Contraponto a.huxley

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8/16/2019 Contraponto a.huxley http://slidepdf.com/reader/full/contraponto-ahuxley 1/366 contrap1.txt    OS IMORTAIS  DA LITERATURA. UNIVERSAL  Aldous Huxley  CONTRAPONTO #  Point Counter Point  1-0, Edião  Outubro - 1971  Traduão de  Erico Verissimo e  Leonel Vallandro  Comlicena da Edit"ra Globo S.A.,  P"rto Alegre, detentora do "copyright"  pan~ a l¡ngua portugusa.  (C- 1971  Oh, wearisome condition of humanity,  Born under one law, to another bound,  Vainly begot and yetforbidden vanity,  Created sick, commanded to be sound.  What meaneth nature by these diverse laws,  Passion and reason, sey'division's cause?  FULKE GREVILLE #  CAPITULO I  - Não vais voltar tarde? - Havia ansiedade na voz de Marjorie C ar-  ling, qualquer coisa que parecia uma s£plica.  - Não, eu não voltarei tarde - respondeu Walter, com a certeza infe-  liz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborre-  cia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na  dor.  - Não passes da meia-noite.  Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca sa¡a ... noite  sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus  princ¡pios; não pretendia forar de nenhum modo o amor de Walter.  -Bem, digamos 1 hora... Tu sabes o que são estas reuniões ...  Na realidade Marjorie não sabia, pela boa razão de que, não sendo  espâsa dle, não era convidada para tais festas. Tinha deixado o marido  para viver com Walter Bidlake; e Carling, que aliava aos seus escr£pulos  cristãos um mole sadismo, desejando vingar-se, negava-lhe div¢rcio. Ha-

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contrap1.txt  

  OS IMORTAIS  DA LITERATURA. UNIVERSAL  Aldous Huxley 

CONTRAPONTO# 

Point Counter Point 

1-0, Edião  Outubro - 1971 

Traduão de

  Erico Verissimo e  Leonel Vallandro 

Comlicena da Edit"ra Globo S.A.,  P"rto Alegre, detentora do "copyright"  pan~ a l¡ngua portugusa.  (C- 1971 

Oh, wearisome condition of humanity,  Born under one law, to another bound,  Vainly begot and yetforbidden vanity,  Created sick, commanded to be sound.  What meaneth nature by these diverse laws,

  Passion and reason, sey'division's cause?  FULKE GREVILLE# 

CAPITULO I 

- Não vais voltar tarde? - Havia ansiedade na voz de Marjorie C ar-  ling, qualquer coisa que parecia uma s£plica.  - Não, eu não voltarei tarde - respondeu Walter, com a certeza infe-  liz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborre-  cia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na

  dor.  - Não passes da meia-noite.  Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca sa¡a ... noite  sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus  princ¡pios; não pretendia forar de nenhum modo o amor de Walter.  -Bem, digamos 1 hora... Tu sabes o que são estas reuniões ...  Na realidade Marjorie não sabia, pela boa razão de que, não sendo  espâsa dle, não era convidada para tais festas. Tinha deixado o marido  para viver com Walter Bidlake; e Carling, que aliava aos seus escr£pulos  cristãos um mole sadismo, desejando vingar-se, negava-lhe div¢rcio. Ha-

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  via então dois anos que viviam juntos. Apenas dois anos; e j Walter ti-  nha deixado de am -la, principiava a amar uma outra. O pecado ia per-  dendo a sua £nica desculpa, e os dissabores de ordem social, o seu £nico  paliativo. E, alm de tudo, Marjorie estava gr vida.  - Meia hora depois da meia-noite - implorou ela, sabendo embora  que a sua insistncia importuna conseguiria apenas aborrec-lo e fazer  que le a amasse ainda menos. Mas não podia deixar de falar; amava-o  muit¡ssimo e estava torturada pelo ci£me. As palavras lhe escapavam, a  despeito de seus princ¡pios. Teria sido melhor para Marjorie e talvez para  Walter que ela tivesse menos princ¡pios, que desse aos seus sentimentos a  expressão violenta que les exigiam. Mas Marjorie tinha sido educada na  pr tica do mais estrito autodom¡nio. Sabia que so as pessoas sem  educaão fazem "cenas". Aqule implorativo "Meia hora depois da meia~  noite, Walter" foi tudo quanto conseguiu romper a barreira de seus  Princ¡pios. Demasiadamente fraco para o comover, o t¡bio protesto não  faria mais do que aborrec-lo. Ela o sabia, e mesmo assim não se podia  calar.  - Se ror poss¡vel. . . - Ali estava o que ela tinha feito. Havia exaspe-  raão na voz dle. - Mas não posso garantir; não me esperes com muita  certeza.  Porque, sem d£vida nenhuma, pensava Walter, assediado pela inexor- 

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ciz vel imagem de Lucy Tantamount, não voltaria ... meia hora depois da  meia-noite.  Deu os toques finais na gravata branca. Bem junto do rosto dle, den-  tro do espelho, o rosto de Marjorie o vigiava. Era uma face p lida e tão  magra, que a luz que tombava da lmpada eltrica suspensa por cima  dles fazia uma sombra nas cavidades abaixo das maãs. Os olhos esta-  vam cercados de c¡rculos escuros. O nariz reto, que ela sempre tivera um

  tanto longo, mesmo no maior vio da sua beleza, sobressa¡a agora dura-  mente na face descarnada. Marjorie dava uma impressão de fealdade, de  cansao e de doena. Dentro de seis meses lhe nasceria o beb. Algo que  tinha sido uma clula £nica, um grupo de clulas, um saquinho de tecidos,  uma espcie de verme, um peixe em potncia, com guelras, agitava-se-lhe  no ventre e um dia viria a ser um homem - homem adulto, que sofre e  goza, que ama e odeia, que pensa, que recorda, que imagina. E o que ti-  nha sido uma ampola gelatinosa dentro de seu corpo inventaria mais tar-  de um deus e o adoraria; o que tinha sido uma espcie de peixe haveria de  criar e, tendo criado, se transformaria num campo de batalha entre o bem  e o mal; o que tinha vivido nas trevas dentro dela, como um verme parasi-  ta, haveria de olhar para as estrlas, escutar m£sica e ler poesia. Uma coi-  sa se transformaria numa pessoa, uma massa minuscula de matria se

  converteria num corpo humano, num humano esp¡rito. O maravilhoso  processo da criaão progredia nas suas entranhas, mas Marjorie s¢ tinha  conscincia da doena e da lassitude; o mistrio para ela nada significava  senão fadiga, fealdade e uma ansiedade cr"nica com relaão ao futuro:  era a tortura doesp¡rito aliada ao mal-estar do corpo. Ao sentir os primei-  ros sintomas da gravidez, tinha ficado ou pelo menos procurara ficar ale-  gre, a despeito dos seus temores obsessivos quanto ...s conseqncias r¡si~  cas e sociais de tal acontecimento. O beb, julgava Marjorie, faria com  que Walter voltasse para ela. (Òle j comeava então a andar arredio.)  Faria nascer nle novos sentimentos que poderiam compensar o que quer

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  que parecia faltar no seu amor para com a companheira. Ela temia a dor,  temia as dificuldades e embaraos inevit veis. Mas as dores e as dificul-  dades ficariam bem pagas se no fim de contas lhe valessem um renova-  mento, um reavivamento do amor de Walter. A despeito de tudo, Marjo-  rie estava contente. E a princ¡pio suas previsões pareceram justificar~se.  A not¡cia de que ia nascer um beb estimulara a ternura de Walter.  Durante duas ou trs semanas ela foi feliz: reconciliou-se com as dores e  os inc"modos. Foi então que, dum dia para outro, tudo mudou; Walter  encontrara a outra mulher. Nos momentos em que não andava a perse-  guir Lucy, le ainda fazia o poss¡vel para guardar uma aparncia de soli-  citude. Mas Marjorie percebia nessa solicitude um certo rancor;  compreendia que le era terno e atencioso por um sentimento de dever e  que odiava o filho porque ste o compelia a fazer-se gentil com a mãe. E  porque Walter odiasse a criatura que ia nascer, ela comeava a odi -la 

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tambm. os seus temores, que a felicidade não mais conseguia apagar,  vieram ... tona, encheram-lhe o esp¡rito. Dor e desconf"rto - eis o que o# 

futuro lhe reservava. E por enquanto: fealdade, doena e fadiga. Como

  ~a ela lutar em tal estado?  -Tu me amas, Walter? - perguntou Marjorie s£bitamente.  Walter desviou por um momento os olhos castanhos da imagem da  gravata que o espelho refletia, e olhou para a imagem dos olhos dela,  cinzentos e tristes, contemplativamente fixos. Sorriu. "Quem me dera que  ela me deixasse em paz!", pensou consigo. Franziu os l bios e abriu-os de  n"vo, na sugestão de um beijo. Mas Marjorie não lhe retribuiu o sorriso.  Seu rosto permaneceu impassivelmente triste, f`ixo numa ansiedade inten-  M Os olhos ganharam um brilho trmulo e de repente lhe apareceram  l grimas nos c¡lios.  - Não podias ficar comigo esta noite? - implorou, a despeito de  t"das as suas resoluões her¢icas de não exercer nenhuma coaão exaspe-  rante sâbre o amor dle, de deix -lo livre para fazer o que quisesse.

  · vista daquelas l grimas, ao som daquela voz trmula e cheia de cen-  sura, Walter* foi inv adido por uma emoão que era ao mesmo tempo  remorso e ressentimento; ¢dio, piedade e vergonha.  "Mas então não compreendes" era o que le tinha vontade de dizer, o  que realmente diria se não lhe faltasse coragem, "não compreendes que as  coisas não são nem podem ser mais como eram? E mesmo, para falar a  verdade, elas nunca chegaram a ser o que acreditavas que f"ssem - refi-  ro-me ao nosso amor -, nunca foram o que eu procurei fingir que f"s-  sem. Sejamos amigos, sejamos companheiros. Gosto de ti, tenho-te muita  afeiio. Mas, pelo amor de Deus, não me envolvas em amor como fazes  agora; não me queiras impingir o amor ... fora. Se soubesses que coisa  11  terr¡vel  o amor para quem não quer amar, que violaão, que ultraje ...

  Mas ela estava chorando. Por entre as suas p lpebras cerradas as l gri-  mas brotavam, g"ta a g"ta. Tremia-lhe o rosto no esgar da ang£stia. E o  verdugo era le. Walter se odiou. "Mas por que hei de me deixar levar pe-  la chantagem dessas l grimas?", perguntava le; e, perguntando, odiava-a  tambm. Uma l grima rolou ao longo do comprido nariz de Marjorie.  "Ela não tem o direito de fazer isso, não tem o direito de ser tão pouco  razo vel. E porque não pode ser razo vel?"  "Porque me ama."  "Mas eu não quero o amor dela, não quero." Walter sentiu que a c¢lera

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  se avolumava dentro dle. Marjorie não tinha o direito de am -lo daquela  Maneira; pelo menos agora. " uma chantagem," repetia interiormente,  . uma chantagem. Por que hei de ser v¡tima do amor dela e do fato de j

t-la arriado tambm um dia. . . Mas ser que cheguei a am ~la de verda-  de?"  Mariorie tomou de um leno e comeou a enxugar os olhos. Walter  sclitiu-se envergonhado de seus pensamentos odiosos. Mas ela era a causa 

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de sua vergonha; a culpa era dela. Marjorie devia terficado com o mari-  do. Poderiam manter uma ligaão. Entrevistas ... tarde num est£dio. Teria  sido romntico.  "Mas, no fim de contas, fui eu que insisti para que ela viesse comigo."  "Mas devia ter tido o bom-senso de recusar. Devia saber que isso não  podia durar para sempre."  Marjorie, no entanto, fizera o que le lhe havia pedido; tinha abando-

  nado tudo, tinha aceito os dissabores sociais por amor a le. Outra  espcie de chantagem. Walter ressentia-se do aplo em que os sacrificios  dela importavam para os seus sentimentos de decncia e honra.  "Mas, se ela tivesse um pouco de decncia e de honra", pensava, "não  haveria de explorar os meus sentimentos."  Mas l estava o beb ...  "Por que diabo permite ela que a criana venha ao mundo?"  Odiou o filho. Ôle fazia crescer a sua responsabilidade para com a mãe,  tornava-o ainda mais culpado por faz-la sofrer. Walter olhou para o ros-  to de Marjorie, £mido de l grimas. A gravidez fazia-a tão feia, tão  velha... Como podia uma mulher esperar ... ? Mas não, não! Walter  fechou os olhos, sacudiu a cabea num estremecimento quase  impercept¡vel. O pensamento ign¢bil. devia ser repudiado, definitivamente

  afastado.  "Como posso pensar em tais co.sas?", perguntava de si para si.  Ouviu-a repetir: - Não v s! - Como aquela voz fininha, refinada e  arrastada lhe exasperava os nervos! - Por favor, Walter, não v s.  Sentia-se um soluo na voz de Marjorie. Mais chantagem. Ali, como  podia ela ser tão baixa? Entretanto, a despeito de sua vergonha, e de certo  modo, por causa mesmo dessa vergonha, Walter continuou a sentir as  emoões ignominiosas com uma intensidade que mais parecia aumentar  do que diminuir. O seu desamor para com Marjorie crescia porque le se  envergonhava dsse sentimento; as sensaões dolorosas de vergonha e de  1  ¢dio de si mesmo, que ela o fazia experimentar, constitu¡am para Walter  outra fonte de desafeto. O rancor gerava a vergonha, e a vergonha por sua

  vez criava mais rancor.  "Oh, por que ela não me deixa em paz?" Desejava isso furiosamente,  intensamente, com uma exasperaão que era tanto mais selvagem quanto  mais contida. (Porque lhe faltava a coragem brutal para dar expressão a  sse desejo; tinha pena dela, queria-lhe bem, apesar de tudo; era incapaz  de ser aberta e francamente cruel - era cruel apenas por fraqueza, contra  a sua vontade.)  "Por que ser que ela não me pode deixar em paz?" Havia de quer-la  muito mais se simplesmente ela o- deixasse em paz; e Marjorie mesma se  sentiria muito mais feliz. Muito, muito mais feliz. Seria para o seu pr¢pri

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o  bem ... Mas de s£bito Walter se deu conta da pr¢pria hipocrisia. "Afinal 

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de contas - que diabo! -, por que  que ela não me deixa fazer o que # 

eu quero?" ueria9 Mas o que le queria era Lucy Tantarnount. Queria  O que le q  contra a razão, contra todos os seus ideais e princ¡pios, loucamente, con-  tra os seus pr¢prios desejos, mesmo contra os seus pr¢prios sentimentos  - porque le não gostava de Lucy; na verdade, odiava-a. Um fim nobre  pode justificar meios vergonhosos. Mas quando se trata dum fim vergo-  nhoso? ... Era por causa de Lucy que le estava fazendo Marjorie sofrer  - Marjorie, que.o amava, que tinha feito sacrificios por amor a le, que  era infeliz. Mas essa infelicidade redundava numa chantagem.  - Fica comigo esta noite - implorou ela mais uma vez.  Havia uma parte do esp¡rito de Walter que recebia bem as s£plicas da  amante, que queria que l desistisse da festa e ficasse em casa. Mas a ou-  tra parte era mais forte. Walter respondeu a Marjorie com mentitas -

  meias mentiras, que, em virtude do elemento de verdade que encerravam,  justificativo mas hip¢crita, eram mais graves que mentiras inteiras e fran-  cas.  Walter passou o brao em t"rno do corpo de Marjorie. Òsse gesto era  em si uma falsidade.  - Mas, minha querida - protestou le no tom de adulaão de quem  pede a uma criana que se comporte razo...velmente -, eu realmente pre-  ciso ir. Como sabes, meu pai estar presente. Era verdade. O velho  Bidlake ia sempre ...s festas dos Tantamounts. Preciso ter uma pales-  tra com le. Neg¢cios - acrescentou vagamente e com importncia,  interpondo, com essa palavra m gica, uma espcie de cortina de fumo de  intersses masculinos entre a sua pessoa e a de Marjorie. Mas a mentira,  pensou le, devia estar transparentemente vis¡vel atravs da fumaa.

  - Não podias conversar com le noutra ocasião?  -  importante - respondeu Walter, sacudindo a cabea. - Alm  disso - ajuntou, esquecendo que v rias desculpas ...s vzes são menos  convincentes do que uma £nica -, Lady Edward convidou o diretor dum  jornal americano especialmente por minha causa. O homem me pode ser  £til; tu sabes que les pagam como nababos. - O que Lady Edward lhe  dissera era que convidaria o jornalista se le j não tivesse voltado para a  Amrica, como ela supunha. - Realmente, pagam muito bem - conti~  nUou Walter, engrossando a cortina de fumo com particularidades f£teis de  ordem impessoal. -  o £nico lugar do mundo onde  poss¡vel a um  escritor ser pago em excesso. - Tentou rir. - E eu na verdade preciso  dsse regime para compensar o nosso: 2 guintis por mil palavras. -  Apertou Marjorie com mais f"ra, inclinou a cabea para beij -la. Ela,

  porm desviou o rosto. - Marjorie - implorou-, não chores.Por favor.  Sentiu-se culpado e infeliz. Mas - oh! - por que ela não o deixava  em paz, em paz? 

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-- Não estou chorando.  Mas os l bios de Walter tocaram uma face £mida e fria.  - Mariorie, eu não vou, se não queres que eu v .  - Mas eu quero que v s - retorquiu ela, conservando ainda o rosto  voltado.  - Não queres. Eu fico.  - Não deves ficar. - Marjorie olhou para o companheiro e Fez um  esforo para sorrir. -  uma tolice minha. Seria absurdo deixares de fa-  lar com o teu pai e com o jornalista americano.  Os seus pr¢prios pretextos, que lhe eram devolvidos daquela maneira,  pareceram-lhe particularmente vãos e pouco convincentes. Walter fez um  gesto que traduzia uma espcie de repugnncia.  -- Òles podem esperar - respondeu. Havia uma nota de c¢lera em sua  voz. C¢lera para consigo mesmo, por ter apresentado desculpas tão  mentirosas (por que não lhe podia dizer a crua, a brutal verdade sem  rebuos? no fim, das contas, ela j sabia); e Walter irritou-se contra Mar-  jorie porque ela lhe lembrava as suas mentiras. Desejava que elas ca¡ssem  no poo do esquecimento e ali ficassem como se nunca tivessem sido  proferidas.  -- Não, não; fao questão. . . Foi uma tolice. Desculpa.  A princ¡pio Walter resistiu, recusou partir, insistiu em ficar. Agora

que  não havia perigo de ser obrigado a faz-lo, le podia insistir. Porque  Marjorie, naturalmente, estava firme na resoluão de deix -lo ir. Era uma  oportunidade que le tinha para mostrar-se nobre e disposto ao sacrificio:  custava-lhe pouco, era mesmo gr tis. Qua comdia odiosa! Mas repre-  sentou o seu papel. Ao cabo, concordou em ir, como se, por não ficar,  fizesse ... amante um favor especial. Marjorie atou-lhe no pescoo o leno  de sda, trouxe-lhe o chapu alto e as luvas e deu-lhe um beijo leve de  despedida, mantendo uma corajosa aparncia de contentamento. Tinha o  seu orgulho e o seu c¢digo de honra no amor; e, a despeito da infelici-  dade, a despeito do ci£me, conservava-se fiel a seus princ¡pios - le de-  via ser livre; não tinha direito de se intrometer na vida de Walter. De res-

  to, a melhor pol¡tica era mesmo não intervir nos assuntos dle. Pelo me-  nos era o que lhe parecia ...  Walter fechou a porta atr s de si e p"s~sc a caminhar dentro da fres-  cura da noite. Um criminoso que fugisse do local do seu crime, que fugis-  se ao espet culo da v¡tima, que fugisse ... compaixão e ao remorso, não  poderia sentir-se mais profundamente aliviado. Na rua, respirou funda-  mente. Estava livre. Livre de recordaões, livre de antecipaões. Livre:  por uma hora ou duas podia recusar-se a admitir a existncia do passado  e do futuro. Livre de viver apenas no tempo e no lugar presente, no lugar  onde acontecesse achar-se o seu corpo. Livre - mas o alarde era vão; le  continuava a recordar. Fugir não era coisa tão f cil. A voz dela o perse~  guia. "Insisto em que v s." O seu crime era ao mesmo tempo fraude e

  assass¡nio. "Fao questão." Com que nobreza le tinha protestado! E, por 1A

 fim, corri que magnanimidade tinha cedido! Era a trapaa a coroar a

  crueldade.  - Meu Deus! - disse Walter quase em voz alta. - Como pude fazer# 

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  isso? - Estava assombrado, alm de revoltado contra si mesmo. - Mas  se ao menos ela me deixasse em paz! Por que não pode ser razo vel?  A c¢lera fraca e f£til explodiu de nâvo dentro dle.  Pensou no tempo em que seus desejos eram diferentes. A sua ambião  t"da era nao ser deixado em paz por ela. Tinha encorajado a devoão de  Marjorie. Lembrou-se da vivenda em que ambos tinham morado, s¢s um  com o outro, ms ap¢s ms, entre as colinas solit rias. Que vista, a de  Berkshire! Mas 1 milha e meia os separava da aldeia mais pr¢xima. Oh!  - o pso daquele bornal cheio de provisões! A lama, quando chovia! E  o balde que era preciso iar do poo por meio da manivela. Um poo de  mais de 30 metros de profundidade. Mas, fora das obrigaões penosas,  como a de puxar o balde, tinha aquela temporada sido realmente satis-  fat¢ria? Teria le sido verdadeiramente feliz com Marjorie - tão feliz,  pelo menos, como imaginara que havia de ser, que devia ser em tais  circunstncias? Aquilo podia ter sido como o Epip~ychidion; mas não  fora... talver. porque le desejara demasiado conscientemente que  assim f"sse, porque procurara com deliberaão modelar os seus  sentimentos e a vida de ambos de acrdo com a poesia de Shelley.  - Não devemos tomar a arte muito ao p da letra. - Lembrava~se  Walter do que o seu cunhado, Philip Quarles, lhe dissera uma noite em  que estiveram falando de poesia. - E especialmente no que diz respeito  ao amor.  - Nem mesmo quando  verdadeira? -- perguntara le.

  - A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como gua  destilada. Quando a verdade não  nada senão a verdade, ela  antinatu-  ral; uma abstraão que com nada se parece do mundo real. Na natureza  h sempre tantas coisas estranhas misturadas ... verdade essencial! Eis por  que a arte nos comove: precisamente porque est depurada de t"das as  impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes  como os livros pornogr ficos. Num volume de Pierre Louys t"das as  raparigas são jovens e tm formas perfeitas; não h soluos de bebedeira,  nem mau h lito, nem fadiga, nem tdio, nem lembranas s£bitas de con-  tas a pagar ou de cartas comerciais a responder; nada disso para inter-  romper os arrebatamentos. A arte nos d a sensaão, o pensamento, o  Sentimento absolutamente puros; isto : quimicamente puros. - E acres-

  centara, com uma risada: - Não moralmente.  Mas o Epipsvehidion não  pornografia - objetara Walter.  Não, mas  igualmente puro sob o ponto de vista qu¡mico. Como   aqule sonto de Shakespeare? 

My mistress's eyes are nothing like the sun;  Coral isfar more red than her lips'red: 

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 If snow be white, why then her breasts are dun,

  If hairs be wires, black wires grow on her head.  I h ave seen roses damasked, red and white,  But no such roses see I in her cheeks;  And in someperfumes is there more delight  Than in the breath thatfrom my mistress reeks ...

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 assim por diante. Òle tinha tomado os poetas muito ... letra e estava

  reagindo. Que isso te sirva de advertncia!  Philip tinha razão, era claro. Aqules meses na vivenda não tinham si-  do absolutamente como o Epipsychidion ou La Maison du Berger. Havia  o poo e a caminhada at a aldeia ... Mas, ainda que não houvesse o  poo nem a caminhada, ainda que le tivesse Marjorie absolutamente pu-  ra, aquilo tudo teria sido melhor? Talvez f"sse at pior. Marjorie quimi-  camente pura podia ter sido pior do que Marjorie temperada pelas impu-  rez as.  Aqule refinamento dela, por exemplo, aquela virtude fria, sem san-  gue e espiritual eram coisas que le admirava a distncia e te¢ricamente.  Mas na pr tica e de perto? F"ra por aquela virtude, por aquela espiritua-  lidade refinada, cultivada e sem ardor que le se apaixonara; por aquela  virtude e pela infelicidade de Marjorie; porque Carling era um sujeito  inqualific M. A piedade transformara Walter num cavaleiro andante.  Amar, pensava le então (porque tinha apenas 22 anos ...quele tempo, era  ardentemente puro, dessa pureza adolescente dos desejos sexuais virados  pelo avsso; acabara de deixar Oxford, abarrotado de poesia e das  lucubraões de fil¢sofos e m¡sticos), amar era trocar idias, o amor era  comunhão espiritual e camaradagem. Òsse era o amor verdadeiro. A par-  te sexual era apenas uma coisa acess¢ria - inevit vel, porque infeliz-

  mente os sres humanos tinham corpos; mas uma impureza que devia  ser conservada tanto quanto poss¡vel em £ltimo plano. Ardentemente  puro, com a chama dos desejos moos artificialmente ensinada a arder no  plano anglico, le admirara aquela pureza refinada e serena que, em  Marjorie, era o produto duma frieza natural, duma vitalidade congnita-  mente pobre. 

* "OS olhos da minha amante não se parecem em nada com o sol; o coral  muit¡ssimo  1  mais vermelho que o vermelho dos l bios dela; se a neve  branca, então os seios dela são  escuros; se os cabelos são fios, negros fios lhe crescem na cabea. Tenho vis

to rosas  adamascadas, vermelhas e brancas, mas tais rosas não veio nasfaces dela; eem alguns per-  fumes mais deleite encontro do que no h lito que de minha amante se exaia. . . "  (N. do T.) 

- Tu s tão boa - dissera-lhe. - Parece que tudo isso te vem tã6  naturalmente. . . quisera ser bom como tu.# 

isso era o mesmo - e le não o percebia - que desejar ser meio  morto. Sob aquela aparncia de timidez hesitante, Walter, muito  sens¡vel, era ardentemente vivo. Era-lhe na verdade dificil ser bom da  maneira como o era Mariorie. Esforou-se por s-lo, contudo. Enquanto  isso, admirava a bondade e a pureza dela. E ficou sensibilizado - pelo  menos at o momento em que comeou o aborrecimento e a exasperaão  - pela devoão daquela criatura; sentia-se lisonjeado pela admiraão  que lhe inspirava.  Enquanto se dirigia agora para a estaão de Chaik Farin, Walter  lembrou-se s£bitamente da hist¢ria que seu pai costumava contar a res-

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  peito de um chofer italiano com o qual um dia falara s¢bre o amor. (0  velho tinha verdadeiro gnio para puxar pela l¡ngua ...s pessoas; tâda  espcie de gente, mesmo criados, mesmo oper rios. Walter invejava-lhe  sse talento.) Algumas mulheres, segundo o chofer, eram como guarda-  roupas. Sono come dassettoni. Com que graa o velho costumava contar  a anedota! Elas podem ser bonitas como a gente quiser; mas de que nos  serve ter um belo guarda-roupa nos braos? De que nos serve? (E Marjo-  rie, refletia Walter, nem mesmo chegava a ser realmente bonita.) "Dem-  me", dizia o chofer, "as mulheres da outra espcie, mesmo que sejam  feias. A minha pequena", confessava, " da outra espcie. Ô unfrullino,  proprio un frullino - um verdadeiro batedor de ovos." Por tr s do  mon¢culo John Bidlake piscava o âlho, como um velho s tiro perverso e  jovial. A rigidez dum guarda-roupa ou a vivacidade dum batedor de  ovos? Walter tinha de confessar que suas preferncias eram idnticas ...s  do chofer. Pelo menos sabia por experincia pessoal que (cada vez que o  amor "verdadeiro" era temperado pelos acess¢rios sexuais) le não apre~  ciava muito as mulheres do tipo guarda-roupa.  A distncia, te¢ricamente, a pureza, a bondade e a espiritualidade refi-  nada são coisas admir veis. Mas de perto e na pr tica são menos atraen-  tes. E, vindas duma pessoa para quem não nos sentimos atra¡dos, at a  devoão, at mesmo a lisonja da admiraão são insuport veis. Confusa e  simultneamente, Walter odiava Marjorie por causa de sua frieza  paciente de m rtir e acusava-se de sensualidade bestial. Seu amor por  Lucy era uma coisa louca e vergonhosa, mas Marjorie não tinha sangue,

  era um ser semimorto. Via-se justificado e ao mesmo tempo sem descul-  pa... Mas principalmente sem desculpa, apesar de tudo; principalmente  sem desculpa. Aqules sentimentos sensuais eram vis; eram ign¢beis.  Batedor de ovos e guarda-roupa - podia-se conceber coisa mais baixa e  s¢rdida do que tal classificaão? Walter ouvia em imaginaão a risada  sonora e gorda do pai. Horr¡vel! T"da a vida consciente de Walter havia  sido orientada em oposião ... do pai, em oposião ... sensualidade jovial e 

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descuidosa do velho Bidlake. Conscientemente, sempre se colocara do la-  do da mãe, do lado da pureza, do refinamento, do esp¡rito. Mas o seu san-  gue, pelo menos metade dle, era o mesmo que o do Pai. E agora, os dois  anos de conv¡vio com Marjorie tinham-no enchido de repugnncia pela  virtude fria. Walter lhe tinha um horror consciente, se bem que ao mesmo  tempo sentisse vergonha dsse horror, vergonha daquilo que le chamava  os seus desejos bestiais, vergonha de seu amor por Lucy. Mas se ao me-  nos Marjorie o deixasse em ~az! Se ao menos se abstivesse de reclamar a  volta ao amor indesej vel que ela insistia em lhe impor ... f"ra! Se ao  menos cessasse de ser tão terrivelmente dedicada! Òle lhe podia dar ami-  zade - porque gostava dela sinceramente; tinha tão bom coraão, era  tão boa, tão leal e devotada... Walter seria feliz por ter em troca a ami-  zade da companheira. Mas amor. . . - isso era sufocante.

  E quando, ao imaginar que estava combatendo a outra mulher com as  suas pr¢prias armas, Marjorie violentava a sua pr¢pria frieza virtuosa e  tentava reconquist -lo pelo ardor de suas car¡cias - oh! como isso era  terr¡vel, verdadeiramente terr¡vel!  E depois, continuava Walter a refletir, Marjorie era no fundo uma cria-  tura maante, com a sua seriedade pesada e sem sensibilidade. Uma  verdadeira t"la, apesar da sua cultura - ou talvez por causa disso mes-  mo. Essa cultura era autntica, não havia d£vida. Ela tinha lido livros e  lembrava-se dles. Mas t-los~ia compreendido? Podia ela compreend-

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  los? As observaões com que quebrava os seus longos,longos silncios -  observaões srias e cultas -, como eram pesadas, como eram sem graa  e falhas de compreensão! Fazia bem em ser tão calada; o silncio est

cheio de esp¡rito e sabedoria em potncia, assim como o m rmore não  trabalhado est cheio de grandes esculturas. Os silenciosos nunca depõem  contra si mesmos. Marjorie sabia escutar bem e com simpatia. E, quando  quebrava o silncio, a metade das coisas que dizia eram citaões. Porque  tinha boa mem¢ria e adquirira o h bito de aprender de cor os grandes  pensamentos e as passagens brilhantes. Walter levara algum tempo para  descobrir a estupidez espssa e dram¡lticamente desprovida de compreen-  são que se escondia debaixo daquele silncio e daquelas citaões. Quando  chegou a descobrir, era tarde demais.  Pensou em Carling. Bbedo e religioso. Sempre tagarelando a respeito  de casulas, de santos e da Imaculada Conceião, e ao mesmo tempo um.  beberrão indecente. Se sse homem não rosse tão detest vel, tão repug-  nante, se não tivesse tornado Marjorie tão desgraada - que se teria pas-  sado então? Walter imaginava-se livre. Não teria sentido piedade, não te-  ria amado. Lembrou-se: dos olhos vermelhos e inchados de Marjorie, ap¢s  uma daquelas cenas desagrad veis com Carling. Que brutalhão asquero-  so!  ---Eeu?", pensou le s£bitamente.  Sabia que no momento em que a porta se lhe fechara ...s costas, Marjo~ 

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  rie comeara a chorar. Carling pelo menos tinha a descuippa do u¡sque.  perdoai-lhes, porque les não sabem o que fa7em. Òle sempre f"ra tempe-  rante. E naquele momento - Walter tinha a certeza - ela estava  chorando.# 

---Devovoltar", disse le de si para consigo. Mas, em vez disso, acelerou  o passo, at que se achou quase a correr rua abaixo. Era uma fuga de sua  conscincia e ao mesmo tempo uma corrida rumo ao objeto de seu desejo.

  "Devo voltar para casa, devo."  E apressava-se, odiando Marjorie s¢ porque a tornava assim tão infe-  liz.  Um homem que estava olhando a vitrina duma tabacaria deu de repen-  te um passo ... retaguarda, no momento em que Walter passava. Houve  uma colisão violenta.  - Perdão! - disse o jovem Bidlake autom...ticamente, acelerando a  marcha sem olhar para o lado.  - Aonde vai, seu? - gritou-lhe o homem ...s costas, com raiva.  Quem  que voc pensa que 9 Algum flizardo que ganhou no Derby?  Dois gffiatos explodiram numa gargalhada feroz, dando expansão ... sua  alegria irreverente.  - O' seu cartola de chamin! - continuou o homem em tom de mofa,

  tomado de raiva pelo cavalheiro vestido de gala.  O mais acertado seria virar~se e devolver os desaforos ao sujeito. O ve-  lho Bidlake o teria esmagado com uma palavra. Mas para Walter a £nica  soluão que se apresentava era a fuga. Ele temia encontros daquela natu-  reza; as classes inferiores o enchiam de mdo. O ru¡do dos vituprios do  desconhecido apagou-se-lhe nos ouvidos.  Era odioso! Walter sentiu um calafrio. Seus pensamentos voltaram pa-  ra Marjorie.  "Por que ela não pode ser- razo vel?", perguntou mentalmente. "Sim-

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  plesmente razo vel. Se ao menos ela tivesse algo que fazer, algo que a  mantivesse ocupada. . . "  O seu mal era ter tempo demais para pensar. Tempo demais para  pensar nle. No entanto, o culpado disso era o pr¢prio Walter; f"ra le  que lhe roubara a sua ocupaão, fazendo que a criatura concentrasse o  seu esp¡rito exclusivamente nle. Marjorie tinha entrado como s¢cia nu-  ma loja de arte decorativa ao tempo em que le a conhecera; era um  dsses estabelecimentos art¡sticos de amadores, que existem em  Kensington, muito ao sabor das damas da sociedade. Os quebra-luzes, a  companhia das mulheres jovens que os pintavam e sobretudo a devoão ...  Sra. Cole, a s¢cia principal, compensavam para Marjorie o seu casa-  mento infeliz. Tinha criado um pequeno mundo seu, ... parte do de Car-  ling; um mundo feminino, com algo de internato de meninas, um mundo  em que Marjorie: podia falar a respeito de vestidos e lojas, ouvir mexeri-  cos, e entregar-se ao que as raparigas colegiais chamam uma "paixa" por# 

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uma mulher mais velha, e imaginar, nos intervalos, que ela estava partici-

  pando do trabalho universal e favorecendo a causa da Arte.  Walter a tinha persuadido a renunciar a tudo aquilo - não sem  dificuldade, entretanto. Porque a felicidade que lhe trazia o seu devota-  mento para com a Sra. Cole, a sua "paixa" sentimental por ela, consti-  tu¡am quase uma compensaão ...s suas misrias com Carling. Mas Car-  ling se revelou de tal maneira abomin vel que at a Sra. Cole se tornou  insuficiente como elemento compensador. Walter oferecia o que esta  prov...velmente não podia e positivamente não queria dar - um ref£gio,  proteão e aux¡lio financeiro. Ademais, Walter era um homem, e um ho-  mem deve, por tradião, ser amado, mesmo quando (conclusão a que o jo-  vem Bidlake chegara a respeito de Marjorie) uma mulher, no fundo, não  goste dos homens e se Sinta naturalmente melhor na companhia das  outras mulheres. (Outra vez o efeito da literatura! Walter lembrou-se dos

  coment rios de Philip Quales a respeito da desastrosa influncia que a  arte pode exercer sâbre a vida.) Sim, le era um homem; mas era "dife-  rente dos outros", como Marjorie não se cansava de lhe dizer. E le acei-  tara então essa "diferena" como uma distinão lisonjeira. Mas seria  lisonjeira? Punha-se a fazer conjeturas. F"sse como f"sse, ela o achava  "diferente dos outros", de sorte que podia auferir dois proveitos ao  mesmo tempo: possu¡a um homem que, entretanto, não era homem.  Encantada pelas palavras persuasivas de Walter, impelida pelas  brutalidades de Carling, Marjorie tinha consentido em abandonar a loja e  com ela a Sra. Cole, que Walter detestava como sendo a encamaão  tirimica, autorit ria e vampiresca da vontade feminina.  - Tens aptidões para ser muito mais que uma estofadora diletante.  Dizendo-lhe isto le a lisonjeara, movido pela confiana sincera que ti-

  nha então nas capacidades intelectuais de Marjorie.  Ela podia ajud -lo, duma Maneira ainda indeterminada, em seus traba-  lhos liter rios; ela mesma poderia escrever tambm. Sob a influncia do  n"vo companheiro, pusera-se Majorie a escrever ensaios, novelas. Mas,  positivamente, les não valiam nada. Depois de a ter encorajado, Walter  se tornou reticente; não falou mais em tal coisa. Ao cabo de pouco tempo  Marjorie abandonou aquela ocupaão antinatural e f£til. Depois disso,  nada lhe restara alm de Walter. Òste se tornou a razão de ser de sua  existncia, a base s"bre que t"da a sua vida repousava. E essa base agora  cedia sob os seus ps ...

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  "Se ao menos", pensava Walter, "ela me deixasse em paz!"  Entrou na estaão do metropolitano. Na entrada um homem vendia os  jornais da noite. OS SOCIµLISTAS E O SEU PROJETO DE ROUBO.  PRIMEIRA LEITURA. As palavras destacavam-se, vivas, num cartaz.  Contente com sse pretexto para distrair o esp¡rito, Walter comprou um  jornal. O projeto de lei do govrno liberal-trabalhista sâbre a nacionali-  zaão das minas tinha sido aceito ... primeira leitura, pela maioria de cos- 

tume. Walter leu a not¡cia com prazer. Tinha idias pol¡ticas avanad4s.  o que não acontecia com o redator do jornal da noite. A linguagem do  artigo de fundo era de uma violncia feroz.  "Que patifes!" pensou Walter ao l-lo. O artigo despertou nle um# 

entusiasmo vivificante por tudo o que o jornalista atacava, um delicioso  ¢dio aos capitalistas e aos reacion rios. As barreiras de sua individua-  lidade se viram momentaneamente derribadas, abolidas as complicaões  pessoais. Possu¡do pela alegria da luta pol¡tica, ultrapassou as suas  limitaões, tornou-se de algum modo maior do que le mesmo - maior  e mais simples.  "Que patifes W repetiu, pensando nos opressores, nos detentores dos  monop¢lios.

  Na estaão de Camden Town, um velhinho encarquilhado, com um  leno vermelho amarrado ao pescoo, sentou-se ao lado dle. O fedor do  cachimbo do homem era de tal maneira sufocante que Walter passeou o  olhar pelo carro, ... procura dum lugar vago. Achou um; mas, refletindo  num segundo, decidiu não se mover. Fugir ao cheiro pestilencial seria agir  de uma maneira ofensiva, demasiadamente vis¡vel, e poderia ocasionar  coment rios da parte do malcheiroso ... A fumaa acre lhe irritava a  garganta. Walter tossiu.  "Devemos ser leais para com os nossos gostos e instintos", dizia Philip  Quarles. "Para que serve uma filosofia cuja premissa maior não  a  expressão racional de nossos sentimentos? Se nunca tivemos um acesso  de fervor religioso,  loucura crer em Deus. Da mesma maneira que ser

loucura crer na excelncia das ostras, se não as podemos comer sem sen~  tir n useas."  Veio ...s narinas de Walter, com os vap"res de nicotina, uma baforada  de suor azido. Walter voltou ... leitura do jornal: "Os socialistas chamam  a isso nacionalizaão; mas n¢s outros temos um nome mais curto e mais  simples para o que les se propõem fazer. Chamamos a isso - roubo".  Mas era ao menos um roubo infligido a ladrões, e em proveito de suas  v¡timas. O velhinho se inclinou para a frente e cuspiu, cuidadosa e verti-  calmente, entre os dois ps. Com o salto da botina espalhou o cuspe S"bre  o soalho. Walter desviou os olhos; quisera poder amar pessoalmente os  oprimidos, e pessoalmente odiar os ricos opressores. "Devemos ser leais

  para com os nossos gostos e instintos." Mas os nossos gostos e instintos  sio acidentes. H princ¡pios eternos. Mas se acontece que os princ¡pios  axiorn ticos não são a nossa premissa maior pessoal? ...  E s£bitamente Walter se reviu aos nove anos de idade. Passeava com a  mie pelos campos que havia perto de Gattenden. Levava cada um dles  um buqu de primaveras. Com certeza tinham ido a Batt's Comer; era o  unico lugar onde havia primaveras nas redondezas.  - Vamos parar um minuto para ver o pobre Wetherington - disse a  mie. - Òle est muito doente. 

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Bateu ... porta da cabana.  Wetherington f"ra segundo jardineiro na herdade; mas não trabalhava  desde o ms anterior. Walter tinha lembrana de que le era um homem  p lido e magro que tossia, um homem nada comunicativo. Wetherington  não o interessava muito. Uma mulher abriu a porta.  - Boa tarde, Sra. Wetherington.  Entraram.  Wetherington estava deitado na cama, escorado por travesseiros. O seu  rosto era terr¡vel. Um par de olhos enormes, de pupilas dilatadas, olha-  vam fixamente do fundo de ¢rbitas cavernosas. Esticada sâbre os ossos  salientes, a pele estava branca e viscosa de suor. Mais aterrador, porm,  do que o rosto, era o pescoo, incrivelmente delgado. E das mangas da

  camisa de dormir emergiam duas estacas nodosas, os braos, com um par  de imensas mãos esquelticas prsas na ponta, como ancinhos na extremi-  dade dos cabos finos. E, depois, o cheiro daquele quarto de doente! As  janelas se achavam hermticarnente fechadas, havia fogo na pequena  lareira. O ar estava quente e carregado dum horr¡vel bafo ranoso e  doentio, misturado ...s exaliões do corpo enfermo - um cheiro antigo  que, parecia, se tornara pestilencialmente adocicado ... f"ra de  amadurecer tanto tempo dentro do calor fechado. Um cheiro nâvo,  fresco, por mais forte e desagrad vel que fosse, seria menos horr¡vel. Era  a velhice, a decomposião adocicada daquele cheiro de quarto de doente  que o tornava particularmente insuport vel. Walter sentia arrepios at  agora, pensando naquilo. Acendeu um cigarro para desinfetar a mem¢ria.  F"ra educado no h bito dos banhos e das janelas abertas. A primeira vez

  que o levaram, criana ainda, ... igreja, o abafamento e o cheiro de huma-  nidade o deixaram mareado. Teve de ser conduzido para fora ...s pressas.  A mãe nunca mais o levou ... igreja. "Talvez sejamos educados de maneira  demasiadamente higinica, demasiadamente assptica", pensou le.  "Uma educaão cujo resultado  dar-nos n useas na companhia de nos-  sos semelhantes, de nossos irmãos - pode ela ser boa?" Walter quisera  am -los. Mas o amor não floresce numa atmosfera que infunde ao que  ama uma repugnncia incoerc¡vel.  No quarto em que Wetherington jazia doente, at mesmo a piedade era  dificil florescer. Walter, enquanto a mãe conversava com o morimbundo  e com sua esp"sa, deixou-se ficar sentado, a contemplar, malgrado seu,  mas arrastado pela fascinaão do horror, o apavorante esqueleto sentado  na cama, e respirar atravs de seu ramilhete de primaveras o ar quente e

  -nauseabundo. De mistura com o perfume fresco e delicioso das flàres le  sentia os miasmas persistentes do quarto do doente. Não chegava quase a  sentir piedade, mas apenas horror, mdo e desg"sto. E mesmo quando a  Sra. Wetherington se pâs a chorar, desviando o rosto a fim de que o  doente não lhe visse as l grimas, Walter sentiu ainda menos compaixão  do que mal~estar e embarao. O espet culo dessa dor f-lo s¢rnente dese- 

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jar a fuga com mais ardor ainda: sair daquele horr¡vel quarto para o ar

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  infinito e puro, para o sol ...  Walter teve vergonha dessas emoões, recordando-as. No entanto, era  bem o que tinha sentido, o que sentia ainda. "Devemos ser leais para com# 

nossos instintos." Não, não para com todos, não para com os maus: era  preciso resistir a stes £ltimos. Mas les não se deixavam vencer com faci-  fidade.  O velhinho que estava sentado a seu lado tornou a acender o cachimbo.  Walter lembrou-se de que tinha contido a respiraão o maior tempo  poss¡vel, para não ter de inalar muito repetidamente o ar pestilencial do  quarto do doente. Respirava profundamente atravs das primaveras;  depois contava at quarenta antes de expirar e de absorver o ar de n"vo.  O velho se inclinou outra vez para cusp~r. "A idia de que a nacionali-  zaão far crescer a prosperidade dos trabalhadores  absolutamente  ilus¢ria. Durante os £ltimos anos o contribuinte aprendeu ... sua custa a  significaão do contrâle burocr tico. Se os trabalhadores imaginam. . . "  Waltr fechou os olhos e reviu o quarto de Wetherington. Chegara o  momento da despedida: le apertou na sua a mão esqueltica do doente,  a mão que jazia inerte s¢bre a coberta. Walter deslizou os seus dedos sob  aqules dedos mortos e descarnados; levantou a mão por um instante e

  deixou-a cair de nâvo. O contato era frio e £mido. Walter virou-se e esfre~  gou dissimuladamente a palma da mão no sobretudo. Deixou escapar,  num suspiro explosivo, o f"lego por muito tempo contido e encheu de  n"vo os pulmões daquele ar nauseante. Foi a £ltima vez que teve de inal -  lo; sua mãe j se dirigia para a porta. O pequeno pequins saltitava em  t"rno dela, latindo.  - Sossega, T'ang 1 -- disse ela com a sua linda voz clara. Era sem  d£vida a £nica pessoa na Inglaterra, pensava Walter agora, que pronun-  ciava regularmente o ap¢strofo na palavra T'ang.  Voltaram para casa pela senda que cortava os campos. Fant stico e  inveross¡mil como um pequeno dragão chins, T'ang corria diante dles,  saltava levemente para vencer o que, para le, eram obst culos enormes.  Sua cauda peluda flutuava ao vento. Algumas vezes, quando a relva era

  muito alta, le se sentava s"bre a pequeno traseiro chato, como se esti-  vesse pedindo a£car, e, olhando com os olhos redondos e bojudos por ci-  ma dos tufos de relva, procurava orientar-se.  Sob o claro cu multicolorido Walter se sentira como um prisioneiro  libertado. Corria, gritava. A mãe caminhava devagar, sem nada dizer. A  cada instante se detinha um momento e fechava os olhos. Era um h bito  que tinha, quando estava pensativa ou perplexa. E ficava perplexa com  muita freqncia, pensava agora Walter, sorrindo interiormente com ter-  nura..O pobre Wetherington, sem d£vida, lhe dera bastante que refletir.  Òle se lembrava de a ter visto parar diversas vzes no caminho de volta  para casa. 

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- Apressa-te, mamãe - gritava com impacincia. - Vamos chegar  tarde para o ch .  A cozinheira tinha assado b"los na chapa, para o ch , e havia ainda  uma torta de ameixas do dia anterior e um pote recm-aberto de gelia de

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  cerejas de Tiptree.  "Devemos ser leais para com nossos gostos e instintos." Mas um aci-  dente de nascimento tinha aeterminado nle sses gostos e instintos. A  justia era eterna; a caridade e o amor fraterno eram belos, malgrado o  cachimbo do velhote e o quarto de Wetherington; belos precisamente por  causa de tais coisas. O trem diminu¡a a marcha. Leicester Square. Wal-  ter desceu ... plataforma e caminhou para os ascensores. "Mas", ia  pensando, " dif¡cil. negar a premissa maior pessoal; e  bem dificil acre~  ditar numa premissa maior não-pessoal, por melhor que ela seja." A hon-  ra e a fidelidade eram boas coisas. Mas a premissa maior pessoal de sua  filosofia presente se resumia no seguinte: Lucy Tantamount era a mais  bela, a mais desej vel ...  - Todos os bilhetes, faam o favor!  O debate ameaava recomear. Deliberadamente, Walter pâs-lhe uma  pedra em cima. O ascensorista bateu as portas, o elevador subiu. Na rua,  Walter tomou um t xi.  - Tantarnount House, Pall Mail. 

CAPITULO II 

Trs espectros italianos assombram discretamente a extremidade orien-  tal de Pall Mali. A riqueza da Inglaterra recentemente industrializada eo  entusiasmo, o gnio arquitetura] de Charles Barry os invocaram, arran-

  cando-os ao passado e ... luz do seu sol natal. Sob a sujeira que se incrusta  na fachada do Reform Club, o âlho da f reconhece algo que lembra  agrad...velrnente o Pal cio Farnese. Alguns metros mais alm, as recor-  daões que Sir Charles guardou da casa cuja planta Rafael desenhou para  os Pandolfimi erguem-se atravs do ar brumoso de Londres.  o Travel-  lers' Club. E entre les, austeramente cl ssica, severa como uma prisão e  negra defuligem, ergue-se uma versão reduzida (mas ainda enorme) da  Cancelleria.  Tantamount House.  Barry desenhou-a em 1839. Uma centena de oper rios trabalhou nela  durante um ano ou dois. E o terceiro marqus pagou as contas. Eram so-  mas pesadas, mas os sub£rbios de Leeds e Sheffield tinham comeado a  espalhar-se s"bre a região que seus antepassados haviam roubado aos

  mosteiros, trezentos anos atr s. "A Igreja Cat¢lica, instru¡da pelo Santo  Esp¡rito, aprendeu das escrituras sagradas e das velhas tradiões dos  Padres que h um Purgat¢rio e que as almas ali detidas são ajudadas pe-  los sufr gios dos fiis, mas principalmente pelo sacrif¡cio agrad vel da  missa." Homens ricos, de conscincia pouco tranqila, deixaram suas ter-  ras aos monges para que suas almas pudessem receber aux¡lio no trnsito  pelo Purgat¢rio, graas ao cumprimento perptuo do agrad vel sacrif¡cio  da missa. Mas Henrique VIII tinha cobiado uma rapariga jovem e dese-  jado um filho; e o Papa Clemente VII, que estava sob a influncia do pri-  mo da filha da primeira mulher de Henrique, não lhe quis conceder o  div¢rcio. Os mosteiros, em conseqncia disso, foram suprimidos. Um  exrcito de mendigos, de pobres diabos e de doentes morreu#

 

miser...velmente de fome. Mas os Tantamounts adquiriram algumas  dezenas de milhas quadradas de terras ar veis, florestas e pastagens.  Alguns anos mais tarde, sob Eduardo VI, roubaram les a propriedade de  duas escolas desoficializadas; houve crianas que ficaram sem receber  educaão para que os Tantarnounts pudessem ser ricos. Exploraram essas  terras cient¡ficamente, para tirar delas o melhor proveito. Os seus contem-  Porneos os consideravam como "homens que vivem como se não hou-

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  vesse Deus, homens que desejam ter tudo nas suas mãos, homens que não  querem tleixar nada para os outros, homens que nunca estão satisfeitos". 

