Juliano Taveira Bernardes Olavo Augusto Vianna Alves ...

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2021 Revista, atualizada e ampliada 10ª edição Juliano Taveira Bernardes Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira Coordenação Leonardo Garcia COLEÇÃO sinopses PARA CONCURSOS 17 DIREITO CONSTITUCIONAL TOMO II - DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO

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2021

Revista, atualizada e ampliada

10ª edição

Juliano Taveira BernardesOlavo Augusto Vianna Alves Ferreira

CoordenaçãoLeonardo Garcia

C O L E Ç Ã O

sinopsesPARA CONCURSOS 17

DIREITO CONSTITUCIONAL

TOMO II - DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO

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?C A P Í T U L O

Direitos fundamentais em espécie

1. DEFINIÇÕES PRÉVIAS

Como se viu no item 1 da Parte III do Tomo I, direitos fundamentais são o con-junto de direitos estabelecidos por determinada comunidade política organizada, com o objetivo de satisfazer ideais ligados à dignidade da pessoa humana, sobretudo a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Porém, no âmbito dos direitos fundamentais, é preciso tratar ainda de outras divisões.

1.1. Direitos individuais

A Constituição de 1988, embora tenha feito referência no Título II tanto a direitos individuais quanto a direitos coletivos, não estabeleceu critérios precisos para distin-guir os adjetivos aí empregados. Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, direitos individuais são aqueles que “reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência dos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado” (1998a, p. 194). Trata-se, pois, de direitos fundados no conceito amplo de liberdade individual.

1.2. Direitos individuais de expressão coletiva

São os direitos de titularidade individual, mas cujo exercício pressupõe a atuação convergente de uma pluralidade de pessoas. Exemplos: o direito de reunião e de asso-ciação; o direito de votar e de ser votado.

1.3. Direitos coletivos lato sensu

Formam a espécie de direitos fundamentais de titularidade de uma categoria de pessoas, ainda que elas não possam ser determinadas com precisão. Manifestação do pluralismo político do Estado brasileiro (art. 1º, inciso V), são direitos metaindividuais que dizem respeito tanto a segmentos da sociedade civil (sindicatos, associações, família, partidos políticos) quanto a grupos indeterminados ou dispersos de pessoas. Exemplos: o direito de greve e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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Todavia, no rol de direitos constante do art. 5º da Constituição, quase não há direitos tipicamente coletivos. Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, são coletivos apenas os di-reitos previstos nos incisos XXI (direito de representação dado às associações); XXXIII (direito à obtenção de informações de interesse coletivo); e XXXIV, letra “a” (direito de petição).

1.3.1. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

É possível classificar os direitos coletivos a partir dos seguintes tipos de interes-ses juridicamente protegidos aos quais estão relacionados:

a) Interesses públicos lato sensu: englobam todos os interesses que, mesmo re-flexamente, alcancem a sociedade como um todo. Porém, embora a finalidade do Estado seja promover o bem comum, nem sempre os interesses da sociedade identificam-se com os interesses próprios das entidades públicas. Assim, conforme distinção feita por RENATO ALESSI e adotada pela doutrina brasileira, o interesse público divide-se em:

i) interesse público primário: aquele que visa à promoção do bem-estar geral, como o interesse social e da coletividade. Exemplos: todos os interesses difusos, coletivos e até mesmo os individuais indisponíveis; e

ii) interesse público secundário: trata-se do modo pelo qual a Administração Pública enxerga o interesse público, o que não tem necessariamente a ver com o interesse público primário. Quando o Poder Público, por exemplo, de-cide construir uma usina termonuclear ou declarar guerra, o interesse público aí envolvido poderá não coincidir com os interesses públicos primários da coletividade. A distinção entre um e outro tipo de interesse fica mais evi-dente quando a Administração Pública age apenas por motivação financeira ou patrimonial. Exemplo: a recusa do Estado em indenizar o proprietário de terreno incorporado ao patrimônio estatal para a construção de rodovia.

b) Interesses difusos: interesses “transindividuais” de natureza indivisível, cujos titulares são grupos indeterminados e dispersos de pessoas ligadas por circunstân-cias de fato (v. definição do art. 81, parágrafo único, inciso I, do CDC). Exemplo: os interesses conectados ao equilíbrio do meio ambiente, aos direitos do consu-midor em não ser alvo de propaganda enganosa etc.

c) Interesses coletivos: são os interesses da titularidade de uma categoria determi-nada ou pelo menos determinável de pessoas. Apresentam dois subtipos, como já reconheceu o Plenário do STF no RE 163.231/SP:

i) interesses coletivos em sentido estrito: interesses “transindividuais” de natureza indivisível, mas cuja titularidade recai sobre determinado grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base (v. definição do art. 81, parágrafo único,

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inciso II, do CDC). Exemplos: os interesses dos taxistas à regulamentação das respectivas concessões; dos advogados dativos em serem remunerados pelo Estado; dos consumidores de serviços bancários, em virtude de aumento abusivo e generalizado de tarifas;

ii) interesses individuais homogêneos: interesses de natureza divisível e de-correntes de origem comum, cujos titulares são pessoas individuais plena-mente identificáveis. Trata-se de interesses que poderiam ser defendidos em juízo por meio de ações individuais, mas que a legislação processual per-mite defendê-los coletivamente (v. definição do art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC). Como já decidiu o STF, são “subespécie de direitos co-letivos” (RE 163.231/SP, Pleno). Exemplos: os interesses dos consumidores que adquiriram certo produto que apresenta um mesmo defeito técnico; os interesses dos alunos de uma escola cujas mensalidades sofreram aumentos abusivos. Tais interesses individuais homogêneos, quando revestidos de interesse social qualificado, passam a contar, ainda, com a proteção institu-cional do Ministério Público e da Defensoria Pública, cujos órgãos poderão defendê-los, extrajudicial ou judicialmente, a depender de certos requisitos e circunstâncias.

Sobre a legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública para atuarem em defesa dos interesses coletivos lato sensu, ver, respectivamente, item 2.7 e item 5 do Capítulo 9.

` Como o STF enfrentou a questão:No RE 631.111/GO (com repercussão geral), decidiu o Plenário: “1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado, sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à ca-tegoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível.”

Nos ED no MS 25.743/DF, decidiu a 1ª Turma que os cidadãos têm legitimidade para propor ação popular, na defesa de interesses difusos (art. 5º, LXXIII, CF/88), caso em que “o autor não visa à proteção de direito próprio, mas de toda a comunidade.”

Na ACO 648/BA (j. em 6-9-2017), em que se discutia a insuficiência de repasses finan-ceiros federais a Estado-membro, o Plenário decidiu que a eventual “frustração de repasse de verbas é unicamente interesse público secundário da Fazenda Pública, in-confundível, pois, com suposta ofensa aos direitos de personalidade da população de determinado ente federativo para efeitos de responsabilização de danos morais coletivos.”

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DIREITOS COLETIVOS SOB A ÓTICA DOS INTERESSES JURIDICAMENTE PROTEGIDOS

A) Interesse público lato

sensu:

Interesses que, mesmo reflexamente, atinjam a sociedade como um todo. Tem por espé-cies: (i) interesses públicos primários, que visam à promoção do bem-estar geral, como o interesse social e da coletividade; e (ii) interesses públicos secundários, que dizem respeito à forma com que a Administração Pública enxerga o interesse público.

