Fernão Lopes - Crónica de El-Rei D. João (Biblioteca de Clássicos Portugueses Completa)

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    ESCRIPTORIO147 Rua dos Rktuozkiros 147

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  • BIBLIOTHECADE

    CLSSICOS PORTUGUEZESDirector litterario

    Conselheiro LUCIANO CORDEIRO

    Proprietrio e fundador

    mELLO UoAZEVEDO

  • BlBLIOTHECA DE ClASSICOS PoRTUG'

    Director Litterario Conselheiro Luciano CordeirProprietrio e fundador Mello d'Azevedo X"

    CHRONICADE

    EL-REIn I n

    O U AluPOR

    Ferno Lopes

    "V-OIj- I

    ESCRIPTORIO147 Rua dos Retrozeiros 147

    LISBOA

    1897

  • u. 1-5

    ^iBRARy^N

  • DUAS PALAVRAS DE PROLOGO

    DEPOIS da reproduco, to auspiciosamenteacolhida, das duas chronicas do patriarchada Historia e da Prosa portugueza, que

    de ambas o foi, a de Dom Pedro e a de DomFernando, estava naturalmente indicada e como pre-vista e resolvida se achava j, na inteno patriticado editor, a republicao da chronica de Dom JooI, pelo menos na parte d'ella que pde ainda ser tes-temunhada e escripta por Ferno Lopes.

    N'aquellas duas, especialmente na segunda, fica-ram lanados j os fundamentos d'esta chronica oud'esta parte d'ella, no somente pela lgica sequen-cia dos acontecimentos, mas tambm pelo senso cri-tico, to penetrante e seguro, de verdadeira historiaphilosophica, que cimenta e vivifica a bella historianarrativa do velho chronista.

  • Bibliotheca de Clssicos T^ortugue^es

    A chronica do Rei de boa memoria que foi,a bem diser, o segundo fundador da Nao, anecessria illao da do Rei Formoso que abre,com as suas loucuras e com a sua subservincia traio macliinada pelas ambies da Rainhabigama, aos dois maridos, adultera a terrvelprova real da consolidao do Estado e do Povoportugueza.Vae este provar se deve desapparecer, perante a

    Historia e o Futuro, na massa obscura e informedos povos sem nome; se os prodmos singular-mente gloriosos da sua existncia militante, se a in-trepidez, a habilidade, o valor, a vontade hericadurante trs sculos posta, ininterruptamente, naaffirmao do seu direito vida e da sua raso po-litica, foram apenas um simulacro de individualidadeethnica e social que podesse ruir e desfazer-se facil-mente na conjurao das sfregas cubicas da visi-nhana e das prfidas ambies de uma camarilhade aventureiros e traidores.Como vimos, na Chronica de Dom Fernando,

    Leonor Telles, por consolidar a sua realesa bastar-da, enxertando-a definitivamente na successo rea-lenga, mal vira viuvo o Rei de Castella mandara of-ferecer-lhe a filha, a Infanta Dona Brites, alcovitan-do-lhe a posse apetecida de Portugal.Com a mesma luminosa singeleza com que nos

    contou a pulha sugesto da camarilha e o alvorooalegre dos cortesos e polticos castelhanos, vae di-zer-nos Ferno Lopes breve e samente comoo povo portuguez respondeu ao odioso trama e aonovo ensaio da singular obsesso que havia de acom-panhar a historia de Portugal e de Hespanha at setransformar nos nossos dias, no disparate doutrina-

  • Chronica cCEl-Rei D. Joo I

    rio conhecido pelo nome de unio ou de federa-o ibrica.Sempre que se tem pensado em reproduzir a

    Chronica de D. Joo I, se atravessa ao generosopensamento a ida, nunca bem apurada e definida,das imperfeies da edio do bom Antnio Alva-res e da existncia de uns cdices, pelos quaes con-viria refazel-a ou emendal-a.No faltou agora, e desta vez com o bello an-

    nuncio de que a Academia das Sciencias se senteanimada do mais auspicioso empenho de satisfazero voto que ha tantos annos, um pouco irreveren-temente, a feriu, de que antes de ter publicadomuitos livros... de bem fraco merecimento, nosdevera ter livrado da vergonha de uma tal edi-o.Mas alm de que nos parece exagerado e ingrato

    este juizo da patritica dedicao de Antnio Alva-res, e que a questo dos famosos cdices inditosde Ferno Lopes, se nos afigura sofrivelmente com-plicada, para ser resolvida sem maiores ceremoniasde estudo, como em tempo dissemos, no pde, poremquanto, pelo menos, a nossa bibliotheca propr-sea offerecer reprodues criticas e definitivas, no at aos eruditos que ella procura servir, e o queagora nos importa completar a obra impressa,mas rara, de Ferno Lopes, e at sob o mesmopensamento e empenho que moveu em 16440 bomdo Antnio Alvares: o de avivar na memoria dopovo, a bella lico que ella encerra, declinando alastima com que o dedicado Impressor acusa-va alguns de occultar em cuidadoso silencio asvictorias e gloriosas empresas por que o Serens-simo Rei Dom Joo o i. mereceu ser acclamado e

  • 8 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    eleito por Rei, sendo novo Restaurador e, em certomodo, Fundador do Reino.

    Mantemo-nos, pois, na reproduco simplesmentesubordinada aos principios que noutras expozmos,da nica edio existente:

    GhronicaDel Rey D. loam IDe Boa Memoria,

    E dos Reys de Portvgal o Decimo.Primeira Parte.

    Em Qve se contem A Defensamdo Reyno at ser eleito Rey.

    Offerecida A Magestade Del ReyDom loam o IV. N. SenhorDe Miracvlosa Memoria.

    Composta por Fernam Lopez.Anno de 1644.

    Em Lisboa. Com todas as licenas necessrias.A custa de Antnio Alvarez Impressor Del Rey N. S.

    Como no emprego, succedeu a Ferno Lopes,n'esta Chronica, Gomes Eannes de Azurara, masparece-nos preferivel deixar para a reproduco dotrabalho deste ultimo Chronista, sob todos os as-pectos to outro, a parte da sua cooperao na his-toria de Joo I.

    L. C.

  • LICENAS

    POR mandado do Conselho Geral do Santo Of-ficio vi esta primeira parte da Chronica deEl-rei D. Joo, o primeiro, de gloriosa me-

    moria, composta por Ferno Lopes, escrivo da Pu-ridade do Infante D. Fernando, e no tem cousaque encontre nossa Santa F, ou bons costumes,antes ser mui proveitosa para animar os portugue-zes deste nosso tempo, a que com maioc fervor de-fendam o seu Reino, imitando to gloriosos ante-passados.

    Lisboa no Convento da Santissima Trindade, em27 de Outubro de 1642.

    O 1). Fr. Adrio Pedro.

    I

  • 10 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    Vi por ordem dos Senhores do Conselho Geraldo Santo Officio esta primeira parte da Chronicade El-rei D. Joo o primeiro, de gloriosa memoria,composta por Ferno Lopes, Escrivo da Puridadedo Infante D. Fernando, filho do mesmo rei D. Joo,e no achei n'ella cousa alguma contra a nossa SantaF, ou bons costumes, antes com esta historia semostra com singelo e no atfectado estylo o zelo dahonra de Deus, e amor da ptria, que nos Portu-guezes daquelle tempo, ardia, para louvor dos quaesto merecido por seus excellentes feitos, quandono tivramos d'este livro outros proveitos, era bemque se imprimisse, quanto mais que os exemplosque nos deram so poderosos para efficazmente nosobrigar aos imitar. E assim me parece esta Chronicadignssima de sair a luz.

    S. Dommingos de Lisboa, 14 de novembro de1642.

    O M. Fr. Ignacio Galvo.

    Vistas as informaes pde-se imprimir a pri-meira parte da Chronica d'El-rei D. Joo o primeiro,de gloriosa memoria, auctor Ferno Lopes, e depoisde impressa tornar ao Conselho para se conferircom o original, e se dar licena para correr, e semella no correr.

    Lisboa, 14 de Novembro de 1642.

    Fr. Joo de Vasconcellos. Francisco Cardosode Torneo. Pedro da Silva. Diogo de Sousa.

    Pde-se imprimir. Lisboa 27 de Novembro de1642.

    O 'Bispo de Targa.

  • Chronica d'El-rei D. Joo I ii

    No achei n'esta Chronica de El-rei D. Joo, oprimeiro, de gloriosa memoria, como por onde sepossa negar a licena, que pedem para se imprimir.Lisboa 3i de dezembro de 1642.

    ^iogo de Taipa dAndrada.

    Que se possa imprimir esta Chronica, visto as li-cenas do Santo Officio e Ordinrio, que offerece,e depois de impressa torne para se taxar, e sem issonada correr. Lisboa i3 de Janeiro de 1643.

    Joo Sanches de Taena. T>. Rodrigo de Me-ne\e8. Joo Tinheiro.

    Esta primeira, segunda e terceira parte da Chro-nica de El-rei D. Joo, o primeiro, esto conformeo seu original. Lisboa em 18 de agosto de 1644.

    O 'Z). Fr. Adrio Pedro.

    Visto estar conforme com o original podem cor-rer estes livros. Lisboa 19 de agosto de 1644.

    T. da Silva.Francis. Cardoso de Tom.Pautal.Rr\. Pacheco.

    Taixam estes livros da Chronica de El-rei D.Joo, o primeiro, de boa memoria, em dois mil risem papel. Lisboa 27 de Agosto de 1644.

    I. Pi-nheiro. M. A. Coelho. Ribeiro. Cagado.

  • 12 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    SENHOR:

    Em a Ghronica, que o anno de 1642 que imprimidos Serenissimos Reis de Portugal D. Joo o pri-meiro, D. Duarte seu filho e D. Afonso V seu netose referiram em breve compendio suas virtudes eproezas, na forma que o Licenciado Duarte Nunesde Leo as tinha j com licena recopiladas : praavivar de novo a lembrana com que se conservamsempre vivas estas memorias e se vencer com a pu-blicao d'ellas o impedimento que com a invason'estes reinos d'El-rei Catholico D. Filippe de Cas-tella se occasionou pra se occultarem em cuidadososilencio as victorias e gloriosas imprezas porque oSerenssimo Rei D. Joo, o primeiro, mereceu seracclamado e eleito por Rei sendo novo Restaura-dor, e em certo modo Fundador do Reino e comque o soube segurar com a celebre batalha de Al-jubarrota, com as de Valverde, Trancoso e outras,e ultimamente augmental-o e engrandecel-o com agloriosssima conquista de Ceuta em que se lhe of-fereceram ao mesmo passo das difficuldades e ris-cos, victorias e glorias em que se v tanto de verda-deiras quanto de impossveis. E porque era justo quea Ghronica d'este Serenssimo Rei se imprimissemais por extenso, como se achou escripta em trspartes por os Chronislas Ferno Lopes e GomesEannes d'Azurara, em o tempo que j Vossa Ma-gestade to felicemente, em conservao de seudireito recobrou os reinos que a violncia injusta-mente lhe tinha usurpados, restituindo-os a sua filha,defendendo-os e conservando-os imitao do nome,

  • CJi7'onica cTEl-Rei D. Joo I

    valor, prudncia, magnanidade e fortuna de to glo-rioso Prncipe, me deliberei, movido do zelo da p-tria e do servio de Vossa Magestade a dar im-presso esta Chronica do Serenssimo Rei D. Joo, oprimeiro, de quem Vossa Magestade gloriosamentedescende, no s por ser pae do Senhor D. AFon-so, primeiro duque da serenssima casa de Bragan-a, que casou com a excellentissima Senhora DonaBeatriz filha nica do grande Gondestable D. NunoAlvares Pereira, progenitores de Vossa Magestade,mas ainda pela descendncia de El-rei D. Duarte,de quem Vossa Magestade traz a successo direitada Casa Real e herana d'estes reinos e mais con-quistas, estados e senhorios. O zelo da Ptria mos-tro em publicar as virtudes d'um rei Pae d'ella e ode servio de Vossa Magestade em o reconhecer,n'esta oferta, por herdeiro d'ellas no direito do san-gue, successo e imitao, Cuja Real Pessoa NossoSenhor guarde, etc.

    Antnio Ahare\.