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I# 

Do alto do p£lpito de São Paulo, Lever os acusava: "ofenderam a Deus  e arrastaram uma comunidade ... ru¡na geral". Os Tartamounts ficaram  imperturb veis. A terra lhes pertencia, o dinheiro entrava regularmente.  O trigo era semeado, crescia e era colhido ano ap¢s ano. Os animais  nasciam, engordavam e iam para o matadouro. Os trabalhadores, os  past"res, os vaqueiros trabalhavam desde antes da alvorada at o pâr do  sol, sem descanso, at a morte. Os filhos tornavam-lhes os lugares. Tanta-  mount sucedia a Tantamount. Elizabeth f-los barões; tornaram-se  viscondes sob Carlos II, condes sob Guilherme e Maria, marqueses sob  Jorge II. Desposaram herdeiras ap¢s herdeiras - 10 milhas quadradas  do Nottinghamshire, 50 O00 libras, duas ruas de Bloomsbury, a metade  duma f brica de cerveja, um banco, uma plantaão e seiscentos es cravos

  na Jamaica. Entretanto, homens obscuros andavam ideando m quinas  que fabricavam as coisas mais r...pidamente do que elas se podiam fazer a  mão. As aldeias se transformavam em cidades, as cidades em grandes  centros. Por sâbre o que tinha sido as pastagens e os campos de lavoura  dos Tantamourits, constru¡ram-se casas e f bricas. Debaixo da relva de  seus prados homens serrinus espicaavam a face negra e brilhante do car-  vão. Os vagonetes carregados eram arrastados por meninos e mulheres.  Trouxeram por mar, do Peru, para enriquecer-lhes os campos, os excre-  mentos de 10 O00 geraões de gaivotas. O, trigo cresceu mais basto; as  novas b"cas foram alimentadas. E, dum ano para ontro, os Tantamounts  ficavam cada vez mais ricos, e as almas dos piedosos contemporneos do  Pr¡ncipe Negro continuaram, sem d£vida, a se estorcer nas chamas  inextingu¡veis do Purgat¢rio, j que não eram socorridas pelo agrad vel

  sacrificio da missa. O dinheiro que, uma vez bem empregado, teria podi-  do encurtar-lhes a permanncia no meio das chamas, serviu, entre outras  coisas, para fazer surgir em Pall Mall um niodlo ieduzido da Chance-  laria Papal.  O interior de Tantamount House  tão nobremente romano quanto a  sua fachada. Em târno de um quadril tero central correm duas alas de  arcadas abertas com um tico, ao alto, iluminado por pequenas janelas  quadradas. Mas, em lugar de se abrir para o cu, o quadril tero est

coberto por um telhado de vidro que o converte num imenso hall a ocupar  t"da a altura do edificio. Com as suas arcadas e a sua galeria, constitui  le um salão muito nobre - porm excessivamente vasto, exagerada-  mente p£blico, demasiadamente semelhante a uma piscina ou a uma pista  de patinaão para que se possa habit -lo.

  Naquela noite, entretanto, o hall justificava a sua existncia. Lady  Edward Tantamount dava ali uma de suas festas musicais. O pavimento  estava cheio de pessoas sentadas, e no espao arquitetural vazio que ha-  via por cima delas a m£sica flutuava em pulsaões complicadas.  - Que pantomima! - disse o velho John Bidlake ... dona da casa.  Minha queridi Hilda, não deixes de reparar ... 

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- Psiu! - protestou Lady Edward por tr s de seu leque de plumas.

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  - Nio deves interromper a m£sica. E, de resto, eu j estou olhando ...  O seu cochicho era colonial e os rr de "interromper" eram carregados,  vinham bem do fundo da garganta; porque Lady Edward procedia de# 

Montreal e sua mãe era francesa. Em 1897 a British Association reuniu-  se no Canad . Lorde Tantamount leu um trabalho muito admirado ...  Seio de Biologia. "Um dos nossos homens do futuro", disseram dle os  profess"res. Mas, para os que não eram profess"res, um Tantamount  niffion fio podia ser olhado como homem do presente ... Hilda Sutton  era partid ria decidida desta opinião. Durante a sua estada em Montreal,  Lorde Edward foi h¢spede do pai de Hilda. A m"a aproveitou a oportu-  nidade. A British Association voltou ... p tria; mas Lorde Edward ficou  no Canad .  - Podes acreditar - confiara Hilda certa vez a uma amiga - que  nunca me interessei tanto pela osmose nem antes nem depois ...  O intersse pela osmose despertou a atenão de Lorde Edward. E deu-  se conta de um fato que não havia notado antes: de que Hilda era  muit¡ssimo"bonita. Hilda tambm conhecia o seu papel de mulher. A tare-  fa não lhe foi dificil. Aos quarenta anos Lorde Edward era em tudo, me-  nos no intelecto, uma espcie de criana. No laborat¢rio, ... sua mesa de

  trabalho, le se revelava tão velho como a pr¢pria cincia. Mas os seus  sentimentos, as suas intuiões, os seusinstintos eram os de um menino. ·  m¡ngua de exerc¡cio, a maior parte de seu ser espiritual nunca se tinha  desenvolvido. Era uma espcie de criana, mas com h bitos infantis inve-  terados por quarenta anos de vida. Hilda correu em aux¡lio daquela para-  lisante timidez de quarenta anos, e, sempre que o terror o impedia de fazer  as arremetidas necess rias, ela ia encontr -lo a meio cam¡nho. Os ardores  dle eram juvenis - a um tempo violentos e t¡midos, desesperados e  mudos. Hilda falava por ambos e era discretamente atrevida. Discreta-  mente - porque as noões que tinha Lorde Edward de como as raparigas  se deviam portar derivavam principalmente dos Pickx?ick Papers. O atre-  vimento claro, sem disfarce, t-lo-ia alarmado, t-lo-ia afugentado. Hilda

  conservou t"da a aparncia de uma donzela de Dickens, mas procurava  ao mesmo tempo fazer t"das as avanadas, criar t"das as oportunidades,  e conduzir a conversaão em t"das as direões ditadas pela estratgia  amorosa. E teve a sua recompensa. Na primavera de 1898 tornou-se Lady  Edward Tantarnotint.  - Mas eu te asseguro - dissera um dia com raiva a John Bidlake,  porque ste estivera a ridicularizar o pobre Edward -, eu te asseguro que  o amo sinceramente - sinceramente!  - · tua pr¢pria maneira, sem d£vida. . . - caoou Bidlake. - ·  tua pr¢pria maneira. Mas deves concordar em que felizmente não  essa  a maneira de t"da a gente. Olha-te naquele espelho! 

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  ~11a~ ~~ " ^~ V'- 

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  Hilda olhou e viu a imagem de seu corpo nu, estendido s¢bre um divã,  meio mergulhado nas almofadas fundas.  - Animal! Mas isso não faz nenhuma diferena na minha afeião por 

le ...  - Sim, na tua maneira especial de ter afeião,  claro! - P"s-se a rir.  Mas, repito,  uma boa coisa que...  Lady Edward f-lo calar-se, pondo-lhe a mão s"bre a b"ca. Aquilo se  passara um quarto de sculo atr s. Havia então cinco anos que Hilda  estava casada: tinha trinta de idade. Lucy era uma menina de quatro  anos. John Bidlake tinha 45 e estava na plenitude de seu talento e de sua  reputaão de pintor; era belo, grande, exuberante, despreocupado; graude  amigo do riso, grande trabalhador, grande comedor, bebedor e arreba~  tador de virgindades.  - A pintura  um ramo da sensualidade - replicava le aos que lhe  censuravam o modo de vida. - Ningum pode pintar um nu se não  aprendeu de cor o corpo humano com as suas mãos, com os seus l bios  e com o seu pr¢prio corpo. Levo minha arte a srio. Sou incans vel nos  meus estudos preliminares. - E sua pele se dobrava em pregas de riso ao  redor do mon¢culo, seus olhos coruscavam como os dum s tiro jovial.  Para Hilda, Bidlake trouxe a revelaão de seu pr¢prio corpo, t"das as  suas possibilidades fisicas. Lorde Edward não passava duma espcie de  criana, um menino f¢ssil conservado no corpo dum homem muito alto e  de idade madura. Intelectualmente, no laborat¢rio, le compreendia os

  fen"menos sexuais. Mas na pr tica e emotivamente era uma criana, uma  criana f¢ssil dos meados da era vitoriana, conservada intata com tâdas  as timidezes infantis naturais e todos os tabus adquiridos das duas tias  solteironas, muito amadas e muito virtuosas, que lhe tinham substitu¡do a  mãe morta, com todos os incr¡veis princ¡pios e preju¡zos absorvidos de  mistura com as esquisitices do Sr. Pickwick e de Micawber. le amava a  sua jovem esp"sa, mas amava-a como podia amar uma criana f¢ssil da  dcada de 1860 - timidamente, pedindo desculpas; pedindo desculpas  dos seus ardores, pedindo desculpas do seu pr¢prio corpo e at do corpo  de Hilda. Não de modo expl¡cito, naturalmente, porque a criana f¢ssil  era muda ... f"ra de ser t¡mida; mas por uma resoluão silenciosa de  ignorar, uma maneira silenciosa de fingir que os corpos não tm real-  mente nada que ver com os ardores, e que stes, de resto, não existem

  realmente. Seu amor foi um longo e t cito pedido de desculpas pela sua  pr¢pria existncia, e, não sendo mais do que uma desculpa, tornava-se  por isso mesmo absolutamente indesculp vel. O amor deve justificar-se  por seus resultados na intimidade do esp¡rito e do corpo, no calor, no  contato terno, no prazer. Se precisa ser justificado por uma razão  exterior, revela com isso ser uma coisa sem justificaão. John Bidlake não  pedia desculpas da modalidade de amor que tinha para dar. Na medida  do poss¡vel, le se justificava plenamente por si mesmo. Sensualista vigo- 

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roso, fazia o seu amor francamente, naturalmente, com o bom prazer ani-  mal dum filho da natureza. "Não esperes de mim que eu te fale das

  estrlas, dos l¡rios virginais e do cosmos", dizia. "Não  o meu gnero.# 

Não acredito nles. Eu acredito  em. . ." E suas palavras se  transformavam então naquilo que uma convenão misteriosa decretou  imposs¡vel de imprimir.  Era um amor sem pretensão, mas quente e natural, e, sendo natural,  bom na medida de suas limitaões - uma sensualidade decente, bem~hu-

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  morada e feliz. Para Hilda, que, em matria de amor, não conhecia nada  senão os ensaios t¡midos duma criana f¢ssil, foi uma revelaão. Coisas  mortas dentro dela tornaram ... vida. Descobriu-se a si mesma, num  arrebatamento. Não com um arrebatamento excessivo, entretanto. Nunca  perdeu a cabea. Se tivesse perdido a cabea, arriscaria perder com ela  Tantamount House, os milhões dos Tantamounts e o t¡tulo dos Tanta-  mourits. E Lady Edward não tinha a menor intenão de perder tudo isso.  De sorte que conservou a cabea; friamente, deliberadamente, manteve-a  bem alto, em segurana, por s¢bre os arrebatamentos tumultuosos, como  um rochedo que se ergue acima das ondas. Divertiu-se, mas nunca em  detrimerito de sua posião social. Foi capaz de contemplar o seu pr¢prio  prazer; a sua cabea s¢lida, a sua vontade de conservar a posião social  mantiveram-se ... parte e por cima do torvelinho. E John Bidlake louvava  a maneira como a amante sabia aproveitar o que havia de melhor dentro  de dois mundos.  - Rendo graas ao cu, Hilda - dizia le muita vez -, por sres  uma mulher sensata.  Porque as mulheres em cuja opinião vale a pena sacrificar o mundo pe-  lo amor podem tornar-se uma verdadeira calamidade - como le bem  sabia por experincia pessoal. Amava as mulheres; o amor era um prazer  indispens vel. Mas ningum merece que por sua causa nos envolvamos  em complicaões aborrec¡veis - não h nada que compense o sacrificio  de uma vida transtornada. Com as mulheres que não se tinham mostrado  sensatas e que haviam levado o amor muito a srio, John Bidlake tinha si-

  do impiedosamente cruel. Era a luta do "tudo pelo amor" contra o "não  importa qu por uma existncia tranqila". Nessa luta por uma existncia  tranqila, le não recuava diante de nenhum horror.  Hilda Tantamount era tão apegada ... existncia tranqila quanto o  pr¢prio John. A ligaão de ambos tinha durado bastante agrad...velmente  o espao de alguns anos; ao cabo, tudo se extinguira com suavidade.  Tinham sido bons amantes; ficaram bons amigos - ao ponto de serem  chamados conspiradores, conspiradores maliciosos mancomunados para  se divertirem ... custa do mundo.  Agora estavam rindo. Ou antes, com mais exatidão, o velho John, que  detestava a m£sica, ria s¢zinho. Lady Edward tratava de manter o  dec"ro. 

29 I

O que devias fazer era ficar simplesmente calado - cochichou ela.  - Mas  que não percebes como tudo isto  incrivelmente c¢mico! --  insistiu Bidlake.  - Psiu! Psiu!  -- Mas eu estou cochichando.  Aqules "psius" cont¡nuos o aborreciam.

  - Como uinleão ...  - Não posso evitar. . . - respondeu le com c¢lera. Quando se dava  o trabalho de cochichar, presumia que a sua voz não podia ser ouvida  senão pela pessoa a quem se dirigia. Não gostava de ouvir que o que le  admitia como verdade não o era. - Como um leão, essa  boa! -  murmurou, indignado. Mas seu rosto ficou s£bitamente sereno. -- Olha!  Outra retardat ria. Quanto queres apostar como ela vai fazer o mesmo  que os outros?  -- Psiu! -- repetiu Lady Edward.  Mas John Bidlake não lhe dava mais atenão. Estava olhando na

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  direão da porta, onde a £ltima das convidadas se achava indecisa entre  o desejo de desaparecer discretamente no meio da multidão silenciosa e o  dever social de fazer saber sua chegada ... dona da casa. Lanou o olhar  em târno, embaraada. Lady Edward lhe fez um sinal por cima das  cabeas da multidão que se interpunha entre arribas, um aceno do leque  de plumas longas e um sorriso. A retardat ria sorriu em resposta, enviou  um beijo na ponta dos dedos, p¢s o indicador s"bre a b"ca, apontou para  uma cadeira vazia na outra extremidade do salão, alongou as duas mãos  num pequeno gesto que queria exprimir um pedido de desculpas por sua  chegada tardia e o desespro de não poder, em vista das circunstncias, ir  falar com a dona da casa; depois, soerguendo os ombros e encolhendo-se  de modo que ocupasse o m¡nimo de espao, dirig¡ti-se nas pontas dos ps,  com infantis precauões ao longo de uma coxia, para o lugar que ficara  vago.  Bidlake delirava de alegria. Tinha repetido cada um dos gestos da po-  bre senhora, ... medida que ela os fazia. Havia-lhe retribu¡do com juros  extravagantes o beijo soprado de longe, e, quando ela pusera um dedo  sâbre a bâca, le tinha coberto a sua com a mão inteira. Repetira o gesto  de pesar, exagerando-o grotescamente at fazer que le exprimisse um  desespro rid¡culo. E, quando a dama retardat ria se tinha afastado nas  pontas dos ps, Bidlake pusera-se a contar nos dedos, a fazer os gestos  com os quais, em N poles,  costume evitar os maus olhados, e a bater na  testa. Voltou-se triunfante para Lady Edward.  -- Eu bem te havia dito - cochichou, com o rosto todo enrugado de

  riso. - Dir-se-ia estarmos numa casa de surdos-mudos. Ou falando a  pigmeus da µfrica Central. - Abriu a b"ca e apontou para dentro dela  com o indicador esticado, imitou os gestos de quem bebe num copo. -  Mim fome, mim muito sde.  Lady Edward bateu nle com o seu leque de avestruz. 

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Entrementes a m£sica continuava - a Su¡te em Si Menorpara Flauta  e Cordas de Bach. Era o jovem Tolley que dirigia a orquestra, com a sua  graa inimit vel e habitual, curvando o busto em ondulaões de cisne e# 

traando no ar, com os braos, arabescos brilhantes, como se danasse ao  som da m£sica. Uma d£zia de violinistas e de violoncelistas an"nimos  arranhavam os instrumentos, ao seu comando. E o grande Pongileoni bei-  java viscosamente a sua flauta. Soprava na embocadura, e uma coluna  cil¡ndrica de ar se punha a vibrar; as meditaões de Bach enchiam o  quadril tero romano. No largo da abertura, Johan Sebastian, com o  aux¡lio dos beios de Pongileoni e da coluna de ar, tinha feito uma  declaraão: H grandes coisas no mundo, nobres coisas; h homens que  nasceram para ser reis; h conquistadores verdadeiros, senhores autn-  ticos da terra. Mas de uma terra, ah! tão complexa e m£ltipla. . . -  continuara le a refletir no allegro em fuga. Parece que achamos a verda~

  de; clara, precisa, inilud¡vel, ela nos  anunciada pelos violinos; n¢s a te-  mos e retemos triunfalmente. Mas eis que ela nos escapa, para se  apresentar outra vez sob um aspecto n"vo, entre os violoncelos, e ainda  outra vez sob a forma da coluna de ar vibrante de Pongileoni. As diversas  partes vivem suas vidas separadas; elas se tocam, seus caminhos se cru-  zam, combinam-se um instante para criar o que parece uma harmonia fi-  nal e perfeita, - mas s¢rnente para tornarem a separar-se mais uma vez.  Cada uma  sempre s¢, separada e individual. "Eu sou eu", afirma o violi-  no; "o mundo gira em târno de mim". "Em t"mo de mim", reclama o  violoncelo. "Em târno de mim", insiste a flauta. E todos igualmente tm

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  razão e igualmente se enganam; e nenhum dles quer escutar os outros.  Na fuga humana h 1 800 milhões de partes. O ru¡do resultante tem  talvez alguma significaão para o estat¡stico, mas nenhuma para o artista.   s¢rnente considerando uma ou duas partes ao mesmo tempo que o artis-  ta pode entender alguma coisa. Ali estava, por exemplo, uma parte isola-  da; e Johan Sebastian Bach expõe o caso. O "Rond¢" comea, esquisita  e simplesmente melodioso, quase uma canão popular.  uma rapariga  jovem que canta para si mesma, de amor, na solidão, ternamente  melanc¢lica. Uma rapariga que canta entre as colinas, enquanto as  nuvens passam por s"bre a sua cabea. Mas, solit rio como uma das  nuvens flutuantes, um poeta escutou a canão. Os pensamentos que ela  lhe provocou estão na "Sarabanda" que segue o "Rond¢".  uma  meditaão lenta e maravilhosa s"bre a beleza~ do mundo (a despeito da  esqualidez e da estupidez), sobre a sua bondade profunda (a despeito de  todo o mal), s"bre a sua unidade (a despeito de tanta diversidade  desnorteante).  uma beleza, uma bondade, uma unidade que nenhuma  indagaão intelectual pode descobrir, que a an lise destr¢i, mas cuja  realidade se impõe ao esp¡rito, de tempos em tempos, bruscamente,  in¡vencivel mente. Uma rapariga jovem que canta para si mesma sob as  nuvens basta para criar essa certeza.  Mesmo uma manhã bonita  suficiente. Ilusão ou revelaão da mais 

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profunda das verdades? Quem o sabe? ... Pongileoni soprava, os m£si-  cos esfregavam as suas crinas de cavalo impregnadas de resina nas cor-  das esticadas de tripas de carneiros; e, atravs da longa "Sarabanda", o  poeta medi!ava lentamente sâbre a sua certeza maravilhosa e  consoladora.  - Essa m£sica est comeando a ficar bem cacte - murmurou John  Bidlake ... dona da casa. - Ser que ainda vai muito longe?  O velho Bidlake não tinha nem g"sto nem talento para a m£sica, e ti-

  nha a franqueza de o dizer. Podia, de resto, permitir-se essa franqueza.  Quem sabe pintar como John Bidlake, para que fingir que gosta de m£si-  ca, quando realmente não gosta? O pintor passeou o olhar por sâbre o  audit¢rio e sorriu.  - Tm o ar de quem est na igreja.  Lady Edward levantou o leque num ar de protesto.  - Quem  aquela mulherzinha de prto - continuou o pintor - que  revira os olhos e balana o corpo como Santa Teresa em xtase?  -  Fanny Logan - respbndeu Lady Edward em voz baixa. - Mas  fica quieto, fica quieto.  - Fala-se do tributo que o v¡cio paga ... virtude - continuou John  Bicilake, incorrig¡vel. - Mas na nossa poca tudo  permitido; não h

mais necessidade de hipocrisia moral. J não h senão a hipocrisia

  intelectual, o tributo que o filistinismo paga ... arte. Que dizes? ...  Olha ... essa gente t¢cia o est pagando agora ... em caretas piedosas e  num silncio religioso!  - Pois deves ficar agradecido por les pagarem a ti em guinus!  disse Lady Edward. - E agora fao questão de que cales a b"ca.  Bidlake teve um gesto de terror fingido e cobriu a b¢ca com a mão.  Tolley agitava os braos voluptuosamente. Pongileoni soprava, os violi-  nistas esfregavam. E Bach, o poeta, meditava sâbre a verdade e a beleza.  Fanny Logan sentiu que as l grimas lhe brotavam nos olhos. Tinha a  emoão f cil, sobretudo quand" se tratava de m£sica; e, quando estava

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  comovida, não se esforava para reprimir a comoão, mas entregava-se-  lhe de tâda a alma. Como aquela m£sica era bela, como era triste e, con-  tudo, reconfortante! Ela a sentia dentro de si mesma, como uma corrente  de sensaões deliciosas, coando-se lisamente, mas de maneira irresistivel,  por todo o labirinto complexo de seu ser. Seu pr¢prio corpo fremia e se  balanava em cadncia com a pulsaão e a ondulaão da melodia. Fanny  pensou no marido: a lembrana dle lhe veio na corrente da m£sica - a  lembrana do seu Eric muito, muito querido, morto havia quase dois  anos; morto - tão jovem ainda. As l grimas cresceram. Fanny as enxu-  gou. A m£sica era infinitamente triste; e no entanto consolava ... Admi-  tia tudo, por assim dizer: que o pobre Eric tivesse morrido prematura-  mente, que tivesse sofrido em sua doena, relutado em deixar a vida - a  m£sica admitia tudo. Exprimia tâda a tristeza do mundo, e, das profun-  dezas dessa tristeza, tinha o poder de afirmar, deliberadamente, tranqila- 

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mente, sem declamaões excessivas, que tudo, de certo modo, era bom e  aceit vel. Ela inclu¡a a tristeza dentro de alguma felicidade mais vasta,  mais ampla. As l grimas continuaram a brotar dos olhos da Sra. Logan;# 

mas eram - fosse como f¢sse -- l grimas felizes, a despeito de sua tris-  teza. Ela quisera exprimir a PoIly, sua filha, o que sentia. Mas Polly esta-  va sentada em outra fileira do audit¢rio. A Sra. Logan via-lhe a cabea,  as costas, duas filas na frente, e o pequeno pescoo delicado onde se viam  as prolas que o seu querido Eric lhe dera por ocasião de seu dcimo-  oitavo anivers rio, alguns meses apenas antes de morrer. E, s£bitamente,  como se sentisse que a mãe estava olhando para ela, como se compreen-  desse o que ela experimentava, Poily se voltou e lhe dirigiu um sorriso  r pido. A felicidade triste e musical da Sra. Logan ficou completa.  Os olhos da mãe de Polly não eram os £nicos que olhavam na direão  da jovem. Vantajosamente colocado atr s dela, a um lado, Hugo Brockle  estudava-lhe o perfil com admiraão. Como era encantadora! Pergunta-

  va-se mentalmente se teria coragem para lhe dizer que tinham brincado  juntos, quando crianas, nos jardins de Kensington. Terminada a m£sica,  iria ter com Polly e lhe diria afoitamente:  - J fomos apresentados um ao outro. . . dentro dos nossos carrinhos  de beb...  Ou, para se mostrar espirituoso duma maneira menos convencional:  - Foi voc que me bateu na cabea com uma raqueta de volante ...  Bidiake, correndo os olhos irrequietos pelo salão, dera com Mary  Bettertori. . . Mary Betterton em pessoa - aqule monstro! P"s a mão  em baixo da poltrona e tocou na madeira. T¢das as vzes em que via  alguma coisa desagrad vel, John Bidlake sentia-se mais tranqilo se po-  dia tocar num objeto de madeira. Não acreditava em Deus, naturalmente;  gostava de contar hist¢rias ofensivas a respeito dos padres. Mas a madei-

  ra, a madeira. . . - havia nela qualquer coisa... E lembrar-se de que  chegara a amar loucamente aquela mulher, havia vinte, 22 ... nem ousa-  va pensar em quantos anos fazia que aquilo se passara. Como estava gor-  da, velha, horrenda! A mão tornou a descer ao p da cadeira. Bidlake  desviou os olhos, esforou-se por pensar em qualquer coisa que não f"sse  Mary Betterton. Mas as recordaões da poca em que Mary era jovem se  lhe impunham. Nesse tempo ainda costumava montar. Reviu-se s¢bre o  seu cavalo negro; Mary, num baio. Tinham ido muitas vzes passear jun-  tos. Era na ocasião em que estava pintando o terceiro e o melhor de seus  grupos de Banhistas. Que quadro, bom Deus! Mas ...quela poca Mary j

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  era uM tanto fornida para o g"sto de muitos ... Mas não para o seu; nun-  ca fizera objeões a uma gordura razo vel ... Estas mulheres de hoje,  que querem dar a impressão de postes de iluminaão p£blica ... Bidlake  olhou,ainda um instante para Mary e estremeceu. Detestava-a por v-la  tão repulsiva, depois de j ter sido tão encantadora. E le era quase vinte  anos mais velho do que aquela mulher. 

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CAPITULO III 

Dois andares acima, entre o piano nobile* e a mansarda que servia de  alojamento aos criados, Lorde Edward Tantamount estava ocupado em  seu laborat¢rio.  Os mais jovens dos Tantamourits eram em sua generalidade militares.  Mas, como o herdeiro fosse um inv lido, o pai de Lorde Edward o havia  destinado ... pol¡tica, carreira que os filhos mais velhos tinham sempre ini-  ciado tradicionalmente nos Comuns e majestosamente continuado na  Cmara dos Pares. Mal atingira Lorde Edward a maioridade, deram-lhe  um eleitorado para cultivar. Cultivou-o como filho obediente. Mas como

  odiava o falar em p£blico! E quando se encontra um poss¡vel eleitor, que  diabo se deve dizer? Muito longe de se entusiasmar, Lorde Edward nem  sequer se lembrava dos pontos essenciais do programa do partido conser-  vador. . . Não, a pol¡tica não era decididamente a'sua vocaão.  - Mas que  que te interessa? - perguntara-lhe o pai. E Lorde  Edward não sabia; nisso estava a dificuldade. A £nica coisa que lhe dava  verdadeiramente prazer era ouvir concertos. Mas  claro que não pode-  mos passar t"da a vida a ouvir concertos. O quarto marqus não p"de  dissimular a sua c¢lera e a sua decepão.  - Òsse rapaz  um imbecil - dizia.  E o pr¢prio Lorde Edward estava inclinado a dar-lhe razão. Não pres-  tava para nada; era um fracasso; o mundo não tinha lugar para le. Havia  ocasiões em que pensava no suic¡dio.

  - Se ao menos le fizesse as suas farrinhas de m"o. . . - lamenta-  va-se o pai.  Mas o jovem, se tal era poss¡vel, interessava-se ainda menos pelas far-  ras do que pela pol¡tica.  - E não  nem mesmo um sportsman**! -continuava a acusaão.  Era verdade. A matana de aves, mesmo em companhia do Pr¡ncipe de  Gales, deixava Lorde Edward completamente frio ... quando não lhe  inspirava uma leve repulsa. Preferia ficar em casa a ler, vagamente,  inconstantemente, um pouco de tudo. Mas a pr¢pria leitira era incapaz  de satisfaz-lo. O melhor que dela se podia dizer era que afastava os  pensamentos tristes e matava o tempo. Mas de que servia isso? Matar o  tempo com um livro não era melhor, intrinsecamente, do que matar

  *Andar nobre. (N. do E)  ** Esportista. (N. do E) 

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faisões, e o tempo por cima, com uma espingarda. Òle podia bem cont¡-  nuar a ler assim o resto de seus dias - mas isso não o levaria jamais a  realizar fosse o que fosse.  Na tarde de 18 de abril de 1887, estava 1,orde Edward sentado na

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  biblioteca de Tantamoutit House, pensando s"bre se a vida valia a pena  de ser vivida, e sâbre qual das duas maneiras de lhe p"r trnio era  prefer¡vel: afogar-se ou meter uma bala no corpo. Foi no dia em que o Ti-  mes publicara a carta de um fals rio, atribu¡da a Parnell, em que ste se  solidarizava com os assassinos de Phoenix Park. O quarto marqus se# 

encontrava num estado de agitaão apopltica desde o alm¢o da manhã.  No clube, não se falava noutra coisa. "Deve ser muito importante", não  cessava de repetir Lorde Edward de si para si. Mas foi-lhe imposs¡vel  interssar-se sriamente pelo parnellismo ou pelo crime duma maneira  geral. Ap¢s ter escutado durante algum tempo o que se dizia no clube,  voltou para casa desesperado. A porta da biblioteca se achava aberta:  entrou e atirou-se numa cadeira, sentindo-se extremamente sem f"ras,  como, se voltasse duma caminhada de 50 quilâmetros. "Devo ser um  idi¢ta", afirmava a si mesmo ao pensar nos entusiasmos pol¡ticos dos  outros e na sua pr¢pria indiferena. Era modesto demais para atribuir aos  outros a idiotice. "Sou um caso perdido, um caso perdido."  Gemeu em voz alta, e no silncio erudito da vasta biblioteca aqule  ru¡do era aterrador. A morte; o fim de tudo; o rio; o rev¢lver ... Passou  o tempo. Lorde Edward descobriu que era incapaz de pensar no que quer  que fosse com atenão e de um modo coerente - nem mesmo na morte.

  A pr¢pria morte era fastidiosa. O £ltimo n£mero da Quarterly Rewiew  estava em cima da mesa, ao seu lado. Talvez a revista o enfastiasse menos  do que a morte. Lorde Edward apanhou a, abriu-a ao acaso e surpreen-  deu-se a ler um par grafo no meio de um artigo a respeito de algum que  se chamava Claude Bernard. Nunca tinha ouvido falar em Claude Ber-  nard. Devia ser um francs, supunha le. E que viria a ser a funão  glicognica do f¡gado? Algum assunto cient¡fico, evidentemente. Seus  olhos percorreram r...pidamente a p gina. Havia uma passagem entre  aspas; era uma citaão tirada dos pr¢prios escritos de Claude Bernard: 

"O ser vivente não constitui uma exceão ... grande  harmonia natural que faz com que as coisas se adap-  tem umas ...s outras; le não rompe nenhum acorde;

  não est em contradião nem em luta com as foras  c¢smicas gerais. Longe disso,  um elemento do  concrto universal das coisas, e a vida do animal, por  exemplo, não passa dum fragmento da vida total do  universo". 

O jovem Tantarnount leu estas linhas, ociosamente a princ¡pio, depois 

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com mais cuidado, e tornou a ]-las v rias vzes, forando a atenão. "A  vida animal não passa dum fragmento da vida total do universo." E o  suic¡dio, então? Um fragmento do universo que se destru¡a? Não, destruir  não era a palavra exata; sse fragmento universal não se poderia destruir  mesmo que o quisesse. Mudaria apenas o seu modo de existncia. Muda-  ria ... Pedaos de animais e de plantas se transformavam em sres  humanos. O que foi um dia a coxa dum carneiro ou f"lhas de espinafre se  tornou mais tarde parte integrante da mão que escreveu, do crebro que

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  concebeu o movimento lento da S¡qfonia J£piter. E chegara o dia em que  36 anos de prazeres, de sofrimentos, de apetites, de am"res, de pensamen-  tos,de m£sica, juntamente com infimitas potencialidades não realizadas  de melodia e de harmonia, tinham vindo adubar um recanto desconhecido  num cemitrio vienense, para se transformarem em relva e em flores -  relva e fl"res que, por sua vez, tinham voltado de nf3vo a ser carneiros,  cujas coxas por seu turno tornaram a transformar-se em outros m£sicos,  cujos corpos, por seu turno ... Tudo isso era evidente, mas para Lorde  Edward foi uma revelaão. S£bitamente e pela primeira vez le teve  conscincia de sua solidariedade com o mundo. Òsse despertar da  conscincia foi extraordjn...riamente emocionante; o marqus se ergueu da  cadeira, p"s-se a caminhar dum lado para outro no compartimento, num  estado de grande agitaão. Seus pensamentos eram confusos, mas a  confusão agora era brilhante e violenta, e não mais sombria e brumosa-  mente lnguida como de ordin rio.  "Talvez, quando estive em Viena o ano passado, eu tenha consumido  mesmo um pedao da substncia de Mozart. Podia ter sido num wiener  Schnitze]*, ou numa salsicha, ou mesmo num copo de cerveja. Comu-  nhão, comunhão f¡sica. E aquela representaão perfeita da Flauta M gica  - outra espcie de comunhão, ou talvez a mesma, no fundo. Transubs-  tanciaão, canibalismo, qu¡mica. No final de contas tudo se reduz ...  qu¡mica,  claro. Pernas de carneiro e espinafre ... tudo qu¡mica.  Hidrognio, oxignio ... E o resto, que ? Oh! Não saber ...  de dar  raiva, sim, de dar raiva! Aqules anos todos passados em Eton. Versos

  latinos. Para que diabo serviram les? 'En! distentaferuni perpingues  ubera vaccae **~ Por que não me ensinaram coisas sensatas?. . . 'Um  elemento do concrto universal das coisas. . .' Dir~se-ia que isto   m£sica; harmonias, contraponto e modulaões. Mas  preciso ter  estudado para compreender. M£sica chinesa, . " não se compreende  patavina. . . O concrto universal ... isto  m£sica chinesa para mim,  graas a Eton. Funão glicognica do f¡gado, - no que me diz respeito,   como se f¢sse l¡ngua bantW. Que humilhaão! Mas eu posso aprender,  eu hei de aprender, eu hei. . . " 

Bife ... Milanesa. (N. do E.)  'E~S, as vacas Muilo gordaS tra.-eM as ffias distendidas. " (Nr. do E.) 

36 Lwde Edward foi tomado de uma alegria extraordin ria; nunca se sen-

  tir* t¡0 feliz em t"da a sua vida.  Naquela noite anunciou ao pai que não se apresentaria como candidato  ao Parlamento. Ainda agitado pelas revelaões da manhã a respeito do# 

~ismo, o velho ficou furioso. Lorde Edward permaneceu absoluta-  mffite imperturb vel; tinha tomado uma decisão. No dia seguinte fez  pilb&w um an£ncio em que pedia um professor particular. Na primavera

  e& outro ano estava em Berlim, trabalhando com Du Bois-Reymond.  ~ então quarenta anos se passaram. Os estudos s"bre a osmose,  que lhe haviam dado indiretamente um casamento, deram-lhe tambm  uma reputaão. Seus trabalhos sâbre a assimilaão e o crescimento eram  cl~ Mas o que le considerava como a obra verdadeira de sua vida  - o grande tratado te¢rico de biofisica - estava ainda inacabado. "A  vida do animal não passa dum fragmento da vida total do universo." As  paiwas de Claude Bernard tinham sido o tema de t"da a sua existncia,  h= como a sua inspiraão original. O livro no qual trabalhava havia  tutos anos não passava dum desenvolvimento daquela tese, duma ilus-

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  tr~ matem tica e quantitativa dela.  Em cima, no laborat¢rio, o trabalho di rio tinha justamente comeado.  Lorde Edward preferia trabalhar ... noite. As horas do dia lhe eram  desagrad...veimente barulhentas. Almoava ... 1 e meia, fazia um passeio a  p de uma hora ou duas ... tarde, e voltava para ler ou escrever at a hora  do lanche, ...s 8. ·s 9 ou 9 e meia, fazia trabalhos pr ticos com seu assis-  tente, terminados os quais punham-se ambos a trabalhar de noite no gran-  de livro, ou entregavam-se ... discussão de seus problemas. · 1 hora da  manhi, Lorde Edward jantava e aproximadamente ...s 4 ou 5 ia para a ca-  ma.  Am~cida e em fragmentos, a Su¡te em Si Menor vinha flutuando do  IWan& hall e chegava aos ouvidos dos dois homens, n¢ laborat¢rio. Òles  estavam demasiadamente ocupados para ter conscincia de que a ouviam.  - O f¢rceps - pediu Lorde Edward ao assistente.  Tinha a voz profunda, indistinta, e de alguma maneira sem cont"rno  bem definido. `Uma voz felpuda", dissera dela sua filha Lucy, quando  a" criana.  Midge lhe estendeu o belo instrumento brilhante. Lorde Edward emitiu  um ru¡do Profundo que significava "obrigado", e voltou-se com o f¢rceps  PUA o Ia& da lagartixa anestesiada que estava estendida sâbre a mesa  W~81 de operaão. Illidge o observava com um "lho cr¡tico e apro-  vador- O velho operava not velmente bem. Ningum julgaria que uma  criatura grande e pesada como le fosse capaz de trabalho tão delicado;

  ~ -lo era um prazer,  - Pronto! - disse por -fim o marqus, empertigando-se o quanto lhe  P~am as costas curvadas de reumatismo. - Acho que tudo foi  bem... Que dizes? 

37# 

Elidge fz com a cabea um gesto de aprovaão.  - Perfeitamente bm - respondeu le com uma inflexão de voz que  certamente não tinha sido adquirida em nenhum dos antigos e dispen-

  diosos templos do saber. Era o sotaque de Lancashire. filidge era um ho-  mem pequeno, que tinha cabelos ruivos e um rosto infantil pintalgado de  sardas.  A lagartixa comeava a acordar. Illidge p"-la em lugar seguro. O ani-  mal não tinha cauda; perdera-a, havia oito dias, e naquela noite o peque~  no rebento de tecido rejuvenescido, que normalmente se transformaria nu-  ma cauda nova, fora removido e enxertado no c"to da pata dianteira  prviamente amputada. Transplantado para essa nova posião, o rebento  se transformaria em pata ou continuaria a se desenvolver incongruen~  temente como cauda? A primeira experincia tinha sido feita com um  rebento de cauda recm-formado: e le se transformara devidamente em  pata. Depois, na seguinte, haviam dado ao rebento o tempo de se desen-  volver consider velmente, antes de o transplantar; e le se revelara

  demasiadamente avanado em sua evoluão caudal para poder adaptar-se  ...s condiões novas; os dois cientistas haviam assim fabricado um mons-  tro que tinha uma cauda onde devia ter um membro. Naquela noite les  faziam a experincia com um rebento de idade intermedi ria.  Lorde Edward tirou um cachimbo do b"lso e se p"s a ench-lo, ao pas-  so que olhava a lagartixa com ar meditativo.  - Ser interessante ver o que vai acontecer desta vez -- disse, coma  sua voz profunda e indistinta. -- Segundo penso, estamos justamente no  fimite entre. . . - Deixou a frase incompleta; era-lhe sempre dir¡cil achar

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  as palavras exatas para exprimir os seus pensamentos. - O rebento terdificuldade na escolha.

  - "Tâ be or not to be disse Blidge gaiatamente, desatandoa rir.  Vendo, porm, que Lorde Edward não dava nenhum sinal de achar  graa, conteve-se. Ia sendo inconveniente outra vez ... Ficou aborrecido  consigo mesmo e tambm, desrazo...velmente, com o "Velho".  Lorde Edward encheu o cachimbo.  - O rabo se transforma em pata - disse em tom meditativo. - Por  que mecanismo? Peculiaridades qu¡micas na vizinhana dos. . . ? Est

claro que não pode ser o sangue. Ou achas que isto tem algo que ver com  a tensão eltrica? Porque ela varia, naturalmente, segundo as partes do  corpo. Afinal, por que não nos contentamos com proliferar ao acaso, co-  mo os cnceres ... ? Crescer de ac"rdo com uma forma definida  coisa  muito improv vel, se pensarmos bem. Muito misterioso e ...  E a sua voz deg~nerou num murm£rio profundo e rouco.  filidge escutava, com ar de reprovaão. Quando o Velho se lanava as-  sim s"bre os problemas maiores e fundamentais da biologia, não se sabia 

"Ser ou não ser. "(N. do E.) 

nunca onde ia parar. Era capaz at de se p"r a falar s"bre Deus ...

  Francamente, at fazia corar ... filidge estava decidido a impedir que  uma coisa tão ignominiosa acontecesse naquela noite.  - ( pr¢ximo experimento que vamos fazer com estas lagartixas# 

disse le Com sua mais animada voz profissional - ser atacar o sistema  nervoso e ver se h alguma influncia sâbre os enxertos. Suponhamos, por  exemplo, que cortamos um fragmento da espinha...  Mas Lorde Edward não escutava o assistente. Tinha retirado o  cachimbo da bâca e erguido a cabea, ¡nclinando-a ao mesmo tempo para  um lado. Franzia as sobrancelhas, como se estivesse fazendo um esf"ro

  para apanhar e recordar qualquer coisa. Levantou a mão num gesto que  ordenava silnci o; Illidge deteve-se no meio da frase e Ficou tambm  escutando ... Um desenho de melodia se tracejou levemente no silncio.  - Bach? - perguntou Lorde Edward num murm£rio.  O s"pro de Pongileoni e a esfregaão dos violinistas ariânimos tinham  sacudido o ar do grande ha11, tinham p¢sto em vibraão os vidros das  janelas que davam para le; e estas por sua vez tinham sacudido o ar do  apartamento de Lorde Edward, do lado mais afastado. O ar p"sto em  vibraão havia sacudido a membrana tympani* de Lorde Edward; a  cadeia de ossos - martelo, bigorna, estribo -- tinha sido posta em movi-  mento e fora agitar a membrana da janela oval, criando unia tempestade  infinitesimal no fluido do labirinto. Os filamentos terminais do nervo  auditivo estremeceram comor algas num mar bravo; um grande n£mero de

  milagres obscuros se efetuaram no crebro, e Lorde Edward murmurou  ext ticamente: - Bach! - Sorriu de prazer, seus olhos cintilaram. A  rapariga cantava para si mesma sob as nuvens flutuantes. E então o  fil¢sofo solit rio como a nuvem se p"s a meditar poticamente.  - O que devemos fazer mesmo  descer para escutar - disse o dono  da casa. Levantou-se. - Vem - convidou. - O trabalho pode esperar.  E nem tâdas as noites temos ocasião de escutar coisas como esta.  - Mas... e as nossas roupas? - perguntou filidge, num tom de  d£vida. - Não posso descer assim como estou. - Examinou-se, bai-  xando os olhos. O seu terno, mesmo quando n"vo, nunca passara dum

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  terno barato. E a idade, j se v, não o tinha melhorado.  -. Oh! Isso não tem importncia. - Um cão que farejasse lebre não  revelaria uma impacincia mais indecente do que Lorde Edward ao som  da flauta de Pongileoni. Tomou o assistente pelo brao, empurrou-o para  a porta e o levou ao longo do corredor, rumo da escada.  -  apenas uma festinha. . . - continuou le. -- Lembro-me de ter  ouvido minha mulher dizer ... Algo muito sem cerininia... E alm  disso - acrescentou, inventando novas desculpas para justificar a violn- 

*Membrana timpnica. (N. do E.) 

39 

I# 

jia de seu apetite musical - n¢s nos podemos insinuar l dentro sem  que... Ningum dar pela nossa presena.  filidge tinha as suas d£vidas.  - Desconfio que não se trate duma pequena reunião. . . - obtempe-  rou; tinha ouvido chegar os autom¢veis.  - Não importa, não importa - interrompeu-o Lorde Edward, num

  desejo irreprim¡vel de Bach.  Illidge deixou de resistir. Havia de parecer rid¡culo, horrivelmente  rid¡culo, pensava, com o seu reluzente terno de sarja azul. Mas talvez,  refletindo bem, Fosse ainda melhor aparecer vestido de sarja azul e  brilhante - saindo diretamente do laborat¢rio, no flun de contas, e sob a  proteão do dono da casa (que por sua vez tambm vestia um jaquetão de  tweed) - do que com seu velho terno de noite, o qual, como le tinha  notado das outras vzes em que penetrara no mundo brilhante de Lady  Edward, era deplor...velmente ordin rio e mal cortado. Melhor seria dife-  rir em tudo dos ricos e dos elegantes - ser um visitante que ca¡sse de um  outro planta intelectual - do que um imitador esnobe de dcima-quinta  ordem. Vestido de azul, estaria sem d£vida exposto aos olhares, como  uma curiosidade; mas metido numa roupa preta de mau talhe (como um

  criado), seria desdenhosamente ignorado, seria desprezado, por tentar  aparentar, sem xito, o que manifestamente não era.  filidge encheu-se de coragem para representar com firmeza e mesmo  com agress¡vidade o papel de visitante marciano.  A entrada de ambos foi ainda mais embaraosamente not vel do que  Illidge imaginara. A grande escada de Tantamount House desce do pr¡-  meiro andar em duas ramificaões que se juntam, como um par de rios  iguais, para se precipitarem no ha11, numa s¢ catarata arquitetura] de  m rmore de Verona. Desemboca sob as arcadas, no meio de um dos  lados do quadril tero coberto, em face do vest¡bulo e da porta de entrada.  Quem entra, da rua, domina o hall e v, atravs do arco central da arcada  fronteira, os largos degraus e as balaustradas brilhantes que sobem at  um patamar onde uma Vnus de Canova - orgulho da coleão do ter-

  ceiro marqus - se levanta s"bre um pedestal num nicho, escondendo,  ou, melhor, procurando esconder sem o conseguir, com um gesto pudico  mas faceiro de ambas as mãos, os seus marm¢reos encantos. F"ra ao p  dsse declive triunfal de m rmore que Lady Edward tinha instalado a  orquestra; seus convidados estavam sentados, em fileiras cerradas, na  frente dos m£sicos. Quando filidge e Lorde Edward dobraram o ngulo,  na frente da Vnus de Canova, caminhando na ponta dos ps, com ar de  conspiradores, e aproximando-se da m£sica e da multidão de ouvintes -  viram-se de s£bito convertidos no foco de uma centena de pares de olhos.  Uma rajada de curiosidade sacudiu os convidados reunidos. A aparião

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  daquele enorme velho curvado que sa¡a dum mundo tão diferente do  dles, fumando o seu cachimbo e vestido com um jaquetão de tweed, 

40 

pareceu-lhes estranha e cheia de press gios. Lorde Edward tinha vaga-  niente O ar dum fantasma familiar pâsto ... sâlta; ou de um dsses  inonstros que s¢ assombram os pal cios das melhores fam¡lias, das mais  aristocr ticas. A Bsta de Glamis, o Minotauro em pessoa, não teriam# 

suscitado mais intersse do que Lorde Edward. Levantaram-se lunetas,  esticaram-se pescoos ... direita e ... esquerda, em movimentos desencon-  trados, pois cada observador procurava enxergar por tr s do obst culo  que se lhe antepunha. Lorde Edward, sentindo s£bitamente todos aqules  olhares curiosos, ficou tomado de mdo. A conscincia de ter cometido  um ~o social apoderou-se dle; tirou o cachimbo da b"ca, guardou-o,  furnegante ainda, no bâlso do jaquetão. Parou, irresoluto. Fugir ou  avanar? Voltou-se para um lado, depois para o outro, fazendo com que  todo o seu corpo, curvado desde as ancas, balouasse num curioso movi-  mento pendular, como a oscilaão lenta e pesada dum pescoo de camelo.  Por um instante teve desejos de bater em retirada. Mas o amor a Bach foi

  mais forte que o terror. Lorde Edward parecia um urso que o cheiro de  melao obriga, malgrado os seus receios, a visitar o campo dos caado-  res; era como o amante que est pronto a fazer face ao marido armado e  exasperado, bem como ao Tribunal de Div¢rcios, so para passar uma ho-  ra nos braos da amada. Avanou, descendo os degraus na ponta dos ps,  agora corri um ar mais acentuado de conspirador - era como um Guy  Fawkes descoberto, mas que esperasse ainda, contra tâda a razão, poder  fugir aos olhares, portando-se como se a Conspiraão da P¢lvora conti-  nuasse a desenrolar-se de ac"rdo com o plano estabelecido. Illidge cami-  nhava atr s dle. Seu rosto tinha ficado muito vermelho no embarao do  primeiro momento; mas, a despeito dsse embarao, ou talvez por causa  dle, o assistente seguia Lorde Edward com uma espcie de fanfarronice,  uma das mãos no b"lso, um sorriso nos l bios. Voltava os olhos com cal-

  ma dum lado para outro, dominando a multidão. Seu rosto tinha uma  expressão divertida e desdenhosa. Demasiadamente ocupado com fazer o  papel de habitante de Marte, Illidge não olhava o caminho. De repente  sentiu faltar-lhe o apoio sob os ps naquela escada monumental com que  não estava familiarizado, aquela escada de degraus desmesuradamente  largos e baixos. Escorregou e ficou a se debater violentamente ... beiradu-  ma queda, num agitar desordenado de braos, at que conseguiu equili-  brar-se, firmando-se milagrosamente nos ps, uns dois ou trs degraus  mais abaixo. Retomou a descida com tâda a dignidade que lhe foi  Poss¡vel conseguir no momento. Estava furioso e odiava os convidados de  Lady Edward, todos, todos, sem exceão. 

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CAPITULO IV 

Pongileoni excedeu-se a si mesmo na "Badinerie" fimal. Os axiomas

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  euclidianos, de mãos dadas com as f¢rmulas da est tica elementar,  proclamaram feriado. A aritmtica celebrou uma b rbajra saturnal; a l-  gebra fz cabriolas. A m£sica findou numa orgia de folguedos matem ti-  cos. Houve aplausos. Tolley inclinou-se num cumprimento, com t"da a  sua graa habitual; Pongileoni inclinou-se; at os m£sicos an"nimos se  inclinaram. O audit¢rio afastou as cadeiras e levantou-se. T"da a  tagarelice contida explodiu em torrentes.  - Não achas que o Velho estava maravilhosamente engraado?  Polly Logan encontrara uma amiga.  - Sim. E tambm o homenzinho de cabelos c"r de cenoura.  - Pareciam Mutt e Jeff.  Eu julguei que ia morrer de tanto rir - disse Norah.  Que feiticeiro! - Polly falava agora num cochicho vibrante de  emoão, inclinando-se para a frente e arregalando os olhos, como para  exprimir em pantomima dram tica, ao mesmo tempo que em palavras, o  mistrio do velho m gico. - Um bruxo!  - Mas que  que lefaz l em cima?  - Corta em pedaos sapos e lagartixas e o mais que segue ...  respondeu Polly. 

âlho de rato, rabo de arraia,  Perna de pato, p de cobaia. 

Recitou com del¡cia, embriagada pelas palavras. E continuou:

  - Pois le pega as cobaias e cruza-as com serpentes. Podes imaginar  isto: uma cruza entre uma cobra e uma cobaia?  - Ui! - gritou a outra, sentindo um calafrio. - Mas se o Velho s¢  se interessa por coisas dessa ordem, por que foi então que casou com Hil-  da? Isto  que eu sempre desejei saber ...  - Por que foi que ela casou com le? - Aqui a voz de Polly desceu  de n"ve a um murin£rio teatral. Gostava de dar a t"das as coisas um sa-  bor sensacional, excitante - tão excitante e sensacional como o que  tinham ainda para ela. Contava apenas vinte anos. -- Havia muito boas  razões para isso.  - Sim,  o que eu acho. 

, I

  42 

- E lembra-te de que ela era canadense, o que torna as razões ainda 

inais fortes-admira  de como Lucy ...  - A gente se  - Psiu!  A outra se voltou. ileoni? - exclamou ela# 

- Mas não estava mesmo esplndido o Pong em voz muito alta e com uma presena de esp¡rito supinamente exagera-

  da.  - Admirabil¡ssimo! - respondeu Polly, gritando como se estivesse  nun, palco de Drury Lane. - Ah! A¡ vem Lady Edward. - Ambas se  njostraram enormemente surpreendidas e encantadas. - Est vamos  justamente falando da maneira maravilhosa como Pongileoni tocou.  - Estavam? - fez Lady Edward, sorridente, olhando ora para uma  ora para outra.

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  Tinha uma voz profunda e cheia; falava vagarosamente, como se tudo  quanto dizia rosse srio e importante.  - Vocs são verdadeiramente am veis - continuou, carregando  vigorosamente nos rr. - Pongileoni  italiano - acrescentou, enquanto  ú seu rosto, onde o sorriso se apagara, assumia um ar grave. - E  o que 

ú torna ainda mais admir vel.  Dito isto passou adiante, deixando as duas m"as a se entreolharem,  atarantadas e vermelhas.  Lady Edward era uma mulher pequena e delgada; tinha uma elegncia  de linhas que, em vestido decotado, comeava visivelmente a tender para  a angulosidade ¢ssea, da mesma maneira que os belos traos aquilinos de  seu rt)sto alongado e fino. Uma mãe francesa e talvez, nos £ltimos tem-  pos, a arte do cabeleireiro explicavam o negrume de azeviche da sua cabe-  leira. Tinha a pele branca e opaca. Os seus olhos, debaixo de sobrance-  lhas negras e arqueadas, possu¡am aqule desassombro, aquela insistncia 

no olhar que  a caracter¡stica de todos os olhos muito sombrios num ros-  to p lido. A sse desassombro genrico Lady Edward juntava certa  insolncia cndida do olhar fixo e da expressão de vivacidade ingnua  que era muito sua. Eram olhos de criana, "mais diun enfant terrible`  como John Bidiake tinha prevenido um amigo francs que levara para ve-  la. Òsse colega francs teve ocasião de fazer a descoberta por sua pr¢pria  conta. Na mesa do alm"o viu-se sentado ao lado do cr¡tico que, referin-

  do-se aos seus quadros, escrevera que stes eram obra dum imbecil ou  dum gaiato. Lady Edward, com ar inocente, os olhos arregalados, entabu-  lara uma discussão s"bre arte. . . John Bidlake ficou furioso. Chamou-a 

... parte, findo o repasto, e lhe disse francamente o que pensava:  - Diabos levem tudo isso! O homem  meu amigo. Trago-o para te  ver. E  assim que o tratas! ... Esta  forte demais! 

