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FUNDAÇÃO ESTATAL SAÚDE DA FAMÍLIA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ RESIDÊNCIA INTEGRADA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE DA FAMÍLIA JAILMA DE FRIAS SANTOS PRÁXIS EM SAÚDE DA FAMÍLIA ATRAVÉS DA RESIDÊNCIA: A COSTURA HARMÔNICA ENTRE OS APORTES TEÓRICOS E AS VIVÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DO SABER DIAS d’ÁVILA 2017

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FUNDAÇÃO ESTATAL SAÚDE DA FAMÍLIA

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

RESIDÊNCIA INTEGRADA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE DA FAMÍLIA

JAILMA DE FRIAS SANTOS

PRÁXIS EM SAÚDE DA FAMÍLIA ATRAVÉS DA RESIDÊNCIA: A COSTURA HARMÔNICA ENTRE OS APORTES TEÓRICOS E AS VIVÊNCIAS NA

CONSTRUÇÃO DO SABER

DIAS d’ÁVILA

2017

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JAILMA DE FRIAS SANTOS

PRÁXIS EM SAÚDE DA FAMÍLIA ATRAVÉS DA RESIDÊNCIA: A COSTURA HARMÔNICA ENTRE OS APORTES TEÓRICOS E AS VIVÊNCIAS NA

CONSTRUÇÃO DO SABER

Trabalho de conclusão de Residência apresentado à Fundação Estatal Saúde da Família e Fundação Osvaldo Cruz – BA para certificação como Especialista em Saúde da Família.

Orientadora: Leane Rosa Santos Silva Coorientadora: Dhara Santana Teixeira

DIAS d’ÁVILA

2017

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RESUMO

A residência em Saúde da Família é um programa estratégico de formação de

profissionais para atuarem no Sistema Único de Saúde. Com um período de duração

de vinte e quatro meses, é possível ofertar ao profissional graduado experiências

acumulativas e norteadoras de mudanças nos processos de trabalho, compreensão da

necessidade do cuidado com os indivíduos, famílias e rede social dos mesmos para

além de suas demandas emergentes, formação crítica e reflexiva perante a realidade

do território, formação humanística para além da acadêmica, trabalho em redes

visando a integração dos serviços como um todo. Este trabalho de conclusão de

residência visa proporcionar ao leitor uma passagem de tempo compreendida entre

março de 2017 a março de 2019. No decorrer do texto serão realizadas descrições

das memórias de uma residente, dentista, recém graduada em seu processo de

formação. A escrita permeará pelas descobertas, erros e acertos, angústias, além dos

aprendizados e incorporação destes à formação de mais uma profissional militante de

um SUS possível e necessário.

Palavras-chave: Saúde da Família, Odontologia Comunitária, Saúde Coletiva

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ABSTRACT

The residency in Family Health is a strategic program of training of professionals to

work in the Unified Health System. With a duration of twenty four months, it is possible

to offer to the graduated professional cumulative and guiding experiences of changes

in work processes, understanding of the need for care with users beyond their

emerging demands, critical and reflexive training in the reality of the territory,

humanistic training beyond the academic, working in networks aimed at integrating

services as a whole. This work of completion of residence aims to provide the reader

with a passage of time between March 2017 and March 2019. Throughout the text will

be made descriptions of the memories of a resident, dentist, recently graduated, in his

training process. Writing will permeate through the discoveries, mistakes and

successes, anguishes, besides the learning and incorporation of these to the formation

of one more militant professional of a possible and necessary SUS.

Key words: Family Health, Community Dentistry ,Public Health

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

SUS Sistema único de Saúde

FESF Fundação Estatal Saúde da Família

APS Atenção Primária à Saúde

ESF Estratégia de Saúde da Família

USF Unidade de Saúde da Família

NASF Núcleo Ampliado de Saúde da Família

UNIRB Faculdade Regional da Bahia

EESP Escola Estadual de Saúde Pública

IST Infecção Sexualmente Transmissível

HIV Vírus da Imunodeficiência Adquirida

AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

CEDAP Centro Especializado em Diagnóstico Assistência e Pesquisa

SESAB Secretaria de Saúde da Bahia

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

SUAS Sistema Único de Assistência Social

RAPS Rede de Atenção Psicossocial

CREAS Centro de Referência de Assistência Social

“O poder só tem razão de ser quando é usado para servir ao povo” Movimento Nacional de População de Rua

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SUMÁRIO

RESUMO

ABSTRACT

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7

1.0 Inclinações pessoais .................................................................................. 8

1.1 Experiências na graduação em Odontologia .................................. 9

1.2 Por que uma residência em Saúde da Família? ............................ 13

2.0 A odontologia na Estatégia de Saúde da Família ..................................... 15

3.0 Desafios diários: a micropolítica como estratégia do trabalho em

equipe........................................................................................................ .22

4.0 Formações complementares e expansão do horizonte das ideias ........... 23

4.1 A formação em Auriculoterapia para profissionais da Atenção

Básica......................................................................................................... 24

5.0 Os espaços pedagógicos e formativos na residência ............................... 27

6.0 A CAPSização do meu EU e os encontros e desencontros na Saúde Mental

.................................................................................................................. 30

6.1 A Rede de Atenção Psicossocial de Dias d’Ávila ......................... 33

6.2 Desnudando-se de outras vestes: o CAPS Gregório de Matos em

Salvador ........................................................................................ 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 41

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 42

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INTRODUÇÃO

Os programas de residência multiprofissional em saúde da família datam do ano de

1975 e foram regulamentados em 30 de junho 2005 através da lei 11.129¹. São

compostos das seguintes graduações em saúde: Biomedicina, Ciências Biológicas,

Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina

Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional.

Reorientação das práticas em saúde através da formação baseada nos princípios e

diretrizes no Sistema Único de Saúde (SUS), além da utilização da Educação

Permanente como estratégia, constituem-se como elementos produtores de mudanças

nas realidades locorregionais das comunidades brasileiras. ²

A Fundação Estatal Saúde da Família (FESF-SUS), empresa pública de direito

privado, foi criada em 2009 e no ano seguinte foi realizado o primeiro processo

seletivo. O objetivo da instituição, é garantir a articulação ensino-serviço através da

formação por meio de uma especialização lato sensu em Saúde da Família. No ano de

2017 na Bahia, a residência multiprofissional da FESF-SUS fez-se presente nos

municípios de Lauro de Freitas, Camaçari e Dias d’Ávila, sendo que o primeiro e o

último município foram os mais recentes a desenvolver parcerias com o programa.³

A Reforma Sanitária foi um importante evento ocorrido para o fortalecimento das

práticas em Saúde Coletiva no SUS. A Atenção Primária em Saúde (APS) é a porta

preferencial de acesso aos serviços públicos no Brasil e é por meio da Estratégia

Saúde da Família (ESF) que é possível ofertar aos usuários atendimentos de forma

equânime, contínua, integral e resolutiva. São componentes da ESF: a equipe mínima

de referência das Unidades de Saúde da Família (USF) e o Núcleo Ampliado de

Saúde da Família (NASF).4

Este memorial visa resgatar as memórias de uma dentista em processo de formação

por meio de uma residência multiprofissional em saúde da família. Serão abordados

elementos que contribuíram na reflexão da práxis em saúde da família e a costura

harmônica entre os aportes teóricos e as vivências na construção do saber.

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1.0 Inclinações pessoais

Sistema Único de Saúde, experimentado por muitos, mal falado pela sua logística, mal

gerido e administrado. Foi esse “plano de saúde gratuito” que tive e tenho até hoje.

Ocorre que o sistema de desembolso direto tem uma lógica capitalista e perversa de

funcionamento. 5 Você usa se tiver dinheiro para pagar. Nasci em uma maternidade

pública no município de Pojuca-Bahia, fui acompanhada nos serviços públicos durante

a infância, em alguns momentos, por falta de algumas especialidades nesse sistema,

passei por consultórios privados. O atendimento sempre muito rápido, pautado única e

exclusivamente na queixa, aquilo incomodava.

Sofri um acidente de veículo aos três anos de idade, fui prontamente atendida em um

Hospital Público, o profissional era inspirador. Com todo cuidado e zelo respeitou a

minha opção de não querer usar fraldas descartáveis, conversava comigo ainda que

eu não estivesse entendendo o que estava acontecendo naquele momento, fez a

minha cirurgia de emergência na pálpebra superior direita fazendo um enxerto com

tecido retirado da orelha direita de forma tão minuciosa que anos depois, na avaliação

de outros profissionais da cirurgia plástica, fora elogiado.

