Harry Potter e a Pedra Da Narrativa

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Letcia de Souza Peixe

HARRY POTTER E A PEDRA DA NARRATIVA

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2009

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Letcia de Souza Peixe

HARRY POTTER E A PEDRA DA NARRATIVA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Lingstica do Texto e do Discurso. rea de Concentrao: Lingstica do Texto e do Discurso Linha de Pesquisa: E Anlise do Discurso Orientadora: Prof. Dr. Glaucia Muniz Proena Lara.

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2009

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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos

Dissertao defendida por Letcia de Souza Peixe em 27/03/2009 e aprovada pela Banca Examinadora constituda pelos Profs. Drs. relacionados a seguir:

________________________________________________ Profa. Dra. Glaucia Muniz Proena Lara FALE/UFMG Orientadora

______________________________________________ Prof. Dr. Dilson Ferreira da Cruz Escola de Contas Eurpedes Sales So Paulo

_______________________________________________ Profa. Dra. Ana Cristina Fricke Matte FALE/UFMG

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AGRADECIMENTOS

CAPES, pela bolsa de estudos, concedida no perodo de maro de 2007 a fevereiro de 2009, que permitiu a realizao deste trabalho. Profa. Dra. Glucia Muniz Proena Lara, cuja orientao no poderia ser mais correta e atenciosa. Profa. Dra. Ana Cristina Fricke Matte, pela introduo aos caminhos da semitica. Ao PosLin e Fundep, por permitir a expanso de meus horizontes, com o auxlio participao em eventos. Aos colegas da ps-graduao, especialmente Daniervelin e Mara, sempre prestativas e conselheiras. Aos familiares e amigos, que sempre trazem alegria minha vida.

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RESUMO

No presente trabalho, analisamos, luz da semitica greimasiana, o livro Harry Potter e a pedra filosofal, escrito pela inglesa J. K. Rowling (2000) e traduzido para o portugus do Brasil por Lia Wyler, tomando-o, portanto, primordialmente como um objeto de significao, o que implica explicitar seus mecanismos intradiscursivos de produo do sentido. Verificamos, dessa forma, como se estrutura o plano de contedo desse texto, de modo a obter parmetros para compar-lo aos contos de fadas infantis, a partir da hiptese de que ele ecoaria ou atualizaria elementos recorrentes nessas histrias. Nossa anlise enfocou, em especial, o nvel narrativo, tal como foi proposto pelo percurso gerativo de sentido. Nesse contexto, Vladimir Propp, um dos precursores da semitica greimasiana, cujos trabalhos sobre o conto maravilhoso russo muito contriburam para a constituio do nvel narrativo, possibilitou-nos uma comparao mais acurada com os contos de fadas tradicionais por meio das trinta e uma funes por ele elencadas. Os resultados obtidos revelam que, sob a variabilidade da superfcie textual do livro de J. K. Rowling, encontram-se invariantes tambm presentes nos contos citados, alm de muitas das funes proppianas. Assim, percebemos que Harry Potter e a pedra filosofal no uma passagem isolada na histria da literatura infanto-juvenil mundial, mas apenas mais um captulo dela, possuindo profundas razes nos contos de fadas mais tradicionais. Por fim, abordamos, de forma sucinta, algumas questes ideolgicas e discutimos a relao de empatia entre a obra e o pblico-leitor, a partir do seu carter, ao mesmo tempo, invariante e variante, ou seja, tradicional e renovador, o que, acreditamos, ajuda-nos a elucidar seu sucesso.

PALAVRAS-CHAVE: Harry Potter; discurso; plano do contedo; contos de fadas.

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ABSTRACT In this paper, we analize through the lights of Gremasian semiotics, the book Harry Potter and the Sorcerers Stone, written by British writer J.K Rowling (2000) and translated to Brazilian Portuguese by Lia Wyler, taking it primarily as an object of meaning, which means to make evident its intradiscursive mechanisms of producing meaning. By doing so, we verify how the content plan of this text is structured, so that we obtain parameters to compare it to children fairy tales, considering the hipothesis that it echoes or uses recurring elements in these stories. Our analysis focused primarily on the narrative level, as it was proposed by the generative course of sense. In this context, Vladimir Propp, one of the precursors of Gremasian semiotics, whose works about wonderful Russian folk tales have greatly contributed to the constitution of the narrative level, enabled us to make a more accurate comparison with traditional fairy tales through the thirty-one functions by him defined. The achieved results reveal that, under the variability of the textual surface of J. K. Rowlings book, there are constants also found on the aforementioned tales, besides many of the Proppian functions. We therefore notice that Harry Potter and the Sorcerers Stone is not an isolated passage in the history of worlds children literature: it is only one of its chapters, with deep roots in traditional fairy tales. Finally, we approach, succinctly, some ideological issues and we discuss the empathy between the book and its public, through its constant and, at the same time, variant nature, that is, traditional and innovative, which we believe helps us understand its success. KEY-WORDS: Harry Potter; discourse; content plan; fairy tales.

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SUMRIO

INTRODUO .................................................................................................................. 7

CAPTULO 1: PRESSUPOSTOS TERICOS E METODOLGICOS ................... 16 1. Delimitao e tratamento do corpus ............................................................................... 16 2. A semitica gremaisiana como opo terica ................................................................ 17 3. Variantes e invariantes do conto maravilhoso: as contribuies de Propp .................... 27

CAPTULO 2: ANLISE SEMITICA DE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL....................................................................................................................... 34 1. Primeira histria ............................................................................................................. 34 1.1. Sntese ......................................................................................................................... 34 1. 2. Anlise da primeira histria ....................................................................................... 36 1.2.1. Nvel fundamental .................................................................................................... 36 1.2.2. Nvel narrativo .......................................................................................................... 38 1.2.3. Nvel discursivo ........................................................................................................ 42 2. Segunda histria ............................................................................................................. 47 2.1. Sntese ......................................................................................................................... 47 2.2. Anlise da segunda histria ......................................................................................... 58 2.2.1. Nvel fundamental .................................................................................................... 58 2.2.2. Nvel narrativo .......................................................................................................... 58 2.2.3. Nvel discursivo ........................................................................................................ 71 3. Ponto de articulao das histrias e a questo da ideologia ........................................... 78

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CAPTULO 3: HARRY POTTER E OS CONTOS DE FADAS ................................. 82

CONCLUSO .................................................................................................................. 93

REFERNCIAS ............................................................................................................... 97

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INTRODUO

A histria do menino de onze anos, chamado Harry Potter, inicia-se no livro Harry Potter e a pedra filosofal, escrito pela inglesa J. K. Rowling (2000) e traduzido para o portugus do Brasil por Lia Wyler1, e se desenrola ao longo de sete volumes, tendo o ltimo deles, Harry Potter e as relquias da morte, sido publicado em 2007. No primeiro livro da srie, que constitui nosso objeto de estudo, o protagonista, que at ento vivia com seus tios, o Sr. e a Sra. Dursley, descobre-se bruxo quando completa onze anos de idade. Segundo o que vem a saber, seus pais, que eram tambm bruxos, foram mortos pelo maligno Lord Voldemort. Do massacre que envolveu a morte de seus pais, apenas Harry Potter misteriosamente sobreviveu. Desse fato, decorre sua imensa fama no mundo dos bruxos, fama essa que o menino no conhecia at ento. No seu dcimo primeiro aniversrio, Harry avisado de sua condio especial e convidado a estudar em uma escola s para bruxos, Hogwarts, para a qual ele se dirige. No mundo mgico que Harry conhece desde ento, ele faz amigos muitos fiis que sero seus companheiros de aventura, Hermione Granger e Ronald Weasley, como tambm inimigos, Draco Malfoy e sua turma, por exemplo. Ali ele encontrar perigos, quando perseguido pelos seguidores do Lord Voldemort e pelo prprio bruxo maligno. Para vencer tais desafios, Harry contar com seus companheiros e com o diretor do colgio, Alvo Dumbledore, que tambm se torna seu amigo, assim como o guarda-caa de Hogwarts, Rbeo Hagrid.

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Lia Wyler tradutora desde 1969. Em seu currculo encontram-se livros de autores de lngua inglesa como Henry Miller, Joyce Carol Oates, Margaret Atwood, Gore Vidal, Tom Wolfe, Sylvia Plath, Stephen King e vrios outros. No entanto, foi apenas com as tradues da srie de Harry Potter que Lia conseguiu maior fama. A tradutora se formou em Letras pela PUC-Rio e fez mestrado em Comunicao pela Eco-UFRJ (WYLER, 2009).

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Essa histria de cunho fantstico e, principalmente, foi por ocasio de seu lanamento muito debatida pela mdia por diversos motivos. Seu sucesso estrondoso espantou a todos por se tratar de um livro infantil que virou um best-seller mundial em uma poca em que a televiso e o computador tomam conta da vida das crianas. O termo best-seller aqui compreendido como um texto literrio muito bem recebido pelo pblicoleitor (SODR, 1988, p. 6). Quando, em um contexto como esse, no qual a mdia audiovisual est presente maciamente no cotidiano das pessoas, as crianas, um dos maiores pblicos desse tipo de mdia, interessam-se por livros de, no mnimo, 250 pginas, temos um fenmeno (JACOBY, 2002, p. 184 e 187). Como afirma Philip Hensher, um fenmeno espantoso. J. K. Rowling conseguiu incentivar as crianas a lerem um livro, a adquirirem o hbito da leitura, e o fez com livros que as confrontam com um vocabulrio com o qual elas no tm familiaridade (HENSHER, 2000, p. 5). Entretanto, esse fenmeno editorial no tem desfrutado apenas de elogios. O mesmo Philip Hensher lembra que o livro do bruxinho ingls deve ser visto com ressalvas, j que no devemos confundir o sucesso da ferramenta pedaggica com mrito literrio (HENSHER, 2000, p. 5). Para ele, assim como para dezenas de outros crticos da obra de J. K. Rowling, o sucesso de Harry Potter tem causas especficas. Segundo o comentador ingls,

As crianas gostam dos livros em parte porque esto familiarizadas com as convenes que regem as histrias sobre escolas internas e gostam de v-las repetidas [...] alm disso, sabem exatamente o que querem ver quando se trata de magia e do sobrenatural, e os livros percorrem todas os convencionais feitios, vassouras de bruxas, magos e feiticeiros, sem pensar duas vezes (HENSHER, 2000, p. 5).

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No atual contexto do mercado literrio, o crtico norte-americano Harold Bloom, em entrevista revista Veja, afirma que o papel da literatura deve ser repensado (MOURA, 2001, p. 11). Pode-se ponderar, em decorrncia do fato de Bloom reforar a importncia da literatura, inclusive em contextos to desfavorveis a ela como o atual, que cabe a ns, estudiosos dos discursos que circulam na sociedade atual, problematizar esse fenmeno, levando principalmente em conta os jovens leitores ainda em formao. No Brasil, como no restante do mundo, a obra em questo alcanou imenso sucesso, tornando-se, destarte, tanto um fenmeno editorial, quanto um representante do que, como j foi dito, podemos chamar de best-seller (SODR, 1988, p. 6). Essa classificao insere-se no contexto no qual o mercado literrio divide-se em duas literaturas, de acordo com suas diferentes regras de produo e consumo. De acordo com Neves (2002, p. 3),

Persiste, tanto no meio acadmico quanto no espao das mdias e, por que no dizer, no senso comum, a idia de que h basicamente dois modos de se fazer literatura, tendo em vista o pblico-alvo: um deles direcionado a um leitor exigente (logo, restrito), associado qualidade formal, reflexo e aos grandes temas, e o outro, direcionado ao grande pblico, associado m qualidade formal, aos clichs e ao mero entretenimento.

