Para dar mais um exemplo, em seguida ao insert de imagens da época mostrando a

escalada dos acontecimentos históricos, e o quanto uma guerra nas proporções da Primeira

Guerra Mundial parecia improvável, há uma sequência com planos em preto e branco, com

uma textura que se aproxima muito da película, no enquadramento do que seria o filme de

Jean e Gabrielle. As cenas mostram o momento em que o índio vê os tripulantes afogando-se,

142

debaixo d’água e tenta romper as cordas para soltá-los; é uma sequência toda subaquática, o

que representaria um desafio para que se mantivesse a credibilidade em meio às outras

sequências do filme. Assim, é a primeira vez que vemos como o filme dos irmãos deveria ser,

como deveríamos ver a as cenas que estavam sendo filmadas. E para manter a coerência do

filme, o corte segue para uma cena onde se revela que todos estão no restaurante assistindo ao

material filmado, sendo projetado em um lençol com as bordas da imagem esbranquiçadas,

exatamente como na experiência do primeiro cinema. Outro momento marcante do filme.

É possível analisar de perto as operações de montagem do filme, também, como

elementos que procuram dar ao filme o mesmo impacto das cenas no teatro. Por exemplo, no

filme há vários inserts de imagens da época, de jornais documentários filmados da época,

mostrando os acontecimentos históricos, para balizar as cenas da ficção. Isto nos ajuda a

concretizar a narrativa que é proposta, pois, se no teatro as circunstâncias dadas do espetáculo

eram imutáveis, no filme percebemos uma multiplicidade de tempos/espaços que pode levar o

espectador a certa confusão. Há o plano do momento presente (ilustrados pelas cenas das

crianças, na cama e no sótão, e da pesquisadora diante de seu computador), há o plano da

imaginação coletiva que bebe nos arquivos como fonte de memória (todas as cenas que

mostram os acontecimentos da filmagem do sótão do restaurante Louca Esperança em 1914 –

as quais formavam a versão da peça), há as cenas de ficção criadas para fazer ligação entre as

cenas do espetáculo que eram auto-explicativas, e, por fim, há os trechos de documentários

que ilustram os acontecimentos históricos de 1914.

Portanto, a profusão de cortes e montagens com todo este material, criou a linguagem

híbrida do teatro enquanto filme, que torna-se um novo original. Ainda como forma de ilustrar

o que foi dito, destaco um trecho da entrevista de Juliana Carneiro da Cunha, nos extras finais,

contando que quando ela filmava, em cena como Gabrielle, ela via o filme dos “Náufragos”,

ela via a história dos irmãos La Palletes recém-saídos da Pathé, ela via a companhia do

Théâtre du Soleil na atualidade, e ela via, por fim, a própria câmera que captava as imagens

para fazer o filme, operada por Bernard Zitzerman.

143

Imagem 39 - Juliana Carneiro da Cunha em cena do filme (2013)

Também se pode concentrar a atenção nas adaptações das cenas da peça para os

planos do filme. Por exemplo, no espetáculo havia uma cena de grande alívio cômico quando

o personagem Felix Courage, enlevado pelo delicioso clima da filmagem, fazia uma longa

cena onde tocava os instrumentos imaginários de uma música de orquestra, indiferente aos

apelos de Jean para que a filmagem começasse. No filme, este trecho transformou-se em uma

contracena entre Eve Bruce e Jean-Jacques Lemaitre, trazendo a coerência e a credibilidade

que o filme pede. Outro exemplo interessante foi como o filme precisou recriar a

profundidade tridimensional da peça; os cenários pintados ganharam outros pontos de vista,

transmitindo ao espectador a sensação de estar dentro do set, de participar do filme ele

também.

Uma bela cena que exemplifica esta questão é aquela em que a menina que

acompanha a filmagem no plano da imaginação, assiste à personagem de uma moça que é

proibida de viajar, sendo levada pelos marinheiros, e no corte seguinte vemos o mesmo

enquadramento sendo que esta personagem foi substituída pela própria menina, ilustrando de

forma teatral o efeito de projeção que sentimos ao assistir a um filme no cinema e

verticalizando a experiência do cinema.

Há também as cenas do menino que lê o livro, fio condutor da narrativa, e se percebe

que do livro emana uma luz que ilumina seu rosto, induzindo à ideia de que a leitura traz

iluminação – especialmente em uma cena em que o menino deixa o telefone celular de lado

para ler o livro. Por fim, cito também a belíssima cena do delírio do idoso Charles Darwin.

Impactado com o desejo da Rainha de conquistar mais territórios, recordando-se da selvageria

144

da natureza de Maggelania e falando do desejo irrealizável de visitar o lugar uma última vez,

ele delira imaginando que está novamente lá: com efeitos de sedas em movimentos, vento de

ventiladores e flocos de neve pelo ar, ao som de uma música épica, o enquadramento do filme

começa com um plano fechado em suas costas até abrir-se e mostrar todos os atores

construindo o efeito, unindo teatro e cinema e criando poesia e emoção.

Imagem 40 - Charles Darwin fala sobre suas experiências à Rainha.

Cartoucherie. Imagem do espetáculo, 2013.

Um outro assunto chave que é a transposição da rotina real do Théâtre du Soleil para a

ficção do espetáculo filme – assim como em Molière, como foi dito, também de forma quase

didática. Ao recordar o fato de que Mnouchkine decidiu retomar as filmagens de seus

espetáculos em 2000, tocada com a hipótese deste material servir como arquivo histórico, me

comovo com a ideia de que, fundamentalmente, este filme é apenas mais um documentário do

fazer artístico da companhia, em uma reverência às suas duas fontes de inspiração: o cinema e

o teatro enquanto artes coletivas. Sendo assim, são muitos os exemplos que aparecem neste

tópico, como a distribuição dos personagens pelo elenco do “Soleil/ Louca Esperança”, o

corte de Olivia Corsini como a faxineira para Olivia Corsini como pesquisadora, evidenciando

o jogo da ancestralidade e da multiplicidade dos papéis no Soleil, as explicações sobre as

técnicas de atuação para a câmera são idênticas ao tipo de trabalho feito na companhia, as

crianças do filme são filhos dos atores, como em uma trupe circense, todo o elenco quase

sempre presente em cena, dividindo-se na atuação propriamente dita e na manipulação de

cenários e confecção de efeitos especiais (teatrais e cinematográficos) e de música, entre

inúmeros exemplos.

