Jeguatá: O Caminhar entre os Guarani

download Jeguatá: O Caminhar entre os Guarani

of 22

Transcript of Jeguatá: O Caminhar entre os Guarani

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    1/22

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    JEGUAT : O CAMINHAR ENTRE OS GUARANI

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA1

    UFRGS

    RESUMO: Neste artigo o caminhar guarani eleito como objeto de reflexes a partir da freqentao etnogrfica de alguns espaos onde se encontram e circulam atualmente gruposmby e nhandeva na regio leste do Rio Grande do Sul. Enquanto forma de mobilidadeespecfica pautada por leituras diferenciadas dos elementos do espao, o jeguat ou somenteguat (caminhar no idioma guarani) ser aqui analisado em sua interface com o xamanismo,enquanto forma de cosmopoltica atravs da qual os espaos so entendidos, frente presena

    e ausncia, e conseqente influncia, das alteridades identificadas por estes grupos.

    PALAVRAS CHAVE: mobilidade; guarani; espacialidade; referncias; fronteiras.

    ABSTRACT: In this article the guarani walk is elected as reflections object as fromethnographical frequentation in some spaces where mby and nhandeva groups can be actually

    found and circulating in eastern Rio Grande do Sul. As a specific form of mobility based ondifferentiated lecture of the elements in space, jeguat or just guat, (walk in the guarani idiom)will be here analyzed in interface with shamanism, as a cosmopolitical form through whichspaces are understood, forefront the presence and absence, and consequently alteritysinfluence as identified by these groups.

    KEYWORDS: mobility; guarani; spatiality; references; frontiers.

    Introduo

    Esses parentes guarani tm as pernas curtas de tanto caminharatrs de terra esta foi a brincadeira de um velho kaingang ao se

    deparar com uma famlia guarani que conhecia, em janeiro de 2005durante o Puxirum , o espao indgena do V Frum Social Mundial 2. A

    1 Mestre pelo Programa de Ps-Graduao de Antropologia Social PPGAS/IFCH/UFRGS. Pesquisadorassociado ao Ncleo de Antropologia das Sociedades Indgenas e Tradicionais - NIT/IFCH/UFRGS e aoLaboratrio de Arqueologia e Etnologia LAE/IFCH/UFRGS. E-mail: [email protected] Ocorrido em trs grandes tendas armadas no parque Marinha do Brasil (Porto Alegre/RS) o Puxirumreuniu indgenas das trs Amricas que durante quatro dias trocaram relatos sobre os problemas e as

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    2/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    100

    despeito da diferena entre as estaturas destes dois povos indgenasencontrados na poro meridional do Brasil ou do motivo sugerido peloancio J, de conhecimento geral indgenas e brancos, leigos epesquisadores que possuem alguma convivncia com os guarani notam esta relao profunda com o caminhar.

    Jeguat 3 o termo utilizado pelos Guarani da parcialidade Mby tanto para o ato de andar como para a idia de viagem e significadeslocar-se para alm de um sentido meramente fsico, por exemplo,uma viagem xamnica na qual o xam atravs de seus saberescaminha capaz entre formas e domnios.

    Tomo por Guarani em primeira instncia os grupos com os quaisrealizei minha etnografia, bem como, num sentido mais geral, emreferncia s coletividades reconhecidas como Guarani pelos gruposanteriormente citados. No se trata de ignorar possveis distinesdialetais e rituais entre as parcialidades existentes em outros contextos.Ao menos neste contexto etnogrfico elas no parecem existir, e seexistem no parecem possuir grande importncia para meusinterlocutores.

    A generalidade das reflexes aqui apresentadas nonecessariamente acompanha a amplitude e a diversidade dascoletividades denominadas Guarani , uma vez que podem no abranger

    todos os grupos que se reconhecem nesta identidade. Tal fato, noentanto, apesar de no comprometer a anlise, evidencia a fragilidadede certas categorias interpretativas como povo, populao enao, ou mesmo no termo etnia, a despeito de ser considerada maiscientfica frente complexidade do fenmeno pesquisado, fazendocom, por rigor epistemolgico, estejam aqum das possibilidadesinterpretativas dos fenmenos observados.

    H muito a ser dito sobre a mobilidade entre os Guarani, o queno significa que pouco foi dito at ento. Seja no mbito das crnicas

    jesuticas, seja pela etnologia contempornea, estes deslocamentos

    solues na luta por existncia digna, manuteno e retomada de seus espaos vitais. Tambm serevezaram em apresentaes de canto e dana, alm de discursos memorveis. A fala aqui citada foiproferida pelo lderkaingang Joo Padilha.3 Tal qual registra Dooley je- (com certos radicais de v. t.) indica o sentido de passivo, formando umradical de v. i. da flexo do tipoa- ; -guata v. i. de evento ou atividade (flexoa- ). 1. Andar. 2. Viajar.(DOOLEY, 2006, p. 47 e 64).

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    3/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    101

    sempre assumiram formas distintas recebendo, a cada poca econtexto, diferentes leituras. Do espanto causado nos europeus dosculo XVI a ver multides seguindo antigos kara , xams-profetas embusca da terra livre de males ( yvy maray ), ao no menos picodeslocamento de um pequeno grupo mby no incio do sculo XX,acompanhado no ltimo trecho de sua viagem por Kurt Nimuendaj(1987). Separados por sculos, as multides a que fizeram refernciasos cronistas e o pequeno grupo acompanhado pelo etnlogo alemotem sido objeto de suposies dos etnlogos com relao ssemelhanas e diferenas existentes nos termos motores de suamobilidade.

    Em seus mais diversos aspectos, reflexes em torno damobilidade guarani se fazem presentes nos trabalhos no s do jcitado Kurt Nimuendaj (1987), mas tambm nos escritos daqueles queo sucederam na etnografia entre esses grupos. Len Cadogan (1958),Egon Schaden (1969 e 1974), Hlne Clastres (1978), Pierre Clastres(2003, 2004), Bartolomeu Meli (1989), Maria Ins Ladeira (1992 e2001), Ivori Garlet (1997), Flavia Mello (2001), Celeste Cicarone (2001),

    Jos Otvio Catafesto de Souza (2005), Elizabeth Pissolato (2006) eDeise Montardo (2002), estes so apenas alguns dos muitospesquisadores que teceram reflexes sobre a temtica do caminhar 4.