* Mas de uma criana ferrivel. (N. do E.) 

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Nunca os olhos vivos e negros de Lady Edward brilharam com um bri  lho mais c ndido, nem sua voz revelou um timbre franco -canadense mai  desconcertante - porque ela sabia modificar seu acento ... vontade  tornando-o mais ou menos colonial, segundo lhe conviesse ser a menin  ingnua da estepe norte-americana ou a aristocrata inglsa.  - Mas que  que  forte demais? Que foi que eu fiz desta vez?  - Não me venhas com as tuas comdias ...

  - Mas não se trata de comdia. Não sei a que te referes, não tenho a  menor idia.  Bidlake lhe explicou o caso do cr¡tico.  - Tu sabias tão bem como eu. E agora, pensando bem no assunto,  lembro-me de que falamos do artigo dle não faz ainda uma semana!  Lady Edward franziu o sobrolho, como se tentasse recapturar uma  lembrana apagada.  -  verdade! -- exclamou por fim, olhando para o amigo com uma  expressão de horror e arrependimento. - Que desgraa! Mas tu sabes  que minha mem¢ria  um caso perdido ...

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  De tâdas as pessoas que conheo, a que tem melhor mem¢ria s tu.  Mas eu esqueo sempre - protestou ela.  Tu s¢ esqueces o que sabes que deves lembrar. Estas coisas aconte-  cem de uma maneira excessivamente regular para serem acidentais ...   que tu resolves volunt...riamente esquecer.  Que insensatez!  Se tivesses m mem¢ria - prosseguiu Bidlake -, poderias de vez  em quando esquecer que os maridos não devem ser convidados para  encontros com os amantes not¢rios de suas mulheres; podias esquecer  algumas vzes que os anarquistas e os autores dos artigos de fundo do  Morning Post não podem ser l muito bons amigos, e que os cat¢licos  piedosos não tm muito prazer em ouvir blasfemias da b"ca de ateus  profissionais. Podias acidentalmente esquecer tudo isto, se a tua mem¢ria  f"sse m . Mas, eu te garanto,  preciso uma mem¢ria de primeira ordem  para esquecer sempre e sempre. Uma mem¢ria de primeira ordem e  tambm um grande desejo de fazer travessuras.  Pela primeira vez desde o in¡cio da conversaão Lady Edward abando-  nou o ar srio e ingnuo. P"s-se a rir:  - Realmente, meu caro John, tu s supinamente rid¡culo!  Bidlake, enquanto falava, tinha recobrado o bom humor; por sua vez,  p"s-se tambm a rir.  - Toma nota - disse -, eu não ponho a menor objeão a que faas  brincadeiras com outras pessoas. Divirto-me com elas. Mas que tu as  faas comigo -- isso  que não!

  - Farei o poss¡vel para me lembrar disso na pr¢xima vez - disse Hil~  da com uma voz submissa, ol¡bando para o interlocutor com uma ingenui-  dade tão impertinente que Bidlake não p"de deixar de rir. 

4,1 # 

Uso se passara havia muito, anos; ela tinha cumprido a palavra e não  pMara mais peas ao amante. Mas com os outros continuava a mostrar-  se t¡o embarao samente inocente e esquecida como sempre. Nas rodas

  em quc ela se movia, suas faanhas eram legend rias. Os outros riam.  Mo havia v¡timas demais; ela era temida, mas não amada. No entanto,  ag suas festas eram muito concorridas; seu cozinheiro, seu provador de  ~ e seu fornecedor eram de primeira classe. O muito que se lhe  perdoava era por causa do dinheiro do marido. De resto, a sociedade de  Tiotamount House era variadamente e algumas vzes excntricamente  ~tre. Aceitavam os convites de Lady Edward e tiravam desforra falan-  do geial dela pelas costas. Entre muitas coisas chamavam-lhe esnobe e  caadora de celebridades. Mas uma esnobe - tinham de conceder aos  defensores dela - que ria das pompas e das grandezas em que vivia.  Uma caadora que colecionava celebridades com o fim de atorment -las.  Num meio em que uma inglsa da classe mdia se haveria de mostrar  *dwia e servil, Lady Edward se mostrava gaiatamente irreverente. Vinha

  do ~o Mundo; para ela as hierarquias tradicionais eram uma brinca-  deira - mas uma brincadeira pitoresca pela qual valia a pena viver.  - Ela poderia ser muito bem a hero¡na daquela anedota do americano  e dos dois pares inglses - dissera um dia o velho Bidlake. - Lembrami-  se? O americano entabulou conversaão com os dois inglses no trem,  achou-os encantadores e, desejando renovar mais tarde a camaradagem,  perguntou-lhes os nomes. "Meu. nome", diz um dles, " Duque de  Hampshire, e ste  meu amigo, o Senhor de Ballantrae." "Muito prazer  em conhec-los% diz o americano. "Permitam-me que lhes apresente meu  f£lio Jesus Cristo."  Hilda sem tirar nem p"r. E acontece ainda que ela

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  passa a vida precisamente a convidar pessoas cujos t¡tulos lhe parecem  assim c"micos e a se fazer convidar por elas.  estranho. - Bidlake  sacudiu a cabea. - Realmente muito estranho.  Abandonando as duas m"as desconcertadas, Lady Edward foi quase  derribada por um homem muito grande e corpulento, que atravessava  com velocidade perigosa o salão cheio de gente.  - Perdão! - fez le, sem baixar o olhar para ver quem estivera pres-  tes ajogar ao chão.  Seus olhos seguiam os movimentos de algum que se achava na outra  eXUMIdade: do salão; o homem tinha conscincia s¢rnente dum pequeno  obst culo, presuin¡velmente humano, visto como todos os obst culos das  redondezas eram humanos. Diminuiu a velocidade da marcha e deu um  Passo para o lado, de maneira a contornar o obst culo. Mas o obst culo  não era dos que se podem evitar f...cilmente.  Lady Edward alongou o brao e apanhou o homenzarrão pela manga.  - Webley! - gritou.  Everard Webley, fingindo não ter sentido a mão que lhe segurava a  manga e não ter ouvido a voz que pronunciava o seu nome, continuou a  45# 

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caminhar; não tinha prazer nem vagar para falar com Lady Edward. Mas  esta não admitia que sua presena Fosse esquecida: deixou-se arrastar ao  lado do homem, sempre agarrada a le.  - Webley! - repetiu. - P ra! Òpa!  E soube imitar o carroceiro do campo com tanto escndalo e dum mo  do tão verossim il mente r£stico que Webley foi obrigado a escut -la, com

  mdo de atrair a atenão e a hilaridade dos outros convidados.  Baixou o olhar para a dona da casa.  - Oh, s tu -- disse com dureza. - Desculpa, eu não tinha prestado  atenão.  O aborrecimento que le exprimia com o franzir das sobrancelhas e  com as palavras pouco corteses era metade sincero, metade fingido.  Webley achava que muita gente tem mdo da c¢lera alheia; cultivava por  isso a sua ferocidade natural. E essa ferocidade conservava os outros a  grande distncia, evitando-ihe aborrecimentos.  - Meu Deus! - gritou Lady Edward com unia expressão de terror  que era francamente uma caricatura.  - Desejas alguma coisa? - perguntou le no tom de voz que teria  usado para se dirigir a um mendigo de rua que o importuriasAe.

  - Pareces muito mal-humorado.  - Se  tudo o que me querias dizer, julgo que então posso ...  Lady Edward, enquanto isso, estivera a examin -lo com esp¡rito cr¡ti  co, cravando nle os seus olhos cndidamente impertirentes.  - Tu sabes - continuou ela, interrompendo-o no meio da frase, como  se não pudesse protelar um momento mais a proclamaão de sua grande  e s£bita descoberta - que devias representar o papel de Capitão Hook,  no Peter Pan? Pois  verdade. Tens a cara ideal para fazer o rei pirata.  Não  mesmo, Sr. Babbage?  Dirigiu-se por acaso a filidge, que passava no momento, desconsola-

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  damente solit rio no meio da multidão de estranhos.  - Boa noite -- disse o homenzinho. A cordialidade do sorriso de  Lady Edward não chegava a compensar de todo o insulto do esqueci-  mento de seu nome.  - Webley, ste  o Sr. Babbage, que auxilia o meu marido em seus  trabalhos.  Webley, numa inclinaão de cabea, tomou remotamente conheci-  mento da existncia de Illidge.  - Mas o senhor não acha, Sr. Babbage, que le se parece corri um rei  pirata? - insistiu Lady Edward. - Examine-o bem.  Illidge riu, constrangido.  - E que ... não tenho visto muitos reis piratas...  - Est claro - exclamou Lady Edward -, eu tinha esquecido de  explicar; le  mesmo um rei pirata. Na vida real. Não , Webley?# 

Everard Webley riu desta vez.  - Sim, porque ste - explicou Lady Edward, voltando-se conf¡den- 

cialmente para Illidge -, ste  o Sr. Everard Webley. O chefe dos  "lses Livres. O senhor j viu sses homens que usam uniforme verde, 

como os coristas das operetas?Aqule, pois, pen-  Illidge sorriu ri, alicio samente, inclinando a cabea.  sava o assistente de Lorde Edward, era Everard Webley. O fundador e  chefe da Confraternidade dos Inglses Livres - a B. B. F., Brotherhood  of Br¡tish Freemen, ou the Bloody Buggering Fools*, como lhe chama-  Vam os ~os. Urna deriorrinaão inevit vel; porque, como observara  certa vez, em artigo dedicado aos Inglses Livres, o extremamente bem 

informado correspondente do Mgaro, "les initiales B. B. F. ont, pour le  public anglais, une signification plut¢t pjorative"**. Webley não tinha  pensado naquilo quando dera tal nome ao seu bloco. filidge sentiu prazer  em refletir que le agora era obrigado a lembrar-se da sua distraão com  muita freq£ncia.

  - Se j terminaste os teus gracejos - disse Everard -, eu me retiro.  1'Mussolini de meia tigela!", pensava filidge. "E foi feito mesmo para  representar sse papel." filidge tinha um ¢dio especial e pessoal a quem  quer que fosse alto e belo, ou a quem parecesse distinguir-se de uma  maneira ou de outra. Quanto a le, era pessoalmente um homem pequeno, 

parecia um gar"to de rua crescido. "Grande asno!"  - Espero que não tenhas ficado ofendido por nada do que eu disse.  Ficaste?  Lady Edward formulou a pergunta com um ar de ansiedade e  contrião.  filidge recordou-se duma caricatura pol¡tica do Daily Herald. "Os

  Inglses Livres", Webley tivera a insolncia de dizer, "existern para  garantir a posião da inteligncia no mundo." A caricatura mostrava  Wcbley e meia d£zia de seus bandidos fardados matando um oper rio a  pontaps e cacetadas. Atr s do bando, um capitalista de cartola olhava a  cena com ar de aprovaão. E s"bre o seu ventre enorme se lia a palavra  "INTELIGÒNCIA".  - Não est s ofendido, Webley? - repetiu Lady Edward.  - Nem por sombras. Acontece apenas que tenho um pouco de pres-  sa. . . Tu compreendes - explicou le com a sua voz mais acetinada  tenho que fazer. Trabalho, se  que tu sabes o que isso significa. . .

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  Illidge desejou que a alfinetada tivesse sido dada por outro qualquer.  Tipo abjeto! Illidge era comunista.  Webley deixou-os. Lady Edward viu-o abrir caminho atravs da multi-  dio.  - Parece uma m quina a vapor. Que energia! Mas tão suscet¡vel ...  Òstes pol¡ticos são piores do que atrizes. Que vaidade! E o meu caro 

* ~sfortemente injuriosos que não se podem traduzir com exatidão em portugus.(N.  do EJ  ** "As iniciais B_8.F. tm, para o p£blico ingls, um sign~ficado bastante pejorativo. "(N# 

do E.)# 

Webley não tem l muito senso de humor. Quer ser tratado como se f"ss  j a sua pr¢pria est tua colossal, erguida por uma naão cheia de admi

  raão reconhecida. (Os rr de Lady Edward rugiam como leões). Duma  maneira p¢stuma, se  que me fao entender. Como uma grande figura  hist¢rica. Acontece que, quando o vejo, nunca me lembro de que le  na  realidade Alexandre Magno. Sempre me engano, tomando-o simples-  mente por Webley.  filidge riu. Descobria agora que tinha uma simpatia real por Lady  Edward. Aquela criatura sentia as coisas como elas devem ser sentidas.  Parecia mesmo estar, em matria de pol¡tica, do lado da razão.  A dona da casa continuou:  - Não  que sses Inglses Livres deixem de ser coisa muito boa...  A simpatia de Illidge comeou a dissipar-se com a mesma rapidez  com que brotara. - Não acha, Sr. Babbage?  O homenzinho fez uma careta.

  - Para falar a verdade. . . - comeou.  - A prop¢sito - disse Lady Edward, interrompendo o que teria sido  um coment rio admir...velmente sarc stico aos Inglses Livres de Webley  -, o senhor deve ter mais prudncia ao descer aquela escada. Porque ela   terT¡velmente escorregadia.  filidge corou.  - Oh! ... de modo nenhum. . . - murmurou le, corando ainda  mais forte, transformando-se numa verdadeira beterraba at a raiz dos  cabelos c"r de cenoura, ao perceber a imbecilidade do que tinha dito. A  sua simpatia baixou ainda mais de n¡vel.  - Sim, bastante escorregadia, em todo caso - insistiu polidamente  Lady Edward, carregando eriffiticamente nos rr. - Quais foram os traba-  lhos que o senhor Rez esta noite com Edward? - continuou. - Nem

  imagina como isso me interessa.  Illidge sorriu.  - Bem, se a ~enhora realmente quer saber, estivemos trabalhando na  regeneraão das partes desaparecidas das lagartixas. - Entre as lagarti-  xas le se sentia mais ... vontade: um pouco da sua simpatia por Lady  Edward voltou.  - Lagartixas? Òsses bichinhos que andam pelas paredes? - filidge  fez com a cabea um sinal afirmativo. - Mas como  que les perdem as  partes de que o senhor falou?  - No laborat¢rio - explicou o outro. - E perdem porque n¢s as

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  cortamos.  - E elas crescem de nvo?  - Sim, crescem de n"vo.  - Deus meu! - fez Lady Edward. - E dizer-se que eu não sabia-dis-  so! Como são fascinantes essas coisas! Conte-me algo mais.  No fim de contas ela não era tão m ... filidge comeou a explicar.  Entusiasmando-se pelo assunto, entusiasmava-se tambm por Lady 

48 

E gado ao ponto decisivo, ao ponto verdadei-  ,dward. Tinhajustamente che  ramente importante e significativo das experincias -- a transformaão# 

em pata do rebento de cauda transplantado -, quando Lady Edward,  cujos olhos tinham ficado a errar dum lado para outro, pousou uma das  mios no brao do interlocutor.  - Venha comigo, que eu quero apresent ~lo ao General Knoyle.  um  homem muito divertido ... se bem que, ...s vzes, sem querer!  A exposião de filidge morreu-lhe s£bitamente na garganta.  Compreendeu que a dona da casa não tinha tomado o menor intersse no

  que le lhe havia explicado - e que nem mesmo se dera o trabalho de  prestar-lhe a menor atenão. Odiando-a por isso, seguiu-a num silncio de  ressentimento.  o General Knoyle conversava com um outro senhor de aspecto militar.  Tinha uma voz marcial e asm tica.  - "Meu caro", disse-lhe eu - Lady Edward e Illidge ouviam o gene-  ,ral ... medida que se aproximavam -, "meu caro, não faa sse cavalo  correr agora. Seria um crime", disse eu. "Seria uma rematada loucura.  Retire-o do p reo, retire-o", disse eu. E le retirou.  Lady Edward fez notada a sua presena. Os dois militares se mostra-  ram exageradamente polidos; tinham passado um sarau maravilhoso.  - Foi para o senhor que eu escolhi especialmente Bach, general,  disse Lady Edward, com um pouco da encantadora confusão de uma

  rapariga que confessa um pecado amoroso.  - Oh! ... sim ... realmente, foi muito am vel da sua parte.  A confusão do General Knoyle era verdadeira; não sabia que fazer do  presente musical que a dona da casa lhe dera.  - Hesitei - continuou Lady Edward no mesmo tom deliberadarnente  ¡ntimo - entre a Barcarola de Haendel e a Su¡te em Si Menor, com  Pongileoni. Foi então que pensei rio senhor e me decidi por Bach. - Seus  olhos' observavam o embarao que se estampava no rosto vermelho do  general.  - Foi uma grande amabilidade de sua parte - 

protestou le. - Não 

 que eu tenha a pretensão de entender muito de m£sica. Mas sei do que  gosto, sei do que gosto. - A frase pareceu dar~lhe um sentimento de  segurana. Pigarreou e retomou a palavra. - O que sempre digo   que...  - E agora - interveio Lady Edward, concluindo triunfalmente  quero apresentar-lhe o Sr. Babbage, que auxilia Edward em seus traba-  lhos e que  um verdadeiro perito em matria de lagartixas. Sr. Babha-  ge, ste  o General Knoyle e ste o Coronel Pilchard.  Sorriu um £ltimo sorriso e abalou.  - Bem, e esta? - exclamou o general. -

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  de amargar.  - OM se . . ~ - concordou Illidge, vivamente.  (s dois militares olharam no por um momento e decidiram que aquela 

i # 

O coronel disse que ela era 

Ao# 

observaão, partindo como partira de quem se achava tão manifesta-

  mente abaixo, tão fora de seu mundo, era uma impertinncia. Os bons  cat¢licos podem bem permitir-se pequenas brincadeiras s"bre os santos e  os h bitos dos padres; mas levam muito a mal as mesmas faccias quan-  do elas brotam dos l bios dum ¡mpio. O general não fez nenhum  coment rio verbal e o coronel se limitou a expressar a sua desaprovaão  com o olhar. Mas a maneira como les se voltaram um para o outro e  continuaram a sua discussão interrempida s"bre corridas de cavalos, co-  mo se estivessem s¢s, foi tão intencionalmente ofensiva que Illidge teve  vontade de dar-lhes uns pontaps. 

Lucy, minha pequena!  - Tio John!  Lucy Tantamount voltou-se e sorriu para o tio adotivo. Era uma cria-

  tura magra e de estatura meã, como a mãe; tinha os cabelos curtos e escu-  ros untados de ¢leo, o que lhes dava um negrume completo, e penteados  para tr s, a partir da testa. Naturalmente p lida,, não usava rouge.  S¢rnente: os l bios finos estavam pintados e havia um pouco de azul em  târno dos olhos. Uni vestido negro acentuava a brancura dos braos e das  esp duas. Havia então mais de dois anos que Henry Tantamount morrera  - porque Lucy tinha casado com um primo em segundo grau. Mas ainda  usava luto - pelo menos ... noite, ... luz artificial. O negro lhe ficava tão  bem!  - Como est s? - perguntou ela, notando, ao pronunciar estas pala-  vras, que o tio comeava a ficar com uma forte aparncia de velhice.  - Estou morrendo de fome - disse John Bidlake. Tomou-lhe do

  brao familiarmente, segurando-o logo acima do cotovlo, com a sua  grande mão estriada de veias azuis. - Quero que me sirvas de pretexto  para ir cear. Estou com uma fome canina.  - Pois eu não ...  - Não importa. A minha necessidade  maior do que a tua, como tão  justamente observou Sir Philip Sidney.  - Mas eu não quero co , mer. - Ela não admitia que o velho a domi~  nasse, que rosse conduzida em vez de conduzir. Mas Tio John não cedeu.  - Eu szinho me encarrego de comer declarou le. - Comerei pe-  los dois.

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  E, rindo jovialmente, continuou a pux -la na direão da sala dejantar.  Lucy abandonou a luta. Abriram caminho atravs da multidão. A  orqu¡dea que John Bidlake tinha ... botoeira, dum amarelo esverdeado e  cheio de pintas, parecia a cabea duma serpente com a b"ca aberta num  bocejo. Brilhava-lhe o mon¢culo no "lho.  -- Quem  sse velho que vai ali com Lucy? - perguntou Polly Logan  quando les passaram. 

50 

-  o velho Bidlake.# 

-.Bidlake? Aqule que ... que pintou Os quadros? - Polly falava  Com hesitaão, num tom de quem, conhecendo as lacunas da pr¢pria  OW&io, teme cometer erros rid¡culos. - Dizes que aqule  Bidlake?  - A companheira fez um sinal afirmativo. Ela se sentiu  w~vehriente aliviada. - Esta  muito boa - continuou,  gt lu~ as sobrancelhas e abrindo muito os olhos -, sempre julguei  q,  qw ale losse um daqueles pintores da Renascena. Mas le deve ter hoje  mais ou menos uns cem anos, não  assim9

  - Nio anda longe disso. - Norali tinha tambm menos de vinte anos.  - F"ra  confessar - admitiu Polly elegantemente - que o homem  nio mostra ter essa idade. Òle tem ainda um ar de leão, de pirata ou de  ]Belo Brummei - enfim, de qualquer dessas coisas que as pessoas costu-  mavam ser na mocidade.  -Teve pelo menos quinze esposas - afirmou Norah.  Foi nesse momento que Hugo Brockle achou coragem para se apre~  sentar.  , - A senhorita não se lembra de mim. Fomos apresentados nos nossos  carrinhos de brinquedo. - Como aquilo parecia idiota! O rapaz sentiu  que ficava todo vermelho.  O terceiro e o mais bonito quadro das "Banhistas" de John Bidlake  estava pendurado por cima da chamin da sala de jantar de Tantarnount

  House. Era uma pintura alegre e vistosa, de tons muito claros, de colo-  raio muito pura e brilhante. Oito banhistas de carnes fartas e nacaradas  se agrupavam na gua e nas margens de um arroio, de maneira a formar,  com os corpos e os membros em movimento, uma espcie de grinalda  (completada por cima pela folhagem duma rvore) ao redor do centro da  tela. Atravs daquela coroa de carne nacarada (porque os pr¢prios rostos  das banhistas eram apenas carne sorridente, sem um trao de espiritua-  lidade que pudesse distrair o observador da contemplaão das belas for~  mas e do que com elas se relacionava), o "lho se alongava rumo duma  p lida paisagem brilhante de dunas, de ondulaões moles e de nuvens.  Com um prato na mão, mastigando sandu¡ches de caviar, o velho  Bidlake, ao lado da companheira, contemplava a sua obra. Sentiu-se  prsa de uma emoão em que se misturavam orgulho e tristeza.

  - Est bem - disse le -, est admir...velmente bem. Olha s¢ a  maneira como foi composto. Perfeito equil¡brio, e no entanto não h trao  de repetião ou de arranjo artificial. - Deixou inexprimidos outros  pensamentos e sensaões que o quadro tinha evocado em seu esp¡rito.  Fxam tio numerosos e confusos que não seria f cil enunci -los. E sobre-  tudo muito melanc¢licos; não gostava de insistir nles. Estendeu um dedo  c tocou o aparador; era de mogno, madeira leg¡tima. - Olha o corpo da  direita, ali, com os braos erguidos. - Prosseguiu na sua exposião tc-  nica a fim de poder reprimir. de poder espantar os pensamentos  51

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1 , 

indesej veis. -- V como le est em equil¡brio com o grande corpo nu e  curvado da esquerda. Dir-se-ia uma alavanca longa erguendo pesada car-  ga. -- Mas o corpo de braos erguidos era Jenny Sinith, o mais belo  modlo que le j tivera. Encarnaão da beleza, encamaão da estupidez  e da vulgaridade. Uma deusa enquanto estava nua e mantinha a bâca  fechada; ou quando se lhe fechava a b¢ca com beijos; mas - ah! - uma  vez que ela descerrasse os l bios, uma vez que se vestisse e enfiasse  aqules chapus assustadores!. . . John )3idlake se recordou da poca em  que a levara a Paris. Teve de recambi -la dentro de oito dias. "Tu devias  andar aaimada, Jeri disse-lhe. Jenny chorou. "Foi um rro ir a  Paris", continuou le. "Em Paris h sol demais, luzes artificiais em dema-  sia. Na pr¢xima vez iremos a Spitzberg ... no inverno. L as noites du-  ram seis m-:ses." Isso fizera que Jenny chorasse ainda com mais f"ra.  Aquela rapariga possu¡a tesouros de sensualidade, assim como tesouros  de beleza. Mais tarde dera para beber e deca¡ra, vinha mendigar-lhe  dinheiro, que gastava em bebida. Finalmente o que restava dela havia

  morrido. Mas a Jenny verdadeira permanecia ali, na tela, com os braos  alados e os m£sculos peitorais soerguendo os seios pequeninos. O que  restava de John Bidlake, do John Bidlake de 25 anos atr s, achava-se  tambm ali na tela. Um outro John Bidlake existia ainda para contemplpr  o seu pr¢prio fantasma. Em breve, ste mesmo haveria de desaparecer. E  no fim de contas seria le o verdadeiro Bidiake - quando a mulher avi-  nhada e balofa que tinha morrido não era a verdadeira Jenny? A verda-  deira Jenny vivia entre as banhistas de n car. E o verdadeiro Bidlak-e, seu  criador, existia implicitamente nas suas criaturas.  -- Sim,  uma boa tela - repetiu le, ao acabar a exposião; e o tom  de sua voz era doloroso; o rosto que olhava o quadro estava triste. -  Mas no fim de contas - acrescentou, depois ourria pequena pausa, com

  uma explosão repentina de riso volunt rio -, no fim de contas, tudo o  que  meu  bom, formid...velmente bom mesmo.  Era um desafio aos cr¡ticos est£pidos que tinham visto sinais de  decadncia em suas telas recentes; era um desafio ao seu pr¢prio passado,  ao tempo e ... velhice, ao verdadeiro John Bidlake, que tinha pintado a  verdadeira Jeri e que a tinha feito silenciar ao pso de seus beijos.  - Não h d£vida de que  uma boa tela - disse Lucy, perguntando  a si mesma por que as pinturas do velho tinham piorado tanto nos £ltimos  tempos. A £ltima exposião fora deplor vel. Òle pr¢prio, no fim de con-  tas, conservava-se tão jovem, relativamente falando. "Isto, entretanto,  não irri pensava a m"a, olhando para o pintor, "que le tenha  envelhecido bastante nestes £ltimos rrii  - Não h d£vida - repetiu le. - Òsse  o ponto de vista verdadeiro.

  - Devo confessar, entretanto - ajuntou Lucy, para mudar de assunto  que, na minha opinião, as tuas banhistas são de certo modo um insulto.  - Um insulto? 

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  - Falo como mulher, compreenda-se. Achas na realidade que somos  tão profundamente tâlas como nos pintas?  - Sim, sim - perguntou uma outra voz -, acha-nos verdadeira-  ~te assim tão t61as?  Era uma voz insistente, enf tica, e as palavras sa¡am em jorros,  emosivamente, como se estivessem passando ... f"ra atravs de uma  abertura estreita, debaixo duma pressão emocional.  Lui e John Bidlake se voltaram e viram a Sra. Betterton, macia no  seu vestido cinzento-pomba, com braos (pensou o velho Bidlake) que  ~am coxas, e cabelos que eram, em proporão ...s bochechas e ...s  M~Ias papadas carnudas, ridiculamente curtos, encaracolados e. casta-  nhos. Seu nariz, que se arrebitava de maneira tão encantadora nos dias  em que Bidlake montava o cavalo negro e ela o cavalo baio, era agora  absurdo, uma coisa grotescamente fora de prop¢sito naquele rosto de  mulher madura. O verdadeiro BidIake andara passeando a cavalo em  companhia dela, um pouco antes de pintar aquelas banhistas. A Sra.  Betterton tinha falado de arte com uma seriedade ingnua de colegial que  o pintor achara encantadora. Bidlake a curara - recordava-se disso -  duma paixão por Burne-Jones, mas não conseguira, ai! livr -la do seu  preconceito de virtude. Era com t"da a seriedade de outrora, ... qual se  unia uma certa sentimentalidade significatival, como a de quem se recorda  do passado e deseja fazer uma troca não s¢ de idias gerais mas tambm  de reminiscncias, que ela falava naquele momento a John Bidiake. Òle  teve de fingir que estava contente por tomar a v-la depois de tantos anos.

  " extraordin rio", pensava ao lhe apertar a mão, "como consegui evit -  Ia totalmente." Não se lembrava de lhe ter falado mais do que duas ou  quatro vzes durante o quarto de sculo que transformara Mary Betterton  num ~ento mori*.  - Querida Sra. Betterton! - exclamou o velho. -  um encontro  agadabilissimo.  Mas Bidlake disfarava muito mal a sua aversão.  A Sra. Betterton o chamou pelo primeiro nome:  - Vamos John - disse -,  preciso que respondas ... nossa pergun-  ta. . . - Pousou a mão no brao de Lucy, associando-a assim ... sua  exigncia.  O velho Bidiake ficou literalmente indignado. Aquela familiaridade da

  partC dum memento mori era intoler vel. Havia de dar-lhe uma lião.  Achou que a pergunta fora bem escolhida para o fim que le agora tinha  em vista; aquela mulher fazia jus a uma resposta descorts. Mary Better-  ton tinha pretensões intelectuais e era muito ciosa de tudo quanto dizia  respeito ... alma. Recordando-se disto, o velho Bidlake afirmou que jamais  Conhecera mulher que possu¡sse coisa de valor alm de um corpo e de um 

* Lembra-te de que morrer s. (N. do E) 

53# 

54 

par de pernas. E algumas - acrescentou le com nfase - nem chega-  vam a ter sses atributos indispens veis. Sem d£vida, muitas dentre elas  tinham um rosto interessante; mas isso não significava nada. Os cães  policiais -- explicou - tm um ar de juiz cheio de sabedoria; os bois,  quando ruminam, parecem meditar s¢bre os problemas da metafisica;  um louva-a-deus d a Impressão de estar rezando; mas estas aparncias

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  são totalmente enganosas. O mesmo acontecia com as mulheres. Òle  preferira pintar suas banhistas sem m scaras e sem roupas; preferira dar-  lhes rostos que eram simplesmente o prolongamento de seus corpos  encantadores e não s¡mbolos enganadores duma espiritualidade que não  existia. Isso lhe parecia mais verdadeiro, mais de acârdo com os fatos  fundamentais. John Bidlake sentiu que lhe voltava o bom humor ... medida  que ia falando, e, com a volta do bom humor, a sua antipatia por Mary  Betterton parecia dissipar-se. Quando estamos espiritualmente bem  dispestos, os memento mori deixam de nos trazer recordaões.  - John, tu s incorrig¡vel - disse a Sra. Betterton com indulgncia.  Voltou-se para Lucy, sorrindo: - Mas le não leva a srio sequer uma  palavra do que disse.  - Quer-me parecer, pelo contr rio, que le est absolutamente  convencido de tudo quanto disse. Noto que os homens que gostam muito  das mulheres são precisamente os que exprimem o maior desprzo por  elas.  O velho Bidlake se p"s a rir.  Porque são os que as conhecem mais intimamente - replicou.  Ou talvez porque lhes desgoste o poder que temos s"bre les ...  Mas eu te garanto - insistiu a Sra. Betterton - que John não pen-  sa assim. Eu o conheci no tempo em que nem eras ainda nascida, minha  querida.  A alegria desapareceu do rosto de John Bidlake. O memento mori tor-  nava a sorrir escancaradamente por tr s da m scara fl cida de Mary

  Betterton.  - Naquele tempo talvez le fosse diferente - concordou Lucy. -  Deve ter sido contagiado pelo cinismo da geraão mais m"a. Somos m

companhia, tio John. Deves tomar cuidado.  Tinha levantado uma das lebres favoritas da Sra. Betterton. Esta  lanou-se numa perseguião encarniada.  -  a educaão - explicou ela. - As crianas são educadas hoje em  dia duma maneira est£pida. Não  de admirar que saiam c¡nicas. -  Continuou a falar com eloqncia. - Dão-se muitas coisas as crianas,  e muito cedo. Saturam-nas de distraões, acostumam-nas a todos os pra-  zeres desde o bero. Pois eu nunca entrei num teatro senão depois dos  dezoito anos - declarou com orgulho.  - Minha pobre senhora!

  - Comecei a freqentar os teatros aos seis anos - confessou Lucy. - E os bailes, então! - prosseguiu a Sra. Betterton. - O baile da

  temporada de caa, que acontecimento! Era porque s¢ havia uma dessas  festas durante o ano.  Citou Shakespeare:# 

Portantofestas h , lindas e raras,  Por escassas e no tempo separadas

  Como engastefrugal depedras caras... - Nos dias de hoje as festas são ros rios de prolas.

  - E falsas, ainda por cima. . . - disse Lucy.  A Sra. Betterton estava triunfante.  - Falsas... est s vendo? Mas para n¢s eram verdadeiras, porque  raras. N¢s não costum vamos "gastar a fina ponta do prazer infreqente"  pelo uso cotidiano. Hoje em dia os moos estão entediados e cansados do  Inundo antes de chegarem ... maioridade..Um prazer demasiadamente  repetido produz a insensibilidade; não o sentimos mais como prazer.

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  - E qual  o seu remdio? - inquiriu John Bidlake. - Se  que um  membro da congregaão tem licena de fazer perguntas - ajuntou ir"ni-  camente.  - Maroto! - gritou a Sra. Betterton num tom apavorante de brinca-  deira. Depois, ficando novamente sria:  menos diversões. 

- O remdio - continuou -- : 

- Mas eu não quero ter menos diversões - objetou John Bidlake.  - Nesse caso - disse Lucy -,  preciso que elas sejam mais fortes,  progressivamente.  - Progressivamente? - repetiu a Sra. Betterton. - Mas onde iria  terminar essa espcie de progressão?  - Nas corridas de touros? - sugeriu John Bidlake. - Ou em comba-  tes de gladiadores9 Em execuões p£blicas, então? Ou nos divertimentos  do Marqus de Sade? Onde? 

Lucy encolheu os ombros.  - Quem sabe? 

Hugo Brockle e PoIly j estavam em disputa.  - Pois eu acho detest vel - dizia Polly, com o rosto vermelho de

  C¢lera - mover guerra aos pobres.  Mas os Inglses Livres não fazem guerra aos pobres.  - Fazem, sim.  - Não fazem - afirmou Hugo. - Leia os discursos de Webley.  - S¢ leio o que se escreve a respeito do que le faz.  - Mas o que le faz est de acârdo com as suas palavras. 

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P11

  - Não esta.  - Est . A £nica coisa contra a qual le se opõe  a ditadura duma  classe.  - Sim: da classe pobre.  - De qualquer classe - insistiu Hugo com ardor. - Òste  o fundo  de sua doutrina.  preciso que as classes sejam igualmente fortes. Uma  classe oper ria forte, que reclama sal rios altos, mantm ativa a classe  mdia das profissões liberais.  - Como as pulgas num cão - sugeriu Polly, pondo-se a rir, numa  volta ao bom humor. Quando uma idia c"mica se lhe apresentava, ela  não podia deixar de exprimi-la, mesmo que se tratasse de coisa sria, mes-  mo que ela estivesse, como naquele caso, encolerizada.

  - As profissões liberais?  preciso a todo custo que elas sejam inven-  tivas e progressivas - continuou Hugo, lutando com as dificuldades da  exposião clara. - Sem isso elas não poderiam pagar aos trabalhadores  o que les exigem, e realizar lucros para si mesmas. E, ao mesmo tempo,  uma classe mdia forte e inteligente  proveitosa para os trabalhadores,  porque stes ganham assim uma boa liderana e uma boa organizaão. O  que significa sal rios mais elevados, paz e felicidade.  - Amm.  - De sorte que a ditadura duma classe  um absurdo - continuou  Hugo. - Webley quer conservar tâdas as classes e torn -las fortes. Quer

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  que elas vivam num estado de tensão, de tal maneira que o Estado possa  tirar o seu equil¡brio do fato de cada uma puxar com t"das as roras para  o seu lado. Os cientistas dizem que os diferentes ¢rgãos do corpo são  assim. Vivem num estado. . . - hesitou, corou de simbiose hos-  til.  - Cruzes!  - Peo perdão - disse Hugo com humildade.  - Não obstante, le não quer permitir que os homens faam greve.  - Porque as greves são imbecis.  - Ele  contra a democracia.  - Porque a democracia permite que criaturas abomin veis conquis-  tem o poder. Webley quer que os melhores governem.  - Os melhores? Òle, por exemplo. . . - tornou Polly, sarc stica.  - Pois bem: e por que não? Se soubesses que tipo admir vel le !  Hugo entusiasmou-se. Havia trs meses que vinha atuando como um dos  ajudantes-de-campo de Webley. - Nunca encontrei ninguem como ele.  Polly escutava essas efusões com um sorriso. Ela se sentia velha e  superior. Na escola tinha passado pelos mesmos entusiasmos, falando  naquele mesmo tom a respeito da profess"ra de economia domstica.  Apesar de tudo, gostou da lealdade do rapaz. 

CAPiTULO V 

Uma seiva de inumer ,,eis rvores e trepadeiras pendentes - eis o

  aspecto sob o qual as reuniões sociais se apresentavam sempre ... imagi  naão de Walter Bidlake. Unia seiva de ru¡dos: e le se achava agora per  dido na selva, procurava abrir caminho atravs de seu emaranhamermu# 

luxuriante. As pessoas eram as raizes das rvores e as suas vozes era--r,  os troncos e os ramos flex¡vcis e os festões de lianas - sim, e tambm ~s,  papagaios e os macacos tagarelas.  As rvores se elevavam at o teto e do teto, como mangues, encurva-  vam-se de n"vo para o, chão. Mas neste salão singular, pensava Walter,  nesta extravagante combinaão de trio romano e da estufa de palrneiras

  do Jardim Botnico de Kew, as ondas de som que cresciam, ininterrupta-  mente, at a altura de trs andares, poderiam ganhar, unidas, uma fâra  viva suficiente para romper o fraco telhado de vidro que as separava da  noite exterior. Walter pintou-as mentalmente a subir cada vez mais alto,  como o p de feijão m gico da hist¢ria do"Matador do Gigante",a subir  em pleno cu - clevando~se mais e mais, carregadas de orqu¡deas e de  cacatuas coloridas a subir atravs Ja nvoa persistente de Londres at a  luz transparente do luar, alm da fumaa. Ele as imaginou a ondular l no  alto, na luz da lua - derradeiros ram¡culos de ru¡do, tnues e areos.  O riso estrepitoso, por exemplo, esta gargalhada expl¢siva do homem  gordo da esquerda -- haveria de subir e subir, diminuindo ... medida que  subisse, at que l em cima não fâsse mais do que um tinir delicado sob  o luar. E tâdas estas vozes (que estavam elas dizendo? " ... fez um exce-

  lente discurso. . . "; " ... s¢ depois de experimentar um dstes cintos de  borracha poder s ter uma idia de como são c"modos. . ."; " ... que  aborrecimento. . , "; " ... fugiu com o chofer. . ."'), t"das estas vozes -  como seriam esquisitas e min£sculas l no alto! Mas no entanto, ali  embaixo, no matagal ... Ah! Eram estridentes, tâlas, vulgares, cheias de  fatuidade!  Olhando por cima das cabeas das pessoas que o cercavam, Walter viu  Frank Illidge, s¢zinho, encostado a um pilar. Sua atitude e seu sorriso, ao  mesmo tempo cansados do mundo e desdenhosos, eram byronianos:

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  lanava em trno um olhar lnguidamente divertido, como se estivesse a  observar as travessuras dum bando de macacos. Infelizmente, refletia  Walter, enquanto abria caminho por entre os convidados, na direão de  Illidge, aqule pobre rapaz não tinha o direito f¡sico de ser byroniana-# 

mente superior. Os romnticos sat¡ricos devem ser esguios, de movimen-  tos lentos, graciosos e belos. Illidge era pequeno, vivo e saltitante. Eque  cara c"mica! Era como a dum moleque - nariz arrebitado, b"ca larga-  mente rasgada; uma cara de moleque muito inteligente e ladino, mas uma  cara, enfim, que não autorizava precisamente aqule ar de languidez  desdenhosa. De resto, quem  que pode ser superior quando tem sardas?  O rosto de filidge estava pintalgado delas. Os olhos castanhos, as sobran-  celhas c"r de laranja e as pestanas tinham uma tonalidade protetora -  sse vermelho amarelado da areia; vistos de pequena distncia, sumiam-  se na pele, como um leão se dissolve no deserto. Olhada da outra extremi-  dade do salão, aquela face parecia despida de feiões e de olhar, como o  rosto de uma est tua esculpida num bloco de grs. Pobre Illidge! A atitu~  de byroniana dava-lhe antes uma aparncia rid¡cula.  - Ol ! - fez Bidlake, logo que chegou a distncia de poder ser ouvi-

  do pelo outro. Apertaram-se as mãos. - Como vai a cincia? - "Que  pergunta t"la!", pensou Walter ao pronunciar estas palavras.  Illidge encolheu os ombros.  - Menos na moda do que as artes, a julgar por esta festa - olhou em  t"rno. - Esta noite tenho visto aqui a metade das notabilidades que apa-  recem na seão de literatura e pintura do whos who. O ambiente fede a  arte. 

E não  isso antes um consâlo para a cincia? - perguntou Wal-  ter. A arte não gosta de andar na moda.  - Acha? Então por que motivo voc veio?  - Realmente: por qu?  Walter aparou a pergunta com uma risada. Correu os olhos em târno,

  perguntando a si mesmo onde estaria Lucy. Não a via desde que a m£sica  cessara.  - Voc veio para mostrar as suas habilidades e receber afagos na  cabea. . . - disse filidge, procurando tirar uma pequena desforra; ain-  da tinha viva a lembrana da escorregadela na escada, da falta de  intersse de Lady Edward para com as lagartixas e da insolncia dos dois  militares. - Olhe s¢ -- continuou le - para aquela m"a de cabelos  escuros e crespos que l vai vestida de prata. Aquela que parece uma  negrinha branca. Que me diz dela, por exemplo? Seria bem agrad vel a  gente sentir a cabea afagada por uma uvinha dessas, hein?  - Bem ... quem sabe?  Illidge p"s-se a rir.  - Voc assume uma atitude superior e filos¢fica, não  mesmo? Mas,

  meu caro, reconhea que tudo isso  impostura. Eu sei, porque assumo a  mesma atitude. Para falar-lhe honestamente a verdade, invejo o sucesso  de vocs, que traficam com a arte. Fico verdadeiramente furioso quando  vejo certos escritorezinhos tolos e meio idiotas ...  - Como eu, por exemplo. 

58 

- Não, voc est um ponto acima da maioria dles - concedeu Illid-  ge~ - Mas quando veio sses malditos escribas, que não trn um dcimo

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  da minha inteligncia, a fazer dinheiro e a ser cortejados, ao passo que# 

ningun, me d importncia, chego ...s vzes a ficar furioso.  - Voc devia encarar sse fato como uma homenagem. Se les nos  cortejam  porque podem entender mais ou menos o que fazemos. Mas  não entendem voc; voc est acima dles. A indiferena dessa gente   uma homenagem ao seu esp¡rito.  . - Talvez; mas  um terr¡vel insulto ao meu corpo. - Illidge tinha  dolorosamente conscincia do seu fisico. Sabia que era feio e de uma  aparncia absolutamente despida de distinão. E, sabendo-o, gostava de  lembrar a si mesmo sse fato desagrad vel: era como um homem que, ten-  do um dente que d¢i, est volta e meia a meter o dedo no ponto dolorido,  simplesmente para ter certeza de que a dor continua. - Se eu fosse um  brutalhio como sse Webley1 les não me desprezariam, mesmo que eu  tivesse o esp¡rito de Newton. A verdade  - prosseguiu, dando desta  vez um valente puxão, no dente nevr lgico - que eu tenho uma aparncia  de anarquista. Voc tem sorte, e bem sabe disso. Tem o ar dum gende-  Man, ou pelo menos dum artista. Nem imagina que coisa molesta  ter a  aparncia de um intelectual das classes inferiores. - O dente respondia ...  exploraão de maneira excruciante. Puxou-o com mais f"ra ainda. -  Nio se trata apenas do desprzo das mulheres - destas mulheres, pelo

  menos. Isto por si s¢ j 'bastante desagrad vel. Mas acontece que a  pol¡cia se recusa a não fazer caso da gente; ela toma um intersse  abomin velmente curioso por mim. Acredite que j fui prso duas vzes,  simplesmente porque me pareo com sses tipos que fabricam m quinas  infernais.  - A hist¢ria  boa - disse Walter com cepticismo.  . - Mas  verdadeira, juro-lhe. A primeira vez foi aqui mesmo no nos-  so pa¡s. Perto de Chesterfield. Havia uma greve de mineiros. Acontece  que eu estava, como mero espectador, olhando uma luta entre grevistas e  oper rios que tinham quebrado a greve. A pol¡cia não gostou da minha  cara e me deitou a unha. Levei horas para me livrar dela. A outra vez foi  na It lia. Algum petardeiro tinha atentado contra a vida de Mussolini,  segundo parece. Seja como ror, um bando de malfeitores de camisa preta

  obrigou-me a descer do trem em Gnova e me revistou da cabea aos ps.  Intoler vel! E isso tudo simplesmente por causa da minha cara subver-  siva.  - A qual, no fim de contas, corresponde ...s suas idias.  - Sim, mas uma cara não  uma prova, não  um crime. Bem, sem  d£vida - acrescentou Illidge num parntesis -, algumas caras são tal-  vez crimes. Conhece o General Knoyle? - Walter fez com a cabea que  SinL - Pois a dle  um crime capital. Um homem como aqule merece  nada menos que a f"rca. Meu Deus! Que prazer eu teria em mat -los 

59# 

todos! - Não tinha le escorregado na escada e sofrido a desfeita de um  imbecil carniceiro de homens? - Como eu detesto os ricos! Detesto-os!  Não acha voc que les são horr¡veis?  - Mais horr¡veis do que os pobres? - A lembrana do quarto em  que Wetherington jazia doente fez logo com que Walter sentisse vergonha  da pergunta.  - Sim, sim. Existe algo de particularmente vil, ign¢bil e m¢rbido nos  ricos. O dinheiro produz uma espcie de insensibilidade de gangrena.

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  inevit vel. Jesus compreendeu isso. Aquela passagem a respeito do came-  lo e o "lho da agulha  a simpless exposião de um fato. E lembre-se  daquele outro trecho a respeito do amor ao pr¢ximo. Se eu continuar a fa-  zer citaões b¡blicas voc ficar pensando que sou cristão -- acrescentou  filidge num parntesis, ... guisa de escusa. -- Mas  preciso dar a Csar o  que  de Csar. O homem tinha bom senso; sabia compreender as coisas.  As boas relaões entre vizinhos são a pedra de toque que revela os ricos.  Os ricos simplesmente não tm vizinhos.  - Mas, que diabo! les não são anacoretas.  - Mas não tm vizinhos no mesmo sentido em que os pobres os tm.  Quando minha mãe se via obrigada a sair, era a Sra, Cradock, a vizinha  da direita, que ficava olhando por n¢s. E minha mãe fazia o mesmo para  a Sra. Cradock quando chegava a vez de esta sair. E quando algum que-  brava uma perna, ou perdia o emprgo, a gente o ajudava com dinheiro e  comida. E como me lembro bem de, quando eu era menino, me terem  mandado um dia correr at a aldeia em busca duma enfermeira, porque a  jovem Sra. Foster, a vizinha da esquerda, tinha sido s£bitamente atacada  das dores do parto, mais cedo do que esperava! Quando a gente vive com  menos de 4 libras por semana, h uma necessidade atroz de se portar co-  mo cristão, de amar o pr¢ximo. Para principiar, voc não pode fugir  dle: o pr¢ximo, por assim dizer, mora-lhe no quintal. Ignorar a sua pre-  sena duma maneira refinadamente filos¢fica? Não  poss¡vel.   necess rio odiar ou amar; não h meio-trmo; e, em suma,  prefer¡vel  voc procurar amar o vizinho, porque pode precisar do aux¡lio dle assim

  como le pode precisar do seu - e isso duma maneira tão urgente e tão  repetida que não h lugar para recusas. E desde que voc seja obrigado a  dar, desde que, como ser humano, não possa deixar de dar,  melhor que  trate de amar a pessoa a quem de qualquer modo voc ter de dar.  Walter Fez um sinal de aprovaão.  Evidentemente.  Mas vocs, os ricos - continuou Illidge -, não tm vizinhos  verdadeiros. Nunca praticam um ato de boa vizinhana e nunca pedem  aos vizinhos que lhes faam uma gentileza como retribuião.   desnecess rio. Vocs pagam pessoas para atenderem ...s suas necessida-  des. Podem alugar criados que hão de simular dedicaão a 3 libras por  ms e mais a comida. Não precisam que a Sra. Cradock, a vizinha, venha 

60 olhar pelos seus bebs, quando vocs saem. H nurses* e governantes que

  fazem isso por dinheiro. Não, em geral vocs nem mesmo chegam a ter  conscincia da existncia dos vizinhos. Vivem longe dles. Cada um fica  isolado na sua casa secreta. Pode haver tragdias atr s dos postigos; mas# 

os vizinhos do lado não ficam sabendo de nada.  - Graas a Deus 1 - exclamou Walter.  - Não h d£vida: vocs podeni dar graas a Deus. O isolamento

  um grande luxo. Muito agrad vel, concordo. Mas o luxo se paga. Nin-  gum se comove com as desgraas que não conhece. A ignorncia  flici~  ~ que nada sente ... Numa rua pobre a desgraa não pode ser escon-  dida. A vida  demasiadamente p£blica. Os sentimentos de boa  v£inhana estão em exerc¡cio constante. Mas os ricos nunca tm um  ensejo de se mostrarem bons vizinhos para com os seus iguais. O mais  que podem fazer  ficar sentimentais diante dos sofrimentos de seus  ~res - sofrimentos que les não podem de forma alguma  compreender - e mostrar-se condescendentemente compadecidos.  Horr¡vel! E isso ainda são os ricos sob o seu melhor aspecto. Quanto ao

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  pior aspecto, a¡ o tem voc. . . - Apontou para o salão cheio de gente.  - São como Lady Edward, o £ltimo c¡rculo do inferno! São como aque-  la filha dela. . . - Aqui Illidge fez uma careta e encolheu os ombros.  Walter o escutava com uma atenão dolorosa e tensa.  - Maldita, perdida, irremedi...velmente corrupta - continuou filidge,  como um profeta acusador. Tinha falado uma vez a Lucy Tantamount,  casualmente, e por um breve momento. E a m"a parecia mal ter dado pe-  la presena dle. . .  Era verdade, pensava Walter, Luey era tudo o que dela se dizia por  inveja ou censura; no entanto, era tambm a mais esquisita e maravilhosa  das criaturas. Sabendo de tudo, le podia escutar tâdas as coisas que a  respeito dela se dissessem. E,. quanto mais atrozes eram os vituprios,  mais desesperadamente le a amava. "Credo quia absurdum. Amo quia  ~, quia indignum**. "  - Que podridão! - prosseguiu filidge, grandiloqente. - A flor  consumada desta nossa encantadora civilizaão - eis o que ela . Uma  imitaio refinada e perfumada de selvagem ou de animal. Eis a que chega  l¢gicamente a maioria das pessoas que tm dinheiro e lazer.  Walter o escutava, de olhos fechados, pensando em Lucy. . . "Uma  imitaão perfumada de selvagem ou de animal." As palavras eram verda-  dICiras e torturantes; mas le a amava com mais fora por causa do tor-  mento e por causa da verdade odiosa.  - Bem - fez filidge, num tom de voz diferente -, preciso ir ver se

  o Velho quer continuar o trabalho esta noite. Em geral, trabalhamos at Pagens de crianas; amas-scas (N. do E.)

  "Creio porque  absurdo. Amo porque  torpe, porque  indigno. "(N. do E)# 

1 e meia ou 2 horas.  de certa maneira agrad vel viver assim ...s avessas.  dormindo at a hora do lanche, comeando o trabalho depois do ch . Na  verdade,  muito agrad vel. - Estendeu a mão. - At breve.  - Precisamos jantar juntos uma destas noites lembrou Walter,  sem muita convicão.

  Illidge sacudiu a cabea afirm ativamente.  - Vamos escolher um dstes dias. - E abalou.  Walter abriu caminho atravs da multidão, procurando ... 