B) Interesses difusos:

Interesses “transindividuais” de natureza indivisível, cujos titulares são grupos indeter-minados e dispersos de pessoas ligadas por circunstâncias de fato.

C) Interesses coletivos

“lato sensu”:

Interesses da titularidade de uma categoria determinada ou pelo menos determinável de pessoas. Tem por espécies:(i) interesses coletivos em sentido estrito: interesses “transindividuais” de natureza in-divisível, mas cuja titularidade recai sobre determinado grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e (ii) interesses individuais homogêneos: interesses de natureza divisível e decorrentes de origem comum, cujos titulares são pessoas individuais plenamente identificáveis.

` Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para Juiz do TJMT (2008), foi considerada errada a seguinte alternativa: “O mesmo interesse pode ser ao mesmo tempo difuso, coletivo e individual homogêneo.”

1.4. Deveres fundamentais

O nome do Capítulo I do Título II da Constituição trata não somente de direitos, mas também dos “Deveres Individuais e Coletivos”, embora os dispositivos que lhe sigam (art. 5º e seus incisos e parágrafos) não se refiram a estes, propriamente. Para JOSÉ AFONSO DA SILVA (2009, p. 63-64), os deveres decorrem da declaração dos direi-tos, “na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro”. Porém, a “inviolabilidade dos direitos assegurados impõe deveres a todos, mas especialmente às autoridades e detentores de poder”.

Mais sobre o assunto, ver item 1.4 do Capítulo I da Parte III do Tomo I. Acerca da especial vinculação de particulares a deveres originalmente concebidos para vincular o Poder Público, v. item 6.4 do Capítulo I da Parte III do Tomo I.

1.5. Abuso de direitos fundamentais

É o exercício de direitos fundamentais, por parte do próprio titular, de maneira manifestamente inconsistente ou contrária à finalidade para a qual eles foram conce-didos ou reconhecidos.

Na Constituição anterior, o tema era tratado no art. 154, segundo o qual o “abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador Geral da República, sem prejuízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao

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paciente ampla defesa.” Ou seja, a motivação do exercício de direitos fundamentais es-tava sujeita à fiscalização judicial, com possibilidade de suspensão do direito utilizado abusivamente, desde que constatados propósitos corruptos ou subversivos. Controle que, nos termos do parágrafo único do mesmo art. 154, alcançava até os ocupantes de mandato legislativo e tornava “inaplicáveis a esse processo as regras de imunidade par-lamentar” (MELLO FILHO, 1986, p. 492). Tratava-se da chamada “suspensão de direitos civis”, algo típico de regimes de natureza autoritária.

Na atual Constituição, não há previsão semelhante. Nada obstante, como se viu no item 8.5 do Capítulo I da Parte III do Tomo I, nenhum direito fundamental é absoluto. Daí por que, embora terminantemente vedada a suspensão de direitos em razão de práticas consideradas politicamente “subversivas”, não está excluída a possibilidade de repressão ao abuso de direitos constitucionais. Porém, à falta de normas constitucionais sobre o assunto, eventuais abusos neste setor atraem regime próprio de nulidades e responsabilidades civil, penal, administrativa e/ou política.

` Atenção:O Código Civil trata de casos de abuso de direito em várias disposições. Por exemplo: nos termos do art. 187, “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Ver, ainda, o § 2º do artigo 1.228.

Também o Código de Processo Civil, ao penalizar a litigância de má-fé, reprime tipo de abuso de direitos manifestado nas vias processuais.

Já no âmbito do direito internacional, o abuso de direitos fundamentais tem abordagem diversa. Na linha de dispositivos como o art. 30 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), considera-se abuso o ato de invocar alguma disposição ou algum direito como fundamento para praticar atos ou atividades que possam reduzir direitos e liberdades estabelecidos nos próprios tratados ou convenções de direitos hu-manos. Já o art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969) estabelece que nenhuma disposição da convenção pode ser interpretada de modo a “permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista” (letra “a”).

` Atenção:Trata-se da mesma cláusula de proibição ao abuso de direito constante do art. 17 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950), segundo o qual: “Nenhuma das dis-posições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.”

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Preceito que vem sendo utilizado pelo TEDH para verificar se o demandante procura desviar uma disposição da referida convenção de seu real objetivo, aproveitando-se de um direito nela garantido para justificar, promover ou executar atitudes contrárias ou incompatíveis com o texto, o espírito, a democracia ou a outros valores fundamen-tais da própria convenção, tais como atos de ódio, violência, xenofobia, discriminação racial e antissemitismo, incluindo tentativas de revisão de “fatos históricos claramen-te estabelecidos” como o Holocausto (v. § 47 do caso Lehideux e Isorni vs. França, de 1998). Nessa linha, o TEDH interpreta que a disposição proibitiva do abuso de direitos assume “escopo negativo” e, por isso, interdita o exercício do direito que o demandan-te pretende reivindicar no processo perante o Tribunal (v. § 114 do caso Perinçek vs. Suíça, de 2015).

Serve de ilustração o precedente Molnar vs. Romênia (2012), em que se examinou de-manda de pessoa condenada pela distribuição de pôsteres com mensagens precon-ceituosas dirigidas a minorias, incluindo homossexuais (v.g., “A Romênia precisa de filhos, não de homossexuais”). O TEDH considerou a reclamação manifestamente in-fundada, após entender que a incidência do mencionado art. 17 impedia o reclamante de invocar, no processo, o direito à liberdade de expressão também previsto no art. 10 da mesma Convenção Europeia de Direitos Humanos.

` Como o STF enfrentou a questão:Na ADC 30/DF, ao tratar da hipótese de renúncia de agentes políticos cuja finalidade era evitar condenação que pudesse gerar a inelegibilidade prevista na LC 135/2010, decidiu o Plenário que o “abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detento-res de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o artigo 55, § 4º, da Constituição Federal e o artigo 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa-fé.”

2. CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O critério de classificação abaixo considera o objeto imediato do direito assegura-do. Nessa perspectiva, são espécies de direitos individuais (art. 5º, caput):

a) direito à vida;b) direito à igualdade;c) direito à liberdade;d) direito à propriedade;e) direito à segurança.

` Atenção:Para autores como JOSÉ AFONSO DA SILVA, os direitos que têm por objeto imediato a segurança incluem-se, todos, no campo das garantias individuais.

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3. DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS MAIS DESTACADOS

3.1. Direito à vida

É o direito da pessoa a existir e a defender a própria existência contra quaisquer ameaças ou violações. O caput do art. 5º da Constituição prevê a “inviolabilidade do direito à vida”, mas este direito tem múltiplas conexões.

Para UADI BULOS, o “direito à vida é mais importante de todos os direitos” e está conectado com outros direitos, “a exemplo dos direitos à liberdade, à igualdade, à dig-nidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário, ao lazer, à educação, à saúde, à habitação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (2008, p. 413).

Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, o direito à vida é integrado por elementos mate-riais (físicos e psíquicos) e elementos imateriais (espirituais). Assim, convertida a vida em bem juridicamente tutelado pelo direito constitucional, o conceito do direito à vida engloba também os direitos: (a) à dignidade da pessoa humana; (b) à existência; (c) à integridade físico-corporal; e (d) à integridade moral.