    Ao longo do ltimo sculo a mobilidade guarani foi pensada apartir de vieses distintos que, por sua vez, focarizaram aspectosdiversos deste fenmeno. Os primeiros esforos etnogrficos deNimuendaju (1987) em compreender a relao dos Guarani com oespao partilhavam da premissa da antropologia de seu tempo, quetendia a conceber as relao e entendimentos dos povos indgenas noque se refere aos espaos, nos termos territrios fixos, semelhantes sconcepes euroreferentes.

    A partir de suas prprias etnografias e dispondo de novos

    suportes tericos, seus sucessores nos estudos destas coletividadestrouxeram importantes contribuies para as reflexes acerca daquesto da mobilidade ao problematizarem alguns aspectos dasprimeiras anlises. E ao repensar a mobilidade para alm da pertena aum espao, mas nos termos de espacialidades e territorialidades4 Para uma apresentao mais expressiva desta bibliografia ver Souza Pradella (2009, p.59-67).

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    4/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    102

    especficas.Nas perspectivas destes outros autores o caminhar guarani estaria

    relacionado no s a uma busca pela terras sem males, mas tambmpor uma srie de outros aspectos: pela busca por uma terra ideal e umideal de terra (MELI, 1989; LADEIRA 2001); pelo atrito e inteno dedistanciamento frente presena das sociedades euroreferentes econflitos com relao a estas (LADEIRA, 1992; GARLET, 1997;MONTARDO, 2002); pelas memrias e profecias constitudas em tornodas caminhadas (H. CLASTRES, 1978; MELLO, 2001); por umentendimento nativo de movimento intrinsecamente relacionado aoxamanismo em que se atualizam e so revisitados os mitos(CICCARONE, 2001); e/ou pelo caminhar que d forma s metforas dasescolhas da vida e do cotidiano (MONTARDO, 2002).

    O presente artigo tem como objetivo apresentar a reflexo tericacom base em alguns elementos etnogrficos a partir de mais de quatroanos de contato com grupos guarani no leste do Rio Grande do Sul.

    Para fins organizacionais o texto est dividido em trs partes,tendo como primeira esta breve introduo. Na segunda parte tragotrechos dos dilogos com meus interlocutores a partir de diferentessituaes de contato e freqentao nos espaos em que estivessempresentes, locais por onde circulam: acampamentos e terras indgenas

    na regio da bacia hidrogrfica do Guaba (Estado do Rio Grande do Sul,Brasil), viagens a parentes, encontros na cidade de Porto Alegre, feirasde venda de artesanato e apresentaes culturais no mbito de escolase universidades.

    So de grande importncia para este artigo a orientao de VherPoty Bentes, professor bilnge na Teko Jataty 5, lder poltico epesquisador do modo de ser e do xamanismo de seu povo. Outroimportante interlocutor foi Santiago Franco, outra grande lideranaguarani no estado do Rio Grande do Sul, e principal de sua famlia

    extensa. Santiago e sua famlia ganharam recentemente algumanotoriedade em conseqncia de terem sidos retirados a fora das

    5 Jaraty significa butiazeiro ou butiazal, sendo reconhecida no contexto dos gruposGuaranipresentes na bacia hidrogrfica do lago Guaba como a denominao dateko chamada pelos no-ndiosde aldeia Guarani do Cantagalo.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    5/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    103

    margens de uma estrada por instituies governamentais 6.Na ltima seo deste texto proponho uma anlise terica e

    ensastica da mobilidade guarani : tomando-a enquanto forma especficade interao e/ou restrio espao-corporal (MUNN, 2006), comomarcos de alteridade definidora de fronteiras tnicas (BARTH, 2000), eenquanto prticas de mobilidade, nos termos de seus limites epossibilidades, definida e fundamentada pela imaginatividade(CRAPANZANO, 2005).

    Narrativas sobre o caminhar

    Na primeira metade de 2008, participei do senso das populaesindgenas encomendado pela Fundao de Assistncia Social daprefeitura de Porto Alegre 7 na qualidade de coordenador de trabalho decampo junto s populaes guarani (Mby e Nhandeva ). Mesmo que apesquisa tivesse como objetivo basicamente identificar quem e quantoseram os ndios habitantes da cidade de Porto Alegre parentesco,construo da pessoa, cosmologia e mobilidade sua realizaopermitiu verdadeiras aulas sobre o modo de ser guarani 8.

    Na entrevista qualitativa em que se buscava junto com alguns

    interlocutores aprofundar respostas conseguidas quantitativamenteatravs do questionrio, um dos tpicos seria especialmente elucidativo.

    6 A remoo dos Mby-Guarani da faixa de domnio pblico da estrada do conde, no municpio deEldorado do Sul, por instituies do poder estadual encontra-se registrado no documentrio. Esta

    pergunta vai ficar sem resposta. Tal documentrio encontra-se ainda em fase de produo sendo geridopela equipe composta pelos pesquisadores-documentaristas Guilherme Heurich, Jos Rodrigo Saldanha,Luiz Fernando Caldas Fagundes e eu vinculados ao Laboratrio de Arqueologia e Etnologia (LAE) e aoNcleo de Antropologia das Sociedades Indgenas e Tradicionais (NIT) desta universidade.7 A pesquisa em questo foi encomendada pela Fundao de Assistncia Social e Cidadania da prefeiturade Porto Alegre (FASC-PREFPOA) para o Laboratrio de Observao Social (LABORS-UFRGS) eabrangeu tambm um senso das populaes indgenas, outros dois: um a respeito dos moradores de rua, eoutro tratando dos afro-descendentes. Cada um dos sensos foi encaminhado pelo LABORS para

    diferentes grupos de pesquisa, ficando o senso referente aos indgenas a cargo do Ncleo de Antropologiadas Sociedades Indgenas e Tradicionais (NIT-UFRGS).8 Enquanto pesquisa quali-quantitativa o senso foi dividido em duas partes. Em uma etapa quantitativaatravs da aplicao de cadastros destinado cada um dos indgenas da regio de Porto Alegre, e de umquestionrio a ser respondido pelo porta-voz de cada famlia que tambm auxiliou os pesquisadores naaplicao do cadastro. O papel de porta-voz foi assumido por qualquer pessoa que falasse pelo seugrupo de parentesco frente aos brancos. Em sua maioria foi ocupado por homens maduros, mastambm, em um nmero menor, por jovens cujo conhecimento considervel em portugus e, numaquantidade bem inferior por mulheres adultas que na ausncia de outrem, dispuseram-se a respondernossas perguntas.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    6/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    104