    A Joo Rodrigues de S e Mene^es^ conde de Pena-guio^ Camareiro mr de Sua Magestade, etc.

    Andaram sempre em competncia Letras e Ar-mas, mas em Vossa Senhoria se acham to unidas,que se pde bem dizer, talvez armado Apolo, talvezgraduado Marte

    ^

    pois leixando no anno passado tocelebre seu nome, nas gloriosas emprezas em quese achou nas entradas que fez o nosso exercito nosreinos de Castella, e tomada de suas foras, agoratanto que soube Vossa Senhoria da memorvel ba-talha dos Campos de Montijo, foi o primeiro que

  • 14 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    leixando sua casa, e regalo, e ainda assistncia pes-soal, que por rasao do cargo tem junto pessoaReal (por servir mais calificada e arriscadamente)se partiu para Campo Maior oferecido aos perigos,que se oferecem, d'onde reconhecendo, que a res-peito da victoria alcanada pelas armas de Sua Ma-gestade, no era necessria sua presena n'aquellapraa, voltou Vossa Senhoria ao exerccio do Pao,em que exemplar to continuo, em beneficio doReino, que sendo digno de ser imitado, o no pdeser de muitos. Estes motivos me incitaram a im-primir esta Chronica sabendo que Vossa Senho-ria desejava, que ella sahisse luz, confiado emque Vossa Senhoria alm de a estimar a poderiamelhor offerecer em meu nome a Sua Magestade.Uma e outra cousa espero de Vossa Senhoria, aquem Deus d largos annos de vida com feUce au-gmento de prosperidades.

    Antnio Alvare:{,

  • AQUI COMEAA CHRONICA D'EL-RI D. JOO

    DE BOA MEMORIAO PRIMEIRO D'ESTE NOME

    E DOS REIS DE PORTUGAL O DECIMO

    Capitulada, e composta por Ferno Lopes, escrivo da Puri-dade do Infante D. Fernando, filho do mesmo Rei D. Joo.A qual Chronica o dito Ferno Lopes fez por mandadod'El-rei D. Duarte, sendo Prncipe.

    CAPITULO I

    Rabes em prologo do aiictor doesta obra^ ante quefale dos feitos do SMestre.

    GRANDE licena deu a afeio a muitos, quetiveram cargo de ordenar historias, mor-mente dos Senliores, em cuja merc e terra

    viviam, e onde foram nados seus antigos avs, sen-do-lhe muito favorveis no recontamento de seusfeitos. E tal favoreza, como esta, nace de munda-nal afeio, a qual no , salvo conformidade dealguma cousa ao entendimento do homem.

  • i6 Bibliotheca de Clssicos Poriugue:{es

    Assim que a terra, em que os homens, por longocostume e tempo, foram criados, gera uma tal con-formidade entre o entendimento, e ella, que havendode julgar alguma sua cousa assim em louvor, comopor contrario, nunca por elles direitamente recon-tada, porque louvando-a, dizem sempre mais d'a-quello, e se doutro modo no escreverem suas per-das to minguadamente, como acontecerem, outracousa gera ainda esta conformidade e natural incli-nao, segundo sentena d'algnns, que o pregoeiroda vida a fama, recebendo refeio, para o corpo,o sangue, e espritos gerados de tantas viandas teemuma tal similhana entre os que causa esta confor-midade. Alguns outros tiveram que isto descia nasemente, no tempo de gerao, a qual dispem portal guisa aquello, que d'ella grado, que lhe ficaesta conformidade, tambm acerca da terra, comode seus dividos, e ao que parece que o sentiu T-lio, quando veiu a dizer

    :

    Ns no somos nados a ns mesmos, porqueuma parte de ns tem a terra, e a outra os paren-tes; e porm o juizo do homem acerca de tal terra,ou pessoas recontando seus feitos sempre copega.

    Esta mundanal affeiao fez alguns historiadores,que os feitos de Castella, com os de Portugal, escre-veram, posto que homens de boa authoridade fos-sem, desviar da verdadeira estrada, e colher por se-mideiros escusos, por as minguas das terras de queeram em certos passos claramente no serem vis-tas, especialmente no grande desvairo, que o muivirtuoso Rei de boa memoria D. Joo, cujo regi-mento e reinado se segue, houve com o nobre epoderoso rei D. Joo de Castella, pondo parte deseus bons feitos fora do louvor, que merecia, e eva-

  • Chronica dEl-Rei D. Joo I ij

    dindo em alguns outros de guisa, que no aconte-ceram, atrevendo se a publicar esto em vida de taesque lhe foram companheiros, bem veadores de todoo contrario.Ns certamente levando outro modo, posta a de-

    parte toda a affeio, que por azo das ditas razoeshaver podiamos, nosso desejo foi em esta obra es-crever verdade, sem outra mistura, leixando nosbons aquecimentos todo fingido louvor, e mormentemostrar ao povo, quaesquer contrarias causas daguisa que avierem. E se o Senhor Deos a ns ou-torgasse o que a alguns escrevendo no negou, con-vm a saber: em suas obras clara certido da ver-dade, sem duvida no somente mentir do que sabe-mos, mas ainda errando falso no queramos dizer,como assim seja, que outra cousa no de errar,salvo cuidar que verdade aquello que salvo, ens enganados por ignorncia de velhas escripturase desvairados authores, bem podiamos ditando er-rar; porm que escrevendo homem do que no certo, ou contar mais curto que foi, ou falar a maislargo do que devemos, mentir, e este costume muito afastado de nossa vontade.E com quanto cuidado e diligencia vimos grandes

    volumes de livros, e desvairadas linguagens, e ter-ras, e isso mesmo publicas escripturas de muitoscartrios, e outros logares, nos quaes depois de lon-gas viglias, e grandes trabalhos, mais certido ha-ver no podemos do contedo em esta obra. E sendoachado em alguns livros o contrario do que cm ellofalia, cuidae que no sabedormente, mas errandomuito sero taes cousas. Se outros por ventura emesta chronica buscam formosura, e novidade de pa-lavras, e no a certido das historias desprazer-lhe-ha

  • i8 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    de nosso razoado, muito ligeiro a elle de ouvir, eno sem gram trabalho em ns de o ordenar. Masns no curando de seu juizo, deixando os compos-tos, e enfeitados razoamentos, que muito desleixamaquelles que ouvem, antepomos a simples verdade,que aformosentando falsidade. Nem entendaes quecertificamos cousa, salvo o de muitos approvado, epor escripturas vestidas de f. D'outra guisa antenos calaramos, que escrever cousas falsas, que lo-gar nos ficaria para a formosura, e afeitamento daspalavras, pois todo o nosso cuidado isto despezono a basta para ordenar a m verdade; pormapegoando-nos em ella firme os claros feitos dignosde grande relembrana do mui famoso rei D. Joosendo Mestre ; de que guisa matou o conde JooFernandes, e como o povo de Lisboa o tomou pri-meiro por seu regedor e defensor, e depois outrosalguns do reino; e des-ahi em diante como reinou,e em que tempo, breve e smente contados pomosem praa na seguinte obra.

    CAPITULO I

    Como o conde houvera de ser morto por ve^es^ e ne-nhuma houve a\o de se acabar.

    ALANDO alguns da morte do conde Joo Fernan-des, onde se comeam os feitos do Mestre, alle-gam um dito, de que nos no praz, dizendo que

    fortuna muitas vezes por longo tempo escusa amora alguns homens por lhe depois azar mais deshon-

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I ig

    rado fim, assim como fez a este conde Joo Fer-nandes, que muitas vezes lhe desviou a morte, quealguns tiveram cuidado de lhe dar, porque depoiso leixasse nas mos do Mestre para o matar maisdeshonradamente.E ns d'este dito no somos contente; e assim

    por razo do que o matou, como da morte, que porelle, nenhum dos outros o matar podra, que lhemuito mr deshonra no fora, mas temos que omuito alto Deus, que em sua providencia nenhumacousa falece, que tinha disposto de o Mestre serrei ordenou que o no matasse outrem, seno elle.E esto em tempo assignado e com certos azos,posto que poderoso fosse de o d'outra guisa fazer,c certo que uzando o conde por tempo d^aquellagro maldade que dissemos, dormindo com a mu-lher do seu senhor, de que tantas mercs e acrescen-tamentos havia recebidos.No soou isto assim simplesmente nas orelhas

    dos grandes senhores e fidalgos, que lhe no ge-rasse grande e assignado desejo de vingana da des-honra de el-rei D. Fernando; mas o pr esto emobra embargavam muito duas cousas. A primeiraser o conde guardado de muitos e bons fidalgos queo sempre acompanhavam de dia e de noute, a se-gunda que quem se a tal feito pozesse, aventuravaa vida e perdia-se de todo, que os mais dos homensmuito arreceavam de fazer.

    Outros lhe enadiam ainda, que por tal cousa se-ria el-rei muito mais infamado e seu linhagem d'ellaem maior deshonra que eram os condes e outrosgrandes do reino, pro falando em ello por vezestodos outorgavam de ser em tal feito, mas nenhumno se atrevia de ser o primeiro. E o conde bem

  • 20 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    entendia que de taes pessoas no era bem seguro,no dando porm a entender nada, mas seu grandeestado e guardamentos, que por azo d'elle haviamgrandes desembargos d'el-rei e da rainha o faziasegurar.Pro foi assim que o conde D. Joo Affonso, ir-

    mo da rainha, quando veiu de Castella que foi lprezo na de Saltes, chegou a Lisboa, e achando afama de sua irm muito peor do que a leixara comeste conde que dissemos, houve d'ello grande quei-xume e determinou de o matar, e fallou esta cousacom alguns dos melhores que na cidade havia, as-sim como Afonso Eanes Nogueira e outros queeram todos seus vassallos, e encaminhou por ir verel-rei a Rio Maior onde entonce estava, quando veiud'Elvas que houvera d'haver a batalha, acompa-nhado o conde de muitos que se com elle foram.E como hi foi, segundo alguns contam, uma noite

    se fez prestes e aguardou muito escusamente comos seus para o matar. E indo o conde alta noitedesacompanhado, salvo com uma tocha, trigaram-seos outros mais do que deveram, como viram o arda candeia, e elle que os sentia e em sabendo quemera receou-se muito e tornou a traz, e guardandoaquella hora passou assim que se no fez por en-to mais.

    Outros escrevem por outra maneira, dizendo quea rainha como era mulher avisada, j por onde querque foi, ante que seu irmo chegasse soube a tenoque contra o conde levava, e quando pediram pou-sadas, para elle mandou ella correger uma camarnos passos onde pousava, dizendo que queria quepousasse com ella e recebeu-o mui bem, e fez-lhegro gazalhado, e prezumiam que lhe dera a rainha

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 21

    alguma grande dadiva e que o desanojara e o des-viara de em esto poer mo, porque o conde nuncase d'ello mais trabalhou, e que assim escapara oconde Joo Fernandes d'aquella vez.

    CAPITULO III

    Como alguns ordenaram de o conde ser morto, eporque a\o se no fe^,

    PASSOU aquella hora que se no fez mais e par-tiu el-rei d'alli e veiu-se para Santarm, e emesto morreu a el-rei de Castella a rainha D.

    Leonor sua mulher, e foi l enviado por embaixador oconde Joo Fernandes, como ouvistes, e no cessandoa deshonesta fama da rainha com elle fallava-se estolargamente entre alguns senhores do reino, e es-pecialmente entre aquelles que por privana e acres-centamento de honroso estado eram chegados comel-rei, pezando-lhe muito da deshonra que a seusenhor era feita por tal modo, e entre aquelles aque d'esto muito pezava era este conde D. Joofonso, irmo da rainha, que dissemos, sendo groprivado d'el-rei e muito de seu conselho, que el-rei mostrava gro boa vontade; a rainha por contra-rio, posto que sua irm fosse, no era tanto em suaprivana e amor, sentindo ella que elle no haviabom desejo ao conde Joo Fernandes por a famaque ambos haviam.