Arquivo pessoal (imagens da face após o acidente)

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Um período conturbado da minha infância eu vivi dos três aos sete anos. Olhar no

espelho era algo que eu tentava evitar ao máximo, era um martírio ver a deformação

da qual eu deveria aprender a conviver. Várias foram as críticas dos colegas de classe

que não compreendiam como uma criança que tinha um rosto de uma forma, passado

um período de tempo tinha uma nova face aparentemente estranha. Houve muito

bullying e eu não sabia lidar com o sofrimento psíquico que aquilo me causava. Apesar

da cicatriz, eu admirava o fato de um médico ter tido uma abordagem acolhedora

comigo e ter feito algo para mim admirável. Como era possível tirar um “pedaço de

pele” e aproveitar em outro lugar?

Fui me encantando com o trabalho da Medicina, e por diversas vezes afirmei que

queria ser médica quando ficasse adulta como diz toda criança. Queria retribuir para

os que precisassem os cuidados que a medicina poderia ofertar, da maneira como um

dia recebi. E tudo convergia para que o gosto fosse aumentando, na escola a matéria

favorita era Ciências, além das matérias de Humanas. Ficava intrigada com os

acontecimentos da humanidade.

Houve um período que até fiquei em dúvida sobre qual carreira profissional seguir. As

áreas das Biológicas e Humanas estavam de igual para igual no meu desempenho

escolar. Usei o critério capitalista. O que poderia me oferecer mais campos de trabalho

e que eu me sentisse realizada profissionalmente?

Mudei de colégio no Ensino Médio, fiz um ano em uma e dois em outra instituição.

Meu desempenho não era mais o mesmo principalmente nas Ciências Humanas. Mas

eu sabia que eu queria fazer algum curso na área de saúde. Queria medicina ainda,

mas sabia que meu desempenho não estava excelente o suficiente para enfrentar o

vestibular. Em uma atitude emotiva, e pela compreensão de que se eu não tentasse

não saberia se passaria ou não, eu tentei meu primeiro vestibular na Universidade

Federal da Bahia para Medicina, e li a seguinte frase no sistema: candidato não

classificado por falta de vagas.

1.1 Experiências na graduação em Odontologia

Não ter sido aprovada no vestibular de Medicina de imediato, me fez pensar em

estratégias. A pressão familiar era tamanha ao ponto de afirmar incansavelmente que

eu não podia ficar em casa sem fazer nada. Que eu escolhesse uma faculdade em

conta para que a família pudesse custear. Escolhi Odontologia. A meu ver era uma

profissão entendida como liberal e que o profissional exerce sua liderança no processo

de trabalho.

Fiz seis meses da graduação em Odontologia na Faculdade Regional da Bahia

(UNIRB). Fui fazendo as contas para cada semestre e sabia que além de investir nas

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mensalidades investiria também na compra dos instrumentais odontológicos. O

orçamento seria muito oneroso para a minha família.

Decidi abandonar o curso, com uma alternativa em vista: iria trabalhar para pagar um

cursinho para que eu me dedicasse ao vestibular da UFBA. Como eu já havia passado

pela experiência do ano anterior, eu iria desta vez, prestar o vestibular para

Odontologia.

Era um período desgastante da minha vida, trabalhava em call center pela manhã,

estudava em casa à tarde e ia para o cursinho à noite. Mas estava confiante no meu

propósito. Passei, e um novo capítulo estava para ser escrito em minha história.

Sem acreditar direito, eu ficava vislumbrada somente com o fato de estudar em uma

universidade pública, de não ter gastos absurdos com formação universitária e estudar

na faculdade referência do Nordeste.

Já no primeiro semestre tive contato com a disciplina de Ciências Sociais e nela uma

professora apresentou para os alunos uma pesquisa feita por ela e pelos

colaboradores sobre a situação do mercado de trabalho para a Odontologia, a

inserção do profissional no SUS e no serviço privado. Fora a real situação ali exposta,

havia me encantado pelo leque de possibilidades do dentista na ESF.

A partir dessa identificação fui me aproximando de disciplinas que tinham o mesmo

núcleo de sentido da saúde coletiva. Após a disciplina de Odontologia em Saúde

Coletiva I, fiz a inscrição para o Estágio de Vivências no SUS e fui contemplada para

vivenciar no período de uma semana a realidade do SUS em Salvador na Bahia.6

Arquivo pessoal (Estágio de Vivências no SUS no município de Santo Antônio de Jesus)

Encantada com a proposta do projeto e a vivência, ao retornar para a faculdade tentei

participar de algumas seleções para projetos de pesquisa não somente da saúde

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coletiva. Não consegui nenhum, e estava decidida a participar de qualquer processo

seletivo e que pudesse compor minhas atividades extracurriculares para minha

formação. Fiz o processo seletivo para Gestão de Processos Educativos. Haviam duas

vagas. Depois da entrevista e de mais alguns dias, o resultado: fui contemplada.

Fiquei aproximadamente três meses na Escola Estadual de Saúde Pública (EESP).

Contribuí com as tarefas necessárias para o processo seletivo para a Residência de

Medicina de Família e Comunidade na época e com mais uma edição do estágio de

vivências no SUS, da qual eu participei novamente não mais como estagiária e sim

como mediadora. Não sabia mediar, ou achava que não sabia. As discussões eram

longas entre os colegas e por vezes eu ficava a pensar: não tenho o domínio que os

colegas têm sobre o SUS, mesmo sabendo que eles vinham de experiências

diferentes. Mas estava feliz por ter me lançado ao desafio e por me sentir útil para

esse sistema de saúde.

Passado um período, fiz outro processo seletivo externo. Era para um projeto que

fazia parte do Humaniza SUS, com o objetivo de pôr em prática os princípios do SUS

no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e

cuidar 7 O Permanecer SUS, com a ideia de promover práticas humanizadoras e

acolhedoras nas portas de entrada de alguns serviços de saúde de Salvador8. Tive a

oportunidade de escolher o serviço que seria alocada, e, pelo fato de no meu primeiro

estágio de vivências ter me sentido incomodada ainda que sem saber explicar ao certo

o motivo, escolhi um local para o tratamento e acompanhamento das IST e do

HIV/AIDS. Era algo que eu precisava trabalhar em mim mesma.

Foi um período magnífico, pude acompanhar de perto um serviço do SUS que

funcionava, ainda que com seus problemas, de maneira satisfatória. O Centro

Especializado em Diagnóstico Assistência e Pesquisa (CEDAP) foi extremamente

necessário para minha formação, porque a partir dele consegui ampliar o meu olhar

para além da condição da manifestação das doenças das pessoas que no serviço

adentravam, além de ter me auxiliado na desconstrução do imaginário do estigma das

IST. No CEDAP realizávamos, eu e mais cinco colegas, o acolhimento dos usuários na

porta do serviço, e a depender das necessidades, acompanhávamos, caso fosse

permitido, até o desfecho dos quadros clínicos. Fazíamos também em turno

reservado, discussões e compartilhamentos dos casos, além da relatoria deles

diariamente.

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.

Arquivo pessoal (Estágio em Humanização dos serviços por meio do Permanecer SUS)

Participei da formação da Empresa Júnior, a Dentarium. Fui percebendo lentamente

que eu não me identificava com a lógica do setor privado, ainda que o usuário

pagasse por um procedimento um valor reduzido em um horário não comercial da

faculdade, ou por exames não ofertados pela Universidade. Dentro de uma instituição

pública era um desconforto em pensar por esse ponto de vista. Mas permaneci por um

ano e não dei mais continuidade.

Passadas essas experiências prévias e já me programando para concluir a graduação

em um período que eu pudesse participar do processo seletivo da residência

multiprofissional em saúde da família da SESAB (Secretaria da Saúde do Estado da

Bahia), eu optei por ser orientada por uma docente do departamento da Saúde

Coletiva, e depois de alguns ajustes e já escrito alguns parágrafos de um pequeno

projeto, voltei atrás e fiz um novo. Queria falar sobre o Acolhimento de pessoas que

vivem com HIV/AIDS em serviços odontológicos de Salvador. Era um projeto de

pesquisa, que por dificuldades com o comitê de ética de Odontologia da UFBA, foi

transformado em revisão de literatura e apresentado.