Todavia, embora a Constituição tenha trazido novidades – a exemplo da equipa-ração do crime de tortura à categoria dos crimes hediondos (art. 5º, inciso XLIII) –, o constituinte absteve-se de enfrentar muitas questões polêmicas, tais como a de quando tem início a vida e a morte das pessoas naturais, tampouco a eutanásia, a ortotanásia ou o aborto.

` Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para o cargo de Analista Ministerial do MPE/CE (2020/Cespe - Cebraspe), foi considerada correta a seguinte afirmativa: “Direitos individuais implícitos estão suben-tendidos nas regras de garantias fundamentais, sendo exemplos os desdobramentos do direito à vida.”

3.1.1. Questões polêmicas

A) Fixação do momento inicial da inviolabilidade do direito à vida: A Constitui-ção prevê a “inviolabilidade do direito à vida” (art. 5º, caput), mas não estabelece as circunstâncias a partir das quais se deva considerar “vivo” o ser humano, nem o momento em que se inicia a proteção constitucional ao direito à vida.

No direito romano, antes do nascimento, o filho era “considerado parte da mu-lher ou das suas entranhas; há apenas o feto, o homem que não existe” (MATOS PEIXOTO, 1960, p. 268). Assim, para que alguém fosse reputado nascido vivo, ensina MOREIRA ALVES (1995, vol. I, p. 92-93), era necessário, além do nascimento em si, que a criança viesse “à luz com vida”, o que dependia da exteriorização de certos sinais. Para uma classe de juristas da época (escola proculeiana ou proculiana), o recém-nascido deveria emitir ao menos um vagido (ruído); já para outros (adeptos da escola sabiniana), bastava que a criança tivesse respirado. Posição que acabou

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adotada pelo código de Justiniano e que, mesmo hoje, inspira a legislação nacional (v. art. 53, § 2º, da Lei 6.015/73).

` AtençãoA) Segundo a Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), se a “criança morrer na ocasião do parto, tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o de nascimento e o de óbito” (art. 53, § 2º).

B) Já para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o nascimento vivo é definido como “a expulsão completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção que, depois da separação, respira ou apresenta quaisquer outros sinais de vida, tais como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária, estando ou não cortado o cordão umbilical e estando ou não desprendida a placenta.” Trata-se da mesma definição utilizada pelo Ministério da Saúde no art. 2º, II, da Portaria 72/2010, ao estabelecer a vigi-lância do óbito infantil e fetal nos serviços de saúde (públicos e privados) que integram o Sistema Único de Saúde (SUS).

C) O artigo 10, IV, do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) estabele-ce que hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde da gestante (públicos e privados) têm de fornecer declaração de nascimento “onde constem, necessariamente, as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato”.

D) Nos termos da Lei 12.662/2012, o nascimento com vida deve ser declarado por pro-fissional da saúde, em documento próprio e com validade em todo o território nacional (Declaração de Nascido Vivo), o qual servirá para o posterior assento do registro do nas-cimento em cartório.

Sobre o início da proteção à vida, doutrinadores como UADI BULOS (2008, p. 414) afirmam que “tanto a expectativa de vida exterior (vida intrauterina) como a sua consumação efetiva (vida extrauterina) constituem um direito fundamental”. Assim, o direito à vida teria início “com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando num ovo ou zigoto.”

Nada obstante, a se considerarem os métodos de fertilização “in vitro”, a cha-mada vida intrauterina pressupõe não apenas o zigoto em si, mas que também o embrião dele resultante já se encontre em alguma fase de desenvolvimento dentro do útero feminino. Daí a necessidade de diferenciar a vida intrauterina de um feto da mera existência ultrauterina de um embrião concebido artificialmente e ainda não implantado no corpo feminino.

` Técnicas de reprodução assistida e aparente diferenciação entre vida ultra e in-trauterinaA) A fertilização “in vitro” (ou fertilização de proveta), juntamente com a inseminação artificial, fazem parte do gênero das técnicas de reprodução assistida. Porém, a insemi-nação artificial é a simples fecundação “in vivo” decorrente da implantação de material genético masculino no próprio corpo feminino. Já na fertilização “in vitro”, a fecundação de óvulos é feita em laboratório, com a finalidade de gerar embriões aptos a serem de-pois implantados na mulher.

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B) Nos termos da Resolução 2.168/2017, editada pelo Conselho Federal de Medici-na - CFM, podem ser descartados, com o consentimento dos “pacientes”, os embriões criopreservados há três anos ou mais, bem como, em caso de divórcio ou dissolução de união estável, doenças graves ou falecimento de um ou de ambos os “pacientes”, se houver autorização anterior destes. Podem ainda ser descartados, mesmo sem o con-sentimento dos pacientes, os embriões crio preservados há mais de três anos, quan-do abandonados pelos “pacientes”. Além disso, a mesma resolução do CFM prevê que embriões diagnosticados com alterações genéticas causadoras de doenças podem ser descartados ou doados para pesquisa, conforme decisão do(s) paciente(s) devidamente documentada.

C) Contudo, a Resolução 2.168/2017 proíbe a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária (ou seja, a redução no número de embriões já implantados na mu-lher) em caso de gravidez múltipla decorrente do uso de técnicas de reprodução assistida (item I, n. 8).

D) Assim, a Resolução 2.168/2017 trata diversamente o embrião não implantado no cor-po da mulher (existência ultrauterina), o qual poderá ser até descartado, daqueles já em desenvolvimento no útero (fase intrauterina), os quais nem sequer poderão ser alvo de “redução embrionária”.

Nesse sentido, autores como EHRAHRDT JR. (2009, p. 118) defendem não só a distinção entre nascituro e embrião, como também que, “independentemente da forma de fecundação (natural ou artificial), apenas com a nidação do zigoto, ou seja, implantação da célula-ovo (óvulo fecundado) na parede do útero” é que se deve consi-derar a existência de um nascituro (p. 118). Ou seja, não bastaria a migração do óvulo já fecundado da trompa para o útero; seria ainda necessário que o zigoto se fixasse à parede interna do útero.

Por sua vez, o Código Civil simplesmente dispôs que a personalidade civil da pes-soa começa do “nascimento com vida” e que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (art. 2º). Ademais, assegura direitos sucessórios tanto às pessoas nascidas quanto às “já concebidas” no momento da abertura da sucessão (art. 1.798). Daí se entender que o nascituro, embora desprovido de personalidade civil, é titular de direitos de natureza eventual protegidos pela lei, sob a condição suspensiva de vir a nascer com vida (CC, art. 130).

A legislação civil, portanto, resguarda certos direitos eventuais de pessoas não nascidas, mas já concebidas, na expectativa de que venham a nascer com vida. Toda-via, não tratou da questão dos embriões fertilizados in vitro, nem da necessidade da nidação do óvulo fecundado. Na mesma linha, a Lei 11.804/2008 prevê que a simples expectativa de paternidade do nascituro gera ao pai presumido a obrigação de prestar alimentos gravídicos para custear as despesas extras de mulher com a gravidez e que “perdurarão até o nascimento da criança”, após o que “ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor” (art. 6º, caput, e parágrafo único). Já de forma mais concreta, o art. 9º, § 7º, da Lei 9.434/97 protege o direito à saúde do próprio nascituro, ao proibir a gestante de “dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto

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quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.”