    Este conde de Barcellos, seu irmo, doendo-semuito da deshonra d'el-rei, e vendo como sua irm

  • 22 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    emquanto o conde Joo Fernandes fosse vivo nohavia de cessar do fazimento que com ella havia,cuidou de ordenar outra vez como fosse morto, efallou esto com o Mestre d'Aviz, e com D. Pedral-veres, Priol do Esprital, e com Gonalo Vasquesd'Azevedo; e acordaram todos que era bem de fa-zer um homem de pequena conta para qual-quer cousa, que se d'elo seguisse, porque melhorera perder-se um homem ligeiro que um de grandehonra e maior estado, e fallaram primeiro com Fer-nandalvares de Queiroz, criado d'el-rei, e paramuito homem, a que acompanhavam de cote qua-tro de besta, e elle se escusou por muitas rases,dizendo que por nenhuma guisa faria cousa emque fizesse desprazer rainha, mormente tal comoesta de que era certo que ella haveria assignadonojo.

    Ento o vieram fallar com Rodrigo Eanes deBarcos, escudeiro de similhante conta de Fernan-dalvares, o qual acompanhava continuadamenteGonalo Vasques d'Azevedo e era todo seu. A esteaprouve de tomar este encarrego, e acordaram comoo conde Joo Fernandes viesse da embaixada deCastella e entrasse em Portugal, que lhe sahisseRodrigo Eanes ao caminho com cinco ou seis de ca-vallo, e o matasse e se pozesse em salvo at quelhe depois elles houvessem remdio.

    Este acordo havido souberam como o conde JooFernandes era partido de Castella e vinha j porPortugal, e Rodrigo Eanes se partiu logo e foi paraAlcobaa, caminho de Leiria, por onde diziam queo conde Joo Fernandes vinha, e elle trouve o cami-nho do Esprital, e assim o errou d'aquella vez, eescapou da morte.

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 23

    CAPITULO IV

    Como el-rei mandava matar o conde Joo Fernan-des^ e porque se deixou de fa^er.

    NO parece cousa indigna se algum que lerou ouvir esta historia fizer pergunta : poisque tanto tempo havia que era fama larga-

    mente publicada entre a rainha e o conde Joo Fer-nandes, se tinha el-rei d'ello alguma suspeita, ousabia de tal fama parte? s quaes se responde d'estaguisa.

    Certo que entre as condies, que do amor es-crevem os que d'elle compridamente fallaram e fo-ram criados em sua corte, assim , que por muitoque encobrir queiram o que ama, no se pde tantoter, porque alguns finaes e falas, e outros demons-tradores geitos, ho dar a entender, aquelle ardentedesejo, que em sua vontade continuadamente mora,e quando os homens tem desacostumadas afeies,e privanas, onde no ha tal devido, que m famaembargar possa ligeiramente, vem a presumpo doerro em que taes pessoas podem cair.E portanto el-rei D. Fernando vendo os muitos

    modos porque a rainha mostrava desordenada af-feio e bemquerena ao conde Joo Fernandes, egrande acrescentamento que lhe procurava por qual-quer guisa que podia, bem certificou em seu pen-samento ser verdade o que as gentes presumiam,posto que da publica voz e fama que a rainha ha-via com o conde, elle nenhuma parte soubesse, no

  • 24 Bihliolheca de Clssicos Portugueses

    era algum ouzado de lhe tal cousa dizer, posto quese de sua deshonra com bom desejo doesse, receandopena por galardo, e mortal dio por amizade, comoJ a alguns aconteceu por taes novas recontarem,mormente aos reis, e grandes senhores.Assim que el-rei D. Fernando bem entendia o

    que era, mas nenhuma cousa dava a entender, re-ceando novamente descobrir com duvida aquello,que a publica voz e fama muito tempo havia queaffirmava, e quando a rainha levou sua filha a El-vas por lhe fazer bodas com el-rei de Gastella, e seel-rei D. Fernando mandou trazer de Salvaterrapara Almada, cuidou de o matar por esta guisa:Mandou ao seu escrivo da Puridade que fizesse

    uma carta para o Mestre d'Aviz seu irmo, em quelhe mandava e encomendava, que vista aquela carta,tivesse geito de matar o conde Joo Fernandes nodizendo porm a razo porqu, e por ella mandavaa Gonalo Mendes de Vasconcellos, alcaide mr deCoimbra, que ordenasse de guisa que o Mestre seuirmo fosse recebido na cidade, e lhe entregassema fortaleza do castello, e que lhe quitava a mena-gem, uma, e duas, e trs vezes.O escrivo fez a carta, e entendeu bem por quem

    era, e dizem alguns, que foi Joo Fernandes. E comofoi feita tornou a el-rei, e disse :Senhor: vs me mandaes fazer esta carta; rezu-

    mindo-lhe quejanda era; porem, senhor, disse elle,se vs esta cousa bem esguardar quizerdes, vossamerc pode entender que por nenhuma guisa a de-veis de mandar, pelo gram damno que se d'ello se-guir pode. Vs senhor, bem vedes como o Mestrevosso irmo bemquisto de todos os do reino, ese elle tivesse Coimbra, falecendo vs, o que Deus

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 25

    no mande, juntar-se-hiam a elle todas as gentes, eficaria por rei d esta terra, e vossa filha assim des-herdada, de guisa que ella nem filho que de seumarido houvesse, seria gro maravilha de nunca emelle mais poder cobrar. E porm me parece se vossamerc fr, que tal mandado deveis escusar por hora.E se do conde Joo Fernandes haveis tal queixume,porque vos esta tenha merecido, bem tereis depoistempo para o mandar matar, cada vez que quizer-des, por outra maneira e no d'esta guisa.E el-rei cuidou n'este feito, e pareceu-lhe as ra-

    zes boas e rompeu a carta, e no foi enviada, eassim escapou o conde Joo Fernandes de no sermorto. E depois d'esto, sendo el-rei D. Fernandodoente, e muito aficado d'aquella dr, que murreu,ao sero, na noite que se finou, estava ahi o condeJoo Fernandes, com aquelles que eram presentes,e quando viu que no havia em elle outro remdio,seno morte, receando-se muito do que feito tinhalhe ser acoimado por algum quella hora, houve togro temor, que aquelle medo lhe foi assim comodegredo, que o fez logo sahir da camar, por se ir pressa para seu condado, e em saindo pela portaum escudeiro do conde Joo Affonso, chamado pornome Pedroanes Lobato, sabendo como o elle qui-zera matar em Rio Maior, como dissemos, disse aoconde se queria que o matasse entonce, pois haviatempo azado para o fazer a seu salvo, e o condede Barcellos, ainda que o desejasse muito de vermorto, defendeu-lho, que o no fizesse, e assim es-capou o conde Joo Fernandes aquelle sero, por-que parece que no viera a hora.

  • 20 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    CAPITULO V

    Como o conde Joo Fernandes houvera de ser morto^e porque a^o se desviou sua morte.

    HOUVERA ainda o conde de ser morto por outravez, e vede de que guisa se azva de ser.Assim que escrevendo a rainha a todos

    os do reino, que viessem ao sahimento do mez, quese havia de fazer por ei-rei D. Fernando, mandouseu recado a Nuno Alvares, que estava entre Douroe Minho com sua mulher, que viesse quelle sahi-mento.Nuno Alvares mui anojado pela morte d'el-rei, sem

    poer mais tardana se fez logo prestes com trintaescudeiros bem corregidos de suas armas, e certoshomens de p com elles, e nenhum outro veiu aotrintario corregido com gentes seno elle, e assimchegou a Lisboa, onde o sahimento havia de ser, efeitas suas exquias, e acabado tudo, foi um diaNuno Alvares vr o Priol D. Pedralveres seu irmo,e depois que elle fallou, e espaou um pouco comalguns fidalgos, que hi estavam, apartou-se pelopao s a cuidar que havia de ser do reino, e queassim ficava deserto, e quem o havia de defenderde alguns, se contra elle quizessem vir, mormenteque se dizia, que el-rei de Castella prendera o in-fante D. Joo, e o conde D. Affonso, seu irmo,como soubera que el-rei D. Fernendo era morto,e que juntava gentes para entrar poderosamente noreino.

  • Chronica d'El- Rei D. Joo I 27

    E cuidando esto certificou em seu pensamento,que no havia outro, que mais razo tivesse de sepr em defeza do reino que o Mestre d'Aviz, filhod'el-rei D. Pedro, o qual elle sabia que era bomcavalleiro, de que havia gro conhecimento tempohavia. E logo veiu a cuidar que o comeo de talobra havia de ser o conde Joo Fernandes d'Andeiroser morto, no qual a rainha havia grande esperana.E andando assim s em esto cuidando, olhou pelo

    pao, e viu Ruy Pereira, seu tio, que hi estava, echegou-se a elle e contou-lhe tudo o que havia pen-sado em razo da defensa do reino, e quem deviad'elle de tomar cargo, e sobre a morte de JooFernandes, declarando-lhe certamente que em estoseria elle de boa vontade, querendo o Mestre emello poer mo.Ruy Pereira, que j esto trazia em grande cui-

    dado, foi muito ledo do que lhe Nuno Alvares dizia \e tanto lhe prouve que no se pde mais ter, e foi-selogo ao Mestre fazer-lhe recontamento de todo.O Mestre sendo ledo mandou logo chamar Nuno

    Alvares agradecendo-lhe muito o que cora Ruy Pe-reira falara^ pro disse o Mestre contra Ru}^ Pereira: A mim parece que no ouo agora murmurar

    as gentes tanto dos feitos da rainha, nem fallar emesto como sabiam. O' senhor, disse Ruy Pereira, vs no sabeis

    como isto ; quando eu andava para casar com minhamulher, todos falavam como eu queria casar comViolante Lopes, e depois que fomos casados, nuncaningum mais falou em nosso casamento. E estessenhores, assim agora taes so e usaro tanto desuas maldades, e por isso no falam j em ellescomo da primeira.

  • 28 Biblioiheca de Clssicos Portugueses

    O Mestre comeou de rir d'esto, e encommendou aNuno Alvares que logo trabalhasse de haver da suaparte mais gentes que podesse, para em outro diaser morto o conde Joo Fernandes, da qual cousaNuno Alvares muito aprouve, e logo se partiu doMestre para sua pousada, para se aviar e concer-tar do que para tal feito cumpria. E corregendo-separa ello com grande agua, mandou-lhe o Mestredizer que cessasse do que lhe dissera, porque se nopodia por ento fazer.Nuno Alvares foi d'esto mui annojado por se poer

    mr espao em tal ira, e tornou-se ao Mestre falan-do-lhe sobre esto muitas e boas rases pelo redu-zir a se fazer logo, e vendo que no podia espediu-se d'elle, e foi-se para o Priol seu irmo, que j erapartido caminho de Santarm, e encalcou em Pon-tevel, onde esteve mui poucos dias.E d'esta guisa se desviou a morte do conde Joo

    Fernandes desta vez e das outras porque como jdissemos, parece que ainda no viera sua hora.

    CAPITULO VI

    Como se a-^oii a morte do conde Joo Fernandes: equemfaliou em ello primeiro.

    SOHEM s vezes os altos feitos, haver comeo portaes pessoas, cujo zo nenhum commum povopodia cuidar, que por elles viesse onde assim

    haveiu : que em Lisboa havia um cidado por nomelvaro Paes, homem honrado e de boa fazenda, e

  • Chrojiica dEl-Rei D. Joo I jzp-

    foi chanarel mr d'el-rei D. Pedro, e depois d'el-rei D. Fernando.