145

Imagem 41 - No Brasil, o espetáculo ganhou legendas em português.

HSBC Arena, 2011. Imagem do espetáculo.

Uma observação interessante é perceber que durante o espetáculo/filme, a câmera vai

sendo operada pelos atores mais antigos da companhia – Maurice Durozier, Juliana Carneiro

da Cunha e Duccio Belluggi –, nos fazendo pensá-los como “locomotivas”, condutores da

cena e do próprio trabalho, para utilizar uma expressão que faz parte da gramática pedagógica

da companhia. Outro exemplo digno de nota é como o filme, e o espetáculo, deixam à mostra

os truques do cinema (e do teatro), como a música que é cantada internamente para não se

perder o ritmo da filmagem com a manivela do cinematógrafo, assim como a “música

interior” que cada ator deve buscar para seu personagem antes de entrar em cena, citando

outra expressão comum na rotina de trabalho da companhia.

Por fim, em um dos extras do filme, há uma entrevista com Juliana Carneiro da Cunha

onde ela fala um pouco do processo de filmagem, observando que as boas cenas são aquelas

em que o ator sente que há algo que acontece no espaço entre ele e a câmera, uma coisa que

não se explica mas que se pode sentir. Imediatamente me remeti ao trabalho com a máscara,

onde também há uma experiência liminar que é sensível, embora para o ator não seja fácil

traduzir intelectualmente. Desta forma, uma vez mais ficam evidentes as interseções entre

teatro e cinema no campo estético da companhia.

Em Os Náufragos do Louca Esperança também é possível observar traços de analogia

entre a narrativa e a biografia de Mnouchkine, não de forma direta como na peça anterior, mas

como uma inspiração que acaba por construir cenas antológicas. Em uma cena dada, a filha da

pesquisadora, a menina que assiste às filmagens, e também é personagem da cena, ilustrando

de forma poética o efeito de projeção do espectador ao assistir uma cena de cinema, em uma

inspirada homenagem à própria cineasta, entra em quadro e se posiciona ao lado do diretor,

146

em posição idêntica (assim como Ariane e seu pai devem ter dividido alguns sets de

filmagem). Nesta imagem também se pode ler um pouco do sistema de aprendizado “mestre-

aprendiz” praticado na companhia, onde os mais jovens devem seguir os passos dos mais

antigos. Esta cena também me fez pensar que Mnouchkine tem uma paixão tão intensa por

sua arte e possui tamanho carisma, que todos a sua volta apaixonam-se por sua forma de viver

esta paixão, e acabam por sonhar juntos os mesmos sonhos (ao menos por um tempo).

Em outro momento do filme, “Louca Esperança” torna-se o nome do barco do filme,

cuja proa é povoada por todos os atores representando trabalhadores, professores, mulheres,

crianças e homens que ousam sonhar com um futuro mais digno. No espetáculo, aqui era o

fim do primeiro ato, e no filme a pequena cineasta assiste a tudo através do enquadramento

improvisado com os dedos das mãos. Diante de tudo que foi dito, é impossível não pensar

nesta cena de forma condensada, como se a jovem cineasta fosse tocada duplamente pela

inspiração: a arte enquanto forma e as lutas de classe como tema.

Imagem 42 - A proa do navio “louca Esperança”.

Cartoucherie. Imagem do espetáculo, 2010.

Seguindo este caminho, elejo outro assunto bastante pertinente na análise desta obra,

as questões políticas que alimentam a companhia. Dentro do próprio tema do

espetáculo/filme, não é difícil perceber o enfoque político que se pretende fazer, visto que a

peça conta os acontecimentos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, do ponto de vista

dos trabalhadores e subalternos de um restaurante, guiados por um cineasta de inspirações

socialistas, como não poderia deixar de ser. Há por exemplo a bela cena dos arquiduques

escrevendo uma carta aberta sobre o futuro da Europa, inspirados pelo discurso de Victor

Hugo contra Luiz Napoleão Bonaparte (Napoleão III), em 1851, em que ele toma um viés

liberal e vai em defesa do povo, dos pobres, denunciando as injustiças sociais e a necessidade

147

de defender a República.

Outra cena interessante é a do desembarque dos imigrantes em 1895 em uma terra

desconhecida, que vem a ser a repetição do tema de outros espetáculos anteriores, caro à

Mnouchkine, que mostra o fluxo dos menos favorecidos como condição de sobrevivência.

Por fim destaco os versos finais da peça, e que no filme são repetidos algumas vezes –

como forma de alcançar o mesmo impacto obtido pela cena no teatro: “Nestes dias de trevas/

Nós temos uma missão, / Levar às embarcações/ Que erram dentro da noite, / O brilho

obstinado de um farol.” Ora, sabemos que na maioria das vezes este é o desejo maior do

próprio Théâtre du Soleil.

Imagem 45 -Todos projetam como será a vida no novo país.

Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.

Imagem 44 - Atores olham pelas escotilhas do navio.

Cartoucherie, 2010. Imagem do espetáculo.

148

CONCLUSÃO

A última pergunta que fiz à Ariane Mnouchkine em nossa entrevista virtual dizia

respeito à hipótese que procurei sustentar. Fazendo uma analogia com a proposição inicial dos

ensaios, indaguei se Les Éphémères teria representado uma renovação na pesquisa da

companhia, se teria havido uma ruptura com o trabalho e a temática desenvolvida até então.