As obras pertencentes ao primeiro modo de se fazer literatura tm, normalmente, circulao numa esfera socialmente reconhecida como culta, que pode ser a escola ou a academia (SODR, 1988, p. 6). As produes referentes ao segundo, por outro lado, perfazem o que se denomina literatura de massa, que, segundo Sodr (1988, p. 6), no tem suporte escolar ou acadmico: seus estmulos de produo e consumo partem do jogo econmico da oferta e procura, isto , do prprio mercado. Vale, entretanto, lembrar que um livro da dita literatura culta pode tornar-se um best-seller, por receber ampla aceitao popular, bem como um pertencente literatura

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de massa pode ter sido redigido de maneira refinada e ser consumido por leitores cultos (SODR, 1988, p. 6). A questo, portanto, mais complexa. Como afirma Cortina (2004, p. 187), dizer simplesmente que o valor literrio de uma obra reside em seu trabalho com a linguagem cair no lugar comum, pois a valorizao desse trabalho est ligada a uma sano de um pblico que tem autoridade para reconhecer seu valor. Refora-se, de tal modo, a idia de que o valor literrio de um texto no algo intrnseco e imanente, mas depende da avaliao daqueles que o consomem. Por ser, alm de um best-seller, um exemplar tpico da literatura de massa, Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) pode ser considerado um timo objeto de estudo para tentarmos, no somente entender os novos hbitos infantis de leitura, mas tambm as motivaes que atraem uma parte to grande de uma sociedade com pouco interesse literrio, como a nossa, para a apreciao de um livro. Sendo assim, tal produo tem grande importncia para todos aqueles interessados em leitura: leitores, crticos literrios, professores, editores, analistas de discurso etc. Contardo Calligaris, considerando tratar-se de um livro dos mais populares, concorda com as opinies j apresentadas anteriormente e afirma que os livros de J.K. Rowling so um fenmeno (CALLIGARIS, 2000, p. 10). E, como vrios outros, tenta fornecer explicaes pertinentes para tamanho sucesso. Segundo o psicanalista (que tambm articulista da Folha de S. Paulo), o livro Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) est dentro do contexto de livros infantis com histrias que repetem uma espcie de mito fundador da modernidade: um conto de criana que trata do herosmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autnomo. Para ele, alm disso, as crianas tambm gostam da estrutura de romance, que segue cuidadosamente as anlises legadas pelos tericos narrativos da histria folclrica (CALLIGARIS, 2000, p. 10).

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Finalmente, Jacoby (2002, p. 191), tambm buscando explicar o enorme sucesso de Rowling, afirma que essa autora aliou o conhecimento dos clssicos infantis e personagens mundialmente conhecidos ao seu inquestionvel talento para criar uma boa histria, recheada de detalhes e surpresas. A identificao do universo do leitor com o do texto primordial para a literatura de fico, ocorrendo nos trs nveis da instncia da enunciao: o actorial, o temporal e o espacial. E esse processo que podemos observar no fenmeno Harry Potter. Como afirma Cortina (2004, p. 176): o processo de leitura desencadeado pela srie Harry Potter caminha em direo ao reconhecimento de um sujeito, de um tempo e de um espao contemporneos na trama da histria de fico. O autor destaca ainda a proximidade dessas histrias com o romance policial, o que tambm explicaria seu enorme sucesso.

Do ponto de vista textual, a srie de Harry Potter recupera e remodela a estrutura do romance policial, pois o desenrolar da narrativa se constri normalmente em funo da descoberta de um mistrio. [...] O que as histrias de Rowling mantm dos romances policiais exatamente a busca da resoluo de um ato enigmtico que s ser inteiramente compreendido no final da narrativa (CORTINA, 2004, p. 183).

A nosso ver, todas essas opinies, apesar de contriburem para a discusso do fenmeno Harry Potter, no so suficientes para abarcar sua amplitude e complexidade. Diante desse quadro, acreditamos que atualmente h ainda espao para se pesquisar um fenmeno literrio como Harry Potter. Segundo nosso ponto de vista, as teorias do texto/do discurso tm a responsabilidade de se ocupar de um livro que j pode ser considerado um marco mundial da literatura moderna. Inclusive porque, como pudemos perceber, h consenso quanto a seu xito junto ao pblico infantil e mesmo quanto a seu valor pedaggico (ainda que com algumas ressalvas), mas no quanto a seu valor enquanto

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narrativa maravilhosa, lacuna para a qual o presente trabalho pretende dar sua modesta contribuio. Assim, nossa proposta analisar o livro Harry Potter e a pedra filosofal, com o intuito de, a partir da semitica greimasiana, conhecer seu contedo, sua estrutura, enfim, os elementos que, especialmente no Brasil, prendem crianas to comumente dispersas. Pretendemos verificar como se estrutura o plano de contedo desse texto, de modo a obter parmetros para compar-lo aos contos de fadas infantis, tendo em vista a hiptese de que ele ecoa ou atualiza elementos recorrentes nessas histrias, o que explicaria seu enorme sucesso internacional, e principalmente nacional, encantando desde crianas e adolescentes at adultos. A anlise da obra focalizar os trs nveis do percurso gerativo de sentido, uma vez que eles se articulam e se complementam, mas dar mais destaque ao nvel narrativo (sobretudo sintaxe), uma vez que se trata de um texto com um componente pragmtico muito forte, ou seja, uma histria centrada na ao. Desse modo, a pedra narrativa referida no ttulo nortear o desenvolvimento do trabalho. Nesse contexto, Vladimir Propp, um dos precursores da semitica greimasiana, cujos trabalhos sobre o conto maravilhoso russo muito contriburam para a constituio do nvel narrativo, ser, evidentemente, de grande valia para nosso estudo, uma vez que Harry Potter e a pedra filosofal no uma passagem isolada na histria da literatura infantil mundial, mas apenas mais um captulo dela. Sendo assim, podemos perceber, como tambm parece suspeitar Calligaris na citao anteriormente reproduzida, que a histria do menino bruxo tem profundas razes nos contos de fadas mais tradicionais. Propp prope que os contos maravilhosos constituem-se pela repetio de funes, [...] as funes em movimento de construo orgnica da estrutura [...], por um lado, e, por outro, pela [...] prpria estrutura como historicamente motivada e

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geneticamente explicada (BEZERRA, 2002, p. XVII). Dessa forma, ao adotar as idias proppianas, podemos comparar metodologicamente a estrutura da primeira obra de J. K. Rowling dos contos de fadas, a partir tanto das funes que se repetem nesses textos, como de suas razes histricas. Como afirma Fiorin (1999), a prpria noo de percurso gerativo de sentido radica-se no trabalho de Propp, que busca as regularidades subjacentes imensa variedade das narrativas que analisa, num procedimento semelhante ao do fonlogo, que se pergunta, diante da imensa variedade da realizao dos sons, como os falantes compreendem sempre a mesma unidade fnica da lngua. Procura, assim,

[...] apreender, em meio diversidade imensa de modos de manifestao da narrativa (oral, escrita, gestual, pictrica, etc.), de tipos de narrativa (mitos, contos, romances, epopias, tragdias, comdias, fbulas, etc.) e de realizaes concretas, as invariantes narrativas. Separa dessa forma uma langue narrativa de uma parole narrativa. Como os fonlogos que distinguiram os fonemas, unidades da lngua, dos sons, unidades da parole, diferencia as estruturas abstratas e invariantes dos seus revestimentos concretos, responsveis pela singularidade de cada narrao tomada individualmente (FIORIN, 1999, p. 179).

Em suma, de acordo com Fiorin (1999, p. 179), tanto Greimas quanto Propp buscam identificar um nmero finito de unidades diferenciais e de regras combinatrias que se tornam responsveis pelo engendramento das relaes internas do texto, definindo, portanto, a estrutura da narrativa, isto , o conjunto fechado de relaes internas que se estabelecem entre um nmero finito de unidades. importante observar que a proposta da presente pesquisa surgiu a partir das discusses do grupo de estudos intitulado Grupo de Estudos Semiticos da UFMG UFMGES, iniciado no primeiro semestre de 2005, no qual, orientados pelas Professoras Doutoras Ana Cristina Fricke Matte e Glaucia Muniz Proena Lara, alunos de graduao se renem semanalmente com o objetivo de se inteirarem acerca da teoria semitica do texto,

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realizarem pesquisas com base nessa teoria e publicarem artigos que divulguem as pesquisas realizadas a partir das discusses do grupo. Em sntese: propomo-nos discutir o fenmeno literrio Harry Potter no contexto cultural brasileiro da atualidade, utilizando a semitica francesa (ou greimasiana) para estudar os mecanismos intradiscursivos de constituio do sentido. Para tanto, tomaremos o primeiro livro da srie Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) e analisaremos seu plano de contedo, enfocando os trs nveis do percurso gerativo, mas, sobretudo, o patamar narrativo, com o intuito de contribuir para com os estudos lingsticos/discursivos do livro em questo. Considerando, por outro lado, como Fiorin (2005, p. 21), que no nvel discursivo (componente semntico) que se revelam, com plenitude, as determinaes ideolgicas, no nos furtaremos a examinar, ainda que brevemente, alguns aspectos ideolgicos que subjazem ao livro. Alm disso, luz dos trabalhos de Vladimir Propp, buscaremos comparar a obra em estudo aos contos de fadas, de modo a compreender melhor sua estrutura e suas razes histricas. Com isso, esperamos encontrar elementos que nos permitam explicar o fenmeno literrio em que se transformou o livro da inglesa J. K. Rowling. Esta dissertao compe-se de trs captulos. No Captulo 1, apresentaremos os pressupostos terico-metodolgicos que nortearo a anlise do corpus, com a justificativa de nossa opo pela semitica greimasiana e, dentro dela, pela maior nfase dada ao nvel narrativo do percurso gerativo de sentido, modelo proposto para o exame do plano de contedo dos textos. Nesse captulo, tambm descreveremos as contribuies de Vladimir Propp e buscaremos justificar sua pertinncia para nosso estudo. J no Captulo 2, enfocaremos propriamente a anlise semitica de Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) e faremos algumas breves incurses pela ideologia (relao texto/determinaes scio-histricas). No Captulo 3, finalmente,

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examinaremos as intersees entre o livro de Rowling e os contos de fadas. Para tanto, faremos levantamentos e comparaes com as funes elencadas por Propp no estudo do conto maravilhoso russo.