    Este vivendo em casa d'el-rei, e sendo muitodoente de gota, veiu pedir a el-rei por merc fosse,e o aposentasse em Lisboa, onde tinha suas casas,^a assentamento. Sua dr porm no era tamianhaquanto foi o gro nojo, que por azo da deshonrad'el-rei, segundo a m fama que a rainha havia,se gerava em seu corao, e foi assim que el-reiaposentou-o honradamente em Lisboa, e a seu re-querimento mandou aos vereadores da cidade quenenhuma cousa fizessem sem acordo d'elle. Pelaqual razo algumas vezes iam a sua casa ter con-selho sobre o que haviam de fazer, quando elle porazo de sua enfermidade, na camar, onde faziam seuconselho, no podia ser presente. Natureza quefora os homens uzar das condies, que com ellesnaceram, constrangeu tanto este lvaro Paes, deguisa que no perdendo rancor e dio da deshonra,.que a el-rei seu senhor fora feita, nenhuma cousaento mais desejava, que vr o conde Joo Fernan-des morto, pois que o no fora em vida d'el-rei DFernando. E parecendo-lhe tempo azado para arra-zoar em esto fallou secretamente com o conde deBarcellos D. Joo Affonso, irmo da rainha, que sa-bia bem que queria mal ao conde Joo Fernandespor esta razo, e disse

    :

    Senhor, vs sabeis bem como eu, so criado-d'el-rei D. Fernando, cuja alma Deus haja, e a honra,e acrescentamento que em mim fez, pela qual causaeu, e todos quaesquer seus criados se deviam doermuito de sua deshonra, e vingal-a por onde querque poder ser, posto que elle morto seja, mormenteaquelles que teem tal honra e estado que ligeira-

  • 3o Bibliotheca de Clssicos Portiigue'{es

    mente o podem fazer. Ora, senhor, vs sabeis bemquanto ha que as gentes faliam da m fama que arainha vossa irm ha com o conde Joo Fernandes,e isto no somente em vida d'el-rei, mas aindaagora sua m fama no cessa, nem cessar emquantoeste homem fr vivo, e sendo morto, cessar portempo, e esqueceao as cousas. Pela qual razo to-dos os homens bons se deviam doer de tal cousa,mormente vs que sois seu irmo: uma pelasgrandes mercs e grandes accrescentamentos queel-rei em vs fez; outra por ser vossa irm, edeshonrando assi deshonra a vs, e toda sua linha-gem. E posto que eu sabia que vs isso entendeis,e que j em ello quizereis poer mo, cuidei pormde vol-o dizer, que vs podeis a ello tornar, comovossa merc fr, mas de mim vos digo que sendoeu quem vs sois, e podendo-o fazer como vs, quemuito ha que eu no leixara passar tal cousa, pon-do-me ventura que me Deus dar quizera.O conde disse que bem sabia todo, que lhe gar-

    decia sua boa vontade, e que j tempo fora, quehouvera talante de o poer em obra, mas que porentonce no havia geito azado de o poder fazer.E falando em esto muito, disse o conde a lvaro

    Paes. Sabeis com quem me parece que bem que

    faleis esta cousa ? falai com D. Joo, Mestre d'Aviz,que ha tamanha raso de se doer da deshonra d'el-rei como eu, e no vejo aqui homem mais azadopara fazer isto, e para travar em qualquer ardidezaque lhe mo vier, como elle. Muito me praz, disse lvaro Paes, de o com

    elle tratar, e com qualquer outro que eu entendesseque o poria em obra : mas quando o vs fazer no

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 3i

    quereis, que tantos azos tendes mais que outro ne-nhum, duvido muito de o elle, nem outro querer fa-zer.

    Eu direi ao Mestre, disse o conde, como lhe vsquereis falar uma cousa de sua honra, e que porquanto vs sois embargado de dr, e no podereisala ir, que quando cavalgar por a villa, que venhapor aqui, e vos fale, e bem creio d'elle que o queirafazer.Ficaram n'este accordo, e espediu-se o conde, e

    quedou lvaro Paes com novo cuidado para falarao Mestre.

    CAPITULO VII

    Como lvaro 'Paes fallou com o Mestre sobre amorte do conde Joo Fernandes^ e do accordo emque ambos ficaram.

    FALLOU o conde ao Mestre d'Aviz dizendo comolvaro Paes havia de fallar com elle algumascousas de sua honra e servio, e que o fosse

    ver quando cavalgasse pela villa, por quanto porazo de sua doena, no podia ir onde elle pousava.O Mestre, por saber que era, no tardou muito

    em ir al ; e foi-lhe fallar a sua pousada; sendo am-bos em logar apartado, comeou lvaro Paes dearrazoar todo o que dissera ao conde de Barcellos,e a resposta de escusa que em elle achara, e quedepois viera a cuidar que nenhum outro havia noreino que mais rases tivesse para o fazer que elle.

  • 32 Bibliotheca de Clssicos Portiigiieies

    Primeiramente disse lvaro Paes, por vs ser-des irmo d'el-rei que sua deshonra mais deve doerque outro nenhum, a segunda porque fostes por azod'elle, e da rainha, posto em tal perigo, e prezo,como todos sabem. E que por ai no fosse, senopor segurar por vossa vida, que nunca ha-de sersegura, emquanto o conde Joo Fernandes fr vivo,por isso somente o deveis fazer, ca pois el-rei agora morto, uzaro mais de sua maldade, e receando-se de vs, que bem sabem que d'isto deveis ter mrsentido, que outra pessoa, sempre vos buscaroazo e caminho por onde vossa vida seja cedo in-da. E pois que a vingana deste feito a nenhummais pertence que a vs, fazendo da guisa que voseu digo, mostrareis em ello grande faanha, e muitode lembrar aos que depois vierem, em tanto quenenhuma cousa de louvor ante os homens seragora achada, que fosse igual, nem parelha d'esta.O Mestre ouvindo suas boas e muitas razes,

    com grande vontade que d'ello havia, bem outor-gava de o fazer, mas eramlhe presentes taes e tograndes duvidas, que todos os caminhos para o poerem obra, eram a elle escusos com grandes empa-chos, especialmente dizendo o Mestre que quem sea tal feito houvesse d'aventurar, mormente dentrona cidade, compria ter alguma ajuda de povo, porazo do cajo que se crescer podia.

    lvaro Paes com o desejo que havia, mostrava aoMestre serem todas as rases to ligeiras para oacabar, como se fosse um pequeno feito : e quant ajuda do povo, em que o Mestre fallou muito,respondeu elle, e disse, que se o elle fazer quizesse,que elle lhe ofFereceria a cidade e sua ajuda, enten-dendo de o fazer assim.

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 33

    O Mestre, cubioso d'honra por sua ardente natu-reza e grande corao, movido por os ditos d'elledeterminou de o poer em obra. O homem bom quan-do lhe ouviu dizer, que todavia queria poer mo emtal feito, foi to ledo, que mais ser no poude, eassim como chorando com prazer, se afastou delleum pouco olhando, e disse: E isto verdade, filho senhor, que vs to

    boa cousa quereis fazer? Certamente, disse o Mestre, sim, e no leixaria

    de a acabar por cousa que avir podesse.Ento se chegou a elle lvaro Paes, e beijou-o

    no rosto dizendo

    :

    Ora vejo eu, filho senhor, a diff*erena que hados filhos dos reis aos outros homens.Comearam entonce a fallar muito como se pode-

    ria fazer e melhor azar sua morte, e porque guisas;depois de grande espao, que em esto houveram fat-iando, espediu-se o Mestre e foi-se para sua pousada.

    CAPITULO VIII

    Como o conde Joo Fernandes vehi ao sahimentod'el-rei e o mestre foi ordenado por Fronteiroem Riba d'Odia?ia.

    POR quanto dissemos do conde Joo Fernandesque na noite que se el-rei finou, partiu mui tri-gos para seu condado receando-se quella

    hora de receber damno por o que feito tinha, bem po-dem alguns dizer n'este ponto, como foi depois ouza-

    FOL. a VOL. I

  • 34 Bibliotheca de Clssicos Portupieies

    do vir ao sahimento, onde foram juntos muitos maissenhores e fidalgos dos que eram presentes quandocl-rei morreu, pois se d'aiguns tanto receava, camui poucos eram em Lisboa aquella sezo, quese elle finou, porque como vieram das bodas coma rainha, cada um se foram para suas terras e al-caidarias, assim como Gonalo Vasques d'Azevedopara Santarm donde era Alcaide e tinha seus bens,e assim outros muitos.Aonde sabei que assim aconteceu que elle recean-

    do-se, e com temor veiu, e quando a rainha escre-veu a todos os fidalgados que viessem ao sahi-mento e chegou a carta ao conde Joo Fernandes,sua mulher lhe contradisse muito tal vinda, pedin-do-lhe por merc que se escuzasse, c o entendiapor seu proveito, e elle no curando de seu conse-lho partiu para Lisboa e chegou a Santarm, e foipousar com Gonalo Vasques d'Azevedo, muito seuamigo, segundo mostrana de fora, o qual o rece-beu mui bem, e comeou de o prasmar, porque tra-zia preto, e no burel como os outros, e fez-lh'oento vestir.O conde lhe perguntou se havia de ir ao sahi-

    mento, e elle respondeu que no, dando suas colo-radas escusas; mas a verdadeira, que elle suspei-tava, o que depois aconteceu, e no se queria verem tal alvoroo, por no saber o que se havia deseguir, porm conselhou-lhe que no fosse l.O conde pro se tanto receasse d'algumas pes-

    soas, de nenhum se tanto temia em sua vontade,como do Mestre d'Aviz, irmo d'el-rei, mas este re-ceio d'elle e dos outros, no era porm privana defalia, mas de leda conversao e mostrana de bem-querena, e se alguma cousa se receava em vida

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 35

    d'el-rei D. Fernando, e muito mais quando ellemorreu, agora ia j cobrando mais segura vontade,entendendo que cada um de tal feito perderia sen-tido por os muitos cuidados que se a todos recres-ciam, cobrando mundo novo.E com esta fouteza partiu estonce de Santarm,

    sem crendo nenhum contrario que lhe avir podesse,des-ahi a fortuna ]h'o fazia mais largo entender,que tinha ordenado de o cedo oferecer morte, echegou a Lisboa, aonde j achou muitos que vinhamao sahimento. E bem recebido de todos foi em groprivana agazalhado da rainha, desembargando comelle todos os desembargos do reino.E como o sahimento foi feito, entrou logo a rai-

    nha em conselho com esses senhores por fallar nostratos que entre os reis haviam, os quaes diziamque el-rei de Castella queria quebrar, e juntava gen-tes para entrar no reino.E foi acordado por a rainha e por todos os que

    hi eram, que o reino se deFendesse, querendo el-reide Castella vir a elle, e no lhe obedecessem emoutra cousa, salvo n'aquellas que nos tratos eracontedo, e que pois todos alli eram juntos, queordenassem logo as frontarias e quaes estivessem emellas, e cada um com quantas lanas, e foi assimde feito, que foram logo partidas as comarcas, eordenado ao Mestre as terras do Mestrado e certasvillas e castellos de arredor, dando-lhe logo em es-cripto todos os que com elle haviam de guardar e odesembargo do soldo para elles.

  • 36 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    CAPITULO IX

    Como foi o7'denada a morte do conde Joo Fernan-des^ e como o Mestre partiu de Lisboa^ sem levan-do inteno de o matar.

    uscADAS rases dos que livros fizeram d'estahistoria por testemunho d'aquelles que pre-sentes foram, segundo todos pela maior parte

    dizem, o Mestre, como teve accordado com lvarode Paes de matar o conde Joo Fernandes, logo faloueste segredo com o conde de Barcellos D. Joo Af-fonso e com Ruy Pereira e outros, os quaes lhe certi-ficaram que seriam presentes com elle quando em ellopozesse e quizesse poer mo. E emquanto a rainhaordenava suas cousas sobre regimento e percebi-mento do reino, em que o Mestre porm sempre es-tava, ia elle muitas vezes a casa de lvaro Paesalgumas horas com o conde, e outras a departe, fa-lar com elle sobre a morte do conde Joo Fernan-des, e especialmente como se poderia haver ajudado povo por sua parte.

    lvaro Paes, muito talentoso de ver tal feito aca-bado, todavia lhe certificava que sim, e no que elledescobrisse a nenhum tal segredo, mas entendia,como era certo, que a no boa vontade que as gen-tes tinham rainha e ao conde o faria todos demo-ver contra elles, como vissem logar e tempo azado,e accordaram que para se todo melhor fazer que,tanto que o Mestre chegasse aos paos e comeasseem esto de poer mo, que logo Gomes Freire, seu

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 3j

    pagem, em cima do cavallo em que andava, come-asse de vir rijo pra a villa, bradando at casa delvaro Paes, dizendo a altas vozes: Que acorres-sem ao Mestre d'Aviz, que o matavam ; e que en-to se sahiria elle com os seus, em maneira deacorro, chamando quantos achasse pelas ruas, osquaes se iriam com elle de boamente como hou-vesse tal apellido, e que d'esta guisa juntaria todaa cidade em sua ajuda. Falando d'esta maneira eacertando de se fazer assim, foi o Mestre desembar-gado de todo, e dadas cartas, quejandas cumpriam,e elle espedido da rainha pra partir.Ora aqui desvairam alguns auctores sobre a par-

    tida do Mestre, e dizem assim

    :

    Uns contam que elle fingiu que se partiu aquelledia, como de feito partiu, por o conde Joo Fernan-des segurar d'elle, se algum receio tinha do Mestre,e tornar em outro dia e o achar mais despercebidoe no to acompanhado, e que lvaro Paes se avi-zasse em tanto de sua parte.