Também a legislação penal, ao tipificar o crime da interrupção provocada da gravi-dez, ampara a vida humana ainda em fase intrauterina (gestação), sem tampouco cuidar da questão dos embriões preservados em laboratório. Porém, ao abrir certas exceções à ilicitude do aborto não natural, o Código Penal acaba por relativizar a tese da invio-labilidade do direito à vida a contar do momento da concepção (ver letra “B”, abaixo).

` Atenção:Também para fins efeitos penais, é franca a predileção pela tese segundo a qual a gravi-dez só tem início com a nidação do zigoto, o que exclui o caráter abortivo da utilização de dispositivo intrauterino (DIU) ou da chamada “pílula do dia seguinte”, artifícios que não poderiam ser considerados métodos abortivos, mas simplesmente contraceptivos. Nada obstante, os tipos penais dos crimes de aborto envolvem a gestante, o que reme-te à interrupção da gestação, sem necessariamente correlacioná-la à concepção em si.

Contudo, em 2005, o legislador permitiu a utilização de células-tronco retiradas de embriões humanos obtidos por fertilização in vitro e não empregados em técnicas de reprodução assistida (v. artigo 5º e parágrafos da Lei 11.105/2005 – Lei de Biosse-gurança, regulamentada pelo Decreto 5.591/2005.) E, ao fazê-lo, o legislador nacional reputou que, ao menos “para fins de pesquisa e terapia”, a inviolabilidade constitucio-nal do direito à vida não se inicia com a simples concepção em si – i.e., a união entre espermatozoide e óvulo, dando origem a uma célula única, o zigoto.

` Atenção:O art. 5º da Lei de Biossegurança permitiu, “para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertiliza-ção in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condi-ções: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.” No § 1º, porém, o art. 5º dispõe que, em qualquer caso, faz-se necessário o consentimen-to dos “genitores”.

De outro lado, ao examinar a constitucionalidade do referido art. 5º da Lei de Biossegurança, o Plenário do STF considerou que a inviolabilidade constitucional do di-reito à vida se refere, exclusivamente, aos indivíduos sobreviventes ao parto (ADI 3.510/DF). Ou seja, para o STF, a proteção constitucional assegurada ao direito à vida não alcançaria embriões ou fetos, mas somente pessoas nascidas vivas. Todavia, a Corte ressaltou que o princípio da dignidade da pessoa humana autoriza o legislador a am-pliar esse alcance protetivo, para nele incluir momentos da vida humana anteriores ao nascimento, tal como fizeram os mencionados dispositivos do Código Civil (direitos do nascituro), da Lei 9.434/97 (vedação à gestante de dispor de tecidos, órgãos ou partes

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de seu corpo vivo) e do Código Penal (criminalização do aborto). Por outras palavras, o STF decidiu que a proteção a embriões e fetos não é matéria de status constitucional. Para a Corte, cabe ao direito infraconstitucional proteger “por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum.”

Esse entendimento do STF permite a atuação do legislador na disciplina das fases da vida humana anteriores ao nascimento, o que abre margem, v.g., à legalização da prática do aborto consentido e, em tese, até à autorização legal de métodos eugenistas de reprodução assistida. Contudo, entre as disposições de tratado internacional incor-poradas ao direito brasileiro com hierarquia supralegal (v. item 6.9.3.2 do Capítulo 7) está o art. 4º, item 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), segundo o qual o direito à vida “deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”. Daí, o poder de conformação legislativa acaba bastante restrito, pois a lei nacional deve proteger o direito à vida, via de regra, desde a concepção. Notar, porém, a proteção legal que se deva dar aos momentos iniciais da vida humana não passa, necessariamente, pelo direito penal. Foi o que entendeu a Corte Constitucional alemã, em decisão de 1993, no caso conhecido como Aborto II. (Ver letra “B”, adiante.)

` Atenção:Segundo informa SCHWABE (2005, p. 278 e segs.), a Corte Constitucional alemã, no precedente Aborto II (1993), entendeu que ao Estado cabe proteger a vida humana, in-clusive na fase intrauterina. Assim, o legislador deve observar a chamada proibição de proteção insuficiente e, uma vez considerados os bens e valores constitucionais contra-postos, tomar medidas que assegurem proteção adequada e eficiente ao direito à vida, “independentemente do tempo gestação” (p. 280). Ademais, os “direitos fundamentais da mulher não se impõem em face da proibição em geral do aborto” (p. 280). Todavia, embora o direito penal seja normalmente o “local da fixação da proibição por princípio do aborto e do dever por princípio nele contido da mulher dar à luz o filho”, quando “se puder, em virtude de medidas de proteção suficientes constitucionalmente de outro tipo, dispensar em extensão limitada o sancionamento penal de abortos não justifica-dos, pode também ser suficiente expressar claramente a proibição para esse grupo de casos de uma outra forma no ordenamento jurídico infra-constitucional” (p. 283).

` Como o STF enfrentou a questão:Conforme ementa da ADI 3.510/DF: “O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma con-creta pessoa, porque nativiva (teoria ‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’). E quando se reporta a ‘direitos da pessoa humana’ e até dos ‘direitos e garantias individuais’ como cláusula pétrea está falando de direitos e garan-tias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, à liberda-de, à igualdade, à segurança e à propriedade’, entre outros direitos e garantias igualmente

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distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa hu-mana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana.”

Da mesma ementa, destaque, ainda, para a desobrigação da inseminação de todos os embriões resultantes da fecundação “in vitro”: “O recurso a processos de fertilização artificial não impli-ca o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não existe tal dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o próprio institu-to do ‘planejamento familiar’ na citada perspectiva da ‘paternidade responsável’. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradan-te, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição.”

B) Aborto: A Constituição não cuidou especificamente do tema, mas o Código Penal tipifica como crimes tanto o aborto provocado pela gestante ou com seu consen-timento (art. 124) quanto o aborto provocado por terceiro (art. 125). Exceções legais: (a) o aborto necessário (ou terapêutico), “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” (art. 128, I, do CP); ou (b) o aborto ético (ou humanitário), “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal” (inciso II do art. 128 do CP).

` Atenção:A) A Portaria 2.561/2020, do Ministro de Estado da Saúde, dispõe sobre o “Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS”.

B) Como já mencionado, a Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina, proí-be a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária em caso de gravidez múltipla decorrente do uso de técnicas de reprodução assistida (item I, n. 8).

Não há previsão legal de outras exceções à prática do aborto provocado, tam-pouco para contemplar o chamado aborto eugenésico (ou eugênico), ou seja, a inter-rupção consentida da gravidez em caso de sério risco à prole, seja por predisposição hereditária, seja em razão de doenças, deformidades ou defeitos genéticos graves de-tectados no feto.

` Reprodução assistida e práticas ligadas à depuração genética de embriõesA mencionada Resolução/CFM 2.168/2017 prevê que as técnicas de reprodução assistida “não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto para evi-tar doenças no possível descendente” (item I, n. 5). Porém, conforme item VI da mesma re-solução, as técnicas de reprodução assistida “podem ser aplicadas à seleção de embriões

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submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças - poden-do nesses casos ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão do(s) paciente(s) devidamente documentada em consentimento informado livre e esclare-cido específico”. Ademais, técnicas de reprodução assistida “também podem ser uti-lizadas para tipagem do sistema HLA do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com algum irmão já afetado pela doença e cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco, de acordo com a legislação vigente” (item IV, n. 2). Além disso, a escolha das doadoras de oócitos, dentro do possível, “deverá garantir que a doadora tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora” (item IV, n. 7, da Resolução 2.168/2017).