    Comparando h vinte anos atrs voc acha que a vida do seu povo melhorou ou piorou? Boa parte dos entrevistados considerava que avida dos Guarani havia piorado. Mesmo quando aplicada junto ahabitantes das reas demarcadas, nas quais existe toda uma estruturamaterial nos padres ocidentais 9, alm de uma srie de polticasassistencialistas, a resposta era semelhante.

    Em nossas anlises facilmente poderamos incorrer no equvocodo pessimismo sentimental (SAHLINS, 1997) e creditarmos a recorrnciadesta opinio a uma possvel idia de fim de sua cultura. No entanto,quando perguntados sobre o motivo, muitos dos Guarani entrevistadosno se referiam a perdas culturais, mas atriburam a piora em suas vidasao fato de no poderem mais caminhar.

    Colocaes como as do arteso Valdecir Timteo e do professorbilnge Vher Poty Bentes, ambos de Teko Jataty, soparticularmente ilustrativas, sintetizando o contedo de outras.

    Antes a gente ia andando. Com o p no cho, ia e podiaparar assim, em qualquer lugar. Ia andando at o matoe l ficava um pouquinho, descansar. Agora procuramato, no tem. Procura caa, no tem. Se pega e saiandando tem cerca, tudo cercado, juru 10 cercou tudo,enferpou a terra. Fez cercadinho e botou a guaranizadapra no poder mais andar. Agora tudo isso j foi feitoento a gente tem que brigar pelo cercadinho, cuidarpra ter onde ficar (Valdecir Timteo).(...) percebi que os juru to criando os Mby que nemgalinha, assim tudo preso, do mesmo jeito dogalinheiro. Fica ento e do milhozinho pro Mby, praele no caminhar (Ver Poty Benites).

    A percepo das polticas de confinamento apresentadas atravsde metforas manifesta no s a importncia do caminhar, mas tambmsua inviabilidade em um mundo em que tais deslocamentos ficam cadavez mais difceis, em grande parte devido violenta sobreposio deespaos vitais pela infra-estrutura estatal ou privada dos estados

    9 A terra indgena do Cantagalo, por exemplo, possui posto de sade e assistncia mdica especializada,gua, luz, banheiros externos, casas de alvenaria, padaria, galinheiro, casa do mel. Com exceo do postode sade e a assistncia mdica da FUNASA, a maior parte das estruturas encontra-se desativada.10 Juru atualmente a denominao Mby mais freqente para os euro-descendentes. Possui pelo menosdois significados: boca peluda em referncia as barbas dos antigos espanhis e portugueses, e tambmda boca para fora em referncia ao pouco valor que estes outros conferem palavra.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    7/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    105

    nacionais e a conseqente privatizao de seus recursos. Aexclusividade sobre a terra alm de ilegtima entendida ainda nostermos de cimes pelos atuais Guarani .

    Os brancos se apropriaram de toda terra como se dela dono fossem. Os brancos tm cimes da terra, porisso nos intimida e nos retira fora, mas atravs deNhnder e dos espritos dos nossos filhos e netos vaiser possvel acompanhar essa luta frente aos brancospara conseguir a terra. Atravs de Nhnder isso vai seresolver, pois ele criou a terra e, por isso, a terra dele. Nhnder no tem cimes da terra, pois a deixapara ns vivermos. Mas como disse meu cunhado,Nhnder pode destruir a terra se ele quiser ( Kunhkara Laurinda Kerex).

    Uma semana aps sua famlia ser violentamente removida da beirade uma estrada no municpio de Eldorado do Sul/RS, e ainda abaladopelo deslocamento forado 11 , o lder Santiago Franco falou-nos de seuentendimento sobre o jeguat .

    O jeguat muito importante para ns, faz parte donhanderek 12. Quando acontece alguma coisa, morrecriana, no acampamento, tristeza vem e faz o coraopesado, teko axy [ uma existncia imperfeita]. Entopega o petyngu [caximbo] e espera. Espera vir sonho,o kara ou outro sonha, e no sonho chega conselho deNhnder . Vai por aqui, por ali, jeguata por , ento ocorao mais leve. Nhnder mostra o caminho e cadaum anda diferente, pelo sonho vai sabendo o caminhopor onde tem que passar (Santiago Franco).

    O mundo dos obstculos criado pelos juru vai de encontro n osomente com viso de mundo guarani , mas impossibilita uma srie derelaes necessrias com o cosmos. Assim como seus deuses em outraseras, o destino dos homens encontra-se no caminhar. Seu tempo mticotraz referncias constantes a essa necessidade de movimento.

    A idade mtica dos Mbya um elogio das figuras dos

    11 A remoo da famlia de Santiago da estrada do Conde no municpio de Eldorado do Sul-RS porinstituies do governo estadual o tema do documentrio Esta pergunta vai ficar sem resposta, aindaem fase de produo.12 Pode ser traduzido comonosso modo de ser . Uma expresso identitria recorrente entre os Mby quedefine uma srie de procedimentos e comportamentos preferenciais cuja tica encontra-se intensamentefundamentada na cosmologia.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    8/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    106

    movimentos: auto-evoluo, desdobramento eexpanso constroem a anatomia mgica da gnese e omodelo ordenador do cosmos; atravs dos seusmovimentos especficos que os pares das almasdivinas, que se incorporam nos indivduos, so

    representados; a caminhada a ao paradigmtica dacriao do mundo terreno, da existncia do indivduo eda sociedade, sendo as migraes interpretadas comosuas variaes mtico-histricas; enfim, a condioontolgica da mudana, o vir a ser outro, como umestar numa tenso, num equilbrio sempre precrioentre os extremos do animal e do divino, portantoconstitutiva da humanidade, sugere que em termosdinmicos que precisamos pensar o universo cultural esocial dos Mbya (CICCARONE, 2001, p. 350).