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Arquivo pessoal (Patrícia Suguri, orientadora do TCC)

1.2 Por que uma residência em Saúde da Família?

Acredito que grande parte dos profissionais recém-graduados, ainda que tenham

vivido a clínica com intensidade na faculdade, sentem o peso do desafio que é estar

diante da realidade dos serviços odontológicos, sejam públicos ou privados. Assim que

concluí a graduação, passei um curto período de tempo atendendo em um consultório

de uma colega no setor privado. Sem ter nenhum entendimento sobre como e quanto

custavam os procedimentos e quanto eu deveria cobrar do paciente, tive que me

aventurar em confiar na experiência da auxiliar de saúde bucal que já trabalhava na

clínica havia alguns anos. Fui descobrindo aos poucos que não me identifico muito

com a odontologia mercantilista que existe.9 Em um bairro popular, parece que os

consultórios privados triplicam, não há cobrança do valor da consulta, que na verdade

é chamada de orçamento pelos pacientes. Um orçamento realizado não é garantia de

um tratamento a ser concluído. Se gasta material descartável, hora clínica, material

estéril para no fim saber que o paciente fará o procedimento em outra clínica porque a

outra cobra mais barato.

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A lógica é puramente focal. Vai na queixa trazida pelo paciente, não há um

acompanhamento dele como um todo. Ele passa a ser um dente a ser extraído, uma

prótese a ser feita, um canal para tratar.

A imprevisibilidade da clientela odontológica também era algo a ser pensado. Havia

períodos que o consultório remunerava bem, havia outros em que eu pagava para

trabalhar sem nada a receber. Se o rendimento está atrelado à produtividade, como

produzir mais quando não há o que ser produzido? É inviável. Fora as condições de

trabalho que são impostas. A auxiliar é a mesma pessoa que higieniza o consultório e

atende ao telefone, que recebe os pagamentos e por vezes o profissional tem que

dividir sua cadeira odontológica com outro colega.

A odontologia na lógica da saúde da família permite levar para os usuários o cuidado

longitudinal, integral, com formação de vínculo, o que também é importante nas

relações humanas10. Para extrair um dente, uma anamnese é preenchida, sinais vitais

são aferidos, exame físico é feito, o paciente é preparado antes e após o

procedimento, e ele retorna outras vezes porque diferente do consultório privado que

há a procura pelo mais barato, o usuário tem sua unidade de referência. Ele traz nas

próximas consultas, a demanda de outro familiar, ou do vizinho no território que está

acamado por exemplo. Já o profissional deve programar a sua agenda baseado nas

demandas da comunidade, porque isso é preconizado quando a gestão da agenda é

pensada.

A formação em serviço é extremamente potente porque através das avaliações

periódicas, encontros, espaços de discussão entre núcleos, reuniões com a equipe do

serviço, interconsultas, visitas domiciliares, educação continuada e educação

permanente, programas de saúde e tantos outros, é possível ofertar o melhor para

uma comunidade, apesar de que para atingir o ideal, os desafios são diários.

Estar em um programa de residência é também sinônimo de não ter que se preocupar

com instabilidade financeira por um período previsto. Ela permite também a obtenção

do título de especialista baseado na prática. 11 Com metodologias diferentes das que a

formação tradicional em saúde ainda se baseia, permitem ao profissional amplas

reflexões sobre os processos de trabalho, além de proporcionar a vivência do

residente na rede de serviços já no segundo ano. O profissional consegue associar

experiências adquiridas no primeiro ano, à realidade dos demais espaços que

compõem o seu escopo de atuação no segundo ano, como são os espaços da gestão

de um município, e que repercutem na prática assistencial e vice versa.12 Através de

estratégias de iniciação à preceptoria, o residente tem a oportunidade de orientar os

colegas, sejam eles do mesmo núcleo de práticas ou não, a realizar o fazer em saúde

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de outras formas, resignificando o processo de aprendizado e tornando-o dinâmico e

fluido.

Arquivo pessoal (USF Entroncamento I e II antes da inauguração do Entroncamento II)

2.0 A odontologia na Estratégia de Saúde da Família

A odontologia teve uma inserção tardia nas unidades de saúde da família. Compondo

a equipe mínima e multiprofissional de uma unidade, o dentista é também responsável

pela clientela adscrita do território do qual atua. Com um trabalho pautado em

aspectos curativistas, o profissional deve maximizar sua hora clínica sem que para

isso, atividades de promoção e prevenção de agravos em saúde bucal sejam também

planejadas e desenvolvidas. 13

A atenção básica por sua característica de porta aberta, em especial, a saúde bucal,

tem um modus operandi de funcionamento. O primeiro contato dá-se por meio do

acolhimento que inclui a escuta atenta de necessidades, além do atender, encaminhar

quando necessário e acompanhar os casos. O vínculo é construído baseado na

relação de confiança e com o processo do cuidar desenvolvido no binômio indivíduo-

indivíduo, ou indivíduo-grupo. Por meio dele é possível também aproximar-se da

realidade sanitária do território e pensar na intersetorialidade para desenvolvimento de

ações estratégicas que visem a melhoria dos indicadores e redução das iniquidades

em saúde.

Compete ao profissional dentista, bem como os demais profissionais de uma USF,

desenvolver um olhar aguçado para as especificidades do território e sempre que

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possível utilizar de dados epidemiológicos e sociodemográficos para o planejamento

das ações em saúde bucal, bem como articulá-las com as ações promovidas por

outros núcleos da saúde dentro de uma equipe. A educação permanente também

deve ser adotada como estratégia para a horizontalização do cuidado entre os

profissionais e entre esses e os usuários do serviço. O dentista assim como outros

profissionais participa do gerenciamento de insumos para o desenvolvimento de sua

atividade clínica.

Por atuar na promoção, prevenção, proteção e recuperação dos agravos, a estratégia

em saúde da família é privilegiada permite ao dentista ações coletivas o que difere do

trabalho no setor privado. O trabalho do dentista vai para além da cadeira odontológica

que é um dos componentes da práxis clínica e do consultório e passa a ser um

trabalho extramuro e que exige do profissional capacidade de articulação, expertise,

análise e síntese.

No primeiro ano da especialização tive algumas experiências marcantes. Experiências

que talvez eu não vivesse em outra formação que não a da residência. Como

atribuição de uma equipe de saúde da família, participei com os demais colegas da

territorialização com as agentes comunitárias de saúde. Conhecer a comunidade da

qual eu teria dali por diante responsabilidade sanitária, foi fundamental. A distância da

casa do usuário até a USF, as condições das residências, das famílias e do convívio

familiar, os equipamentos sociais presentes, a falta do saneamento básico nas ruas,

os acamados, cadeirantes, as pessoas em sofrimento psíquico diverso, as que fazem

uso problemático do álcool e de outras substâncias psicoativas. O Ministério da Saúde

preconiza que deve realizar o diagnóstico da saúde da comunidade para planejar e

organizar adequadamente as ações de saúde e que deverão ser utilizadas dados de

fontes oficiais de informações, mas também as qualitativas e de informações da

própria comunidade.14 A preceptoria estava presente nesses momentos iniciais e foi

possível trabalhar a horizontalidade das relações no processo de trabalho.

Última paciente do dia... agendada para o último horário, ela atrasa 10

min. Separando prontuários e preenchendo a ficha do E-SUS, um cartão

é entregue na sala pelo assistente administrativo da unidade. Outra

paciente havia chegado...

Saí da sala para conversar com outra colega da residência e minha

preceptora atende a paciente com a auxiliar na sala, logo sou chamada.

Quando observei a cavidade oral da mesma, a preceptora mostrou o

eritema que ali estava. Língua fissurada, dentes dispostos em forma de

leque, sugestivos de candidíase oral e periodontite crônica severa

generalizada. A usuária em questão senta para que a preceptora faça a

prescrição do antifúngico para bochecho. Eu observo a paciente por

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completo com uma interrogação que não tinha mais fim em minha mente.

Rapidamente recordei dos momentos em que estive em outros estágios

em Salvador e durante as orientações dadas à paciente eu questionei:

-O que a senhora sente exatamente?

-Sinto dificuldades para me alimentar. Minha garganta dói muito e a boca

está toda avermelhada (respondeu a paciente).

-Desde quando que a senhora tem dificuldades para engolir? Tem perdido

peso, se sente fraca para realizar as atividades durante o dia? Tem tido

febre? Suores noturnos?