    Outros affirmam sua partida por outro modo, ed'este nos praz mais, dizendo que, no embargan-do que o Mestre ficasse com lvaro Paes de poerem tal feito mo, da guisa que ouvistes, que elle sereceou muito depois de o fazer, por estas seguintesrazes

    :

    A primeira, porque taes hi houve, com que ellefalou, que se escusaram d'ello quando o houve depoer em obra, temendo-se da rainha, que tinha el-rei de Castella por sua parte, que lhe podia depoisazar sua deshonra e morte, salvo se foi Ruy Pereirae alguns seus do Mestre, a que elle isto descobria;des-ahi, duvidando muito o Mestre da ajuda do povose no seguir como dizia lvaro Paes, ou a tempo

  • 38 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    que no prestasse, era posto em grande pensa-mento.Porm, principal sobre todas era o gro aguarda-

    mento de muitos e bons fidalgos que sempre acom-panhavam com o conde Joo Fernandes, tal comoMartim Gonalves d'Athayde, e Joo AFonso Pi-mentel, e Pedro Rodrigues da Fonseca, e FernoAftbnso de Miranda, e outros, e bem trinta escudei-ros seus de cote.Assim que cuidadas bem taes rases, no embar-

    gando seu ardido corao e boa vontade, foi-lhe muiduvidoso de o comear, e partiu da cidade depoisde comer, e foi partir a Santo Antnio, aldeia queso d'ahi a trs lguas, sem levando J nenhumateno de matar o conde; e elle ahi tornou a cuidarcomo esta cousa fora falada com tantos, que por-ventura, entonce ou depois, alguns, por cobrar graada rainha e isso mesmo do conde Joo Fernandes,o podiam dizer a cada um d'elles, da qual cousadescoberta, se seguia a elle e aos seus gro cajoe perda, e, por essa guisa, a todos os que foram emtal conselho. E, cuidando bem isso, comeou decrescer em elle um esforado desejo, com firme pro-psito, de em outro dia matar o conde, poendo-sea qualquer aventura que aquecer podesse \ e por ti-rar suspeita de sua tornada, chamou logo Fernod'Alvares de Almeida, um cavalleiro da Ordem eveador de sua casa, e disse

    :

    Tornae-vos logo dormir a Lisboa e fazei-mede manh prestes de jantar, e dizei rainha que euentendo l de tornar, porque me parece que novou bem desembargado como cumpre.E elle partiu logo e chegou alto sero cidade,

    porm ainda falou rainha c ao conde o porque

  • Chronica dEl-Rei D. Joo I 3g

    vinha, e como outro dia o Mestre havia de tornar,porque lhe parecia que no ia desembargado comocumpria. A rainha e o conde responderam que tor-nasse muito embora, que elle haveria desembargocomo chegasse.

    CAPITULO X

    Como o cMestre tornou a Lisboa e de que guisa ma-tou ao conde Joo Fernandes.

    EM o outro dia, pela manha, partiu o mestre d'a-quella aldeia hu dormira, e comeou d'andarseu caminho, sem trigana alguma desacostu-

    mada ; e no caminho dizem que descobriu o Mestred'Aviz esta cousa a alguns dos seus, s. : ao com-mendador de Juromenha, e Ferno d'Alvares, e aLoureno Martins de Leiria, e a Vasco LourenoMeirinho e a Lopo Vasques, que depois foi com-mendador-mr, e a Ruy Pereira, que o foi receber

    ;

    e disse a um d'elles

    :

    I-vos deante quanto poderdes, e dizei a l-varo Paes que se faa prestes, ca eu vou pra fa-zer aquello que elle sabe.E o escudeiro andou pressa e deu-lhe o recado,

    e tornou-se para o Mestre onde vinha; e elle traziauma cota vestida, e at vinte comsigo, com cotas ebraaes e espadas cintas, como homens caminhei-ros, e chegou ao pao a hora de tera ou poucomais, sem deter porm em outra parte. E quandodescavalgou e comearam de subir acima_, disseramuns aos outros, mui manso

    :

  • 40 Bibliotheca de Clssicos Portiigueies

    Sede todos prestes, c o Mestre quer matarao conde Joo Fernandes.A rainha estava em sua camar, e donas algumas

    assentadas no estrado ; e o conde de Barcellos seuirmo, e o conde D. lvaro Peres, Ferno Afonsode Samora, e Vasco Peres e outros estavam em umbanco; e o conde Joo Fernandes, que d'ante estava cabeceira d'elles, estava entonce de giolhos anteella, e comeava de lhe falar passamente. E em lhesendo assim falando, bateram porta, e o porteiro,como entrou o Mestre, quiz cerrar a porta, por noentrarem nenhum dos seus, e disse que o pergunta-ria rainha, no por d'elles haver nenhuma suspei-ta, mas porque a rainha estava com d, e em simi-Ihante tempo a este, por respeito devido a sua pes-soa e real estado, no era costume de nenhum entrar,salvo esses senhores, sem lhe primeiro fazer saber.E o Mestre respondeu ao porteiro: Qu has tu

    assim de dizer? E em esto entrou de guisa queentraram todos os seus com elle, e elle moveu pas-samente contra onde estava a rainha, e ella se le-vantou e todo os outros que eram presentes. E de-pois que o Mestre fez reverencia rainha, e mesura

    '

    a todos, e elles a elle recebimento, com toda a cor-tezia que pra com taes pessoas e em taes temposse costumava de ordinrio no pao, disse a rai-nha que se assentasse, e falou ao Mestre, dizendo: E pois, irmo, que isso? A que tornastes

    de vosso caminho? Tornei, Senhora, disse elle, porque, me pare-

    ceu que no ia desembargado como cumpria. Vsme ordenastes que tivesse cargo da comarca dAn-tre Tejo e Odiana, se porventura el-rei de CastcUaquizesse vir ao reino e quebrantar os tratos d'an-

  • Chromca dEl-Rei D. Joo I 4.1

    tre ns e elle ; e porque aquella frontaria grossae de grandes senhores, assim como do mestre d'Al-cantara e d'outros senhores fidalgos, e aquelles quevs assignastes pra a guardarem commigo me pa-recem poucos, porende tornei, pra me dardes maisvassallos pra vos eu bem poder servir, segundocumpre a minha honra e a vosso servio.A rainha disse que era mui bem, e mandou logo

    chamar Joo Gonalves, seu escrivo da puridade,que visse o livro dos vassalos, e d'aquella comarca,e que lhe desse f quantos e quaes o Mestre qui-zesse e que fosse logo desembargado de todo. JooGonalves foi logo chamado depressa, e foi-se as-sentar com seus escrives a prover o livro para des-embargar o Mestre.E em esto comearam de o convidar os condes,

    cada um por si, e isso mesmo o conde Joo Fer-nandes SC afficava mais que comesse com elle, queos outros. O Mestre no quiz tomar o convite denenhum, escusando-se por suas palavras, dizendotque s tinha prestes de comer, que mandara fazerao seu veador

    ;,porm dizem que disse mui escu-

    samente ao conde de Barcellos, que o no sentiunenhum

    :

    < Conde, i-vos d'aqui, que logo quero matar oconde Joo Fernandes.E respondeu que se no iria, mas que estaria

    ali com elle, pra o ajudar. No sejaes, disse o Mestre, mas rogo-vos to-

    davia que vos vades d'aqui e me aguardeis pra ojantar, c eu. Deus querendo, tanto que esto forfeito, logo irei comer comvosco.A ventura, pra melhor azar a morte do conde

    Joo Fernandes, comeou de lhe fazer arrecear a

  • 42 Btbltotheca de Clssicos Portugueses

    vinda do Mestre, por tal guisa, que lhe poz em von-tade que mandasse todos os seus que se fossemarmar, e se viessem pra elle; e de qualquer geitoque foi, partiram-se os seus todos do pao, assim fi-dalgos que o acompanhavam como os outros, e fo-ram-se armar, pra se virem pra elle : esta foi arazo porque elle ficou s de todos elles, e nenhumestava ahi quando elle morreu. A rainha, esso mesmopor femena nos do Mestre, vendo-os assim todosarmados, no lhe aprouve em seu corao, e disse,falando contra todos: Santa Maria vai! Como os inglezes ho mui

    bom costume: que quando so no tempo da paz,no trazem armas, nem curam de andar armados,mas boas roupas alvas nas mos, como donzellas,e quando so na guerra ento costumam as armase uzam d'ellas, como todo o mundo sabe. Senhora, disse o Mestre, mui gro verdade,

    porm esso fazem elles porque ho mui a miudeguerras e poucas vezes paz, e podem-n'o mui bemfazer, mas a ns pelo contrario, ca havemos pelomiude paz e poucas vezes guerra; e, se no tempode paz no usamos das armas, quando viesse aguerra no as poderiamos supportar.E falando esto e em outras cousas, chegaram-se

    as horas de comer ; espediu-se o conde de Barccl-los e des-ahi os outros, ca aos mais delles dava avontade aquello que se depois fez. Ficando assim, oconde Joo Fernandes agastava-se-lhe o corao, etornou a dizer ao mestre

    :

    Vs, senhor, todavia, comer-heis commi-go. No comerei, disse o Mestre, ca tenho feito

    de comer.

  • Chronka d'El-Rei D. Joo I 43

    Sim, comereis, disse elle, e emquanto vs falaes irei eu mandar fazer prestes. No vades, disse o Mestre; eu vos hei de fa-

    lar uma cousa ante que me v, e logo me quero ir,ca j horas de comer.Entonce se espediu da rainha e tomou o conde pela

    mo, e sahiram ambos da camar a uma grandecasa que era dante, e os do Mestre todos com elle,e Ruy Pereira e Loureno Martins mais acerca

    ;

    e chegando-se o Mestre com o conde acerca deuma fresta, sentiram os seus que o Mestre lhe co-meava de falar passo, e estiveram todos quedos,e as palavras foram entre elles to poucas, e tobaixo ditas, que nenhum por entonce entendeuquejandas eram, porm affirmam que fora d'estaguiza

    :

    Conde, eu me maravilho muito de vs serdeshomem que eu bem queria, e trabalhardes vs deminha deshonra c morte! Eu, senhor?! disse elle. Quem vos tal cousa

    disse mentiu-vos mui gro mentira.O Mestre, que mais tinha em vontade de o ma-

    tar que de estar com elle em razoes, tirou logo umcutello comprido e enviou-lhe um golpe cabea;porem, no foi a ferida tamanha que d'ella morrerase mais no houvera. Os outros todos, que estavamd'arredor, quando esto viram, lanaram logo a es-padas fora, para lhe dar, e elle, movendo para seacolher camar da rainha, com aquella ferida, eRuy Pereira, que era mais acerca, metteu entonceum estoque d'armas por elle, de que logo cahiuem terra morto. Os outros quizeram-lhe dar maisferidas, e o Mestre disse que estivessem quedos, enenhum foi ousado de lhe mais dar.

  • 44 Btbliotheca de Clssicos Porugueies

    E mandou logo Ferno d'Alvares e Loureno Mar-tins que fossem cerrar as portas, que no entrasseningum, e dissessem ao seu pagem que fosse pressa pela villa bradando: Que matavam o Mes-tre ; e elles fizeram-n'o assim. E era o Mestre, quan-do matou o conde, em edade de vinte e cinco annos,e andava em vinte e seis, e foi morto a 6 dias de de-zembro, era j escripta de 421.

