Fruto Maduro

NILVA FERRARO - Fruto Maduro

Fruto Maduro - NILVA FERRARO

F r u t o M a d u r o Centúria de Haikais


Nilva Ferraro

F r u t o M a d u r o Centúria de Haikais


Copyright by Nilva Ferraro, 2001Capa: Ilustração de Luíza CoutinhoContracapa: retrato da autora por Iberê Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA

F376f Ferraro, Nilva Fruto Maduro: centúria de haikais / Nilva Ferraro – Porto Alegre: Uniprom, 2001. 124 p.

ISBN : 85-85671-36-X

1. Literatura - Poesia. Poesia Haikai 1. Título.

CDU : 869.0(81) - 193 869.0(816.5) - 193


In memoriam de meus pais.


Prefácio

Nilva preferiu, neste livro, o haikai, ou seja, um extrato concentradíssimo de poesia.Haikai quer ser uma espécie de pintura ins-tantânea de gesto imobilizado em palavras.Existe, nessa forma poética, um clic do sentimento e da emoção, que surpreende a vida. O poeta não se preocupa unica-mente em refletir sobre a realidade ou a existência, mas quer olhá-la de frente. Não é fácil surpreender a vida! Como um peixe resvaladiço, ela nos foge ao olhar.


Por isso quando o poeta consegue apanhar um peixe – isto é, um haikai – merece feli-citar-se a si próprio. Nilva tem uma alma sensível e conhece a dificuldade comum a todos que escrevem, de criar a sensação verbal, de salvar o peixe não dentro de um bloco de gelo, mas no interior de uma gota de sangue. Eis porque devemos valorizá-la, quando chega lá, quando de repente, não mais do que de repente, segura nas mãos um peixe vermelho ou azul, ou com todas as cores do arco-íris:


Canto do grilotrouxe passado feliz.Só hoje eu sei.

Às vezes a poeta clica uma dimensão melancólica:

Fim de outono –árvore nua choroutodas as folhas.

Gosto, também, de algumas composições em que Nilva apanha o “outro lado” do haikai, ou seja, os aspectos menos


evidentes da realidade e da vida, os seus aspectos humildes e pobres:

Flor de cinamomotocada pelo vento? Não. Pela formiga!

Armindo Trevisan


Biografia

Nilva Ferraro, nome usual de Nilva Ire-ne Schütz Ferraro, nasceu em Erechim, RS e vive em Porto Alegre. Formada em Direito, fez carreira no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Frequentou o Atelier Livre da Secretaria Municipal da Cultura, Prefeitura de Porto Alegre (1988/92). Dedica-se atualmente à litera-tura e às artes plásticas. Premiada em ambas modalidades, inclu-sive na Itália.


Ama todas as expressões artísticas, espe-cialmente as insuperáveis criações do Ar-quiteto do Universo – junto à Natureza – à disposição de todas as criaturas. Participou de movimentos de artistas e ecologistas, com exposições na Capital e no Interior do Estado. Desde então é ecologista vo-luntária. Premiada no concurso de poesia “Prêmio Literário Semana de 22”, em 1992, Secre-taria Municipal da Cultura, Prefeitura de Porto Alegre, passando a integrar o Proje-to Poemas no Ônibus.


Premiada no XII Salão de Inverno Inter-nacional de Artes Plásticas de Livramento – RS – Brasil – 2000. Com o mesmo tema, Texturas e Memó-rias - fotografia e poesia, expôs no Teatro São Pedro em 2000 e novamente em 2004 a convite do Circuito Cultural Banco do Brasil.Em 2010 seu livro Pulga Trapezista ga-nhou o Prêmio AGEs Livro Infantil do Ano 2010 Porto Alegre. Em 2010 teve to-dos os seus livros traduzidos para o Braile, pela Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul.


É membro da Academia de Artes, Ciências e Letras Castro Alves e membro de honra da Divine Académie Française e de Arts Lettres et Culture. Pertence a várias outras entidades cultu-rais, além da União Brasileira de Escritores - UBE de SP e RS.


Introdução

A metáfora do título deste livro – Fruto Maduro – deve-se ao fato de ser o fruto uma dádiva, um agrado dos céus para nu-trir nosso corpo. E o haikai também é uma dádiva dos céus para nutrir nosso espírito, com o maná da beleza, da harmonia e da paz.Sendo o haikai poema concreto oriundo da filosofia ZEN, consegue abstrair-nos em viagem ao subjetivo, ao filosófico e à riqueza interior.