Everard Webley tinha levado Lorde Edward para um canto e estava  tentando persuadi-lo a dar o seu apoio aos Inglses Livres.  -- Mas eu não me interesso pela pol¡tica -- protestava o Velho com  voz rouca. - Não me interesso pela pol¡tica. . . - E repetia a frase  obstinadamente, com uma teimosia muar, a cada coisa que Webley dizia,  fosse o que f"sse.  Webley estava eloqente. Os homens de boa vontade, os homens que  tinham intersses no pa¡s deviam unir-se para resistir ...s foras de  destruião. Não era apenas a propriedade que estava ameaada, não eram

  apenas os intersses materiais de uma classe; era a tradião inglsa, era a  iniciativa pessoal, era a iilteligncia, era t"da distinão natural de qual-  quer gnero que f"sse. Os Inglses Livres tinham-se unido para resistir ...  ditadura dos nscios; estavam armados para proteger a individualidade  contra o homem das massas, contra a turba; estavam lutando pelo  reconhecimento da superioridade natural em t"das as esferas. Os inimigos  eram numerosos e ativos.  Mas um homem prevenido vale por dois; quando a gente v que os ban-  didos se aproximam, forma em ordem de batalha e arranca da espada.  (Webley tinha um fraco pelas espadas; usava uma quando os Inglses

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  Livres faziam parada; os seus discursos eram cheios de espadas; a sua ca-  sa estava eriada de pan¢plias.) A organizaão, a disciplina e a f"ra  eram necess rias. A luta não se podia travar mais no terreno  constitucional. Os mtodos parlamentares eram perfeitamente adequados  quando os dois partidos concordavam sâbre os princ¡pios fundamentais e  discordavam apenas no que dizia respeito a detalhes insignificantes. Mas  quando estavam em j"go os princ¡pios fundamentais não se podia permi-  tir que a pol¡tica continuasse a ser tratada como um jâgo parlamentar.  Era preciso recorrer ... aão direta, ou pelo menos ... ameaa de uma aão  direta.  - Estive cinco anos no Parlamento - disse Webley -, tempo sufi-  ciente para ficar convencido de que hoje em dia nada se pode fazer por  meio do parlamentarismo. A Inglaterra s¢ pode ser salva pela aão direta.  E s¢ depois que ela estiver salva  que poderemos comear a pensar outra 

62 

vez no parlamento. (Òste dever ser então algo muito diferente da atual  coleão rid¡cula de ricaos eleitos pelo populacho.) Enquanto esperamos  isso, devemos preparar-nos para a luta. E, graas a essa preparaão para  a luta, poderemos conquistar uma vit¢ria pac¡fica.  a £nica esperana.  Creia-me, Lorde Edward,  a £nica esperana.  Fatigado, como um urso acossado por cães, Lorde Edward oscilava#

 

pesadamente dum lado para outro, fazendo girar o corpo curvado a partir  da cintura.  - Mas eu não me interesso pela pol. . . - Estava agitado demais pa-  ra ~terminar a palavra.  - Mas, ainda que o senhor não se interesse pela pol¡tica - continuou  Webley num tom persuasivo -, deve interessar-se pelos seus bens, pela  sua posião, pelo futuro da sua fam¡lia. Lembre-se: tudo vir abaixo na  destruião geral.  - Sim, mas. Não. . . - Lorde Edward ia ficando desesperado.  Eu... eu não me interesso por dinheiro.

  Um dia, havia an Ö os, o chefe da firma de procuradores a que le entre-  gara t"da. a administraão de seus neg¢cios tinha vindo procur -lo - a  despeito das ordens expressas de Lorde Edward que proibia em absoluto  que o viessem aborrecer com assuntos de neg¢cios -, para consultar o  cliente a respeito dum emprgo de capitais. Tratava-se de umas 80 O00  libras que estavam em disponibilidade. Lorde Edward foi arrancado ...s  equaões fundamentais da est tica dos organismos vivos. Quando tomou  conhecimento da causa fr¡vola da interrupão, o Velho, que de ordin rio  era manso, ficou irreconhecivelmente furioso. O Sr. Figgis, cuja voz era  forte e cuja maneira era cheia de confiana, estava acostumado, em entre-  vistas anteriores, a levar as coisas a seu modo. A f£ria de Lorde Edward  o surpreendeu e apavorou. Era como se, em sua c¢lera, o velho tivesse  voltado por atavismo ao fundo do passado feudal, recordando-se de que

  era um Tantamount que estava falando a um servidor assalariado. Havia  dado ordens; estas tinham sido infringidas e a sua solidão violada de  maneira injustific vel. Era inadmiss¡vel. Se fato semelhante se tornasse a  reproduzir, le havia de confiar os seus neg¢cios a outro procurador. E  com isso desejou muito boa tarde ao Sr. Figgis.  - Eu não me interesso por dinheiro. . . - repetia agora o Velho.  filidge, que se aproximara dos interlocutores, man tendo- se-lhes nas  proximidades ... espera de um ensejo para se dirigir ao Velho, ouviu esta  declaraão e explodiu numa gargalhada interior.

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  "Òstes ricos!", pensou. "Òstes porcalhões dos ricos!" Eram todos os  Mesmos.  - Mas, se não  pelo senhor, - insistiu Webley, atacando de outro  setor -, que seja pela causa da civilizaão, do progresso.  Lorde Edward sobressaltou-se a esta palavra. Ela tocara num gatilho,  libertara uma torrente de energia. 

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- O progresso! - repetiu le. E o tom de sofrimento e embarao de  sua voz cedeu o lugar a um acento de firmeza. - O progresso! Os senho-  res, os pol¡ticos, estão sempre falando nle. Como se f"sse uma coisa  destinada a durar indefinidamente. Mais motores, mais filhos, mais  alimentos, mais an£ncios, mais dinheiro, mais tudo ... e para sempre. Os  senhores deviam mas era tomar algumas liões da matria de minha  especialidade. Biofisica. O progresso,  boa! Que , por exemplo, que os  senhores propõem fazer com relaão ao f¢sforo?  Esta pergunta valia por uma acusaão pessoal.  - Mas tudo isto est completamente fora do assunto - disse Webley  com impacincia.  - Ao contr rio - retorquiu Lorde Edward - t"da a~ questão reside

  nisto. - Sua voz agora era forte e severa. E le falava com um grau de  coerncia muito maior que de ordin rio. O f¢sforo transformara-o num  homem n"vo; le se sentia forte na matria que discutia agora, e, sentin-  do-se forte, ficava realmente forte. O urso atacado transformava-se em  atacante. - Coni essa agricultura intensiva - continuou le -, os  senhores estão simplesmente roubando ao solo o seu f¢sforo. Mais de  meio por cento por ano. Òle vai desaparecendo completamente de  circulaão. Depois, basta ver como os senhores deitam fora centenas de  milhares de toneladas de anidrido-fosf¢rico nesses esgotos! Derramando-  o dentro do mar. E a isso os senhores chamam progresso. Òsses sistemas  modernos de esgotos! - O tom de sua voz agora estava cheio de um  desdm fulminante. - Os senhores deviam era rep"-lo no lugar de onde  le saiu. Na terra. - Lorde Edward sacudiu um dedo esticado em sinal

  de advertncia. Franziu o sobrolho e repetiu: - Na terra,  o que lhe di-  go. 

- Mas eu nada tenho que ver com isso - protestou Webley.  - Pois devia ter - replicou Lorde Edward severamente. - Eis o mal  dos senhores, os pol¡ticos. Nem mesmo chegam a pensar em coisas  importantes. Vivem"a falar do progresso e do bolchevismo e deixam que  todos os anos milhões de toneladas de anidrido f¢sf¢rico corram para o  mar.  idiota,  criminoso, . . .  o mesmo que tanger a lira enquanto  Roma arde. - Lorde Edward viu Webley abrir a b¢ca para falar e apres-  sou-se a antecipar uma resposta ... poss¡vel objeão do outro. - Sem  d£vida - disse - os senhores julgam que essa perda pode ser  compensada por meio das rochas f¢sfatadas. Mas que  que vão fazer

  quando se exaurirem os dep¢sitos? - Bateu com o dedo no peito da  camisa de Everard. - Então, que diz? Mais duzentos anos apenas, e os  dep¢sitos se extinguirão. Os senhores julgam que estamos em progresso  porque vivemos do,nosso capital. Fosfatos, carvão, petr¢leo, salitre -  esbanje-se tudo! Eis a pol¡tica dos senhores. E enquanto isso andam por  a¡ tentanto fazer-nos arrepiar a pele com essas conversas s"bre  revoluões.  - Mas que diabo! - disse Webley entre zangado e divertido - o seu 

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 f¢sforo pode esperar. Este outro perigo est iminente. O senhor quer uma

  revoluão pol¡tica e social?# 

- Essa revoluão vai reduzir a populaão e restringir a produão?  - Naturalmente.  - Pois então não h d£vida: eu quero uma revoluão. - Os pensa-  mentos do velho estavam dentro da escala geol¢gica, le não temia as  conclusões l¢gicas. - Não h d£vida!  Illidge a custo continha o riso.  - Pois bem, se essa  a sua opinião. . . - principiou Webley; mas  Lorde Edward o interrompeu:  - O £nico resultado dsse progresso dos senhores ser que dentro de  algumas geraões h de vir uma revoluão verdadeira - uma revoluão  natural, c¢smica. Os senhores estão transtornando o equil¡brio. Ao cabo,  a natureza o h de restabelecer. E o processo ser muito  desagrad vel para os senhores. A queda ser tão r pida como o foi a  ascensão. Mais r pida at, porque os senhores estarão falidos, terão  desperdiado todo o seu capital. Um homem rico gasta algum tempo para  realizar todos os seus recursos. Mas, uma vez isso feito, um instante   suficiente para chegar ... misria.

  Webley encolheu os ombros.  "Velho imbecil e lun tico!", disse de si para si. E, em voz alta: -As  linhas retas paralelas nunca se encontram, Lorde Edward. Assim, eu lhe  desejo uma boa noite.  Afastou-se.  Um minuto depois o Velho e o assistente subiam a escadaria triunfal,  rumo do seu mundo ... parte.  - Que al¡vio! -- disse Lorde Edward ao abrir a porta do laborat¢rio.  Aspirou voluptuosamente o odor leve do lcool absoluto em que estavam  conservados os seus espcimes. - Estas festas! A gente sente-se feliz em  poder voltar para a cincia. No entanto, a m£sica estava realmente. . .  Faltaram-lhe as palavras para exprimir a sua admiraão.

  filidge deu de ombros.  - Festas, m£sica, cincia - diversões alternadas para os ociosos.  Quem paga pode escolher. O essencial  ter dinheiro para pagar.  Riu duma maneira desagrad vel.  filidge sentia-se muito mais ultrajado pelas virtudes dos ricos do que  pelos seus v¡cios. A glutoneria, a preguia, a sensualidade e todos os pro-  dutos menos elegantes do lazer e da renda certa podiam ser perdoados,  precisamente porque eram vergonhosos. Mas o desintersse, a espirituali-  dade, a incorruptibil idade, a sensibilidade refimada, o requinte do g"sto  - tudo isso eram qualidades tidas comumente como dignas de  admiraão; eis a razão pela qual le as detestava tão particularmente.

  Porque essas virtudes, segundo filidge, eram um produto tão fatal da  riqueza como a sdc cr"nica e o pequeno almâo das 11.  - Òsses burgueses - criticou o homenzinho 

- vivem a condecorar- 

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  se m£tuamente por serem tão desinteressados - isto : por terem o bas  tante para viver sem serem forados a trabalhar e sem se preocuparem  com dinheiro. Depois, outra condecoraão por poderem permitir-se o lu-  xo de recusar gorjetas. E mais uma por terem dinheiro bastante para  comprar todo h aparato da cultura refinada. E ainda outra por terem  tempo de consagrar-se ... arte, ... leitura, ... galanteria complicada e  prolongada. Por que não tm les a franqueza de dizer abertamente o que  estão constantemente dando a entender - isto : que a raiz de t"das as  suas virtudes  um bom emprgo de capital, bem seguro, a 5 por cento?  A afeião divertida que filidge sentia por Lorde Edward era temperada  por uma contrariedade cr"nica que lhe vinha de pensar que t"das as virtu-  des intelectuais e morais do Velho, t"das as suas excentricidades e absur-  dos encantadores s¢ eram poss¡veis graas ...s proporões verdadeira-  mente escandalosas de sua conta no banco. E esta desaprovaão latente  tornava-se aguda t"da vez que ouvia os outros elogiar Lorde Edward,  admir -lo ou mesmo rir dle. O riso, o elogio e a admiraão eram  permitidos a le, filidge, porque compreendia e podia perdoar. As outras  pessoas nem sequer compreendiam que havia alguma coisa a perdoai.  Illidge sempre se apressava a esclarec-las.  - Se o Velho não fosse descendente de espoliadores de mosteiros  costumava dizer aos elogiadores e admiradores -, estaria hoje num asilo  de mendigos ou num hospital de alienados.

  E apesar de tudo filidge gostava sinceramente do Velho, adir¡rava-lhe  verdadeiramente o talento e o car ter. Que o mundo não percebesse isso,  no entanto, era perdo vel.  "Desagrad vel" era a palavra que geralmente se empregava para  comentar o assistente de Lorde Edward.  Mas o fato de ser desagrad vel aos ricos e de ach -los tambm  desagrad veis constitu¡a, aos olhos de filidge, não s¢rnente um prazer  mas tambm um dever sagrado. Òle devia isso ... sua classe, ... sociedade  em geral, ao futuro, ... causa da justia. Nem mesmo o Velho era poupado.  Bastava-lhe exalar uma palavra em favor da alma (porque Lorde Edward  tinha o que o seu assistente não podia considerar senão como uma paixão  vergonhosa e ad£ltera pela metafisica idealista) para que Illidge logo sal-  tasse sâbre le com coment rios sarc sticos a respeito da filosofia capita-

  lista e da religião burguesa. Uma expressão de antipatia pelos homens de  neg¢cios de cabea s¢lida, de simpatia pelos pobres, de indiferena pelos  intersses materiais, provocava uma referncia imediata, mais ou menos  velada, mas sempre sarc stica, aos milhões dos Tantamounts. Havia dias  (e aqule era um dles, por causa da escorregadela na escada e da descor-  tesia do general) em que at uma referncia ... cincia pura suscitava um  coment rio ir"nico. Illidge era um entusiasta da biologia; mas, como  cidadão dotado de conscincia de classe, tinha de admitir que a cincia  pura, como o bom g"sto -e o tdio, a perversidade e o amor plat"nico,   um produto da riqueza e do ¢cio. Não tinha mdo de ser l¢gico nem de 

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I  ridicularizar o seu pr¢prio ¡dolo.  Ter dinheiro para pagar 1 - repetiu. - Eis o essencial.# 

O Velho olhou para o assistente com o ar de quem se sente culpado,  Aquelas censuras veladas causavam-lhe um certo mal-estar. Tentou mu-  dar de assunto.

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  - E os nossos girinos? - perguntou. - Os assimtricos.  Tinham uma ninhada de girinos sa¡dos de ovos que haviam sido  conservados numa temperatura anormalmente quente dum lado e  anormalmente fria de outro. Lorde Edward dirigiu-se para o tanque de vi-  dro onde mantinham os espcimes. Illidge o seguiu.  - Girinos assimtricos! - repetia le. - Girinos assimtricos! Que  requinte! Quase tãc bom como tocar Bach na flauta ou ser conhecedor de  vinhos!  Pensou no seu irmão Tom, que tinha os pulmões fracos e que traba-  lhava numa m quina de mandrilar em certa f brica de autom¢veis de  Manchester. Lembrou-se dos dias de lavagem em sua casa e da pele ver-  melha e enrugada, das mãos de sua mãe, amolecidas ... f"ra de permane-  cerem na agua.  - Girinos assimtricos! - repetiu mais uma vez. E p"s~se a rir. 

 estranho - disse a Sra. Betterton -,  estranho que um grande  artista possa ser tão c¡nico.  Na companhia de Rurlap ela preferia acreditar que John Bidlake levava  realmente a srio tudo quanto tinha dito. Burlap, discorrendo sâbre o  cinismo, emitia pensamentos edificantes, e a Sra. Betterton gostava de ser  edificada. Não menos edificantes eram as idias dle s"bre a grandeza,  para não mencionar as que tinha sâbre a arte.

  - Porque  preciso admitir - acrescentou ela - que Bidlake  um  grande artista.  Burlap meneou a cabea num gesto lento de aprovaão. Não estava  olhando diretamente para a Sra. Betterton, mas mantinha os olhos desvia-  dos dela e voltados para baixo, como se estivesse a falar com alguma  pequena personagem invis¡vel para todos menos para le, uma persona-  gem que se achasse situada ao lado da interlocutora - talvez o seu  dem"nio familiar; uma emanaão de seu pr¢prio eu, um pequeno  DoppeIgd ger*. Burlap era um homem de estatura mediana, curvado e um  tanto desajeitado no andar. Tinha cabelos escuros, espessos e crespos,  com uma tonsura natural do tamanho duma medalha, recortada em rosa  na coroa da cabea. Seus olhos cinzentos eram muito profundamente  metidos nas ¢rbitas; o nariz e o queixo, proeminentes, mas bem forma-

  dos; bâca de l bios carnudos e um tanto larga. Segundo o velho Bidlake,  que sabia tão bem fazer caricaturas com palavras como com o l pis, o  diretor do Literary World era uma mistura de vilão de cinema e dum 

* S¢sia. (N. do E.)# 

Santo Ant"nio de P dua feito por um. pintor barroco, dum Lot rio trapa-  ceiro e dum devoto ext tico.  -- Sim, um grande artista -- concordou le -, mas não dos maiores.  Falava lentamente, ruminando, como se falasse para dentro. T"da es-

  sa conversaão era um di logo com o seu pr¢prio eu ou com aqule  Doppelgãngerque ali se achava invisivelmente ao lado da pessoa com  quem se supunha le: estava conversando; Burlap tinha uma cor-sciencia  permanente e exclusiva de sua pr¢pria importncia. - Não dos maiores  - repetiu vagarosamente. Casualmente, le tinha estado a escrever um  artigo em târno dum tema de arte para o pr¢ximo n£mero do Literary  World. - Precisamente por causa daquele cinismo.  Devia citar-se a si mesmo? pensou le.  - Quanta verdade h nisso! - O aplauso da Sra. Betterton explodiu  talvez um pouco prematuramente; o seu entusiasmo estava sempre em

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  ebulião. Ela juntou as mãos. - Quanta verdade! -- Olhou para o rosto  voltado de Burlap e o achou tão espiritual, tão belo no seu gnero ...  -- Como pode um c¡nico ser um grande artista? - continuou le,  decidido j a despejar o artigo em cima da interlocutora, enfrentando  embora o risco de ela o reconhecer quando o visse impresso na tra~feira  seguinte. Mesmo que a Sra. Betterton o reconhecesse, isso não apagaria a  impressão pessoal que le havia de lhe dar, recitando~o. "Mas por que  queres produzir-lhe impressão?", interviera um diabo brincalhão. "Se não   porque ela  rica e te pode ser £til, s¢ Deus sabe por que !" O diabo foi  violentamente empurrado, com um golpe de forcado, para o lugar de onde  viera. "A gente tem as suas responsabilidades", explicou apressadamente  um anjo. "A lmpada não deve ser escondida debaixo dum alqueire.   preciso deixar que ela brilhe, especialmente para as pessoas de boa vonta-  de." A Sra. Betterton estava do lado dos anjos; a sua lealdade devia ser  consolidada. - Um grande artista - continuou Burlap em voz alta -   um homem que sintetiza tâda a experincia. O c¡nico comea por negar a  metade dos fatos - o fato da alma, o fato dos ideais, o fato de Deus. E  no entanto temos conscincia dos fatos espirituais de maneira tão direta e  indubit vel como temos conscincia dos fatos fisicos.  Naturalmente, naturalmente! - exclamou a Sra. Betterton.   absurdo negar uma ou outra classe de fatos. - " absurdo  negar-me" -- disse o dem"nio familiar, metendo a cabea na realidade  consciente de Burlap.

   absurdo!  O c¡nico se limita a uma s¢ metade da experincia poss¡vel. Menos  da metade. Porque h mais experincias espirituais do que corporais.  Infinitamente mais!  O c¡nico pode tratar bem o seu tema limitado. E Bidlake, concordo,  o faz. Extr aord in ...riam ente bem. Òle tem todo o talento puro dos artistas  mais consumados. Tem, ou pelos menos t-.nha. 

- Tinha - suspirou a Sra. Be'terton -, quando o conheci. - Esta  observaão trazia impl¡cita a idia de que fora a sua influncia que fizera  ]3idlakc pintar tão bem.  - Mas le sempre aplicou as suas foras a coisas pequenas. O que le

  sintetizou na sua arte era limitado, relativamente sem importncia.  - Isso foi o que eu sempre lhe disse - fez a Sra. Betterton, reinter-# 

pretando os argumentos de sua juventude a respeito do pr-rafaelismo, a  uma luz nova e favor vel ... sua pr¢pria reputaão. - "Considera Burne-  jones", costumava eu dizer-lhe. - A lembrana da enorme risada  rabelaisiana de John Bidlake repercutiu-lhe aos ouvidos. - Não que  Burne-jones fosse particularmente um bom pintor - apressou-se a acres-  centar. 'Òle pintava", dissera John Bidlake - e como ela tinha ficado  chocada~ profundamente ofendida - "como se nunca tivesse visto em

  t"da a sua vida um par de n degas.") - Mas os seus assuntos eram  nobres. "Se tu tivesses os sonhos , dle ", eu dizia sempre a John Bidlake,  "se tu tivesses os ideais dle, então serias verdadeiramente um grande  artista."  Burlap inclinou a cabea, exprimindo o seu assentimento num sorriso.  "Sim, ela est do lado dos anjos", pensou; "ela precisa de encorajamento.  A gente tem a sua responsabilidade." O dem"nio piscou o âlho. Havia al-  go no sorriso de Burlap, refletia a Sra. Betterton, que lembrava um Leo-  nardo ou um Sodoma - algo de misterioso, de sutil, de interior.  - No entanto, tome nota - disse le, expelindo o seu artigo lenta-

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  mente, frase por frase -, o assunto não faz a obra de arte. Whittier e  Longfellow estavam razo...velmente recheados de Grandes Pensamentos.  Mas o que escreveram foi poesia muito pequena.  - Quanta verdade!  - A £nica generalizaão que podemos arriscar  que as maiores  obras de arte tm tido grandes assuntos; e que obras em t"rno de assuntos  pequenos, por mais bem acabados que sejam, nunca são tão boas  como . . .  - Olhe, ali est Walter - disse a Sra. Betterton, interrompendo-o. -  Errando como uma alma penada. Walter!  Ao som do seu nome, Walter voltou-se. A Betterton - bom Deus! E  Burlap! Forou um sorriso. Mas a Sra. Betterton e o seu colega do Lite-  rary World eram as £ltimas pessoas no mundo que le desejava ver  naquele momento.  - Est vamos justamente discutindo s"bre a grandeza na arte  explicou a Sra. Betterton. - O Sr. Burlap estava dizendo coisas tão  Profundas!  E p"s-se a repetir as profundezas para proveito de Walter.  Òste, enquanto isso, perguntava a si mesmo por que a maneira de Bur-  lap para com le tinha sido tão fria, tão distante, tão fechada, hostil mes-  mo. A gente nunca sabia que atitude devia assumir diante de Burlap. Era 

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o que havia de mau naquele homem. Ou bem le amava ou bem odiava.  A vida com le era uma srie de cenas - cenas de hostilidade ou, coisa  ainda mais penosa, na opinião de Walter, cenas de afeião. Num caso ou  noutro, a emoão flu¡a sempre. Raras vzes havia intervalos de gua  agrad...velmente calma. A mar estava sempre em movimento. Mas por  que corria ela, agora, para o lado da hostilidade?  A Sra. Betterton continuou com a sua exposião das profundezas. Wal-  ter as achava curiosamente an logas a certos par grafos daquele artigo  de Burlap cujas provas, naquela mesma manhã, le estivera corrigindo

  para a impressão. Reproduzido - em sucessivas explosões entusi sticas  - com base na reproduão verbal de Burlap, o artigo parecia um tanto  rid¡culo. Uma luz alvoreceu. Seria aquela a razão? Walter olhou para  Burlap. O rosto dste tinha uma impassibilidade de pedra.  - Acho que devo retirar-me - disse Burlap abruptamente, quando a  Sra. Betterton fez uma pausa.  - Mas não - protestou ela. - E por qu?  Burlap Fez um esforo e sorriu o seu sorriso ... Sodorna.  Est -se demais com o mundo - disse le, numa citaão misteriosa  1 i  Gostava de dizer coisas misteriosas: deixava-as cair de surprsa no meio  da conversaão.

  - Mas tu nunca est s bastante conosco - adulou a Sra. Betterton.  -  a multidão - explicou le. - Ao cabo de algum tempo fico  prsa de pnico. Tenho a sensaão de que les me esmagam mortalmente  a alma. Eu me poria a dar gritos se ficasse.  Foi-se.  Que homem admir vel! - exclamou a Sra. Betterton antes que  Burlap estivesse fora do alcance de sua vez. - Deve ser uma coisa mara-  vilhosa para ti trabalhar com le.  -  um bom chefe de redaão - disse Walter.

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  - Mas eu est-ava pensando napersonalidade dle. Como hei de dizer?  Na qualidade espiritual do homem.  Walter Rez um aceno afirmativo com a cabea e disse: "Sim", duma  maneira muito vaga. A qualidade espiritual de Burlap era justamenteo  que não lhe despertava l muito entusiasmo.  - Numa poca como a nossa - continuou a Sra. Betterton -, Bur-  lap  um o sis no deserto da frivolidade t"la e do cinismo.  - Algumas de suas idias são de primeira ordem - concordou Wal-  ter, cauteloso.  Estava a perguntar a si mesmo qual seria o m¡nimo de tempo que preci-  saria para empreender uma fuga decente. 

- Li esti o Walter - disse Lady Edward. 

70 

- Walter de qu? - perguntou Bidiake. Levados pelas correntes  mundanas, pai e filho tomavam a encontrar-se.  - O teu Walter.  - Ali! O meu ...  o velho Bidlake não revelou muito intersse, mas seguiu a direão do# 

olhar da interlocutora.  - Erva daninha 1 - disse le.  Queria mal aos filhos pelo fato de terem crescido; crescendo, les o  empurravam para o passado, ano ap¢s ano, para tr s, rumo do abismo e  das trevas. Ali estava Walter; nascera apenas ontem. No entanto, devia  agora ter 25 anos, o patife!  - Pobre Walter; não est l com muito boa aparncia, não.  - Parece que tem bichas - disse Bidlake, feroz.  - Como vai aqule lament vel caso dle?  BidIake encolheu os ombros.  - Como de costume, suponho.

  - Nunca via mulher.  - Pois eu vi.  horrorosa.  - Como? Vulgar~  - Não, não. Eu gostaria que fosse - protestou Bidlake. -  requin-  tada, terrivelmente requintada. E fala assim. - Aqui o velho comeou a  falar num falsete arrastado, que era a imitaão da voz de Marjorie. -  Como uma suave donzelinha inocente. E tão sria, tão superior. . . -  Interrompeu a imitaão com a sua risada profunda. - Sabes o que ela  me disse uma vez? Devo explicar que ela sempre me fala a respeito de Ar-  te. Arte com A mai£sculo. Ela disse - a voz do velho subiu de nâvo a  um falsete de beb: - "Penso que h lugar para Fra Anglico e para  Rubens." - Bidlake tornou a soltar uma risada homrica. - Que  imbecil! E tem um nariz de pelo menos 10 cent¡metros de comprimento!

  Marjorie tinha aberto a caixa em que guardava os seus papis particu-  lares. T"das as cartas de Walter. Desatou a fita e examinou-as unia por  uma. "Prezada Sra. Carling, envio-lhe num inv¢lucro separado o volume  das Cartas de Keats de que lhe falei hoje. Não se d o trabalho de mo  devolver, peo-lhe. Tenho outro exemplar que hei de tornar a ler para ter  o prazer de acompanh -la, mesmo a distncia, na mesma aventura espiri-  tual."  Era a primeira. Marjorie leu-a de princ¡pio a fim e recapturou na  mem¢ria um pouco da surprsa agrad vel que aquela frase sâbre a aven-

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  tura espiritual evocara nela originalmente. Na conversaão Walter tinha  sempre parecido esquivar-se ...s aproximaões diretas e pessoais: era  dolorosamente t¡mido. Ela não esperara do rapaz uma carta como aquela.  Mais tarde, quando le j lhe havia escrito muitas vzes, Marjorie acostu- 

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mou-se ...s suas singularidades. Supunha que Walter fâsse mais afoito com  * pena do que frente a frente. Todo o amor do jovem - pelo menos todo  * amor que era exprimido, e todo o que, no tempo em que le lhe fazia a  c"rte, era mais ou menos ardente - estava em suas cartas. Aquela dispo-  sião convinha perfeitamente a Marjorie. Gostaria de continuar indefini-  damente a cultivar um amor refinado e ardente pelo correio. Gostava da  idia do amor; não gostava era de amantes, exceto a distncia e em imagi-  naão. Um curso de paixão por correspondncia era, para ela, a forma  perfeita e ideal das relaões entre mulher e homem. Melhor ainda seria ter  relaões pessoais com mulheres; porque as mulheres tm t"das as boas

  qualidades que os homens s¢ apresentam a distncia, com a vantagem de  estarem efetivamente presentes. Podem ficar num quarto com a pessoa  amada e no entanto não exigem dela nada mais do que exige um homem  que est na outra extremidade de um sistema de correios. Com a sua timi-  dez e com a sua liberdade e ardor epistolares, Walter tinha, aos olhos de  Marjorie, parecido reunir as melhores vantagens de ambos os sexos. E  depois o rapaz se mostrava interessado duma maneira tão profunda e  lisonjeira em tudo quanto ela fazia, pensava e sentia... A pobre Marjo-  rie não estava acostumada a ter pessoas que se interessassem por ela.  "Esfinge", lera ela na terceira das cartas de Walter. (Òle lhe chamara  "esfinge" por causa de seus silncios enigm ticos. Carling, pela mesma  razão, lhe daria nomes menos poticos.) "Esfinge, por que te escondes  dentro de tua concha de silncio? Dir-se-ia que tens vergonha da tua bon-

  dade, da tua doura e da tua inteligncia. Mas t"das estas qualidades  põem a cabea para fora da concha, malgrado teu."  As l grimas brotaram nos olhos de Marjorie. Walter tinha sido tão  bondoso para com ela, tão terno e gentil! E agora...  "O amor", leu ela na carta seguinte, com o olhar turvo de l grimas,"o  amor pode transformar o desejo f¡sico em desejo espiritual; le tem o po-  der m gico de converter o corpo em pura alma. . . "  Sim, le tivera aqules desejos tambm. Tambm le. Todos os homens  tinham, supunha ela. Era horr¡vel. Sentiu um calafrio lembrando-se de  Carling, lembrando-se mesmo de Walter, com um pouco do mesmo hor-  ror. Sim, mesmo Walter, embora tivesse sido tão gentil e atencioso. Wal-  ter compreendera o que ela sentia. Era o que tornava ainda mais extraor-

  din ria a sua atitude atual. Era como se, s£bitamente, le se tivesse  transformado noutra pessoa, numa espcie de animal selvagem, com  t"das as crueldades e com todos os apetites animais.  - Como  que le pode ser tão cruel? - perguntava Marjorie a si  mesma. - Como pode le ser assim de um modo tão decidido? Òle, Wal-  ter9  O seu Walter, o verdadeiro Walter, era tão gentil e tão cheio de  compreensão e deliadezas, era tão maravilhosamente despido de  ego¡smo, tão bom! F"ra por causa daquela bondade e daquela gentileza 

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que ela o amara, a despeito de ser le um homem que abrigava "aquies"  desejos; sua devoão era t"da para aqule Walter atencioso, temo e  altru¡sta que ela havia conhecido e admirado depois que tinham  comeado a morar juntos. Marjorie chegara a arnar at as manifestaões  -pouco admir veis dessa suavidade de temperamento, quando ela raiava  pela fraqueza; tinha amado Walter mesmo quando le se deixava roubar  pelos choferes de t xi e pelos carregadores de bagagens, quando le dava  mancheias de dinheiro a vagabundos que lhe contavam hist¢rias manifes-  tamente falsas a respeito de empregos na outra extremidade do pa¡s e da  necessidade de arranjar dinheiro para o transporte. A sua sensibilidade  era exageradamente viva no compreender o ponto de vista alheio. Na sua  ansiedade de ser justo para com os outros, consentia muitas vzes em ser  injusto para consigo mesmo. Estava sempre pronto a sacrificar os seus  pr¢prios direitos, preferivelmente a correr o menor risco de infringir os  direitos do pr¢ximo. Era uma consideraão, compreendera Marjorie, que  se transformara em fraqueza. que estava a ponto de se tornar um v¡cio;  consideraão, alm disso, que se devia ... sua timidez, ...quele desejo melin-  droso de fugir a qualquer conflito, e tambm a todo o contato

  desagrad vel. Apesar de tudo ela o amava por isso, amava-O mesmo  quando sses sentimentos o levavam a trat -la de uma maneira menos  justa. Pelo fato de ter chegado a olhar Marjorie como um ser que estava  aqum do limite que o separava doresto do mundo, Walter tinha algumas  vzes, em sua excessiva deferncia para com os direitos dos outros, sacri-  ficado não s¢ os seus pr¢prios direitos, mas tambm os da companheira.  Quantas vzes, por exemplo, Marjor¡e lhe objetara que le estava sendo  mal pago pelo trabalho que Fazia no Liferary World! Marjorie pensou na  £ltima das conversaoes que tinham tido a respeito de um assunto, para  le o mais odioso de todos.  - Burlap est te explorando, Walter - dissera-lhe ela.  - Mas ojornal  muito pobre.  Walter sempre tinha desculpas para as negligncias dos outros em

  relaão a le.  - Mas por que te deixas explorar?  - Não estou sendo explorado. - Havia uma nota de exasperaão na  voz dle, a exasperaão de um homem que sabe que est em rro. -- E  mesmo que estivesse, eu preferia continuar assim a regatear a minha libra  de carne. No finn de contas, este caso s¢ diz respeito a mim:  um assunto  Meu.  -  meu! - Marjorie levantou o livro de contas com o qual se acha-  va ocupada quando a conversaão comeara.  preos das verduras 1  Walter corara s£bitamente e deixara o compartimento sem dizer pala-  vra. A conversaao e o incidente eram t¡picos - semelhantes a muitos  Outros. Walter nunca tinha sido deliberadamente cruel para com ela; fora-

  - Se tu soubesses dos 

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1  o apenas por engano, por um excesso de consideraão para com os

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  outros, e ao mesmo passo que estava sendo cruel para consigo mesmo.  Marjorie não lhe queria mal por aquelas injustias. Elas provavam o quão  estreitamente le estava associado a ela. Mas, agora, agora não havia na-  da de acidental na crueldade dle. O Walter gentil e atencioso tinha  desaparecido para dar lugar a outro - outro que era implac vel e cheio  de ¢dio -, outro que, de uma maneira deliberada, a estava fazendo  sofrer. 

Lady Edward pâs-se a rir.  -- Eu s¢ queria saber o que Walter poderia ter achado nela, se a  mulher  tão deplor vel como tu a descreves.  - Mas que  que a gente pode achar em outra pessoa? -- John Bidia-  ke falava num tom de voz melanc¢lico. Bruscamente comeara a sentir-se  doente. Uma opressão no est"mago, uma sensaão de n usea, uma  tendncia para o soluo. £ltimamente isso acontecia com freqncia.  Sempre depois de comer. O bicarbonato não parecia fazer-lhe l muito  bem. - Nestes assuntos - acrescentou -, todos somos igualmente lou-  cos. 

- Obrigado! - flez Lady Edward, rindo.  E o velho Bidlake, fazendo uma tentativa para ser galante:  - Exceto as pessoas presentes - disse, com um sorriso e uma ligeira  mesura. Abafou um nâvo soluo. Como estava se sentindo mal! - Não  reparas se eu me sento? Ficar todo sse tempo por a¡ de p. . . -

  Deixou-se cair pesadamente s"bre: uma cadeira.  Lady Edward olhou para le com uma certa solicitude, masnadadisse.  Sabia o quanto Bidlake detestava qualquer referncia ... idade, ... doena  ou ... fraqueza fisica.  "Deve ter sido aqule caviar", pensava Bidlake. "Aqule maldito  caviar." E odiou violentamente o caviar. Em cada estuijão do mar Negro  le tinha agora um inimigo pessoal.  - Pobre Walter! - disse Lady Edward, reencetando a conversaão  no ponto em que fora interrompida. - E le tem tanto talento!  John Bidlake bufou com desdm.  Lady Edward percebeu que tinha dito o que não devia - por engano,  puramente por engano, desta vez. Mudou de assunto.  - E Elinor? Quando  que a tua Elinor estar de volta? Elinor e

  Quarles?  - Deixam Bombaim amanhã - respondeu John Bidlake em estilo  telegr fico. Estava demasiadamente ocupado a pensar no caviar e nas  suas sensaões viscerais para poder dar uma resposta mais expl¡cita. 

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CAPTULO VI 

- Os indianos bebram o seu liberalismo nas vossas fontes - disse o  Sr. Sita Ram, citando um de seus pr¢prios discursos na Assemblia  Legislativa. Apontou para Philip Quarles um dedo acusador. As gâtas de#

 

Wor escorriam uma ap¢s a outra ao longo de suas bochechas pardas e  f~as; dir-se-ia que le estava pranteando a Mãe india. Uma das g¢tas  estava pendurada, como uma j¢ia iridescente ... luz das lmpadas, na pon-  ta de seu nariz. Fulgia e tremia enquanto o homem falava, como se  ~se tambm agitada por sentimentos patri¢ticos. Houve um momen-  to em que sses sentimentos se mostraram demasiadamente fortes para  ela. A palavra "fonte" a gotinha pendente teve uma derradeira convulsão

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  violenta e caiu entre os bocados de peixe partidos do prato do Sr. Sita  Ram-  - - Burke e Bacon - continuou o Sr. Sita Ram sonoramente -, Mil-  ton e Macaulay ...  . - Oh, olhem! -- A voz de Elinor Quarles tinha despedido um grito  agudo de alarma. Ela se ergueu tão s£bitamente que sua cadeira caiu para  tr s.  - Que  que h ? - perguntou o hindu em tom de aborrecimento. --   desagrad vel ser interrompido no meio de uma peroraão.  Elinor estendeu o brao, mostrando um sapo cinzento muito grande  que tratava de atravessar a varanda, laboriosamente, aos pulos. Dentro  do silncio os seus movimentos eram aud¡veis - baques moles, como se  algum deixasse cair repetidamente uma esponja £mida no chão.  - Sapo não faz mal a ningum - disse o Sr. Sita Ram, acostumado  ... fauna tropical.  Elinor lanou para o marido um olhar de s£plica. E o olhar com que  le lhe respondeu foi de desaprovaão.  - Com efeito, minha querida - protestou Philip Quarles. Ôle  Pr¢prio tinha forte antipatia aos animais viscosos. Mas sabia esconder s-  se sentimento com estoicismo. Acontecia o mesmo com a alimentaão.  Havia (e a palavra verdadeira, plenamente expressiva, ocorria-lhe agora)  Uma qualidade "sapal "no peixe que tinham comido. Apesar disto, conse-  guira com-lo. Elinor deixara o seu intato, depois do primeiro bocado.  - Não ser inc"modo para ti p"-lo para fora? - murmurou ela. O

  Nu rosto exprimia a agonia interior. - Tu sabes o quanto detesto sses  bichos. 

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O marido p"s-se a rir. Depois de pedir desculpas ao Sr. Sita Ram,  ergueu-se, muito alto e esbelto, e atravessou a varanda a manquejar. Com  a ponta de sua pesada botina ortopdica, conduziu o animal at a beira da  plataforma. O sapo tombou sonoramente no jardim. Estendendo o olhar  para fora, Philip vislumbrou o mar, que brilhava por entre as estipes das

  palmeiras. A lua tinha subido e a folhagem tufada se recortava negra con-  fra o cu. Nem uma f"lha se movia. Fazia um calor enorme, um calor que  parecia ir aumentando ... medida que a noite avanava. O calor sob o sol  tolerava-se; era natural. Mas aquela obscuridade sufocante ... Philip  enxugou o rosto e tomou a sentar-se ... mesa.  - Como o senhor dizia, Sr. Sita Ram ...  Mas o primeiro arroubo admir vel e despreocupado do Sr. Sita Ram j

se evaporara.  - Estive relendo hoje algumas das obras de Morley - anunciou le.  - Papagaio? - exclamou Philip Quarles, que gostava, de vez em  quando, de empregar propositadamente trmos da g¡ria escolar. Isso pro-  - 1 .  duzia. sempre o seu efeito no meio de uma conversaao seria.

  Mas dificilmente se poderia esperar que o Sr. Sita Ram apanhasse a  significaão completa daquele "Papagaio!"  -- Que pensador! - continuou o hindu. - Que grande pensador! E  seu estilo  tão puro ...  - Sem d£vida. . .  - H algumas frases boas -- prosseguiu o Sr. Sita Ram. - Eu as  anotei. - Procurou nos bolsos, mas não conseguiu achar o livro de  notas, - Não faz mal. Mas eram boas frases. As vzes lemos todo um li-  vro sem achar uma simples frase de que nos possamos lembrar para fazer  uma citaão. Para que servem livros assim, eu lhe pergunto?

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  - Para que servem mesmo?  Quatro ou cinco criados desalinhados surgiram do interior da casa e  trocaram a loua. Apareceu um prato de croquetes de aparncia duvido-  sa. Elinor lanou um olhar desesperado ao marido e depois se voltou para  o Sr. Sita Ram, a fim de lhe assegurar que nunca comia carne. Philip,  comendo est¢icamente, aprovou a sabedoria da mulher. Bebram o cham-  panha doce, que estava quase tão quente como o ch . As alm"ndegas fo-  ram seguidas por doces - bolas grandes e p lidas (muito manuseadas,  estava- se vendo, prolongada e carinhosamente roladas entre as palmas  das mãos), de alguma substncia equ¡voca, ao mesmo tempo viscosa e  granu a, e cujo gos o e gor ura e carneiro persistia raves a  doura.  Sob a influncia do champanha, o Sr. Sita Rarri recobrou a eloqncia.  Seu £ltimo discurso foi pronunciado uma segunda vez.  -- H uma lei para os inglses - disse le - e outra para os hindus,  uma para os opressores e outra para os oprimidos. A palavra ",;ustia" ou  desapareceu do vosso vocabul rio ou então mudou de significaão. 

76 

- Sou levado a crer que tenha mudado de significaão - disse Phi- 

w#

 

O Sr. Sita Ram não lhe deu atenão. Estava cheio de uma indignaão  sagrada, tanto mais violenta quanto era impotente.  - Considere o caso - prosseguiu (e sua voz, que le j não contro-  Uva, tremia) - daquele desgraado chefe de estaão de Bhowanipore.  Mas Philip recusou-se a consider -lo. Estava'a pensar na maneira co-  mo a palavra "justia" muda de significaão. Ajustia para a ¡ndia signi-  fic&va uma coisa antes de le visitar o pa¡s. Significava algo muito dif-  rente agora que le estava prestes a deix -lo.  O chefe da estaão de Ilhowanipore, pelo visto, tinha uma rolha de ser-  vios sem mancha e nove filhos.

  - Mas por que não lhes ensinam a limitar a natalidade, Sr. Sita Ram?  perguntou Elinor. Aquelas descriões de fam¡lias enormes lhe davam  c&1~ Lembrava-se de quanto tinha sofrido quando lhe nascera o  pequeno Phil. E, no futi de contas, ela tinha tido clorof¢rmio e duas enfer-  meiras e Sir Claude Aglet. Ao passo que,a mulher do chefe da estaão de  ffiowanipore... Elinor ouvira falar nos mtodos das parteiras indianas.  Estremeceu. - Não  acaso a £nica esperana para a ¡ndia?  O Sr. Sita Ram, no entanto, pensava que a £nica esperana era o  sufr gio universal e a autonomia. Continuou cm a hist¢ria do chefe de  estaio. O homem tinha passado em todos os exames com xito; os seus  t¡tulos eram os melhores poss¡veis. E, no entanto, por quatro vzes deixa-  ra de ser promovido. Quatro vzes, e sempre em favor de europeus ou de

  mestios. O sangue do Sr. Sita Ram fervia quando le pensava nos 5 O00  anos de civilizaão hindu, de espiritualidade hindu, de superioridade mo-  ral hindu, cinicamente espezinhados, na pessoa do chefe da estaão de  Ilhowanipore, pelos inglses.  - Isto justia, pergunto? - Bateu na mesa.  "Quem sabe?", devaneava Philip. "Talvez seja."  Elinor estava ainda pensando nos nove filhos. Para conseguir um parto  r pido, as parteiras - segundo ouvira dizer - sapateiam. sâbre as suas  pacientes. E, em vez de ergotina, empregam uma pasta feita de estrume de

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  vaca e de vidro mo¡do.  - O senhor chama a isso justia? - repetia o Sr. Sita Ram.  Compreendendo que se esperava dle alguma resposta, Philip sacudiu  a cabea e disse:  - Não.  - O senhor devia escrever a respeito do assunto - sugeriu o Sr. Sita  Ram. - Devia desmascarar o escndalo.  Philip se desculpava; era apenas escritor de romances, e não pol¡tico  Ou jornalista. E, numa inconseqncia aparente, ajuntou:  - Conhece o velho Daulat Singh? Aqule que mora em Ajmere?  - J encontrei sse homem - disse o Sr. Sita Ram, cujo tom de voz# 

tornava bem claro que le não gostava de Daulat Singh, ou que talvez  (mais provilvelmente, pensou Philip) não tinha deixado boa impressao  nle.  - Pareceu-me uma excelente pessoa - disse PhiIip. Para homens co-  mo Daulat Singh a justia devia significar alguma coisa muito diferente  do que significava para o Sr. Sita Ram ou para o chefe da estaão de  Bhowanipore. Òle se lembrou daquele rosto velho e negro, dos olhos  brilhantes e da paixão contida de suas palavras. Se ao menos o homem se  pudesse abster de mascar btel. . .

  Chegou a hora da partida. Finalmente. Despcdirain-se com uma  cordialidade quase excessiva, subiram para o autom¢vel que os esperava  e se foram. Sob as palmeiras de Joohoo o solo estava crivado de moedas  de prata refulgente, salpicado de poas de merc£rio. Òles rolavam atravs  de uma cintilaão trmula e cont¡nua de luz e de sombra - o cinema de  h vinte anos atr s -, at que, emergindo de baixo das palmeiras, acha-  ram-se em pleno clarão de uma lua enorme.  110h , triforme Hcate!", pensou Philip, pestanejando diante daquele  fulgor redondo. "Mas que dizer de Sita Ram, de Daulat Singh e do chefe  de estaão? E a velha ¡ndia lament vel, a justia, a liberdade, o progresso  e o futuro? A verdade  que nada disso me importa. Nem um tiquinho.   vergonhoso. Mas não me importa. E as formas de Hcate não são trs.  São milhares, são milhões. As mars. A deusa nemorense, a tifatina.

  Variando na razão direta do produto das massas e na razão inversa do  quadrado das distncias. Pequena como 1 florim, na ponta do brao, mas  tão grande como o imprio russo. Maior do que a ¡ndia. Que conf"rto es-  tar de volta ... Europa outra vez! E pensar que houve um tempo em que eu  lia livros a respeito da ioga, fazia exerc¡cios de respiraão e tentava  convencer-me de que eu realmente não existia! Que asneira! Era o resul~  tado das palestras com aqule idiota do Burlap. Mas felizmente os outros  não deixam em mim uma impressão muito duradoura. Impressionam-me  f cilmente, como um barco deixa a sua marca na gua. Mas a gua torna  a se fechar. Eu s¢ queria saber como ser sse barco italiano que vamos  tomar amanhã. Todos os barcos do LJoyd Triestino tm a reputaão de  serem bons. 'Felizmente', eu disse; mas não devemos ter vergonha da  pr¢pria indiferena? Aquela par bola do semeador. A semente que caiu

  em terra m . E no entanto, positivamente, não vale a pena fingir ser o que  não somos. O resultado disso se pode ver em Burlap. Que comediante!  Mas le ilude uma porão de gente. Inclusive a si mesmo, suponho. Não  creio que existam hip¢critas conscientes, exceto para ocasiões especiais.  Não  poss¡vel continuar representando um mesmo papel sempre e sem-  pre. De qualquer modo, seria bom saber o que  a gente acreditar em  alguma coisa at o ponto de ficar disposto a matar ou morrer. Seria uma  grande experincia. . . "  Elinor tinha erguido o rosto para o mesmo disco brilhante. Lua, lua 

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  78 

cheia... E instantneamente ela trasladou-se no tempo e no espao. Bai-  xou os olhos e voltou-se para o marido; tomou-lhe da mão e se apoiou  ~amente contra le.  - Lembras-te daquelas noites? No jardim, em Gattenden. Lembras-# 

te, Phil?  As palavras de Elinor chegaram aos ouvidos do escritor como que vin-  das duma grande distncia e de um mundo pelo qual, naquele momento,  nio se sentia interessado. Philip despertou com relutncia.  - Que noites? - perguntou, falando como que do fundo de abismos,  e com aquela voz incolor e sem inflexão do homem que responde a um  chamado teler"nico importuno.  Ao som dessa voz de telefone Elinor se afastou vivamente do marido.  Conchegar-se a gente a algum cujos pensamentos estão longe não  s¢  decepcionante;  tambm uma humilhaão. Na verdade, que noites?  - Por que não me amas mais? - perguntou Elinor com desespro.  Com¢ se f"sse poss¡vel estar-lhe falando de noites outras que não aquelas  maravilhosas noites de verão que ambos tinham passado, logo ap¢s o  casamento, na casa da mãe dela. - Nem sequer tomas o menor ntersse

  por mim, agora;  como se eu fosse uma pea da mob¡lia, muito menos do  queum livro.  - Mas, Elinor, de que  que est s falando? - perguntou Philip, pon-  do na voz um espanto exagerado. Depois do primeiro momento, quando  j tivera tempo de vir ... superficie, porlassim dizer, emergindo das profim-  dezas do seu devaneio, le conseguira entender o que a mulher queria  dizer, tinha ligado a lua da ¡ndia ...quela lua que brilhara, havia oito anos,  s"bre o jardim de Hertfordshire. Podia ter dito isso, naturalmente. Teria  facilitado a reconciliaão. Mas estava irritado por ter sido interrompido,  não gostava de que o censurassem, e era forte a tentaão de se sentir vito-  rioso num torneio orat¢rio com a espâsa. - Eu formulo uma pergunta

  simples - continuou le -, desejando meramente saber o que querias  dizer. E tu me respondes com a queixa de que eu não te amo. Não consigo  perceber a relaão l¢gica entre uma coisa e outra...  - Mas tu sabes perfeitamente bem do que eu estava falando - disse  Elinor. - E, de resto,  verdade. Tu não me tens mais amor.  - Mas acontece que tenho, tenho, sim - volveu Philip, e, ainda  escaramuando (se, bem que em vão, como le sabia) no dom¡nio da  dialtica, prosseguiu, como um pequeno S¢crates, com o seu  question rio. - Mas o que eu realmente quero saber  como chegamos a  igo ponto, partindo do lugar em que comeamos. Principiamos com noi-  tes e agora...  Mas Elinor estava mais interessada no amor do que na l¢gica.  - Oli, eu sei que não queres dizer que não me amas - interrompeu-o

  cla. - Pelo menos em palavras. Não queres ferir os meus sentimentos.  Mas tu me feririas menos se me dissesses tudo redondamente, em vez de 

79# 

como fazes agora. Porque esta esquivana vale  jissao nua. E fere mais porque dura mais tempo,

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  espera, a repetião da dor. Enquanto as palavras  ~~ciadas de modo definitivo, h sempre uma possi- 

~0o quando sabemos que elas estavam subenten-  ,~,'0estejarn t...citarnente subentendidas. Sempre h

~~51 1~  pr para a esperana. E onde h esperana h

~,`o  mais gentil fugir ... questão, Plifi,  mais cruel.  1, ~ ~ questão. Por que haveria de fugir, uma vez que 

~COmo  que me amas? Não  da maneira como  /~I Ou talvez tenhas esquecido. Tu nem mesmo te  o nos casamos.  pa -protestou Philip -, s, por favor, mais pre-  Ii~N  pente "aquelas noites" e f icaste esperando que eu  te referias.  fiquei. Tu devias saber. Tu terias sabido se isso  ~M (  pouco. Eis de que me queixo. Tu me amas tão  ~~O em que me arriavas verdadeiramente nada signi-  e~ o, eu Posso esquecer aquelas noites?  com as suas flores invisiveis e perfumadas, a  ~ [ ~1~~ ~1, . ~(ii s¢bre o relvado, a lua que su

bia, e os dois gri-  i , ~',0eritidade do Muro baixo do terrao onde os dois   1 wi(  ~'4V~0, le lhe tinha dito, os seus beijos, o contato de  ~i ~44 A odo - relembrou com a precisão minuciosa de  NV e reconstruir o passado, de quem sempre anda  ~~ ,~, k~VorOso, em t"rno de cada detalhe precioso da fli-  \~ J~ , k , kuil  oplesmente no teu esp¡rito - ajuntou ela, numa  Para ela, aquelas noites eram ainda mais reais,  '11kor o, itOs momentos de sua vida atual.  o me lembro - redargiu Philip, com impacin-  q O gue a gente não pode reajustar instantneamente

  q %~o fio Primeiro inomento, aconteceu que eu estava  1 ~fN k i ,  ~,~J -4,eisaquestão. 