    Na cosmogonia Mby , na Yvy Tenonde (Terra de antes) 13, foiatravs de seu prprio caminhar que Nhnder Tenonde Gua (Nosso PaiProvedor14, aquele que veio antes) criou o milho. De suas pegadasbrotaram os primeiros milharais. Da mesma forma, a caminhada aresponsvel pela manuteno da vida, ou mesmo da prpria existncia.

    No momento em que tu caminha tu produz a vida. Aeducao so os pais que do. O pai d conselhos e ocaminhar d a vida. Minha av me dizia que precisoconhecer diferentes cheiros, diferentes cascas dervores, de ervas, diferentes lugares, para assim tersabedoria, vivenciar o mundo, para depois contar paraos outros o que aprendeu. No tem um caminho certo,vai andando para descobrir as coisas, entendendo poronde deve ir. Desse jeito o Mby conhece a natureza,vai conhecendo cada planta que usada nascerimnias. As plantinhas tm conjunto, tmsabedorias que elas guardam (Ver Poty Bentes).

    tambm caminhando que Nhnder abandona a Primeira Terraaps se desentender com Nhndex het (Nossa Me verdadeira 15).Grvida, a deusa percorre uma longa jornada buscando por Nhnder ,

    guiada por seu filho Nhmand (a divindade Solar), que antes mesmo denascer, lhe indica por quais caminhos seguir. Eis que Nhmand , da

    13 A terra de antes ou primeira terra poderia sem grandes perdas ser chamada de primeira era ouidade mtica (CICCARONE, 2001, p. 350), da mesma forma que a segunda, a terra em que vivem oshomens na atualidade, pode ser tratada por era imperfeita .14 O prefixo-ru tem o sentido de trazer ou prover, mas tambm significa pai (CADOGAN, 1992, p.163; DOOLEY, 2006, p. 39).15 -hete tambm grafado -et significa verdade (CADOGAN, 1992, p.46).

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    9/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    107

    barriga de sua me, v uma flor beira do caminho e passa a desej-la.Ao peg-la, Nhndex het acaba sendo picada por uma vespa,tornando-se rspida com seu filho (em algumas verses chega mesmo abater no ventre, ora intencionalmente, ora sem o querer) que, desdeento, cala-se. Diante do silncio do filho, Nhndex het se perde,afastando-se das pegadas de Nhnder Tenonde Gua e caminhando nadireo da morada da av de todas as onas, onde morta. Nhmand ,nascido de Nhndex het j falecida, cria seu irmo Jaxy (dono daimperfeio, a divindade Lunar 16) e com ele caminha pela primeira terranomeando as coisas, povoando os espaos e guaranicizando o mundopara, ao fim de sua jornada, encontrar o grande Pai e receber deste osatributos do xamanismo (MELI 1989, p. 326; LADEIRA, 1992, p. 88-90).

    Nas narrativas apresentadas, a mobilidade no somente ummeio cujo fim seria a busca pela Terra Livre de Males; mais do que isso encarada como uma forma de produo de sade e vida, de acmulode conhecimento, de experincias necessrias para o ato de existir nomundo. O caminhar pode ou no se caracterizar como uma busca pelosatributos da divindade. Mas, independentemente desta busca, estar emmovimento viver.

    O branco no conhece a nossa cultura, essa caminhadaque a gente tem. Quando os guarani to vivendo nabeira da estrada, essa caminhada uma culturamilenar como Nhnder deixou. Uma viso, umacaminhada pra ser feliz e ter sade. O Guarani umaraa s, que tem sabedoria e conhecimento pra andarpelo mundo (Santiago Franco).

    Assis (2006, p. 127) afirma que entre os Mby a gua parada denominada gua morta. No estando em movimento a gua passa aatrair os resto da sombra ou espritos dos mortos ( ang )17 e, seconsumida pelos vivos, gera doenas. Inversamente considerada viva epotvel toda gua que percorre um caminho, que corrente.

    No entanto, para alguns, estar vivo no o suficiente. A

    16 Apesar de no ser um exmio conhecedor da lngua guarani, arrisco-me a uma decomposio do termo Jaxy. J ou Dj equivalente a senhor ou dono eaxy, a imperfeio, algo como dono da imperfeio.17 Ang ou ag so os termos guarani para sombra e nesse caso, o pfixo , segundo Vher Poty levaem si o sentido de resto.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    10/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    108

    cosmopoltica presente nos discursos dos kara lembra aos humanosque lhes possvel, entre todos os caminhos, escolher trilhar o jeguat tape por , o belo e sagrado caminho dos deuses 18. No h qualquerobrigatoriedade: a existncia enquanto uma srie de potencialidadespermite aos humanos uma infinidade de rotas.

    Em meio terra do modo de ser imperfeito ( yvy teko axy ), aomundo do modo de ser de provaes ( yvy teko a ), alguns poucosdevotam suas vidas a percorrer o jeguat tape por , esforando-se porviver no modo de ser semelhante s divindades ( teko por ), buscandocompartilhar de sua perspectiva, alcanar sua perfeio ( aguyj )19 esua imortalidade ( kandire )20.

    Mas existem tambm aqueles que escolhem percorrer outroscaminhos: alguns enveredam-se por suas paixes e cultivam sua almatelrica (ang ), distanciando-se das divindades (NIMUENDAJ, 1987,p.37-40). Outros trilham caminhos perigosos de raiva ( poxy )21 e dascoisas da maldade ( mbava )22, aproximando-se de outras classes deentidades.

    apenas ao realizar os trabalhos ocultos, somenteempregando o mal-dizer inspirado que algum passa aser considerado um porovaky' . O feiticeiro no somente aquele que se distancia do teko por (belomodo de ser e de proceder); tambm um cmplice

    consciente das foras consideradas responsveis poresta transgresso. As palavras ruins, os cantos de dioinspirados/orientados pelos imba'e poxy (furiosos),pelos ang (espritos dos mortos) e pelos anh(demnios) so as armas das quais dispe contraaqueles que considera seus inimigos (SOUZAPRADELLA, 2006, p. 40).