    CAPITULO XI

    Do que a rainha disse por a morte do conde, e d'oU'iras cousas que hi avieram

    LEixEMOs O pagem ir hu lhe mandaram e ve-jamos em tanto que se fez no pao da rai-nha : onde assim loi que os estrupos e voltas

    que todos fizeram, quando o conde foi morto, soa-ram rijamente na camar onde ella estava, que eramuito perto, e tacs hi houve que pensaram que eramalguns que no vieram com tempo ao saimento, echegaram entonce e faziam d.A rainha, espantada da volta, levantou-se em p,

    no sabendo que cuidar, e disse que vissem que eraaquello ; os outros pressa olharam por entre asportas, e disseram que o conde Joo Fernandes eramorto. A rainha, quando esto ouviu, houve grotemor, pro disse

    :

    Oh! Santa Maria vai! Me mataram em elleum bom servidor, e sem n'o merecer, ca o mata-ram bem sei porque. Mas eu prometto a Deus queme v de manha a S. Francisco, e que mande hi fa-

  • Chronica d'El-rei D. Joo I 4S

    zer uma fogueira, e hi farei taes salvas quacs nuncamulher fez por estas cousas! o que ella tinha muipouco em vontade de fazer.Os outros que hi estavam, assim homens como mu-

    lheres, quando esto ouviram, cuidaram quella horaser todos mortos, que no ousavam de fugir pelasportas, mas fugiam pelas janellas e d'elles pelos te-lhados, outros por degraus no contados, e assimcada um por hu melhor podia. Joo Gonalves, es-crivo da rainha, que estava vendo o livro dos vas-sallos, quando esto viu, comearam de fugir, elle eos seus, cada um por hu melhor azado achava.O Mestre moveu d'ali pra um grande eirado

    muito acerca, e a rainha comeou de dizer:Vo perguntar ao Mestre se hei eu de morrer.E foram-lhe a perguntar, a gro medo, e elle res-

    pondeu muito mansamente : Dizei l rainha, minha senhora, que Deus me

    guarde de mal, e que assossegue em sua camar eno haja nenhum temor, ca eu no vim aqui porempecer a ella, mas por fazer esto a este homem,que m'o tinha bem merecido.E foram-lhe com esta resposta, e ella disse : Pois assim , dizei-lhe que me desembargue

    meus paos,ca ella no via hora que se o Mestrepartisse, porque no era segura de sua vida em-quanto elle ali esteve.

    E, em tornando Loureno Martins d'onde fora acerrar as portas, viu estar uma somma de prata antea cosinha, em uma meza, e tomou-a toda e lanou-ana aba, e levou-a ao Mestre e disse: Digo, senhor, j vos aqui tendes pra a des-

    peza d'hoje.O Mestre lhe respondeu asperamente, que tor-

  • 46 Btbltoheca de Clssicos Portugueses

    nasse a prata onde a achara, ca clle no viera alipor aquello, mas por fazer o que tinha feito; eLoureno Martins feze-o assim.Os fidalgos que acompanhavam o conde e os que

    com elle vinham, no sabendo parte do que o Mes-tre tinha feito, vinham j todos armados para o paoda rainha; e, vindo muito acerca d'elles a volta dagente que comeava j de ferver pela rua, e algunsque sahiram de dentro e lhe disseram que no fos-sem l, que o conde era j morto e as portas cer-radas, e que as gentes eram tantas, que vinhamcontra os paos, segundo diziam, que se l fossemque no escaparia nenhum d'elles e veriam des-ahimau pesar. Tornaram-se entonce pra hu vieram, ecada um trabalhou de se poer em salvo, receando-seque todos os que eram da parte da rainha e do condefossem mortos quella hora.

    CAPITULO XII

    'Z)o alvoroo que foi na cidade^ cuidando que mata-vam o Mestre, e como al foi Alvavo T*aes e muitasgentes com ell.

    O pagem do Mestre, que estava porta, comolhe disseram que fosse pela villa, segundo jera percebido, comeou d'ir rijamente e aogalope, em cima do cavallo em que estava, dizendo aaltas vozes, bradando pela rua: Matam o Mestre!Matam o Mestre nos paos da rainha! Acorrei aoMestre, que o matam ! E assim chegou a casa de Al-aro Paes, que era d'ali um grande espao. As gentes

  • Chronica d'El Rei D. Joo I 4j

    que esto ouviram, sabiam rua, ver que cousa era,e, comeando de falar uns com os outros, alvoroa-ram-se nas vontades e comeavam de tomar armas,cada um como melhor e mais azinha podiam.

    lvaro Paes, que estava j prestes e armado, comuma coifa na cabea, segundo usana d'aqueUe tem-po, cavalgou logo pressa, em cima de um cavalloque annos havia que no cavalgara, e todos os seuscreados com elle, bradando a quaesquer que acha-va, dizendo : Acorramos ao Mestre, amigos! Acor-ramos ao Mestre, ca filho d'el-rei D. Pedro! Eassim bradavam elle e o pagem, indo pela rua.Soaram as vozes do arruido pela cidade, ouvindo

    todos bradar que matavam o Mestre, e, assim comoviuva que rei no tinha, e como se lhe este ficasseem logo de marido, se moveram todos com moarmada, correndo pressa para hu diziam que seesto fazia, pra lhe dar vida e escusar morte. l-varo Paes no quedava de ir pra al, bradando atodos: Acorramos ao Mestre, amigos! Acorramosao Mestre, que o matam sem porque!A gente comeou de se ajuntar a elle, e era tanta

    que era extranha cousa de vr ; no cabiam pelasruas principaes e atravessavam logares escuzos, de-sejando cada um de ser o primeiro; e perguntandouns aos outros quem matou ao Mestre? no min-fuava quem responder que o matava o conde Jooernandes, por mandado da rainha. E por vontade

    de Deus, todos feitos de um corao com talantede o vingar, como foram s portas dos paos, queeram j cerradas, ante que chegassem, com espan-tosas palavras, comearam de dizer: Hu matamo Mestre? Que do Mestre? Quem cerrou estasportas ?

  • 48 Bibliotheca de Clssicos Portugiie:;s

    Ali, eram ouvidos brados de desvairadas manei-ras. Taes haviam que certificavam que o Mestre eramorto, pois as portas estavam cerradas, dizendoque as britassem pra entrar dentro, e veriam queera do Mestre ou que cousa era aquella \ delles bra-davam por leniia e que viesse lume, pra poremfogo s portas e queimarem o trdor e a aleivosa \outros afficavam pedindo escadas pra subir acima,pra verem que era do Mestre. E em todo esto erao arruido to grande que se no entendiam uns aosoutros nem determinavam nenhuma cousa. E nosomente era isto porta dos paos, mas ainda aredor d"elles, por hu homens e mulheres podiamestar : uns vinham com feixes de lenha, outros tra-ziam carqueja para accender o fogo, cuidando quei-mar o muro dos paos com ella, dizendo muitosdoestos contra a rainha.De cima, no faltava quem bradar que o Mestre

    era vivo e o conde Joo Fernandes morto ; mas estono queria nenhum crer, dizendo : Pois se vivo ,mostrae-nol o. ^

    Ento os do Mestre, vendo to grande alvoroocomo este, e que cada vez se accendia mais, disse-ram que tosse sua merc de se mostrar quellasgentes, d outra maneira poderiam quebrar as portasou lhe poer fogo,-e entrando assim dentro por fora,no lhe poderiam depois tolher de fazer o que quizessem. Ali se mostrou o Mestre a uma g''ande ja-

    ;

    nelia que vinha sobre a rua onde estava lvaroPaes e a mais fora da gente, e disse : Amigos, apa-cifcae vos, ca eu vivo e so sou, a Deus graas.E tanto era a torvao delles e assim tinham j em

    crena que o Mestre era morto, que taes havia hique aporfiavam que no era aquelle, porm conhe-

  • Chromca d^El-Rei D. Joo I 4g

    cendo-o todos claramente houveram gro prazerquando o viram, e diziam uns contra outros : Oh!Que mal fez, pois que matou o trdor do conde,que no matou logo a aleivosa com elle ! Credes emDeus: inda lhe ha de vir algum mal por ella. Olhae,olhae e vede que maldade to grande : mandarem-n'o chamar onde ia j de seu caminho, pra o ma-tarem aqui por treio! Oh! Aleivosa! J nos ma-tou um senhor e agora queria matar outro ! Leixae-a,que ainda ha de acabar mal por estas cousas quefaz. E sem duvida, se elles entraram dentro, no seescusara a rainha da mo.te, e fora maravilha quan-tos eram da sua parte e do conde poderem escapar.O Mestre estava janella e todos olhavam con-

    tra elle, dizendo : Oh ! Senhor, como vos queriammatar por treio, bento seja Deus, que vos guar-dou d'esse trdor! Vinde-vos, dae ao demo essespaos, no sejaes l mais. E em dizendo esto mui-tos choravam com prazer de o ver vivo.Vendo elle entonce que nenhuma duvida tinha

    em sua segurana, desceu a fundo e cavalgou comos seus, acompanhado de todos os outros, queera maravilha de ver, os quaes, mui ledos ao derre-dor d'elle, bradavam dizendo: Que nos mandaesfazer, senhor? Que quereis que faamos? E ellerespondia adur, podendo ser ouvido: que o agra-decia muito e que por entonce no havia mais mis-ter d'elles.

    E assim encaminhou pra os paos do almirante,hu pousava o conde Joo Affonso, irmo da rainha,com que havia de comer. As donas da cidade, pora rua por onde elle ia, sabiam todas s janellas comprazer, dizendo a altas vozes: Mantenha-vos Deus,senhor ! Bento seja Deus, que vos guardou de ta-

  • 5o Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    manha treio qual vos tinham bastecida! ca ne-nhum por entonce podia outra cousa cuidar.E indo assim at entrada do Rocio, e o conde

    vinha com todos os seus e outros bons da cidade,que o guardavam, assim como Affonso Eannes No-gueira e Martim Afonso Valente e Estevo Vas-ques Filippe e lvaro do Rego e outros fidalgos ; equando viu o Mestre ir d'aquella guisa foi-o abra-ar com prazer e disse : Mantenha-vos Deus, se-nhor! Sei que vos tirastes de grande cuidado, masvs mereceis esta honra melhor que ns. Andae,vamos logo comer. E a^im foram pra os paoshu pousava o conde.

    E, estando elles pra se assentar meza, disse-ram ao Mestre como os da cidade queriam matar obispo, e que faria bem de lhe ir acorrer; e o Mes-tre quizera al ir. Disse entonce o conde : No cureis d'isso, senhor. Se o matarem, quer

    o matem quer no, minguar outro bispo portu-guez que vos sirva melhor que elle?Ao dito do conde cessou o Mestre de sua boa

    vontade, e o bispo foi morto desta guisa que se se-gue.

    CAPITULO XIII

    Como o bispo de Lisboa e outros foram mortos e lan-ados da torre da S a fundo.

    SENDO toda a cidade occupada com este alvo-roo, e vindo commummente por junto coma S, foram alguns lembrados que, indo por

    ali com lvaro Paes, que bradaram aos de cimaque repicassem, e que repicando em S. Martinho e

  • Chronica a El-Rei D. Joo 1 5i

    nas outras egrejas, que na S no quizeram repi-car, e souberam que o bispo era em cima e quemandara cerrar as portas sobre si ; e porque eracastello, disseram logo que era da parte da rainhae do conde, e que elle fora sabedor da treiao emorte que quizeram dar ao Mestre, e que por aquellono repicaram, assacando contra elle estas e outrasms suspeitas que no minguava quem as affirmar.E ficou logo ali gro parte do povo S, com bravasanha, por haver pressa entrada na S e filharemlogo do bispo vingana.O bispo era natural de Zamora, e havia nome D.