~~ oJ iam in outras coisas em que pensar. Eis o meu  i~ ~ra t, i~ hei eu de te arriar tanto? Por qu? Não  justo.  ir q,_,0 eu -  pel  intelecto e pelo teu talento. Tens o teu traba  r uP Jo, as tuas idias, que te servem de escudo. Mas  Iti~ii`Penhuma defesa contra os meus sentimentos,  ~N  i~ -' g de ti. E sou eu que necessito de defesa e de

 # 

a f~* 

reragio. Porque sou eu que amo de verdade. Não existe nada contra que  precises ser protegido. Tu não amas. Não, não justo, não  justo.  No fun de contas, pensava ela, tinha sido sempre assim. Òle nunca che-

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  gwa a am -la de verdade, nem mesmo no princ¡pio. Nunca a quisera  p~amente, inteiramente, com um abandono total. Porque mesmo no  ~pio Phil tinha fugido ...s suas perguntas, tinha recusado entregar-se  completamente a ela. Elinor, por sua vez, lhe oferecera tudo, tudo. Philip  ~itara o que ela lhe dava, mas sem retribuir. A sua alma, as intimidades  de seu ser - le lhas recusara sempre. Sempre, mesmo no princ¡pio, mes-  mo quando mais a amava. Elinor fora feliz então - mas £nicamente por-  que tinha sido suficientemente ingnua para ser feliz, porque não tinha  compreendido, em sua inexperincia, que o amor podia ser diferente e  melhor. Ela sentia agora um prazer perverso em rebaixar  retrospectivamente a sua felicidade, em devastar as suas lembranas. A  lua, o jardim sombrio e perfumado, a grande rvore negra e a sua sombra  veludosa sâbre a relva... Elinor as negava, rejeitava a felicidade que elas  . 1 .  simbolizavam em sua mernoria.  Philip Quarles, entrementes, não dizia nada. Realmente não havia nada  a dizer. Cingiu com o brao o corpo da esp"sa e puxou-a contra si;  beijou-lhe a testa e as p lpebras trmulas, que estavam £midas de l gri-  mas.  Os s¢rdidos arrabaldes de Bombaim passavam deslizando ao lado  dles - f bricas e pequenas cabanas e enormes habitaões-fantasmas de  uma brancura de ossadas sob o luar. Pedestres pardos e de pernas finas  apareciam por um momento ao clarão dos far¢is, como verdades apreen~

  didas por intuião e com uma certeza imediata, para desaparecerem outra  vez, quase instantnearn ente, dentro de vazio das trevas exteriores. Aqui  -C ali, ...S margens da estrada, o lume duma fogueira sugeria mistei:jsa-  mente a existncia de membros e rostos sombrios, Os habitantes dum  mundo mental tão afastado do mundo de Philip e Elinor como as estrlas  espreitavam de dentro de suas rechinantes carrtas de bois o casal que  passava veloz num relmpago.  - Minha querida--- repetia le constantemente -, minha queri-  da...  Elinor deixou-se consolar.  - Tu me amas um pouquinho?  - Amo-te muito.  Ela chegou a rir; um riso entrecortado de soluos,  verdade, mas no

  fim de contas ainda era um riso ...  - Fazes o poss¡vel para ser gentil comigo. - E depois de tudo, pen-  sava ela, aqules dias de Gattenden tinham sido verdadeiramente cheios  de felicidade. Foram dela, ela os possu¡ra; não podiam ser negados.  Fam esforos tão grandes ... s muito gentil. 

R I# 

sas tentativas de conseguir uma intimidade ernocional, e finalmente com  sua inteligncia - aquela inteligncia r pida, cheia de compreensão,

  ub¡qua, que podia entender tudo, inclusive as emoões que não era capaz  de sentir e os instintos pelos quais tinha o cuidado de se não deixar levar.  Um dia, quando Philip lhe falara do livro de Koehler s"bre os maca-  cos, Elinor lhe dissera:  - Tu s como um rracaco do lado super-homem da humanidade. s  quase humano, como os pobres chimpanzs. A £nica diferena est em  que les procuram elevar-se ao pensamento com suas sensaões e seus  instintos, ao passo que tu procuras descer corri o teu intelecto. Quase  humano. Est s em equil¡brio inst vel, bem no limite, meu pobre Phil.

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  Òle compreendia tudo duma maneira tão perfeita! Eis porque era tão  divertido servir-lhe de dragornario e interpretar para le as outras pessoas.  (Era menos divertido quando ela tinha de se interpretar a si mesma.) Tudo  quanto a inteligncia podia apanhar le apanhava. Elinor fazia-1lhe o  relat¢rio de seu conv¡vio com os naturais do dom¡nio da emoão; e Philip  compreendia imediatamente, generalizava para Elinor o que ela sentia,  ligava-o a outras experincias, classificava-o, descobria analogias e para-  lelos. O simples e o individual se tornavam nas mãos dle parte de um sis-  tema. Elinor se admirava de ver que ela pr¢pria e suas amigas tirilham,  inconscientemente, confirmado uma teoria ou servido de exemplo a  alguma generalizaão interessante. Suas funões de dragornano não se  limitavam apenas aos reconhecimentos e -aos relat¢rios. Elinor agia  tambm direta e pessoalmente como intrprete entre Philip e os terceiros  com quem le talvez desejasse entrar ern contato, criando a £nica atinos-  fera prop¡cia ao intercmbio de personalidades e preservando a coriver-  saão contra o dessecamento intelectual. Entregue a si mesmo, Philip não  seria capaz de estabelecer o contato pessoal ou de conserv -lo, uma vez  estabelecido. Mas quando Elinor ali estava para estabelecer e conservar  sse contato, le compreendia e simpatizava por meio da inteligncia, du-  ma maneira que Elinor lhe afirmava ser tudo menos humana. Nas geinera-  lizaões a que le se entregava ap¢s as experincias que a esp"sa lhe  tornara poss¡veis, Philip voltava a ser indisfaradamente o super-hornem.  Sim, era divertido servir de dragornano, no dom¡nio dos sentimentos, a

  um turista de inteligncia tão excepcional. Mas era algo mais dc> que  .divertido; era tambm, aos olhos de Elinor, um dever. Havia os livros dle  a considerar.  - Ali! Phil - dizia ela -, se tu f"sses um pouco menos super-ho-  mem, que belos romances havias de escreven!  Philip concordava com Elinor, um tanto pesaroso. Tinha bastante  inteligncia para conhecer os seus defeitos. Elinor fazia o poss¡vel para  compens -los - dava-lhe informaões de primeira mão a respeitc) dos  h bitos dos nativos, agia como intermedi ria quando o marido desejava 

84 

em contato pessoal com algaim dles. Não s¢rnente por ela, mas

  pelo romancista que le podia vir a ser, Elinor quisera que Phil  aqule h bito de impessoalidade e aprendesse a viver pelas  sensaões, instintos, da mesma maneira que vivia pela  cia. Her¢icamente, ela o tinha encorajado mesmo em suas# 

de paixão por outras mulheres. Isso lhe poderia fazer bem -  ~as aventuras sentimentais- Tal era o seu desejo de fazer bem a  a qualidade de romancista que, mais de uma vez, vendo-o olhar  ma mulher m"a com admiraão, tentara estabelecer para o  o contato pessoal que le não teria sido capaz de estabelecer por

  . Era arriscado, sem d£vida. O homem podia apaixonar-se  te, podia esquecer-se da sua intelectualidade e corrigir-se,  entretanto, de alguma outra mulher. Elinor aceitou o risco,  porque pensava que a funão de escritor devia ser posta acima  o mais, mesmo acima de sua pr¢pria felicidade, e tambm porque  persuadida, em seu foro interior, de que de fato não existia nenhum  de que le jamais perderia a cabea completamente, a ponto de fu-  outra mulher. A cura pelas aventuras sentimentais, se  que era  se operaria docemente; e, nesse caso, Elinor estava certa de saber  ' _Mitar os felizes efeitos que ela havia de produzir em Phifip. F"sse co

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  Ç6 O58se, at agora não tinha mostrado nenhuma efic cia. As inf¡deli-  d~ de Philip iriontavam a muito pouco e não tinham tido efeito apre-  ¡ wl sâbre le. Continuava o mesmo, enlouquecedoramente o mesmo -  -.;i a.  ~Cate ao ponto de ser quase humano, gentil mas long¡nquo, apaixo-  ~ e sensual durna maneira desprendida, impessoalmente terno. Era de  ~quecer. Por que continuaria ela a arn -lo?, perguntava Elinor a si  me~ Era quase o mesmo que continuar amando uma biblioteca. Um  dia ela havia de deix -lo ...s deveras. Era imposs¡vel levar mais longe o  WwCumento e o altru¡smo. ·s vzes e preciso que a gente pense na  #~ felicidade. Ser amada, pelo menos uma vez na vida, ao invs de  11 211it-se apenas a amar; receber ao invs de estar perptuamente a  ... Sim, um dia ela o deixaria realmente. Tinha de pensar em si  O~ E, depois, seria uma punião para Phil. Uma punião, sim -  e ~, Elinor estava certa de que, se o deixasse, le seria sinceramente  ",~Iiz, ... sua maneira, tanto quanto lhe f"sse poss¡vel ser infeliz. E talvez  . i Ö ade pudesse operar o milagre que ela tinha ardentemente dese-  ee  em  R Prol d> qual vinha trabalhando havia tantos anos; talvez a  ~idade o tornasse sens¡vel, pessoal. Talvez conseguisse fazer dle um  O escritor. Talvez rosse seu dever torn -lo infeliz - o mais

  4~ de seus deveres ...  A vista de um cão que atravessava a estrada correndo, bem na frente  ,00 ~, dcsPertou-a do devaneio. Com que surpreendente rapidez o ani-  -,W Se Precipitara para dentro do estreito universo dos far¢is 1 Existiu 

85# 

durante uma fraão de segundo, correndo desesperadamente - depois  desapareceu de n"vo na escuridão, do outro lado do miundo luminoso.  Um outro cão surgiu de s£bito no lugar do primeiro, Perseguindo-o.

  - Oh! - gritou Elinor. - Ele vai ser. . . - As luzes se desviaram,  depois voltaram ... posião normal, houve um solavanco fofo, como se  uma das rodas tivesse passado por cima de uma pedra; mas a pedra latiu.  . esmagado - concluiu ela.  J foi esmagado.  O chofer indiano voltou a cabea para les, arreganhando os dentes  que Philip e Elinor viram brilhar no escuro.  - Dog! - disse le. Tinha orgulho do seu ingls.  - Pobre animal! - fez Elinor, arrepiada.  - A culpa foi dle - disse Philip. - Não olhou.  o que acontece  quando um animal corre atr s duma rernea da sua espcie.  Houve um silncio. Foi Philip quem o quebrou.  - A moral seria muito curiosa - disse, pensando em voz alta - se

  n¢s am ssemos por estaões, e não durante todo o ano, o que  moral ou  imoral variaria dum ms para outro. As sociedades primitivas tm mais  tendncia para o amor peri¢dico do que as cultivadas. Mesmo na Sic¡lia,  h duas vzes mais nascimentos em janeiro do que em ag"sto - o que  prova incontest...velmente que na primavera a imaginaão das pessoas  jovens ... Mas em parte alguma  s¢ na primavera. No homem não h

nada de inteiramente an logo ao cio das guas ou das cadelas. Exceto -  acrescentou - no dom¡nio moral. Uma reputaão m na mulher exerce a  mesma atraão que os sinais de cio na cadela. O mau renome anuncia que  ela  acess¡vel. A ausncia de cio  equivalente, no animal, aos h bitos e

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  aos princ¡pios da mulher casta...  Elinor escutava corri intersse e ao mesmo tempo com uma espcie de  horror. Assim, pois, o esmagamento trivial de um animal infeliz f"ra sufi-  ciente para por em movimento aquela inteligncia r pida e infatig vel.  Um pobre cão p ria, quase morto de fome, quebrava a espinha sob as ro-  das do carro, e ste incidente evocava em Philip uma seleão das  estat¡sticas de natalidade na Sic¡lia, uma especulaão sâbre a relatividade  da moral, uma generalizaão psicol¢gica brilhante. Era surpreendente,  era inesperado, era interessant¡ssimo, mas -- oh! - quase lhe dava ga-  nas de gritar. 

CAPITULO V11 

Walter se tinha livrado da Sra. Bettertori; acenara de longe para o pai  para LadY Edward, evitando-os; podia, pois, continuar na sua busca. E  eue procurava. Lucy Tantamount ti hajustamente surgi  por fim achou o q -ri  do da sala de jantar e ficara im¢vel sob as arcadas, olhando com indeci-  sio dum lado para outro. o contraste com o luto do vestido tornava a sua  pele luminosamente branca. Trazia no corpete um buqu de gardnias.  Ergueu uma das mãos para tocar os cabelos negros e lisos, e a esmeralda  do anel enviou a Walter um sinal verde atravs da sala. Com "lho cr¡tico,  com uma espcie de frio ¢dio intelectual, Walter olhava para ela e

  perguntava a si mesmo por que a amava. Por qu? Não havia razão, não # 

havia justificaão. Tâdas as razões eram contra aqule amor.  De repente Lucy se moveu, desapareceu-lhe das vistas. Walter a seguiu.  Passando diante da entrada da sala de jantar, deu com Burlap, que j não  era mais o anacoreta: bebia agora champanha e ouvia a conversaão da  Condssa d'Exergillod. "Bolas", pensou Walter, lembrando-se de suas  pr¢prias aventuras com Moily d'Exergillod. "Mas Burlap proviivelmente  a adora.  capaz disso ... Òle. . . " Mas l estava ela de nâvo, falando -

  maldião 1 - com o General Knoyle. Walter ficou atento, sem se afastar  dles, esperando com impacincia a oportunidade de se dirigir a Lucy.  - Apanhada finalmente! - disse o general, batendo na mão da  jovem. - Estive a procurar-te t"da a noite.  Meio s tiro, meio titio, o general tinha uma franqueza de velho por  Lucy. - Que pequena encantadora! - af irmava le a todos os que que- 

riam ouvi-lo. - Que f igurinha encantadora ~ Que olhos 1 - Duma manei-  ra geral le preferia raparigas mais jovens. - Não h nada como a moci-  dade! - gostava de dizer. Os preconceitos que o velho militar alimentara  t"da a sua vida contra a Amrica e os americanos se tinham transfor- 

mado em admiraão entusi stica desde que, na idade de 65 anos, le visi~  tara a Calif¢rnia e vira asflappers* de Hollywood e as lindas banhistas  das praias do Pac¡fico. Lucy estava perto dos trinta, mas o general a  conhecia havia anos; continuava a trat -la cxno se ela fosse ainda a  menina dos primeiros tempos. Para le Lucy andava ainda pelos  dezessete. Bateu-lhe na mão novamente e disse: - Vamos ter uma boa  Palestra. 

* Gar"tas que mostram, audaciosamente, uma liberdade na conduta e na maneira de se tra^

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  fier. (N. do E) 

87# 

- Ser divertido - arirmori Lucy~ com uma polidez sarc stica. De  seu p"sto de observaão Walter contemplava a cena. O general f"ra um  homem bonito, em tempos passados. Espartilhado, o seu corpo alto ainda  conservava a postura militar. E le sorria, galante oficial da guarda;  cofiava o bigode branco. Volvido um momento, j se transformava no ve-  lho. titio brincalhão, protetor e confidencial. Sorrindo levemente, Lucy  fitava nle os olhos durn cinzento p lido, com um ar de divertimento,  desprendido e impiedoso. . . Walter a estudava. Nem mesmo era bonita.  Então por qu, por qu? Òle queria razões, queria uma justificaão. Por  qu? A pergunta se repetia com insistncia. Não havia resposta. Òle se ti-  nha simplesmente apaixonado por ela - loucamente, a primeira vez que  lhe pusera os olhos em cirria.  Voltando a cabea, Lucy deu pela presena dle. Acenou-lhe e cha-  mou-o pelo nome. Walter finigiu-se admirado e encantado pelo encontro.  - Espero que não tenhas esquecido o nosso compromisso - disse.  - Mas quando  que eu esqueo? Salvo ...s vzes, de prop¢sito. . . -  precisou ela com unia risadinha. Voltou-se para o general. - Walter e eu

  vamos ver o seu enteado esta noite - anunciou, com o tom de voz e com  o sorriso que a gente erriprega quando fala ...s pessoas a respeito dos que  lhes são caros. Mas entre Spandrell e o padrasto havia uma desavena  que a jovem bem sabia mortal. Lucy tinha herdado da mãe todo o seu  amor ...s indiscriões sociais propositadas, e a isso misturava um toque de  desprendida curiosidade cient¡fica, que lhe vinha do pai. Gostava de fazer  experincias, não com rãs e cobaias, mas sim com sres humanos.  Podem-se obter efeitos inesperados com as pessoas; pâ-las em situaoes  curiosas e esperar para ver o que acontece depois. Era o mtodo de Dar-  win e Pasteur.  O que aconteceu dessa vez foi que o rosto do General Knoyle ficou  extremamente vermelho.

  - H muito que não o vejo - respondeu com dureza.  "Bom", disse elade sipara si,"o homem est reagindo." E, em voz alta:  - Mas Spandrell  tão bom companheiro!  O general ficou mais vermelho ainda e franziu o sobrolho. Quanto ha-  via feito por aqule rapa , z! E como le se tinha mostrado ingrato, de que  maneira abomin vel se tinha portado sempre! Era despedido de todos os  empregos que o general lhe arranjava. Um pr¢digo, um ocioso; beberrao  e bilontra. Fazia a mãe infeliz, vivia do que lhe podia extorquir, deson-  rava o nome da fam¡lia. E a insolncia do sujeito, as coisas que le tivera  o topte de dizer a £ltima vez em que encontrara o padrasto, por ocasião  da cena habitual! Era l poss¡vel o General Knoyle esquecer que lhe  tinham chamado "velho impotente e trapalhão"?  - E tão inteligente! - continuou Lucy. Com um sorriso interior, ela

  relembrou o resumo que Spandrell fazia da carreira do padrasto.---Refor-  mado compuls¢riamente em Harrow", comeava o resumo, "sa¡do de 

X  Sandhurst no rabo da lista, teve uma carreira distinguida no Exrcito, 

Q5Z 

atingindo durante a guerra um alto p"sto no Military Intelligence Depart-#

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ment." A maneira como Spandrell desenrolava aquela not¡cia necrol¢gica  antecipada era realmente magn¡fica. Era o pr¢prio Times que se fazia  aud¡vel. E depois, as suas observaões s"bre a Inteligncia Militar em  geralf "Se procurarmos a palavra 'inteligncia' na nova edião da  jEnciclopdia Britnica", dizia o rapaz, "ach -la-emos classificada debai-  xo de trs rubricas, a saber: Inteligncia- Hum an a; Inteligncia-An¡maL  Inteligncia-Militar. Meu padrasto  um espcime consumado da  Inteligncia-Militar."  - Tão inteligente. . . - repetia Lucy.  - H quem pense assim, eu sei - tomou o General Knoyle corn  muita aspereza. - Mas pessoalmente ...  Pigarreou com violncia. Aquela era a sua opinião pessoal.  Um instante mais tarde, ainda r¡gido, ainda colericam ente digno, afa...  tou-se de Lucy e Walter. Sentia que a rapariga o ofendera. Nem mesmo a  sua juventude, nem mesmo aqules ombros nus compensavam para le a,  referncias laudat¢rias a Maurice Spandreil. Aqule cusco insolente! Sua  existncia era constante motivo de ressentimento do general para corri a  espâsa. Uma mulher não tinha direito de ter um f ilho como aqule, não ti-  nha direito. A pobre Sra. Knoyle havia expiado muitas vzes diante do  marido as faltas do filho. Ela estava presente, podia ser punida, cra fra

c-~i  demais para resistir. E o general, exasperado, punia na mãe os pecados Jo  filho.  Lucy lanou um olhar r pido para o vulto que se afastava e voltou-~-~  em seguida para Walter.  - Não posso correr o risco de ver reproduzir-se de nâvo uma cor  como esta... O caso em si j seria bastante desagrad vel, mesmo que  não cheirasse tão mal. Vamos?  Walter não desejava nada melhor.  - Mas ... e tua mãe, e os deveres sociais? - perguntou.  Lucy deu de ombros.  - No fim de contas, mamãe pode cuidar s¢zinha da sua jaula de  ursos...

  1 .- Eis a palavra: jaula de ursos - disse Walter, sentindo-se s£bita  mente cheio de esperana. - Vamos sair furtivamente para algum lugar  onde haja sossgo. 

- Meu pobre Walter! - Os olhos dela estavam cheios de zombaria.  Nunca vi ningum que tenha como tu essa mania de sossgo. Mas  acontece que eu não quero sossgo.  A esperana do rapaz se evaporou, deixando uma pequena amargura  dbil, uma c¢lera impotente.  - Por que não ficar em casa, então? -- perguntou, numa tentativa de  sarcasmo. - Isto aqui não est suficientemente barulhento?  - Ah! mas ste não  o barulho de que gosto - explicou ela. - Não 

89# 

h nada que eu odeie mais do que o barulho de pessoas eminentes,  respeit veis e cultas como as criaturas que aqui estão. - Sacudiu a mão  num gesto que abrangia tâda a sala. As palavras evocavam em Walter a  lembrana de noitadas horrendas passadas com Lucy na companhia de  gente pouco educada, de m reputaão, ainda por cima embriagada. Os

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  convivas de Lady Edward eram j bastante maus. Mas os outros eram  seguramente piores. Como os podia ela tolerar?  Lucy pareceu adivinhar os pensamentos do companheiro. Sorrindo,  segurou-lhe o brao num gesto tranqilizador.  - Animo! - fez ela. - Desta vez não te vou levar para m s compa-  nhias, L teremos Spandrell ...  Spandrefi. . . - repetiu Walter, fazendo uma careta.  E, se Spandrell não  bastante distinto para ti, acharemos provilvel-  mente Mark Rampion e a esp"sa, se não chegarmos tarde demais.  Ao ouvir o nome do pintor e escritor, Walter fez um gesto de apro-  vaão.  - Não, não ponho objeão a escutar a barulheira do Rampion - dis-  se. E, a seguir, fazendo um esf"ro para vencer a timidez que sempre o  emudecia quando chegava o momento de dar expressão aos seus senti-  mentos: - Mas eu preferia antes - ajuntou jovialmente, como para tem-  perar a afoiteza de suas palavras -, eu preferia antes escutar em  p ticular o ru¡do que tu fazes ...  Lucy sorriu, mas não disse nada. Walter fugiu ao olhar dela, com uma  espcie de terror. Aqules olhos o consideravam calmamente, friamente,  como se j tivessem visto tudo ej não se interessassem muito. Eram ape-  nas levemente irânicos, muito leve e friamente irânicos.  - Est bem - disse le -, partamos.  O tom de sua voz era resignado e infeliz.  - Vamos sair na surdina - propâs Lucy. - Sejamos furtivos. Mau

  ser se nos surpreendem e nos fazem ficar ...  Mas não conseguiram escapar inteiramente despercebidos. J se apro-  ximavam da porta quando se ouviu atr s dles um sussurro e um som de  passos apressados. Uma voz pronunciou o nome de Lucy. Ambos se vol-  taram e viram a Sra. Knoyle, a esp¢sa do general. Ela pousou uma das  mãos no brao de Lucy.  - Acabo de saber que vais ver Maur¡ce esta noite - disse, sem con-  tudo explicar que o general lhe contara aquilo £nicamente porque queria  desafogar a ira dizendo algo de desagrad vel a algum que lhe não pudes-  se retribuir a grosseria. - D -lhe um recado meu, queres? - Inclinou-se  para a frente, implorativa. - Queres? - Havia qualquer coisa de patti-  camente jovem e desamparado naquele modo de falar, qualquer coisa  muito m¢a e suave naquelas feiões de mulher madura. Diante de Lucy,

  que podia ser sua filha, ela implorava como se se dirigisse a uma pessoa  mais velha e mais forte. - Por favor! 

90 

- Mas est claro que sim - respondeu Lucy.  A Sra. Knoyle sorriu, cheia de gratidão.  - Dize-lhe que eu irei v-lo amanhã ... tarde.  - Amanhã ... tarde.# 

- Entre 4 e 4 e meia. E não contes isso a ningum mais. . . - acres-  cegtou, ap¢s um momento de hesitaão embaraosa.  - Est visto que não contarei.  - Eu te fico tão reconhecida. . . - disse a Sra. Knoyle. E, numa  ~tina impulsividade t¡mida, inclinou-se para a frente e beijou Lucy  Tantamount. - Boa noite, minha querida.  E desapareceu no meio da multidão.  - Dir-se-ia - comentou Lucy, quando atravessava o vest¡bulo em  companhia de Walter - que ela estava marcando um encontro com o  amante e não com o filho ...

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  Dois lacaios lhes abriram a porta, obsequiosamente autom ticos. Ao  jech -la, um piscou o ...lho para e outro, signif icativamente.  , Pelo espao de um instante as duas m quinas se revelaram sob o aspec-  to perturbador de sres humanos.  Walter deu o endero do Sbisa's Restaurant ao condutor e penetrou  nas trevas fechadas do t xi. Lucy j se tinha instalado no seu canto.  Entrementes, na sala de jantar, Molly d'Exergillod estava ainda falan-  do. Sentia-se orgulhosa de sua palestra. A conversaão era um dom de  fan£lia. Sua mãe tinha sido uma das clebres Srtas. Geoghegans de  Dublim. O pai era aqule juiz Brabant, tão conhecido pela sua conver-  saão a mesa e pelas suas frases ticas no tribunal. Alm do mais, ela  havia feito um casamento de conversaão. D'Exergillod fora disc¡pulo de  Robert de Montesquiou e merecera a distinão de ser mencionado em  Sodome et GomorMe de Mareei Proust. Molly teria de forosamente ser  conversadora pelo casamento, se j não o f"sse de nascena. A natureza  e o meio tinham conspirado para fazer dela uma atleta profissional da  l¡ngua. Como todos os profissionais conscientes, ela não se contentava  em ter apenas talento. Era industriosa, trabalhava assiduamente para  desenvolver o dom natural. Amigos maliciosos diziam que Molly era  ouvida a estudar os seus paradoxos na cama, de manhã, antes de levantar.  Ela pr¢pria não negava que tinha di rios nos quais anotava, com a  hist¢ria complexa de seus pr¢prios sentimentos e sensaões, t"das as figu-  ras de ret¢rica, t"das as anedotas e todos os ditos espirituosos que lhe

  tinham ca¡do em graa. Refrescaria ela a mem¢ria passando os olhos por  *Ruelas notas cada vez que se vestia para ir a um jantar? Os mesmos ami-  tos que a tinham ouvido a cultivar paradoxos na cama tambm a tinham  descoberto, como estudante em vspera de exame, decorando laboriosa-  mente os epigramas de Jean Cocteau s"bre arte, as hist¢rias de contar ...  *Obrernesa, de Mr. Birreil, as anedotas de W. B. Yeats a respeito de Geor-  F Moore e o que Charlie Chaplin tinha dito a ela e dela por ocasião de 

91 

1 1 

ti# 

11 

1  11 ; 

sua £ltima viagem a Hollywood. Como todos os conversadores prof¡ssio-  nais, Moily era muito econ"mica corri o seu esp¡rito e corri a sua sabedo-  ria. Não existem bons mots* em quantidade suficiente para prover uni

  conversador industrioso de um nâvo sortimento a cada ocasião mundana.  Se bem que extenso, o repert¢rio de Molly era, como o de outros conver-  sadores mais clebres, limitado. Como boa dona de casa, ela sabia utili-  zar as migalhas sobradas da palestra do jantar da noite anterior para pro-  ver o lanche da manhã. Os assados do funeral de segunda-feira serviam  para as bodas de tra.  Para Derinis Burlap, Molly estava servindo a conversa que j tinha si-  do servida e apreciada, no alm¢o oferecido por Lady Benger, pelos

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  convidados do fim de semana em Gobly, por Tommy Fitton, que era um  de seus jovens galãs, por Vlad¡mir P vlov, que era outro, pelo embaixa-  dor americano e pelo Barão genito Colien. A conversaão girava em t"r-  no do t¢pico favorito de Molly.  - Sabes o que Jean disse de mim? - perguntava ela (Jean era o  marido). - Sabes? -- repetiu com insistncia, porque tinha o curioso  h bito de exigir respostas a perguntas meramente ret¢ricas. Inclinou-se  para Burlap, oferecendo os seus olhos negros, os seus dentes, o seu deco-  te.  Burlap respondeu devidamente que não sabia.  - Pois le disse que eu não era inteiramente humana. Que eu parecia  mais um esp¡rito dos elementos do que uma mulher. Uma espcie de fada.  Achas que ~ um elogio ou um insulto?  - Isso depende do g"sto de cada um - disse Burlap, dando ao  pr¢prio rosto um ar malicioso e sutil, como se tivesse dito uma coisa um  tanto ousada, cheia de esp¡rito e ao mesmo tempo profunda.  - Mas eu nem mesmo acho que isso seja verdade - prosseguiu  Molly. - Não tenho em absoluto a impressão de ser um esp¡rito dos  elementos ou uma fada. Sempre me considerei como uma filha da nature-  za, perfeitamente simples e franca. Uma espcie de camponesa, mesmo.  - Neste ponto da representaão de Molly todos os outros ouvintes  tinham rompido num c¢ro de protestos cheios de risadas. O Barão Benito  Cohen declarara com veemncia que ela era "uma das imperratrrizess  rornanass da natureza".

  A reaão de Burlap foi inesperadamente diversa da dos outros. Sacudiu  a cabea, sorriu com uma espcie de expressão long¡nqua e extravagante.  - Sim - disse -, eu acho que  verdade. Uma filha da natureza,  maigr tout*~ Tu usasdisfarces, mas a criatura sincera e simples se mos-  tra atravs dsses disfarces.  Molly ficou deliciada com o que julgava ser o mais alto elogio que Bur- 

* Ditos espirituosos- (N. do E) 

* * Apesar de tudo. (N. do E) # 

92 

ljp lhe podia fazer. Tinha ficado igualmente deliciada com as negaões  dos outros quanto ... sua qualidade de camp"nia. Aquelas negaões e  protestos eram tambm o melhor elogio. A intenão lisonjeira, o intersse  pela sua personalidade eram o que importava. Pouco a preocupavam as  op inibes reais de seus admiradores.  ]Burlap, no entanto, estava desenvolvendo a ant¡tese de Rousseau entre  o ]Elomem e o Cidadão. Molly cortou-lhe bruscamente a palavra e trouxe  a eonversaão de volta para o tema original.  11 - Sres humanos e fadas: eis uma classificaão muito boa, não

  whas? - Inclinou-se para a frente, oferecendo o seu rosto e o seu seio,  uma intimidade. - Não achas? - insistiu ela, repetindo a pergunta 

Talvez. - Burlap aborrecera-se por ter sido interrompido.  O ser humano vulgar - sim, admitamo-lo -, o que  demasiada-  ~te humano, dum lado. E o esp¡rito dos elementos do outro. Um, todo  ~avado, envolvido num sem-n£mero de coisas sentimentais - eu sou  Wrfivelmente sentimental, diga-se de passagem. (-Maiss ou menos tão  ~timental como as serreiass na Odissia", iegundo o coment rio cl s-  deo do Barão Benito.) O outro, o elemento da natureza, absolutamente li-

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  vre e desligado das coisas, como um gato; um gato que vai e vem - que  vai tio alegremente como veio; encantador, mas nunca encantado; fazen-  do os outros sentir, mas nunca realinepte sentindo le pr¢prio. Ah! Eu  lhes invejo essa liberdade area!  - Podias do mesmo modo invejar um balão - disse Burlap grave-  mente. O redator do Literary World sempre tomava o partido do coraão.  - Mas les se divertem tanto ...  - Òles não tm sentimento suficiente para se poderem divertir. Pelo  =nos  o que me quer parecer ...  - Para se poderem divertir, tm. . . - precisou ela - mas talvez  aio tenham sentimento suficiente para serem felizes. E, na certa, não o  tim tambm bastante para serem infelizes. Eis a razão pela qual são tão  iavej veis. Sobretudo quando inteligentes. Veja Philip Quarles, por exem-  plo. Eis um homem-fada, se  que existem homens assim. - Molly se  lanou na sua descrião cl ssica de Philip. "Zoologista da ficão", "elfo  iutru¡do", "Puck cient¡fico" - eram algumas de suas frases. Mas a  melhor delas lhe tinha fugido da mem¢ria. Desesperadamente Moily p¢s-  a a dar-lhe caa; mas a frase zombava das suas tentativas. Aqule retrato  &maneira de Teofrasto teve de vir ... luz despojado, desta vez, do seu efei-  10 mais brilhante, e um tanto desfigurado, de todo, pela conscincia que  ,14011y tinha da particularidade esquecida e pelos esforos desesperados  4uc ela fazia para reparar a falta, enquanto despejava o discurso.  i- - Ao passo que a mulher - concluiu ela, sentindo dolorosamente

  ,*#e Burlap não tinha sorrido tantas vzes como devia -  absolutamente  oposto de uma fada. Nem elfo, nem instru¡da, nem particularmente 

93 

11  li# 

inteligente. - Molly sorria com um ar um pouco superior. - Um ho-  mem como Philip deve ach -la ...s vzes um tanto insuficiente ... e isto   o menos que se pode dizer. - O sorriso persistia, transformado agora em  sorriso de quem est satisfeito consigo mesmo. Philip tinha tido um fraco  po ela; e continuava a ter ainda. Escrevia cartas tão divertidas, quase tão  divertidas como as dela. C'Quandje vetix brifier dans le monde " - Molly  gostava de repetir os elogios do marido -, 'ye cite des phrases de tes  leitres*") - Pobre Elirior 1 ·s vzes ela  um pouquinho cacte - conti-  nuou Molly. - Mas, note bem, fora disso  unia criatura extremamente  encantadora. Conheo-a desde quando ramos meninas. Encantadora,  mas não se parece em absoluto com uma Hipatia. - Elinor era t"la

  demais para compreender que Philip teria de se sentir fatalmente atra¡do  para uma mulher que tivesse a mesma estatura mental que le, uma  mulher a quem le pudesse falar em p de igualdade. T"la demais para  perceber, quando os reunira, o quanto le tinha ficado impressionado.  T61a demais para ser ciumenta. Molly sentira a ausncia de ci£me, da  parte da mulher de Philip, como uma espcie de insulto. Não que ela  tivesse dado motivo real para ci£mes. Não dormia com os maridos das  outras; apenas palestrava com les. No entanto, palestrava muito, quanto  a igto não havia d£vida. E certas esp"sas se tinham mostrado ciumentas.  As maneiras cheias de confiana ingnua de Elinor a tinham picado ao

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  ponto de fazer que ela se mostrasse mais gentil que de ordin rio para com  Philip. Mas o escritor se ausentara para fazer uma viagem ao redor do  mundo, e isso antes que a camaradagem dles se pudesse desenvolver. A  palestra - antecipava Molly - seria agrad velmente renovada quando  le voltasse. "Pobre Elinor!", pensou ela com piedade. Seus sentimentos  podiam ter sido um pouco menos cristãos se ela soubesse que a pobre Eli-  nor tinha percebido a expressão de admiraão nos olhos do marido, ainda  antes que Molly desse por ela, e que, percebendo-a, se pusera a repre-  sentar conscientemente o papel de dragornano e de intermedi rio. Não  que tivesse muita esperana ou temor de que Molly lograsse operar o  milagre transformador. Ningum se apaixona com desespro por um alto-  falante, por mais bonito, por mais rijamente carnudo (porque os gostos de  Philip eram um tanto fora de moda) e por mais convidativamente  calip¡gio que seja... A £nica esperana de Elinor era que as paixões  despertadas por essas qualidades de beleza e de carnosidade seriam tão  inadequadamente satisfeitas pela conversaão (porque, de ac"rdo com os  boatos, a conversaão era tudo quanto Molly concedia ... ) que o pobre  Philip ficaria reduzido a um estado de raiva e desespro muito prop¡cio  ao trabalho liter rio.  - Mas est claro - continuou Molly - que a inteligncia nunca de-  ve casar com a inteligncia. Eis por que Jean me est sempre ameaando 

* Quando eu quero brilhar no mundo, citofrases de tuas cartas. (N. do E.) 

94 com o div¢rcio. Diz que sou por demais estimulante. "Tu ne mennuies

  pas assez* ", diz le; e le necessita  "unefemme sdative** " E eu julgo  que meu marido realmente tem razão. Philip Quarles foi s bio. Imagine-  se um homem-fada inteligente como Philip casado com uma mulher# 

igualmente inteligente do mesmo reino. - Lucy Tantarnount, por exem-  plo. Seria um desastre, não acha?  - Mas Lucy não seria um desastre para qualquer homem, fada ou

  BRO9  - Não, devo confessar que gosto de Lucy. - Molly voltou-se para o  seu armazm interior de frases teofr sticas. - Gosto da maneira como  ela passa pela vida: flutua, em vez de rastejar. Gosto do modo como ela  volita de flor em flor - o que  talvez uma descrião demasiadamente  botinica e potica de Bentley, Jim Conklin, dsse pobre Reggie Tanta-  motint, de Maurice Spandreil, de Tom Trivet, de Poniatovsky, daquele jo-  vem francs que escreve peas de teatro - como  mesmo que le se cha-  ma9 - e de v rios outros que a gente esqueceu ou de que nunca ouviu  falar,  Burlap sorriu; todos sorriam neste ponto. Moily continuou:  - Seja como for, ela volita ... Causando grandes estragos nas ffires,  devo admitir... Mas não tirando para si mesma nada mais alm do pra-

  zer. Confesso que a invejo um  flutuar...  - Mais razão tem ela de invejar-te a ti - observou Burlap, outra vez  com um ar profundo, sutil e cristão, meneando a cabea.  - Invejar-me por eu ser infeliz?  - Quem  infeliz? - perguntou Lady Edward, irrompendo no meio  do grupo naquele instante. -- Boa noite, Sr. Burlap - continuou ela sem  esperar resposta. Burlap lhe disse o quanto tinha apreciado a m£sica.  - Est vamos justamente falando de Lucy -- disse Moily d'Exergil-  lod, interrompendo-o. - Est vamos de ac"rdo em que ela  como uma

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  fada. Tão leve e tão livre ...  - Uma fada! - repetiu Lady Edward. - Ela  como um lepre-  chaun***. O senhor não imagina, Sr. Burlap, como  dificil, educar um  leprechaun. - Lady Edward sacudiu a cabea. -- Havia momentos em  que a pequena chegava a me dar verdadeiros sustos.  - Sim? - perguntou Molly. - Mas quer-me parecer que a senhora  tambm tem alguma coisa de fada, Lady Edward.  - Um bocadinho - concordou Lady Edward. - Mas não a ponto  de ser um leprechaun. 

pouco. Eu quisera ser Unia fada e poder 

Tu não me entendias o bastante. (N. do E.)  Uma mulher sedativa. (N. do E)  ***Folclore irlands: Juende bondoso, mas malandro. (N. do E) 

95# 

- Então? - disse Lucy, quando Walter se sentou ao lado dela no  t xi. Parecia estar-lhe lanando uma espcie de desafio. - Então?  O carro arrancou. Walter tomou a mão dela e levou-a aos l bios. Era

  a resposta ao desafio.  ~ Eu te amo. Eis tudo.  - Tu me amas, Walter?  Lucy voltou-se para o rapaz e, tomando o rosto dle entre ambas as  mãos, encarou-o intensamente na semi-obscuridade. E repetiu:  - Tu me amas? - E, enquanto falava, sacudia a cabea lentamente  e sorria. Depois, inclinando-se para a frente, beijou-o na bâca. Walter  enlaou-a com os braos; mas Lucy se livrou do abrao. - Não, não  protestava ela, afastando-se para o seu canto. - Não.  Walter obedeceu e deixou-a. Houve um silncio. O perfume de Lucy  era de gardnia; doce e tropical, o s¡mbolo perfumado daquela mulher o  envolvia.  "Eu devia ter insistido", pensava Walter. "Brutalmente. Devia t-lja h

ei~  jado muito e muito. Devia t-la obrigado a me amar. Por que não o fiz?  Por qu?" Não sabia nem tampouco por que ela lhe tinha dado aqule  beijo, se não fora justamente para o provocar, para fazer que le a dese-  jass com mais violncia, para torn -lo ainda mais irremedi...velmente seu  escravo. Por que, sabendo disto, le ainda a amava? "Por qu? Por  qu?", continuava a repetir mentalmente. E, como um eco sonoro de seus  pensamentos, a voz dela s£bitamente se fez ouvir.  - Por que me amas? - perguntou Lucy,de seu canto.  Walter abriu os olhos. Passavam naquele instante por um combustor  da rua. Atravs da janela do ve¡culo em movimento a luz do foco caiu  s"bre o rosto de Lucy, o qual se recortou por um momento, branco contra  a escuridão, volvendo depois ... invisibilidade - m scara p lida que j ti-

  nha visto tudo e que trazia uma expressão de indiferena ir"nica, um lan-  gor duro, um pouco cansado.  - Eu estava justamente a perguntar isso a mim mesmo - respondeu  Walter. - E tambm achando que seria melhor não te amar ...  - Eu podia dizer o mesmo, tu sabes. Tu não s l muito especial-  mente divertido quando te portas assim ...  "Como são enfadonhos", refletia ela, "os homens que imaginam que  ningum nunca amou antes de os ver!" Apesar de tudo, gostava de Wal-  ter. Òle era atraente. Não, "atraente" não era o trnio exato. Atraente, co-  mo um amante poss¡vel, eis justamente o que le não era. "Convidativo"

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  era palavra que convinha melhor. Um amante convidativo. Não era preci-  samente o seu gnero. Mas Lucy gostava de Walter. Havia nle algo que  agradava muito. Alm do mais, o rapaz era inteligente, sabia ser um  companheiro agrad vel. Por mais aborrec¡vel que fosse, aquela sua  doena de amor o tornava pelo menos muito fiei. Isto, para Lucy, era  importante. Ela temia a solidão e necessitava ter os seus cavaliers 

96 

SWV,Onts* constantemente a seu lado para atend-la. Walter a servia com  a fdelidade dum cão. Mas por que motivo tinha le algumas vzes a  aparncia dum cão chicoteado? Era abjeto. Que imbecil! Lucy se sentiu  sibitamente enfadada diante da abjeão dle.# 

- Bem, Walter - disse ela, trocista, pousando a sua mão na do ra- 

paz -, por que não me falas?  Walter não respondeu.  - Bico calado, hein? - Os seus dedos esfregaram numa car¡cia  e~ca o dorso da mão dle e se lhe fecharam em tâmo do pulso. - On-  de est o seu pulso? - tornou a perguntar ao cabo de um momento. --

  Não o sinto em parte alguma. - Lucy tateava a pele macia ... procura das  pulsaões da artria. Walter sentia a car¡cia da ponta daqueles dedos, le-  va e palpitantes, um pouco frios, contra o seu pulso. - Acho que nem  tens pulso ... Creio que o teu sangue est estagnado. - O tom da voz  dela era desdenhoso. "Que tolo!", pensava Lucy. "Que desprez¡vel  bobalhão!" - Completamente estagnado - repetiu. E s£bitamente, com  uma mal¡cia repentina, cravou-lhe na carne as unhas pontudas e afiadas  a lima. Walter soltou um grito de surprsa e de dor. - Tu mereces isto,  - disse a rapariga. E r¡ti-lhe na cara.  Walter segurou-a pelos ombros e comeou a beij -la selvagemente. A  Mera lhe tinha exacerbado o desejo: seus beijos eram uma vingana.  Lucy fechou os olhos e se abandonou molemente, sem resistncia. Sentiu  brotar-lhe na epiderme t"da, em pequenas antecipaões de g"zo, um

  formigamento bom que era como o adejar de marip"sas tomadas de pni-  co. E de s£bito dedos pontudos pareceram dedilhar, em pizicato, as cor-  das de seus nervos. Walter sentiu todo o corpo dela estremecer  involunt...riamente em seus braos, estremecer como se tivesse sido  s£bitamente ferido. Beijando-a, le ficou a pensar se Lucy esperava ou  não que le reagisse daquela maneira ... sua provocaão. Com ambas as  mãos tomou-lhe do pescoo fr gil. Seus polegares tocavam-lhe a traquia.  Walter fez uma pressão suave.  - Um dia - disse por entre os dentes cerrados - eu te hei de estran-  gular.  Lucy limitou-se a rir. Walter inclinou-se e beijou-lhe a b"ca que ria. O  contato dos l bios do rapaz contra os seus produziu-lhe uma sensaão fi-

  na, aguda, quase uma dor que trespassasse insuportilvelmente. As  maripâsas agitadas esvoaavam por s"bre o seu corpo todo. Lucy não  esperava de Walter aqules ardores tão brutais e selvagens. Estava  agrad...velmente surpreendida.  O t xi chegou a Solio Square; diminuiu a marcha, parou. Tinham che-  gado. Walter deixou cair as mãos e afastou-se de Lucy.  A mâa abriu os olhos e olhou para le. 

* Homens que acompanham uma dama. (N. do E) 

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- Então? - perguntou, no segundo desafio daquela noite. Houve um  momento de silncio. parte ... Não para  - Lucy - disse le -, vamos para alguma outra  aqui, para ste lugar horr¡vel. Outra parte em que possamos ficar a s¢s.  - Sua voz tremia, seus olhos imploravam. A brutalidade tinha desapare-  cido de seu desejo; le se tornava outra vez abjeto, como um cao. - Va-  mos dizer ao chofer que continue - suplicou.  Lucy sorriu e sacudiu a cabea. Por que implorava le daquela manei  ra? Por que era tão abjeto? Imbecil, cão chicoteado!  - Por favor, porfavor! - implorava le.  Mas devia ter ordenado. Devia simplesmente ter ordenado ao chofe  que continuasse, devia ter tomado Lucy de n"vo nos braos.  - Imposs¡vel - disse ela descendo do t xi. Se o rapaz se portava co-  mo um cão escorraado, como tal devia ser tratado.  Walter a seguiu, submisso  infeliz.  Sbisa em pessoa recebeu-os ... porta. Curvou-se, agitou as gordas mãos  brancas e o seu sorriso expansivo gerou uma sucessão de ondas na carne

  de suas enormes bochechas. Quando Lucy chegava, o consumo de cham-  panha tendia a aumentar. Era uma cliente distinta.  - O Sr. Spandrell est aqui? - perguntou ela. - E o casal Ram-  pion?  - Ooh! Si, si. . . - repetia o velho Sbisa com uma insistncia napo-  litana, quase oriental. Subentendia-se que não s¢rnente aquelas pessoas  estavam l ,-mas tambm, se estivesse dentro de suas f"ras, Sbisa teria  fornecido at dois exemplares de cada uma delas, s¢ para servir a fregue-  sa. - E a signora? Molto bene, espero ... Temos lagosta questa noite,  ma que lagosta!  Falando sempre, conduziu-os ao interior do restaurante. 

CAPITULO VIII

  - O que eu lamento - disse Mark Rampion -  a mansidão  horr¡vel e doentia do nosso mundo.  Mary Rampion riu gostosamente, com um riso que lhe vinha do fundo  dos pulmões. Era uma risada que a gente nao podia ouvir sem desejar rir  tambm.  - Tu não dirias isto - comentou ela - se fosses a tua mulher em  vez de sres tu mesmo. O mundo  manso? Eu te poderia contar algunia  coisa wrespeito da mansidão ...   certo que não havia nada de particularmente manso na aparncia de  Mark Rampion. O seu perfil era incisivo: tinha um nariz adunco, feroz  como um instrumento cortante, e um queixo pontudo. Os olhos eram  azuis e penetrantes, e os cabelos muito finos, cujo ouro puxava um pouco

  para o vermelho, esvoaavam ao mais leve movimento, ao menor s"pro,  como l¡nguas de chama que o vento agita.  - Ora, tu tambm não s exatamente um cordeiro - disse Rampion.  Mas duas pessoas não são um mundo. Eu estava falando a respeito do  mundo e não a nosso respeito. O mundo  d¢cil, afirmo. Como um dsses  horrendos gatarrões castrados.# 

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  - Achas a guerra mansa tambm? - perguntou Spandrell, falando  do fundo da semi-obscuridade que se estendia alm dos limites do peque-  no mundo de luz rosada dentro do qual ficava a mesa do casal. Estava le  sentado, jogado para tr s, equilibrando a cadeira nos ps traseiros e  apoiando o respaldo ... parede.  - Mesmo a guerra - disse Rampion. - Foi uma calamidade  domesticada. A gente não ia lutar porque tivesse o sangue a ferver. Ia por-  que tinha ordem de ir; ia porque era bom cidadão. "O homem  um ani-  mal de combate% como gosta de dizer o teu padrasto em seus discursos.  E eu o censuro por ser um animal domstico.  - E que vai ficando dia a dia mais domstico - ajuntou Mary Ram-  pion, que compartilhava as opiniões do marido, ou, para falar com mais  exatidão, compartilhava a maior parte de seus sentimentos, e, consciente  ou inconscientemente, tomava-lhe emprestada uma opinião quando que-  ria exprimi-los. - São as f bricas,  o cristianismo,  a cincia,  a  respeitabil idade,  a nossa educaão - explicou ela. - Tudo isso pesa  sâbre a alma moderna; isso lhe suga t¢da a vida; isso ...  - Oh, pelo amor de Deus, cala a b"ca! - disse Rampion. 

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99# 

- Mas não  o que dizes?  - O que digo  o que eu digo. Fica muito diferente quando s tu que 

dizes.  A expressão irritada que aparecera no rosto de Mary Rampion se dissi-  pou. Pâs-se a rir.  - Ali! Ora, o racioc¡nio nunca foi o meu forte -- disse ela bem-  humoradamente. - Mas tu te podias mostrar um pouco mais polido em  p£blico.

  - Não posso suportar os tolos de boa cara.  - Pois, se não tomares cuidado,ter s de suportar uma t"laquete darunia lião -- ameaou a mulher, sorridente.

  - Se tens vontade de jogar um prato nle - disse Spandrefi,  alcanando-lhe um enquanto falava -, que eu não te sirva de obst cu~  10 ...  Mary agradeceu~lhe.  Havia de fazer-lhe bem - disse. - Òle anda tão presunoso!  E não te faria mal - replicou Rampion - se eu em paga te desse  um tapa-olhos.  - Experimenta, então. Aceito o desafio com uma mão amarrada ...s  costas.  Todos romperam a rir.

  -- Aposto meu dinheiro em Mary - disse Spandrell, que tornou a  empinar a c~deira para tr s. Sorrindo com um prazer que le teria achado  dif¡cil explicar, olhava de um para a outra - do homenzinho magro e fe-  roz para a mulheraa dourada. Cada um dles, separadamente, era ¢timo;  mas juntos, como uma dupla, eram ainda melhor. Sem o perceber, Span-  drell tinha s£bitamente comeado a sentir-se feliz.  - Qualquer dia dsses vamos ter uma boa explicaão - disse Rarn-  pion, pousando sua mão por um momento na da mulher. Era uma mão fi-  na, sens¡vel e expressiva. "Uma mão de aristocrata, se  que existiu algu-  ma vez mão de aristocrata", pensou Spandrell. E a dela, redonda, forte e

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  honesta, era a mão duma camponesa. E, no entanto, era Rampion que ti-  nha nascido campons, e ela aristocrata. O que provava simplesmente  que os genealogistas podem dizer tolices ...  - Dez rounds - continuou Rampion.  se para Spandrefi.  - Tu devias casar - disse. 

- Nada de luvas. -- Voltou- 

A felicidade de Spandrell desvaneceu-se de s£bito. Foi como se le  tivesse voltado a si por efleito duma sacudidela brusca. Quase sentiu raiva  de si mesmo. Que adiantava le ficar-se ali a fazer consideraões senti-  mentais em târno dum casal feliz?  - Não sei boxear - respondeu; e Rampion vislumbrou amargura na  alegria dle, uma espcie de endurecimento interior.  - Não, falando srio - insistiu le, tentando decifrar a expressão do # 

rosto do outro. Mas a cabea de Spandrell estava na sombra, e a luz da  limpada interposta entre ambos o ofuscava.