Esta foi a resposta:

Eu não sei o quer dizer... Eu não sou... Eu não tenho consciência das rupturas, das

fontes, eu só tenho consciência do caminho. Nós avançamos. À cavalo, de bicicleta,

de carro, todos em um trem... Nós avançamos. É sempre uma viagem. Uma ruptura,

o que quer dizer? Que nós não procuramos mais a América, mas a Lua? Acho que,

no fundo, a gente procura o tempo todo... No teatro a gente procura, o tempo todo, o

ser humano. Seu presente, seu passado e seu futuro. Sua fragilidade, suas angústias,

sua beleza, sua feiúra, sua monstruosidade. Eu não tenho consciência de uma

ruptura... Na verdade, o público, que é muito sensato, faz uma aliança com todos os

espetáculos, sejam eles tão diferentes como Un Chambre en Inde, como Les

Éphémères. Eles encontram elos, eles encontram as famílias e eles voltam sempre.

Pois, então, eu não acredito que houve um momento único. Foi graças ao trabalho

coletivo, importante, graças à natureza tão diferente de cada um dos indivíduos que

compõem o Théâtre du Soleil, às suas diferenças de idade, de cultura, de

experiência... Não é porque nós tivemos sorte, é por isso, por fazer espetáculos tão

diferentes uns dos outros, porque eu tenho consciência da extraordinária diferença

entre cada um dos nossos espetáculos. (...) São espetáculos que têm a mesma matriz,

quer dizer, partem do mesmo grupo de indivíduos. Então, eu não eu não tenho

consciência de uma ruptura, eu tenho consciência de uma pesquisa obstinada. E eu

te digo, não encontro melhor metáfora que essa, é uma pesquisa às vezes feita a pé,

outras vezes de bicicleta, de helicóptero, outras vezes fazemos uma pesquisa de

trem, ou de caminhão... Mas, é isso, não há uma ruptura, não há nem mesmo uma

ruptura entre Macbeth e Un Chambre en Inde. Macbeth deu origem à Un Chambre

en Inde e os atentados em Paris deram origem à Un Chambre en Inde. Como,

provavelmente, é bem possível que Sarkozy tenha originado Macbeth, mesmo que

eu não tenha desejado fazê-lo, já que Sarkozy ainda era politicamente vivo.

Esperemos que ele esteja politicamente morto agora… (MNOUCHKINE, 2017)

Reproduzo na íntegra esta resposta, pois ela me parece uma síntese de vários conceitos

e proposições que procurei analisar nesta pesquisa, além de iluminar as principais

características identitárias da diretora e do Théâtre du Soleil. Em primeiro lugar, nesta fala

Ariane Mnouchkine se permite não saber o que dizer. É uma encenadora que carregando um

percurso de cinquenta e três anos de trabalho ininterrupto é capaz de não ter certezas, de

tatear. Mnouchkine, como foi dito, é uma pensadora do teatro contemporâneo mais ligada à

prática do que à teoria. Ela não escreveu livros, tampouco se preocupou em organizar e

categorizar seu trabalho de forma sistemática. Todos aqueles que se debruçam sobre sua obra

para tecer análises, o fazem a partir do diálogo entre suas impressões pessoais e a prática da

cena observada, logicamente através do crivo da diretora, sem que isto, no entanto, faça sua

voz sobressair. É uma mulher da prática, mesmo carregando sobre seus ombros a

149

responsabilidade de ser uma das principais referências do teatro ocidental contemporâneo. É

também uma artista consciente da importância do registro de sua obra, ainda que procure

fazê-lo acumulando mais camadas de criação, dando origem a obras múltiplas, híbridas, como

foi visto até aqui.

Mnouchkine fala também da consciência do caminho que se percorre, e das formas

diferentes de percorrê-lo. De fato, não há melhor metáfora para exemplificar o percurso da

companhia e seu vasto repertório de espetáculos e filmes. Pinçando qualquer um ao acaso,

seria possível desenvolver uma pesquisa profunda, encontrando elementos únicos em cada

um, de forma que realmente representam momentos criativos bastante distintos entre si,

embora sejam o resultado do trabalho de um grupo de artistas que estão juntos há muitos

anos, pelo menos o núcleo central. Ela fala da diferença entre os indivíduos como dispositivo

de criação. O interculturalismo é uma tônica do Théâtre du Soleil e, naturalmente, isto é um

elemento chave no trabalho criativo, mas também na percepção do público, o que deve ser um

dos fatores da grande empatia que a companhia causa em todas as suas plateias pelo mundo.

Por fim, Mnouchkine, explicita sua escuta precisa em relação aos acontecimentos

políticos que a circundam e que movem o mundo, evidenciando sua provocação maior e sua

arte como resposta, como devolução. Tudo isto com o humor e a delicadeza que envolvem

seus atos, especialmente nos últimos anos.

De fato, é inegável a potência e o impacto de Les Éphémères, ainda que, ao analisar

cada obra do vasto repertório da companhia, se possa elencar os motivos pelos quais cada

uma delas marcou a sua época, seja pela ousadia, pesquisa rigorosa, apuro estético, empatia

com público e crítica, temática, enfim, todos os meios pelos quais se pode abordar uma obra

de arte da cena. Diante desta riquíssima trajetória artística, optar por analisar o espetáculo Les

Éphémères – e pincelar algumas notas sobre Os Náufragos do Louca Esperança – sob a ótica

dos processos de intermidialidade presentes na obra, em específico, é uma difícil decisão. Fica a

estranha sensação de que passagens essenciais para uma compreensão profunda serão

forçosamente deixadas à sombra, sob o risco de uma metonímia pouco eficaz:

Mas hoje ainda há muitas coisas belas. Vou citar dois exemplos de espetáculos

franceses que me marcaram recentemente: um deles veio ao Brasil, o espetáculo de

Ariane Mnouchkine com o Théâtre du Soleil que se chama Les Naufragés du Fol

Espoir [Os náufragos da louca esperança]. É uma grande forma de teatro, com 30

atores em cena, um cenário muito bonito construído para esse espetáculo. De fato, o

cenário do espetáculo é a própria Cartoucherie (ela é, então, reconstruída para as

turnês). É um espetáculo com um número grande de recursos (financeiros e

humanos) que demandou um enorme trabalho (quase um ano). Ele me toca bastante

porque ele fala da relação entre o teatro e o cinema mudo no início do século XX, e

isso retorna, de certo modo, a tudo o que falamos em nossa discussão. Através desse

espetáculo, vê-se como as duas artes dialogam entre si, se respondem, utilizando-se

150

de uma terceira, a música, e como, através do fato de que uma trupe de teatro

representa uma equipe de cinema filmando um filme a partir de um romance utópico

de Júlio Verne, a trupe do Soleil representa a si mesma em cena. É uma espécie de

mise en abîme do grupo teatral trabalhando, que acredita que é possível criar junto.