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CAPTULO 1 PRESSUPOSTOS TERICOS E METODOLGICOS

1. Delimitao e tratamento do corpus

A escolha do livro Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) como nosso objeto de estudo deve-se ao fato de ser este o primeiro livro de uma srie de sete, escritos por J. K. Rowling. Por esse motivo, a porta de entrada para os demais, tendo j vendido, de acordo com a editora Rocco, que publica os livros do bruxinho no Brasil, 30 milhes de exemplares em 35 idiomas e em mais de 200 pases (ROWLING, 2008). Alm disso, a menor obra da srie, contando com 264 pginas, o que torna sua anlise mais vivel, tendo em vista os limites de tempo e espao de uma dissertao de mestrado. No que se refere ao estudo da obra, pretendemos dividi-la em duas histrias que se articulam e se complementam na construo da histria maior. Na primeira, que se estende do Captulo 1 ao 4, Harry ainda no se sabe bruxo; j na segunda histria, bem mais extensa, uma vez que comea no Captulo 5 e vai at o final do livro (Captulo 17), o protagonista, aps tomar conhecimento da sua condio especial, deixa o espao familiar e passa a viver em Hogwarts (onde aprende magia), defronta-se com desafios em sua vida estudantil e, por fim, confronta-se com seu maior inimigo, Lord Voldemort. Vemos que essas duas histrias tm como ponto de articulao um fazer cognitivo que leva o actante-sujeito (o ator Harry Potter do nvel discursivo) passagem de um no-saber a um saber sobre sua condio de bruxo. Em relao s modalidades veridictrias, que articulam o ser e o parecer, como veremos na prxima seo, isso implica a revelao de um segredo: inicialmente, Harry no parece, mas bruxo (segredo) e, com a revelao, passa a parecer

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e ser bruxo (verdade), assumindo plenamente sua condio e dando, portanto, seqncia s peripcias do livro.

2. A semitica gremaisiana como opo terica

Segundo Fiorin (1995, p. 163), a semitica francesa, como as teorias do discurso em geral, surgiu no momento em que a Lingstica propunha-se a estudar fatos que no eram abarcados por seus objetos anteriores: a lngua como sistema e a competncia lingstica do falante. Com a ebulio dessas vrias teorias, surgiram tambm diferentes concepes de texto/discurso. A teoria semitica (francesa), fundada por Algirdas J. Greimas, ficando, por esse motivo, conhecida tambm como semitica greimasiana, compreende o texto, sobretudo como um objeto de significao. Portanto, ressalta, em seu estudo, os mecanismos intradiscursivos que o compem. Nessa perspectiva, toma o texto como a juno de um plano de contedo e um plano de expresso, sendo que o plano de contedo o lugar dos conceitos e o de expresso, o da exteriorizao desses conceitos (DANTAS; PEIXE, 2006). Sendo, pois, o texto tomado primordialmente como um objeto de significao, exatamente a significao, o sentido, que o objeto da semitica, cuja principal preocupao explicitar, sob a forma de uma construo conceitual, as condies da apreenso e da produo do sentido (BERTRAND, 2003, p. 16). Para a anlise da significao textual, a semitica dispe de um modelo que procura apreender a significao e suas estruturas. Trata-se do percurso gerativo de sentido (ver quadro a seguir), que consiste em uma sucesso de nveis, que vo do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Nessa sucesso, ocorre um processo de enriquecimento

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semntico (FIORIN, 1995, p. 164), em que o primeiro nvel concretizado pelo segundo, que, por sua vez, concretizado pelo terceiro e ltimo. Cada um desses nveis composto por uma semntica e uma sintaxe. A semntica entendida aqui como os contedos investidos nos arranjos sintticos e a sintaxe, como um conjunto de mecanismos que ordena os contedos.

Quadro 1 (GREIMAS & COURTS, 2008, p. 235)

O nvel mais simples e abstrato o fundamental, constitudo pelas estruturas elementares de produo do sentido. O componente semntico desse nvel refere-se (s) categoria(s) semntica(s) de base ou oposies semnticas a partir das quais se constri o sentido do texto (BARROS, 2005, p. 10), como, por exemplo, /vida/ vs /morte/, /liberdade/ vs /opresso/ etc. Os termos que se opem numa categoria recebem valorizao positiva ou negativa (so euforizados ou disforizados). J no mbito da sintaxe

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fundamental, articulam-se as categorias semnticas a partir das operaes de assero e de negao, como se v no quadrado semitico que segue, no qual usaremos a categoria semntica de base /vida/ vs /morte/, a ttulo de ilustrao:

S1 Vida

S2 Morte

~S2 No-morteFigura 1

~S1 No-vida

Os termos S1 e S2, no caso, /vida/ e /morte/, so considerados, entre si, contrrios, enquanto os termos ~S1 e ~S2, /no-vida/ e /no-morte/, so subcontrrios. J os termos S1 /vida/ e ~S1 /no-vida/, bem como S2 /morte/ e ~S2 /no-morte/ so considerados contraditrios. Entre os termos S1 /vida/ e ~S2 /no-morte/ e entre S2 /morte/ e ~S1 /no-vida/, temos uma relao de complementaridade (BARROS, 2001, p. 21). No nvel narrativo, que nos interessa mais de perto no presente trabalho, ocorre a concretizao das categorias semnticas do nvel fundamental, ou seja, os valores axiolgicos virtuais desse nvel so atualizados, assumidos por um sujeito na sua relao com um dado objeto (que se torna, assim, um objeto-valor ou Ov). Constri-se, dessa forma, um simulacro da ao do homem no mundo. No mbito da sintaxe narrativa, h dois tipos de enunciados elementares: os enunciados de estado e os de fazer. Os primeiros so determinados pela relao de juno conjuno ou disjuno do sujeito com o objeto, podendo, portanto, ser considerados

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estticos. J os enunciados de fazer so dinmicos, pois englobam as transformaes de um estado para outro. Quando um enunciado de fazer rege um enunciado de estado, temos um programa narrativo ou PN considerado o sintagma elementar da sintaxe narrativa. Pode-se afirmar que, nesse caso, o enunciado de fazer um enunciado modal, aquele que rege ou modaliza um enunciado descritivo, que, em um programa narrativo, o enunciado de estado. Uma seqncia de PNs, por sua vez, caracteriza o percurso narrativo. Os actantes sintticos, sujeito de estado, sujeito de fazer e objeto, presentes no PN, so redefinidos como papis actanciais no mbito do percurso narrativo, transformando-se, no ltimo nvel da hierarquia das unidades sintticas o esquema narrativo , em actantes funcionais, como pode ser visto no quadro abaixo:

Quadro 2 (BARROS, 2001, p. 36)

Uma narrativa centra-se, portanto, na transformao de estado entre sujeito e objeto, tendo como unidade operatria bsica o PN (LARA, 2005, p. 159). O esquema narrativo cannico compreende quatro fases ou quatro PNs (organizados em trs percursos o da manipulao, o da ao e o da sano) que se encadeiam, podendo alguma(s) dessas fases estar pressuposta(s).

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O primeiro PN o de manipulao (o fazer-fazer). Nele, um sujeito leva outro a /querer/ e/ou a /dever/ praticar uma ao, constituindo-se, dessa forma, no percurso do destinador-manipulador. So quatro os tipos de manipulao mais recorrentes: 1) tentao, em que o destinador-manipulador oferece valores que ele cr que o destinatrio quer obter; 2) intimidao, em que o destinador apresenta valores que ele acredita que o destinatrio teme e, portanto, deve evitar; 3) provocao, em que o destinador apresenta uma imagem negativa do destinatrio, devendo este reverter tal imagem; 4) seduo, em que o destinador apresenta uma imagem positiva do destinatrio, que este quer manter (BARROS, 2003, p. 197-198). A fase seguinte, a competncia (o ser-fazer), entendida como a capacitao do sujeito por meio de um /poder/ e um /saber/ realizar a ao. , dessa forma, um PN pressuposto da performance (pressuponente), que, por sua vez, o PN no qual ocorre a transformao central da narrativa, ou seja, a realizao da ao propriamente dita (o fazerser). Os PNs de competncia e de performance juntos constituem o percurso da ao ou do sujeito. J a ltima fase consiste no PN de sano (o ser-ser), em que se tem o percurso do destinador-julgador. A sano implica duas operaes: uma cognitiva e outra pragmtica. A primeira a constatao da ocorrncia (ou no) da ao, conforme o acordo estabelecido com o destinador-manipulador, culminando, portanto, no reconhecimento do heri ou no desmascaramento do vilo, enquanto a segunda implica a retribuio sob a forma, respectivamente, de premiao ou castigo. O quadro abaixo retoma sinteticamente o esquema narrativo cannico, constitudo dos trs percursos o da manipulao, o da ao e o da sano e dos PNs que os constituem:

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Quadro 3 (BARROS, 2005, p. 37)

O componente semntico do nvel narrativo ocupa-se da modalizao, que pode ser de dois tipos: a modalizao pelo /ser/ e a modalizao pelo /fazer/, que se referem, respectivamente, ao sujeito de estado (na sua relao com o objeto-valor) e ao sujeito de fazer (conforme vimos acima, na descrio dos PNs). Assim, o sujeito manipulado, ou seja, aquele que detm um /querer/ e/ou um /dever-fazer/ um sujeito virtual (ou virtualizado); o que adquire um /saber/ e um /poder-fazer/, referentes competncia, um sujeito atualizado. Porm, apenas depois de realizada a performance, que o sujeito se torna realizado. A modalizao pelo /ser/ engloba dois tipos de modalizao: a veridictria e a modalizao pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser. A modalizao veridictria abarca a oposio /ser/ vs /parecer/, o primeiro termo do par relacionado imanncia (ser e noser) e o segundo, manifestao (parecer e no-parecer). Dessa forma, ela determina o tipo de relao existente entre o sujeito e o objeto, classificando-a como verdadeira, falsa, mentirosa ou secreta. A verdade um estado que articula o /ser/ e o /parecer/; a falsidade, um estado que conjuga o /no-parecer/ com o /no-ser/; a mentira, o /parecer/ e o /no-ser/;

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e o segredo, o /ser/ e o /no-parecer/, conforme pode ser visto no quadrado semitico que segue:

Figura 2 (BARROS, 2001, p. 55)

Sobredeterminando a modalizao pelo /ser/ e pelo /parecer/, temos a modalidade do /crer/. Assim sendo, o enunciado de estado certamente verdadeiro quando se articulam /crer-ser/ e /parecer/; provavelmente verdadeiro quando conjuga /no-crerno-ser/ e /no-crer-no-parecer/; certamente falso quando coordena /crer-no-ser/ e /noparecer/, bem como o falso incerto conjuga /no-crer-ser/ e /crer-no-parecer/ (BARROS, 2001, p. 57). As relaes de certeza, impossibilidade/excluso, probabilidade e incerteza esto representadas a seguir:

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Figura 3 (BARROS, 2001, p. 57)

J a modalizao pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser incide especificamente sobre os valores investidos nos objetos (LARA, 2004, p. 72), tornando-os desejveis, proibidos, necessrios etc e gerando, dessa forma, efeitos passionais no/sobre o sujeito (de estado). Lembramos que, ao estudar um texto, o analista no precisa descrever todos os nveis e componentes do percurso gerativo de sentido com igual interesse e profundidade; deve, ao contrrio, aprofundar-se no nvel e/ou no componente que se mostra mais proeminente. Como acreditamos que o nvel narrativo do nosso objeto de estudo a obra Harry Potter e a pedra filosofal (ROWLING, 2000) o mais saliente, ele que ser o mais explorado, tanto assim que o contemplamos j no ttulo do trabalho, com a expresso pedra narrativa. Nossa crena decorre das prprias caractersticas do texto de J. K. Rowling, que uma narrao. Embora a narratividade, entendida como uma transformao de estados, esteja presente em todo e qualquer texto, no texto narrativo que ela se mostra mais evidente. Da a importncia do seu estudo. Essa posio, no entanto, no exclui a incurso pelos demais nveis, como j afirmamos em outras partes deste trabalho, uma vez que eles tambm contribuem para a construo do sentido. Por fim, o ltimo nvel do percurso gerativo de sentido, o discursivo, em que a organizao narrativa concretizada em discurso, pode ser considerado o mais superficial e concreto. Para que essa concretizao ocorra entram em cena os procedimentos de