Poema da tradição japonesa é o menor po-ema do mundo. Com apenas três versos de 5-7-5, num total de dezessete sílabas, é ca-paz de “pintar” uma cena. O haikai essen-cialmente, canta a natureza e as estações do ano.Ressalvo aqui a opção pela grafia haikai, com “k”, ao invés de haicai, com “c”, con-forme quer nossa língua portuguesa. Jus-tifico-me: adotei haikai, com “k”, como forma de preservar-lhe a origem. Conside-rando, ainda, que no nosso dia-a-dia esta-mos cercados de palavras estrangeiras.


Com esta grafia dou-lhe um cunho univer-sal, embora os haikais que lhe ofereço aqui sejam brasileiros, tropicais.Contudo, o haikai é um poema concentra-do, um extrato que, ao destampar o vidro, geralmente somos surpreendidos pela fra-grância, e, no mais das vezes, nos admi-ramos da sua capacidade de armazenar nas entrelinhas tanto conteúdo. Por isso, devemos administrá-lo com parcimônia. Porque:


Se na literatura – alimento do espírito – a poesia é manjar, o haikai é caviar.

Quanto ao subtítulo – Centúria de Hai-kais – optei por ele num gesto de sau-dosismo do tempo em que se comprava frutas em cento, em dúzia, e não em quilo ou unidade. Por isso, cento, centúria, para lembrar fartura, numa colheita dadivosa e, por analogia, na I Parte – Cesta de Frutos. Mas como todo fruto, o haikai deve ser saboreado sem pressa.


Com referência à II Parte – Lua em Lá Maior – é um destaque a minha safra de haikais sobre a lua. Ela que encanta poetas e enamorados, não deixa de ser ou parecer um fruto para nossa delícia. Ora nos é servido inteiro, ora em pedaços. Ah, as faces e fases da lua! Sempre bem-vinda, sempre evocativa e inebriante!

Assim, amigo leitor, ofereço-lhe a minha colheita.


E, como em toda colheita, uns frutos são mais belos e saborosos do que ou-tros, faço a entrega ao critério do pala-dar de cada um.

Nilva Ferraro

I Parte

Cesta de Frutos


Terra e céu –juntos no fruto maduro:benesse p’ra nós.

1


Fruto já foi flor –tem perfume e sabor:nada lhe falta!

2


Fruto maduro –de tuas mãos ao alcance:carícia dos céus.

3


Flor é promessaque o homem recebe,de fruto um dia.

4


Buquê de floresrecebo pela manhã:mel sobre a mesa.

5


Flor se entregaao labor da abelha:dar e receber.

6


Teus olhos azuis –pássaros bailando no ar,irrequietos...

7


Mendigo, chagas –expostos na manhã fria:estamos cegos...

8


Onde a infância?Crianças com fomeperdidas por aí...

9


Menina choracaminhando sozinha:pés descalços.

10


Sol do meio-dia –crianças na estradarepartem o pão...

11


Menina no chãomonta quebra-cabeças:recria vida.

12


Vento na portafoi entrando sem bater.Manhã invernal!

13


Paineira no pátiodoa sombra e algodão:ensina lição.

14


Plumas de paineira –abrem-se tal corações:final de inverno.

15


Canário preso –Pavarotti ou Iglesias?Estará feliz?

16


Canto do grilotrouxe passado feliz.Só hoje eu sei.

17


Sou jardineirana vida colho flores,todas as estações!

18


Jogo sementesnum jardim encantado:colho amigos!

19


Árvore pródiga –entrega folhas ao chão:é outono.

20


Fim de outono –árvore nua choroutodas as folhas.

21


Uva do Japãona minha rua, “no ponto”!Fim de outono.

22


Pitanga lavadapela chuva da tarde:água na boca...

23


– Oi, lagartixa!Caminhas na vidraça,mostras o avesso!

24


Ovo à vista –cacarejo anuncia:- É obra prima!

25


Flor de cinamomotocada pelo vento?Não. Pela formiga.

26


Mosquito me diz:Tenho o dom da vida,além de voar...

27


Descasco maçãs –paraíso perdido,môo lembranças.

28


Homem e mulher –bebidas num coquetel:delícia ou fel.

29


Olho no olho –ânsia de decifrarenigmas.

30


Camélia dupla –faces em oposição:eu e você.

31


Sombra rasteja –segue na minha frente,obediente...

32


Chuva da noite –cacos d’espelho no chão:aurora refletem.

33


Menina cantana partida do ônibus:– Vou olhar p’ro céu!

34


Boneca avisa –no colo da mãe feliz:– Estou dormindo!

35


Bolhas de sabão –arco-íris bailando!Ilusão nada mais...

36


Fatia de céu –polvilhada d’estrelas:janela serve.

37


Mar de líriosna praça à beira-mar:delírios!