A paciente responde positivamente a todos os meus questionamentos.

Naquele exato momento eu tive certeza do diagnóstico da paciente: ela

era SOROPOSITIVA.

Essa descrição acima foi de um momento de consulta compartilhada que muito me

marcou no primeiro ano da residência. Já havia passado por um serviço que tratava

infecções sexualmente transmissíveis como citado antes, porém nunca tinha

experimentado a sensação instantânea vivida por um usuário ao tomar conhecimento

da positividade do teste de HIV. É impressionante como somos capazes de nos

desconstruir em frações de segundos. O semblante muda, os planos de vida mudam,

as relações interpessoais mudam, a vida e as responsabilidades sobre ela mudam

também.

Arquivo pessoal (Consultório odontológico das equipes I e II do Entroncamento)

Experiências interessantes ocorriam também nas interconsultas quando alguma

colega da enfermagem ou da medicina tinha alguma dúvida relacionada à saúde

bucal. Diante da necessidade, a educação permanente foi realizada com todos os

trabalhadores da USF, não somente a título de informar sobre os principais agravos da

saúde bucal, mas para auxiliá-los na identificação de urgências odontológicas e

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consequentemente na classificação de risco. Até porque, os trabalhadores entendiam

o acolhimento de demandas odontológicas como algo exclusivo do dentista, quando

na verdade não é apenas dele. 15

Através também de educação permanente elaborada pelo Núcleo Ampliado de Saúde

da Família, uma fisioterapeuta matriciou a equipe de saúde bucal do Entroncamento

na identificação de pontos-gatilho que desencadeiam dor e como proceder para

desativá-los na face. Reaprendemos também um pouco das dores na articulação

temporomandibular sob a ótica da fisioterapia e como acompanhá-las na clínica.

Foram realizadas também, consultas compartilhadas entre a odontologia e a

fisioterapia, a saber, por exemplo, de caso de uma paciente que sentia múltiplas dores

pelo corpo e não tinha diagnóstico médico. Para a minha surpresa, a origem dos

sintomas era a má postura da coluna vertebral.

Arquivo pessoal (Educação Permanente com a fisioterapeuta)

A odontologia também esteve presente nas campanhas de vacina e no novembro azul

que tem o desafio de atrair o público masculino para a responsabilização do

autocuidado e prevenção de doenças.

Sobre as visitas domiciliares, eram sempre regadas de muitas histórias de vida da

comunidade e da relação do usuário com o meio social. Eu passava a me apropriar

das entrelinhas do diagnóstico em saúde bucal, era um descortinar o que estava

escondido. Ou se, algum dia foi visto, foi ignorado. E para algumas situações, é

desafiador lutar por melhorias e ver que nem sempre o alcance do resultado das lutas

está em nossas mãos.

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Arquivo pessoal (Campanha de Vacinação no Entroncamento)

Já no segundo ano da residência, consultas compartilhadas entre a odontologia e a

psicologia foram realizadas em um caso de uma paciente que se automutilava:

Atendi uma paciente intitulada "paciente psiquiátrica" em seu prontuário há um tempo. Confesso que fiquei curiosa em saber qual era o seu diagnóstico, mas, não encontrei o CID. Mas atendi sem muito receio. Ela tinha um comportamento muito estático, era monossilábica no seu discurso, não esboçava reação ao procedimento enfim... Tratamento odontológico concluído e vejo a mesma paciente em outros momentos na USF.

Ela tem um vínculo forte com uma das enfermeiras da equipe II e com uma técnica de enfermagem da mesma equipe. Tempos depois, conversando com as colegas, descubro que na infância ela foi vítima de abuso sexual e nos momentos de crise do seu transtorno, produzia automutilações. São vários cortes com lâminas do aparelho de barbear que ela tem na casa onde mora.

Convidei para uma sessão de auriculoterapia, tentando ofertar para ela outra forma de cuidado, dessa vez não farmacológica. Ela queixava-se de não conseguir dormir há 8 dias. Na sessão posterior, ela relatou ter cochilado mais. Aproveitei para preencher o prontuário de auriculoterapia e tentei desvendar detalhes do seu passado para tentar entender o motivo das lesões autoprovocadas. Ela saiu da sala atônita, desesperada. Produzia movimentos involuntários com os dedos, como quem quisesse se autodestruir aos poucos naquele momento. Tinha olhar fixo no horizonte, e as lágrimas sempre escorriam pelo seu rosto.

Ela é assunto da nossa primeira discussão de caso na reunião da equipe II. Visitamos o CAPS para discutir o caso, trouxemos para a equipe e estamos programando um PTS para ela. O próximo passo é uma visita domiciliar para conhecer a sua rede social.

A descrição acima se refere ao momento em que eu tive conhecimento da história de

uma paciente jovem que se automutilava. Ofereci o que tinha como forma de cuidado

para ela naquele período. Porém, percebi que estava diante de uma complexidade, a

qual necessitava ser compartilhada em atendimento com outro profissional de outra

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categoria para assim pensar na melhor solução. Após os atendimentos compartilhados

com psicólogo do NASF percebi uma reorientação no comportamento da jovem.

Mutilar-se parecia não mais ser uma estratégia útil para “chamar a atenção” da família

e dos profissionais dos quais ela tinha vínculo. E ela assim permaneceu até o colega

psicólogo ter passado em um concurso e eu ter migrado para o segundo ano da

residência e a paciente reduzido às idas a unidade.

Como dentista estive presente também nas atividades do grupo de convivência da

unidade de saúde do Entroncamento: o Vida Ativa. Conduzi neste grupo uma

quadrilha junina em parceria com os colegas do NASF. Abri mão de um momento

extremamente importante para a comunidade como um todo, que era a inauguração

do espaço físico do Entroncamento II para estar na condução dos ensaios juninos.

Participar do Vida Ativa era sempre singular, composto de predominantemente idosos,

apesar de que a participação era livre, uma atividade desenvolvida nunca era a

mesma seguinte. Era perceptível o aumento da disposição do grupo com algumas

atividades, principalmente as que envolviam práticas corporais e que os faziam “suar”

como eles mesmos referiam. Desenvolvia também o sentido da grupalidade, de um

apoiar e acolher o outro quando fosse necessário.

Arquivo pessoal (Festa junina dos grupos de convivência do Entroncamento e Concórdia)

Tive em uma das minhas participações no grupo, a presença de uma senhora que

vivia como catadora de sucatas. Todos que frequentavam o grupo costumavam vir

com trajes de exercícios físicos: tênis, calça ou short, blusa ou camiseta, bonés, a

toalha de rosto, a garrafa de água e quando tinham o protetor solar. Essa usuária, veio

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fora do padrão do grupo: chinelos de borracha, bermuda jeans. Mas algo chamava a

atenção: a disposição em estar no convívio com outras pessoas e o que aquela

atividade traria de terapêutico para ela, porque além de viver com o quase nada, pois

a coleta da sucata não era uma certeza, ela era alcoolista e vivia isolada. Foi uma

experiência ímpar ver o grupo acolhê-la de forma tão positiva e ver que nem que fosse

durante a minha participação no grupo, um pouco do sentido da vida estava sendo

devolvido para alguém que tinha o sofrimento como marca registrada.

No segundo ano, estive mais perto da Rede de Atenção Psicossocial do município.

Solo fértil se bem regado. Foi possível pensar coletivamente com os colegas

residentes e a gestão, estratégias para a criação da Sala de Situação, os indicadores

de saúde para melhor planejar, avaliar e monitorar o que era produzido na unidade e,

através da iniciação à preceptoria, auxiliar os colegas em seus processos de trabalho

na perspectiva da mudança, sempre buscando o melhor na oferta para a população

diasdavilense.

A odontologia esteve e está bem presente nos espaços em que os profissionais

permitirem que ela entre e permaneça. Há especificidades dos núcleos, porém há

também o que é de todos, a interdisciplinaridade, que se bem trabalhada, permite o

desenvolvimento de ações centradas no usuário que diverge do modelo vigente

médico-centrado.

Arquivo pessoal (Preceptora, colega residente, auxiliar de saúde bucal e eu)

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3.0 Desafios diários: a micropolítica como estratégia do trabalho em equipe

O trabalho em equipe pode ser penoso ou prazeroso, depende do compromisso e

entrega do grupo para os mesmos propósitos. Quando os membros não estão em

sintonia ou discordam uns dos outros sem possibilidade aparente de mediação

começam a surgir os conflitos e para que sejam minimizados ao longo dos processos

de trabalho, a micropolítica se faz necessária. Um momento chave para o uso da

micropolítica em uma USF é a reunião de equipe.