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temporalizao, espacializao, actorializao, tematizao e figurativizao. (BARROS, 2003, p. 188). A sintaxe discursiva compreende tanto as projees da instncia da enunciao no enunciado, quanto as relaes entre enunciador e enunciatrio. As projees da enunciao no enunciado consistem naquelas categorias, j anteriormente citadas, de tempo, espao e pessoa. Essas categorias podem manifestar-se por meio de dois mecanismos: a) a debreagem, que consiste na projeo de um eu-aqui-agora (debreagem enunciativa) ou de um ele-l-ento (debreagem enunciva) da enunciao no enunciado, criando dois grandes efeitos de sentido: o de subjetividade, no primeiro caso, e o de objetividade, no segundo; 2) a embreagem, em que se neutralizam as oposies de pessoa e/ou de tempo e/ou de espao; trata-se de uma operao de retorno de formas j desenvolvidas enunciao que cria a iluso de identificao com a instncia da enunciao (BARROS, 2001, p. 77). As relaes entre enunciador e enunciatrio, por sua vez, consistem nas tentativas do enunciador de persuadir o enunciatrio a aceitar seu discurso. Vale lembrar que enunciador e enunciatrio so desdobramentos do sujeito da enunciao que cumprem os papis actanciais de destinador e de destinatrio do objeto-discurso (LARA, 2004, p. 82). Destarte, para que consiga persuadir o enunciatrio, o enunciador utiliza procedimentos argumentativos. A argumentao aqui entendida como quaisquer procedimentos (lingsticos ou lgicos) que o enunciador usa no seu fazer-persuasivo (e que implica, da parte do enunciatrio, um fazer-interpretativo, que o levar a aceitar ou recusar o contrato proposto). Isso remete questo da verdade: s se acredita naquilo que se julga verdadeiro. Quanto a essa questo, cabe destacar que, na teoria semitica, substitui-se o conceito da verdade tal como concebido pelo senso comum pelo de veridico ou

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de dizer-verdadeiro. Portanto, um discurso ou um texto ser verdadeiro quando for interpretado como verdadeiro, quando for dito verdadeiro (BARROS, 2005, p. 90). Em um jogo de persuaso, o enunciador, desempenhando o papel actancial de destinadormanipulador, leva o enunciatrio a crer no discurso apresentado e, a partir do seu (do enunciatrio) fazer-interpretativo, a tomar como verdade o que lhe apresentado (BARROS, 2001, p. 92-93). Sendo assim, o que h, para a semitica, uma verdade construda no texto e pelo texto, na qual o enunciador tenta fazer o enunciatrio acreditar. A semntica discursiva, por seu turno, abarca os revestimentos, por temas e/ou figuras, dos esquemas narrativos abstratos. A tematizao, ou revestimento por temas, consiste no investimento semntico com predominncia de elementos abstratos, conceituais, ou que no esto presentes no mundo natural. Todos os textos tematizam o nvel narrativo, podendo concretiz-lo ainda mais com a introduo de figuras, simulacros do mundo. Dessa maneira, a figurativizao consiste no investimento semntico de figuras, termos concretos que remetem ao mundo natural (FIORIN, 2005, p. 24). Diante disso, podemos afirmar que os textos so predominantemente temticos (ou de figurao esparsa) quando param no primeiro nvel de concretizao (o dos temas) ou preponderantemente figurativos, quando so completamente recobertos por figuras (a que subjazem temas), como o caso do texto literrio, domnio em que se insere a obra em estudo. No podemos perder de vista tambm que os temas e as figuras, enquanto componentes das formaes discursivas, materializam as representaes ideolgicas em jogo, como prope Fiorin (2005, p. 19; 32-34). O autor considera a semntica discursiva como o campo da determinao ideolgica propriamente dita, pois o conjunto de elementos semnticos habitualmente usado nos discursos de uma dada poca constitui a maneira de ver o mundo numa dada formao social (p. 19).

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Ainda no mbito da semntica discursiva encontra-se a noo de isotopia, entendida como a recorrncia de traos semnticos ao longo do texto que assegura a linha sintagmtica do discurso e responde por sua coerncia semntica (BARROS, 2001, p. 124; grifos da autora). Os textos, evidentemente, podem ter mais de uma isotopia, como o caso do texto literrio, que pluriisotpico por natureza. Com a rpida apresentao desses nveis fundamental, narrativo e discursivo chegamos ao fim do percurso gerativo de sentido, centrado no plano de contedo. No abordaremos aqui o plano de expresso (e sua relao com o plano de contedo), porque, embora reconheamos a importncia desse plano na/para a construo de sentidos, ele no se mostra relevante para os objetivos que orientam o presente trabalho. Em outras palavras: trata-se de um texto em que o leitor no se detm no plano de expresso (verbal); atravessa-o e vai diretamente ao plano de contedo, em busca das peripcias do personagem central, o bruxinho Harry Potter. Uma vez que a semitica greimasiana, por meio do percurso gerativo de sentido, analisa o texto to minuciosamente em busca da compreenso no s do que ele diz, mas tambm de como ele diz o que diz, acreditamos ser ela a teoria discursiva mais adequada ao nosso estudo. Como afirma Bertrand (2003, p. 11), o discurso literrio um dos campos de exerccio privilegiado da semitica, ponto de vista corroborado por Fiorin, para quem dizer que a narratologia formulada pela Semitica uma camisa de fora ou que no se aplica a textos da literatura mais moderna desconhecer os princpios dessa teoria narrativa (FIORIN, 1995, p. 169).

3. Variantes e invariantes do conto maravilhoso: as contribuies de Propp

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Utilizando a semitica greimasiana como aparato terico-metodolgico para a anlise de Harry Potter e a pedra filosofal, com destaque para o nvel narrativo do percurso gerativo de sentido (plano de contedo), acreditamos que ser possvel apreender os elementos que compem o texto em questo e compar-los aos das narrativas em que, a nosso ver, ele tem profundas razes: os contos de fadas, tendo em vista a hiptese, j apresentada na Introduo, de que nosso objeto de estudo ecoa ou atualiza elementos recorrentes nessas histrias. Para essa comparao, pretendemos inspirar-nos, como j foi dito, nas idias de Vladimir Propp, que, ao estudar o conto maravilhoso russo em sua obra Morfologia do conto maravilhoso, publicada em 1958 no Ocidente (apesar de sua primeira edio ser de 1928), admite a existncia de uma morfologia, ou seja, uma descrio do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relaes destas partes entre si e com o conjunto (PROPP, 2006, p. 20). Debruando sobre um corpus de cem contos maravilhosos russos, o autor elencou trinta e uma funes que, por trs da variedade de personagens e aes que caracteriza cada histria, se repetem nos contos estudados. As funes para Propp (2006, p. 23) so conceituadas como as aes dos personagens, os quais mudam de nome, mas continuam realizando as mesmas aes, as grandezas constantes e variveis. A proposta assim explicada pelo autor:

Os exemplos [das funes] esto dispostos segundo grupos conhecidos, e os grupos se relacionam com a definio, da mesma forma que as espcies com o gnero. O trabalho fundamental consiste em isolar os gneros. O estudo das espcies no pode ser includo nos trabalhos de morfologia geral. As espcies podem subdividir-se em variedades, e eis o ponto de partida de uma sistematizao (PROPP, 2006, p. 20; grifos do original).

Embora nem todas as narrativas analisadas apresentem as trinta e uma funes descritas, Propp (2006, p. 23) considera que a seqncia entre elas sempre idntica.

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Portanto, todo conto maravilhoso apresenta de um lado, sua extraordinria diversidade, seu carter variado; de outro, sua uniformidade, no menos extraordinria, e sua repetibilidade (PROPP, 2006, p. 22). Leonel & Nascimento (2003, p. 22) lembram que cada narrativa atualiza invariantes solidificadas em um universo cultural determinado, estabelecendo um estoque de temas e figuras que os textos tomam emprestados. Apesar de Propp (2006, p. 23) insistir em limitar suas concluses ao conto maravilhoso (PROPP, 2006, p. 23), a recorrncia dos esquemas narrativos proppianos em textos que extrapolavam tal gnero foi percebida por diversos estudiosos, chegando a influenciar o fundador da teoria semitica (francesa), o lituano Algirdas Julien Greimas, como j destacamos anteriormente. Reproduzimos, a seguir, as funes invariantes elencadas para o conto maravilhoso russo (PROPP, 2006, p. 27-62). Essas funes sero retomadas e exploradas no Captulo 3, em que analisaremos a obra Harry Potter e a pedra filosofal. So elas:

I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII.

Um dos membros da famlia sai de casa. Impe-se ao heri uma proibio. A proibio transgredida. O antagonista procura obter uma informao. O antagonista recebe informaes sobre sua vtima. O antagonista tenta ludibriar sua vtima para apoderar-se dela ou de seus bens. A vtima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu inimigo. O antagonista causa dano ou prejuzo a um dos membros da famlia.

VIII A. Falta alguma coisa a um membro da famlia, ele deseja obter algo. IX. divulgada a notcia do dano ou da carncia, faz-se um pedido ao heri ou lhe dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir.

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X. XI. XII.

O heri-buscador aceita ou decide reagir. O heri deixa a casa. O heri submetido a uma prova; a um questionrio; a um ataque etc., que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mgico.

XIII. XIV. XV.

O heri reage diante das aes do futuro doador. O meio mgico passa s mos do heri. O heri transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura .

XVI . O heri e seu antagonista se defrontam em combate direto. XVII. O heri marcado. XVIII. O antagonista vencido. XIX . O dano inicial ou a carncia so reparados XX. XXI. Regresso do heri. O heri sofre perseguio.

XXII. O heri salvo da perseguio. XXIII. O heri chega incgnito sua casa ou a outro pas. XXIV. XXV. Um falso heri apresenta pretenses infundadas. proposta ao heri uma tarefa difcil.

XXVI. A tarefa realizada. XXVII. O heri reconhecido. XXVIII. O falso heri ou antagonista ou malfeitor desmascarado. XXIX. XXX. O heri recebe nova aparncia. O inimigo castigado.