  - Sim, falando srio - Fez Mary, como um eco. - Devias. O casa-  mento faria de ti outro homem.  Spandrell emitiu uma risada breve e bufada e, deixando sua cadeira  cair s"bre as quatro pernas, inclinou-se para a frente, s"bre a mesa.  IBrnpurrou para um lado a x¡cara de caf, o seu copo de licor cheio pela  metade, fincou os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos. Seu rosto  entrou na zona de luz rosada. "Como uma g rguia", pensou Mary, "uma  girgula num boudoir r¢seo." Havia uma em Notre-Dame, exatamente  naquela atitude, inclinada para a frente, com sua face de dem"nio entre as  garras. Mas a g rgula era um dem"nio c"mico, tão extravagantemente  diab¢lico que não se lhe podia levar a srio a qualidade de diabo. Span-  drell era um ser real e não uma caricatura; eis porque o seu rosto parecia

  tio mais sinistro e tr gico. Uma face emaciada. As maãs e os maxilar*es  se revelavam numa linha dura sob a pele estirada. Os olhos cinzentos  estavam profundamente cavados nas ¢rbitas. Naquela m scara  cadavrica, s¢ a b"ca era carnuda - uma bâca larga, com l bios que se  salientavam fortemente na pele, como dois vergões espessos.  - Quando le sorri - dissera certa vez de Spandrell Lucy Tanta-  mount -, dir-se-ia uma operaão de apendicite com comissuras ir"nicas.  A cicatriz vermelha era sensual, mas firme ao mesmo tempo, e expri-  mia determinaão; do mesmo modo oqueixo. Havia rugas em t"rno dos  olhos e nos cantos dos l bios. O grosso cabelo castanho tinha comeado  a se retirar da testa.  "Quem olha para le d -lhe cinqenta anos", estava pensando Mary  Rampion. "E, no entanto, que idade ter 9" Ps-se a fazer c lculos e con-

  cluiu que Spandrell não podia ter mais de 32 ou 33. Justamente a idade  apropriada para sentar o juizo.  - Um outro homem - repetiu ela.  - Mas eu não tenho grande desejo de tornar-me outro homem.  Mark Rampion sacudiu a cabea.  - Sim, eis o teu mal, Spandrell. Tens prazer em ficar cozinhando no  teu pr¢prio m"lho corrupto e repulsivo. Não queres que te curem. Tu te  deleitas com o teu estado malsão. Talvez mesmo tenhas orgulho die.  - O casamento seria a cura - insistiu Mary, propagandista entusi s-  tica e infatig vel do sacramento ao qual devia t¢da a sua vida e tâda a sua

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  felicidade.  - A menos, naturalmente, que le venha a ser a desgraa da mulher  - disse Rampion. - Spandrell podia contamin -la com a sua pr¢pria  gangrena.  Spandrell jogou a cabea para tr s e riu profundamente, mas, como era  SCU costume, duma maneira quase inaud¡vel - uma explosão muda.  - Admir vel! - exclamou le. - Admir vel! O primeiro argumento 

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verdadeiramente bom que eu tenho ouvido em favor do matrim"nio. Qua-  se chegas a convencer-me, Rampion. Eu nunca realmente levei a coisa at  o casamento. . .  - Levaste qu? - perguntou Rampion franzindo ligeiramente as  sobrancelhas. Não gostava daquela maneira de falar c¡nica e um tanto  melodram tica. E como o outro parecia deliciado com as suas pr¢prias  perversidades! Qual uma criana est£pida, em suma.  - O processo de infecão. Sempre parei do lado de c do registro  civil. Mas hei de passar-lhe os umbrais na pr¢xima vez. - Bebeu um

  pouco mais de brandy. - Sou como S¢crates - continuou. - Fui eleito  pelos deuses para corromper a juventude, mais particularmente a juven-  tude feminina. Tenho por missão educ -la e lev -la para o caminho que  ela não deveria tornar. - Atirou a cabea para tr s e soltou aquela risada  af¢nica muito sua. Rampion olhava para le com desg sto. Como Spari  drell era teatral! Dir-se-ia que exagerava o seu papel, a fim de se poder  convencer da sua pr¢pria presena.  - Mas se ao menos soubesses o que o casamento pode significar ...  - interveio Mary com seriedade. - Se ao menos soubesses ...  - Mas, minha querida, le naturalmente sabe - interrompeu-a Ram-  pion com impacincia.  - Faz agora mais de quinze anos que estamos casados - prosseguiu  Mary. O esp¡rito mission rio, nela, era forte. - E eu te asseguro ...

  - Se f¢rsse tu não gastaria o meu latim. . .  Mary olhou inquiridoramente para o marido. Em tudo o que dizia res-  peito ...s relaões humanas, tinha uma confiana absoluta no julgamento  de Rampion. Atravs daqueles labirintos, le achava o seu caminho com  um tato seguro que ela s¢ podia invejar, mas não imitar. "Òle fareja a al-  ma das pessoas", costumava Mary dizer do companheiro. Quanto a ela,  tinha pouco faro para as almas. Eis porque, prudentemente, se deixava  guiar pelo marido. Observou-o. Rampion olhava fixamente para dentro  de sua x¡cara de caf. Sua testa estava franzida em rugas de descontenta-  mento. Era evidente que tinha falado a srio.  - Pois muito bem! - disse Mary, acendendo outro cigarro.  Spandrell olhou de um para outra, com uri quase triunfante.  - Eu uso uma tcnica uniforme com as jovens - disse le, no mesmo

  tom c¡nico.  Mary fechou os olhos e pensou no tempo em que ela e Rampion eram  jovens. 

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CAPfTULO IX 

- Que borrão! - disse a jovem Mary, assim que o grupo chegou ...

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  crista do morro e lanou o olhar para o vale, l embaixo. Stanton-in-  Tee~ jazia aos ps dles, negro com os seus telhados de ard¢sia, as  suas chamins cheias de fuligem e a sua fumaa. As charnecas se erguiam  e es~iam alm da cidade, desnudas, a perder de vista. O sol brilhava,# 

as nuvens arrastavam sombras enormes atr s de si. - A nossa pobre  paisagem! Devia ser interditada. Realmente, devia ser interditada.  - T"da paisagem agrada, s¢ o homem  vil - disse o seu irmão  George, fazendo uma citaão.  o outro jovem tinha o esp¡rito mais pr tico:  - Se pudssemos colocar uma bateria aqui - sugeriu le - e man-  dar uma centena de tiros l para baixo ...  - Seria ¢timo - disse Mary enf ticamente. - Seria mesmo ¢timo.  A aprovaão da m"a encheu o jovem militar de felicidade. Estava  perdidamente apaixonado.  - Obuses pesados -  alvitre.  Mas George o interrompeu:  - Que diabo  aquilo?  Os outros se voltaram para o lado que le indicava. Um desconhecido  subia o morro na direão dles.

  - Não tenho a menor idia - disse Mary, olhando para o vulto  apontado.  O homem se aproximava. Era um jovem de pouco mais de vinte anos,  nariz em gancho, olhos azuis e umq p lida cabeleira de sda que flutuava  ao vento - pois le não trazia chapeu. Vestia uma jaqueta Norfolk, mal  cortada e feita de fazenda barata, e umas calas grandes de flanela  cinzenta. Gravata vermelha. Andava sem bengala.  - D a impressão de que nos quer falar. . . - disse George.  F, de fato, o jovem vinha direto a les. Caminhava com rapidez e com  um ar de resoluão, como se trouxesse uma missão muito importante.  "Que cara extraordin ria!", pensou Mary, enquanto o estranho se  aproximava. "Mas que aparncia doentia! Tão magro, tão p lido. . . "  Mas os olhos dle a impediam de sentir compaixão. Eram brilhantes de

  energia.  O desconhecido parou na frente do grupo, empertigando o corpo ma~ 

acrescentou, tentando melhorar o seu pr¢prio 

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I I 

gro mui rigidamente, como se estivesse numa parada. Havia um ar de  desafio na sua atitude, uma expressão de desafio ardente no seu rosto.  Encarou o grupo fixamente com seus olhos fulgurantes, examinando-os  um por um.  - Boa tarde! - disse. Fazia um esforo enorme para falar. Mas falar

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  era preciso, justamente por causa do ar insolente de interrogaão que lia-  via naquelas caras mexpressivas de ricos.  Mary respondeu pelos outros:  - Boa tarde!  - Invadi a propriedade sem licena - disse o desconhecido. - Isto  os perturba9 - O ardor de seu desafio se acentuou. Olhou para os trs  sombriamente. Os dois jovens o examinavam do outro lado das grades, de  longe, do alto da superioridade de sua casta. Tinham notado a r¢tipa do  recm-chegado. Nos seus olhos havia hostilidade e desdm. Havia  tambm uma espcie de temor. - Sou um intruso - repetiu le. Sua voz  era um tanto aguda, mas musical. Tinha o sotaque da gente do campo.  " um dos futricas do lugar", estava pensando George.  "Um instruso." Teria sido muito mais f cil, muito mais agrad vel pas-  sar de largo, esquivo, sem que dessem por le. Fâra essa a razão por que  quisera enfrent -los.  Houve um silncio. O militar voltou as costas. Desinteressava-se de to-  do aqule caso desagrad vel. No rim de contas, nada tinha que ver com o  desconhecido. O parque pertencia ao pai de Mary. Òle era apenas um h¢s-  pede. P"s-se a cantarolar: - "Aprendi o meu refrão: sempre alegre e  folgazão" - e ficou a contemplar a cidade negra que se estendia no vale.  Foi George quem quebrou o silncio.  - Se isso nos perturba? - disse le, repetindo as palavras do estra-

  nho. Seu rosto estava muito vermelho.  "Que ar rid¡culo le tem", pensou Mary, olhando para o invasor. "Pa-  rece um novilho, um novilho que cora."  - Se nos perturba?---Maldito sujeitinho pretensioso e insolente!  George atiava a sua virtuosa indignaão. - Pois eu acho que nos inco-  moda, e muito! Vou pedir-lhe o favor de ...  Mary rompeu a rir.  - Qual! Isso não nos incomoda absolutamente! Nem um pouquinho.  O rosto do irmão ficou ainda mais vermelho.  - Que queres dizer com isso, Mary? - perguntou com f£ria. ("Sem-  pre alegre e folgazão", cantarolava o militar, mais astralmente alheio ...  cena do que nunca.) -  uma propriedade privada, esta.  - Mas não nos incomoda nem um bocadinho. - insistiu Mary.

  Nem um bocadinho, quando as pessoas tm a franqueza de nos vir comu-  nic ar, como o senhor. - Sorriu para le; mas a face do jovem desconhe-  cido ficou tão orgulhosamente sria como antes. Olhando bem dentro  daqueles olhos cintilantes, a mâa tambm de repente ficou sria. Não  havia brincadeira naquilo tudo, percebeu ela imediatamente, não havia. 

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Princ¡pios importantes estavam em j"go, princ¡pios da mais alta

  gravidade. Mas Mary não sabia por que eram graves nem de que modo  Cram importantes. Apenas sentia, obscura e profundamente, que não  havia motivo para riso.  - Passe bem! - disse ela com voz alterada; e estendeu a mão.  o estranho liesitou um segundo, depois tomou a mão dajovem na sua.  - At a vista! - disse tambm. - Vou sair do parque o mais  depressa poss¡vel.  E, fazendo meia volta, afastou-se com um passo r pido.  - Mas tu ... que diabo! - principiou George, voltando-se irado pa-  ra a irmã.

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  - Oli, cala a bâca! - respondeu ela com impaciencia.  - Apertando a mão dss-- sujeito. . . - continuou George a protes-  tar.  - Um tanto plebeu, não o achaste? - fez o amigo militar.  A m"a olhou de um para o outro sem falar e se afastou. Que est£pi-  dos!- Os dois jovens a seguiram.  - Meu Deus, quando sci que Mary vai aprender a portar-se  convenientemente? - exclamou George, ainda encolerizado.  O jovem militar emitia sons deprecativos. Estava apaixonado por  Mary; mas tinha de concordar em que ela era ...s vzes um tanto sem  linha. Era o seu £nico defeito.  - Apertando a mão daquele pelintra! - prosseguiu George, resmun-  gando.  Aqule f"ra o primeiro encontro de Mary e Mark Rampion. Tinha ela  então 22 anos e Mark Rampion era um ano mais m"o. Havia terminado  o seu segundo ano na Universidade de Sheffield e voltara a Stanton para  as frias de verão. Sua mãe morava numa casinhola que ficava num cor-  rer de residncias iguais, perto da estaão. Tinha uma pequena pensão -  o marido f"ra carteiro - e fazia alguns xelins extras com costuras. Mark  fora contemplado com uma bâlsa de estudos. Seus irmãos mais moos e  menos talentosos estavam j trabalhando.  - Um jovem muito not vel - insistiu o reitor mais de uma vez  durante a sua r pida exposião da carreira de Mark Rampion, alguns dias  mais tarde.

  Foi por ocasião de uma quermesse de igreja, com garden-pariy* de  caridade no reitorado. Algumas crianas da escola dominical tinham  representado uma pequena pea ao ar livre. O dramaturgo era Mark  Rampion.  - Absolutamente sem aux¡lio. - afirmara o diretor ... gente de socie-  dade ali reunida. - E, alm do mais, o rapaz sabe desenhar. Os seus  desenhos são talvez um pouco excntricos, um pouco ... o ... a  Hesitou. 

* Fesla dada num parque ou numiardim. (N. do E.) 

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- Fant sticos - sugeriu a sua filha, sorrindo do alto da sua burgue-  sia, orgulhosa de sua falta de compreensão.  - Mas cheios de talento - continuou o reitor; - um verdadeiro cis-  ne do Tees - ajuntou com um risinho de vaidade pessoal, um risinho  quase de culpa. Tinha um fraco pelas alusões liter rias. A gente de socie-  dade sorriu perf£nct¢riamente.  O prod¡gio foi apresentado. Mary reconheceu nle o invasor.

  - Eu j o vi antes - disse ela.  - Violando o seu miradouro.  - Ele est ao seu dispor. - Estas palavras fizeram Rampion sorrir  um sorriso um pouco ir"nico., segundo pareceu ... m"a. Mary corou,  temerosa de haver dito algo que pudesse ter um ar protetor.  - Mas suponho que o senhor continuar a viol -lo, seja bem recebido  ou não - acrescentou, com uma risadinha nervosa.  Mark não disse palavra, mas sacudiu a cabea afirmativamente, sor-  rindo ainda.  O pai de Mary veio apresentar felicitaões. Seus elogios ca¡ram,

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  esmagadores, sâbre a delicada pecinha como o tropel dum bando de  elefantes. Mary retorcia-se aflita. Tudo aquilo soava falso,  irremedi...velmente falso. Ela o sentia. Mas o pior, bem compreendia, era  que nem ela mesma podia ter dito nada melhor. Mark tinha sempre o  mesmo sorriso ir"nico nos l bios. "Como le h de nos estar achando  imbecis a todos!", dizia consigo. Depois chegou a vez de sua mãe.  "Formid vel" foi substitu¡do por "um amor". A emenda não prestava:  era irremedi...vel mente fora de prop¢sito.  Quando a Sra. Felpham o convidou para o ch , Rampion quis recusar  o convite - mas recusar sem se mostrar rude ou ofensivo. No fim de con-  tas as intenões daquela pobre mulher erarri excelentes. Acontecia apenas  que ela era um pouco rid¡cula. Era o mecenas de saias da aldeia, e, para  proteger a arte, ia at o ponto de oferecer duas x¡caras de ch e uma fatia  de plumcake*. O papel era c"mico. Enquanto Rampion hesitava, Mary se  associou ao convite.  - Peo-lhe que venha - insistiu ela. E seus olhos, o seu sorriso  exprimiam uma espcie de contrião divertida e tambm um pedido de  escusa. Via o absurdo da situaão. "Mas que  que eu posso fazer?",  parecia ela dizer. "Absolutamente nada. Exceto pedir desculpa. . . "  - Terei muito prazer em ir - disse Mark, voltando-se para a Sra.  Felpham.  O dia combinado chegou. Com a gravata tão vermelha como sempre,  Rampion se apresentou. Os homens estavam fora, pescando; o visitante  foi recebido por Mary e pela mãe. A Sra. Felpharn aproveitou a ocasião

  para tentar mostrar-se ... altura. O Shakespeare da aldeia, naturalmente,  devia interessar-se pelo drama. 

* Mo recheado com uvas passas. (N. do E) # 

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- Não gosta das peas de Barrie? Sou louca por elas.  Continuou a falar nesse tom. Rampion não fez coment rios. S¢rnente

  mais tarde, quando a Sra. Felpharn o abandonou, como a um "osso duro  de roer" e encarregou Mary de lhe mostrar o jardim, foi que Rampion  descerrou os l bios.  - Temo que sua mãe me tenha achado muito mal-educado - disse  le, enquanto ambos caminhavam ao longo das lisas alias ladrilhadas  entre as roseiras.  - Oh! Est claro que não 

- protestou Mary, com uma cordialidade 

excessiva.  Rampion p"s-se a rir.  - Obrigado. Mas naturalmente ela achou. Porque eu fui mesmo

  descorts. Fui descorts para não ser mais descorts ainda. Era melhor fi-  car calado do que dizer o que penso a respeito de Barrie.  - Não gosta das peas dle?  - Se gosto? Eu? - Mark Rampion deteve-se e olhou para a interlo-  cutora. O sangue subiu ...s faces de Mary; que teria ela dito?  - A senhora pode fazer esta pergunta aqui. - E fez um gesto que  mostrava as ffires, o tanque com o repuxo, o terrao alto com as  pimentas-das-paredes e as aubricias que sa¡am de entre as pedras, a casa  gris e austera, de estilo georgiano, ao fundo. - Mas venha comigo a  Stanton e faa-me l a mesma pergunta. L ca¡mos na realidade dura...

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  sem uma boa almofada de ar entre n¢s e os fatos.  preciso que a gente  tenha pelo menos umas cinco libras por semana, garantidas, para  comear a apreciar Barrie. Quando nos achamos sentados s"bre os fatos  nus, Barrie  um insulto.  Houve uni silncio. Caminharam abaixo e acima entre as rosas  aquelas rosas que Mary devia renegar, parecia-lhe, fiâres pelas quais de-  via pedir desculpas. Mas a negaão e as desculpas seriam uma ofensa.  Um perdigueiro, nâvo ainda mas j enorme, chegou-se para les saltando,  retouando desajeitadamente. Mary gritou-lhe o nome; o animal ergueu-  se sâbre as patas traseiras e pousou nela as dianteiras.  - Parece-me que gosto mais de animais do que de gente - disse  Mary enquanto se defendia das festas pesadas do cão.  - Bem, pelo menos les são sinceros, não vivem sâbre almofadas de  ar como a classe de gente com quem a senhora trata - disse Rampion,  fazendo ressaltar a obscura relaão que havia entre a observaão dela e o  que le tinha dito antes. Mary ficou abismada e deliciada com essa  compreensão tão r pida.  - Eu gostaria de conhecer melhor as pessoas do seu meio - afirmou  ela -, gente sincera, gente que não usa almofadas de ar.  - Sim, mas não pense que eu lhe v servir de cicerone - respondeu  le com ironia. - Não somos um jardim zool¢gico, olhe l ; não somos  ind¡genas que usam costumes esquisitos, ou coisa que o valha. Se quer  ver os bairros prolet rios, dirija-se ao reitor. 

107# 

Mary corou fortemente.  - O senhor bem sabe que não era isso que eu queria dizer ...  - Est bem certa de que não era? Quando se  rico,  dificil pensar de  outro modo. Uma pessoa como a senhora não pode absolutamente ter

  uma idia do que  não ser rico.  o caso do peixe. Como pode um peixe  imaginar como  a vida fora da gua?  - Mas não poderemos descobrir, se tentarmos"  - H um abismo enorme.  - Pode ser atravessado.  - Sim, suponho que possa. - Mas o tom de sua voz era de d£vida.  Ambos andaram a conversar por entre as rosas alguns minutos mais;  depois Rampion olhou o rel¢gio e Xisse que era hora de partir.  - Mas h de voltar, não?  - Haveria alguma utilidade na minha volta? Isto se parece um pouco  com uma visita interplanet ria, não acha?  - Pois eu não tive essa impressão - respondeu ela. E ajuntou,  depois de curta pausa: - Suponho que o senhor nos acha a todos muito

  tolos, não  mesmo? - Encarou o rapaz. Mark tinha arqueado as  sobrancelhas, estava a ponto de protestar. Mary não queria permitir que  le fâsse simplesmente polido. - Porque, no fundo, n¢s somos tolos.  Terrivelmente tolos. - Riu., com certa melancolia. Nas pessoas de sua  pr¢pria classe a tolice era antes uma virtude do que um defeito. Ser inteli-  gente demais era arriscar-se a não ser gentleman. A inteligncia não era  uma coisa- absolutamente segura. Rampion tinha levado Mary a indagar  se não existiam coisas melhores do que a segurana social que tem sua  origem no fato de ser gentleman. Na presena dle a m"a não sentia

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  nenhum orgulho de ser t"la.  Rampion sorria para ela. Gostava da sua franqueza. Havia algo de sin-  cero naquela mâa. Mary não era corrompida - pelo menos ainda não  o estava.  - A senhora esta me parecendo um agent provocateur* - gracejou  le - que procura levar-me a dizer coisas descorteses e subversivas com  relaão aos meus superiores sociais. Mas, na verdade, minhas opiniões  não tm absolutamente nada de descorteses. As pessoas do seu meio não  são mais nscias do que as outras. Não são mais nscias por natureza.  Mas são v¡timas do seu gnero de vida. Òle as envolveu numa crosta e  lhes p"s uma venda nos olhos. Por natureza uma tartaruga não pode ser  mais nscia do que uma ave. Mas devemos reconhecer que o seu gnero  de vida não estimula precisamente a inteligncia.  Mary e Mark se encontraram v rias vzes no decorrer daquele verão.  Em geral passeavam juntos pelas charnecas. 

* Pessoa que, em um partido, sindicato, sociedade secreta, ou ainda no curso de alguma  manifestaão, impele outras a cometer excessos, afim de provocar uma repressãoviolenta.  (N. do E.) 

108

  "Ela parece uma fora da natureza", pensava Mark olhando para a  . que, de cabea baixa, investia contra o vento £mido. Uma grande  ora f¡sica. Que energia, que fora e que sa£de. Era magn¡fico. Quanto a# 

k, Rampion, era um menino delicado, que vivia sempre doente. Admi-  rava as qualidades f¡sicas que pessoalmente não possu¡a. Mary era uma  CWcie de Diana guerreira das charnecas. Disse-lhe isto um dia. Ela gos-  tou do elogio.  - -Wasfiir ein Atavismus!* "Era o que dizia sempre de mima minha

  velha governante alemã. Acho que ela tinha razão: eu sou uma espcie de  Atavismus.  Rampion riu.  - Em alemão isso parece absurdo. Mas em si mesmo não  de todo  absurdo. Um atavismo -  o que dever¡amos ser todos n¢s. Atavismos,  com todo o conf"rto moderno. Primitivos inteligentes. Grandes animais  dotados de alma.  Foi um verão chuvoso e frio. Na manhã do dia fixado para um daque-  les passeios Mary recebeu uma carta de Mark: "Prezada Srta. Felpham",  leu ela; e ... vista da letra de Mark sentiu um estranho prazer. "Apanhei  est£pidamente um resfriado. Quer a senhora mostrar-se mais condescen-  dente do que eu - porque não tenho palavras para lhe dizer como estou  aborrecido e indignado comigo mesmo - e me perdoar se eu pedir o

  adiamento do passeio para daqui a uma semana?"  Na pr¢xima vez em que Mary viu Rampion, o rapaz estava p lido e  magro; a tosse ainda o atormentava. Quando ela lhe perguntou pela sua  saude le a interrompeu, quase colrico:  - Estou perfeitamente bem - disse em tom brusco. E mudou de  assunto.  - Estive relendo Blake - continuou depois. E comeou a falar a res-  peito de Casamento do Cu e do Inferno.  - Blake era civilizado - insistiu -, civilizado. A civilizaão  har-  monia e plenitude. A razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo -

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  Blake conseguiu englobar e harmonizar tudo. A barb rie consiste em pen-  der mais para um lado do que para outro. Pode-se ser um b rbaro do inte-  lecto, bem como um b rbaro do corpo. Um b rbaro da alma e dos senti-  mentos, bem como da sensualidade. O cristianismo nos fez b rbaros da  alma e agora a cincia nos est fazendo b rbaros do intelecto. Blake foi  o £ltimo homem civilizado.  Falou dos gregos e daqueles etruscos nus e tostados de sol das pinturas  murais dos sepulcros.  - Viu os originais? - perguntou le. - Palavra que a invejo.  Mary sentiu-se terrivelmente envergonhada. Tinha visto as sepulturas  pintadas de Tarq¡nia; mas como se lembrava pouco dessas coisas! Para  ela não tinham passado de velhas e curiosas obras de arte, como t"das as 

* Mas que atavismo! (N. do E) 

109# 

ii 

outras velhas obras de arte inumer veis que ela visitara regulamentar-

  mente, em companhia da mãe, por ocasião de sua viagem ... It lia no ano  anterior. Em suma, era como se não as tivesse visto. Ao passo que Mark,  se tivesse recursos para ir ... It lia...  - Òsses eram civilizados - dizia Rampion -, sabiam viver  harmoniosamente, completamente, com todo o seu ser. - Falava com  uma espcie de paixão, como se estivesse encolerizado contra o mundo,  contra si mesmo, talvez. - N¢s somos todos b rbaros - comeou le;  mas foi interrompido por um violento acesso de tosse.  Mary esperou que o paroxismo passasse. Estava inquieta e experimen-  tava ao mesmo tempo uma sensaão de embarao e de vergonha, como a  que a gente sente quando se v diante de um homem que, por descuido,  revela uma fraqueza que de ordin rio se d penosamente o trabalho de  esconder. Deveria dizer algumas palavras de simpatia s"bre a tosse, ou

  fingir que não a tinha percebido? Rampion resolveu o problema aludindo  pessoalmente ao assunto.  - Por falar em barb rie. . . - disse le quando o acesso passou.  Falava em tom de aborrecimento, seu sorriso era amargo e tra¡a a c¢lera.  - J ouviu algo de mais b rbaro do que a tosse? Uma tosse como esta  não devia ser permitida numa sociedade civilizada.  Mary ofereceu o reconforto de sua solicitude e bons conselhos. Òle se  pâs a rir, impaciente.  - As mesmas palavras de minha mãe! Palavra por palavra. As  mulheres são t"das as mesmas. Cacarejando como galinhas atr s dos  pintinhos ...  - Mas pense em com~ os homens seriam desgraados se n¢s não  cacarej ssemos!

  Alguns dias mais tarde - com um pouco de apreensão - Mark levou  Mary para ver sua mãe. As apreensões eram infundadas; Mary e a Sra.  Ramp¡on não pareceram achar dificuldade em estabelecer contato espiri-  tual. A Sra. Rampion era uma mulher de perto de cinqenta anos, ainda  bonita, e que tinha uma expressão f¡sionâmica de calma dignidade e resig-  naao. Sua maneira de falar era vagarosa e tranqila. S¢ uma vez Mary  viu alterar-se~lhe a maneira de ser: foi quando, estando Mark fora do  quarto a preparar o ch , ela comeou a falar do filho.  - Que pensa dle? - perguntou a Sra. Rampion, inclinando-se para  a frente s"bre a visitante, com um brilho s£bito nos olhos. '

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  - Que  que penso? - Mary riu. - Não sou bastante impertinente  para me arvorar em juiz dos meus superiores. Mas est se vendo que o ra-  paz  algum, algum de importncia.  A Sra. Rampion sacudiu a cabea num gesto de aprovaão, sorrindo  com prazer.  - Òle  algum - repetiu ela. - Foi o que eu sempre disse. - Seu  rosto se tornou grave. - Se ao menos Mark fosse mais forte! Se ao me- 

110 

nos eu tivesse tido recursos para o educar melhor! Òle foi sempre delica-  do. Devia ter sido educado com um cuidado maior do que o que me foi# 

poss¡vel dar-lhe- Não, não digo com mais cuidado ... Eu lhe dispensei  todo o carinho poss¡vel. Porm com mais conforto, em condiões mais  higinicas. Mas qual! Não tive meios para isso. - Sacudiu a cabea. -  Eis a hist¢ria. . . - Soltou um pequeno suspiro e, inclinando-se para tr s  na sua cadeira, deixou-se ficar ali sentada em silncio, os braos cruza-  dos, olhos postos no chão.  Mary não fz coment rios; não sabia que dizer. Mais uma vez se sentiu  cheia de vergonha, acabrunhadoramente cheia de vergonha.

  - Que achou de minha mãe? - perguntou-lhe Rampion mais tarde,  quando a acompanhou at a sua casa.  - Gostei dela. Gostei muito, muito mesmo. Embora ela me tenha fei-  to sentir pequenina, mesquinha, m ... 1 1 sto tambm  outra maneira de  dizer que eu admirei a sua mãe e qVe gostei dela por causa dessa admi-  raão.  Rampion fez com a cabca um gesto de assentimento.  - Ela  de fato admir vel. Corajosa, forte e perseverante. Mas  resig-  nada demais.  - Mas essa me pareceu justamente uma de suas qualidades dignas de  admiraão!  - Ela não tem direito de ser. resignada - respondeu Mark, franzindo  a testa, - Não tem direito. Quando a gente tem unia vida como a dela,

  não deve ser resignado. Deve antes ser revoltado.  essa maldita religião.  Eu lhe disse que ela era religiosa?  - Não; mas eu adivinhei quando a vi ...  -  uma b rbara da alma - continuou Rampion. - S¢ pensa na al-  ma e no futuro. Para ela não h presente, nem passado, nem corpo, nem  intelecto. S¢ a alma e o futuro e, por enquanto, a resignaão. Haver coi-  sa mais b rbara do que isso? Ela devia rebelar~se.  -- Deixemos que sua mãe fique como . Ser mais feliz assim. O  senhor pode se revoltar pelos dois ...  Rampion riu.  - Eu me revoltarei por milhões de pessoas.  No fim do verão Rampion voltou para Sheff ield e pouco tempo depois  os Felphams floram para o sul, para a sua residncia de Londres. Foi

  Mary quem escreveu a primeira carta. Esperava ter noticias do amigo;  mas Mark não escreveu. Não havia nenhuma razão boa para escrever.  Mas, ainda que sem razão, Mary esperou uma carta dle; ficou desapon-  tada por não receb-la. As semanas passaram. Ao cabo de algum tempo  a mâa escreveu para lhe perguntar o nome dum livro a respeito do qual  le tinha falado em uma de suas palestras. O pretexto era bem fr gil; mas  serviu. Mark respondeu, ela agradeceu; ficou assim estabelecida a corres-  pondncia- 

III

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Por ocasião do Natal, Rampion foi a Londres; tivera alguns trabalhos  aceitos pelos jornais e estava rico como nunca: tinha 10 libras para fazer  com elas o que quisesse. Não deixou Mary saber de sua presena senão  na vspera da partida.  - Mas por que não me disse antes? - perguntou ela em tom de cen-  sura, quando soube que o amigo estava em Londres havia dias.  - Não quis infligir-lhe a minha presena - respondeu le.  - Mas o senhor sabia que eu ia ficar contente.  - A senhora tem os seus amigos.  E o sorriso ir"nico trazia impl¡cito o adjetivo - ricos.  - Mas o senhor não  um dos meus amigos? - perguntou ela, fazen-  do que não percebia o subentendido.  - Agradeo-lhe por dizer isto.  - E eu lhe agradeo por s-lo - respondeu ela, sem afetaão nem  faceirice.  Mark Rampion ficou comovido com a franqueza da confissão, com a  sinceridade e simpleza do sentimento da Srta. Feipliam. Sabia, era claro,  que ela gostava dle, que o admirava; mas saber duma verdade e ouvir es-  sa verdade são coisas diferentes.

  - Perdoe-me, então, o não lhe haver scrito antes - disse le; e  imediatamente arrependeu-se destas palavras. Porque elas eram hip¢cri~  tas. A verdadeira razão pela qual se conservara afastado de Mary não  f"ra o mdo de ser mal recebido; fâra orgulho. Não tinha recursos para  sair com a m"a; não queria aceitar nada dela.  Passaram a tarde juntos, exager damente felizes, absurdamente felizes.  - Se ao menos me tivesse avisado. . . - repetiu ela, quando chegou  a hora da separaão. - Eu não teria tomado ste compromisso aborre-  cido para a noite.  - Voc h de se divertir -- afirmou-lhe Mark, voltando ...quele tom  ir"nico com o qual fazia t"das as suas alusões ... vida que Mary levava co-  mo membro da classe rica. A expressão de felicidade fugiu do rosto de  Rampion, s£bitamente cheio de desgâsto por se ter sentido feliz na

  companhia dela. Era idiota ter tais sentimentos. Que intersse havia  naquela felicidade de dois sres que se achavam separados por um  abismo? - Voc h de se divertir - repetiu, com mais amargura. -  Bom jantar, bons vinhos, gente distinta, conversaão espirituosa e,  depois, o teatro. Não  uma noite ideal?  Sua voz estava saturada dum desdm selvagem.  Mary fitou os olhos nle: utis olhos cheios de tristeza e de dor. Porque  comeara le de s£bito a destruir retrospectivamente a tarde que tinham  passado juntos?  - Não sei por que fala dessa maneira - disse ela. - Voc mesmo  saber ? 

112 A pergunta ficou ressoando no crebro de Rampion ainda muito tempo

  depois que ambos se separaram.  "Voc mesmo saber ?"  Estava claro que sabia. Mas tambm sabia da existncia dum abis- # 

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  dade. 

mo . . .  Encontraram-se outra vez em Stanton na semana da P scoa. No inter-  valo tinham trocado muitas cartas e Mary recebera uma proposta de  casamento do amigo militar que falara em trazer a artilharia pesada para  arrasar Stanton. Com surprsa e uma tal ou qual tristeza dos pais, a m"a  recusou o pretendente.  - Mas  um ¢timo rapaz - insistira a mãe.  - Eu sei. Mas acontece simplesmente que le não pode ser levado a  srio.  E porque não?  E alm disso - continuou Mary -, le na realidade não existe.  Não  duma maneira completa. Não passa duma massa informe. A gente  não pode casar com uma pessoa que não existe. - Pensou na face violen-  tamente viva de Mark Rampion; ela parecia arder, parecia palpitar e irra-  diar luz. - A gente não pode casar com um fantasma, mesmo quando s-  se fantasma  tang¡vel e consistente sobretudo quando  consistente.  Explodiu numa gargalhada,  - Não sei de que est s falando tornou a Sra. Felpham com digni- 

- pois eu sei -- garantiu Mary. - Eu sei muito bem. E, no fim de  contas, isto  o que importa no caso.

  Passeando com Rampion pelas charnecas, Mary lhe contou da pro-  posta do seu s¢lido, do seu solid¡ssimo fantasma militar. Mark não fez  coment rios. Houve um longo silncio. Mary sentiu-se desapontada e ao  mesmo tempo envergonhada d9 seu desapontamento.  "Eu acho", disse ela de si para si, "eu acho que estava procurando fa-  zer que le me pedisse em casamento."  Os dias passaram; Rampion andava silencioso e sombrio. Quando  Mary lhe perguntou a razão disso, le falou com tristeza de seus projetos  de futuro. No fim do verão terminaria o curso da universidade; seria tem-  po de pensar numa carreira. A £nica que se lhe apresentava de imediato  porque le não tinha recursos para esperar -- era o magistrio.  - Ensinar - dizia o rapaz com um horror enf tico -, ensinar!

  Espianta-se por eu me sentir deprimido? - Mas o seu acabrunhamento  tinha outras causas alm da perspectiva de ter de se consagrar ao ensino.  "Ser que ela vai rir de mim se eu a pedir?", perguntava interiormente.  Parecia-lhe que não. Mas uma vez que ela não tivesse a intenão de recu-  sar, seria correto de sua parte pedir-lhe?  Seria direito faz-la entrar naquela espcie de vida que teria de ser a de 

113# 

ambos uma vez casados? Talvez at ela tivesse dinheiro seu; e neste caso

  a honra dle estava em j"go.  - Pode imaginar-me no papel de pedagogo';' - perguntou Mark em  voz alta.  O pedagogo era o seu bode expiat¢rio.  - Mas por que haver de ser pedagogo, quando sabe escrever e dese-  nhar? Pode viver do seu talento ...  - Mas ser que posso? Pelo menos a pedagogia  garantida ...  - Por que sse desejo de garantia? - perguntou Mary, quase com  desdm.  Rampion pâs-se a rir.

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  - Voc não faria essa pergunta se tivesse de viver de um ordenado  semanal, sujeita a ser despedida com notificaão prvia de uma semana.  Não h nada como o dinheiro para dar coragem e confiana em n¢s mes- 

MOS.  - Pois então, dentro dessa medida, o dinheiro  um bem. A coragem  e a,confiana em n¢s mesmos são virtudes.  Caminharam durante muito tempo em silncio.  -- Bem, bem - disse Rampion por fim, olhando para a companheira  voc  a culpada. . . - Tentou rir. - A coragem e a confiana em  n¢s mesmos são virtudes; voc mesma o diz. Eu apenas estou tentando  p"r-me de ac"rdo com as suas regras morais. Coragem e confiana em  nos mesmos! Pois vou lhe dizer que a amo.  Houve outro silncio longo. le esperava; seu coraão batia como se  tivesse mdo.  - Então? - perguntou por fim. Mary voltou-se para le e, tomando-  lhe da mão, levou-a aos l bios.  Antes e depois do casamento Rampion teve muitas ocasiões de admirar  aquelas virtudes que a riqueza alimenta. Foi Mary quem fez que le aban-  donasse todos os projetos de ensinar e confiasse exclusivamente no seu  talento para fazer carreira. Ela tinha confiana por ambos.  - Não vou casar com um mestre-escola - insistia.  E não casou mesmo. Casou com um dramaturgo que nunca tivera uma  pea representada, exceto na festa de caridade de Stanton; casou com um

  pintor que nunca vendera um quadro.  - Vamos morrer de fome - profetizava le. O espectro da fome o  perseguia; Rampion o tinha visto demasiadas vza para poder desdenh -  lo. 

- Tolices! - dizia Mary, firme na certeza de que ningum morre de  inanião. Das pessoas que conhecia, nenhuma ainda passara fome.  Tolices!  E venceu, no fim de contas.  O que, acima de tudo, fazia Rampion hesitar em optar por uma car-  reira aleat¢ria era que s¢rnente o podia fazer ... custa de Mary. 

114

  - Não posso viver ... tua custa - dizia le. - Não posso aceitar o  teu dinheiro.# 

- Mas não me est s privando do meu dinheiro - insistia ela -, tra-  ta-se simplesmente de um emprgo de capital. Eu emprego um capital na  ~ana de obter bom lucro. Viver s do meu dinheiro por um ano ou  dois, e então eu viverei ... tua custa o resto de minha vida.  um negocio;   at uma esperteza.  Mark Rampion teve de rir.

  - E, em qualquer caso - continuou ela -, não viver s por muito  tempo ... minha custa. Oitocentas libras não duram uma eternidade.  Òle concordou por fim em tomar-lhe emprestadas 800 libras ... taxa  corrente. F-lo com relutncia, sentindo que de alguma maneira estava  traindo a sua pr¢pria gente. Comear a vida com 800 libras - era f cil  demais, era furtar-se ...s dificuldades, era prevalecer~se de uma vantagem  injusta. Se não fosse por um certo sentimento de responsabilidade que ti-  nha para com o seu pr¢prio talento, Rampion teria recusado aqule  dinheiro e se teria lanado terner...riamente, cabea baixa e bolsos vazios,

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  na carreira liter ria, ou teria enveredado pelo caminho seguro da pedago-  gia. Quando por fim consentiu em aceitar o dinheiro, f-e-lo com a  condião de que nunca aceitaria nada dos parentes da mulher. Mary  concordou.  - Não que les estejam l muito ansiosos por me dar alguma coi-  sa. . . - ajuntou ela com uma risada.  Tinha razão. O horror do pai diante do mau casamento foi tão pro-  fundo quanto ela esperava. Mary, no que dependesse dle, não corria o  menor perigo de Ficar rica.  Casaram-se em ag"sto e imediatamente partiram para o estrangeiro.  Tomaram o trem at Dijon e dali seguiram a p para sudoeste, rumo da  It lia. Rampion nunca tinha sa¡do da Inglaterra. O que havia de estranho  na Frana era para le o s¡mbolo da vida nova que acabava de iniciar, da  nova liberdade que tinha adquirido. E a pr¢pria Mary não era menos  simb¢licamente nova do que o pa¡s que ambos atravessavam. Ela não ti-  nha s¢mente aquela confiana em si mesma, mas tambm era senhora du-  ma aud cia que, aos olhos de Rampion, parecia absolutamente estranha  e extraordin ria. Incidentes m¡nimos causaram-lhe impressão. Aquela  ocasião, por exemplo, em que ela deixou o par de sapatos esquecido na  fazenda em que tinham passado a noite. S¢ muito tarde  que deu pela fal-  ta. Rampion sugeriu que voltassem para buscar os sapatos. Mary não lhe  quis dar ouvidos.  - Estão perdidos - disse. - Não vale a pena incomodar-se. Que os  sapatos enterrem os sapatos - acrescentou ela, parodiando Longl`ellow.

  Mark ficou muito zangado com a mulher.  - Lembra-te de que não s mais rica - insistiu. - Os nossos recur- 

115# 

sos não permitem que joguemos fora um bom par de sapatos. Não pode-  remos comprar um nâvo antes de voltarmos para casa.  - Eu sei, eu sei - respondeu ela impacientemente. - Hei de apren-  der a caminhar de ps descalos.  E aprendeu mesmo.

  -- Nasci para ser vagabunda - declarou ela uma noite em que dor-  miam s"bre feno, num celeiro. - Não te posso dizer da felicidade que  sinto em não ser "gente fina". E o Atavismus que se revela. Tu te ator-  mentas demais, Mark. Considera os l¡rios do campo ...  - E, no entanto - meditava Rampion -, Jesus era um pobre. Em  sua fam¡lia o pão e o calado do amanhã deviam importar muito e muito.  Como podia le então falar do futuro como um milion rio?  - Porque Jesus era um dos duques criados pela natureza - respon-  deu ela. - Eis o porqu. Ele nasceu com o t¡tulo; detentor de um direito  divino, como um rei. Os milion rios que fazem a sua pr¢pria fortuna  estão sempre pensando em dinheiro; vivem terrivelmente preocupados  com o arrianhã. Jesus tinha o sentimento verdadeiramente ducal de jamais  decair da sua condião. Não tinha nada dsses fabricantes de sabão nem

  dsses financeiros que se fazem nobres. Era um aristocrata autntico. E,  alm disso, era artista, era um gnio. Tinha preocupaões mais impor-  tantes do que o pão, do que o calado e do que o amanhã.  Mary ficou silenciosa por um momento, depois acrescentou:  -- E, alm do mais, Jesus não era "fino". Não cuidava das aparncias.  Elas tm a sua recompensa. Mas, quanto a mim, pouco se me d que  tenhamos ou não o aspecto de espantalhos.  -- Tu te mimoseaste com uma bela porão de elogios -- disse Ram--  pion. Mas meditou sâbre as palavras da esp"sa e s"bre a sua maneira de  viver espont nea, natural e imperturb vel. E invejou- lhe o Aiavismus.

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  Não era apenas da vagabundagem que Mary gostava. Não se compra-  zeu menos com a vida mais prõsaica e sedent ria que les levaram depois,  quando voltaram para a Inglaterra.  "Maria Antonieta no Trianon" - assim lhe chamou Rampion quando  a viu trabalhar na cozinha; e Mary fazia aqule trabalho com um entu-  siasmo tão infantil! -- Pensa bem - avisara le antes do casamento. --  Vamos ser pobres. Verdadeiramente pobres; não pobres com 1000 libras  por ano, como os teus amigos pobres. Não haver criados. Ser preciso  que v s para a cozinha, que remendes a roupa, que cuides da casa.  Mary limitou-se a rir.  - Pois quem h de achar isso desagrad vel ser s tu - respondeu ela.  - Pelo menos enquanto eu não aprender a cozinhar ...  Mary nem sequer sabia fritar um âvo quando casou corri Mark Ram~  pion.  Coisa bastante estranha, aqule entusiasmo infantil, ... maneira de Ma-  ria Antonieta, para fazer as coisas - para cozinhar num fogão de verda- 

de  , usando uma verdadeira m quina de varrer taptes, uma m quina de  costura autntica - sobreviveu aos primeiros meses de novidade e exci-  tz¡o. Mary continuou a divertir-se.  - Eu nunca poderia voltar a ser uma perfeita dama de sociedade  costumava ela dizer. - Isto havia de me matar de aborrecimento. Deus

j SaU como pode ser cacte e exasperante dirigir uma casa, fazer traba-  lhos domsticos, cuidar dos filhos. Mas viver completamente sem contato  com os fatos ordin rios da existncia, viver num planta distante do mun~  do cotidiano, da realidade f¡sica -  muito pior.  Rampion era da mesma opinião. Opunha-se a transformar a arte e o  pensamento em desculpas para viver uma vida de abstraão. Nos interva-  los entre seus trabalhos de pintor e escritor, le ajudava Mary no trabalho  domstico.  - Não se pode esperar que brotem fl"res num v cuo bem limpinhQ.

  Era ste o seu argumento. - Elas precisam de humo e argila e estrco.  Assim C a arte.  Para Rampion havia tambm uma espcie de obrigaão moral de viver  a vida dos pobres. Mesmo quando le j estava tendo um rendimento  perfeitamente razo vel, o casal mantinha apenas uma criada e continuava  a fazer s¢zinho uma grande parte do trabalho domstico. Era para le um  caso de noblesse obl¡ge* - ou antes, de roture oblige**. Viver como rico,  numa confort vel abstraão dos cuidados materiais, seria - sentia le -  uma especie de traião ... sua classe, ... sua pr¢pria gente. Se se deixasse fi-  car sentado na sua cadeira e pagasse criados para fazer o servio, estaria  de alguma maneira insultando a mem¢ria de sua mãe, estaria a dizer-lhe  p¢sturnamente que le, Mark Rampion, era fino demais para levar a vida

  que ela levara.  Havia ocasiões em que Mark odiava aquela obrigaão moral, porque  sentia que ela o estava compelindo a fazer coisas t"las e rid¡culas; e,  odiando-a, tentava revoltar-se contra ela. Como ficara absurdamente  escandalizado, por exemplo, diante do h bito que Mary tinha de ficar na  cama de manhã! Quando ela sentia preguia, não se levantava e acabou-  se. A primeira vez que isso aconteceu, Rampion ficou verdadeiramente  angustiado.  - Mas tu não podes ficar na cama t"da a manhã - protestara le.  - Porque não?

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  - Porque não? Porque não podes.  - Mas etiposso, - disse Mary calmamente. - Posso e fico.  Achou aquilo chocante. Sem motivo, como percebeu le mesmo ao ten- 

* Literalmente, "a nobreza obriga", expressão que signfflca.- a pessoa que nasce nobre de-  ve comportar-se como tal. (N. do E.)  " F-Vressio criada por analogia com noblesse oblige. Roture signirica '~piebeismo ".  (N. do E.) 

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tar analisar os pr¢prios sentimentos. Mas, apesar de tudo, ficou escanda-  lizado. Ficou escandalizado porque le sempre se levantara cedo, porque  toda a sua gente tinha sido obrigada a deixar sempre a cairia cedo. Ficou  escandalizado porque não se devia ficar na cama enquanto os outros esta-  vam de p a trabalhar. Levantar tarde era, de certo modo, uma afronta. E,  no entanto, o fato de uma pessoa levantar cedo sem necessidade não auxi-  liava em nada as outras que levantavam cedo por obrigaão. Levantar  quando nada nos obriga a isso  simplesmente um tributo de respeito, co~

  mo descobrir-se numa igreja. E, ao mesmo tempo,  um sacrificio propi-  ciat¢rio para apaziguar a pr¢pria conscincia.  "Não se deve pensar assim", refletia Mark Rampion. - Imagine-se um  grego com sses sentimentos!  Era inimagin vel. E, no entanto, o fato permanecia inalterado; por  mais que le desaprovasse aqule sentimento, a verdade era que o senti-  mento continuava a existir nle.  "Mary  mais sã do que eu", pensava Mark. E leinbrou-se dste verso  de Walt Whitman sâbre os animais: "Òles não padecem nem se lamentam  por causa de sua condião. Não passam as noites em claro, chorando os  seus pecados". Mary era assim; era bom ser assim. Ser um perfeito ani  mal e ao mesmo tempo uma criatura humana perfeita, eis o ideal ...  Apesar de tudo, Mark ficava escandalizado quando Mary não se levan-

  tava de manhã. Procurava não ficar, mas ficava. Rebelando-se, permane-  cia algumas vzes na cama tambm, at meio~dia; por princ¡pio. Era seu  dever não ser um b rbaro da conscincia. Mas foi preciso muito tempo  para que le pudesse gozar verdadeiramente da sua preguia.  Os h bitos de dorminhoca não eram a £nica coisa que o atormentava  em Mary. Durante aqules primeiros meses do casamento le foi muitas  vzes chocado, secretamente e contra seus proprios principios, pela  espâsa. Mary cedo aprendeu a reconhecer os sinais da desaprovaão inex-  primida do companheiro e adotou como regra, cada vez que percebia que  o tinha escandalizado, escandaliz -lo ainda mais profundamente. Òsse  sistema, pensava ela, s¢ lhe poderia fazer bem.  -- s um velho puritano rid¡culo - disse uma vez ao marido.  O gracejo o aborreceu, porque le sabia que era bem fundado. At cer-

  to ponto de bero, e ainda mais por educaão, Mark era meio puritano.  Morrera-lhe o pai quando le era ainda criana; Mark fora educado  exclusivamente por uma mãe virtuosa e religiosa que fizera o poss¡vel pa-  ra abolir nle todos os componentes instintivos e fisicos de seu Ser, para  que o filho lhes negasse a existncia. Crescendo, o rapaz se tinha revol-  tado contra os ensinamentos maternos, mas s¢rnente em esp¡rito e não na  pr tica. O conceito da vida contra o qual se rebelara era uma parte inte-  grante do seu pr¢prio eu; le estava em guerra contra si mesmo. Te¢rica-  mente Mark aprovava a tolerncia larga e aristocr tica de Mary para  com um gnero de comportamento que - segundo lhe ensinara a mãe -

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 eira horrivelmente pecaminoso; admirava a maneira franca como ela

  gozava a comida, o vinho, os beijos, a dana, o canto, as feiras, o teatro,  os prazeres de t"da espcie. E, no entanto, sempre que Mary, nos primei-  ffis tempos do casamento, comeava a falar naquela sua maneira calma e# 

terra-a-terra de coisas de que le s¢ tinha ouvido falar longinquamente e  duma maneira deprecat¢ria, sob o nome de fornicaão e adultrio -  ~ se sentia chocado; não em sua razão (porque a sua razão, ap¢s  refletir um instante, aprovava Mary), mas numa camada mais profunda  de seu ser. E essa mesma parte de seu eu sofria obscuramente por causa  daquela grande e irrestrita capacidade que a mulher revelava para o pra-  zer e para o divertimento, por causa da sua risada f cil, do seu excelente  apetite, da sua sensualidade franca. Rampion levou muito tempo para  desaprender o puritanismo de sua meninice. Houve momentos em que o  seu amor ... mãe quase se transformou em ¢dio.  - Ela não tinha direito de me educar daquela itianeira - dizia le.  - Era como um jardineiro japons que propositalmente detm o cresci-

  mento duma rvore. Ela não tinha direito!  E entretanto sentia-se feliz por não ter nascido selvagem nobre, como  Mary. Sentia-se alegre por terem-no as circunstncias obrigado a apren-  der penosamente a sua nobre selvageria. Mais tarde, v rios anos depois  do casamento, quando j tinham atingido o grau de intimidade rec¡proco  imposs¡vel nos primeiros meses de novidades, de choques e surprsas,  Rampion pâde falar a Mary a respeito daquelas questões.  - A vida te vem f cilmente demais - tentou le explicar-lhe. - Tu  vives pelo instinto. Tu sabes o que  preciso fazer duma maneira perfeita-  mente natural, assim como um inseto quando sai do casulo.  simples  demais, simples demais. - Sacudiu a cabea. - Tu não conquistaste a  tua sabedoria; nunca compreendeste as outras maneiras de viver, as alter-  nativas.

  - Em outras palavras - disse Mary -, sou uma imbecil.  - Não: uma mulher.  - O que  uma maneira polida de dizer a mesma coisa. Mas eu gosta-  ria de saber continuou ela com uma ausncia de conexão que era ape~  nas aparente onde estarias tu hoje sem mim.  Prosseguia de etapa em etapa, numa argumentaão coerente sob o pon-  to de vista emotivo.  - Eu estaria onde estou e a fazer exatamente o que estou fazendo  agora. - Estava claro que Mark não falava srio. Porque sabia, melhor  do que ningum, o quanto devia ... companheira, o quanto tinha aprendido  de seu exemplo e de seus preceitos. Mas divertia-se com aborrec-la.  - Bem sabes que isso não  verdade.  MarY estava indignada.

  -  verdade, sim.  -  mentira. E, para provar isso - acrescentou ela -, estou quase 

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decidida a ir embora com as crianas e a te deixar por alguns meses cozi-  mâlho. Eu quisera s¢ ver como te havias de arran-

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 nhando no teu pr¢prio

  jar sem mim.  - Pois eu me arranjaria perfeitamente bem - garantiu le com uma  calma exasperante.  Mary corou; estava comeando a zangar-se ...s deveras.  - Pois muito bem - retrucou ela -, então eu me vou mesmo. Desta  vez vou de verdade.  J tinha feito antes a mesma ameaa: o casal brigava freqenternerite,  pois ambos eram de temperamento arrebatado.  - Vai - disse Rampion. - Mas lembras-te de que, nessa hist¢ria de  ir, tanto pode ir um como outro. Se me deixas, eu te deixo.  Veremos como te arranjas sem mim 

- continuou ela ameaadora- 

mente.  - E tu?  - Que  que h comigo?  - Imaginas que podes viver melhor sem mim do que eu sem ti?  Olharam-se um e outro por algum tempo, em silncio, e depois,  simultneamente, desataram a rir. 