“Reunir é fácil, fazer com que as pessoas presentes entendam o real

objetivo de uma reunião é tarefa semanal. As reuniões na USF do

Entroncamento até então tem sido iguais: não existe momento de reunião

de equipe, nem geral, algumas pessoas não se comprometem com o

horário previsto para o início da reunião, não há escala para definir quem

será o relator, não há divisão dos momentos de uma reunião em informes,

pautas, encaminhamentos... o momento é entendido como turno do não

trabalho por alguns, momento desprezível e que facilmente pode ser

substituído por atendimento a comunidade geral, visto que não é

interessante deixar a população pelo menos um turno sem atendimento...”

(trecho do relato pessoal no portfólio)

No momento da reunião de equipe é muito importante além do posicionamento

respeitoso para com os demais profissionais, saber expressar a opinião de forma

convincente quando se trata da necessidade do apoio mútuo no desenvolvimento de

tarefas como para a criação de um grupo ou oficina nova na unidade. 16 É preciso

saber falar um não de forma suavizada e trabalhar em função da valorização de

potencialidades do outro para almejar o desejado. Por diversos momentos, as

reuniões de equipe que eu frequentava em Dias d’Ávila não tinham um formato

adequado a meu ver. Em conversa com as colegas da residência e do apoio

institucional, conseguimos conduzir algumas reuniões. Sempre usando do princípio da

micropolítica no trabalho:

“Residentes de Enfermagem e de Odontologia praticamente assumiram

os rumos da reunião de unidade recentemente. Dos preceptores estavam

os de Educação Física e Odontologia, mas foi a residência que pela

primeira vez conseguiu o destaque que desejava. Estruturamos a reunião,

discutimos pontos cruciais e quando víamos que uma mesma questão

seria delongada tentávamos intervir para definir uma conduta ou

encaminhamento. Assim a reunião foi tomando forma. Fizemos

pactuações para as próximas reuniões, as de unidade serão uma vez no

mês e nas de equipe, além das tão esperadas discussões de casos,

faremos as educações permanentes e tentaremos aproveitar

integralmente o horário destinado a este espaço que se reconfigura.

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Breve escrevo sobre os frutos do que plantamos!” (Trecho do relato

pessoal no portfólio)

Por experiência própria, diversos foram os momentos em que tive que exercitar a

diplomacia para conseguir alcançar um objetivo na residência: conflitos internos com

as colegas residentes, com os demais trabalhadores por pensarem de maneira

diferente. Foi algo conquistado às duras penas e que até o presente momento eu

continuo exercitando porque nem sempre a emoção está acompanhada da razão e

vice-versa. E sem pensar muito, qualquer um pode colocar todo o desempenho de um

trabalho coletivo em risco em função de atitudes impensadas.

Arquivo pessoal (Reunião de equipe no Entroncamento II)

4.0 Formações complementares e expansão do horizonte das ideias

Quando colocamos em prática os conhecimentos adquiridos na graduação, nos

deparamos com adversidades porque o trabalho é sempre dinâmico e cada paciente é

singular no seu processo de adoecimento. É importante que o profissional esteja

sempre se atualizando para que possa aprimorar e inovar suas práticas e dentro da

estratégia de saúde da família existem os cursos oferecidos pelo Ministério da Saúde

por meio da educação à distância. São cursos curtos nas modalidades de extensão,

atualização e capacitação e que ao concluí-los um certificado é gerado e o profissional

pode incluí-lo em seu currículo e utilizá-los da melhor maneira possível.

Assim como fazer cursos é importante, é necessário também participar de outros

espaços que estejam imbricados com a educação permanente como por meio de

congressos, mostras em saúde, simpósios e fóruns. Eventos de saúde permitem o

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compartilhamento das experiências adquiridas em cada campo de trabalho, o saber-

fazer de cada grupo, as trocas e a possibilidade de transformar as práticas que

fortalecem o sistema único de saúde que almejamos diariamente. 17 O município de

Dias d’Ávila tem realizado mostras de saúde a título de promover a troca de

informações entre os profissionais e tem sido proveitoso, bem como momentos de

educação permanente por meio do intitulado: “Acolhimento Pedagógico”, que são

espaços em que todos os profissionais se reúnem para tratar de alguma temática de

comum interesse a todos. Costumam ocorrer pelo menos uma vez ao mês e tem

caráter informativo-educativo. Apresentei na Mostra de Saúde do Município, dois

trabalhos que também foram apresentados no Congresso Internacional de Práticas

Integrativas. A partir do acolhimento pedagógico dentro da equipe, sempre que

possível, modificávamos algo considerando a troca de experiências que tínhamos

nesses espaços.

Arquivo pessoal (Acolhimento Pedagógico promovido pelo município)

4.1 A formação em auriculoterapia para profissionais da Atenção Básica

A auriculoterapia compõe o grupo das Práticas Integrativas e Complementares em

Saúde, reconhecidas no Brasil.18 Oferecido pela Universidade Federal de Santa

Catarina, o curso de Formação em Auriculoterapia para Profissionais da Atenção

Básica de forma semipresencial, estimulou a possibilidade da inserção da prática no

município de Dias d’Ávila, mais precisamente na Unidade de Saúde da Família do

Entroncamento. Por ser uma prática de baixo custo, a terapia através da orelha surgiu

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como uma possibilidade da ampliação do cardápio de ofertas em saúde para além dos

serviços já oferecidos na unidade.

A auriculoterapia passou a fazer parte dos serviços ofertados, a partir do dia 31 de

agosto de 2017 até o momento atual. Os principais interessados na prática alternativa,

foram os usuários da unidade e profissionais de saúde que sofriam de dores crônicas

e distúrbios emocionais. A adoção da terapia na unidade visa oferecer para os

usuários uma nova forma de cuidado. Muitos fazem uso de medicamentos diversos há

anos e relatam nas consultas de rotina, os efeitos colaterais produzidos pelo uso

prolongado dos fármacos e pelas interações medicamentosas existentes. A unidade é

local de criação de vínculos, e os usuários muitas vezes relatavam suas angústias e

aflições nas consultas de auriculoterapia e relações de confiança e pautadas no

respeito eram estabelecidas.

Depois de concluída a formação em auriculoterapia oferecida pela UFSC, eu e a

preceptora enfermeira organizamos um Coquetel de Apresentação do serviço na

unidade. Com adesão positiva, foi criada uma agenda que foi dividida entre as

profissionais. Em turnos fixos, em média 10 a 15 pacientes eram atendidos por cada

terapeuta uma vez na semana. Um modelo de ficha específica foi criada e anexada ao

prontuário da família do paciente e uma lista de espera foi criada para que, à medida

que alguns usuários tivessem alta, novos fossem inseridos no cuidado.

Dessa experiência com a auriculoterapia, alguns trabalhos foram desenvolvidos e

apresentados no primeiro Congresso Internacional de Práticas Integrativas e

Complementares em Saúde no Rio de Janeiro, na primeira mostra de saúde do

município de Dias d’Ávila e na Mostra das Experiências Exitosas em Humanização de

trabalhadores da SESAB em Salvador. Uma nova turma de residentes adentrou às

unidades da residência e uma nova formação foi proporcionada aos colegas que

deram continuidade ao trabalho com as práticas alternativas e complementares em

saúde em Dias d’Ávila. Esta é mais uma das formações que são oferecidas

gratuitamente e que refletem impactos positivos e que precisam ser estimuladas

sempre para que as práticas em saúde sejam reorientadas.

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Arquivo pessoal (Coquetel de Auriculoterapia no Entroncamento)

Arquivo pessoal (I Congresso Internacional de Práticas Integrativas)

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5.0 Espaços pedagógicos e formativos a residência

A residência multiprofissional em saúde da família conforme já dito em linhas

anteriores, é uma formação ensino-serviço. Para isto, espaços educacionais são

oportunizados. São eles: turnos pedagógicos, grupos diversidade, rodas de núcleo,

rodas de campo, seminários integrados, rodas de redes e grupos de ação e pesquisa.