Todavia, já decidiu o STJ no HC 56.572/SP (5ª Turma), se houver “diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia”. Conforme o voto vencedor, a configuração do crime de aborto “depende da morte do feto, que é a efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma legal, razão pela qual pode-se concluir que somente a conduta que frustra nascimento com potencialidade de vida extra-uterina tipificará o crime de aborto.” Na mesma linha, são inúmeros precedentes judiciais a autorizarem a interrupção da gravidez em razão de doenças incuráveis ou de malformações graves do feto a comprometer-lhe a viabilidade da vida extrauterina (por todos, v. STJ, decisão monocrática no HC 86.835/RS; TJGO, ACrim 35528-2/213, 1ª Câmara Criminal; TJMG, AC 1.0686.09.235524-3/001, 9ª Câmara Cível; TJRS, ACrim 70075960096, 2ª Câmara Criminal, e ACrim 70005037072, 3ª Câmara Criminal).

` Atenção:No Código Civil de 1916, a questão da forma humana e da “viabilidade” da vida fora consi-derada antiquada para fins do estabelecimento do início da personalidade civil. Ao defen-der o texto do art. 4º do CC/1916, de idêntica redação ao art. 2º do atual CC, disse CLÓVIS BEVILAQUA, na escrita da época: “Sem duvida, ha partos prematuros, e outros ha em que, apesar da maturidade, o producto da concepção é incompatível com a vida... Ao direito civil, porém, estas questões não devem preocupar. Em primeiro lugar, o ponto de vista do direito é social e não biológico; portanto, pôde o indivíduo ser considerado incapaz de viver, e no entanto, por isso mesmo que vive, merece a proteção do direito. Imagine-se um individuo malformado, que os peritos declaram inapto para a vida. Não obstante, elle dura alguns dias. Se alguem o matar, commette ou não um crime? Ninguém responderá pela negativa. Porque? Porque esse individuo é um sêr humano. Da mesma fôrma que o direito penal o protege, deve protegel-o o direito civil” (1979, vol. 1, p. 178).

Particularmente em relação a fetos anencefálicos (ou anencéfalos), o STF excluiu de vez o caráter criminoso do aborto consentido, ao decidir, com efeitos vinculantes e erga omnes, pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o aborto de feto anencefálico seria conduta penalmente tipificada (ADPF 54/DF). Entendeu a Corte que a tipificação penal da interrupção dessa modalidade de gravidez contrariava

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preceitos constitucionais referentes à laicidade do Estado, à dignidade da pessoa huma-na, ao direito à vida e à proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.

Pois bem. Todas essas exceções à ilicitude de práticas abortivas – incluindo a tolerância ao aborto eugenésico nos casos de comprovada inviabilidade da vida após a gestação – parecem estar de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo art. 4º, item 1, embora disponha que o direito à vida deva “ser protegido pela lei”, dispõe ainda que, “em geral”, tal proteção deve ocorrer “desde o momento da concepção.” Ou seja, conforme o Pacto de São José da Costa Rica, é até possível à lei nacional estabelecer certas exceções à regra geral da proteção à vida desde a concepção. O que o legislador não pode fazer é deixar de pro-teger a vida contra a prática do aborto, salvo em hipóteses excepcionais. A discussão que pode haver, contudo, é se o Pacto de São José exige que essa proteção legal seja necessária ou abrangentemente feita por leis penais.

` Atenção:Como já mencionado no item anterior, a Corte Constitucional alemã, no caso Aborto II (1993), entendeu que proteção à vida intrauterina contra o aborto não envolve, necessa-riamente, a criminalização da conduta gestante.

Por outro lado, ao contrário do que ocorre em determinados países, a legislação brasileira não diferencia o aborto do chamado abortamento, que é a expulsão do feto antes da respectiva viabilidade (gestação aproximada de até 22 semanas ou 154 dias e feto com peso inferior a 500 gramas). No Brasil, ambas as hipóteses são equivalentes, pois a lei criminaliza a interrupção provocada da gravidez sem se importar com a idade gestacional, nem fazer distinção entre fetos viáveis, nascidos vivos ou mortos.

No entanto, em polêmica decisão, por três votos a dois, a 1ª Turma do STF adotou “interpretação conforme a Constituição” aos tipos penais que criminalizam o aborto provocado pela própria gestante ou com o consentimento dela (Código Penal, arts. 124, 125 e 126) e excluiu – mas apenas no caso concreto – a configuração do crime quanto “à interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre” (HC 124.306/RJ, j. em 29-11-2016). Conforme voto vencedor do Min. ROBERTO BARROSO, a criminalização dessas hipóteses de aborto, nos três primeiros meses de gestação, “é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existen-ciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a von-tade da mulher nessa matéria.” Entendeu o Ministro, ainda, que a tipificação penal do aborto consentido “viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o

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número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo se-guro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios”.

` Como esse assunto foi cobrado em questões dissertativas de concurso?No concurso para Procurador da República (2008), foi apresentado o seguinte tema para o candidato dissertar: “Formule, pelo menos, três fundamentos constitucionais, incluin-do necessariamente argumentos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, favoráveis ou contrários à recepção do artigo 124 do Código Penal (Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos) pela Consti-tuição de 1988.”

No concurso para Defensor Público/MS (2008), perguntou-se “a Constituição brasileira permite o aborto de fetos anencéfalos?”

C) Momento consumativo da morte: A Constituição não trata do assunto. Já o Có-digo Civil diz que a existência da pessoa natural termina com a morte (art. 6º). Porém, embora tenha disciplinado os casos de morte presumida (arts. 6º e 7º), a lei civil não fixou o momento a partir do qual se tem por consumada a morte “real”.

De outro lado, ao regular a retirada post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento, o legislador delimitou que o termo inicial da morte se verifica com o diagnóstico médico de morte encefálica (art. 3º da Lei 9.434/97), ou seja, com a paralisação irreversível da atividade encefálica.

Porém, obviamente, a determinação de quando e como se deva considerar ocor-rida a morte encefálica não pode ser alvo da ciência jurídica, senão da Medicina. A lei fez somente remissão aos critérios clínicos e tecnológicos de diagnose da morte encefálica a serem estabelecidos pela autoridade técnica competente, no caso, o Conselho Federal de Medicina (CFM). Nesse sentido, vigora atualmente a Resolução/CFM 2.173/2017.

D) Eutanásia terapêutica e ortotanásia (direito de morrer?): Eutanásia é a pa-lavra de origem grega cujo significado literal é “morte sem sofrimento”. Implica, portanto, redução intencional do período durante o qual a vida normalmente se prolongaria. No caso da chamada eutanásia terapêutica, a indução ou antecipação da morte é feita com objetivo de estancar ou evitar sofrimento extremo de pessoa ferida ou doente e sem chance de recuperação. Exemplo: o uso de medicamento letal para induzir a morte de paciente terminal.

Já a ortotanásia (para alguns, eutanásia passiva) importa apenas em permitir que a vida do paciente terminal se esvaia em seu ritmo natural, sem intervenções para abreviá-la. Decorre ou da inércia em adotar algum tratamento que poderia pro-longar a vida do paciente ou da simples interrupção dos tratamentos de saúde que

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o mantenham vivo. Exemplo: o desligamento de aparelhos de respiração artificial de doente com falência dos órgãos cardiorrespiratórios.