    18 Traduo proposta por Vher Poty Bentes.19 A expressoaguyj significa ainda completude, mas tambm utilizada para os frutos em estado dematurao ideal (CADOGAN, 1992, p. 21).20

    Tambm grafadoikandir refere-se especificamente a condio de livre da possibilidade de doena e damorte que os humanos que conseguem alcanar oaguyj compartilham com as divindades (CADOGAN,1992, p. 78).21 Entre osGuarani Ficar quente sinnimo de raiva ( poxy) (MONTARDO, 2002, p. 228) que entendida como substncia acumulativa no corpo. Diz-se ele est cheio de poxy ou a av tirou poxy demim naopy. Na mesma proporo em que o poxy aumenta no corpo, amplia-se o grau de influncia dosimba'e poxy, tambm chamadosPoxydj (raivosos ou donos de raiva) (SOUZA PRADELLA, 2006,p. 41). Possui tambm um sentido de estado de descontrole, demncia furiosa e belicosidade(CADOGAN, 1992, p. 144).22 A traduo proposta por Vher Poty objetos e coisas de maldade.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    11/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    109

    Portanto, longe de estarem restritas ao belo caminho dos deuses( Jeguat Tape Por ), as possibilidades de percurso a disposio doshumanos so diversas. na iminncia ou mesmo na ameaa destasoutras possibilidades, e em contraste frente a elas, que o bomcaminho se apresenta. Estes outros caminhos, tambm chamados debifurcaes, apresentam-se como (ou a partir de) obstculos, entravesentre os humanos e o caminho que potencialmente leva s divindades.Em suma, se o jeguat faz parte da constituio do ser guarani , seguir obelo e sagrado caminho dos deuses esta opo entre outras opes a meta de sua religiosidade. Para todos os efeitos, no entanto, possvel ser guarani e caminhar, e ainda assim ser indiferente aocaminho dos deuses.

    Minha irm mais nova... No sei onde ela anda. Seperdeu. T por So Paulo no meio dos brancos. Medisseram que ela apareceu na aldeia uma vez e quedisse que no era mais mby , que agora eradescendente de japons. (...) como minha av fala,mesmo s vezes quando a gente sabe que a nossairm, o nosso irmo, a nossa tia vive fora denhanderek , a gente no pode criar dor,[res]sentimento por causa dela. (...) Tem coisas quens prprios no suportamos. Isso tambm no culpade ningum. coisa nossa prpria. Eu tambm possono ser aquele que nasceu pra ser [no me tornarsemelhante ao meu Nhee ], eu posso desviar, issodepende muito do meu pensamento, meu sentimento(Vher Poty ).

    As complexas narrativas da cosmologia guarani sobre oscaminhos e o caminhar ganham ainda outras formas de expresso nosobjetos que comercializam com os juru nas beiras de estradas e, emalgumas ocasies, em feiras e espaos nas cidades. Incompreensveisaos olhos de seus compradores, imagens de madeiras, balaios e outraspeas de artesanato levam em si elementos da simbologia guarani .

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    12/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    110

    Vixrang Indaj (A imagem da guia) Em sua base

    um conjunto de trs smbolos. Do lado esquerdo aletra A apropriada do alfabeto ocidental. Nocentro, um grafismo denominado itapej (o senhor dos caminhos) e, direita, a representao de uma

    almeira Pind, smbolo das divindades, daimortalidade, na mitologia presente em cada umdos amb (cidades das almas-palavras, moradasdos deuses). Lido da esquerda para a direita (forma

    rpria da tradio ocidental) simboliza atrajetria daqueles que aceitam trilham oscaminhos em busca das divindades e seus atributos.

    Tamanha a importncia do jeguat que a despeito dasdificuldades criadas pelas sociedades nacionais e manifestas em algunsdos discursos aqui apresentados, os Guarani continuam caminhando. Seno mais em espaos abertos como certamente prefeririam, agora estorestritos em seu caminhar a um extenso arquiplago de pequenas terras

    indgenas, acampamentos de beira de estrada e recortes de mata aindaexistentes um territrio descontnuo cujas tentativas de delimitao oudemografia se mostram no mais das vezes incuas em decorrncia deseu dinamismo 23.

    A caminhada dos mby continua passando por essasdificuldades. Hoje penso no tempo em quecaminhvamos por toda a parte. Perguntava pro meusogro "Porque os brancos dificultam a nossacaminhada? Mas no tem como a gente deixar decaminhar. Porque as fronteiras entre os pases vieram

    depois da gente. (...) O nosso modo de ser e viver assim mesmo. Podemos caminhar por todo lado porque

    23 Existe atualmente umateko guarani no estado brasileiro do Par e outra no departamento uruguaio deTrienta y Tres. No entanto costuma-se afirmar que os limites de um possvel territrio desta etnia seriam -o estado brasileiro do Esprito Santo (ao Norte), a costa sudeste e sul do Brasil (limite Leste), as margensdo Rio da Prata (ao Sul) e o sop das montanhas andinas (limite Oeste). Tal afirmao em grandemedida fruto de consideraes histricas, e momentos de visibilidade poltica do que propriamente sejamreconhecidos pelos diferentes grupos.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    13/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    111

    Nhnder deixou esse costume. Nhnder fez o mundoredondo para os mby ocuparem" (...) Qualquer lugarque paramos, o branco diz que somos invasores, masfoi Nhnder que criou esta terra. O branco pensa queest acima de Nhnder. Caminhar e buscar outros

    lugares para morar o nosso jeito de ser e viver.Quando eu sa do Cantagalo e fui para Pacheca, depoisgua Grande, Ricardo j sabia que esse o nossomodo de ser e viver ( kara Anncio Oliveira Bentes).

    No so propriamente as fronteiras nacionais ou quaisquer outrasdemarcaes frutos de outras tradies os elementos balizadores docaminhar guarani . Este se fundamenta antes de tudo por uma leituraparticular da paisagem, bem como por relaes com distintasalteridades, sensaes, pressgios, sentimentos e sonhos.