Tudo desmorona no nível das utopias, o que é colocado em questão no roteiro do

filme: liberdade, igualdade, fraternidade, pois a guerra de 1914 ameaça e estoura

antes do fim do filme que, no entanto, a equipe terminará, mas ainda resta uma que é

a utopia do teatro e os atores mostram, em cena, que é realizável e realizada. É um

espetáculo extraordinário no qual as palavras reencontram sua significação, porque

elas não são ditas, mas lidas em legendas projetadas (fabrica-se um filme mudo) e

no qual o sentido é dado pelo trabalho coletivo dos atores continuamente presentes

em cena. Uma criação coletiva de concerto com a autora associada ao Soleil, Hélène

Cixous, e a partir de um romance inacabado de Jules Vernes... Um dispositivo de

criação coletiva através de improvisações, que como se vê, é complexo. (PICON-

VALLIN, 2011, p. 210) 53

Estes elementos demonstram porque Les Éphémères se eleva na trajetória da companhia,

ele se constitui um momento único, exemplo ilustre do encontro entre o teatro e a sociedade

onde se insere. Durante a pesquisa, pude perceber como este fato é uma unanimidade entre os

teóricos que vem acompanhando a trajetória do Théâtre du Soleil, como Beatrice Picon-

Vallin, George Banu e Josette Féral, por exemplo.

Entendo que o espetáculo Les Éphémères se destaca no repertório da companhia

justamente por incluir lacunas em sua malha, talvez como consequência desta narrativa

híbrida, deste teatro cineficado, por oferecer ao espectador uma outra experiência de

tempo/espaço que instaura um presente permanente, atualizado a cada instante, efêmero.

Sendo um presente permanente, passado e futuro desaparecem, levando consigo a ideia de

conflito, e oferecendo ao espectador uma outra experiência, da ordem da contemplação, da

cena, do outro diante de si e de si mesmo, do ato performativo.

Neste lugar, portanto, não se pode pensar em um espetáculo que re-presenta a realidade,

posto que não há um referencial de origem, único, que deve ser evocado novamente, mas,

sim, a constante instauração de um tempo/espaço que se atualiza a cada experiência

compartilhada por todos, diante de todos.

Diante disso, chego a essa etapa com a sensação de que somente agora estou pronta

para começar. Tendo tido a oportunidade de olhar de perto os dispositivos criativos de Les

Éphémères e de Os Náufragos do Louca Esperança, sinto que apenas me aproximei de uma

matéria pulsante e viva, cujos desdobramentos ainda seriam muitos, transbordando destas

páginas. Se insiro esses espetáculos, novamente, no longo e vasto repertório do Soleil, são

inúmeras as possibilidades de análises e associações que ficam de fora deste trabalho. Isto

53 No Brasil, o Théâtre du Soleil apresentou Les Naufragés du Fol Spoir [Os Náufragos do Louca Esperança]

em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2011.

151

sem mesmo incluir o momento presente, quando se dão as apresentações de Un Chambre en

Inde, às quais os espectadores assistem depois de passar pela revista da polícia na entrada do

teatro – uma imposição para a entrada em locais públicos desde os atentados de Paris em 2016

– e de desligarem os celulares, conforme aviso na sala de espetáculos, uma necessidade

também recente. “Se Deus quiser se manifestar diante dos famintos, ele deverá fazê-lo em

forma de alimento (Ghandi)”, diz uma inscrição que enfeita as paredes do teatro atualmente,

e, de alguma forma, os espetáculos do Soleil assumem a forma de respostas, ou pelo menos,

pistas sobre os grandes desafios que surgem de tempos em tempos.

Termino, portanto, com mais interrogações do que quando comecei a pesquisa,

especialmente porque se nestas páginas procurei reter um sentido e um alinhamento de ideias,

me dou conta que enquanto as palavras se sedimentam, elas deixam escapar muitos outros

sentidos, que talvez evidenciem outros caminhos. Percebo que, assim como o cinema, a

escritura é também uma tentativa de capturar um instante, de circunscrever no tempo e no

espaço uma matéria volátil, fugidia e sempre inacabada. Envelhece a cada ponto final. E como

o que nos mantém vivos é o movimento, finalizo imaginando novas páginas em branco, assim

como todo o porvir que o Théâtre du Soleil tem pela frente.

152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras Gerais

APPIA, Adolphe. A Obra de Arte Viva. Lisboa: Arcádia, s.d.

AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Lisboa: Texto & Grafia, 2006.

BABLET, Marie-Louise; BABLET, Denis. Le Théâtre du Soleil ou la quête du bonheur.

Paris: Editions du CNRS, 1979.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BERGSTEIN, Lena; DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o subjétil - Pinturas, desenhos e

recortes textuais. São Paulo: Unesp, 1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. IN: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de

Moraes. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005.

BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz - A encenação no cinema. Campinas: Papirus,

2005.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica - Antropologia e literatura no século XX. Rio

de Janeiro: EdUFRJ, 2008.

COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2013.

COLLECTIF, Ariane Mnouchkine et le cinéma, Théâtre au cinéma, hors-série n°3, Magic

Cinéma, Bobigny, 2006.

COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema - Espetáculo, narração, domesticação. Rio de

Janeiro: Azougue Editorial, 2005.

DASTHÉ, Catherine. Anthologie Subjective – Jacques Coupeau. Paris: Gallimard, 1999.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo - Uma Impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2001.

DUBOIS, Philippe. Cinema, Video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

DUSIGNE, Jean-François. Les Créations du Théâtre du Soleil. Paris: CNDP, 2003.

FÉRAL, Josette. Dresser un monument à l’éphémère: rencontres avec Ariane Mnouchkine.

Paris: Éditions Theatrales, 1995.

____________. Trajectoires du Soleil: Autour d’Ariane Mnouchkine. Paris: Éditions

Theatrales, 1998.

_____________. Além dos limites - Teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.

153

FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

GORDON CRAIG, Edward. On the art of the theatre. Inglaterra: Heinemann, 1957.

GUINSBURG, Jacob. Da cena em cena. São Paulo: Perspectiva, 2001.

HAMON-SIRÉJOLS, Christine. Cinéma et Théâtralité. Paris: Aléas, 2006.

LARRUE, Jean-Marc. Théatre et intermédialité. Paris: Presses Universitaire du Sptentrion,

2015.

LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

MEYERHOLD. Vsevolod. Ecrits sur le théâtre. Tome 1, 1891-1917. Paris: L’Age D’Homme,

2001.

MIC, Constantin. La Commedia Dell’Arte. A leçon. Paris: Imprimerie Corbière et Jugain,

1980.

MILLER, Judith G. Ariane Mnouchkine. New York: Routledge, 2007.

OLIVEIRA, Vanessa Teixeira de. Eisenstein ultrateatral. São Paulo: Perspectiva, 2008.

PASCAUD, Fabienne. L’art du present. Paris: Plon, 2005.

PAVIS, Patrice. Le théâtre au croisement des cultures. Paris: Jose Corti, 1990.

____________. A encenação contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013.

PICON-VALLIN, Beatrice. Les écrans sur la scène. Lausanne: L’Age D’Homme. 1998.

_______________________. Ariane Mnouchkine. Paris: Actes Sud, 2009.

_______________________. Le Théâtre du Soleil. Les cinquante premières années.

Paris: Actes Sud, 2014.

PLUTA, Izabella. L’Acteur et l’intermédialité. Lausanne: L’Age d’Homme, 2011.

RENAULT, Mary. A Máscara de Apolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia. Rio de Janeiro: Maauad, 2012.

SILVA, Armando Sergio da (org.). J. Guinsburg: Diálogos sobre Teatro. São Paulo:

Perspectiva. 2002.

SONTAG, Susan. A Vontade Radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

154

STAM, Robert. O espetáculo interrompido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas: Ação simbólica na sociedade humana.

Niterói: EdUFF, 2008.

WERNECK, Maria Helena; BRILHANTE, Maria João (org). Texto e Imagens: Estudos de

Teatro. Rio de Janeiro: 7 Letras. 2009.

XAVIER, Ismail. A Experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

____________. O Cinema no Século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

ZOLA, Emile. O romance experimental e o teatro no naturalismo. São Paulo: Perspectiva,

1982.

Artigos e Periódicos

ANTELO, Raúl. O Arquivo e o Presente. Gragoatá, Programa de Pós-graduação em Letras da

Universidade Federal Fluminense, Niterói: 2007

_____________. Arquivo: Morte e Linguagem. Universidade Federal de Santa Catarina, Santa

Catarina: 2005.

ASLAN, Odette. Au Théâtre du Soleil, les acteurs écrivent avec leurs corps. Le Corps en Jeu.

Coll. Arts du spectacle/Spectacles, histoire, société. CNRS Editions, Paris, pp. 291-296,

(1993) 1996,

______________. Ecorchement et catharsis (entrevista com Ariane Mnouchkine). Le Corps

en Jeu. Coll. Arts du spectacle/Spectacles, histoire, société. CNRS Editions, Paris, pp. 291-

296, (1993) 1996.

______________. Le masque: une discipline de base au Théâtre du Soleil (entretien avec

Ariane Mnouchkine). In: Le masque, du rite au théâtre. Coll. Arts du spectacle/Spectacles,

histoire, société. CNRS Editions, Paris, (1985) 1999.

______________. Le créateur des masques et sa participation au spectacle (entretiens avec

Erhard Stiefel). Le masque, du rite au théâtre. Coll. Arts du spectacle/Spectacles, histoire,

société. CNRS Editions, Paris, (1985) 1999.

BABLET, Marie-Louise; BABLET, Denis. À la reencontre de la vie: les petits burgeois ou la

peur de vivre. Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr Acesso em: maio 2016.

BALTAR, Mariana. Por um cinema de atrações contemporâneo. Compós. Disponível em:

http://www.compos.org.br/biblioteca/gtcinema,foto,audiovisual2016.baltar_3367.pdf Acesso

em: mar. 2017.

155

BANU, Georges. Le chef d’œuvre du Soleil. Art Press. Paris, mars 2000.

BANU, Georges. L’andante du Soleil. Alternatives Théâtrales, n° 93, 2e trimestre 2007.

FRANÇOIS Guy-Claude. A chaque spectacle sa scénographie. Travail Théâtral, n° 2, janvier-

mars, 1971.

FISCHER-LICHTE, Erika. Realidade e ficção no teatro contemporâneo. Revista Sala Preta,

ECA-USP, São Paulo, 2013.

ICLE, Gilberto. Vontade de presença, vontade de corpo: para pensar o teatro brasileiro

contemporâneo. Revista Sala Preta, ECA-USP, São Paulo, 2013.

KONIGSON, Elie (Ed.). Les Voies de la création théâtrale 15 - Le théâtre dans la ville,

espaces et lieux urbains théâtralisés, théâtres-monuments et urbanisme, théâtres de banlieues

et de villes nouvelles. Paris: Ed. du Centre National de la Recherche Scientifique, 1987.