Atenção:A) Para alguns, ortotanásia e eutanásia passiva não são sinônimos. Na ortotanásia, a cau-sa do evento morte já teria iniciado quando da interrupção do tratamento; e na eutanásia passiva a própria interrupção do tratamento médico é que dá causa ao resultado morte. Assim, será a conduta omissiva do médico, ou de terceiros, que acarretará o evento morte.

B) Fala-se, ainda, em três outros tipos de eutanásia/ortotanásia: (a) voluntária: que aten-de a desejo formulado pela pessoa em período no qual gozava de pleno discernimento. Divide-se em (a.1) direta: quando a definição das circunstâncias da morte é feita pelo pró-prio paciente; ou (a.1) indireta: quando tal definição é outorgada pelo paciente a outrem, como no caso dos chamados “testamentos vitais”; (b) involuntária: quando a morte se dá contra a vontade da pessoa; e (c) não voluntária: se a morte ocorre sem que a pessoa tivesse se manifestado a respeito.

C) Na Bioética, discute-se, ainda, a figura da distanásia (ou obstinação terapêutica), que é o abuso das tentativas médicas de prolongar a vida de um doente incurável, mediante tratamentos artificiais, desproporcionais e até experimentais, mesmo que isso implique causar dor e sofrimento a uma pessoa cuja morte é iminente e inevitável. Nesse sentido, a distanásia seria a figura oposta à ortotanásia.

Tanto a eutanásia ativa terapêutica quanto a ortotanásia envolvem o conflito entre direitos constitucionalmente protegidos. De um lado, o direito à vida e o dever do Estado e dos serviços e profissionais de saúde em protegê-la satisfatoriamente; e, de outro, o direito à dignidade da pessoa humana e o direito à autodeterminação, que redundariam num direito à morte com dignidade. Porém, como o constituinte omitiu-se a respeito do assunto, a resolução dessa colisão de direitos acaba por exigir juízos de ponderação dos órgãos constituídos (ver item 11 do Capítulo 7 do Tomo I). Nesse senti-do, a origem popular dos mandatos legislativos habilita o parlamento a funcionar como o mais legítimo dos órgãos para cuidar desses temas, o que idealmente se deveria fazer por meio de leis que procedessem a ponderações em abstrato e, então, antecipassem regras de condutas e soluções concretas.

Pois bem. No Brasil, não há dúvidas em que estão proibidos os procedimentos voltados à eutanásia ativa, já que enquadrados no tipo penal do homicídio doloso, ainda que sob a modalidade privilegiada (art. 121, § 1º, do CP). Mas é controversa a situação penal da ortotanásia.

Para muitos penalistas, a ortotanásia constitui homicídio privilegiado praticado por conduta omissiva (homicídio comissivo por omissão), pois o médico que assiste o doente teria a “responsabilidade” de empregar todos os meios disponíveis para evitar o resultado morte (art. 121, § 1º, c/c art. 13, § 2º, do CP). Melhor entender, contudo, que a ortotanásia não configura crime, pois o médico não possui obrigação de ar-tificialmente prolongar o sofrimento de paciente em estado terminal, se essa não é a vontade dele próprio ou de seu representante legal.

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Nesse sentido, por meio da Resolução 1.805/2006 e do Código de Ética Médica aprovado em 2009, o Conselho Federal de Medicina evidenciou que tal obrigação mé-dica não existe e passou a permitir “ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável”, desde que respeitada a vontade explícita do paciente ou de seu represen-tante legal e garantidos os cuidados necessários para aliviar o sofrimento do doente.

` Atenção:Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.715/2009, cujo objeto acrescenta ao CP os seguintes dispositivos a deixarem mais clara a exclusão da tipicidade da orto-tanásia:

“Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

§  1º. A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos.

§ 2º. A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.”

E) Direito ao testamento vital ou biológico (“living will”): É bastante atual a discussão sobre o reconhecimento de um novo direito fundamental relacionado à liberdade de autodeterminação. Trata-se do chamado direito ao testamento vital, segundo o qual se reconhece à pessoa, enquanto em perfeito estado de consciência, a faculdade de outorgar a outrem poderes para decidir sobre questões relativas ao próprio tratamento médico, em caso de incapacitação para manifestar a vontade, por ocasião de doença em estado incurável ou terminal. Nessa linha, em países nos quais se admite a eutanásia, o direito ao testamento vital pode incluir até a polêmica possibilidade de autorização, a terceiros, para decidirem sobre a eutanásia do próprio testador (eutanásia indireta).

No Brasil, a eutanásia é proibida e a legislação ainda não cuida, expressamente, do direito ao testamento vital. Porém, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já baixou resolução sobre figura similar: as chamadas “diretivas antecipadas de vontade” (v. Re-solução/CFM 1.995/2012).

` Atenção:O art. 1º da Resolução 1.886/2012 define as “diretivas antecipadas de vontade” como sendo “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, so-bre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver inca-pacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”

Ainda conforme a Resolução 1.886/2012: “Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre

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e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas anteci-padas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representan-te que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico re-gistrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de von-tade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regio-nal e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.”

Nada obstante, em maio de 2014, na I Jornada de Direito da Saúde organizada pelo CNJ, foi aprovado o Enunciado 37, segundo o qual as “diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, de-vem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”

F) Natureza jurídica do cadáver: Cadáver (i.e., o corpo do indivíduo sem vida) é coisa cujo domínio e disponibilidade são transferidos aos herdeiros a partir do falecimento da pessoa (GÓIS, 2007, p. 420-430). Porém, como o cadáver reflete atributos da imagem pessoal do falecido, trata-se de coisa fora do comércio (res extra commercium), cuja destinação deve ainda atender a normas de saúde pública. Ademais, a Lei 9.434/97 determina seja “condignamente recomposto” o cadáver cujas partes, órgãos ou tecidos tenham sido aproveitados em transplantes, a fim de “ser entregue, em seguida, aos parentes do morto ou seus responsáveis legais para sepultamento” (art. 8º). Essa a razão pela qual autores como GÓIS inferem, corretamente, a proibição geral da exposição do cadáver sob condições vexatórias.

G) Comercialização de órgãos, tecidos ou substâncias humanas: Está proibida pelo § 4º do art. 199 da Constituição, cuja redação diz que a “lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, pro-cessamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” Conferir a Lei 10.205/2001, que regulamentou tal dispositivo constitucional, bem como a Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

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` Atenção:Parte da comunidade científica defende que essa proibição constitucional só abrange-ria a comercialização das substâncias humanas “naturais”, sem alcançar as substâncias humanas sintetizadas em laboratório, ainda que a partir de células-tronco embrionárias (v. entrevista da geneticista LYGIA DA VEIGA PEREIRA publicada na Folha de S. Paulo do dia 27-12-2014). As justificativas desse posicionamento passam por três vertentes prin-cipais: (a) as células-tronco, i.e., as substâncias humanas iniciais (“antecedente”), após doadas para pesquisas, passam por grandes transformações artificiais, o que termina por separá-las do produto final (“consequente”); (b) o produto final pode ser comercia-lizado sem pôr em risco o objetivo constitucional de proteger pessoas em situação de vulnerabilidade, até porque o constituinte de 1988 nem poderia prever esse tipo de avanço científico havido posteriormente; e (c) a proibição de comercializar substâncias humanas sintetizadas faria com que a iniciativa privada perdesse o interesse no desen-volvimento de novas terapias celulares.