    Paisagem, alteridade e imaginao

    Com base na bibliografia sobre os grupos guarani e em dilogocom os dados etnogrficos sobre o jeguat anteriormente apresentados,nesta ltima parte do texto proponho uma reformulao ensastica docaminhar guarani luz das teorias apresentadas em Horizonte imaginativo (CRAPANZANO, 2005),Grupos tnicos e suas fronteiras

    (BARTH, 2000) e Espaos de excluso (MUNN, 2006). Desta formabusca-se aqui dar conta da mobilidade guarani enquanto elemento deinterao de corpos no espao, como referncias de alteridade nadefinio de fronteiras tnicas e tambm como prticas de mobilidadepautadas em limites e possibilidades definidos pela imaginatividade.

    Em seu artigo Excluded spaces: the figure in the Australian aboriginal landscape (2006), Nancy Munn apresenta interessantesconsideraes que podem auxiliar na anlise do caminhar guarani . Emsua pesquisa sobre perspectiva e interao, a autora busca compreendera forma como grupos de aborgines na Austrlia relacionam-se com oespao, estabelecendo limites e pontos de referncias.

    Assumindo como constitutivas as dimenses temporais e espaciaisda teoria antropolgica, Munn evidencia a ambigidade prpria doespao, que sincronicamente local nos termos de refernciasindexadas, e palco da ao dos diferentes atores.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    14/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    112

    O corpo que percebe, enquanto lcus de centralidade e detentor demobilidade e ao, redefine constantemente o campo espacial emtermos de um conjunto de marcos e fronteiras que so igualmentemveis, igualmente volteis. Nesse movimento, as prprias fronteirasentre o campo corporal e o campo espacial acabam por se desfazer: ocorpo no mundo e o mundo no corpo, onde todos os atores so loc perceptivos mveis, interagindo uns com os outros, em um territrioque entendido por Munn nos termos de localicidade 24 atores emmovimento e transitoriedade vnculo entre territrio e atoresenquanto loc mveis de percepo (MUNN, 2006, p.94).

    nesse sentido que a autora prope uma reviso das noes detempo, territrio e paisagem, questionando seu entendimento nostermos de elementos estticos e externos aos atores e, portanto,independentes da cultura. O territrio e a paisagem antes restritos esfera da natureza, nesta perspectiva assumem outra dinmica: osautores estabelecem conexes estabelecidas pelos sujeitos queconformam tais esferas a partir de seus prprios referenciais, ou seja,atravs da ao e da presena de seus corpos, da presena e daausncia de outros corpos e de evidncias de que algo/algumaconteceu/esteve em determinado momento num determinado lugar(MUNN, 2006, p.95-96).

    Qualquer reflexo sobre mobilidade encontra-se intrinsecamenterelacionada compreenso das formas de espacialidade particulares. Asproposies de Munn contribuem para o entendimento da espacialidadeentre os grupos guarani na medida em que apresentam noesdesterritorializadas e ao mesmo tempo interativas da ocupao destesespaos.

    People-in-action not only produce boundaries andboundary experiences but, to paraphrase an idea of Simmels, are themselves boundaries (MUNN, 2006, p.95).

    No s diferentes grupos familiares guarani servem de refernciasespaciais uns para os outros, mas dependendo das relaesestabelecidas, estes prprios so entendidos como fronteiras. Tambm

    24 Uma traduo possvel para o termo locateness proposto por Munn.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    15/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    113

    nesse sentido a presena (e em alguns casos at mesmo os indcios) dealteridades, sejam elas humanas (os juru, os pongu 25, etc) ou no-humanas (a constar os mortos, as divindades, os animais e as plantas),servem de marcos na paisagem, percebidos e interpretados pelosGuarani em sua caminhada, cada um dos quais exigindo formasdistintas de procedimentos ou cuidados na relao de interao.

    A ttulo de exemplo, comum que a presena de um grupokaingang em determinado espao, seja ele uma terra indgena ou abeira de estrada, gere espaos de excluso, fronteiras e periferias,limites e rotas na mobilidade dos grupos guarani pelo perodo de tempoem que o outro grupo permanecer naquele espao. Aos Kaingang soatribudas caractersticas negativas como o desejo de sujeio e aanimalidade. Onde quer que existam terras indgenas demarcadascompartilhadas pelas etnias kaingang e guarani , geralmente esta ltimabusca estabelecer formas de isolamento de seus espaos tentandominimizar, quando no evitar, a presena da outra.

    In Organizing routes of Business travel, the Aboriginaltowns and settlements involved implicitly define theexcluded spaces to which they all become temporarilysubject. Although roads are relatively enduring, fixed,and bounded spaces with marked territorial limits, theroute is a temporary mobile field organized byreference to this traveling power center (MUNN, 2006,p. 94).

    Seja no contato com humanos ou no-humanos as possibilidadesde mobilidade refletem uma srie de fronteiras de alteridade cujamanuteno encontra-se em permanente negociao. Tais negociaesgeralmente se pautam em uma srie de prescries que refletem valorese delimitam quais so e quais no so os termos preferenciais de umdeslocamento ou interao.

    Os velhos dizem para os mais novos tomar cuidadocom as coisas dos juru, com o jeito dos brancos,seno vai e se perde. tudo teste, est nos testandopra ver se ficamos com raiva ou se nos perdemos,assim o juru nosso teste, foi desse jeito queNhnder quis (Ver Poty Benites).

    25 Atual denominaomby para os membros da etniakaingang .

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    16/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    114

    Os conselhos da kunh kara Tatati, registrados por Ciccarone emuma teko no estado do Esprito Santo, trazem tona algumas dasdificuldades enfrentadas pelos Guarani com relao s tentativas deimposio do modo de ser do branco nos termos do noreconhecimento do guat (caminhar) e da tomada das terras.