LIRIO GURGEL MONTEIRO, Gabriela. Corpo e espaço na obra de Peter Brook: Marat/Sade

e os limites da representação. O Percevejo. Ed. PPGAC - UniRio, Rio de Janeiro, 2010.

_________________________. Cinema e teatro: interfaces. Revista Concinnitas, UERJ, Rio

de Janeiro, 2010.

_________________________. Teatro e cinema - uma perspectiva histórica. Revista

Artcultura, Uberlândia, 2011.

________________________. Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo? Revista Artes e

Ensaio, PPGAV - EBA - UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.

_________________________. Poéticas cênicas em espetáculos intermediais: imagem e

presença. Revista O Percevejo online, UniRio, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:

http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/3772/3265 Acesso em:

maio 2016.

_________________________. Entre teatro e cinema: a reinvenção da imagem em E Se Elas

Fossem Paara Moscou? Revista Sala Preta, ECA-USP, São Paulo, 2015.

MEREUZE, Didier. Les Éphémères. La Croix, 9 janvier 2007.

MNOUCHKINE, Ariane. Une prise de conscience. Le Théâtre 1968, Paris, Christian

Bourgois, 1968.

____________________. Le Théâtre du Soleil, notre théâtre - portraits, entretiens, textes,

notes de répétitions, L’avant-scène théâtre, n°1284-1285, juillet 2010

NUNES MELO, Sérgio. Por uma ontologia da presença. Revista Sala Preta, ECA-USP, São

Paulo, 2014.

ONATE, Alberto Marcos. Cadernos Nietzsche 1, 1996.

156

PICON-VALLIN, Béatrice. Os mundos íntimos do Soleil. Revista Sala Preta, nº 7, ECA-USP,

São Paulo, 2007.

______________________. Un vrai masque ne chache pas, il rend visible. Théâtre du Soleil.

Paris, 1999-2017. Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr Acesso em: mar. 2016.

_____________________. Une oeuvre d’art commune. Théâtre du Soleil. Paris, 1999-2017.

Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr Acesso em: jun. 2016.

_____________________. Le ciné théâtre d’Ariane Mnouchkine. Théâtre du Soleil. Paris,

1999-2017. Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr Acesso em: jul. 2016.

_____________________. Ecrire au présent. Un récit intime à 30 voix (entretien avec Ariane

Mnouchkine. Alternatives Théâtrales, n° 93, pp. 56-62, 2e trimestre 2007.

RAMOS, Luiz Fernando. O projeto Scene de Gordon Craig: história aberta à revisão. Revista

Brasileira de Estudos da Presença, USP, São Paulo, 2014.

SCHEFFLER, Ismael. O Ator Santo e a Cosmologia Corporal. Revista TFC Kinokaos. PACT-

UFSC, 2005.

TACKELS Bruno. Les mobiles du Soleil. Mouvement, 1er avril 2007.

VERSIANI, Daniela Beccacia. Autoetnografia: uma alternativa conceitual. Letras de hoje:

Estudos e debates em linguística, literatura e língua portuguesa, v. 37, nº 4, 2002.

Teses

HAGEMANN, Simon. Penser les médias au théâtre, des avant-gardes historiques au théâtre

contemporain. 2012. Docteurate en études théâtrales, Paris, Université Sorbonne Nouvelle -

Paris 3, 2012.

VACCARI, Eduardo Ferreira Chaves. Encenar ensinando - Ensinar encenando: a relação

entre encenação e pedagogia a partir da análise de processos de criação do Théâtre du

Soleil. 2014. 342p. Tese. (Doutorado em Artes Cênicas), Centro de Letras e Artes,

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

Filmes

DARMOND, Eric; VILPOUX, Catherine. Au soleil même la nuit. Coproduction AGAT Film

& Cie, La sept ARTE, Le Théâtre du Soleil. DVD, cor., 190 min., 2011.

MNOUCHKINE, Ariane. 1789. VHS, cor, 120 min.

157

_______________. Tambours sur la Digue. Bel Air Media, Théâtre du Soleil, ARTE France,

CNDP, ZDF Theatrekanal. DVD, cor., 158 min., 2002.

_______________. Molière. BEL AIR Classiques et CNDP. DVD, cor, 244min., 2004.

_______________. Le Dernier Caravansérail (Odyssées). BEL AIR Classiques, ARTE

France et CNDP. DVD, cor, 305min., 2006.

_______________. Les Éphémères. BEL AIR Classiques, ARTE France et CNDP. DVD, cor,

347min., 2009.

VANNUCCI, Duccio Bellugi; SABIDO, Sergio Canto; CHEVALIER, Philippe. Un Soleil à

Kaboul. Bel Air Media, Thèâtre du Soleil, Bell Canto Laï. DVD, cor., 75 min., 2007.

VILPOUX, Catherine. Ariane Mnouchkine: l’aventure du Théâtre du Soleil. AGAT Film &

Cie, ARTE France, Le Théâtre du Soleil, INA, Bel Air Media. DVD, cor, 75 min, 2009.

Programas de espetáculos

Les Éphémères/Os Efêmeros. Edições SESC, São Paulo, 2007.

MNOUCHKINE, Ariane; BRADIER, Charles-Henri. Les Éphémères/ Au Jour le Jour.

Théâtre du Soleil, Paris, 2006 (Programa original da montagem de estreia em Paris).

158

ANEXOS

Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha

Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine

159

Anexo 1 - Roteiro para entrevista com Juliana Carneiro da Cunha

1. Para você, uma atriz que já havia vivido outros processos de criação da companhia,

exemplares, como Os Átridas, Tartufo, Tambours sur la Digue, como foi a vivência deste

processo criativo? No que ele difere ou se assemelha aos demais?

2. Assistindo a trechos do espetáculo Les Éphémères se percebe que ele difere muito de todo o

repertório anterior do Soleil, tanto no tema quanto em termos de estética, o que teria motivado

essa grande virada? O que desencadeou o processo? O espaço, o tema, o desejo dos artistas

envolvidos?