    Martinho, e sendo bispo do Algarve houvera o bis-pado de Lisboa por Gonalo Vasques, licenceadoem degredos, e lh'o ganhou do papa Clemente, porhaver o priorado de Guimares. Este bispo eragrande lettrado e bom ecclesiastico, e regia mui bemsua egreja, morando em cima da crasta d"ella, porcontinuadamente ver as horas e divinos oflficios, eali tinha em vontade de mandar fazer casas pramorarem todos os cnegos, pra haver azo de me-lhor servir.E sendo elle comendo aquelle dia, o priol de Gui-

    mares com elle, que havia um anno e mais que ono vira, seno ento, ouviram gro volta no paoda rainha, que era hi acerca, e carpinha de mulhe-res, com grandes vozes de gentes pelas ruas de re-dor bradando todos que matam o Mestre. O bispo,ouvindo tamanha volta, e cada vez era mais, bemcuidou que no era feito leve, e, por segurana dequalquer cousa que avir pudesse, leixou a meza aque estava e desceu-se por uma escada a fundo crasta, elle c o priol de Guimares e um tabelliode Silves, que esse dia chegara por recadar com

  • 52 Bibliotheca de Clssicos Portugne\es

    elle. Com esses dois convidados e com alguns seuscom elles, se foi o bispo mais alta torre da S,onde estavam os sinos, mandando primeiro fecharaos de dentro todas as portas da egreja.E quando lvaro Paes por ali passou ida bra-

    daram aos de cima, como dissemos, que repicas-sem, e o homem bom no sabia que volta eraaquella; des-ahi, porque o dar da campana em talegreja era azo de grande alvoroo da cidade, duvi-dou muito de o fazer.E elles, quando viram que no repicaram na S,

    que o bispo d'aquella guisa estava na torre e asportas da egreja fortemente cerradas, que as nopodiam to azinha quebrar, houveram escadas eentraram por uma fresta, e foram mui pressaabertas, e entraram entonce quantos quizeram, sen-do muito poucos, em respeito dos que estavam fora.E a commum voz de todos era que fossem acimaver quem estava na torre, e porque no repicara,como nas outras egrejas , e se fosse o bispo que odeitassem a fundo.

    Silvestre Esteves, homem honrado, procuradorda cidade e alcaide pequeno d'ella, e outros, subi-ram por uma estreita escada que anda a de redor,porque no ia mais que um ante outro, nem podianingum entrar a torre emquanto a de cima defen-der quizessem. O bispo, vendo como era castello, de nao a elles contrair, receava muito em talunio (e todo sizudo deve recear), e no lhe davalogar que entrassem, porm, vendo-se sem culpa,des-ahi tal pessoa ecclesiastica, segurando-o ellesporm primeiro, e osquecom elle estavam, houve-ram entrada acima ; e perguntando-lhe porque nomandara dar campana, pois aquellas gentes bra-

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 53

    davam que repicasse, e elle se escusou por suasmansas e boas razes, de geio que todos foramcontentes.A secca sanha, que em taes feitos nenhuma ra-

    zo esguarda, comeou tanto de dar nos entendi-mentos do povo que porta principal da egrejaestava, que comearam de bradar, altas vozes, aosde cima, que estavam fazendo que no deitavamo bispo a fundo, dizendo: Guardae-vos, no va-mos ns l, ca se ns imos todos vs haveis d'ir afundo com elle.Os de cima, que vontade no tinham de lhe fa-

    zer mal nem nojo, era-lhe muito grave de fazer, auma, por ser bispo, e mais seu prelado; des-ahi, pora segurana que lhe haviam feitas no sabiam quefizessem.A sanha trigava os coraes, e com mencoria co-

    mearam de bradar, olhando todos pra cima, di-zendo: Que tardada essa que vs l fazeis, queno deitaes esse trdor a fundo ? J vos tornastescastellos com elle ? De mais se vos peitou que o nodeitsseis, e sois j todos de um accordo ? Entocomearam todos de jurar que se o no deitassemiam acima, que todos viessem a fundo com. elle.E porquanto todo o temor justo, por que ho-

    mem pode vir morte ou acerca d'ello, houveramd'esto to gro receio, que logo o bispo foi mortocom feridas, e lanado pressa a fundo, onde lheforam dadas outras muitas, como se ganhassem per-doana, que sua carne j pouco sentia. Ali o desar-maram de toda a vestidura, dando-lhe pedradas,com muitos e feios doestos, at que se enfadaramd'elles os homens e os cachopos, e foi roubado dequanto havia.

  • 54 Bibliotheca de Clssicos T^ortugne\es

    Similhantemente, foi lanado a fundo aquellepriol de Guimares, seu convidado, por um escu-deiro que llie mal queria: subindo acima com os doconselho, e viu tempo azado pra o matar, e, bus-cando-o pela torre, achou-o escondido e matou-o,e no tendo ningum sentido da morte d'elle, por-que estavam com o bispo. Nem o vendo como le-var d'ali, deitaram da torre a fundo o coitado dotabellio, que to pouca culpa havia, como os ou-tros : comearam de o trazer a fundo e de o does-tar e empuxar, dizendo que, com o bispo estava,bem sabia parte d'aquella treio; e tantas lhe de-ram de punhadas at que lhe comearam de darferidas, e mataram-n'o; e assim mataram todos trs,e outros fugiram.E jouveram ali aquelle dia e noite o priol e o

    tabellio, e em esse dia algumas pessoas refeceslanaram ao bispo, onde jazia nu, um barao naspernas, e, chamando muitos cachopos que o arras-tassem, e ia um rstico bradando deante: eJustiaque manda fazer Nosso Senhor o papa Urbano VIa este trdor, scismatico, castello, porque no ti-nha com a Santa Madre Egreja. E assim o arrasta-ram pela cidade, com as vergonhosas partes desco-bertas, e o levaram ao Rocio, onde o comearamde comer os ces, que o no ousavam nenhum so-terrar ; e sendo J d elle muito comesto o soterra-ram em outro dia, ali no Rocio. E os outros dois fo-ram depois soterrados, por tirarem fedor d'ante suavista.E posto que algumas pessoas taes coisas pare-

    cessem mal e deshonestamente feitas, nenhum eraousado de dizer o contrario.

  • Chrontca d'El-Rei D. Joo I 55

    CAPITULO XIV

    Como o Mestre^ depois que comeu^ foi pedi?^ pendo rainha^ e das rases que foram faladas.

    DEPOIS que o Mestre e o conde houveram co-mido, segundo dissemos no capitulo antesd'este, veiu-se pra elles o conde D. lvaro

    Peres de Castro e Ruy Pereira e outros bons fidal-gos, e o Mestre falou com os condes, dizendo queelle entendia que fizera gro desprazer rainha emmatar o conde em seus paos, e que lhe pareciaque era bem de lhe ir perdo, se o elles por bemhouvessem. E accordado por todos que era bem,cavalgaram tarde pela villa e foram-se ao paoda rainha, e ella estava em sua camar, coberta ded, segundo havia em costume; e entrando ellespela porta fizeram-lhe sua reverencia, e ella alou-sea elles ; e os do Mestre, como os condes entraram,assim foram elles todos dentro, de volta, armadoscomo andavam.A rainha, quando os assim viu entrar, disse con-

    tra elles, como queixosa : Ah! Santa Maria vai ! Que desmesura ora

    essa, ou que entrada de camar ? E como ? Todosnos havemos de ser em conselho?E elles calaram-se e no disseram nada, leixando-

    se estar quedos; e ella, quando isso viu, disse:

    Andar, pois ora a Deus assim apraz; estae emboa hora.E tornou-se a assentar em seu estrado, e disse

  • 56 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    aos condes que se assentassem ; e o Mestre se as-sentou entonce, e os condes ambos, cada um de suaparte. E sendo elles assim assentados, disse o condeD. lvaro Peres ao Mestre

    :

    Senhor, dizei rainha o porque aqui viestes,e des-ahi falaremos em ai.E ento se alou o Mestre, e poz-se em giolhos

    ante a rainha, e o Mestre comeou de dizer

    :

    Senhora, aquelle que no erra no tem de quepedir perdo, e eu, pois vos errei, razo que vol-opea, como quer que Deus sobe que minha intenono foi de vos errar, nem fazer nojo nem despra-zer; mas, porque esta cousa que eu fiz se me zoude ser feita em vossos paos, porm vos peo pormerc que me perdoeis , ca este homem que mateino o fiz por vos fazer nojo nem deshonra, mas fi-ze-o por segurana de minha vida, ca entendia queemquanto elle vivesse que a minha vida no seriasegura ; e polo eu matar em vossos paos desto vospeo eu perdo, e no de outra cousa, ca a morteque lhe eu dei. Deus sabedor de todas as cousas,sabe bem que muito ha que m'a elle tinha merecidade lh'a eu dar, mas matal-o em vossos paos issono devera eu de fazer. E porm, Senhora, seja vossamerc de me perdoar, e se me esta cousa perdoar-des inda me chegar Deus a tempo que vol-o paguen'aquellas que vs mandardes e que eu entenderpor vosso servio.A rainha, emquanto o Mestre falou, no fez ne-

    nhum signal que lhe aprazia de suas rases, ante,calando, mostrava triste gesto, e os outros olhando,como era razo, esperando sua boa resposta, vendocomo a no dava, falou o conde D. lvaro Peresde Castro, dizendo contra a rainha

    :

  • Chronica d'El-Ret D. Joo I 5j

    Que isso Senhora? No respondeis vs aoque vos diz o Mestre ? E no lhe perdoaes ? Pare-ce-me que vos diz bem, ca no homem mais teudo,ainda que fosse a Deus, que, se lhe erra, pedir-lheperdo. E, pois que vol-o elle pede, vs lhe deveisde perdoar, mormente filho d'el-rei ; e des-ahi o errono foi ora tamanho, nem feito por to m guisa,que vos elle mores servios no possa fazer.A rainha no respondeu nada a isto. Disse ento

    o conde de Barcellos, seu irmo

    .

    Que cousa esta, Senhora ? Porque no per-doaes ao Mestre ? Ca bem vos diz o conde ca no homem mais teudo, ainda que seja a Deus, ca lhepedir perdo quando erra ; e, pois vol-o elle pede e filho de rei, sempre em todo o tempo vol-o ser-vir com bons merecimentos. E porm todavia per-doar-lhe, pois se tambm conhece ca em tempo es-taes de lhe perdoar.E ella, quando esta palavra ouviu, foi forada de

    responder, e disse, como em som de escarneo

    :

    Pra que ora tal pedir perdo? Ou pra queso essas rases? Perdoado elle de seu, mas dizei-me ora, que lh'o acoime, vs, que sois meu irmo,parece-me que sobejo pedir homem o que tem, eelle, pois que perdoado, no ha por que pedir maisperdo. E porm leixemos ora isso e falemos emoutras cousas que vos mais cumprem de falar.

    Ento respondeu o Mestre e disse

    :

    Senhora, se vos a vs isso anoja, no falemosem ello mais, e d'aqui em deante falemos o quevossa merc for. Falemos ora, disse ella, em como dizer toda-

    via como el-rei de Gastella queria vir a este reino,antes do tempo que posto nos tratos.

  • 58 Bibliotheca de Clssicos Portugueses

    tE isso, Senhora, boa cousa de se falar, disseo Mestre. Posto que assaz j falado fosse com ello,quanto a mim, parece o que j dito hei : que vs lhedeveis enviar vosso recado e frontardes-lhe que ono faa, e elle homem de razo , e creio que ono far, quando lh'o vs assim mandardes reque-rer.

    E ponhamos, disse ella, que lh'o envio reque-rer e elle diz que o no quer fazer ? Certamente, disse o Mestre, se lh'o vs en-

    visseis requerer, e o elle fazer no quizesse, entodeveis vs de ajuntar vossas gentes e embargar-lhesua vinda a todo vosso poder.A rainha comeou ento de se sorrir por modo

    d'escarneo, e disse: Oh! Que boa razo essa! E hi era el-rei, meu

    senhor, vivo, e vs outros todos com elle, e no opodeis fazer, quanto mais agora, que elle morto,e toda vossa esperana soterrada com elle

    !

    Quando estas razoes ouviu, o conde D. lvaroPeres levantou-se em p e disse

    :

    Alae-vos, senhor, e vamo-nos, ca me pareceque no praz aqui com quanto ns dizemos.

    Ento se levantou o Mestre e os condes, e espe-diram-se delia e foram-se. Em sahindo elles pelaporta da camar, olhou ella e viu ainda jazer o condeJoo Fernandes morto, ali onde ficara, ali onde oMestre o matou, e disse contra elles

    :

    Ah ! Santa Maria vai ! Que crueldade tama-nha! E no haveis ora d d'esse homem que ahijaz assim, morto to deshonradamente ? ! E sequerpor ser homem fidalgo, como vs ? ! Havei ora delled, e fazei-o soterrar e no jaca ahi d'essa guisa. elles no curaram d'isto e foram-se pra suas

  • Chronica dEl-Rei D. Joo I 5g

    pousadas. O conde Joo Fernandes Jouve ali mortoe coberto em um tapete velho, que nenhum noousara poer em ello mo pra o soterrar. E ellejazia vestido e atacado, e um gibo vermelho e umaatabarda de fino panno preto, com alhetos e man-gas ; mui bem feito corpo de homem, at edade dequarenta annos. E depois que foi bem noite, man-dou-o a rainha soterrar, mais escusamente que serpode, na egreja de S. Martinho, que logo junto;e partiu-se essa noite d'ali e foi-se para Alcova,pra outros paos que al tinha.