38


Mãos solícitas –prontas a doar-se:curam feridas.

39


Relógio parou –dois ponteiros nas doze.A vida segue...

40


Notas musicais –andorinhas nos fios:final de verão.

41


Primavera aí –no palco se apresentapara bisar!

42


– Oh, primavera!Na planura dos campos,flores são pirilampos.

43


Pomba passeiade colar nacarado.– Quem foi que lhe deu?

44


Pombos cumprem sina –no desvão sombrio do prédio:fabricam vida.

45


Quero-queros vêm –do gramado fazem palco:mostram seu balé.

46


Pedaço de céu –poça d’água espelha:a mão alcança!

47


Céu de romã –Guaíba espreguiça:nosso encontro.

48


Ouro derretido –pôr do sol no Guaíba.Dinheiro não compra!

49


Hora púrpura –pinheiros emolduramoutro pôr do sol...

50


Corcel de nuvens –fantasia tem asas:é o pôr do sol...

51


Passeio de barco –olhos no céu, mãos n’água:anoitecer vibra...

52


Dia e noitepasseiam de mãos dadas:é crepúsculo.

53


Libélula pousa –nas asas a cor do céu:transparência.

54


Juncos ao vento,beijando a lagoa,ajoelhados.

55


Sol desmaiandodeixa a tarde morrer:um beijo de luz...

56


Hora mágica –sol deita no horizonte:arco-íris assiste...

57


Final do dia –atravesso o túnel:dever cumprido.

58


Fim de jornada –operário limpa as mãos:sobra trabalho...

59


Trovão desperta –na noite adverte:– Vida frágil!

60


Tesouros sem fimnas profundezas do mar...– Quem irá buscar?

61


Palavra-chama –acende, queima em nós,todo um mundo...

62


Desejo – fera –não convém despertá-lo:está dormindo...

63


Ave ferida –no peito apunhalada...Chora coração!

64


Casa antiga –no bairro afastado,parece chorar...

65


Achei dinheirono bolso da calça velha.Já não vale mais...

66


Homem triste –deixa derreter o sorvete:desemprego...

67


Gesto do atletacristaliza-se no ar:beleza pura!

68


Domingo de sol –caminhada, namoro:festa no parque.

69


Dente quebrado,corpo fragilizado,aviso dado.

70


Passo a passoseguem as horas, os dias:nascer e morrer.

71


Papel e lápisna lavoura da solidãoplantam meus versos.

72


Fria manhã –nas asas do vento, a resposta:na minha face!

73


Maestro rege.Platéia suspensa no ar.– Varinha mágica?

74


Aplausos, platéia?Ecos de aprovação, massagem no ego!

75


Jardim dos mortos –borboletas voando.Vida tão breve...

76


Luzes no morro –a noite tece seu véu:pirilampos. (*)

______________(*) Poema premiado em 1992, integrando o ProjetoPoemas no Ônibus.

77


Sou viajante –arco-íris me abraça,não vou sozinha...

78


Aves em bando –com serpentina flechamo amanhecer.

79


Face da paz –quer mais a liberdade:pássaro a voar.

80


II Parte

Lua em Lá Maior


Lua nascendo –alva tal palha de arroz:noite tão leve...

81


Lua é olhopor trás da pálpebraa espiar.

82


Lua cheiabate na mesa posta.Noite cúmplice.

83


Lua – bordadeira –na renda da mata:linha de prata.

84


Lua levitaem cima do telhado.Gato testemunha.

85


Lua crescentetraspassando as nuvens:adaga de ouro.

86


Lua – odalisca –arrasta nuvens nos céus,em dança de véus.

87


Lua – botão –abotoando o manto:noite azul.

88


Lua costuranuvens com nuvens no céu:colcha de retalhos.

89


Sol e lua –nos pratos da balança:ele vai, ela vem.

90


Lua no altodesdenha de mim:– És sonambula?

91


Lua no lago –só, espelhando-se:mulher vaidosa.

92


Lua brinca de esconde-esconde:bicho arisco.

93


Lua é frutono alto do coqueirodependurada.

94


Lua – lentilha –espia na escotilha.– Também somos grão!

95


Lua ri de mim:– Por que trabalhar tanto?Nem viste o sol...

96


Lua em fiapodeita-se a rir de mim.Eu aqui, inteira!

97


Lua cavalganum corcel de nuvens.Eu sigo a pé...

98


Lua humildebeija o horizonte:amanhece...

99


Sol, lua, estrelas –hóspedes do firmamento.Revezamento.

100


Fruto maduro - de tuas mãos ao alcance:carícias dos céus.

A autora vista por Iberê Camargo

Fruto Maduro

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