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  CAPiTULOX 

Uma tcnica unifor11^1~ - repetiu Spandrell. - Escolhem^se  infelizes, ou as descontentes ou as que querem entrar para o teatro, ou  que procuram escrever pa. as revistas e, como são rejeitadas, passam,  conseqentemente a julgai -_, mes incomprises*. - le general izava.  gabola, o caso da pobre Hilr ct Watkins. Se tivesse contado, ainda que  mal, o seu caso coni a rapariga, ste não teria dado a ijnpressao d',:  faanha muito grande. Harriet era uma criaturinha tão sentimental. G,)  abandonada.. * Qualquer uni a poderia ter conquistado. Mas, general;  zada daquela maneira, come se o caso dela f"sse apenas um dentre cen.s;  nas, contada numa linguagem de livro de receitas culin rias - -esc:

  lhem-se as infelizes". era -orno unia das receitas da Sra. Beeton**  hist¢ria, julgava Spandreil, pareceria cinicamente impressionante.  - Principia-se sendo muito, muito bondoso - continuou le  muito prudente, e p2rfeitainente puro: uma espcie de irmão mais velhC ,  em suma. E elas nos acham verdadeiramente admir veis,' porque, est cla  ro, nunca encontraram ningum que não f"sse homem de cidade, corn  idias e ambiões citadinas. Acham-nos simplesmente admir veis porquz  conhecemos t"das as coisas de arte, fomos apresentados a t"das a  celebridades e não pensamos exclusivamente em dinheiro nem nos mes  mos trmos do jornal da manhã. E elas tambm nos votam um certo te  mor respeitoso - ajuntou Spandrel], lembrando-se da expressão de admi  raão assustada que vira no rosto da pequena Harriet. - Somos tão#

 

11 sem-cerimnia" e ao mesmo tempo tão "classe superior" ... T Ö o  desembaraados e tão familiarizados com as grandes obras e os grande,-  homens ... Tão perversos mas ao mesmo tempo tão extraordin...riamente  bons... Tão instru¡dos, tão viajados, tão brilhantemente cosmopolitas e  West-End (j ouviram um morador de sub£rbio falar do West-End***?)  Somos bem como aqule cavalheiro condecorado com o Tosão de Ouro  que se v nos an£ncios dos cigarros De Reszke. Sim, elas nos temem um

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  pouco; mas ao mesmo tempo nos adoram. N¢s as compreendemos tão  bem, conhecemos tanto a vida em geral e as almas delas em particular ... 

Almas incompreendidas. (N. do E.)  Sra. Beeton. - Autora dum alentadissimo volume de quase 3 O00 p ginas,que tra¡a  de assuntos domsticos: receitas cuiii,~rias, conselhos pr ticos para as donas de casa, regras  de bOm-lom, etc.... (N. do T.)  *** Bairro elegante de Londres (N. do E.)# 

E não somos nem um pouquinho amigos do flrte, nem atrevidos como os  homens vulgares, nem um pouquinho. . . Elas sentem que podem confiar  em n¢s absolutamente; e, com efeito, podem ... nas prinieiras semanas.  Temos de habitu -las ... armadilha;  preciso que elas fiquem de tal manei-  ra mansas e confiantes que não se assustem das palmadinhas inocentes  que lhes damos nas costas ao passar, ou dos beijos castos de titio que lhes  damos na testa, tambm ocasionalmente. E enquanto isso, por meio da  lisonja, lhes vamos arrancando as confianas pequeninas; fazerno-las fa-  lar de amor, falamo-lhes a respeito de n¢s mesmos da mesma maneira co-

  mo se estivssemos falando de homem para homem, como se elas tives-  sem a mesma idade que n¢s e Fossem tão tristonhamente desiludidas e tão  amargamente sabidas quanto n¢s mesmos; e elas acham isto terrivel-  mente chocante (embora não o confessem), mas ali! - como ficam lison-  jeadas, palpitante e formid...velmente lisonjeadas! E passam simplesmente  a nos arriar por isso. Pois bem: afinal, quando o momento nos parece  maduro, quando elas j se acham integralmente domesticadas e não se  assustam mais, pomos em cena o desenlace. Ch no nosso apartamento  - n¢s as habituamos tão completamente a vir com absoluta impunidade  ... nossa casa. . . -, e elas vão depois jantar fora conosco, de modo que  não h pressa. O crep£sculo se acentua, falamos num tom desiludido,  mas ainda sentimentais com relaão aos mistrios do amor, trazemos  coquetis - bem fortes - e continuamos a falar, de maneira a que elas

  nos devorem as palavras, abstratamente, sem refletir. E, sentado no soa-  lho a seus ps, comeamos com muita ternura a acariciar-lhes os tornoze-  los duma maneira inteiramente plat"nica, ainda falando s"bre a filosofia  amorosa, como se em absoluto não tivssemos conscincia do que esta-  mos fazendo. Se elas não se zangam e o coquetel fez o seu trabalho, o res-  to não ser dif¡cil. Assim pelo menos sempre achei eu ...  Spandrell encheu o seu c lice de brandy e bebeu ...  - Mas  então - prosseguiu -, uma vez que elas se tornam nossas  amantes, que comea verdadeiramente a brincadeira.  quando temos de  p"r em aão todos os nossos talentos socr ticos. N¢s lhes desenvolvemos  os pequenos temperamentos, domesticamo~las, e iniciamo-las - sempre  s...biamente, suavemente, pacientemente - em todos os excessos da  sensualidade. Isso se pode fazer, garanto-lhes; e, quanto mais inocentes

  forem elas, mais f cil ser a tarefa. Essas criaturinhas podem ser trazidas,  em perfeita ingenuidade, ao grau mais espantoso da depravaão.  - Não tenho d£vidas a sse respeito - disse Mary, indignada. -  Mas qual  o proveito disso tudo?  -  um divertimento - tornou Spandrell com um cinismo teatral. -  Faz passar o tempo e d -nos um pequeno al¡vio ao tdio.  - E acima de tudo - interveio Mark Rampion, sem erguer os olhos  da x¡cara de caf -, acima de tudo,  uma vingana.  uma maneira de  nos desforrarmos das mulheres,  uma maneira de puni~las por serem

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 mulheres e por serem tão atraentes,  uma maneira de exprimir o nosso

  ¢dio para Com elas e para com o que elas representam,  uma maneira de  exprimir ¢dio contra n¢s mesmos. O teu mal, Spandrell - continuou  Mark, levantando de s£bito, acusadoramente, os olhos claros e brilhantes  para o rosto do outro -,  que no fundo tu te odeias a ti mesmo. Tu  odeias a fonte mesma da tua vida, a sua base derradeira, porque, não h# 

negar, o sexo  uma coisa fundamental. E tu o odeias, tu o odeias.  - Eu?  Era uma acusaão indita. Spandrell estava acostumado a ouvir censu-  ras por causa de seu excessivo amor ...s mulheres e aos prazeres sensuais.  - Não s¢rnente tu. Todos stes. . . - Com um gesto brusco de  cabea Rampion indicou os outros convivas. - E tâdas essas pessoas  que se dizem respeit veis, tambm. Quase tâda a gente.  a doena do ho-  mem moderno. Eu lhe chamo "mal de Jesus" por analogia com o mal de  Bright. Ou melhor: mal de Jesus e de Newton; porque os cientistas são  tão respeit veis quanto os cristãos. Da mesma forma os homens de  neg¢cios, pensando bem.  o mal de Jesus, de Newton e de Henry Ford.  Os trs juntos nos liquidaram completamente. Arrancaram a vida de nos~

  sos corpos e nos entulharam de ¢dio.  Rampion estava impregnado do assunto. Passara o dia todo ocupado  com um desenho que o ilustrava sim b¢licam ente. Jesus, com a tanga da  manhã da execuão, e um cirurgião de avental eram representados a  empunhar escalpelos, a um lado e outro duma mesa de operaão na qual,  em esc"ro, com as solas dos ps voltadas para o espectador, jazia cruci-  ficado um homem meio dissecado. Dum talho terr¡vel no ventre se lhe  escapavam em novlo as entranhas, que ca¡am por terra, onde se mistura-  vam com as da mulher acutilada que jazia sangrando no primeiro plano,  e se transformavam a seguir, numa metamorfose aleg¢rica, em todo um  povo de serpentes vivas. No fundo se esfumava uma paisagem de colinas,  pontilhada de vultos negros de instalaões de minas de carvão e de  chamins. Dum lado do desenho, atr s do corpo de Jesus, dois anjos -

  produto espiritual das mutilaões dos vivisseccionistas - estavam ten-  tando erguer-se, com as asas estendidas. Em vão, porque seus ps se acha-  vam presos no emaranhado de serpentes. A despeito de todos os esforos,  não podiam deixar a terra.  - Jesus e os cientistas nos estão vivisseccionando - continuou Mark  Rampion, que pensava no seu desenho -, picando os nossos corpos em  pedacinhos.  - Mas no fim de contas, por que não? - objetou Spandreil. - Tal-  vez les tenham sido criados para isso mesmo. O fato da nossa vergonha   significativo. Temos espontneamente vergonha do nosso corpo e de  suas atividades. isso  um sinal da inferioridade absoluta e natural do cor-  po-

  - Besteira absoluta e natural! - disse Rampion, indignado. - Para 

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principiar: a vergonha nada tem de espontnea. Podemos fazer unia pes-  soa ter vergonha de tudo: ter uma vergonha agoniante de usar sapate.

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  amarelos com casaco prto ou de falar com pron£ncia defeituosa, ou de  ter uma g"ta pendurada na ponta do nariz. Ter vergonha de tudo sein  exceao, inclusive do corpo e de suas funões. Mas essa espcie de vergo-  nha  tão artificial como qualquer outra. Os cristãos a inventaram, assim  como os alfaiates de Savile Row inventaram a vergonha de usar sapatos,  amarelos com casaco prto. Ela estava muit¡ssimo pouco divulgada antes  da era cristã. Veja os gregos, os etruscos.  Os nomes antigos transportaram Mary para as charnecas de Stanto .  Mark era sempre o mesmo. Mais forte agora. Que ar de doente tinhe.  naquele dia! Mary sentira vergonha de ser rica e sã. Acaso o amaria mais  naquela poca do que agora?  Spandrell erguera uma de suas mãos longas e ossudas.  - Eu sei, eu sei. Nobres, nus e antigos. Mas eu julgo que les são uma  invenão inteiramente moderna, sses pagãos de gin stica sueca. N¢s os  trazemos ... baila cada vez que desejamos agastar os cristãos. Mas ser ,  mesmo que les existiram? Tenho as minhas d£vidas.  -- Mas veja- se a arte dles - disse Mary por sua vez, pensando nas  pinturas de Tarq¡nia. Ela as tinha tornado a ver em companhia de Mark  - e dessa vez as vira realmente.  - Sim, e veja-se tambm a nossa - retorquiu Spandrell. - Quando  a sala de escultura da Royal Academy fâr desenterrada, daqui a milnios,  hão de dizer que as londrinas do sculo vinte usavam fâlhas de parreira,  davam de mamar aos bebs em p£blico, e se abraavam umas ...s outras  completamente nuas nos jardins.

  Pois eu quisera que fosse assim! - disse Rampion.  Mas não . E depois - deixando de parte por um momento essa  questão de vergonha -- , que me dizes do ascetismo como condião preli~  minar da experincia m¡stica?  Rampion bateu as mãos uma de encontro ... outra e, inclinando-se para  tr s na cadeira, ergueu os olhos para o alto.  - Ai, minha madrinha! Então j chegamos a isso, heiti? Experincia  m¡stica e ascetismo. O ¢dio que o fornicador nutre pela vida, sob uma no-  v a forma.  - Não, mas falando srio. . . - comeou o outro.  Sim, falando srio, j lste a Thaik, de Anatole France?  Spandrell sacudiu a cabea.  - Pois l - aconselhou Rampion. - L.  elementar, est claro.

  Um livro para os meninos. Mas ningum deve crescer sem primeiro ter li-  do todos os livros para meninos. Pois l Tha . Depois vem me falar a res-  peito de ascetismo e de experincias m¡sticas.  - Hei de l-lo - disse Spandreil. - Por ora, tudo quanto quero di- 

IIA 

zer  que h certos estados de conscincia conhecidos dos ascetas que são  desconhecidos para aqules que não são ascetas.  - Sem d£vida alguma. E, se tratas o teu corpo da maneira como a  natureza quis que o tratasses - com igualdade -, haver s de atingir  egados de conscincia desconhecidos para os ascetas vivisseccionistas.#

 

- Mas o estado de conscincia dos vivisseccionistas  melhor do que  o dos gozadores-  - Em outras palavras, os lun ticos são superiores aos homens sensa-  tos. O que eu nego. O grego são e harmonioso tira tudo quanto pode de  ambos sses estados. Não  bastante idiota para desejar matar uma parte  do seu pr¢prio eu. Conserva o equil¡brio. Não  f cil, naturalmente:  at  dif¡cil como o diabo. As foras a reconciliar são intrinsecamente hostis. A

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  alma consciente quer mal ...s atividades da parte inconsciente, f¡sica e  instintiva do ser total. A vida de uma  a morte de outra, e vice-versa.  Mas o homem são de esp¡rito pelo menos procura guardar o equil¡brio.  Os cristãos, que não eram sãos de esp¡rito, disseram ...s gentes que elas  deviam lanar uma metade de si mesmas na lata do lixo. E agora os  cientistas e os homens de neg¢cios vieram para nos dizer que devemos  jogar fora a metade que os cristãos nos deixaram. Prefiro ficar vivo,  inteiramente vivo.  tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da  plenitude.  - Mas, de ac"rdo com o teu ponto de vista - disse Spandrell -,  parece que a nossa poca não precisa de nenhuma reforma.  a idade u-  rea da intemperana, do esporte e do amor em p£blico.  - Mas se tu soubesses como Mark  puritano, no fundo! - riu Mary  Rampion. - Um velho puritano cl ssico!  - Nada do puritano - disse o marido. - Simplesmente são de  esp¡rito. Tu s como t"da a gente - continuou le, dirigindo-se a Span-  drefi. - Pareces imaginar que a lasc¡via fria, moderna e civilizada  a  mesma coisa que aqule saud vel - como direi? - aqule saud vel  falismo (esta palavra exprime bem a qualidade religiosa do velho modo de  existncia; lste Os Acarnanos?) -, aqule falismo, pois, dos antigos.  Spandrell gemeu e sacudiu a cabea.  - Poupa-nos aos exerc¡cios de gin stica sueca.  - Mas não  a mesma coisa - continuou o outro. -  precisamente  o cristianismo ...s avessas. O desdm do asceta pelo corpo exprimido de

  maneira diferente. Desdm e ¢dio. Era o que eu estava dizendo h pouco.  V¢s vos odiais a v¢s mesmos, v¢s odiais a vida. As vossas £nicas alterna-  tivas são a promiscuidade ou o ascetismo - duas formas de morte. Ora,  Os Pr¢prios cristãos compreendiam o falismo muito melhor do que esta  geraio sem deus. Como  aquela frase do ritual do casamento? "Com  meu corpo vos hei de adorar." Adorar com o corpo - eis o falismo  autntico. E, se imaginas que isso tem algo que ver com a promiscuidade 

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civilizada e sem paixão dos nossos jovens mais avanados, est s na ver-  dade muit¡ssimo enganado.  - Oh! estou pronto a admitir o car ter moi-tal dos nossos diverti-  mentos civilizados - respondeu Sparidrefi. -- H um certo cheiro -  continuou le a falar sincopadamente, entre chupadas no charuto meio  consumido que estava procurando reacender - de perfume barato ... e  de imund¡cia ranosa... Eu muitas vzes penso ... que a atmosfera do  inferno ... deve ser composta disso. - Jogou fora o f¢sforo. - Mas a  outra alternativa nada tem de mortal. Não h nada de mortal em Jesus ou  São Francisco, por exemplo.  -- Em certos pontos - disse Rampion. - Òles estavam mortos em  certos pontos. Muit¡ssimo vivos em outros, estou absolutamente de ac"r-  do. Mas deixaram simplesmente metade da existncia fora de j¢go. Não,

  não, isso  que não! Era j tempo de deixarem de falar dles. Estou cansa-  do de Jesus e de São Francisco, terrivelmente cansado dles.  - Pois bem, e os poetas? - perguntou Spandrell. - Não podes dizer  que Shelley seja um cad ver!  - Shelley? -- exclamou Rampion. - Não me fales de Shelley.  Sacudiu a cabea com convicão. -- Não, não. Shelley tem qualquer coi-  sa de verdadeiramente assustador. Não  humano, não  um homem.   um misto de fada e de lsma branca.  - Ora, por favor. . . - protestou Spandrell.  - Oh! Esquisito, não h d£vida, e tudo mais que quiseres ... Mas

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  cheio de um muco viscoso e sem sangue 1 Nada de sangue, nada de ossos  verdadeiros, ou de entranhas. Apenas polpa e sumo branco. E depois,  aquela mentira tremenda da alma. Aquela maneira que le tinha sempre  de mentir, de fingir, em benef¡cio pr¢prio e em beneficio dos outros, que  o mundo não era realmente mundo, mas sim cu ou inferno. E que dormir  com mulheres não era realmente dormir corri elas, irias simplesmente dois  anjos que se davam as mãos. Ah! Lembra-te de como le tratava as  mulheres -  escandaloso, verdadeiramente escandaloso. As mulheres  adoraram isso, est claro - durante algum tempo. Dava-lhes um tal  sentimento de espiritualidade ... Durava pelo menos at o dia em que  lhes vinha a vontade de suicidar-se. Tão espiritual ... E durante tâda a  vida le: não passou dum jovem colegial que tinha desejos sensuais iguais  aos de todos os outros, mas que se persuadia a si mesmo e aos outros de  que le era Dante e Beatriz feitos um ser £nico, e muito mais ainda.  Tremendo, tremendo! A £nica desculpa, suponho,  que le não podia dei-  xar de ser assim. Não nasceu homem; era apenas uma espcie de lsma-  fada com os apetites sexuais dum menino de escola. E depois, pensa  naquela formid vel incapacidade de chamar gato a um gato. Era-lhe  preciso sempre fingir que se tratava dum gnio domstico ou duma idia  plat"nica. Lembras-te da "Ode a uma Cotovia"? "Salve, esp¡rito jucun-  do! P ssaro jamais fo-ste!" -- Rampion recitava fazendo uma par¢dia 

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rid¡cula da "expressão" dum declamador. - Fingindo, apenas fingindo e  Mentindo a si mesmo como sempre. Òle não podia permitir que a cotovia  fosse um simples p ssaro, com sangue e penas e um ninho e um apetite de  comer lagartas. Oh, não! isso não seria bastante potico, seria demasiado# 

grosseiro. A cotovia tinha de ser um esp¡rito desericarri ado ... Privado de  sangue e de ossos. Uma espcie de lsma etrea e volante. Não se podia  esperar outra coisa. O pr¢prio Shelley era uma espcie de lsma volante;  e, no fun de contas. ningum pode verdadeiramente escrever s¢bre coisa

  alguma que não seja o pr¢prio eu ... Quando somos lsmas,  preciso  que escrevamos s"bre lsinas, ainda que o nosso assunto parea ser uma  cotovia. Mas, por Deus, eu quisera - acrescentou Rampion, com uma  explosão s£bita de fria extravagante -, eu quisera que essa cotovia  tivesse tanto esp¡rito como os pardais do Livro de Tobias e deixasse cair  no "lho de Shelley uma cataplasma bem grande! Seria bem feito para o  poeta não andar dizendo que a cotovia nao era passaro. Esp¡rito jucundo,  essa  boa! Esp¡rito jucundo ! 

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CAPITULO XI 

Na vizinhana de Lucy a vida sempre tendia a tornar-se excessiva-  mente p£blica. "Quantos mais somos, mais alegres ficamos" era o seu  princ¡pio; ou pelo menos, se "mais alegres" não fâsse o trnio apropriado,  mais barulhentos, mais tumultuosamente perturbadores.  Dentro de cinco minutos a contar de sua chegada, o canto no qual  Spandrell e os Rampions tinham estado sentados t"da a noite, na intimi-  dade duma conversaão tranqila, foi invadido e num piscar de olhos

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  devastado por um bando gritalhão e avinhado que surgira do salão parti-  cular. Cuthbert Arkwright era o mais ruidoso e o mais embriagado -  por princ¡pio e por amor ... arte, não menos que por amor ao lcool. Tinha  a idia de que por berrar e por se portar de maneira revoltante le defen-  dia a arte contra os filisteus. brio, sentia-se alinhado ao lado dos anjos,  de Baudelaire, de Edgar Allan Poe, de De Quincey, contra a massa amor~  fa e sem espiritual idade. E se se vangloriava de suas libertinagens erapor-  que as pessoas respeit veis haviam tratado Blake de louco, porque Bow-  dier tinha revisado Shakespeare, porque o autor de Madame Bovary f¢ra  processado e porque, quando a gente pede a Sodoma do Conde de  Rochester na Biblioteca Bodleiana, os bibliotec rios não na entregam  senão diante de um atestado de que estamos empenhados numa pesquisa  liter ria sria. Arkwright ganhava a sua vida - e fazendo isso le se  convencia de que estava servindo as artes - imprimindo ediões limita~  das e caras dos mais escabrosos espcimes da literatura nacional e estran-  geira. Louro, dum vermelho de bife sangrento, com olhos verdes e salta-  dos, um grande rosto reluzente, le se aproximou, vociferando saudaões.  Willie Weaver o seguia airosamente, homenzinho de sorriso perptuo,  ¢culos escarranchados no nariz comprido, borbulhante de bom humor e  de verbosidade inexaur¡vel. Atr s dle, seu gnero na altura e tambm  munido de ¢culos, mas grisalho, apagado, encolhido e silencioso, vinha  Peter Slipe.

  - Parecem um reclame de especialidade farmacutica - disse Span-  drell ao ver o grupo que se aproximava. - Slipe  o doente antes, Weaver   o mesmo depois do primeiro frasco e Cuthbert Arkwright ilustra os  resultados aterradores do tratamento completo.  Lucy ria ainda da brincadeira quando Cuthbert lhe tomou da mão.  - Lucy! - exclamou le. - Meu anjo! Mas por que, em nome do 

128 

cu, escreves sempre a l pis? Eu simplesmente não posso ler o que escre-  ves.  por mero acaso que estou aqui esta noite.  Então ela tinha escrito para dizer~lhe que a esperasse ali? pensou Wal-

  ter. Aqule tipo vulgar e tolo, aqule alarve ...  Willie Weaver apertou as mãos de Mary Rampion e de Mark.  - Eu não tinha a menor idia de que ia encontrar aqui os grandes -  disse le. - Para não falar nas belas. . . - Fz uma reverncia a Mary,  que explodiu numa risada estrepitosa e masculina. Willie Weaver ficou  mais satisfeito do que ofendido. - Positivamente, isto  a Mermaid  Tavern*!  - Sempre ocupado com o bricabraque? - perguntou Spandrell,# 

inclinando-se sâbre a mesa para interpelar Peter Slipe, que se tinha senta-

  do junto de Walter. Peter era assiri¢logo e trabalhava no British Museum.  - Mas por que a l pis, por que a l pis? - rugia Cuthbert.  - Fico com os dedos tão sujos quando uso pena...  - Pois eu havia de fazer que a tinta desaparecesse a beijos - protes-  tou Cuthbert, e, inclinando-se s"bre a mão que mantinha prsa ... sua,  comeou a beijar-lhe os dedos finos.  Lucy p"s-se a rir-  - Prefiro antes comprar uma caneta estilogr fica - disse.  Walter observava a cena, abatido. Seria poss¡vel? Um palhao

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  est£pido e odioso como aqule?  - Ingrata! - disse Cuthbert. - Mas  preciso que eu fale com Ram- 

pion.  E, afastando-se dela, deu uma palmada no ombro de Mark e  simultneamente acenou para Mary com a outra mão.  - Que gape! - continuou Willie Weaver na sua efrvescncia, co  mo uma chaleira. O bico estava voltado para Lucy. - Que festim!  Que. . . - Hesitou um momento ... procura da expressão justa, da  expressão verdadeiramente contundente. - Que efus¢es atenienses! Que  orgia mais do que plat"nica!  - Que vem a ser "efusões aten¡enses"? - perguntou Lucy.  Willie sentou-se e comeou a explicar.  - Com "efus&-s" eu quero me referir ao contraste com a nossa  estreita respeitabilidade burguesa, ... Pecksniff...  - Por que não me d s algum trabalho teu para publicar? - pergun-  tava Cuthbert em tom persuasivo.  Rampio-1 olhou para le com animosidade.  -- Julgas que eu tenha a ambião de ver meus livros ... venda nas lojas  que vendem artigos de borracha? 

* Taverna da Sereia ern Londres -local onde se reunia o Mermaid Club, constitu¡do por  intelectuais contemporneos de Sliakespeare e pelos seus sucessores. (N. do

 T.) 129

- Estariam em boa companhia - disse Spandreli. - As obras de  Arist¢teles. . - - Cuthbert rugiu um protesto.  - Comparem um eminente vitoriano corri um grande homem da po~  ca de Pricles - disse Willie Weaver. Sorriu; estava feliz e eloqente. _   O borgonha tinha produzido em Peter Slipe um efeito deprimente e nao  estimulante. O vinho apenas lograva dar realce ... sua falta de brilho e

...  sua melancolia.  - E que me dizes de Beatrice? - perguntou le a Walter- - Beatrice  Gilray? - Veio-lhe um soluo e procurou fingir que tinha tossido. - Tu  a vs frequntemente, acho, agora que ela trabalha no Literary World...  Walter a via trs vzes por semana e sempre a encontrava de boa  sa£de.  - D -lhe lembranas quando a vires - pediu Slipe.  - Os borborignios estertorosos de C arlyle, o dispptico 1 - decla-  mou Willie Weaver. E seu4 olhos brilharam de alegria atravs das lentes  dos ¢culos. O mot, lisonjeava-se le, dificilmente poderia ser mais esquisi-  tamentejuste. Weaver tossiu aquela tossezinha que era o seu coment rio  invari vel ...s melhores de suas frases. - Eu quisera rir, eu quisera apl

au-  dir - assim se podia interpretar a tossezinha -, mas a modstia o impe-  de.  Estertoroso ... qu? - perguntou Lucy. - Lembra-te bem de que  não recebi instruão de espcie alguma ...  - Tu gorjeias naturalmente as tuas agrestes canoes nativas' - disse  Willie. - Posso servir-me de um pouco desta nobre aguardente? A rubra  Hipocrene.  - Beatrice me tratou mal, extremamente mal. - Peter Slipe estava  lamuriento. - Mas não quero que ela pense que eu guardo rancor ...

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  Willie Weaver estalou a l¡ngua depois de provar um gole de brandy.  - As alegrias s¢lidas e.os prazeres l¡quidos são conhecidos apenas  dos filhos de Sião - citou le erradamente, repetindo a tossezinha satis-  feita.  - O mal de Cuthbert - estava Spandrell dizendo -  que le nunca  aprendeu bem a distinguir a arte da pornografia.  - Est claro - continuou Peter Slipe: - que ela tem perfeitamente o  direito de fazer o que quer em sua pr¢pria casa. Mas botar-me para fora  daquela maneira, duma hora para outra...  Em qualquer outro momento Walter teria escutado com del¡cia a ver-  sao que o pobre Slipe: dava daquela curiosa hist¢ria. Mas, corri Lucy ali  ao seu lado, le achava dificil tomar intersse na narrativa.  1  - Mas ...s vzes eu pergunto a mim mesma se os vitorianos não se  divertiam mais do que n¢s - dizia ela. - Quanto mais restriões, tanto  mais prazer. Se quisermos ver as pessoas bebrern corri unia alegria  verdadeira,  preciso ir ... Amrica. A Inglaterra da poca vitoriana conhe-  ceu o regime sco em todos os setores. Por exemplo, havia uma dcima 

130 

nona emenda* a respeito do amor. Devem ter-se atirado a le tão  entusi...sticarnente como os americanos se atiram ao u¡sque. Não sei se no  fundo sou partid ria das efusões atenienses - isto , se n¢s representa-

mos...  - Tu preferes Pecksniff a Alcib¡ades - concluiu Willie Weaver.  Lucy encolheu os ombros.  - Não tenho nenhuma experincia de Pecksniff - confessou.  - Não sei - disse Peter Slipe - se j f"ste alguma vez bicado por  uni ganso.  - Se fui qu? - inquiriu Walter, fazendo um esforo para fixar a  atenão.  - Bicado por um ganso.

  - Nunca, que me lembre. . .  -  uma sensaão dura, sca. - Slipe Fisgou o ar com o indicador  amarelado pelo fumo. - Beatrice  assim. Ela bica; gosta de bicar ...  Mas sabe tambm mostrar-se muito boa. Faz questão cerrada de mostrar-  se boa ... sua maneira, e se põe a dar bicadas se a gente não gosta da coisa.  Bicar faz parte de sua bondade; pelo menos foi o que sempre achei. Nun-  ca lhe fiz objeões ... Mas, por que motivo me expulsar de casa como se  eu fosse um criminoso? E  tão dificil achar um apartamento agora...  Tive de ficar numa casa de pensão durante trs semanas. A comida  Teve um calafrio.  Walter não p"de deixar de sorrir.  - Beatrice decerto tinha muita pressa de instalar Burlap no teu  lugar...

  Mas por que uma pressa assim?  Quando se trata de se desfazer do amor velho para acolher o  novo ... 

- Mas que  que o amor tem a ver com isso, no caso de Beatrice?  - Tem muita coisa - interrompeu Willie Weaver. - Tem tudo. Es  sas virgens que estão caindo na compuls¢ria são sempre as mais apaixo-  nadas.  - Mas ela nunca teve um caso amoroso na sua vida.  - Da¡ a violncia - concluiu Willie triunfantemente. - Beatrice

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  tem uma pedra em cima da v lvula de segurana. E minha mulher afirma  que suas roupas de baixo são verdadeiramente frineanas. Isso  pra l de  sinistro ...  - Talvez ela goste de andar bem vestida - sugeriu Lucy.  Willie Weaver sacudiu a cabea. A hip¢tese era demasiadamente sini-  Ples. 

*· Constituião dos Estados Unidos. Lucy Tantamount incorre aqui num pequeno lapso,  Pois a emenda que diz respeito ... proibião das bebidas alco¢licas  a 18." e na 19.1. Esta  roefere-se ao votofeminino. (N. do T.) 

131# 

- O inconsciente daquela mulher  um buraco negro. - Willie hesi-  tou por um instante. - Cheio de abraos batraquiais na treva -- con-  cluiu le. E tossiu modestamente para comemorar a sua faanha. 

Beatrice Gilray estava consertando um corpete de baixo, de sd . a câr-  de-rosa. Tinha 35 anos, mas parecia mais jovem ou, melhor, parecia não

  ter idade. Uma pele fresca e clara. Os olhos brilhantes engastavam-se nas  ¢rbitas pouco fundas e sem rugas. O rosto tinha qualquer coisa de vivo e  de volunt rio, e não era destitu¡do de beleza; mas a forma e a inclinaão  . e ligeiramente  do nariz eram um tudo-nada c"micas, havia um que d  absurdo no brilho de mianga dos olhos, na bâca ainuada, no queixo  redondo e cheio de desafio. Mas a gente ria com ela não menos que dela;  porque a postura de seus l bios era humor¡stica e a expressão de seus  olhos redondos e espantados, trocista e maliciosamente curiosa.  Beatrice cosia. O rel¢gio tiquetaqueava. O instante em movimento que,  segundo Sir Isaac Newton. separa o passado infinito do infinito futuro  avanava inexor...velmente atravs da dimensão do tempo. Ou, a crer em  Arist¢teles, um pouco mais do poss¡vel a cada instante se tornava real; o

  presente imobilizava-se e ia incorporando a si o futuro, como um homem  que ficasse engolindo para sempre uma fita de macarrao sem fim. De  quando em quando Beatrice tornava real um bocejo em potncia. Num  csto ao lado do fogo uma gata preta estava deitada de ilharga e dava de  mamar a quatro gatinhos cegos e mosqueados. As paredes do quarto  eram dum amarelo de ptalas de primavera. Na prateleira superior da  biblioteca a poeira engrossavas"bre os manuais de ass¡riologia que a Srta.  Gilray tinha comprado quando Peter Slipe era locat rio do seu andar  inferior. Um volume dos Pensamentos de Pascal, corri anotaões a l pis  feitas por Burlap, jazia aberto sâbre a mesa. O rel¢gio continuava a tique-  taquear.  S£bitarnente a porta da frente bateu. Beatrice largou o corpete de sda  c"r-de-rosa e ergueu-se num salto.

  - Não esquea que voc tem de beber todo o seu leite quente, Denis  - disse ela, olhando para o hafi. Sua voz era clara, aguda e imperativa.  Burlap pendurou o sobretudo e chegou ... porta:  - Não devias levantar por minha causa - observou, numa repri-  menda terna, sorrindo para ela um de seus graves e sutis sorrisos ... Sodo- 

ma. alho que fazia questão de terminar - mentiu  - Eu tinha um trab  Beatrice.

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  - ora, voc foi mesmo muit¡ssimo camarada...  Estas pequenas expressões familiares com que Burlap gostava de 

IV) 

apimentar a sua conversaão tinham, para os ouvidos sens¡veis, a mais  curiosa das ressonancias.  -Òle fala g¡ria", dissera uma vez Mary Rampion, "como um estran-  geiro que dominasse perfeitamente o ingls - mas dominasse como  estrangeiro. Não sei se j ouviram um hindu dizer'urn sujeito macanudo'.# 

A g¡ria de Burlap me lembra isso."  Para Reatrice, no entanto, aqule "muit¡ssimo camarada" parecia intei-  ramente natural e sem nada de estrangeiro. Ela corou com um prazer  t¡mido de donzela. Mas:  - Entre e feche a porta - disse num tom sco de comando. S"bre  aquela jovem e delicada timidez havia uma c¢rnea casca exterior; havia  uma parte de seu ser que dava bicadas e que era essencialmente pr tica.  - Sente-se ali - ordenou; e, enquanto se punha a lidar vivazmente com  o pote de leite, com a caarola e com a torneira do g s, ela perguntou a  Burlap se tinha gostado da festa.

  Buriap sacudiu a cabea:  - Fascinatio nugacitatis - disse le. - Fascinatio migacitatis.  Tinha estado a ruminar a fascinaão da futilidade durante todo o cami-  nho, desde Piccadilly Circus.  Beatrice não entendia latim; mas podia ver pelo rosto de Burlap que  aquelas palavras exprimiam desaprovaão.  - As reuniões sociais, no fundo, são uma perda de tempo, não  mes-  mo? - disse ela.  Burlap moveu a cabea num sinal afirmativo.  - Uma perda de tempo - repetiu num eco, com a sua lenta voz de  ruminante, fixando os olhos vagos e preocupados no dem"nio familiar  invis¡vel que se achava um pouco ... esquerda de Beatrice.  - Chegamos aos quarenta, deixamos para tr s mais de metade da vida,

  o mundo  maravilhoso e misterioso. E, no entanto, ainda passamos qua-  tro horas a palestrar a respeito de coisa nenhuma em Tantamount House.  Como se explica que a trivialidade seja tão atraente9 Ou existe alguma  outra coisa atr s da trivialidade, alguma outra coisa que nos atrai9 Ser

alguma vaga e fant stica esperana de que se possa encontrar o ser  messinico que sempre estivemos procurando, ou ouvir a palavra revela~  dora?  Burlap meneava a cabea enquanto falava, com um curioso movimento  desconjuntado, como se os m£sculos de seu pescoo estivessem perdendo  a elasticidade. Beatrice estava de tal maneira familiarizada com aqule  movimento que j não via nle nada de estranho. Esperando que o leite  fervesse, ela escutava com admiraão, contemplava Burlap com uma cara  sria de quem est na igreja. Um homem cujas excursões aos salões dos

  IriCOS eram Como simples epis¢dios numa vida tâda dedicada ...s pesquisas  esPirituais podia razo...velmente ser considerado como equivalente ao  oficio divino das manhãs de domingo. 

133# 

- Apesar de tudo - acrescentou Burlap, levantando s£bitamente os

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  olhos para a interlocutora, com um riso gaiato e muito arreganhado,  surpreendentemente diverso do sorriso ... Sodoma do momento anterior  -, o champanha e o caviar estavam realmente maravilhosos. - Era o  dem"nio familiar que tinha bruscamente interrompido as ruminaões  filos¢ficas do anjo. Burlap lhe permitira falar em voz alta. Por que não?  Achava divertido ser desconcertarite. Olhou para Beatrice.  Beatrice estava devidamente desconcertada.  - Não tenho d£vidas a sse respeito - disse ela, modificando a  expressão de seu rosto de fiel na igreja para harmoniz -lo com o riso  gar¢to de Burlap. Riu um pouco nervosamente e se afastou para deitar o  leite numa, taa. - Est aqui o seu leite -- ofereceu ela num tom sco,  refugiando-se na irriperiosidade cheia de solicitude para fugir ao seu  embarao. - E faa por beb-!o enquanto est quente.  Houve um longo silncio. Burlap bebericava devagar o leite fumegante  e Beatrice, sentada num tamborete diante da lareira apagada, esperava,  ofegando um pouco, esperava nem ela mesma sabia o qu . . .  - Voc parece a pequena Srta, Muffett* sentada no seu banquinho -  disse por fim Burlap, numa alusão ... velha poesia infantil.  Beatrice sorriu.  Felizmente não est aqui a aranha grande ...  Obrigado pelo elogio, se  que isso  elogio ...  --- Siri,  -- afirmou Beatrice.  Ali estava, pensou ela, o que havia de verdadeiramente encantador em  Denis, era uma pessoa tão digna de confiana! Com os outros homens

  havia o perigo dos agarramentos, das apalpadelas, dos beijos ... E aquilo  era horr¡vel, supinamente horr¡vel. Beatrice nunca se refizera completa-  mente do choque que tinha recebido quando, sendo ainda menina, o  cunhado de sua tia Maggie, um homem que ela considerara sempre como  um tio, pusera-se um dia a dar-lhe apertões dentro de um t xi. O incidente  de tal maneira a assustara e revoltara que, quando Tom Field, de quem  ela verdadeiramente gostava, a pediu em casamento, Beatrice o repeliu,  simplesmente porque le era um homem, como aqule horr¡vel tio Ben,  porque ficava apavorada ... simples idia de que pudessem cortej -la, por-  que tinha um terror pnico de qualquer contato. Beatrice estava com mais  de trinta anos e jamais permitira que pessoa alguma a tocasse. A suave e  trmula rapariguinha que havia nela, debaixo da casca de mulher pr tica,  tinha-se apaixonado muitas vzes. Mas o terror de ser apalpada, de ser

  tocada mesmo, f"ra sempre mais forte do que o amor. Ao primeiro sinal  de perigo, Beatrice se punha desesperadamente a dar bicadas, enrijava a  cascajugia... Quando afinal se via a salvo, a rapariguinha aterrada sol- 

* Alusão ao poema infantil ingls cuja hero¡na, a pequena Srta. Mufflt, se v peguida  por uma aranha horrenda e enorme, (N. do T.) 

134 

tava um longo suspiro. Graas aos cus I Mas um pequeno suspiro de  desapontarnento estava sempre, inclu¡do no grande suspiro de al¡vio. Bea~  trice quisera não ter mdo, quisera que a camaradagem feliz que existia

  antes das apalpadelas tivesse podido continuar para sempre,# 

indefinidamente. Algumas vzes ela se enchia de ¢dio contra si mesma;  com mais freqncia pensava que havia no amor algo de  fundamentalmente mau, e algo de fundamentalmente assustador nos  homens. Eis o lado admir vel de Denis Burlap: era uma criatura tão  tranqil¡zadora... Não pensava em tomar familiaridades, em apalpar.

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  Beatrice o podia adorar sem a menor sombra de receio.  - Susan tambm costumava sentar-se em tamboretes, como a peque-  na Srta. Muffett -- continuou Burlap depois de uma pausa. A sua voz era  melanc¢lica. Tinha passado os £ltimos minutos a ruminar o tema de sua  mulher morta. Haviaquase dois anos que Susan Fora levada por uma epi'  demia de influeriza. Perto de dois anos; mas a sua dor - Buriap garantia  a si mesmo - não tinha diminu¡do, o sentimnto de sua perda permane-  cia tão avassalador como sempre. Susan, Susan, Susan - repetira o no-  me dela muitas e muitas vzes. Nunca mais a veria, ainda que vivesse um  milhão de anos. Um milhão de anos, um milho de anos. Abriam-se abis-  mos em t"rno destas palavras. - Ou no chão - prosseguiu Burlap em  voz alta, reconstruindo a imagem da mulher o mais vividamente poss¡vel.  - Acho que ela preferia sentar-se no chão. Como uma criana. -- Uma  criana, uma criana, repeliu le interiormente. Tão jovem !  Beatrice continuava sentada em silncio, contemplando a lareira vazia.  Seria indiscreto, sentia ela, quase indecente, olhar para Burlap. Pobre  criatura! Quando por fim se voltou para le, notou que tinha l grimas nas  faces. · vista dessas l grimas Beatrice sentiu -se invadida por uma onda  subitnea de piedade maternal. "Como uma criana", dissera le. Mas  le, Denis, le pr¢prio era como uma criana! Como uma pobre criana  infeliz.  Inclinando-se para a frente, Beatrice afagou com os dedos o dorso da  mio que Burlap deixava pender molemente... 

- Abraos batraquiais! - repetiu Lucy. E ps-se a rir. - Essa foi  uma fa¡sca de gnio, Willie.  - T"das as minhas fa¡scas são fa¡scas de gnio - disse Willie  modestamente. Estava representando; era Willie Weaver no papel clebre  de Willie Weaver. Explorava artisticamente aqule amor da eloqncia,  aquela paixão da frase bem redonda e retumbante com a qual nascera --  num atraso de trs sculos. Na poca da mocidade de Shakespeare le te-  ria sido uma celebridade da literatura. Entre seus contemporneos, os  eufu¡smos de Willie provocavam apenas riso. Mas le apreciava os aplau- 

11,;# 

~, I 

sos, mesmo que stes fossem esc~_minhos. Alm do mais, as risadas nunca  traduziam mal¡cia; porque Willie Weaver era tão bom rapaz e tão obse-  quioso que tâda a gente gostava dle. Era pois diante de um aud drio  jocosamente aprovador que le representava agora o seu papel; e, sen-  tindo a aprovaão atravs da hilaridade, representava-o com t¢da a alma.  - T"das as minhas fa¡scas são de gnio - repetiu.  A observaão harmonizava~se admir...velmente com o papel. E era  verdadeira - quem sabe?! Willie gracejava, mas com uma convicão  secreta.

  - Tomem nota de minhas palavras - ajuntou: um dstes dias os  batr quios se insurgem e saltam para fora.  - Mas por que batr quios? - perguntou Slipe. Nada menos pare-  cido com um batr quio do que Beatrice

- E por que hão de les saltar para fora? - inquiriu Spandreli.  - As rãs não dão bicadas.  Mas a voz fina de Slipe foiafogada pela de Mary Rampion.  -- Porque as coisas encerradas acabam sempre por saltar para fora  - gritou ela. - Saltam mesmo.  - Moral - concluiu Cuthbert: - nunca encerres coisa alguma. Eu

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  nunca o fao.  -- Mas talvez a graa esteja no salto dos batr quios - filosofou  Lucy. 

- Que proibicionista perversa e paradoxal!  - Mas  l¢gico - falou Rampion -- que se produzam revoluões  internas não menos que externas. No Estado, são os pobres contra os  ricos. No indiv¡duo,  o corpo e os instintos oprimidos contra o intelecto.  O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no dom¡nio do esp¡ri-  to; as classes inferiores no mesmo dom¡nio se revoltam.  - Apoiado! Muito bem! - gritou Cuthbert, batendo na mesa. Ram-  pion franziu o sobrolho. A aprovaão de Cuthbert era-lhe um insulto pes-  soal. 

Eu c sou contra- revolucion rio - disse Spandrell. - Coloquem-  se as classes inferiores espirituais nos seus lugares.  - Menos no teu pr¢prio caso, heiri? - disse Cuthbert, arreganhando  os dentes.  - Não se pode expor uma teoria?  - H sculos que n¢s as vimos reprimindo, ... fâra - disse Rampion  -, e vejam o resultado. Tu, entre outras coisas. Olhou para Spandrell,  que jogou a cabea para tr s e riu afànicamente. Olhem o resultado -  repetiu. - A revoluão pessoal interior, e, em conseqncia dela, a revo-  luão exterior e social.

  - Vamos, vamos! - disse Willie Weaver. - Falas como se as  carrtas de Termidor j andassem estrondando na rua. A Inglaterra conti-  nua mais ou menos no mesmo lugar. 

136 # 

- Mas que sabes tu da Inglaterra e dos inglses?---retorquiu Ram-  pion, - Nunca sa¡ste de Londres, nem da tua classe social. Vai para o  norte...

  - Deus me livre! - exclamou Willie, fervorosamente.  - Vai ver o pa¡s do carvão e do ferro. Conversa um pouco com os  oper rios metal£rgicos. Não  a revoluão por uma causa.  a revoluão  como um fim em si. A demolião pelo amor ... demolião.  - Isso me parece bastante simp tico - disse Lucy.  -  espantoso.  simplesmente inumano! Extraiu-se-lhes tâda a  humanidade sob a pressão da vida civilizada, sob o pso do carvão e do  ferro. Não ser uma revolta de homens. Ser uma revoluão de seres  elementares, de monstros, de monstros pr~humanos ... E tu te contentas  com fechar os olhos e fingir que tudo isso  absolutamente perfeito. 

- Pense s¢ na desproporão - dizia Lorde Edward, ao passo que  fumava o seu cachimbo. -  positivamente. . . - A voz lhe faltou. --

  Tome o carvão, por exemplo. O homern o consome hoje 110 vzes mais  do que consumia em 1800. Mas a populaão atual  apenas duas vzes e  meia o que era naquele tempo. Com os outros animais ... Certamente   bem diverso. O consumo  proporcional ao n£mero de indiv¡duos.  filidge apresentou algumas objeões.  - Mas quando os animais dispõem de um excesso s¢bre aquilo que  lhes  necess rio para subsistir, les não o rejeitam, não  mesmo? Quan-  do h uma batalha ou uma peste, as hienas e os abutres tiram proveito da  abundncia para comer mais do que a sua fome exige, para se superali-  mentar. Não se passa o mesmo conosco? Morreram florestas em grandes

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  quantidades, h alguns milhões de anos. O homem exumou-lhes os  cad veres, descobriu que os podia usar, se est dando o luxo de um far-  to banquete enquanto dura a carnia. Quando a provisão se exaurir le  voltar ...s raões reduzidas, como fazem as hienas nos intervalos entre as  guerras e as epidemias. - Illidge falava com vol£pia. Discorrer s"bre  sres humanos como se não fosse poss¡vel distingui-los dos macacos  enchia-o duma satisfaão particular. - Descobre-se uma jazida  carbon¡fera, um poo de petr¢leo. Brotam cidades, constroem-se estradas  de ferro, navios vm e vão. Para um observador experimentado que  morasse na lua, sse enxamear, sse vaivm deveria parecer uma pulu-  [aão de formigas e m"scas em târno dum cão morto. O salitre do Chile,  o petr¢leo do Mxico, os f¢sfatos da Tun¡sia -- a cada descobrimento,  um n¢vo formigar de insetos.  poss¡vel imaginar os coment rios dos  astrânomos lunares: "Aquelas criaturas tm um tropismo notavel e talvez  £nico para as carnias f"ssilizadas". 

137# 

- Como avestruzes - disse Mary Rampion. - Vocs vivem como  avestruzes.  - E não  s¢rnente no que diz respeito ...s revoluões - acrescentou

  Spandrell, ao mesmo passo que se ouvia Willie Weaver dizer algo sâbre  "as fil¢sofias estrut¡ocamelinas". - Mas no que diz respeito a t"das; as  coisas importantes que porventura sejam desagrad veis. Houve um tempo  em que não se andava por ai a fingir que a morte e o pecado não existem.  "Au dtour diun sentier une charogne infme*" - citou le. - Baude-  laire foi o £ltimo poeta da Idade Mdia, ao mesmo tempo que o primeiro  poeta moderno. "Et pourtant " - continuou le, olhando para Lucy com  um sorriso e erguendo o copo: 

Etpourtant vous serez semblable h celte ordure,  A cette horrible infection,  boile de mes yeux, soled de ma nature.  Vous, mon ange et mapassion!

  Alors, ¢ ma beaut, dites ... Ia vermine  Qui vous mangera de baisers... ** 

- Meu caro Spandreil! - Lucy levantou a mão num sinal de prote  to. 

- Realmente, e necr¢filo demais! - objetou Willie Weaver.  "Sempre o mesmo ¢dio da vida", pensava Rampion. "Diferentes gne-  ros de morte: as £nicas alternativas." Olhou para o rosto de Spandrell  escrutadoramente. 

- E, pensando bem - dizia Illidge -, o tempo que foi preciso para

  formar as jazidas de carvão, dividido pela duraão da vida humana, não  difere tão enormemente da vida de uma sequ¢ia dividida por uma geraao  de bactrias de fermentaão p£trida. 

Cuthbert olhou para o rel¢gio:  -- Mas bom Deus! - exclamou -- faltam 25 para 1 hora. - 

"No desvio de uma vereda, uma carnia nojenta. "(N. do E.)  "E, contudo, voc ser semelhante a essa imund¡cia, a essa horr¡velfedemina, estrla de

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  meus olhos, sol de minha naiureza. Voc, meu anjo e minha paixão! Então, ¢ minhamaravi-  lha, diga ao verme que a devorar de beUos. . - "(N. do E.) 

138 

Fxgucu-se num pincho. - Prometi que aparecer¡amos na festa dos  Widdicombe. Peter, Willie! Acelerado, marche!  - Mas vocs não podem ir - protestou Lucy. - Não podem ir as~  sim tão absurdamente cedo ...  -  o chamado do dever - explicou Willie Weaver. - Austero Fi-  lho do Verbo Divino. - Soltou a sua tossezinha de auto-aprovaão.  - Mas  rid¡culo,  inadmiss¡vel.  Lucy olhou de um para outro com uma espcie de ansiedade colrica.# 

o pavor da solidão era nela um sentimento cr"nico. Era sempre poss¡vel,  se les ficassem sentados cinco minutos mais, que acontecesse algo  verdadeiramente divertido. De resto, era insuport vel que as pessoas  fizessem coisas contra a sua vontade.  - E n¢s tambm, parece-me. . . - disse Mary Rampion, erguendo-  se da cadeira.

  "Graas aos cus!", pensou Walter. Esperava que Spandrel¡ seguisse o  exemplo geral.  - Mas  imposs¡vel! - gritou Lucy. - Rampion, eu não posso per-  mitir isso!  Mark Rampion limitou-se a sorrir. "Estas sereias profissionais!", pen- 

SOU.  Lucy o deixava completamente frio, causava-lhe horror. Desesperada,  a m"a apelou para a outra mulher que havia no grupo.  - Sra. Rampion, a senhora deve ficar. Mais cinco minutos. Apenas  cinco minutos - pediu, com uma voz cheia de adulaão.  Tudo debalde. O criado abriu a porta lateral. Furtivamente, les desli-

  zaram para a escuridão.  - Mas por que insistem em ir embora? - perguntou Lucy, num quei-  xume.  - Por que insistimos n¢s em ficar? - perguntou Spandrell. Walter  descorooou; aquilo significava que o homem não pretendia ir embora  com os outros. - Pois isso  muito mais incompreens¡vel ...  Supinamente incompreens¡vel! O calor e o lcool produziam em Walter  o efeito habitual. Òle se sentia doente e ao mesmo tempo desgraado. Pa-  ra que ficar ali, sem nenhuma esperana, naquele ar envenenado? Por que  não voltar logo para casa? Marjorie ficaria contente.  - Tu pelo menos s fiei, Walter.  Lucy sorriu para le. Walter decidiu retardar a partida. Fz-se um  silncio.

  Cuthbert e os companheiros tinham tomado um t xi. Recusando todo  os convites, os Rampions preferiram seguir a p. 

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  A prop¢sito - disse Lucy, voltando-se para Spandreil. - Eu te-  nho um recado de tua mãe.  Deu-o. Spandrell sacudiu a cabea afirmativamente, mas não fez  coment rios.  - E o general? - inquiriu le, logo que Lucy terminou de falar. Não  queria que se falasse mais na mãe.  - Oh, o general! - Lucy fez uma careta. - Tive pelo menos meia  hora de Inteligncia Militar esta noite. Para falar a verdade eu não lhe de-  via permitir isso. Que me dizes de uma Sociedade contra os Generais?  - Inscrevo-me como membro fundador e honor rio.  - Ou por que não uma sociedade para a abolião dos velhos, j que  estamos no assunto? - continuou Lucy. - Os velhos realmente são  imposs¡veis. Exceto o teu pai, Walter. Òle  perfeito. Perfeito mesmo. O  £nico velho poss¡vel.  -  justamente um dos raros que são completamente imposs¡veis, tu 

40 

- Graas a Deus! - disse Mary, quando o t xi arrancou. - Òsse  medonho Arkwright!  -- Sim, mas a mulher ainda  mais atroz - contrap"s Rampion.  Ela me d arrepios. Aqule pobre menino, o tolinho do Bidlake! Est l

como um coelho diante duma fuinha.