Na mesma linha, conforme Resolução 2.168/2017, ao tratar de normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, o Conselho Federal de Medicina dis-pôs que não poderão ter caráter lucrativo ou comercial, seja a doação de gametas ou embriões (item IV, n. 1), seja a cessão temporária do útero (vulgo, “barriga de aluguel”) (item VII, n. 2).

H) Prolongamento da personalidade após a morte (eficácia post mortem da per-sonalidade): A morte acarreta o término da “existência da pessoa natural” (CC, art. 6º), pois demarca o fim da vida do indivíduo. Porém, não extingue todos os aspectos da personalidade do falecido. Daí se falar na chamada “eficácia post mortem da personalidade”.

Trata-se da teoria a defender que determinados atributos dos diretos da perso-nalidade humana mantêm-se eficazes mesmo após o falecimento do respectivo titular. Assim, embora a morte implique a dissolução das relações jurídicas ligadas à existência da pessoa morta – tais como, o vínculo conjugal (CC, art. 1.571), o poder familiar (CC, art. 1.635, I), os contratos personalíssimos (CC, art. 607) e a obrigação de prestar alimentos (art. 1.700 do CC) –, bem assim a abertura da sucessão e a transferência dos bens patrimoniais do falecido aos respectivos sucessores (art. 1.784 do CC), certos atributos da personalidade do morto seguem juridicamente tutelados, como se, por ficção jurídica, a pessoa estivesse ainda viva. Nesse sentido, por exemplo, o nome, o pseudônimo, a identidade, a filiação e a honra objetiva da pessoa falecida recebem proteção jurídica “post mortem”.

` Atenção:A) Até aos nascidos mortos são reconhecidas algumas das prerrogativas decorrentes dos direitos da personalidade, como o nome, a imagem e a sepultura. Basta notar que os pais devem dar nome ao natimorto quando do cumprimento de dever de registrar-lhe o óbito (v. arts. 33, V, e 53, caput, da Lei 6.015/73). Na mesma linha, o Código Penal tipifica

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os crimes de calúnia contra os mortos (art. 138, § 2º), violação de sepultura (art. 210), de destruição, subtração ou ocultação de cadáver (art. 211), bem como de vilipêndio a cadáver (art. 212).

B) São partes legítimas à tutela da personalidade da pessoa morta, por substituição processual (CPC/2015, art. 18), o cônjuge sobrevivente ou os parentes do falecido (vide CC/2002, art. 12, parágrafo único, e art. 20, parágrafo único). Outra hipótese de legitimi-dade (extraordinária) para tutelar o patrimônio imaterial de pessoa morta está no art. 1.606 do Código Civil, que autoriza aos filhos (ou aos herdeiros, caso tenha morrido me-nor ou incapaz) o ingresso de ação de prova da filiação do falecido.

C) Nada obstante, a imagem da pessoa falecida poderá projetar efeitos econômicos para além da morte. Por essa razão, o cônjuge supérstite e os parentes mais próximos do fa-lecido têm legitimidade (ordinária) para postularem (aqui, em nome próprio) direitos su-cessórios ou mesmo indenização, seja por dano moral, seja por dano material (STJ, REsp 521.697/RJ, 4ª Turma; e REsp 1.209.474/SP, 3ª Turma). Da mesma forma, o art. 623 do CPP reconhece (ao cônjuge, ao ascendente, ao descendente ou ao irmão do condenado já fa-lecido) legitimidade ativa para propor revisão criminal da sentença penal condenatória proferida em face da pessoa morta. Ademais, a jurisprudência admite que o beneficiário de pensão por morte tem legitimidade para revisar a renda inicial do benefício previden-ciário que o falecido recebia em vida, dadas as repercussões financeiras desta revisão do benefício originário em relação ao benefício daí decorrente (v. STJ, REsp 1.326.114/SC e REsp 1.309.529/PR, 1ª Seção do STJ).

Remanescem em aberto, porém, muitas questões a respeito do tema, sobretudo as relacionadas ao desenvolvimento tecnológico. Por exemplo: o cônjuge ou algum dos sucessores da pessoa morta podem acessar dados personalíssimos e sigilosos do falecido e que estejam armazenados em sítios eletrônicos de relacionamento social?

` Atenção:A título de comparação, o Tribunal Constitucional alemão, em polêmica decisão de julho de 2018, decidiu que os pais podem acessar dados sigilosos que a filha falecida mantinha em rede social. Entendeu-se que os genitores sucedem a filha nos direitos contratuais que ela tivesse firmado com a provedora da rede social, tal qual herdariam documentos físicos, como diários e cartas privadas. De outro lado, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), já vigente na União Europeia, “não se aplica aos da-dos pessoais de pessoas falecidas” (item 27 dos respectivos considerandos).

Outro exemplo: após a morte do esposo(a) ou companheiro(a), o cônjuge sobre-vivente tem direito a valer-se de técnicas de reprodução assistida em que se utilizará material genético da pessoa falecida?

` Reprodução assistida post mortemComo já analisado em quadro no item “A” acima, a reprodução assistida é o gênero do qual fazem parte a inseminação artificial e a fertilização “in vitro” (ou fertilização de pro-veta). As duas espécies têm por objetivo obter, artificialmente, a fecundação de óvulos a

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serem gestados no corpo feminino. Por sua vez, a reprodução assistida post mortem é aque-la empregada para induzir a gestação em data posterior ao falecimento da(s) pessoa(s) de quem fora extraído material genético utilizado para fecundar o(s) embrião(ões) gestado(s). Porém, é importante distinguir, ainda, a fecundação artificial decorrente de reprodução assistida homóloga (mediante a manipulação de gametas do próprio casal assistido), da-quela do tipo heteróloga (em que se utiliza material genético de terceiro).

No Brasil, a reprodução assistida ainda não foi tema de nenhuma lei específica. Por isso, é alvo de proposta legislativa em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 1.184/2003). Conforme ensina RENATA VILAS-BÔAS (2011, p. 2), o “Código Civil não trata da reprodu-ção assistida, já que ele não autoriza, bem como não regulamenta a reprodução assisti-da, o que ele faz apenas é tratar do aspecto da paternidade, e assim, mesmo, não o fez de forma plena, regulamentado apenas algumas situações”.

Pois bem. Nos termos do art. 1.597 do Código Civil, consideram-se concebidos na cons-tância do casamento os filhos havidos: (a) nos 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal em razão da morte do marido (inciso II); (b) “por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido” (inciso III); (c) “a qualquer tempo, quando se tra-tar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga” (inciso IV); e (d) “por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (inciso V).

Durante a I Jornada de Direito Civil realizada pelo Conselho da Justiça Federal, em inter-pretação ao inciso III do art. 1.597 do Código Civil, chegou-se à seguinte conclusão: “para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte” (Enunciado 106). Assim, bem ou mal, o Código Civil teria regulado em parte o assunto da reprodu-ção assistida post mortem.

Contudo, a rigor, o art. 1.597 do CC não regula, nem legitima a reprodução assistida post mortem, em quaisquer de suas modalidades, ainda que a pessoa falecida a tenha previamente autorizado.