XXXI. O heri se casa e sobe ao trono. (PROPP, 2006)

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Alm dessas funes, h sub-funes, que sero apresentadas no decorrer do trabalho sempre que for pertinente, uma vez que so muitas, no cabendo aqui esse detalhamento. Lembramos ainda que o esquema narrativo cannico constitudo pelos trs percursos: o da manipulao, o da ao e o da sano , ao estabelecer a regularidade sintagmtica da narrativa, retoma as contribuies de Propp. Podemos, dessa forma, aproximar os trs percursos descritos das provas proppianas: qualificante, principal e glorificante, como afirma Barros (2005, p. 36). A primeira prova, a qualificante, refere-se capacitao do heri para praticar uma ao, como o caso da dcima segunda funo, em que o heri submetido a uma prova; a um questionrio; a um ataque etc., que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mgico. J a segunda, a prova principal, a realizao propriamente dita da ao para a qual o heri capacitou-se, como descrito, por exemplo, na vigsima sexta funo a tarefa realizada. A ltima prova, a glorificante, a considerao que se faz sobre a ao realizada, que pode ser ilustrada pela vigsima stima funo - o heri reconhecido. Cabe ressaltar, no entanto, que Greimas conserva o ponto de vista de Propp na definio do esquema narrativo, afirmando que este procura representar, formalmente, o sentido da vida, enquanto projeto, realizao e destino (BARROS, 2005, p. 36), mas, ao mesmo tempo, prope mudanas no estudo da narrativa. Segundo Barros (2005), a principal delas seria o reconhecimento dos dispositivos modais, o que levaria a reinterpretar a sintaxe narrativa como uma sintaxe modal. Nesse sentido, a teoria greimasiana, para alm do exame da ao, ocupa-se tambm da manipulao, da sano, da determinao da competncia do sujeito e de sua existncia passional, categorias cujo estudo apia-se largamente nas modalidades, como veremos.

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A ttulo de ilustrao das trinta e uma funes descritas anteriormente e na tentativa de integr-las sintagmaticamente, apresentamos um conto analisado por Propp, em seu livro Morfologia do conto maravilhoso (PROPP, 2006), que ele mesmo classifica como simples e de uma s seqncia. Trata-se da seguinte histria, narrada desta forma pelo prprio autor:

Alinuchka vai ao bosque para colher frutas. [...] A me lhe ordena que leve seu irmo mais novo. [...] Ivnuchka recolhe uma quantidade de frutas maior do que Alinuchka. [...] Deixa-me ver se tens alguma coisa no cabelo. [...] Ivnuchka adormece. [...] Alinuchka mata seu irmo . [...] Sobre o tmulo brota um canio. [...] Um pastor o corta e faz com ele uma flauta. [...] O pastor toca a flauta, que canta e denuncia a assassina. [...] O canto se repete cinco vezes em situaes diferentes. Trata-se, na verdade, de um canto dolente, assimilado descoberta do malfeito. Os pais expulsam a filha (PROPP, 2006, p. 130).

A anlise proposta parte da identificao da realizao da primeira funo um dos membros da famlia sai de casa quando Alinuchka vai ao bosque colher frutas. Ocorre em seguida a segunda funo impe-se ao heri uma proibio , configurada, nesse caso, como uma ordem (subfuno). Ivnuchka, ao recolher mais frutas do que Alinuchka, gera um motivo para o malfeito que seguir. A fala de Alinuchka atua como uma tentativa da parte da antagonista de enganar o heri, o que remete sexta funo o antagonista tenta ludibriar sua vtima para apoderar-se dela ou de seus bens , especificamente configurada como a subfuno em que o antagonista atua por meio de fraude e de coao. Ivnuchka, ento, adormece, caracterizando a stima funo a vtima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu inimigo. O assassinato de Ivnuchka a realizao da oitava funo o antagonista causa dano ou prejuzo a um dos membros da famlia. Com o surgimento sbita e espontaneamente do canio a partir do tmulo da vtima, retrata-se a funo quatorze o meio mgico passa s mos do heri. A flauta feita com o canio possibilita, dessa forma, o desmascaramento da assassina, configurando a funo vinte e trs o falso heri ou antagonista ou malfeitor

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desmascarado. A expulso da filha malfeitora , por fim, a realizao da trigsima funo o inimigo castigado. Ao tomar como base de anlise as provas e funes propostas por Propp, poderemos comparar os textos em questo com maior rigidez metodolgica e verificar at que ponto Harry Potter e a pedra filosofal tem realmente suas razes histricas nos contos de fadas, observando de que maneira a obra de J. K. Rowling apresenta, sob a variabilidade que a tece, invariantes tambm presentes nesses textos. Deste modo fazendo, acreditamos poder apreender melhor nosso objeto de estudo, situando-o no mbito da literatura infantojuvenil.

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CAPTULO 2 ANLISE SEMITICA DE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

Passamos, agora, anlise semitica do livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, da escritora inglesa J. K. Rowling, em sua traduo para o portugus do Brasil. Dividiremos nosso estudo em dois, como anunciamos no Captulo 1, aplicando os pressupostos terico-metodolgicos descritos nesse mesmo captulo (vide item 2) a cada uma das duas histrias que, articuladas, compem o que podemos chamar de histria maior.

1. Primeira histria

1.1. Sntese

A primeira histria por ns delimitada compreende os Captulos Um a Quatro de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Inicia-se a narrativa com o relato da chegada de Harry Potter ainda beb casa dos tios Petnia Dursley, irm de sua me, e Vlter Dursley, uma vez que seus pais haviam morrido. Apesar de parentes, os Dursley no mantinham contato com a me de Harry e, por isso, no tinham ainda conhecido seu sobrinho, que contava, ento, menos de um ano de idade. Eles mesmos tinham um filho: Dudley ou Duda. Assim, em uma tera-feira, o Sr. Dursley, aps presenciar vrios

acontecimentos estranhos durante o dia e escutar o sobrenome de sua cunhada, Potter, pronunciado por um grupo de pessoas esquisitas vestidas com capas, volta para casa, onde toma conhecimento, pela TV, de notcias tambm estranhas. Apesar de assustado, ele e a Sra. Dursley vo para cama. Durante a noite, entretanto, um senhor de barba e cabelos

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longos, com vestes tambm longas e capa prpura, Alvo Dumbledore, encontra-se, na porta da casa dos tios de Harry, com um gato, que, ento, metamorfoseia-se em mulher, a Professora Minerva McGonagall. Os dois conversam sobre o desaparecimento de um mago do mal que aterrorizava o mundo mgico, Lord Voldemort, logo aps este ter matado os pais de Harry, Llian e Tiago Potter. Quando Voldemort tentou assassinar o filho dos bruxos j mortos, algo aconteceu: ao mesmo tempo em que o bruxo sumiu, Harry sobreviveu ileso, somente com uma marca em forma de raio estampada em sua testa. Logo depois, chega o gigante Hagrid, em uma motocicleta, trazendo o pequeno beb Harry embrulhado. Aps deixarem o menino na porta da rua dos Alfeneiros, n 4, juntamente com uma carta, os trs vo embora. No Captulo Dois, encontramos Harry, que, por ser rfo de pai e me, est vivendo com os tios e seu primo Duda. O menino sofre com a indiferena dos tios e com a m-criao do primo, cujas vontades so atendidas, sem ressalvas, por seus pais, o que o torna mimado. Harry tratado como um estorvo pelos parentes, que o mantm em um armrio debaixo da escada, espao que o garoto tem como quarto. Certo dia, por no terem onde deixar o sobrinho, o Sr. e a Sra. Dursley terminam por lev-lo a um passeio no jardim zoolgico, em comemorao ao aniversrio de Duda. L acontece um incidente inesperado. Harry faz o vidro, que separava uma cobra dos visitantes do zoolgico, desaparecer sem entender direto como fez isso. A essa situao soma-se o fato de a cobra agradecer ao menino a ajuda na fuga. Nos Captulos Trs e Quatro, com a proximidade do aniversrio de onze anos de Harry, passa a acontecer outro fenmeno inexplicvel: cartas endereadas ao menino comeam a chegar casa dos Dursley, sempre com referncias especficas ao lugar que o rfo ocupa na casa, como o armrio sob a escada ou o menor quarto da casa

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(ROWLING, 2000, p. 34-38). Apesar de inicialmente aparecer uma carta a cada dia, com a aproximao do dia do aniversrio de Harry, as cartas se multiplicam e chegam a todos os lugares a que a famlia vai como tentativa de fugir delas. A insistncia deve-se ao fato de que os tios de Harry, ao reconhecerem, por vrios sinais, o pertencimento do remetente dessas correspondncias ao mundo mgico, a que seu sobrinho ignorava tambm pertencer e que eles tanto temiam pudesse descobrir , impedem que o menino as leia. Aps fugirem incessantemente por dias at chegar a uma cabana no topo de um rochedo localizado no meio do mar, na noite que antecedia o aniversrio de Harry, um gigante (Hagrid) alcana-os e informa o menino de que ele , na verdade, um bruxo, com poderes mgicos e que, por estar completando onze anos, deve dirigir-se escola de magos, Hogwarts, em que foi admitido. Com medo de Hagrid, ainda mais depois que o gigante ps um rabo de porco em Duda (ROWLING, 2000, p. 55), nem os tios, nem o primo de Harry conseguem reagir, e, dessa forma, o segredo, mantido por onze anos, revelado ao menino.

1. 2. Anlise da primeira histria

1.2.1. Nvel fundamental

Como vimos, o percurso gerativo de sentido do plano do contedo, modelo de anlise da teoria semitica, composto por trs nveis, o fundamental, o narrativo e o discursivo. Nessa ordem, realizaremos nosso estudo, uma vez que entendemos com Discini (2004, p. 82) que

[...] o discurso, a partir das profundezas da gerao do significado nvel fundamental , passando pela representao espetacular da sua dinmica subjacente nvel narrativo revelar-se-, a si mesmo, at sua concretizao e especificao definitivas, quando essas estruturas tero um desempenho prprio

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e singular, assumidas por um sujeito da enunciao nvel discursivo propriamente dito.

No entanto, como j dissemos, privilegiaremos o nvel narrativo, sobretudo por se tratar de uma histria com um componente pragmtico muito forte, o que favorece esse nvel, que constitui um simulacro da ao do homem no mundo. Assim, os demais nveis o fundamental e o discursivo sero examinados com vistas a iluminar as categorias narrativas que nos interessam mais de perto. Vamos, ento, anlise, que tomar como foco o ponto de vista do protagonista Harry Potter. No nvel fundamental, temos a oposio semntica /alteridade/ vs /identidade/. A relao que podemos estabelecer entre esses termos est representada no quadrado semitico a seguir:

S1 Alteridade

S2 Identidade

~S2 No-identidadeFigura 4

~S1 No-alteridade

O termo /identidade/ representa o mundo mgico do qual, tanto Harry Potter, quanto Alvo Dumbledore, a Professora Minerva McGonagall e Hagrid, fazem parte. A /alteridade/, por sua vez, relaciona-se com o mundo dos trouxas, ou pessoas que no possuem poderes mgicos e que, por isso, muitas vezes nem sabem da existncia desse outro mundo.

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No decorrer dessa primeira histria, percebemos que Harry passa da /alteridade/, em que se encontra, uma vez que mora com os tios trouxas, freqenta escolas trouxas e entende-se como um menino comum, para a /identidade/. Quando se descobre bruxo, finalmente entende qual sua real natureza e percebe que faz parte de um mundo, onde h pessoas semelhantes a ele. Em outras palavras, Harry faz o seguinte percurso: alteridade no-alteridade identidade. A no-alteridade, nesse caso, pode ser associada aos

acontecimentos estranhos que comeam a acontecer na vida de Harry (como o j citado episdio da cobra). No eixo dos contrrios, a categoria semntica valorizada positivamente, ou euforizada, a /identidade/, ambicionada por Harry, uma vez que a /alteridade/, categoria valorizada negativamente, ou disforizada, remete situao em que ele se encontra inicialmente, situao essa que lhe causa sofrimento, decorrente, sobretudo, da incompreenso da famlia Dursley.