Os turnos pedagógicos são momentos semanais programados previamente com o

preceptor na agenda dos residentes e geralmente são realizados dentro de um mesmo

núcleo, mas a depender da necessidade pode incluir outros desde que haja uma

prévia pactuação entre os preceptores interessados. A construção do formato do turno

e o conteúdo a ser abordado é fruto também de uma pactuação prévia entre

residentes e o preceptor/apoiador. Mas na experiência que tive, abordávamos

assuntos da rotina clínica odontológica, ou da montagem das agendas semanais já

que no primeiro ano só havia uma cadeira odontológica para três profissionais.

Sentíamos-nos à época responsáveis em fazer uma agenda satisfatória, já que, eram

equipes diferentes e com particularidades. Tive turnos pedagógicos também no

segundo ano da residência.

Os grupos diversidade mesclavam os residentes dos diferentes municípios e

diferentes núcleos e eram facilitados por um preceptor também. Normalmente os

facilitadores traziam o roteiro do que seria feito no dia. Os grupos diversidade ocorriam

uma única vez no mês. Eu gostava dos grupos porque era um momento fora do

ambiente de trabalho e que era possível trocar experiências com outros colegas de

outros núcleos. Fazíamos o rodízio dos municípios que seriam os locais das

facilitações, sempre que possível e sempre saíamos com tarefas a serem trazidas nos

próximos grupos.

As rodas de núcleo eram espaços quinzenais em que apenas, no meu caso, o núcleo

odontológico das duas unidades de residência do município estavam presentes. Os

conteúdos por vezes associavam-se aos do turno pedagógico. Haviam trocas de

experiências porque apesar de ser o mesmo núcleo, tínhamos maneiras diferentes de

trabalhar.

As rodas de campo eram espaços facilitados pelo apoiador institucional do município

vinculado à residência e que envolviam todos os residentes de uma mesma unidade

bem como os preceptores. Os assuntos abordados geralmente eram os que mais

afetavam a harmonia para a realização de um trabalho em equipe. Passei pela

experiência de ter tido vários apoiadores, senti na pele o que era um trabalho

fragmentado, um apoiador começava e não terminava o que se propunha a fazer

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desde o início devido à aprovações em concursos, mudanças de cargos, gestação e

outros. Os seminários integrados eram momentos mensais que reuniam residentes de

todos os municípios, algumas vezes eram todos os residentes do primeiro ano, por

outras eram os residentes dos dois anos, dependia muito da necessidade e finalidade

de cada um. Eram momentos produtivos também, porque havia muita troca entre os

colegas. As rodas de redes foram rodas do segundo ano da residência. Todos os

residentes representantes das linhas de cuidado do município encontravam-se nesse

momento para partilhar de conteúdos em comum, com leitura prévia de conteúdos e

elas ocorriam quinzenalmente. Já os grupos de ação e pesquisa foram pensados para

estudar e desenvolver intervenções nas redes de cada município através da pesquisa

em saúde. Separados por redes, estive no grupo da Saúde Mental e desse espaço

surgiram intervenções para a rede de saúde mental de Dias d’Ávila que foi lentamente

iniciado.

Todos os espaços citados tiveram um contribuição importante para o título de

especialista em saúde da família porque diversas reflexões individuais e coletivas

foram realizadas, mudanças de práticas foram feitas sempre na perspectiva de um

SUS possível e tendo como base a educação permanente e a educação em saúde

para reorientação de práticas.

Arquivo pessoal (Seminário Integrado)

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Arquivo pessoal (Atividade de território)

Arquivo pessoal (Roda de núcleo de odontologia)

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6.0 A CAPSização do meu EU e os encontros e desencontros na Saúde Mental

Fui desafiada por mim mesma,

Quando diante da certeza do que queria,

Um frio na barriga me consumia.

Algo muito desafiador estava a me aguardar,

E eu sabia de tudo,

E sem delongas respondi para mim:

Vá e dê o que tiver de melhor em você,

O que te espera você já sabe. Agora o como fazer,

Você descobrirá!

Arte, música, alegria, tristeza, desafio, espaço de luta constante, de reafirmação, de

anulação por vezes, de encontros e desencontros... São tantas definições que posso

dar a algo que me capturou, que me escolheu... Assim foi a escolha da linha de

cuidado em saúde mental. Estávamos todos os futuros residentes do segundo ano

reunidos em assembleia para que de forma coletiva pudéssemos decidir qual dupla de

colegas iria compor as linhas de cuidado de Dias d’Ávila: Rede Cegonha, Saúde

Mental, Doenças Crônicas e Vigilâncias (Epidemiológica e Sanitária). Eram muitos

querendo as vigilâncias, a Cegonha, Crônicas, alguns se simpatizaram pela Mental,

mas eu já havia tomado essa decisão há muito tempo, antes mesmo da divisão entre

os colegas. Vários foram os momentos em que o assunto Saúde Mental me

sensibilizou, me deixou sem saber o que fazer, o não saber fazer parecia uma caixa

de Pandora da qual eu queria conhecer um pouco. Como é possível enlouquecer? Já

estava decidida a estar na Saúde Mental.

Inúmeras são as situações cotidianas que nos colocam diante dos casos de saúde

mental. Quem não tem um sofrimento na vida? Ou quem não conhece alguém que

tenha? O lugar do louco na sociedade é um não lugar na maioria das vezes. Não há

espaço para a manifestação da loucura porque historicamente os loucos foram e

continuam sendo segregados na sociedade. Enclausurar a loucura durante muito

tempo e até nos momentos atuais tem sido a fonte de lucro de muitos serviços

privados e “benéfico” tanto para os familiares quanto para os serviços, um maquinário

perfeito. 19

Passei por alguns momentos em minha vida que fiquei me perguntando como uma

pessoa conseguia chegar a um estado de loucura. Um deles foi na infância. Havia um

garoto que quando ficava extremamente irritado, arremessava pedras contra as casas

dos vizinhos e ninguém conseguia ter controle sobre ele. O outro foi no período da

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graduação. Havia um homem, a caminho do prédio da faculdade de odontologia, que

estava sempre com a mesma roupa, malcheiroso, comia o que encontrasse no lixo, e

vivia a fazer registros no asfalto com giz. 20 Desenhos que certamente expressavam

algo que ele gostaria de dizer, mas que nem mesmo eu tinha me interessado em

perguntar na época. Ele vivia também girando uma peça de um outdoor e todos

passavam por ele tranquilamente sem se importar. Ela, a tal da loucura sempre me

causou curiosidade e medo. Mas a certeza que sempre tive é que um acolhimento

humanizado é muito potente em qualquer circunstância.

Nos meus processos de aprendizagem quando estava na graduação nos estágios

não obrigatórios, minha preceptora havia recebido um usuário de substâncias

psicoativas e com suspeita de positividade para o HIV. Ele vivia com trocados que

conseguia como ajudante de lava-jato e os “corres” (como ele citava) que fazia. Vivia

na rua e alimentava-se quando as pessoas ofereciam ou quando pedia algo para

comer como pedinte. Minha preceptora foi muito atenciosa e eu ficava sem entender

como mesmo sem ter ar condicionado na sala, com todo aquele mau cheiro, ela

conseguia ser tão cuidadosa com ele. Conduzi-lo até os espaços da testagem e

depois de detectada a presença do vírus, encaminhá-lo responsavelmente para o

atendimento. Aquilo me encantou, ali ela me ensinou absurdamente. Passei por

situações de medo e autoproteção constante quando estava nos estágios de vivência

no SUS. Na vivência do município de Santo Antônio de Jesus fizemos uma visita ao

Centro de Atenção Psicossocial. Era um imenso território em que os usuários

plantavam e colhiam, participavam de oficinas terapêuticas, atendimentos individuais e

outros. Ocorre que os viventes estavam sentados no muro baixo da casa onde o

CAPS funcionava, e ao redor os usuários estavam capinando o terreno. Eu não

conseguia me sentir tranquila sabendo que eles estavam com instrumentais de

trabalho que podiam ser utilizados como armas contra nós. Sim, tive esse receio, e

não conseguia parar de olhar para trás. Um usuário que nos contava como ele vivia

com a esquizofrenia e que era muito parceiro da equipe no CAPS e auxiliava na

mediação com os outros usuários tentava o tempo inteiro nos tranquilizar. Mas eu não

conseguia. Prontamente pulei do muro e sugeri que cadeiras fossem colocadas ao

redor das plantações e que ficaríamos ali a vê-los e dialogarmos. Mas ao perceber

como um dos usuários usava uma enxada contra o solo de forma furiosa, resolvi

convidá-lo para a roda para que ele pudesse contar de sua experiência dentro do

serviço. Ele afirmou que não iria falar sobre nada porque ele “estava no ódio” e

abandonou o local. Eu tinha medo de que enquanto estivéssemos de costas, um deles

nos atacasse com agressividade. Justamente porque existe uma constatação do

senso comum de que louco é sempre imprevisível e não podemos confiar neles.