    CAPITULO XV

    Como os da cidade qui\eram roubar os judeus, e oMestre os defendeu^ que lhe no foi feito.

    PASSADO aquelle gro arruido com que as gen-tes da cidade chegaram ao pao da rainha,e que o bispo foi morto da guisa que ouvis-

    tes, gerou-se entre elles uma unio de mortal diocontra quaesquer que sua inteno no tinham, etanto que nenhum logar era seguro quelles que noseguiam sua opinio. Cada um dava folgana a seuorneio e toda sua occupao era juntarem-se emmagotes, a falar na morte do conde e cousas quehaviam acontecido , des-ahi, pois el rei de Castelladiziam que vinha ao reino, que maneira se teria nadefenso d'elle. E uns nomeavam o infante D. Joo,dizendo que a elle pertencia o reino de direito ; ou-tros diziam que no podia ser, ca era j preso em

  • 6o Bibliotheca de Clssicos Portugneies

    Castella e que nunca havia de ser solto, ou que por-ventura o matariam por este azo \ e, porque estoassim acontecera, que cumpria mais outro infante noreino, salvo o Mestre d'Aviz, que era filho d'el-reiD. Pedro, como o outro ? E que este tomassem porseu rei e senhor.

    Gastado aquelle dia em taes falamentos, na se-guinte manh tornaram a similhantes razes, e,contando cada um o que lhe parecia de taes feitos,naceu entre elles um novo accordo, dizendo queera bem de roubar alguns judeus ricos da Judaria,assi como D. Judas, que fora thesoureiro-mr d'el-rei D. Fernando, e D. David Negro, que era grandeseu privado, e outros, e que d'estes poderia o Mes-tre haver mui grande riqueza pra supportamentode sua honra. E, falando uns com outros para opoer em obra, comeou-se d'alvoraar e juntar muitopovo.Os judeus, como esto sentiram, no curaram d"ir

    rainha, mas foram-se pressa alguns d'elles scasas de Joo Miguel, junto com a S, onde o Mes-tre aquella noite dormira, e disseram ao Mestre queos da cidade se alvoraavam para os irem roubar ematar todos, e que lhe pediam por merc que lheacorresse pressa, e se no que todos eram mor-tos.

    O Mestre dizia que se fossem rainha, que elleno tinha ora com aquello de fazer, e elles se affi-cavam cada vez mais, pedindo trigosamente acorro.Os condes D. Joo Affonso e D. lvaro Peres, queestavam com o Mestre, quando viram que elle seescusava, disseram, com d que d'elles houveram

    :

    Oh! Senhor, por merc, hi al e ante que co-mecem, e no lh'o leixareis fazer, ca depois que co-

  • Chromca d'El-Rei D. Joo I 6i

    mearem servos-ho mui maus de desviar de talfeito.

    Cavalgou ento o Mestre, e os condes com elle,e foi-se logo l, e quando chegou Judaria achougro parte dos da cidade, que se juntavam quantapodiam, e todos alvoroados pra entrarem dentroe roubarem ; e disse entonce o Mestre contra elles : Que isto, amigos ? Qne obra esta que que-

    reis fazer ? Senhor, disseram elles, estes trdores d'estes

    judeus. D- Judas e D. David Negro, que so da parteda rainha, teem grandes thesouros escondidos, equeremol-os tomar e dal-os a vs, que queremospor nosso senhor. Amigos, disse elle, no queiraes esta cousa

    fazer, mas leixae vs a mim esse cuidado, e eu so-bra ello porei remdio. Senhor, disseram elles, no assim, mas ns ire-

    mos buscar os trdores onde jazem escondidos, etrazel-os-hemos a vs, e havereis todo quanto ellesteem.O Mestre, dizendo que no curassem d'aquello^

    e elles todos aporfiando que sim, era-lhe grave cousadesvial-os d'esta vontade. Disseram ento os condesao Mestre

    :

    c. Quereis bem fazer ? Parti-vos d'aqui, e ir-se-ha esta gente toda comvosco e no curaro maisd'esto que fazer querem.E o Mestre feze-o assim, e foram-se todos com elle

    pela rua Nova, e, ficando poucos a poucos, desfe-ze-se gro parte daquella assuada. E alli disse oMestre a Anto Vasques, que era juiz do crime nacidade, que mandasse apregoar da parte da rainha,sob certa pena, que no fosse nenhum to ousada

  • 02 ^ibliotheca de Clssicos Portiicrue^esD'

    de ir Judaria, por fazer mal aos Jndeus. Elle disseque o mandaria apregoar de sua parte, mas no jda rainha, e o Mestre lhe defendeu que o no fizesse,e elle no curou em esto de sua defeza e mandou-oapregoar de sua parte.As gentes todas, quando ouviram este prego,

    muito em suas vontades, diziam uns contra os ou-tros : Que fazemos estando ? Tomemos este homempor senhor e alcemol-o por rei. E elle ouvia estascousas e fechava-se a sorrir, louvando muito a Deusem seu corao, que tal desejo punha no povo con-tra elle. Ento se tornaram a elle e os condes paraa S, e ali descavalgaram para ouvir missa.

    CAPITULO XVI

    Que maneira tinha a rainha 7). Leonor com o Mes-tre e alguns outros a que no tinha bom desejo.

    Os antigos que louvaram as nobres mulheresque viveram no tempo da rainha D. Leo-nor muito erraram em seu escrever se a

    no pozeram na conta das mui famosas, porquese o dom da formosura, de todos mui prezado, feza algumas ganhar perpetuai nome, d'este houve ellato grande parte, acompanhada de aprazvel graa,que aquelle que o mais desejar podesse seria assazdescontente de sua natureza. A ella proveiu des-ahi,com esto, costumes de grande avisamento, de ne-nhuma cousa que a prudente mulher pertencia eraignorante ; foi mulher mui inteira e de corao ca-

  • Chronica d'El-Rei D. Joo 1 6S

    valleiroso, buscador de maravilhosas artes, por fir-meza de seu estado. Ds que ella reinou, aprende-ram as mulheres ter novos geitos com seus maridos,.e as mostranas de uma cousa por outra mais per-feitamente do que se acha, nos ancianos tempos^que outra rainha de Portugal fizesse. E ella haviagrandes fundamentos pra quem tinha m vontadenunca lh'o poder conhecer, e onde entendia fazerdam.no azara mortaes empecimentos, com mostranade todo o contrairo.

    Assim, que posto que ella tivesse ao Mestre emto mortal dio, por a morte do conde Joo Fer-^nandes, em guisa que de nenhum mal lhe podia,ento vir to gro parte que a ella fora abastadavingana, pro com tudo isso ella poude tanto com.seu grande corao, a mui poucos ligeiro de fazer,que nenhuns signaes de malquerena mostrava aoMestre de fora, como se lhe nunca houvesse feitonenhum desprazer, mas estes poucos dias que lheella depois falou, estando elle na cidade, sempresuas falas e respostas eram contra elle boas, semmostrana de mau desejo.

    Ella, aos dois dias depois da morte do condeJoo Fernandes, quitou a Ferno Lopes, escudeirodo Mestre, a seu rogo, cem dobras, que lhe deman-dou a que pagasse por Loureno Eannes, seu so-gro, qne fora almoxarife d'el-rei D. Affonso. E nosomente ao Mestre, mas ainda a alguns outros queella por tal razo m vontade tinha, nenhuma cousadava a entender de rancor que tivesse contra elles,mas suas falas e desembargos todo era feito lda-mente, com bom geito, at que visse tempo azado-de se poder vingar, segundo seu desejo.

  • 04 ^ibliotheca de Clssicos Portugueses

    CAPITULO XVII

    Como a rainha partiu de Lisboa pra Alemquer, eque maneira teve em sua partida.

    M oviDA tal discrdia, como dissemos, e traba-Ihando-se os seguidores d'ella por levaradeante sua opinio, foi a rainha posta emgrandes pensamentos, com mistura de temor, e aella era certa da maneira que o Mestre queria tercom ella ; doutra parte, temia-se dos moradores dacidade. Assim, que no sabia que geito tivesse porsegurana de sua vida e honra ; e, cuidando sobreesto muitas e mui desvairadas cousas, entendeu quea melhor e mais segura que por presente podia fa-zer era partir-se d'aquella cidade e ir-se para outrolegar mais seguro.

    Ento ordenou de se ir pra uma sua villa, oitolguas da cidade, a que chamam Alemquer, e par-tiu a rainha grande manh, sendo j espao do diaandado, com donas e donzellas, quantas havia emsua casa, e todos os seus com ella, s. : o conde D.Joo Alfonso, seu irmo, e o mestre de S. Thiago,D. Ferno Affonso, e o almirante mice Lanarote,e Gonalo Mendes de Vasconcellos, tio da rainha,e Martim Gonalves d'Athayde, e Pro Lourenode Tvora, e Joo Affonso Pimentel, e Vacco Peresde Cames, e Ayres Vasques de Alvalade, e JooGonalves, anadel-mr, e Loureno Eannes Foga-a ; e todos os do desembargo d'el-rei D. Fernando,assim como lvaro Gonalves, veador da fazenda, e

  • Chronica d'El-rei D. Joo I 65

  • 66 ^iblioiheca de Clssicos Portugueses

    CAPITULO XVIII XIX

    Como o MesU^e guisava pra se ir pra Inglaterrae como pediu perdo a Vasco T^orcalho.

    )om que os humanaes e espritaes feitos se jul-gam segundo a inteno que se d'elles segue,nenhum tenlia sentido de prasmar o Mestre

    vendo as cousas que se depois seguiram, dizendoque elle, com desordenada cobia de reinar ou ha-ver outro senhorio no reino, e no por outra cousa,se moveu a matar o conde Joo Fernandes; e a suavontade nunca esta foi, nem m : somente por usarde honrosa faanha, vingando a deshonra de seuirmo. Antes poz a vida e honra em grande aven-tura, temendo de se fazer tal obra, despoendo deleixar o reino e o mestrado por esto, como de feitoquizera fazer, porque tanto que a rainha partiupara Alemquer, e elle ficou na cidade, houve o Mes-tre conselho, por segurana da sua vida, se ir praInglaterra, vendo que lhe no convinha ficar noreino. E mandou fazer prestes todo o que cumpriapara sua ida, em duas naus que jaziam ante o portoda cidade, carregadas de mercadorias dos merca-dores.E como aquelle que era discreto e comprido de

    toda bondade, esguardou o tempo em que haviade partir ; e como era forado de passar por logaronde taes perigos costumam de ser, a que artificiosnem resistncia humana prestava, sem humanai

  • Chronica d'El-Rei D. Joo I 6j

    ajuda d'aquelle Senhor que todas as cousas tem emgovernana, e, por alimpamento de sua conscincia,entre as cousas que primeiro fez, mandou chamar aVasco Porcalho, commendador-mr de sua ordem,e contou-lhe por amide como lhe a rainha dissera,quando fora preso, que lhe fizera entender a el-reiD. Fernando que elle se queria ir pra Castella, prao infante D. Joo, em deservio do reino, e queportanto o mandara el-rei prender, e no por outracousa.

    Por a qual razo, disse o Mestre, eu vos tiveto m vontade que minha teno foi de vos matar, depois cuidei que a mim no vinha grande honrade o fazer, posto que vs o disssseis, e perdi deYs toda a m vontade e queixume, de guisa quenunca vol-o dei a entender des ento at agora, quecommigo andaes.

    Ento lhe contou muitas razes porque o leixrade fazer, c disse

    :

    No embargando que eu teudo no seja devos pedir perdo tal como este, por mr avonda-mento, vos rogo que aquella m vontade que eu"VOS ento tive vos praza de me perdoar.O commendador-mr ficou espantado, e maravi-

    Ihando-se muito de tal cousa disse : Oh! M mulher, aleivosa, comprida de toda

    maldade ! Eu, se