Isso porque o prazo de 300 dias de que trata o inciso II (ver, ainda, o art. 1.598 do CC) não serve para autorizar reprodução assistida post mortem, pois diz apenas com a pre-sunção referente a quem se deva atribuir a paternidade dos filhos nascidos após o fim do matrimônio, dada a possibilidade de a gestação ter sido iniciada ainda na constância do casamento.

No inciso III, ao utilizar a expressão “mesmo que falecido o marido”, o CC só tratou da fecundação feita anteriormente à morte, embora relativa a filho nascido depois. Afinal, diversamente do inciso IV, o CC não incluiu a expressão “a qualquer tempo”. Daí, a fecun-dação deve preceder a morte do marido, o que fica evidente no art. 1.798, que só legiti-ma à sucessão as pessoas nascidas “ou já concebidas” no momento da morte do de cujus.

Certo que, em caso de embriões obtidos antes do falecimento, não surgiria o problema do art. 1.798 do CC, pois se trata de material genético já fecundado, algo compatível com a expressão pessoas “já concebidas”. Contudo, no inciso IV, ao cuidar dos filhos havidos de “embriões excedentários” (óvulos fecundados e congelados para eventual aproveita-mento posterior), o legislador não se referiu ao marido já falecido. E, embora tenha feito

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uso da locução “a qualquer tempo”, ela está obviamente relacionada à duração temporal do casamento em si (i.e., aquele sob cuja constância os filhos serão considerados havidos).

Também a hipótese do inciso V (inseminação artificial heteróloga previamente autoriza-da pelo marido) pressupõe que o esposo estivesse vivo antes do procedimento médico. Até porque, mesmo que o morto já tivesse assinado algum contrato de prestação de serviço de reprodução assistida (algo bem mais contundente que uma simples autori-zação à esposa para fazê-lo), a avença se deve considerar extinta, nos termos do artigo 607 do Código Civil. Do contrário, se o cônjuge sobrevivente, com a prévia anuência do falecido, pudesse realizar a inseminação artificial heteróloga após o falecimento, não faria tampouco sentido excluir da regra legal os casos de inseminação artificial homó-loga (com material de ambos os cônjuges!). Logo, novamente aqui, o termo inicial da inseminação deve ocorrer na constância do casamento, ainda que o filho nasça após o fim do matrimônio.

Enfim, é preciso disciplinar o assunto por lei específica, sem que se possa enxergar no atual Código Civil alguma previsão a respeito da reprodução assistida post mortem, ao contrário do que se concluiu na I Jornada de Direito Civil do CJF. Bem por isso, o PL 7.701/2010, em tramitação na Câmara dos Deputados, pretende acrescentar o Código Civil o seguinte dispositivo:

“Art. 1.597-A. A utilização de sêmen, depositado em banco de esperma, para a insemina-ção artificial após a morte do marido ou companheiro falecido, somente poderá ser fei-ta pela viúva ou ex-companheira com a expressa anuência do marido ou companheiro quando em vida, e até trezentos dias após o óbito.”

Nada obstante, também o Conselho Federal de Medicina já permite a “reprodução assis-tida post-mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente” (item VIII da Resolução 2.168/2017).

De qualquer modo, a despeito das discussões acerca do alcance do art. 1.597 do CC, os filhos havidos mediante procedimentos de reprodução assistida post mortem fazem jus ao reconhecimento da paternidade/maternidade biológica, com os direitos daí decor-rentes. E não importa, aqui, o problema causado pelo art. 1.798 do CC, que só atribui direitos sucessórios às “pessoas nascidas ou já concebidas” no momento da abertura da sucessão. Embora tal dispositivo só beneficie filhos gerados a partir de embriões já ob-tidos previamente com material genético da pessoa falecida, a proibição constitucional contra a discriminação filial (art. 227, § 6º) serve para estender a disciplina normativa do art. 1.798 também aos filhos que, ainda não concebidos ao tempo da morte do progeni-tor, foram obtidos a partir de zigotos fecundados posteriormente.

I) Pena de morte: O inciso XLVII do art. 5º da Constituição só admite a pena de morte em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. (Para maiores detalhes, v. item 3.6.4.1, letra “c”.)

J) Normas legais pertinentes: Ver: (a) a Lei 8.501/92, que dispõe sobre a utili-zação de cadáver não reclamado, para fins de estudos ou pesquisas científicas e dá outras providências; (b) a Lei 9.263/96, cujo art. 10, § 5º, condiciona a esterilização voluntária de um dos cônjuges ao consentimento do outro cônjuge;

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(c) a Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento; (d) a Lei 10.205/2001, que regulamenta o § 4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, pro-cessamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução ade-quada dessas atividades; e (e) a Lei da Biossegurança (Lei 11.105/2005), a qual regulamentou os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal.

3.2. Direito à privacidade

Direito à autodeterminação sobre a vida privada e à subtração dos assuntos pes-soais em face da intromissão e curiosidade alheias. Previsto em dispositivos cons-titucionais específicos (art. 5º, incisos X, XI, XII e LX; art. 93, IX), o direito à privacidade, em sentido amplo, é o gênero jurídico que engloba os seguintes direitos mais específicos: (a) direito à intimidade; (b) direito à vida privada; (c) direito à honra e à imagem; além do polêmico (d) direito ao esquecimento.

Além disso, a Constituição articula certas garantias constitucionais para coibir ou para reparar atentados contra o direito geral à privacidade, tais como o direito à indenização por danos materiais e morais (art. 5º, V e X), a garantia contra a autoin-criminação (art. 5º, LXIII) e a proibição da utilização, como meio de prova, de dados e informações obtidos com violação à intimidade (art. 5º, LVI). (Sobre as diferenças entre prova ilícita e convalidação da ilicitude da prova, v. item 3.6.3.2.C.)

Nada obstante, conforme PAULO BRANCO (2008, p. 379), embasado na doutrina norte-americana, são quatro as modalidades básicas de violação da privacidade: (a) intromissão na reclusão ou solidão do indivíduo; (b) a exposição pública de fatos pri-vados; (c) a exposição da pessoa a falsas ou enganosas percepções do público (“false light”); e (d) a apropriação do nome e da imagem da pessoa, principalmente com finalidades comerciais.

Todavia, o direito à privacidade é limitado por razões fundadas em outros bens e direitos igualmente constitucionais, tais como a vedação ao anonimato (art. 5º, IV), o direito geral à informação (art. 5º, XXXIII), a liberdade de expressão comunicativa e jornalística (artigos 5º, IX, 220 e 221) e, sobretudo, pelo interesse público presente nas múltiplas reservas restritivas feitas pelo constituinte (v.g., arts. 5º, XI, XII, XXIII, 93, IX, 145, § 1º). Por fim, certos direitos ligados à privacidade podem ser suspensos durante o estado de defesa e o estado de sítio (artigos 136 a 139).

3.2.1. Teoria das esferas da personalidade

Para analisar o grau de proteção proporcionado pelo direito à privacidade e seus subtipos, a melhor doutrina recomenda utilizar a teoria das esferas da personalidade (ou dos círculos concêntricos da personalidade). De modo que, quanto maior a proxi-midade com a esfera central da personalidade, mais rígidos deverão ser os controles acerca das restrições admissíveis.

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