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Dentro da residência tive algumas experiências legais em que pude compreender um

pouco o universo de sofrimento que cada um trazia e suas histórias, que ocorriam nos

atendimentos ora envolvendo a odontologia, ora a auriculoterapia. Devido a hora

clínica, nas consultas individuais odontológicas eu não conseguia ter uma dimensão

psíquica dos pacientes, porém, muitos eu passei a acompanhar através da

auriculoterapia e pude entender um pouco a origem da depressão, das ansiedades

muito frequentes e sinais de alerta para os casos de Saúde Mental de uma unidade de

saúde. Outra experiência foi com um preceptor e um colega psicólogo. Neste dia

estávamos alinhados para uma visita domiciliar que faríamos, mas intercorrências

aconteceram e na entrada da unidade vimos um homem que estava misturado ao lixo

e objetos. O preceptor pediu que conseguíssemos a cadeira de rodas e colocou o

usuário sobre ela e pediu para que nós levássemos para a USF porque tentaríamos

prestar algum atendimento já que ao entrar em contato com a SAMU, fomos

informados que os profissionais da SAMU estavam em outra ocorrência. 21

O usuário foi hidratado, aferimos a pressão arterial, demos água, conversamos

bastante, conseguimos entender um pouco de sua história e percebi naquele momento

que uma relação de confiança estava sendo estabelecida e o quanto que aquilo era

positivo. Até alguns momentos antes eu também tinha sido uma das pessoas que

cegamente havia passado pelo lixo sem ter visto que:

O bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava,

Engolia com voracidade,

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

Mas, tenho a convicção de que o pouco que pudemos oferecer para ele, que naquele

momento havia decidido que iria sair sozinho da unidade, foi o suficiente para ele

saber que alguém se importava com o sofrimento dele e nós estávamos ali para

acolhê-lo.

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6.1 A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Dias d’Ávila

Primeiro dia de estágio optativo em Dias d’Ávila, eu e outra colega fomos para o CAPS

no turno da tarde. Iniciantes no processo, sem saber como e o que fazer, a

inexperiência era visível dos dois lados: profissionais de referência do serviço e

residentes. Reunimo-nos eu e a colega para pensarmos um modelo de agenda

semanal em que pudéssemos minimamente proteger o turno pedagógico e designar

quais seriam os turnos de estadia na unidade de saúde e quais seriam os da rede.

Estávamos ainda sem apoiador matricial.

Arquivo pessoal (CAPS de Dias d’Ávila)

Começamos com a leitura de uma das portarias sinalizadas por uma apoiadora

institucional que falava sobre as classificações dos CAPS e depois montamos um

cronograma para o levantamento dos serviços e equipamentos sociais disponíveis no

território que dialogassem com a Saúde Mental e pensamos em um questionário

direcionado para cada local. 22 Consideramos para isso a proximidade com o CAPS

para iniciar o reconhecimento dos dispositivos do território. Chuva, muito sol, barreiras

geográficas foram alguns elementos que fomos encontrando no processo. Perdemo-

nos também, por que não? Corremos riscos também. Tudo por nossa vontade

grandiosa de contribuir com a articulação futura e possível dos dispositivos. Incluímos

também os serviços pertencentes a rede do sistema único de assistência social

(SUAS). Sistematizamos tudo em uma apresentação que seria feita nas unidades de

residência, e no CAPS mais posteriormente.

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A chegada de nossa apoiadora matricial foi de grande valia. Respeitou as pactuações

que eu e a colega havíamos feito e foi mediadora de conflitos que foram surgindo com

o passar do tempo com os profissionais do CAPS, além de nos orientar sobre leituras

que poderíamos fazer para compreender um pouco mais sobre a rede de atenção

psicossocial.

Arquivo pessoal (Momento de apresentação no CAPS de Dias d’ávila)

Fruto de um trabalho de parceria com as apoiadoras institucionais residentes, a

gerente de atenção à saúde e a apoiadora matricial, foram criadas planilhas para

registro e conhecimento de usuários de saúde mental do território de Dias d’Ávila. O

objetivo era traçar o perfil epidemiológico dos mesmos no município, mapear no

território os casos não assistidos, acompanhá-los simultaneamente nas USF e no

CAPS para consequentemente elaborar estratégias de intervenção apropriadas, bem

como construir fluxos na rede, planejar ações considerando os equipamentos

disponíveis no território e realizar monitoramento e avaliação das ações. O

levantamento foi iniciado primeiro nas unidades de residência e depois nas outras

unidades do município. 23

Fui a campo com as agentes comunitárias que tiveram maiores dificuldades nos

registros dos casos de saúde mental do território e vi de perto todas as iniquidades de

que tanto falamos nos estudos da saúde coletiva e a realidade é bem cruel, é surreal.

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Arquivo pessoal (Território do Entroncamento de Dias d’Ávila)

A imagem acima é de uma das ruas do bairro do Entroncamento de Dias d’Ávila em

que é possível ver muito lixo, casas de alvenaria e sem reboco. Não aparece na

imagem, mas também havia esgoto a céu aberto.

A presença da residência na RAPS foi muito importante para o município:

identificamos os principais equipamentos que compõem a rede de saúde mental de

Dias d’Ávila e como ações de matriciamento os apresentamos no CAPS, e nas

unidades de saúde da família da residência. 24 É importante comentar que muitos

trabalhadores de ambos os serviços não conheciam todos os equipamentos e quando

conheciam, não sabiam ao certo os critérios para encaminhamentos de usuários.

Como proposta de educação permanente para o município, pensamos também no

Acolhimento pedagógico da RAPS e apresentamos para os trabalhadores a

necessidade do conhecimento dos casos de usuários de saúde mental do território e

preenchimento fidedigno das planilhas; realizamos também oficina sobre acolhimento

aos usuários no CAPS, discussões de casos clínicos, construção de Projeto

Terapêutico Singular, planejamentos e participações em oficinas e grupos

terapêuticos, e, entendendo que ofertando cuidados ao cuidador era possível que ele

desempenhasse melhor o trabalho dele, foram ofertadas auriculoterapia por mim e

Reiki por outra colega também residente aos trabalhadores e foi realizado o

levantamento das condições de saúde bucal e encaminhamento responsável dos

usuários dentro do CAPS para as respectivas unidades de saúde quando

necessário.25

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Encaminhei por exemplo, uma usuária da zona rural que frequentava o CAPS e que

estava com uma lesão suspeita de câncer de boca, e juntamente com a equipe do

CAPS, CREAS, Dentista da USF e apoiadoras institucionais, e enfermeira da zona

rural pensamos em estratégias junto à coordenação de saúde bucal para encaminhá-

la até o Hospital das Clínicas em Salvador para ser atendida por um profissional

especialista. Felizmente a lesão era benigna. Envolvendo a responsabilidade da

gestão e compromisso com os usuários, foram inseridos os indicadores de Saúde

Mental e outros criados para serem monitorados na Sala de Situação do município. 26 E como produto do meu segundo ano de residência na gestão, foi criado e implantado

o Grupo Condutor da RAPS que para mim foi extremamente gratificante porque senti

que de alguma maneira estava a contribuir para a tão desejada articulação de rede e

defesa dos direitos dos usuários. 27

Mas, rico de verdade e gás propulsor para nosso trabalho foi a lida diária com os

usuários do CAPS. Cada qual com a sua história, sempre nos respeitaram e desde o

início nos acolheram muito bem. Participamos de várias atividades com eles, fomos

para caminhadas, festa junina, festa natalina, dentre outros. Nas atitudes do cotidiano

eles estavam sempre nos surpreendendo, com suas crenças e verdades. Quando saí

do município essa foi a parte que mais senti falta: o vínculo que foi construído com

cada um deles. 28

6.2 Desnudando-se de outras vestes: o CAPS Gregório de Matos em Salvador

Primeiro dia do estágio eletivo. Recepção lotada, um ambiente atípico: Pessoas

gritando simultaneamente ainda que não estivessem discutindo. A recepcionista

respondendo no mesmo tom de voz, residentes de outro município ali na recepção e

eu nesse cenário observando, aguardando o momento de ser chamada pela

coordenação para ser apresentada ao serviço.