3. Como surgiu a ideia de colocar a plateia dividida, uma de frente para a outra, com a cena

correndo ao meio? Nas notas de ensaio presentes no programa, Mnouchkine fala em uma

"mesa de autópsia da alma", também sobre a Piazza Navona, Como você vê a importância da

escolha do espaço nesse trabalho e nos demais do Soleil?

4. Como surgiu a ideia dos cenários móveis nas plataformas e como foi estabelecido

movimento dos propulsores/impulsores? Como era estar em cena realizando ações dentro de

uma estética quase naturalista, porém, em constante movimento de rotação? Havendo público

dos dois lados e com o controle do movimento a cargo apenas dos impulsores, como vocês

atores trabalharam a desobrigação com a frontalidade, ou com necessidade de que

determinada ação fosse assistida/compreendida por todos?

5. De onde partiram as proposições para as improvisações? Vocês trabalharam com material

íntimo da própria biografia dos atores? Como foi essa experiência?

6. Como se deu a costura das cenas para a montagem final do espetáculo? Houve a finalização

do texto por parte de algum dramaturgo? Houve a preocupação em criar uma narrativa que

amarrasse todas as trajetórias dos personagens de alguma forma ou isto se deu ao acaso, para

que cada espectador montasse sua versão?

7. Assistindo ao espetáculo e depois ao vídeo de registro da peça, me chama a atenção o

trabalho da atriz Shasha (Shaghayegh Beheshti) na cena em que faz a personagem de uma

senhora que vai ao ginecologista. É uma composição muito forte que, impressionantemente,

160

não perde a veracidade ao contracenar com você, que faz uma ginecologista, numa atuação

bem realista, que chega a usar um aparelho de ultrassonografia de verdade. Em outro vídeo,

no documentário Un Soleil à Kaboul (2005), há uma improvisação em que essa mesma atriz

joga a máscara do Pantaleão aprisionado em uma burca feminina, em uma situação crítica no

Afeganistão. Existe alguma conexão entre esses dois trabalhos? Houve algum caminho nesse

sentido? Como foi o trabalho sobre essa cena da senhora que vai ao ginecologista?

8. Como era a coxia desse espetáculo, com tantos cenários e detalhes? Como vocês faziam

para, de fato, sair água da torneira e para cozinhar os alimentos em cena?

9. Pensando nos temas intimistas de cada cena, como se o espectador observasse cada família

ou indivíduo e cada cômodo pelo buraco da fechadura, o quanto vocês buscaram se aproximar

de uma estética cinematográfica na encenação e na atuação? Me parece que essas pequenas

ilhas de cenários realistas, verdadeiros sets em movimento, faziam com que os olhos do

espectador funcionassem, de fato, como a lente de uma câmera, que acompanha a cena de

forma voyeurística. Isso foi uma busca proposital da encenação?

10. Estando dentro da cena, qual era a sensação de ver o público de um lado e de outro? Era

possível perceber alguma interação entre as duas plateias, que acabavam sendo o pano de

fundo para a própria cena?

11. O programa da temporada de estreia francesa tem um encarte que sugere um diário de

ensaio, e, lendo esse diário, especialmente aqueles que conhecem bem as indicações que

Mnouchkine costuma dar aos atores, se percebe que são, de fato, as falas dela durante o

processo de ensaio, mais do que um registro pessoal do trabalho. Como é indicado nesse

encarte, trata-se de uma seleção de anotações do processo feitas pelo assistente de direção,

Charles-Henri Bradier, a partir da fala da Mnouchkine, organizadas graficamente pela

programadora visual Catherine Schaub, incluindo desenhos e até letras manuscritas, rabiscos,

manchas de tinta, etc. A dúvida que fica é: o quanto esse material se aproxima do real? Todos

estavam, de fato, acompanhando o processo de ensaios da peça? Por que se escolheu trazer à

público essa seleção, esse material? Alguém da equipe se sentiu exposto ao ver o processo

íntimo de criação sendo apresentado ao grande público?

161

12. Nessas notas de ensaio, em determinado momento Mnouchkine passa a indicação de que

"não se pode deixar que a cena se instale, não atuar uma cena, mas um momento...". Como se

deu isto na prática?

13. Algumas cenas da peça são inspiradas em episódios da vida da própria diretora. Como

surgiu essa ideia e como essa ideia deflagra o espetáculo posterior, Os Náufragos do Louca

Esperança?

162

Anexo 2 - Roteiro para entrevista e algumas respostas de Ariane Mnouchkine

PEÇA

1. Como foi a experiência nesse processo em relação aos anteriores? O que o diferenciou? O

que os motivou a trabalhar com material autobiográfico dos artistas e como foi este processo?

2. Fazendo uma analogia com a proposição inicial dos ensaios, com o suposto meteoro que

iria extinguir a vida na terra, pode-se dizer que Les Éphémères representou uma renovação na

pesquisa da companhia?

3. Ainda utilizando a metáfora do meteoro, as pequenas plataformas dos atores poderiam ser

pensadas como os estilhaços de uma teatralidade em explosão, causando uma multiplicação

do espaço? O que as plataformas de cenário e a interação dos atores com o espaço cênico

contribuíram no processo de criação?

4. Durante a minha pesquisa, me perguntei se é possível pensar em uma estética realista,

com momentos de aproximação ao naturalismo, nessa encenação e no trabalho dos atores. O

que se pode dizer sobre isso?

5. Como foi feita a escolha de incluir as notas de ensaio no programa da peça? Podemos

considerar esse pequeno caderno de notas como um escrito de artista, ou seja, uma fonte de

informação sobre o processo criativo que originou o espetáculo?