1.2.2. Nvel narrativo

A primeira histria apresenta uma srie de acontecimentos estranhos que antecedem a performance do trio Dumbledore, Minerva e Hagrid 2, que, enquanto sujeitos operadores, colocam o beb Harry Potter na porta da casa dos tios. Evidentemente, eles tm competncia para esse fazer: sabem onde moram os Dursley, podem transformar-se em animais para no chamar a ateno e esto (auto)manipulados por um dever proteger a vida de Harry. A citao seguinte ilustra o que afirmamos:

2

Esses acontecimentos, que se traduzem numa srie de aes menores, preparam o terreno para o que vir a seguir, parecendo funcionar como programas auxiliares (ou PNs de uso) para a realizao da ao principal (PN de base). De qualquer forma, eles constroem o quadro dentro do qual se desenrolar a transformao principal dessa primeira parte. Lembramos que a competncia constitui tambm um PN de uso em relao performance.

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A professora abriu a boca, mudou de idia, engoliu em seco e ento disse: - , , voc est certo, claro. Mas como que o garoto vai chegar aqui, Dumbledore? - Ela olhou para a capa dele de repente como se lhe ocorresse que talvez escondesse Harry ali. - Hagrid vai traz-lo. - Voc acha que sensato confiar a Hagrid uma tarefa importante como esta? - Eu confiaria a Hagrid minha vida - respondeu Dumbledore, - No estou dizendo que ele no tenha o corao no lugar - concedeu a professora de m vontade -, mas voc no pode fingir que ele cuidadoso. (ROWLING, 2000, p. 17, grifo do original)

A partir desse momento, Harry, enquanto sujeito de estado, entra em conjuno com uma srie de Ovs indesejveis (modalizados pelo no-querer-ser): os maus tratos dos parentes; as roupas horrveis que veste, muito maiores do que ele; os culos remendados com fita adesiva; o quarto apertado, que , na verdade, um armrio embaixo da escada da casa:

Harry estava acostumado com aranhas, porque o armrio sob a escada vivia cheio delas e era ali que ele dormia. [...] O saco de pancadas preferido de Duda era Harry, mas nem sempre Duda conseguia peg-lo. Harry no parecia, mas era muito rpido. Talvez fosse porque vivia num armrio escuro, mas Harry sempre fora pequeno e muito magro para a idade. Parecia ainda menor e mais magro do que realmente era porque s lhe davam para vestir as roupas velhas de Duda e Duda era quatro vezes maior do que ele. Harry tinha um rosto magro, joelhos ossudos, cabelos negros e olhos muito verdes. Usava culos redondos, remendados com fita adesiva, por causa das muitas vezes que o Duda socara no nariz. A nica coisa que Harry gostava em sua aparncia era uma cicatriz fininha na testa que tinha a forma de um raio. Existia desde que se entendia por gente e a primeira pergunta que se lembrava de ter feito tia Petnia era como a arranjara. (ROWLING, 2000, p. 22)

No dia do seu 11 aniversrio, Harry manipulado pelo gigante Hagrid, que lhe conta pessoalmente sobre sua verdadeira condio e o convida a ingressar em Hogwarts, uma escola para bruxos. Lembremos que h tentativas anteriores de manipulao pelas inmeras cartas que os Dursley escondem de Harry.

- Tudo o qu?- perguntou Harry - TUDO O QU? - berrou Hagrid - Ora espere a um segundo! [...] - Vocs vo querer me dizer - rosnou para os Dursley - que este menino, este menino!, no sabe nada, de NADA? [...]

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Mas Hagrid dispensou-o com um abano de mo e disse: - Do nosso mundo, quero dizer. Seu mundo. Meu mundo. O mundo dos seus pais. - Que mundo? Hagrid parecia preste a explodir. - DURSLEY!- urrou ele. [...] - Mas voc deve saber quem foram sua me e seu pai - disse. - Quero dizer, eles so famosos. Voc famoso. - Qu? Meu pai e minha me eram famosos? - Voc no sabe... voc no sabe... - Hagrid correu os dedos pelos cabelos, fixando em Harry um olhar perplexo. - Voc no sabe quem ?- perguntou finalmente. [...] [...] quando Hagrid falou, cada slaba tremia de raiva. - Voc nunca contou? Nunca contou o que Dumbledore deixou escrito naquela carta para ele? Eu estava l! Eu vi Dumbledore deixar a carta, Dursley! E voc escondeu dele todos esses anos? - Escondeu o que de mim? - perguntou Harry ansioso. [...] - Harry, voc um bruxo. [...] - Eu sou o qu? - ofegou Harry. - Um bruxo, claro - repetiu Hagrid, recostando-se no sof, que gemeu e afundou ainda mais -, e um bruxo de primeira, eu diria, depois que receber um pequeno treino. Com uma me e um pai como os seus, o que mais voc poderia ser? (ROWLING, 2000, p. 49; grifos do original)

No fazer-interpretativo que lhe cabe, Harry julga Hagrid certamente confivel (cr que ele parece e confivel) e aceita o contrato proposto por esse destinadormanipulador delegado (j que ele representa a comunidade de bruxos) para estudar bruxaria em Hogwarts (performance). Para isso, no entanto, precisa capacitar-se com um poder e um saber realizar essa ao, e, assim, enquanto sujeito de estado, entrar plenamente em conjuno com o Ov poderes mgicos (apenas prenunciados at aquele momento). A obteno do objeto modal saber ocorre com a visita de Hagrid, o gigante enviado por Hogwarts, para alertar Harry de sua condio at ento desconhecida de que fazia parte do mundo mgico. O gigante tinha participado dos acontecimentos que culminaram na morte dos pais do menino e em sua ida para a casa dos tios. J o poder incide sobre a prpria condio de Harry: ele dispunha das pr-disposies exigidas para estudar em Hogwarts, como se pode perceber pela seguinte fala de Hagrid:

Impedir o filho de Llian e Tiago Potter de ir para Hogwarts! Voc enlouqueceu. Ele est inscrito desde que nasceu. Vai freqentar a melhor escola de bruxos e bruxedos do mundo. Sete anos l e ele nem vai se reconhecer. Vai estudar com

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garotos iguais a ele, para variar, e vai estudar com o maior mestre que Hogwarts j teve, Alvo Dumbled... (ROWLING, 2000, p. 55)

Assim, com a obteno das modalidades atualizantes do saber e do poder, Harry passa de sujeito virtual (ou virtualizado) para sujeito atualizado. A ao propriamente dita (cursar bruxaria em Hogwarts) precedida de um deslocamento espacial (programa de uso): Harry sai da casa dos tios o espao tpico e vai para a escola de bruxos at ento, o espao heterotpico 3 , o alhures. Assim, ele prprio entende-se bruxo e passa, ento, a compreender todos os fenmenos inexplicveis que permearam sua vida at aquele momento, o que o torna um sujeito realizado, em plena conjuno com o Ov poderes mgicos. Esse momento de esclarecimento ou de reconhecimento, em que Harry passa de um no-saber a um saber sobre sua condio de bruxo fazer cognitivo que articula as duas partes da histria maior pode ser observado na passagem seguinte:

- No bruxo, hein? Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou zangado? Harry olhou para o fogo. Pensando bem... cada coisa estranha que deixara os seus tios furiosos tinha acontecido quando ele, Harry estava perturbado ou com raiva...perseguido pela turma de Duda, pusera-se de repente fora do seu alcance, receoso de ir para a escola com aquele corte ridculo, conseguira fazer os cabelos crescerem de novo, e da ltima vez que Duda batera nele, no fora forra sem perceber que estava fazendo isto? No mandara uma cobra atac-lo? Harry olhou para Hagrid, sorrindo, e viu que ele ria abertamente para ele. (ROWLING, 2000, p. 54)

Acontece, portanto, uma (auto)sano cognitiva quando Harry reconhece que no era, afinal, nenhuma pessoa anormal; estava apenas fora do mundo ao qual pertencia, aquele onde existiam pessoas iguais a ele e, portanto, onde no estaria descumprindo

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Segundo Greimas & Courts (2008, p. 464), o espao tpico o espao de referncia (lugar das performances e competncias). Nele, encontram-se dois subcomponentes: o espao utpico, o lugar onde o heri chega vitria ou onde se realizam as performances, e o espao paratpico, onde se desenrolam as provas preparatrias ou qualificantes, em que se adquirem as competncias, tanto na dimenso pragmtica quanto na cognitiva. Ao aqui (espao tpico) ope-se o alhures: o espao heterotpico.

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nenhum contrato de normalidade. A sano pragmtica o prmio de ficar livre de seus insuportveis parentes, pelo menos durante o ano escolar de Hogwarts, j que, nas frias, ele sempre retorna ao doce lar. Analisando-se a primeira histria pelo vis da modalizao veridictria, percebemos que Harry, por no se saber bruxo, passa do segredo (pois , mas no parece bruxo) verdade ( e parece bruxo), a partir do momento em que se descobre como tal. essa busca pela verdade que d o tom a toda essa primeira parte da narrativa, pois nela Harry Potter mostra-se desconfortvel e deslocado no mundo onde vive. Descobre-se posteriormente que a razo dessa inadequao justamente o segredo que os tios de Harry escondem: sua origem mgica. Com essa revelao, o menino pode, enfim, reconhecer-se como bruxo (manifestao/parecer), algo que, na verdade, sempre fez parte da sua natureza (imanncia/ser).

1.2.3. Nvel discursivo

No ltimo nvel do percurso gerativo de sentido, no que diz respeito s projees da enunciao no enunciado (sintaxe discursiva), a primeira histria analisada caracteriza-se pela debreagem enunciva, que consiste na projeo de um ele-l-ento. Sendo assim, temos a prevalncia do emprego do ele (j que a histria narrada em terceira pessoa), de um l (uma vez que o principal espao da narrativa, nesse primeiro momento, a rua dos Alfeneiros, n 4, residncia dos Dursleys nos subrbios de Londres) e de um ento: predominncia de verbos no pretrito perfeito (2) e no imperfeito4[3], o que

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Em portugus, o pretrito perfeito 2 , juntamente com o imperfeito, um tempo de concomitncia em relao ao momento de referncia pretrito, distinguindo-se do pretrito perfeito 1, tempo de anterioridade em relao ao momento de referncia presente (cf. FIORIN, 2003, p. 167-171).

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garante o efeito de sentido do era uma vez, to caro aos contos de fadas. Esse triplo procedimento enuncivo pode ser visto no trecho a seguir:

O gato o encarou. Enquanto virava a esquina e subia a rua, espiou o gato pelo espelho retrovisor. Ele agora estava lendo a placa que dizia rua dos Alfeneiros no, estava olhando a placa: gatos no podiam ler mapas nem placas. O Sr. Dursley sacudiu a cabea e tirou o gato do pensamento. Durante o caminho para a cidade ele no pensou em mais nada exceto no grande pedido de brocas que tinha esperanas de receber naquele dia (ROWLING, 2000, p. 8; grifos nossos).