Na convivência embaixo de um toldo:

-Quem é você? Estagiária aqui, é novata né? (usuário)

-Sou residente, meu nome é Jailma e o seu?

-Você quer saber demais da minha vida. Aqui estagiário tem que fazer o que a gente

quer, se não fizer, não precisa nem falar comigo mais... (usuário)

- "Colé véi"... precisa de tudo isso?

-Claro, aqui é tudo nosso e nada deles (usuário)

O primeiro contato foi estabelecido de uma maneira não convencional. Mas eu sabia

que seria dessa forma. Os dias foram passando e fui me inserindo aos poucos nas

oficinas, na reunião de equipe, na assembleia dos usuários. Sim, eles tinham espaço

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para serem ouvidos, estando organizados ou não. Várias foram as atividades

desempenhadas pelos usuários e que tinham potenciais terapêuticos. Lá os técnicos

de referência eram facilitadores das oficinas, facilitadores do cuidado. Apesar de que,

ironicamente, nem tudo era tão perfeito quanto parecia.

Arquivo pessoal (CAPS AD Gregório de Matos)

Havia problemas com relação à coordenação que era constantemente cobrada pela

equipe para tomar atitudes repressivas com os usuários e trabalhadores. Os

trabalhadores tinham problemas interpessoais que pareciam não ter sido trabalhados

em momento algum. Os usuários cobravam de todos atenção e respeito às

pactuações que eram realizadas nos espaços coletivos e individuais e quando não

eram, respondiam através de violência aos trabalhadores, ao patrimônio e entre eles

mesmos.

Os usuários tinham histórias que nos convidavam a análise do que tanto falávamos na

saúde coletiva: das iniquidades sociais. Precisavam de tudo um pouco, ou de tudo

mesmo. Violados nos seus direitos, alguns tinham nas substâncias psicoativas um

refúgio para as dores.

Vivi conflitos armados e não armados entre os usuários. Era muita adrenalina que

surgia na hora. Enquanto eles se debatiam no solo, enquanto mulher ficava sem saber

como separar, preferia a minha autoproteção assim como as outras mulheres do

serviço. Mas quando a agressão não era física, ela estava nas entrelinhas, ou na

expressividade de vários palavrões desenfreados, que imprimem no trabalhador ao

longo do tempo, sentimentos de impotências, tristezas, estresses e até perda do

sentido e do propósito de suas atividades.

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O público álcool e drogas me fez refletir muitas coisas, inclusive de apostar ou não de

que o cuidado em saúde mental para os usuários era mais resolutivo do que a ação

policial nas ruas. Ás vezes eu tinha o pensamento de que a polícia deveria ser

acionada em determinadas ocasiões e ficava num conflito constante em processar em

mim o tempo inteiro o que era cuidado, para não perdê-lo de vista.

As atividades fora do CAPS eram extremamente potentes. Tinha o Baba do CAPS nas

quintas que acontecia em quadras de esportes, o Giro Cultural que no período do

verão tinha sido para as praias de Salvador, o Coral na Casa 14 no Pelourinho, a

oficina de Geração de renda, eles retornavam ao serviço motivados. Acredito que a

motivação era fruto do efeito terapêutico produzido neles pelas atividades.

Aconteciam momentos de reflexões nas supervisões de estágio em que residentes e

estagiários além de facilitadores liam textos previamente para discutirem em um

horário reservado. Essas discussões me faziam pensar inclusive na redução de danos

como proposta terapêutica possível e não somente transformar o drogadito em

abstinente como única solução. Eu também entendia que o caminho que uma pessoa

dependente de substâncias deveria seguir era o da abstinência. 29 Esse meu

pensamento anterior reflete o quando somos imprimidos a pensar nos extremos das

relações e na forma como lidamos com as coisas na vida. O contato com os colegas

de outros núcleos, residentes e estagiários foi extremamente potente, porque a troca

era intensa inclusive com pessoas de outros países.

Queria realizar uma ação de saúde bucal no CAPS, e em parceria com os apoiadores

de Lauro de Freitas pensamos em algo bem lúdico para os usuários. Com a aprovação

da coordenação da educação permanente do Gregório de Matos, passei a tentar

viabilizar os materiais para a atividade até que ela deixou de ser uma atividade isolada

e com apoio de outros colegas, tornou-se o Teatro de Saúde Bucal, em que estavam

presentes a odontologia, o teatro e a nutrição em dois dias de forma objetiva e prática.

Foi uma atividade magnífica. Conseguimos, por exemplo, despertar a curiosidade de

um usuário que não tinha uma relação respeitosa para com os trabalhadores e que por

vezes desafiou a equipe na produção do cuidado em um experimento que fizemos

com ovos para mostrar a ação do flúor nos dentes. 30 O experimento consistia em

colocar dois ovos cozidos, cada qual em um copo com vinagre, sendo um protegido

com flúor e outro não e o que a ação do vinagre provocava na superfície da casca dos

ovos. Como estratégia de promoção de saúde e prevenção da cárie, foi possível

mostrar de maneira prática a importância dos cuidados com a saúde bucal.

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Arquivo pessoal (Atividade de Saúde Integrada no CAPS)

Fizemos também o momento de cuidando do cuidador. A equipe estava muito

fragilizada com muitos ataques, fosse de carga horária de profissionais que eram

diferentes, fossem das relações de poder em função das escolaridades e carga

horária, os maus-tratos dos usuários com os trabalhadores, a aparente perda da

habilidade dos trabalhadores em manejar conflitos. Foram dias intensos e de muitos

aprendizados. Sou grata a tudo que foi proporcionado para mim no período de estágio

eletivo. Vou levar para a vida essa experiência.

Arquivo pessoal (Equipe do Gregório)

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Arquivo pessoal (Aquecimento corporal dos usuários)

Arquivo pessoal (Aquecimento corporal dos usuários)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Não me arrependo de nada do que eu fiz, me arrependerei do que não fizer” essa é

uma frase que ouvi em um documentário uma vez e que me fez identificar elementos

de minha personalidade contidos nela. Se tiver que definir o que vivi na residência

inteira seria INTENSIDADE, vivi cada momento da maneira como eu havia pensado e

vivi as incertezas e as surpresas da mesma forma. Fazia parte das minhas

expectativas ainda na graduação ter a experiência de uma residência, como dito em

linhas anteriores, era o título que eu estava em busca bem como sabia que durante

um período eu seria também uma profissional remunerada ainda que atualmente eu

faça outras considerações sobre o ser residente, já fui de tudo um pouco também;

estagiária, estudante, intrusa, espiã, Mas para mim sempre fui uma profissional ativa e

inquieta. E para onde eu for eu vou levar isso comigo. Não consigo me manter inerte

diante da realidade que me assusta e me incomoda. Mudar é necessário para que o

processo seja dinâmico e não estático inclusivo e não excludente resolutivo e não

moroso universal e não privado!

Defender o SUS para mim é uma prerrogativa da residência. Nem todos os colegas

que adentram nesse processo se identificam com o modus operandi do trabalho. Mas

lutar é preciso. E em se tratando então de Saúde Mental... É mais delicado ainda. No

dia 4 de fevereiro de 2019 o ministério da saúde divulgou a nota técnica da saúde

mental, com inimagináveis retrocessos sendo considerados como práticas baseadas

em evidências científicas de melhor manejo terapêutico dos usuários. 31 Fico me

perguntando como eu estaria diante de uma notícia desastrosa como essa se eu

estivesse fora do processo da residência, talvez discordasse apenas do uso da

eletroconvulsoterapia e no mais, para a abordagem do público álcool e outras drogas

cairia no senso comum de que não tem jeito mesmo. Só se o indivíduo tornar-se

abstinente, e estaria alimentando o maquinário ideológico do setor privado

extremamente reservado e lucrativo.

Revejo meu percurso e o quanto que agreguei. Do tanto que percorri e juntamente

com o apoio das demais colegas e corpo pedagógico pudemos semear processos de

mudanças. Tudo pensando no SUS possível e ideal. Sempre tive a certeza de que os

desafios só nos fazem mais fortes e saio da residência com essa bagagem. Não

somente eu, como todos os envolvidos neste programa de residência de todos os

municípios deram o seu melhor. Sou grata a todos por tudo que me foi proporcionado!

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13- Ministério da Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.

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