TEATRO X CINEMA

1. Nesse espetáculo me pareceram claras as influências dos elementos do cinema na sua

estrutura, tanto em relação à temática (relações e conflitos da vida íntima de cada

personagem, ampliados como diante de uma câmera) quanto ao espaço (plataformas em

movimento contínuo conduzindo o olhar do espectador tal qual o movimento e os ângulos da

câmera; cenários naturalistas); e à ideia de montagem (histórias pensadas como sequências,

entrecruzadas, cenas pensadas como planos e mudanças destes planos envolvendo raccords,

flashbacks, personagens que se encontram em diferentes espaços/tempos, dentre inúmeros

exemplos). Houve um momento em que a senhora conduziu o processo para que houvesse

163

essa interseção íntima com o cinema ou isso se deu como consequência do processo? De outra

forma, foi proposital?

ARIANE MNOUCHKINE - Eu compreendo perfeitamente essa questão, ela tem toda razão,

é verdade que espetáculos resultaram... A influência do cinema e do nosso amor pelo cinema,

dos atores e meu mesmo, é muito sensível e visível nesse espetáculo, mas isso veio mesmo do

processo de trabalho, não foi de forma alguma consciente. Que o nosso amor pelo cinema,

que a influência do cinema seja visível no trabalho... Eu não pensei no cinema enquanto nós

trabalhávamos. Nós pensamos no inconsciente, nas nossas lembranças, no que fica gravado

em nós, nas nossas histórias. E eu me dou conta de que é um conjunto cinematográfico

exatamente como ela diz nas montagens de sequência, ir ao movimento geral das pequenas

cenas que não eram naturalistas, mas que eram o estrato, a essência do cenário da direção

de arte, mas isso veio inconscientemente como monte de coisa, quando a gente trabalha a

gente procura, mas, no fundo, eu não sei porque nós procuramos nessa direção. Há coisas

misteriosas que nos guiam. Para mim, o teatro e o cinema são duas artes extremamente

primas. A única diferença fundamental é que no cinema há o suporte fílmico, mecânico, e no

teatro não há nada além do corpo vivo.

2. Como foi a decisão de abandonar o palco italiano? Por que colocar uma plateia diante da

outra? Como foi a repercussão disto durante a temporada e turnês do espetáculo?

ARIANE MNOUCHKINE - Nós já tínhamos usado este espaço bifrontal em um espetáculo

militante onde nós atuamos com o processo de Vaclav Havel, na Cartoucherie.

BIOGRAFIA EM CENA

1. Como foi a experiência de ver extratos de sua biografia se tornando cena diante de si? A

senhora sentiu necessidade de interferir de alguma forma? Qual foi o espaço deixado para a

ficção criada pelos atores nessa sequência, em específico?

ARIANE MNOUCHKINE - O espaço criativo para os atores foi total, pois, foram os atores

que decidiram pegar essa proposta, não eu. O que aconteceu foi que num momento dado eu

vi os atores atuando sobre tantas coisas tão pessoais sobre suas memórias, suas histórias

pessoais, memórias dos avós que eu contei sobre a minha lembrança, mas não contei para

164

que eles a aproveitassem, eu contei no fundo, como exemplo, sobre um momento, quando eu

estava na praia. É isso. Afinal, foi Delphine que trouxe uma proposta sobre a sua

interpretação de um momento da minha infância, então, eu penso, é a minha lembrança que

ela própria já reinterpretou, contada pela senhora de idade que eu era à época (2006),

lembrando da pequena menina que eu era há 70 ou 65 anos, àquela época (da lembrança) eu

tinha dois ou três anos. Eu nasci em 1939, isso aconteceu em 1942 ou 1941... Então seria

Delphine e os outros atores que, no fundo, escolheram a minha memória dentre todas as

outras memórias dos atores que foram reunidas para o espetáculo. A pressão que isso me

causou, como dizer, foi uma emoção relembrar dos meus avós. Eu me perguntava se os meus

avós ou mesmo os personagens que os meus avós deveriam ter conhecido na época (Nora,

Morgane), se eles estariam vendo aquilo tudo de alguma parte do céu, ou do limbo, ou de

onde suas almas estão agora. Foi uma emoção, mas não foi, felizmente, uma libertação. No

fundo, curiosamente, os personagens que fizeram me identificar verdadeiramente com a

menina foi efetivamente a criança que atuou a menina Aline ou Juliana (Carneiro da Cunha)

quando ela atuou Nora que foi a proprietária daquele jardim maravilhoso onde nós

encontramos a filha quando chegamos a sua casa.

2. No Teatro do Oprimido de Augusto Boal, a experiência de trazer a biografia à cena

estimula questões psicanalíticas entre os envolvidos. Houve alguma situação que se

aproximasse a isso durante os ensaios? Lembrando que a senhora chegou a cursar Psicologia

na juventude, houve a necessidade da psicóloga Mnouchkine interferir no processo?

ARIANE MNOUCHKINE - Eu não sou psicóloga, não sou uma médica psicóloga, meu

trabalho não é de analisar inconsciente, meu trabalho é deixá-lo se expressar. É totalmente

diferente. Meu trabalho é deixar o inconsciente se expressar com seus mistérios, suas

incompreensões, suas metáforas, seus sonhos. Então, efetivamente, em Les Éphémères,

provavelmente, como em muitos espetáculos, mas especialmente nesse, há muito inconsciente

que foi expresso, mas eu não tinha nem o poder nem o direito de pretender analisar o que se

passava. A única coisa que eu podia fazer era escolher e guardar alguns desses momentos de

expressão, porque eu os achei emocionantes, justos, passionais, artisticamente, não

psicologicamente. O encenador não tem direito de tentar patrulhar a consciência dos atores

ou de dizer aquilo que eles não sabem sobre eles mesmos, não é esse o meu ofício. Meu ofício

é colocar em forma mesmo o que é incompreensível.

165

TRANSPOSIÇÃO PARA O FILME/REGISTRO

1. Depois de realizar transposições mais elaboradas dos espetáculos anteriores para o vídeo,

verdadeiros filmes independentes, por que a senhora escolheu o caminho do registro fílmico

para este espetáculo?