    Vocs precisam ser fortes e unidos. Tero com osbrancos muitas dificuldades em relao terra. Precisater firmeza, ficar mais, morar anos e anos no mesmolugar26. Tem que cultivar muito, fazer plantios, plantarmilho, mandioca (...) para que no falte alimento naaldeia e as crianas desfrutem disso. Antigamente tinhaespao livre para andar e hoje diferente. Os brancosse apoderam da terra como se fossem donos, mas elesno so os donos, o dono verdadeiro ande ruTenonde , ele o verdadeiro dono e ele que decidirsobre a terra, ele sabe como est a terra. Ns, filhoscaulas, temos que morar, construir uma aldeia nomeio dos matos e viver bem, em paz, juntos e emharmonia com a natureza porque isso foi o que anderu mostrou para ns, para ns viver deste jeito. Viverde acordo com que ande ru , o pai verdadeiro eNande-cy , a me verdadeira, criaram. Onde a genteviver e ficar bem, morar bem juntos, vive bem anderu koa pona (o todo da aldeia vive bem), para quetodas as criancinhas vivam felizes e saudveis. anderu fez a terra para todos os filhos dele e os brancosdevastaram os matos, destruram quase tudo e o poucoque restou, aquele que bom j tem dono, os brancoslevaram tudo e hoje em dia difcil achar um lugar queconvm, que bom para os Guarani ( kunh kara Tatatiapud CICCARONE, 2001, p. 80).

    Estas falas do lder e da xam so elucidativas de uma posiocom relao aos brancos e igualmente ilustram as consideraes deFredrik Barth (2000) sobre as fronteiras tnicas.

    Relaes intertnicas estveis permitem umaarticulao em alguns setores ou domnios deatividades especficos e um conjunto de interdies ouproscries com relao a determinadas situaessociais, de modo a evitar interaes intertnicas em

    26 Tambm Dario Tup, no perodo em que foi cacique dateko Jataty , em 2006, comentou anecessidade de permanecer mais em um mesmo lugar como um mal necessrio, uma dificuldade que osGuarani teriam que enfrentar no contato com osbranco .

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    17/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    115

    outros setores (BARTH, 2000, p. 35).

    Tal qual a religiosidade e a linguagem, a mobilidade constitui-seem um forte marco de alteridade guarani , de forma que mesmo a

    percepo das noes de espacialidade e mobilidade do outro podem seconfigurar em fronteiras de alteridade. O reconhecimento do contrasteevidencia-se nos modos de se denominar este outro.

    Segundo Santiago Franco, na linguagem dos xams ( ayv por )27, existem formas de denominao mais antigas conferidas aosbrancos yvypkuery e hetava kuery. A denominao yvypkuery apontada nas etnografias de Ladeira (2001, p. 73-74) e Fagundes(2007, p. 42-43) remetem a diferentes significados: os que so a moda terra, os que brotam da terra e os que se agarram terra.

    Cadogan (1960, p. 134) apresenta uma denominao semelhante, yvyp amboa, para se referir aos estrangeiros que, segundo seusinterlocutores, surgiram na terra muito posteriormente ao surgimentodos Guarani .

    A expresso hetava kuery tambm remete relao dos brancos com a terra. Segundo Vher Poty, com base nas informaes deAlexandre Acosta e de sua av, esta expresso significa aqueles queso tantos quanto as formigas, os que vivem amontoados comoformigas ou os que surgiram da mesma forma que formigas.

    Um kara fica aqui um tempinho, faz contato comNhnder que mostra qual o lugar que importantepara ele ir. Na opy Nhnder diz o lugar para ter sadee conhecimento. Ento diz para os outros o que ficousabendo e t sempre lembrando que a terra sagradatambm. Agora o branco pensa que a terra s terra,mas ela sagrada porque foi feita pelo que veioprimeiro. No pra ficar num lugar o tempo todo, porisso que as famlias mudam pra outro lugarzinho. Prans assim. Claro que na viso do branco diferente,o branco fica onde tem mais emprego, dinheiro, mais

    salrio. Pra ns no, guarani tem que caminhar pra tersade e conhecimento do mundo (Santiago Franco,Salto do Jacu, outubro de 2008).

    exceo das divindades, o risco de se relacionar com taisalteridades nos termos indesejados reside em grande medida na27 Literalmente Bela fala, ou sagradas palavras.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    18/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    116

    possibilidade de abandonar a prpria perspectiva (do seu grupo)assumindo a perspectiva do outro (TAYLOR, 1993, p. 673; VIVEIROS DECASTRO, 2002, p.355).

    Os grupos tnicos s se mantm como unidadessignificativas se acarretam diferenas marcantes nocomportamento, ou seja, diferenas culturaispersistentes. No entanto, havendo interao entrepessoas de diferentes culturas, seria esperado queessas diferenas se reduzissem, uma vez que ainterao tanto requer como gera certa congruncia decdigos e valores em outras palavras a similaridadeou comunidade cultural. Assim, a persistncia degrupos tnicos em contato implica no apenas aexistncia de critrios e sinais de identificao, mastambm uma estruturao das interaes que permita

    a persistncia de diferenas culturais (BARTH 2000, p.35).

    A cosmopoltica guarani se manifesta mais vigorosamente dianteda possibilidade de imposio de outras perspectivas. Os juru - e aforma como estes outros ocupam e reordenam os territrios, a base deremoes foradas e polticas de confinamento - so temas constantesnas falas dos kara , e ganham tratamentos semelhantes a outrosobstculo/testes erigido pelos deuses 28.

    O modo como a cosmologia constantemente (re)elaborada, arepresentao de si e a relao com o outro e, conseqentemente, aspossibilidades de mobilidade se do de acordo com o imaginado, osonhado, o projetado, o suposto e o profetizado (CRAPANZANO, 2005).Nestes espaos liminares a simbolizao mais se aproxima dainventividade.

    No entanto, a inventividade da mesma forma que a imaginao,o sonho, a suposio e a profecia no se encontra desvinculada deelementos prvios, pressuposies sobre o que o real. Comoargumenta Vincent Crapanzano em Horizontes imaginativos (2005), oreal , em muitos sentidos, constitudo com base no irreal, noimaginado. O percebido tomado como desdobramento do pr-percebido e, mesmo que este permanea ao oculto, faz-se presente

    28 O oceano e os grandes rios que se colocam no caminho dos guarani em sua busca pela aproximaocom os deuses so vistos tambm como grandes testes e obstculos erigidos pelas divindades.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    19/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    117

    fundamentando a constituio de toda percepo.