A projeo em 3 pessoa, no entanto, entrecortada por passagens em que o narrador d voz s personagens (o par interlocutor-interlocutrio) 5 em discurso direto. Trata-se, nesse caso, de debreagens internas ou de 2 grau, que simulam o dilogo, criando um efeito de sentido de autenticidade, como comprova o trecho abaixo. Trata-se de uma conversa entre o Sr. e a Sra. Dursley sobre os estranhos acontecimentos prximos ao 11 aniversrio de Harry:

- Hum, hum, Petnia, querida, voc no tem tido notcias de sua irm ultimamente? Conforme esperava, a Sra. Dursley pareceu chocada e aborrecida. Afinal, normalmente fingiam que ela no tinha irm. - No, respondeu ela, seca. Por qu? - Uma notcia engraada - murmurou o Sr. Dursley - Corujas... estrelas cadentes e vi uma poro de gente de aparncia estranha na cidade hoje... - E da? - cortou a Sra. Dursley. - Bem, pensei, talvez, tivesse alguma ligao com... sabe... o pessoal dela. (ROWLING, 2000, p. 11)

Estudando-se a semntica discursiva, percebe-se a presena de revestimentos figurativos dos esquemas narrativos abstratos do nvel anterior (o narrativo), fazendo com que o texto seja predominantemente figurativo. Os atores que representam a famlia trouxa de Harry, ou seja, no-mgica, incluindo, portanto, seu tio Vlter, sua tia Petnia5

Fiorin (2003, p. 163-164) fala em trs nveis da hierarquia enunciativa: 1) o do enunciador/enunciatrio, desdobramentos do sujeito da enunciao que correspondem ao autor e ao leitor implcitos ou abstratos, ou seja, imagem do autor e do leitor construdas pela obra; 2) o do narrador/narratrio, destinador e destinatrio instalados, implcita ou explicitamente no enunciado; 3) o do interlocutor/interlocutrio, quando o narrador , instalado no texto, d voz a personagens em discurso direto.

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e seu primo Duda, bem como os objetos que esto associados a eles, remetem ao outro, ao diferente, com quem o jovem bruxo no se identifica. J Alvo Dumbledore, Minerva McGonagall e Hagrid e as figuras que os cercam representam a identidade (nvel fundamental) que Harry tanto almeja alcanar, o Ov poderes mgicos com os quais ele tanto quer entrar em plena conjuno (nvel narrativo). So seres que fazem parte do mundo a que o menino realmente pertence: o mundo mgico, assim como os pais de Harry, Llian e Tiago Potter, que aparecem rapidamente no incio da narrativa. Na oposio entre esses dois grupos, identificamos um percurso temticofigurativo maior (ou percurso semntico, como prefere FARIA, 2001) 6 que perpassa a primeira histria: o das relaes cotidianas e sociais. Vejamos as figuras (e os temas subjacentes) que constituem esse percurso. No que se refere ao primeiro grupo, o Sr. e a Sra. Dursley, tios de Harry, so, inicialmente, caracterizados com o adjetivo normais e tomados como pessoas que no gostam de coisa estranha ou misteriosa, o que consideram bobagem (ROWLING, 2000, p. 7). Esses personagens, entretanto, tm um segredo, que tm receio de que seja descoberto. Na verdade, o substantivo segredo (que, no mbito das modalidades veridictrias do nvel narrativo, articulam o /ser/ e o /no parecer/) tem como referente a irm da Sra. Dursley e seu marido, considerado imprestvel, j que ambos eram o que havia de menos parecido possvel com os Dursley (ROWLING, 2000, p. 7). O uso do pronome demonstrativo daquelas tambm interessante, uma vez que empregado para afirmar que Harry uma criana com a qual os Dursley no queriam que seu filho Duda

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Lembramos que todo texto tem, no mbito da semntica discursiva, um primeiro nvel de concretizao dos esquemas narrativos abstratos, que o dos temas (subcomponente temtico), que se encadeiam em percursos, podendo estes ser concretizados ainda por figuras (subcomponente figurativo), tambm organizadas em percursos. Isso significa que so os temas que iluminam as figuras, no caso de um texto predominantemente figurativo, como o caso de Harry Potter, ou seja, os percursos figurativos so antes temticos, o que nos leva a adotar a expresso percurso temtico-figurativo ou percurso semntico (subsumindo os dois subcompontentes da semntica narrativa).

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brincasse, uma vez que ele pertence ao grupo de pessoas que, por serem anormais, so menosprezadas por eles. No entanto, as figuras montona e cinzenta, empregados para designar a tera-feira em que a histria comea, demonstram o quo sem graa a vida desses personagens, que suportam Harry por necessidade (ROWLING, 2000, p. 7). A expresso sem graa , inclusive, tambm empregada para caracterizar a gravata que o Sr. Dursley escolhe ao ir trabalhar naquele dia. A idia de que a vida dos Dursley vazia reforada pela imagem produzida pelo uso do verbo fofocava (ROWLING, 2000, p. 8), que esclarece o que a tia de Harry fazia na manh do dia em que o menino chegaria casa dos parentes. O mundo mgico, por sua vez, constri-se a partir da presena de inmeras figuras, como, por exemplo, uma coruja parda (ROWLING, 2000, p. 8) que, em pleno dia, passa voando pela janela dos Dursley no dia da chegada do menino; o gato, que permanece durante um dia inteiro em frente ao nmero 4 da rua dos Alfeneiros e que consiste em uma prosopopia (ou personificao), uma vez que lhe so atribudas caractersticas humanas, tais como ler, encarar algum e imprimir sentimentos a olhares (como a severidade com a qual o animal observa o Sr. Dursley entrar em casa) (ROWLING, 2000, p. 8); as pessoas estranhamente vestidas que andam pelas ruas, com capas largas e coloridas, e que irritam o Sr. Dursley, que as considera excntricas e petulantes (ROWLING, 2000, p. 9). Alm disso, como j observamos, os seres mgicos so diferenciados dos nomgicos pelo termo trouxas - utilizado pelos primeiros em relao aos segundos (ROWLING, 2000, p. 10) e que indica uma certa ironia, pois a palavra trouxa tem a acepo de pessoa tola, fcil de ser enganada (associando-se, assim, o normal ao trouxa) As notcias do telejornal tambm demonstram a presena da magia nos

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acontecimentos do dia retratado, como o j citado estranho comportamento das corujas ao voar durante o dia e as chuvas de estrelas ocorridas em vrios lugares do pas, no caso, a Inglaterra, onde se passa a histria (ROWLING, 2000, p. 11). Outras figuras relacionadas magia aparecem na passagem em que bruxos deixam o beb Harry na porta dos Dursley. Nesse trecho, Alvo Dumbledore, um grande mago que lutou contra o lorde das trevas, aparece na rua dos Alfeneiros to sbita e silenciosamente que se poderia pensar que tivesse sado do cho (ROWLING, 2000, p. 13). A prpria aparncia de Dumbledore, que usava vestes longas, uma capa prpura que arrastava pelo cho e botas com saltos altos e fivelas e cujos olhos azuis eram claros, luminosos e cintilantes por trs dos culos em meia-lua e o nariz muito comprido e torto, como se o tivesse quebrado pelo menos duas vezes (ROWLING, 2000, p. 13), estranha aos olhos dos trouxas, assim como a transformao do gato que se manteve na frente da casa dos tios de Harry na Prof Minerva McGonagall. A chegada do guardio do beb, Rbeo Hagrid, tambm foge ao comum: com o barulho de um trovo (metfora referente ao barulho da moto e ao estrondo produzido por uma descarga eltrica atmosfrica), uma enorme motocicleta caiu do ar e parou na rua diante deles (ROWLING, 2000, p. 18). Alm disso, Hagrid era quase duas vezes mais alto do que um homem normal e pelo menos cinco vezes mais largo e suas mos tinham o tamanho de uma lata de lixo e os ps calados com botas de couro pareciam filhotes de golfinhos (ROWLING, 2000, p. 18). Diante do que foi apresentado, pode-se observar que h uma clara dicotomia temtica no que se refere ao cotidiano das personagens: as pessoas comuns (ditas normais, ou seja, as no-mgicas) caracterizam-se pela rotina sem atrativos (o que permite recategoriz-las como trouxas). rotina ope-se a novidade vivenciada pelos seres mgicos. J quando se considera a relao que esses dois grupos mantm com Harry, protagonista da histria e responsvel pelo ponto de vista que norteia a presente anlise, os

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temas que se opem so a rejeio e a aceitao. O tema da aceitao remete ao relacionamento que se desenvolve entre Harry e seus pares (embora nem todos o queiram bem, no se pe em xeque o fato de ele ser um bruxo como os outros, ou seja, ele tomado como igual), j o da rejeio aparece claramente nas relaes que Harry mantm com sua famlia (biolgica), como pde ser visto em passagens anteriormente citadas.

2. Segunda histria

2.1. Sntese

A segunda histria recobre a maior parte do livro, uma vez que engloba os Captulos de Cinco a Dezessete (o ltimo da obra). Essa parte da narrativa inicia-se logo aps Harry descobrir-se e aceitar-se bruxo por meio do fazer cognitivo (persuasivo) de Hagrid, o gigante guarda-caa de Hogwarts. A partir desse momento, o garoto comea a entrar no mundo mgico a que seus pais pertenciam e do qual ele tambm perceber que faz parte. Assim, Hagrid leva Harry para comprar seus materiais escolares e, dessa forma, o jovem bruxo descobre que existe uma moeda bruxa, os nuques, um banco bruxo, Gringotes, um bar freqentado somente por bruxos, o Caldeiro Furado, alm do Ministrio da Magia, assim como um lugar especfico em Londres em que todos os seres mgicos podem fazer suas compras, o Beco Diagonal (ROWLING, 2000, p. 58-63). para l que os dois se dirigem e onde Harry v pessoas diferentes do que est acostumado, e seres mgicos que nunca havia avistado antes, como os duendes que administram o banco. Depois de passear com o gigante pelos becos mgicos de Londres, Harry retorna casa dos tios para esperar at o dia em que embarcaria no trem para Hogwarts.

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Dessa forma, no dia marcado, o menino, levado por seus parentes, vai at a estao Kings Cross, de onde o trem sairia, s onze horas, da plataforma nove e meia, inexistente aos olhos humanos. Sem o auxlio dos tios, o jovem bruxo ajudado pelos membros da famlia Weasley, da qual faz parte Rony, que se tornar um dos grandes amigos de Harry. Ao embarcar no trem, Harry termina por ocupar a mesma cabine de Rony e, conversando ao longo da viagem, os dois tornam-se ntimos. No expresso de Hogwarts, contudo, a notcia de que Harry Potter est presente espalha-se, e, por esse motivo, todos querem v-lo. Nesse contexto, Draco Malfoy e seus amigos, Crabbe e Goyle, entram na cabine e apresentam-se a Harry com o intuito de conhecer o menino mais famoso do mundo mgico. A estratgia de Draco aconselhar Harry, dizendo que, ao se envolver com pessoas como Rony Weasley, ele est comeando sua trajetria de modo errado, pois existem famlias de bruxos boas e ruins, e, obviamente, a dele pertence ao primeiro time, enquanto a famlia Weasley, ao segundo. Harry, no entanto, no se deixa levar e no aceita os conselhos de Malfoy, irritando o menino e estabelecendo com ele uma relao de inimizade. Rony, aps a sada dos trs garotos impertinentes explica que a qualidade familiar a que Draco se referia diz respeito ao fato de todos de um grupo familiar serem bruxos (as boas famlias), enquanto as ruins seriam aquelas em que nem todos possuem poderes mgicos ou, ento, como o caso dos Weasley, aquelas que no discriminam outras que tm essa caracterstica. Ainda no trem que os leva escola de bruxos, Harry conhece mais duas crianas que se tornaro seus amigos, Hermione Granger e Neville Longbottom. Ao chegarem escola, os novos amigos assim como todos os demais alunos novatos devem passar pelo Chapu Seletor, chapu mgico que, ao ser colocado sobre a cabea de um aluno novato, decide em qual casa o estudante deve ingressar. As casas a que nos referimos so assim explicadas pela Prof Minerva McGonagall:

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As quatro casas chamam-se Grifinria, Lufa-lufa, Cornival e Sonserina. Cada casa tem sua histria honrosa e cada uma produziu bruxas e bruxos extraordinrios. Enquanto estiverem em Hogwarts os seus acertos rendero pontos para sua casa, enquanto os erros a faro perder. No fim do ano, a casa com o maior nmero de pontos receber a taa da casa, uma grande honra. Espero que cada um de vocs seja motivo de orgulho para a casa qual vier a pertencer [...] (ROWLING, 2000, p. 101).