    O alm sempre depende de como o encaramos. Nossasimagens, sonhos, projees, clculos e profecias podemdar forma e substncia ao alm, mas, ao faz-lo,destroem-no; pois, enquanto o constroem, garantemseu deslocamento. E esse deslocamento abala nossaspremissas acerca da realidade, base sobre a qualnossas construes so feitas (CRAPANZANO, 2005, p.365).

    Histrias ouvidas a beira do fogo, exaltaes dos kara, belaspalavras, rituais de cura e ataques xamnicos, entre outros fatos reais,so importantes elementos do pr-texto, do pr-percebido,constituintes do horizonte imaginativo guarani . Nele o aguyj , o

    kandire , os deuses e seus atributos, permanecem passos alm de ondequalquer um na condio imperfeita da humanidade pode chegar.Nesse sentido a mobilidade guarani , da mesma forma que a

    fixidez eurocentrada, constitui-se a partir dos sinais, daspotencialidades e dos limites conferidos a diferentes espaos, cada qualconformada por seu prprio conjunto referencial.

    Supomos, acertadamente, creio, que a distncia quenos define nasce de nossa habilidade de representarsimbolicamente o mundo, inclusive ns mesmos. O que

    parece escapar a esse acento no simblico a relaodeste com a possibilidade imaginativa com aesperana, com o optativo, com os modos como osubjuntivo concebido por nossas gramticas(CRAPANZANO, 2005, p. 364).

    Em consonncia ao entendimento da paisagem ou do outro, aspossibilidades imaginativas carregam em si limitaes. Do mesmo modoque os Harki 29 e suas experincias dolorosas, evocados como exemplopor Crapanzano (CRAPANZANO, 2005, p. 371), geralmente os Guarani interpretam suas adversidades nos termos do teste e do mundoimperfeito sob a amplitude de suas referncias religiosas. So estasreferncias tambm que fornecem possibilidades de respostas: formaspreferenciais atravs das quais se espera resolver e/ou superar os

    29 Argelinos que lutaram na Guerra de Independncia da Arglia em favor da continuidade do domniofrancs, e depois da independncia foram alvos de retaliaes. Obrigados a migrar para a Frana ondetambm sofreram uma srie de adversidades.

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    20/22

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    21/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio , Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009.

    119

    Internacional de Lingstica, 2006. Disponvel em:http://www.sil.org/americas/brasil/LANGPAGE/ENGLGNPG.HTM . Acesso em: 19out. 2009.

    FAGUNDES, Luiz Fernando.Xondaro ha yvyp kuery: o guardio-guerreiro Mby

    e a mo dona-controladora da Terra: uma relao pautada pelo conflito. Monografia deConcluso (Bacharelado Cincias Sociais) IFCH, UFRGS, [2007].

    GARLET, Ivori Jos.Mobilidade Mby: histria e significao. 1997. 229 f.Dissertao (Mestrado em Histria Ibero-Americana) - PUC-RS, [1997].

    LADEIRA, Maria Ins.O caminhar sob a luz : o territrio Mby a beira do oceano.1992. 199 f. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) PUC-SP, [1992].

    ______.Espao Geogrfico Guarani -Mbya : significado, constituio e uso. 2001. 236f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) FFLCH, USP, [2001].

    MELI, Bartolomeu. A experincia religiosa Guarani. In: MARZAL, Manuel et al.Orosto ndio de Deus. So Paulo: Vozes, 1989. p. 293-357.

    MELLO, Flvia.Aata Tap Rup Seguindo pela estrada: uma investigao dosdeslocamentos territoriais realizados pelas famlias Mby e Chirip Guarani no Sul doBrasil. 2001. 156 f. Dissertao (Mestrado em Antropologia) - PPGAS, UFSC, [2001].

    MONTARDO, Deise Lucy Oliveira.Atravs do Mbaraka : msica e xamanismoGuarani. 2002. 277 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofiae Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, [2002].

    MUNN, Nancy. Excluded Spaces: the Figure in the Australian Aboriginal Landscape.In: SETHA, Low; LAWRENCE-ZIGA, Denise.The Anthropology of space andplace . Oxford: Blackwell, 2006. p. 92-109.

    NIMUENDAJU, Kurt Unkel.As lendas da criao e destruio do mundo comofundamentos da religio dos Apapocva Guarani . So Paulo: HUCITEC/USP, 1987.

    PISSOLATO, Elizabeth de Paula.A durao da pessoa : mobilidade, parentesco examanismo mbya (guarani ). Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2006.

    SAHLINS, Marshall. O pessimismo sentimental e a experincia etnogrfica: por que acultura no um "objeto" em via de extino.Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n.1, p. 41-73,1997.

    SCHADEN, Egon.Aculturao indgena . So Paulo: Editora da USP, 1969.

    ______.Aspectos fundamentais da cultura Guarani . So Paulo: Editora da USP,1974.

    SOUZA, Jos Otvio Catafesto de.Pesquisando o Jeguata Tepe Por: dimenses

  • 8/9/2019 Jeguat: O Caminhar entre os Guarani

    22/22

    LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA - Jeguat : o caminhar entre os guarani

    Espao Amerndio Porto Alegre v 3 n 2 p 99-120 jul /dez 2009

    120

    culturais, econmicas e ambientais do belo caminho da tradio Mby-Guarani no RioGrande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2005.

    SOUZA PRADELLA, Luiz Gustavo.Nhe vai haegi Mba'avyky: o fazer, o falar eo ser Guarani de outras inspiraes. 2006. 76 f. Monografia de concluso (Bacharelado

    em Cincias Sociais) IFCH, UFRGS, [2006].______.Entre os seus e os outros: horizonte, mobilidade e cosmopoltica guarani.2009. 116 f. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) PPGAS, UFRGS,[2009].

    TAYLOR, Anne-Christine.Des fantmes stupfiants : language et croyance dans lapense achuar. Paris: LHomme, 1993. p. 126-128 e 429-447.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na Amricaindgena. In: ______.A Inconstncia da alma selvagem e outros ensaios deantropologia . So Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 345-399.