Harry, Rony, Hermione, bem como Neville, terminam na Grifinria, enquanto Draco e seus amigos juntam-se Sonserina. A seleo, como foi dito, realizada pelo Chapu Seletor, mas, como se pode perceber pela seguinte passagem, Harry participa da escolha de sua nova casa:

A ltima coisa que Harry viu antes de o chapu lhe cair sobre os olhos foi um salo cheio de gente se espichando para lhe dar uma boa olhada. Em seguida s viu a escurido dentro do chapu. - Difcil. Muito difcil. Bastante coragem, vejo. Uma mente nada m. H talento, ah, minha nossa, uma sede razovel de se provar, ora isso interessante... Ento onde vou coloc-lo? Harry apertou as bordas do banquinho e pensou Sonserina no, Sonserina, no. - Sonserina no, hein?. - disse a vozinha. - Tem certeza? Voc poderia ser grande, sabe, est tudo aqui na sua cabea, e a Sonserina lhe ajudaria a alcanar essa grandeza, sem dvida nenhuma, no? Bem, se voc tem certeza, ficar melhor na GRIFINRIA! (ROWLING, 2000, p. 107; grifo do original).

J no primeiro jantar em sua nova morada, Harry surpreende-se com os fantasmas que rondam Hogwarts, como Nick Quase Sem Cabea e Pirraa. Na sua trajetria escolar, Harry e seus colegas conhecem os professores, dentre eles, o por todos temido, Prof. Snape, mestre em Poes que nutre, por Harry, um visvel desprezo, e o Prof. Quirrel, que leciona Defesa Contra As Artes das Trevas e apresenta um comportamento estranho, estando sempre nervoso. Por meio de Hagrid, Harry toma conhecimento, dias depois de sua chegada escola, de que um dos cofres do banco Gringotes, apesar de altamente seguro, havia sido arrombado. Malgrado a tentativa, nada havia sido levado do cofre. Harry, Rony e

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Hermione ficam, entretanto, intrigados com a tentativa de Hagrid de esconder a notcia. Harry deduz que tal reao pode ter como causa a tarefa do gigante de, no dia em que levou Harry ao banco bruxo para retirar dinheiro (com o qual pagaria as despesas com os materiais escolares), buscar, no mesmo cofre que foi posteriormente arrombado, um objeto requisitado por Dumbledore. Nos dias que seguem, ocorre a primeira aula de vo em vassoura, gerando alguns incidentes. Draco Malfoy e seus amigos, por incomodarem Neville, acabam discutindo com Harry. A briga apartada pela Prof Minerva McGonagall. Assim, Draco e Harry acabam por resolver seus problemas no ar, durante a aula da Prof Hooch. Impressionada com o desempenho de Harry, a professora McGonagall convida-o para fazer parte do time de quadribol (esporte bruxo jogado em cima de vassouras) de Grifinria. A rusga entre os dois colegas tem mais um captulo com a proposta de Draco para que os dois se enfrentem em um duelo de bruxos meia-noite, na sala de trofus. O duelo, todavia, era uma armadilha para que Harry, Rony, Hermione e Neville fossem pegos pelo Sr. Filch, zelador que persegue os alunos que ficam fora das salas comunais de suas Casas depois da hora de dormir, j que nem Draco nem seus amigos apareceram ao encontro marcado. Ao mesmo tempo em que se defronta com as dificuldades de aprender a realizar seus primeiros feitios, Harry enfrenta os treinos com o time de quadribol de Grifinria. J no dia das bruxas, os trs amigos (Harry, Rony e Hermione) combatem um trasgo, ser monstruoso que surge em Hogwarts e ameaa a segurana de seus colegas. Harry escuta, ento, uma conversa entre o Prof. Snape e o Sr. Filch, em que o primeiro reclama de um machucado que o zelador procurava curar. Filch interroga ainda o professor sobre como ficar de olho em trs cabeas ao mesmo tempo (ROWLING, 2000, p. 159). Harry e seus amigos desconfiam, dessa forma, de que Snape tentou passar

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pelo cachorro de trs cabeas, Fofo, que guardava algo que o professor queria obter na noite do Dia das Bruxas, aproveitando-se do fato de que todas as atenes estavam voltadas para o trasgo. Tal episdio leva os jovens bruxos a acreditar que a entrada do monstro em Hogwarts teria sido uma estratgia de distrao. J em seu primeiro jogo de quadribol como titular do time de Grifinria, Harry sofre com a inconstncia de sua vassoura, que tenta incessantemente atir-lo ao cho. Acreditando que o Prof. Snape o culpado por manipular o objeto, Hermione e Rony simultaneamente colocam fogo na roupa desse professor e acabam empurrando, sem querer, o Prof. Quirrel, que estava na fileira da frente. Isso evita que Harry continue em situao perigosa, fazendo com que seu time sagre-se vencedor. Ao conversarem com Rbeo Hagrid sobre o suposto envolvimento de Snape com o incidente do primeiro jogo de quadribol do ano, assim como de sua suposta tentativa de passar pelo cachorro de trs cabeas, Harry e seus amigos descobrem que o que Fofo esconde algo relacionado amizade de Alvo Dumbledore e um tal Nicolau Flamel, que os trs amigos buscam inutilmente descobrir quem . No feriado de Natal, Harry, que fica em Hogwarts para no ter que voltar casa dos tios, ganha um presente inesperado: uma capa de invisibilidade. Ao experimentar a capa naquela mesma noite, Harry depara-se, ao passear pelo castelo, com um espelho, em que v seus pais. Entretanto, alertado por Dumbledore, na terceira noite seguida em que vai at o aposento do espelho, de que, na verdade, o espelho de Ojesed mostra a todos que o olham o que cada um deseja ver. Finalmente, em um sapo de chocolate, doce mgico que vem com uma figurinha de brinde, Harry encontra a resposta para sua busca: na figurinha da srie Bruxos Famosos dedicada a Alvo Dumbledore, l-se a seguinte explicao:

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O Prof. Dumbledore particularmente famoso por ter derrotado Grindelwald, o bruxo das Trevas, em 1945, e ter descoberto os doze usos do sangue de drago, e por desenvolver um trabalho de alquimia em parceria com Nicolau Flamel.. (ROWLING, 2000, p. 189; grifos do original).

A partir dessa informao e com a ajuda de livros da biblioteca, Harry, Rony e Hermione compreendem que Nicolau Flamel era um alquimista, amigo de Dumbledore, que tinha, como principal trabalho, a produo da Pedra Filosofal, substncia lendria com poderes fantsticos, capaz de transformar qualquer metal em ouro, podendo ainda produzir o Elixir da Vida, que torna imortal quem o bebe (ROWLING, 2000, p. 190). Desconfiando ainda do Prof. Snape, Harry surpreende o professor de Poes conversando com o mestre de Defesa Contra as Artes das Trevas, Prof. Quirrel, sobre a Pedra Filosofal, o que intensifica ainda mais suas desconfianas, que recaem sobre o primeiro. Por Hagrid, os jovens amigos ficam sabendo que a Pedra Filosofal est cercada por outras formas de proteo, alm de Fofo, o cachorro de trs cabeas emprestado pelo guarda-caa. Assim, o prprio Hagrid diz:

Bom, acho que no poderia fazer mal contar isso... vamos ver.. ele pediu Fofo emprestado a mim.., depois alguns professores fizeram os feitios... o Prof. Sprout.. o Prof Flitwick... a Prof. Minerva... ele foi contando nos dedos o Prof. Quirrell... e o prprio Dumbledore tambm fez alguma coisa, claro. Um momento, esqueci algum. Ah, sim, o Prof. Snape. (ROWLING, 2000. p. 200).

Eles percebem, portanto, que diversos tipos de feitios protegem a Pedra Filosofal, desde poes mgicas at plantas venenosas, especialidades dos professores Snape e Sprout, respectivamente. Nessa mesma conversa, as crianas descobrem que Hagrid escondia ilegalmente um filhote de drago noruegus em sua casa. Querendo ajud-lo a livrar-se do drago, mesmo contra sua vontade, Rony contacta seu irmo mais velho Carlinhos,

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especialista em drages, e consegue que este venha buscar o filhote para que Hagrid no seja pego criando um animal ilegal. O resgate perigoso. Harry, Rony e Neville so encontrados pela Prof Minerva, alertada por uma denncia de Draco Malfoy, e esta desconta, ento, cinqenta pontos de cada um em relao pontuao de Grifinria, tornando-os, desse modo, alvo do ressentimento de todos os companheiros de Casa. Como punio, Harry, Hermione, Neville e Draco devem tambm dirigir-se Floresta Proibida, onde devem ajudar Hagrid a encontrar um unicrnio ferido. L tambm encontram centauros, criaturas mgicas que so metade homem, metade cavalo. Quando o grupo se divide, Harry, Draco e Canino, o cachorro de Hagrid, acham um unicrnio sendo atacado por algum encapuzado. Firenze, um dos centauros, ajuda Harry a escapar e lhe explica que

[...] uma coisa monstruosa matar um unicrnio. S algum que no tem nada a perder e tudo a ganhar cometeria um crime desses. O sangue do unicrnio mantm a pessoa viva, mesmo quando ela est beira da morte, mas a um preo terrvel (ROWLING, 2000. p. 222).

A partir dessa explanao e dos acontecimentos anteriores, o jovem bruxo convence-se de que o Prof Snape, na verdade, queria a Pedra Filosofal para que Voldemort, o arquiinimigo de Harry, pudesse recuperar-se e voltar a atacar. Pouco depois de prestar os exames finais da escola, Harry, em uma conversa com Hermione, chega concluso de que talvez Hagrid tenha dito a mais algum como passar por Fofo, o primeiro guardio da Pedra Filosofal, em troca do ovo de drago, que ele ganhou de um estranho em um bar. Pressionado, o guarda-caa acaba por confirmar as suspeitas do garoto, levando os trs amigos a ir atrs da pedra para que consigam peg-la antes de Snape. Eles dirigem-se, ento, porta do terceiro andar, atrs da qual sabiam que se

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encontrava Fofo. Sendo informados por Hagrid de que o cachorro de trs cabeas dormia ao som de uma flauta, Harr