  - Isso  sindicalismo masculino. Eu chego a gostar dela, porque  Lucy faz que vocs, homens, se agitem um pouquinho. E  bem feito.  --  o mesmo que gostar de uma cobra-capelo.  A zoologia de Rampion era inteiramente simb¢lica.  -- E Sprandreli, então, j que estamos tratando de horrores? Parece  uma g rgula, um dem"nio. . .  --- Parece um colegial b"bo---afirmou Rampion com nfase. - Esse  nunca cresceu, nunca ficou adulto. Não percebeste ainda?  um adoles-  cente eterno. Torturando o crebro com t"das essas coisas que preocu-  pam os adolescentes. E incapaz de viver, porque anda por demais ocupa-  do em pensar na morte. e em Deus e na verdade e no misticismo e em tudo  mais que segue; demasiadamente ocupado em pensar nos pecados e em  tentar comet-los, para no fim ficar decepcionado porque não o consegue.

   deplor vel. Spandrell  uma espcie de Peter Pan - at mesmo muito  pior do que esse repugnante abortinho de Barrie, porque est acorrentado  a uma poca mais nscia.  um Peter Pan ... Dostoivski, mais Musset,  mais a dcada de 90, mais Bunyan, mais Byron e mais o Marqus de Sa-  de. Verdadeiramente deplor vel. Tanto mais deplor vel quanto h nle,  em potncia, um ser humano muito decente.  Mary p"s-se a rir.  - Acho que terei de fiar-me na tua palavra... 

 que não sabes. - Entre os Bidlakes da geraão de Walter a impossibi-  Udade do velho John era quase axiom tica. - Tu não o acharias tão per-  feito se f"sses mulher ou filha dle.  Ao pronunciar estas palavras Walter s£bitamente lembrou-se de

  Marjorie. O sangue subiu-lhe ...s faces.  - Oh! naturalmente, se o vamos escolher como marido ou como pai# 

retorquiu Lucy -, que poderemos esperar? Pois le  poss¡vel como  velho justamente porque e assim imposs¡vel como marido e como pai. A  maior parte das pessoas velhas ficaram com a vida esmagada sob o pso  de suas responsabilidades. O teu pai nunca se deixou esmagar. Teve

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  mulheres e filhos e o resto. . . Mas viveu sempre como um gar"to na gari~  daia. Coisa que não  l muito agrad vel para as mulheres e os filhos,  concordo ... Mas como  agrad vel para n¢s outras!  - Admito. . . - disse Walter. Julgara-se sempre em tudo diferente  do pai. Mas estava procedendo bem como o pai procedera. 

Pensa nle fazendo abstraão do sentimento filial.  Vou tentar ...  Que devia le: pensar de si mesmo?  - Pois tenta e h s de ver que tenho razão. Teu pai  um dos poucos  velhos poss¡veis. Compara-o com os outros. - Lucy sacudiu a cabea.  In£til; não se pode tratar com les.  Spandrell riu.  - Vocs falam dos velhos como se fossem cafres ou esquim¢s.  - Bem, e les não são mais ou menos isso? Coraões de ouro e tudo  mais que segue ... E maravilhosamente inteligentes - ... sua maneira, e  levadas em conta as circunstncias. Mas acontece que os velhos não  pertencem ... nossa civilizaão. São estranhos. Hei de me lembrar sempre  daquela vez em que fui tomar ch em casa de umas senhoras rabes, na  Tun¡sia. Eram tão am veis, tão hospitaleiras ... Mas fizeram questão de  que eu comesse uns b"los intrag veis ... Falavam mal o francs... E eu  não tinha absolutamente nada para dizer-lhes ... E estavam tão horrori-  zadas com as minhas saias curtas e com o fato de eu não ter filhos ... As  pessoas velhas sempre me fazem lembrar aqule ch rabe. Vocs acham

  que n¢s seremos um ch rabe quando ficarmos velhos?  - Sim, e prov velmente: um memento mori, ainda por cima - disse  Spandrell. -  uma questão de arteriosclerose.  - Mas o que torna os velhos tão parecidos com um ch rabe são as  suas idias. Eu simplesmente não posso conceber que a arteriosclerose me  faa um dia acreditar em Deus, na moral e no mais que segue. . . Sa¡ do  meu casulo durante a guerra, quando tudo estava fora dos eixos. Não vejo  como nossos netos possam fazer uma derrubada mais completa do que a  que se fez naquela poca. Então, por que haveria de vir o desentendi-  mento? 

14#

 

- Talvez les tenham P"sto tudo de nâvo nos seus lugares. . . -  sugeriu Spandrell.  Lucy f icou silenciosa por um momento.  - Nunca pensei nisso ...  - Ou então tu mesma poder s ter feito isso. Botar as coisas de nvo  nos lugares  uma das ocupaões tradicionais dos velhos ... 

O rel¢gio bateu uma hora e, como um cuco libertado pela badalada,  Sinim"ns apareceu na biblioteca trazendo uma bandeja. Simirions era um  homem maduro e tinha aquela dignidade ministerial de postura que a

  necessidade de refrear a l¡ngua e de manter a calma, de nunca dizer o que  verdadeiramente se pensa e de guardar as aparncias tende sempre a pro-  duzir nos diplomatas, nas personagens reais, nos altos funcion rios p£bli-  cos e nos mordornos. Sem o menor ru¡do p"s a mesa para dois e, anun-  ciando que a ceia de milorde estava servida, retirou-se. Era numa quarta-  feira: duas costeletas de carneiro assadas na grelha revelaram-se ... luz  quando Lorde Edward levantou a tampa de prata. Segundas, quartas e  sextas-feiras eram dias de costeletas. *s tras e ...s quintas havia bife de  entrecosto com batatas fritas cortadas em aparas finas. Aos s bados, ...  maneira de banquete, Simmons preparava um mixed-grill*. Aos domin-

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  gos, sa¡a; Lorde Edward tinha de se contentar com presunto frio e l¡ngua  com salada.  - Curioso -- disse Lorde Edward, servindo uma costeleta a Illidge  -, curioso que o n£mero de carneiros não aumente. Não com a mesma  rapidez que a populaão humana. Era de se esperar ... visto que a sim-  biose  tão ¡ntima.  Ficou a mastigar em silncio.  -  que o carneiro deve estar passando de moda - disse Illidge. -  Como Deus -- acrescentou, provocador -, e como a imortalidade da al-  ma. - Lorde Edward não ca¡a no lao. - Para não falar nos rontan-  cistas da poca vitoriana - continuou filidge. Òle tinha escorregado na  escada; e a £nica literatura que Lorde Edward lera em t¢da a sua vida  fora a de Dickens e nackeray. Mas o velho mastigava calmamente. - E  as donzelas inocentes. - Lorde Edward tomava um intersse cient¡fico  pelas atividades sexuais dos axolotles e dos frangos, das cobaias e das  rãs; mas qualquer referncia ...s atividades correspondentes dos humanos  dava-lhe um doloroso mal-estar. - E a pureza - continuava Illidge,  olhando fixamente para o rosto do velho---, e a virginite, e... 

* Diversos tipos de carnes e vegetais grelhados servidosjuntos. (N. do E.) 

142 

o assistente foi interrompido, e Lorde Edward salvo do resto daquela  perseguião, pelo tilintar da campainha do telefone.  - Eu atendo - disse Illidge, erguendo-se num salto de seu lugar.  P"s o fone no ouvido.  - AIâ!  Edward, s tu? -- perguntou uma voz profunda, não diferente da  do pr¢prio Lorde Edward. - Sou eu. Edward, acabo justamente de  descobrir uma prova matem tica das mais extraordin rias da existncia# 

de Deus ou, melhor, da. . .

  - Mas eu não sou Lorde Edward - gritou Illidge. -- Espere. Vou  chani -lo-  Voltou-se para o Velho:  -  Lorde Gattenden. Acaba de descobrir uma nova prova da  existncia de Deus.  Não sorriu ao dizer isto: o tom de sua voz era grave. A gravidade em  tais circunstncias era o esc rnio mais feroz. A participaão em s¡ mesma  era uma zombaria. Qualquer coment rio acompanhado de riso havia de  torn -la menos e não mais rid¡cula. Que velho admir vel de imbecilidade!  Iflidge se sentiu vingado de tâdas as humilhaões.  E, mais srio do que nunca, ajuntou:  - Uma prova matem tica.  - Oh, meu Deus! - exclamou Lorde Edward, como se algo

  deplor vel tivesse acontecido. Falar ao telefone deixava-o sempre nervo-  so. Correu para o aparelho. - Charles, ser que...  - Ah, Edward! -- gritou a voz sem corpo do chefe da fam¡lia, a voz  que partia de Gattenden, distante dali 40 milhas. -- Um descobrimento  verdadeiramente not vel. Eu quisera a tua opinião a respeito. Trata-se de  Deus. Tu conheces a f¢rmula: m sâbre zero  igual ao infinito, sendo m  um n£mero positi~o. Pois bem: por que não reduzir a equaão a uma for-  ma mais simples multiplicando os dois membros por zero? Nesse caso  ter¡amos m igual ao infinito multiplicado por zero. O que vale dizer que  um n£mero positivo , o produto de zero pelo infinito. Não ser que isto

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  demonstra a criaão do universo por um poder infinito, a partir do nada?  Não ser ? -- O diafragma do receptor estava contaminado pela superex-  citaão de Lorde Gattenden, que vinha de 40 milhas de distncia. O ho-  mem falava r pidamente, sem tomar f"lego; suas perguntas eram ardentes  e insistentes. - Não demonstrar , Edward? -- O quinto marqus passa-  ra tâda a sua vida ... procura do absoluto. Era a unica caa que se permi-  tia a um inv lido. Durante cinqenta anos le havia rolado, na sua cadei-  ra de rodas, atr s da prsa arisca. Seria poss¡vel que a tivesse apanhado  agora, tão f cilmente, e num lugar tão improv vel como um manual de  classe elementar s"bre a teoria dos limites? Era algo que justificava a  excitaão. - Qual  a tua opinião, Edward?  - Ora. . . - comeou Lorde Edward. 

143# 

~ :I 

E da outra extremidade do fio eltrico, 40 milhas distante, o mais velho  dos Tantamounts ficou sabendo, pelo tom com que aquela simples pala-  vra fora pronunciada, que sua prova não prestava. A cauda do Absoluto

  ainda estava virgem de sal. - A prop¢sito dos mais velhos - disse Lucy -, eu j contei a algum

  de vocs aquela hist¢ria, que  verdadeiramente maravilhosa, a respeito  de meu pai?  - Que hist¢ria?  - Aquela do jardim de inverno. - A simples lembrana do caso  fazia-a sorrir.  - Não me lembro de ter ouvido nada a respeito do jardim de inverno  disse Spandreil. Walter tambm sacudiu a cabea negativamente.  - Foi durante a guerra - principiou Lucy. - Eu estava beirando os  dezoito, parece. Recm-lanada ao mar. . . E, diga-se de passagem,  algum quase me quebrou literalmente uma garrafa de champanha no

  corpo ... Naquela poca a gente se divertia de maneira um tanto febril,  vocs devem estar lembrados.  Spandrell fez um sinal afirmativo, se bem que ao tempo da guerra le  de fato não passasse de um menino de escola. Walter tambm meneou a  cabea, cheio de experincia.  - Um dia - continuou Lucy - deram-me um recado: queria eu ter  a bondade de subir e ver milorde? Era um pedido sem precedentes. Fiquei  um tanto alarmada. Vocs sabem como os velhos imaginam que n¢s vive-  mos. E como ficam desconcertados quando descobrem que se enganam.   o mesmo caso do ch com as senhoras rabes. - P¢s-se a rir e, para  Walter, aqule riso devastou todos os anos que Lucy tinha vivido antes de  le a conhecer. Urdir as historias de seus am"res juvenis e inocentes tinha  sido uma das consolaões permanentes de Walter. Lucy tinha rido;

  daquele momento em diante, a imaginaão mesma não podia achar pra~  zer naquele romance consolador.  Spandrell sacudia a cabea, concordando.  - Então subiste at o velho com a sensaão de quem sobe para o  cadafalso ...  - E achei meu pai na sua biblioteca, fingindo que estava a ler. Minha  chegada realmente o aterrorizou. Pobre homem! Nunca vi ningum tão  horrivelmente embaraado e abatido. Vocs podem imaginar como os  terrâres dle fizeram crescer os meus. Sentimentos assim poderosos

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  deviam ter uma causa tambm forte. Que seria? Entrementes o Velho  sofria agonias. Se o seu sentimento do dever não f"sse forte, creio que le  me teria dito que tornasse a voltar para baixo, e imediatamente. Vocs  deviam ter visto a cara dle 1 

144 

As lembranas c"micas eram irresist¡veis para ela. DesatokI a rir.  Com os cotovelos f meados na mesa, a cabea nas mãos, Walter olli ava  fixamente para o seu c lice. As pequenas borbulhas brilhantes subiam  precipitadamente ... superficie, uma a uma, com um prop¢sito determi-# 

nado, como se estivessem resolvidas a ser livres e felizes a todo o custo.  Walter não ousava erguer os olhos. A vista do rosto de Lucy retorcido pe-  lo riso, temia le, poderia obrig ~lo a fazer algo de rid¡culo - gritar com  t"da a fora ou desfazer-se em l grimas.  - Pobre homem! - repetia Lucy. E suas palavras sa¡am numa lufa-  da de j£bilo explosivo. -- O terror mal o deixava falar. - De s£bito,  mudando o tom de voz, ela imitou a fala profunda e surda de Lorde  Edward que a mandava sentar, declarando-lhe (gaguejante e cheia de

  hesitaões dolorosas) que tinha algo a lhe dizer. A m¡mica era admir vel.  o fantasma embaraado de Lorde Edward estava ali sentado ... mesa de  Walter e Spandrell.  - Admir vel! - aplaudiu ste £ltimo. E mesmo Walter teve de rir;  mas as profundezas de sua infelicidade permaneceram inalteradas.  - O Velho levou possivelmente uns bons cinco minutos -- continuou  Lucy - para se reanimar e ficar em condiões de falar. Eu estava agonia-  da, como se pode bem imaginar. Mas adivinhem o que le queria  dizer...  - Que era?  - Adivinhem. - E de repente Lucy comeou a rir de nvo, sem se  poder conter. Cobriu o rosto com as mãos. Todo o seu corpo se sacudia,  como se ela estivesse soluando perdidamente. - Esta  boa demais ...

  - continuou ela, ofegante, deixando cair as mãos e inclinando-se para  tr s na cadeira. Seu rosto ainda estava agitado com o riso; tinha l grimas  nas faces. - Boa demais. - Lucy abriu a bolsinha de contas que jazia  sâbre a mesa na sua frente e, tirando de dentro um leno, comeou a  enxugar os olhos. Uma rajada de perfume saiu com o leno, reforando as  lembranas desmaiadas de gardnias que cercavam Lucy, que se moviam  com ela para onde quer que ela f"sse, como uma segunda personalidade  UpCctral. Walter alou os olhos; o perfume forte de gardnia encheu-lhe  as narinas; e o rapaz ficou a respirar o que para le era a essncia mesma  daquele ser arriado, o s¡mbolo de seu poder e dos desejos insanos dle,  Walter. Olhou para Lucy com uma espcie de terror.  - O Velho me disse - presseguiu ela, ainda rindo espasm¢dica-

  mente, ainda enxugando os olhos -, me disse que tinha ouvido dizer que  eu ...s vzes permitia que os rapazes me beijassem nos bailes, nosjardinsde  inverno. Nosiardins de inverno! - repetiu. - Que rasgo admir vel! Tão  de acârdo com a poca! 1880. O velho Pr¡ncipe de Gales. As novelas de  Zola. Jardins de inverno. Meu pobre pai querido! Disse esperar que eu  nio deixasse aquilo acontecer de n"vo. Minha mãe haveria de ficar  terrivelmente aborrecida se soubesse da hist¢ria. Oh, Deus, oh, Deus! 

145 

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  I# 

Lucy tomou um f"lego profundo. O riso finalmente se acabou. Walter  olhou para ela e respirou-lhe o perfume, respireu os seus pr¢prios desejos  e o terr¡vel poder de atraão daquela criatura. E pareceu-lhe que estava a  v-la pela primeira vez. Agora, pela primeira vez - com o c lice meio  vazio na sua frente, a garrafa, o cinzeiro sujo; agora que ela se inclinava  para tr s na sua cadeira, exausta de tanto rir, enxugando os olhos cheios  das l grimas do riso.  - Jardins de inverno - repetia Spandrell. - Jardins de inverno.  Sim, essa  muito boa. Essa  mesmo muito boa!  - Maravilhosos! - disse Lucy. - Os velhos são realmente maravi-  lhosos. Mas mal e mal chegam a ser poss¡veis, vocs devem admitir ...  Exceto, est claro, o pai de Walter. 

~ I 

John Bidlake subia vagarosamente a escada. Estava muito cansado.  "Que festas pavorosas!", pensava le. Acendeu a luz de seu quarto. Em  cima do consolo da lareira uma das mulheres do realismo pouco sedutor

  de Degas estava na sua banheira redonda de lata, tentando esfregar as  costas. Na parede fronteira uma rapariga de Renoir tocava piano entre  uma paisagem do pr¢prio Bidlake e uma das visões de Dieppe, de Walter  Sickert. Acima da cama estavam penduradas duas caricaturas que Max  Beerbohrn fizera dle, e uma outra de Rouveyre. Havia uma garrafa de  brandy s"bre a mesa, com um sifão e um copo. Duas cartas se achavam  encostadas de modo vis¡vel contra as bordas da bandeja. John Bidlake  abriu-as. A primeira continha recortes de jornais que falavam de sua £lti-  ma exposião. O Daily Mail chamava-lhe "o veterano da arte inglsa" e  assegurava aos seus leitores que "a mão dle nada perdeu da sua destre-  z ". John amarrotou o recorte e jogou-o raivosamente na lareira.  O outro recorte era de um dos hebdomad rios superiores. O tom da  cr"nica era quase de desdm. Julgavam-lhe a £ltima exibião, condenan-

  do-a. " dificil acreditar que trabalhos tão baratos e superficiais - e  superficiais sem produzirem efeito, note-se - como os colecionados na  presente exposião tenham sido produzidos pelo pintor das Viradoras de  Feno, da Tate Gallery, e das Banhistas, mais magn¡ficas ainda, que se  acham atualmente em Tantamount House. Nestas p£lturas triviais e  vazias buscamos em vão aquelas qualidades de equil¡brio harmonioso, de  caligrafia r¡tmica, de plasticidade tridimensional que. . . " Que algaravia!  Que verborragia! Bidlake jogou todo o mao de recortes para onde tinha  lanado o primeiro. Mas seu desprzo com relaão-aos cronistas foi  impotente para neutralizar os efeitos daquelas cr¡ticas. "Veterano da arte  inglsa" - equivalia a "sse pobre velho Bidlake". E, quando les o  cumprimentavam porque a sua mão não perdera nada da antiga destreza,

  estavam a dar-lhe em tom protetor a certeza de que, para um velho cadu- 146

 co que se achava na segunda infncia, le ainda pintava admir velmente

  bem A £nica diferena entre o cr¡tico hostil e o cr¡tico favor vel era que  um dissera brutalmente e em trmos expl¡citos o que o outro deixara  entrever num elogio protetor. Bidlake chegou quase a desejar que nunca# 

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  tivesse pintado as Banhistas...  Abriu o outro envelope. Continha uma carta de sua filha Elinor. Estava  datada de Lahore. 

"Os bazares são bem o artigo autntico: cheios de  bichos. Com as suas pululaões e com os seus che¡-  ros, dão a impressão de que, atravessando-os, esta-  mos afurar um queifo. Sob o ponto de vista art¡stico,  o que h de entristecedor em t"da esta atmosfera  oriental  que ela se parece em absoluto com aquelas  pinturas de cenas do Oriente que sefaziam na Frana  em meados do sculo passado. Tu lhes conheces o  gnero: polidas e brilhantes, como as imagens que  costumavam vir impressas nas caixas de ch . Quan-  do estamos aqui  que vemos que o estilo   necess rio. A tez parda toma as caras uniformes e o  suor d um verniz ... pele. Seria preciso pintar com  uma superj¡'ciepelo menos tão lisa quanto um Ingres." 

BidIake continuou a ler com del¡cia. A filha tinha sempre algo de diver-

  tido a dizer em suas cartas. Via as coisas com os olhos com que elas se  deviam ver. Mas de s£bito franziu o sobrolho. 

" Ontem, imagina tu quem nos veio ver... Poisfoi  John Bidlake Junior. N6s ofaziamos em Waziristan;  mas le estava aqui, de licena. Eu não o via desde o  tempo em que era menina. Podes imaginar a minha  surprsa quando um enorme cavalheiro de postura  militar e bigode grisalho chegou e me chamou pelo  primeiro nome. Òle, est claro, nunca tinha visto Phil.  Imolamos os bezerros gordos de que o hotel dispu-  nha, em honra do irmão pr¢digo." 

John Bidlake inclinou-se para tr s na cadeira e fechou os olhos. O  enorme cavalheiro de postura militar e bigode grisalho era seu filho. John  Bidlake filho tinha cinqenta anos. Cinqenta. Houvera um tempo em  que cinqenta anos pareciam uma idade de Matusalm. "Se Manet não  tivesse morrido prematuramente. . . " Lembrou-se das palavras de seu ve-  lho mestre na escola de arte de Paris. "Mas Manet morreu assim tão  Jovem" O velho mestre sacudira a cabea. (Velho9 -- refletiu John 

147# 

Bidlake. Òle lhe parecera muito velho ...quela poca. Mas prov velmente  não tinha mais de sessenta anos.) "Manet tinha apenas 5 V% respondeu o  professor, e Bidlake a custo reprimiu uma risada. E agora o seu pr¢prio  filho tinha a idade corri que Manet morrera. Um enorme cavalheiro de  postura militar e bigode grisalho. E o irmão dle estava morto e enterrado  no outro lado do mundo, na Calif¢rnia. Cncer do intestino. Elinor  encontrara-lhe o filho em Santa B rbara - um rapaz casado com uma  mulher jovem e rica, e que iludia a lei sca na proporão de uma garrafa  de gim consumida di...riamente entre ambos ...

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  John Bidlake pensou na primeira mulher, a mãe do cavalheiro de  aspecto militar e do californiano que morrera de cncer do intestino. Ti-  nha apenas 22 anos quando casara pela primeira vez. Rose ainda não  completara vinte. Amaram-se um ao outro frenticarnente, com uma pai-  xão tigrina. O casal altercava, tambm, duma maneira um tanto divertida  a princ¡pio, quando as disputas se podiam conciliar por meio de efusões  de sensualidade tão violentas como as pr¢prias f£rias que elas apazigua-  vam. Mas o encanto comeou a se apagar quando vieram os filhos, os  primeiros dois dentro de 25 meses. Não havia dinheiro suficiente para  conservar os fedelhos a distncia e pagar profissionais para fazer os  trabalhos penosos e menos limpos... A paternidade de John Bidlake  nada tinha de sinecura. O seu est£dio se transformou em nursery*. Bem  depressa os resultados da paixão os berreiros e as fraldas molhadas, os  sonos interrompidos, os cheiros tornaram-no desgostoso da paixão.  Alm do mais, o objeto dessa paixão não era mais o mesmo. Depois do  nascimento dos bebs, Rose comeou a engordar. Seu rosto rez-se balofo;  o corpo engrossava e as carnes se tornavam fl cidas. As disputas não se  resolviam mais tão f cilmente, agora. Ao mesmo tempo tornavam-se  mais amiudadas; a paternidade irritava os nervos de John Bidlake. A sua  arte lhe fornecia pretextos para ir a Paris. Uma vez partiu por quinze dias  e ficou ausente quatro meses. As disputas recomearam ... sua volta. Rose,  agora, desgostava-o francamente. Os modelos lhe ofereciam consolaões  f ceis; John teve um caso amoroso extremamente srio com uma senhora

  casada que tinha vindo ... casa dle para que o pintor lhe fizesse um retra-  to. A vida em casa era um aborrecimento cont¡nuo, temperado por cenas  de escndalo. Depois dum atrito particularmente violento, Rose ¡z as  malas e foi morar em casa dos pais. Levou consigo os filhos; John Bidia-  ke não podia deixar de ficar deliciad¡ssimo por se ver livre do bando. O  mais velho dos berradores e molhadores de cueiros era agora um cava-  lheiro enorme de ar militar e bigode grisalho. E o outro tinha morrido de  cncer do intestino. John Bidlake não os vira mais, desde que os rapazes  tinham 25 anos. Os filhos tinham permanecido fiis ... mãe. Ela tambm  tinha morrido, estava j na sepultura havia quinze anos. 

* Lugar onde se cr¡am as criancas. (V. do E)

  148 

Gato escaldado ... Depois do div¢rcio John Bidlake prometera a si  mesmo que nunca mais haveria de ca ar-se de nâvo. Mas quando a gente  ge apaixona desesperadamente por uma jovem criatura virtuosa e de boa  fam¡lia, que  que pode fazer? John casou-se outra vez, e aqules dois bre-# 

ves anos passados com Isabel tinham sido os mais extraordin rios, os  wais belos, os mais felizes de t"da a sua vida. Depois ela morrera de par

-  &0, est¢pidamente. John fazia o poss¡vel para nunca pensar nela. A recor-  daio era-lhe demasiadamente dolorosa. Entre a imagem rememorada e o  momento da recordaão, os abismos do tempo e da separaão eram mais  vastos do que qualquer outro precip¡cio entre o presente e o passado. E,  em comparaão com o passado que le tinha partilhado com Isabel, todo  o presente, fosse le qual f"sse, parecia p lido; alm disso, aquela morte  era uma horr¡vel advertncia do futuro. Bidlake nunca falava nela, e tudo  quanto podia trazef-lhe recordaões da morta - suas cartas, seus livros,  os m¢veis de seu quarto - tudo f"ra por le destru¡do ou vendido. John

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  BidIake queria ignorar tudo quanto não f"sse o lugar e o momento  presentes, queria ter a impressão de que acabava de chegar ao mundo e  estava destinado a ser eterno. Mas a mem¢ria sobrevivia, embora le nun-  ca procurasse aviv -la deliberadamente; e embora os objetos que haviam  pertencido a Isabel estivessem destruidos, Bidlake não se podia acautelar  contra as recordaões fortuitas. O acaso tinha descoberto muitas brechas  em suas defesas, aquela noite. A mais larga foi aberta pela carta de Eli-  nor. Mergulhado na sua poltrona, John Bidlake deixou-se ficar sentado  por muito tempo, im¢vel. 

Polly Logan estava sentada diante do seu espelho. Passava o pente pe-  los cabelos, produzindo pequenas crepitaões fimas de fa¡scas eltricas:  - Min£sculas fa¡scas, como min£scula batalha, min£sculos, min£s-  culos espectros trepidantes. Min£scula batalha, min£sculo espectro da  metralha da batalha.  Polly pronunciava estas palavras com uma monotonia sonora, como se  as recitasse diante dum audit¢rio. Ela as prolongava amorosamente,  carregando nos rr, sibilando nos ss, zumbindo como uma abelha nos mm,  espichando as vogais longas e fazendo-as redondas e puras. "Metralhar  espectral de espectrais metralhas, canhoneio espectral, in-fi-ni-te-si-ma]."  Lindas palavras! Ela experimentava uma satisfaão especial em faz-las  rolar daquela maneira, ern escutar com um ouvido apreciador, positiva-

  mente glutão, o retroar das s¡labas que eram absorvidas pelo silncio.  POIly sempre gostara de falar s¢zinha. Era um h bito infantil do qual não  se queria desfazer. "Mas se isso me diverte - protestava ela quando os  Outros riam, ridicularizando-lhe o h bito - por que não hei de o fazer?  Nio faz mal a ningum." 

149 

11# 

E recusava-se a deixar que lhe tirassem o vzo ... f"ra de rirem dle.  - Eltrica, eltrica - continuou, baixando a voz e falando num sus-  surro dram tico. - Fuzilaria eltrica, biscoitaria mtrica. Ui! - O pente  se lhe havia enredado num tufo de cabelos emaranhados. Poily inclinou-  se para a frente a fim de ver melhor no espelho o que estava fazendo. O  rosto refletido se aproximou. - Ma chre - exclamou ela em outra  l¡ngua -, tu as Eairfatigu. Tu es vieille*. Devias ervergonhar-te de ti  mesma. Tz, tz! - Fz estalar a l¡ngua nos dentes num ar de desapro-  vaão e sacudiu a c ' ,-,ea. -- Assim não serve, assim não serve! Enfim, tu  não estavas mal esta noite! "Minha querida, como ficas deliciosa de bran-  co!" -'Imitou a voz enf tica da Sra. Betterton. - O mesmo te desejo e  muito mais ainda. Achas que hei de ser parecida com um elefante quando  tiver sessenta anos? Enfim, suponho que a gente deve ficar agradecida

  mesmo pelos elogios de um elefante. "Conta as tuas bnãos, conta-as  corri amor" -- cantaroloM Polly docemente. - "15 ver s com surprsa  quanto por ti fez o Senhor." Oh, cus! -- Largou o pente, estremeceu  violentamente e cobriu o rosto com as mãos. - Cus! -- Polly sentiu  que o sangue lhe subia ...s faces. - A gafe! Que "rata" enorme e  farit stica! - Tinha pensado s£bitamente em Lady Edward. Estava claro  que ela ouvira tudo. -- Mas como foi que eu me arrisquei a fazer aquela  referncia ao fato de ela ser canadense? - Poily lamentou-se, afogada de  vergonha restrospectiva e de embarao. --  o que acontece a quem quer  dizer a todo o custo coisas brilhantes ... E quando penso que foi para

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  Norah que eu desperdicei o meu latim. . . Norah! Oh, Senhor! --  Ergueu-se dum salto e, vestindo o seu roupão enquanto caminhava, preci-  pitou-se corredor abaixo rumo ao quarto da mãe. A Sra. Logan estavaj

deitada e tinha apagado a luz. Polly abriu a porta e entrou na escuridão.  - Mamãe! -- chamou ela. - Mamãe! - O tom de sua voz exprimia  urgncia e ang£stia.  -- Que  que h ? - respondeu a Sra. Logan, inquieta, do fundo da  sombra. Polly sentou-se na cairia e procurau ...s apalpadelas o comutador  da cabeceira. -- Que  que h ? -- A luz brotou com um clique. - Que  , minha querida?  Polly atirou-se sâbre a cama e escondeu o rosto nos joelhos da mãe.  - Ob, mamãe, se tu soubesses que gafe temÖvel eu cometi com 1.ady  Edward! Se tu soubesses! Esqueci-me de te contar.  A Sra. Logan ficou quase zangada por se ter sentido ansiosa em pura  perda. Quando pomos em jâgo t¢cia a nossa f"ra para levantar o que nos  parece ser um pso enorme,  desagrad vel perceber que se trata apenas  de um halter de papelão, e que teria sido poss¡vel ergu-lo com dois  dedos ... 

* Minha querida, est s com um arfatigado. Est s velha. (N, do E) 

150 con-tarEcra necessario que me viesses acordar do meu primeiro sono par

ssa hist¢ria? - perguntou ela com irritaão.  polly ergueu os olhos para a mãe.  - Eu te peo perdão, mamãe - falou ela, arrependida. - Mas se tu  soubesses que rata espantosa eu dei!# 

A Sra. Logan não p"de deixar de rir.  - Eu não teria podido dormir sem primeiro te contar tudo - conti-  nuou Poli Y-  - E eu não poderei dormir enquanto não me contares a hist¢ria. - A  Sra. Logan tentou mostrar se severa e sarc stica. Mas os olhos e o sorr-s

o  a tra¡ram.  Poily tomou-lhe da mão e beijou-a.  - Eu sabia que não ficarias zangada.  - Fico. E muito.  - Não adianta tentares dar-me trotes - disse PoIly. - Mas agora   Ö  preciso que eu te conte a minha rata. 

A Sra. Logan emitiu uni simulacro de suspiro resignado e, fingindo es-  tar cheia de sono, fechou os olhos. Poily falou. Eram mais de 2 horas e  meia e ela ainda não tinha voltado para o seu quarto. Haviam discutido

  não s¢rnente a gafe e Lady Edward, mas tambm tâda a festa, e todos os  que nela haviam tomado parte. Ou, melhor, Poily tinha discutido e a Sra.  Logan escutado, rido e protestado a rir quando os coment rios da filha se  tornavam demasiadamente ricos de e~kubernc¡a mordaz.  - Mas, Polly, Poily - repreendeu ela -, tu não devias dizer que as  pessoas se parecem com elefantes.  - Mas a Sra. Betterton parece mesmo um elefante -- replicou Polly.   a verdade. - E, com o seu dram tico sussurro teatral, acrescentou,  elevando-se de uma fantasia para outra ainda mais surpreendente: - At

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  o n ariz dei a parece um a trom ba ...  - Mas a Sra. Betterton tem nariz curto.  O murm£rio de Polly tornou~se ainda mais dram tico:  -  uma tromba artinut-4- " 1 

beb- Como se faz com a cauda dos cachorrinhos 

or aram-lhe a ponta quando ela era 

151 

Ö 1# 

CAPITULO XII 

Para os clientes privilegiados Sbisa nunca fechava o seu restaurante.  Òles podiam ficar l a despeito da lei, e consumir intoxicantes at horas  bastante avanadas da madrugada, conforme lhes apetecesse. Um garom  suplementar chegava ... meia-noite para servir sses clientes de valor que  desejavam infringir a lei. O velho Sb¡sa tratava de fazer que o valor dles,

  para a casa, fâsse muito alto. O lcool era mais barato no Ritz do que no  estabelecimento de Sbisa.  Era mais ou menos 1 hora e meia - "apenas 1 e meia", gemera Lucy  quando esta, Walter e Spandrell deixaram o restaurante.  -  jovem ainda. - Foi assim que Sprandrell comentou a noite.  Jovem e um pouco ins¡pida. As noites são como sres humanos: s¢  comeam a interessar depois que ficam adultas. L pela meia-noite elas  atingem a puberdade. Um pouco depois da 1 hora chegam ... maioridade.  A sua plenitude est entre 2 e 2 e meia. Uma hora mais tarde elas vão  ficando cada vez mais desesperadas, como essas mulheres devoradoras de  homens e sses homens maduros em decl¡nio que andam por a¡ a saltitar  num p s¢ mais violentamente do que nunca, na esperana de se conven-  cerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das 4 horas, as noites

  entram em plena decomposião. E a sua morte  horr¡vel. Verdadeira-  mente.horr¡vel, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pes-  soas tm um aspecto de cad veres e o desejo se desfaz em desg"sto. Te-  nho um fraco pelas cenas de leito de morte, confesso - ajuntou Span-  drefi. 

- Estou convencida disso. - - - disse Lucy.  - E  s¢rnente ... luz dos fins que se podem julgar os princ¡pios e os  meios. A noite acaba de atingir a maioridade. Resta ver como h de mor-  rer. Antes disso não podemos julg -la.  Walter sabia como a noite ia morrer para le: - no meio das l grimas  de Marjorie e de sua pr¢pria ang£stia complicada com exasperaão, nu-  ma explosão de ¢dio contra si mesmo e de ¢dio ... mulher para com a qual

  le se mostrara cruel. Walter sabia. disso mas recusou admiti-lo; como  tambm recusava admitir que j f"sse 1 e meia e que Marjorie estivesse  acordada, perguntando a si mesma por que o companheiro não tinha vol-  tado.  Quando faltavam cinco minutos para 1 hora, Walter olhara o rel¢gio e  declarara que era tempo de partir. Ficar para qu? Spandrell não se 

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mexia. Nenhuma esperana de ficar por um morriento a s¢s com Lucv.

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  Não lhe restava nem essa justificativa para fazer Marjorie sofrer. Ele a  torturava, não para que pudesse ser feliz, mas sim apenas para se deixar  rIcar ali aborrecido, doente, exasperado, impacientemente infeliz.  , Eu tenho mesmo-de ir - dissera le, erguendo-se.  Mas Lucy protestara, pedira num tom bajulador, ordenara. No fim de  contas Walter tornara a sentar-se. Isso acontecera havia mais de meia ho-  ra, e agora os trs se achavam em Solio Square e a noite, a crer em Lucy  e Spandrell, mal havia comeado.# 

- Acho que j  tempo de veres que aspecto tem um comunista  revolucion rio - disse Spandrell a Lucy.  Lucy não queria outra coisa.  - Perteno a uma espcie de clube - explicou Spandrell. Ofereceu-  se para lev -los l . - Hão de estar vis¡veis ainda alguns inimigos da  sociedade, segundo espero - prosseguiu le, logo que mergulharam na  obscuridade refrescante. - Bons sujeitos, na maioria. Mas ridiculamente  pueris. Alguns dles parecem acreditar sinceramente que uma revoluão  possa tornar o povo mais feliz.  encantador,  deveras tocante. - Emi-  tiu. a sua risada silenciosa. -- Mas eu sou um esteta nessas matrias.  Dinamite por amor ... dinamite.  - Mas qual  a utilidade da Oinamite, se não acreditas na UtOpia9 --

  perguntou Lucy.  - A utilidade? Mas não tens olhos?  Lucy olhou em t"mo.  - Não vejo nada de particularmente horrendo. . .  - Òles tm olhos e não vem. . . - Spandrell f-ez alto, tomou o brao  dela com uma das mãos e com a outra apontou a praa. - A f brica de  conservas deserta, transformada em salão de bailes; a maternidade; a ca-  sa de Sbisa; os edit"res do Whos Who. E outrora - ajuntou le -- o  pal cio do Duque de Monmouth. Tu podes imaginar os fantasmas: 

Ou inspirado dum desAVà mais divino  O pai* o gera com requinte bem maisfino ... 

E assim por diante. Conheces o retrato dle depois da execuão, deitado  sâbre um leito, com o lenol puxado at o queixo, de maneira que não se  possa ver o lugar em que o pescoo foi cortado?  de Kneller. Ou de  I-Cly? Monmouth e conservas, a4 parturientes e o Whos Who, a dana e  o champanha de Sbisa - pensa um pouco em tudo isso, pensa um pou-  co . . .  Estou pensando - respondeu Lucy. - Intensamente.  E ainda perguntas qual  a utilidade da dinamite?  Continuaram a caminhar. Diante da porta duma casinhola em St.  Gfics, Spandrell f-los parar. 

153 

li I

- Esperem um momento - disse, fazendo aos outros um sinal para  que mergulhassem na sombra. Tocou a campainha. A porta se abriu  imediatamente. Houve um breve col¢quio na obscuridade; depois Span-

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  drell se voltou e chamou os companheiros. Òstes o seguiram at um  vest¡bulo sombrio, subiram uma escada atr s dle e entraram numa pea  brilhantemente iluminada do primeiro andar. Dois homens se achavam de  p junto da lareira, um hindu de turbante e um homenzinho de cabelos  ruivos. Ao som de passos, les se voltaram. O homem de cabelos ruivos  era filidge.  - Spandrell? Bidlake? - Alou as invis¡veis sobrancelhas c"r de  areia num sinal de espanto. "E que andar fazendo por aqui essa  mulher?", pensou le.  Lucy avanou com as mãos estendidas.  - Somos conhecidos velhos - disse ela com um sorriso cordial de  quem reconhece um amigo.  Illidge, que se preparava para dar ao rosto uma expressão de frieza  hostil, surpreendeu-se a retribuir o sorriso da mâa. 

Um t xi desembocou na rua, quebrando o silncio num brusco sobres-  salto. Marjorie sentou-se na cama e pos-se ... escuta. O ronco da m quina  ia ficando cada vez mais forte. Era o t xi de Walter; dessa vez ela tinha  certeza, ela sabia. O carro se aproximava cada vez mais. Ao p da pequ-  na elevaão que ficava ... direita da casa, o condutor engrenou em segun-  da; o motor roncou mais agudamente, como uma vespa assanhada. Cada  vez mais e mais perto. Marjorie estava possu¡da por uma ansiedade que  era ao mesmo tempo do corpo e do esp¡rito. Arquejava, o coraão lhe ba-  tia forte, irregularmente - batia, batia, batia, e depois parecia estacar

: a  batida esperada não se fazia ouvir; era como se sob os ps dela se tivesse  aberto um alapão s"bre o v cuo; sentia o terror do vazio, da descida, da  queda - e a batida seguinte, retardada, seria o impacto de seu corpo con-  tra a terra dura. Mais perto, mais perto.. Marjorie chegava quase a temer  a volta de Walter - embora tivesse ansiado tão dolorosamente por ela.  Temia as emoões que havia de sentir ... vista dle, as l grimas que havia  de derramar, as censuras que não deixaria de lhe fazer, a despeito de si  mesma. E que diria e faria Walter? quais seriam os seus pensamentos?  Marjorie tinha mdo de imaginar ... Mais perto ainda; o som passava  justamente por baixo da suajanela`I afastava-se, retirava-se, diminu¡a. E  ela tinha tanta certeza que era o t xi de Walter!  Deitou-se de nâvo. Se ao menos tivesse podido dormir! Mas aquela

  ansiedade f¡sica do corpo não o permitia. O sangue martelava-lhe nos  ouvidos. Tinha a pele quente e sca. Do¡am-lhe os olhos. Ela se deixou fi-  car completamente im¢vel, deitada de costas, com os braos cruzados 

154 

s"bre o peito, como uma morta pronta para a inumaão. "Dorme,  dorme", sussurrava para si mesma; imaginava-se estendida, num  relaxamento de m£sculos, sem crispaões, adormecida. Mas de s£bito  uma mão maliciosa parecia dedilhar-lhe os nervos retesados. Um tique  violento lhe contra¡a os m£sculos dos membros; ela sobressaltava-se,  como que sob o choque do terror. E a reaão fisica do mdo evocava-lhe#

 

no esp¡rito uma emoão de pavor, avivando e intensificando a ansiedade  dolorosa que não cessara de acompanhar-lhe os esforos conscientes para  atingir a tranqilidade. "Dorme, dorme, repousa o corpo" - era in£til  continuar na tentativa de recuperar a calma, de esquecer, de dormir. Mar-  jorie permitiu que a sua ang£stia viesse ... tona. "Por que querer le fazer-  me tão infeliz?" Voltou a cabea. Os ponteiros luminosos do rel¢gio,

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  s"bre a mesinha que havia ao lado da cama, indicevam 3 horas menos um  quarto. Trs menos um quarto. - Walter sabia que ela nunca podia dor-  mir antes do seu regresso.  -- Walter sabe que estou doente - falou Marjorie em voz alta, - Òle  não far caso?  Um n"vo pensamento lhe ocorreu d s£bito. "Talvez le queira que eu  morra." Morrer, não ser, não ver nunca mais o rosto dle, deix ~lo com a  outra mulher. Vieram-lhe l grimas aos olhos. Talvez Walter estivesse  procurando mat -la deliberadamente. Não era a despeito de seu estado de  sa£de que le a tratava assim; era, antes, porque ela sofria muito e muito,  era precisamente porque ela estava doente. Walter era cruel de prop¢sito.  Òle esperava, le queria que ela morresse; que ela morresse e o deixasse  em paz com a outra mulher. Marjorie escondeu o rosto no travesseiro e  soluou. Não tornar a v-l¢, nunca, nunca mais. Treva, solidão, morte,  para sempre. Para sempre e sempre. E, ainda por cima, aquilo tudo era  tão injusto ... Seria ela culpada por não ter recursos para se vestir bem?  "Se eu tivesse dinheiro para comprar os vestidos que ela compra. . .  Chanel, Lanvin - as p ginas do Vogue flutuavam-lhe diante dos olhos.  - Molyneux, Groult. . . Numa dessas casas onde a elegncia se vendia  barato, onde se vestiam as cocotes, numa rua que desembocava em Shaf-  tesbury Avenue, havia um modlo de 16 guintis.  "Òle gosta dela porque ela  atraente, Mas se eu tivesse o dinheiro  necess rio. . . "  Não era justo. Walter não era rico: e quem sofria as conseqncias dis

  so era ela --- Marjorie. Tinha de sofrer porque le não ganhava o bastante  para lhe comprar bons vestidos.  E depois havia o beb. Walter fazia-a tambm sofrer por le ... Filho  dfle. E Walter se entediava; porque ela estava sempre cansada e doente,  le j não a amava mais. Era a maior de tâdas as injustias.  Uma clula se multiplicara e se fizera verme, o verme se fizera peixee  o peixe se estava transformando no feto dum mam¡fero. Marjorie sentia-  se nauseada e cheia de fadiga. Dali a quinze anos um rapaz haveria de 

155 

I

receber a confirmaão. Enorme em suas vestes, como um navio armado  em galera, o bispo diria: "Renovais aqui, na presena de Deus e desta  congregaão, as promessas solenes e os votos que foram em vosso nome  feitos no vosso batismo?" E o ex-peixe responderia, com uma convicão  apaixonada: "Sim".  Pela milsirria vez Marjorie lamentou a sua gravidez. Walter podia não  conseguir mat -la agora. Mas isso havia de acontecer em qualquer caso  quando o filho nascesse. O doutor dissera que seria dificil para ela terum

  beb. A pelve era estreita. A morte reapareceu diante de Marjorie, como  um poo enorme que se lhe abria aos ps.  Um ru¡do f-la estremecer violentamente. A porta de entrada do apar-  tamento estava sendo aberta ... surdina. Os gonzos guincharam. Ouviram-  se passos abafados. Outro guincho, o clique mal percept¡vel do trinco de  mola que era cuidadosamente rep"sto no lugar; depois um n"vo ru¡do de  passos. Mais um pequeno ru¡do sco, e simultneamente a luz surgiu nu-  ma tira amarela debaixo da porta que separava o quarto de Marjorie do  de Walter. Tencionaria le ir para a cama sem vir dar-lhe boa noite? Ela  se deixou ficar im¢vel, desperta e palpitante, com os olhos escancarados,

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  escutando or, ru¡dos que vinham do outro compartimento e as batidas  r pidas e terrificadas de seu pr¢prio coraão.  Walter sentou-se na cama para desatar os cordões dos sapatos. Estava  a perguntar a si mesmo por que não entrara trs horas mais cedo - e por  que, mesmo, chegara a sair. Detestava as multidões; não podia suportar o  lcool, e o ar duas vzes respirado, os cheiros, a fumaa dos restaurantes  agiam sâbre le como um veneno deprimente. Walter tinha sofrido sem  nenhum prop¢sito; a não ser aqules dolorosos e exasperantes momentos  no t xi, não conseguira ficar a s¢s com Lucy aquela noite. As horas que  passara com ela tinham sido horas de aborrecimento e impacincia -  infind¡lvelmente longas, minuto de tortura ap¢s minuto de tortura. E a  tortura -do desejo e do ci£me tinha sido reforada pela tortura da  conscincia de sua pr¢pria culpabilidade. Cada minuto de demora no  restaurante de Sbisa, cada minuto passado entre os revolucion rios era  um minuto que retardava a consumaão de seu desejo e que, fazendo  crescer a infelicidade de Marjorie, fazia ao mesmo tempo crescer o seu  pr¢prio remorso e a sua pr¢pria vergonha. Eram mais de 3 horas quando  les deixaram finalmente o clube. Iria Lucy mandar Spandrell embora e  deixar que le, Walter, a conduzisse a casa? Olhou para ela: seus olhos  eram eloqentes. Òle queria, le ordenava.  - Teremos sandu¡ches e bebidas l em casa - disse Lucy quando os  trs se viram na rua.  - Eis uma not¡cia flic¡ssim a - tornou Spandreil,  - Vem comigo, Walter querido.

  Lucy tomou-lhe da mão, apertou-a afetuosamente.  Walter sacudiu a cabea: 

156 

- Tenho de ir para casa.  Se a aflião matasse le teria morrido ali na rua.  - Mas não podes deixar-nos agora - protestou Lucy. - J que  vieste at aqui,  indispens vel que v s at o fim. Vamos.# 

puxou-o pela mão.  - Não, não.  Mas o que ela dissera era verdade. Dificilmente Walter poderia fazer  Marjork mais desgraada do que j tinha realmente feito. Se ela não exis-  tisse mais, refletiu, se acontecesse ela morrer - um ab"rto, envenena-  mento do sangue ...  Spandrell olhou para o rel¢gio.  - Trs e meia. A agonia est quase a principiar. - Walter escutava  com horror; estaria o homem a ler-lhe os pensamentos? - Munie des  cojlforts de notre sainte refigion*. O teu lugar  ao p do leito, Walter.  Não podes deixar que a noite morra s¢zinha, como um cão numa sarjeta.  Como um cão numa sarjeta. As palavras eram terr¡veis, condenavam-  no.

  Eu tenhQ de ir.  Foi inflex¡vel - com um atraso de trs horas. Afastou-se a p. Em  Oxford Street achou um t xi. Esperando -le sabia que era em vão -  chegar a casa sem ser percebido, fez parar o t xi na estaão de Chalk  Farni e percorreu a p as £ltimas centenas de metros que o separavam da  porta da casa cujos dois andares superiores le ocupava com Marjorie.  Tinha subido a escada de gatinhas abrira a porta com as precauões dum  assassino. Nenhum ru¡do vinha do quarto da amante. Walter se despiu,  lavou-se, como se estivesse efetuando uma operaão perigosa. Apagou a

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  luz e foi para a cama. A escuridão, o silncio absoluto. Estava salvo.  - Walter!  Foi com a sensaão dum criminoso condenado ... morte que se v  despertado pelos guardas na madrugada da execuão que le respondeu,  pondo na voz um arremdo de surpresa:  - Est s acordada, Marjorie?  Levantou-se e caminhou, como da clula para o cadafalso, para o quar-  to dela.  - Tu me queres fazer morrer, Walter?  Como um cão numa sarjeta, szinha. Òle fez menão de torn -la nos  bragos. Marjorie repeliu-o. A sua ang£stia se transformara inomentnea-  mente em c¢lera, e o seu amor numa espcie de ¢dio e de ressentimento.  - Não sejas ainda hip¢crita por cima de tudo - disse ela. - Por  que nio podes dizer francamente que me odeias, que gostarias de te veres  livre de mim, que ficarias contente se eu morresse? Por que não podes ser  hOncsto e dizer-me tudo isso? 

* Munida dos confortos de nossa santa religião. (N. do E) 

i  11 

157#

 

Ele. 

- Mas a tr"co de que hei de dizer o que não  verdade? - protestou 

- Vais, então, dizer que ainda me amas? - perguntou Marjorie  sarc...sticamente.  Walter, ao pronunciar as £ltimas palavras, chegara quase a acreditar  nelas; ali s era verdade, de certo modo.  -- Mas eu te amo, eu te amo. Essa outra coisa  uma espcie de loucu-  ra. Independente da minha vontade. . . Não a posso evitar ... Se soubes-

  ses como me sinto desgraado, que brutalhão sem nome eu sou! - E tu-  do o que le tinha sofrido de desejo contrariado, de remorso, de vergonha  e ¢dio de si mesmo parecia cristalizar-se, por meio dessas palavras, numa  agonia £nica. Òle sofria, e compadecia-se dos seus pr¢prios sofrimentos.  - $c soubesses, Marjorie. -- E de s£bito alguma coisa no seu corpo  pareceu quebi ar-se. Uma invis¡vel mão segurou-lhe a garganta, seus olhos  foram cegados pelas l grimas, e uma fora interior, que j não era le,  sacudiu-o dos ps ... cabea e lhe arrancou, a despeito de sua vontade, um  grito abafado que mal chegava a ser humano.  Ao som dsse soluo espantoso sa¡do da treva, a c¢lera de Marjorie  desapareceu de repnte. Ela agora sabia apenas que Walter era infeliz, e  que ela o amava. Chegou mesmo a sentir remorso de sua c¢lera, das pala-  vras amargas que proferira.

  -- Walter. Meu querido.  Estendeu os braos e puxou-O contra o seu corpo. O rapaz se deixou fi-  car assim como uma criana, na consolaão daquele abrao. 

- Sentes prazer em atorment -lo? -- inquiriu Spandrell enquanto  ambos caminhavam rumo da Charing Cross Road.  - Atormentar quem? - perguntou Lucv. --- Walter? Mas eu não o  atormento.  - Mas não o deixas dormir contigo! - retrucou Spandrell. - E ain-  da af-wmas que não o atormentas! Pobre desgraado!

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  - Mas por que hei de aceit -lo, se não tenho vontade?  - Realmente: por qu? No entanto, deixar o rapaz assim na incerteza   simplesmente tortur -lo.  - Mas eu gosto dle -- disse Lucy.--- um companheiro tão bom!  N"vo demais,  claro; mas realmente quase ideal ... E te garanto que  não o atormento. Òle  que se atormenta.  Spandrell reteve a sua risada o tempo suficiente para assobiar, cha-  mando um t xi que le tinha visto no fim da rua. O chofer deu a volta e  parou em frente dles. Spandrell ainda ria silenciosamente quando subi-  ram para o ve¡culo. 

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- Enfim, le não faz senão receber o que merece - continuou Span-  drell do seu canto escuro. - E o verdadeiro tipo do assassinado.  - Do assassinado?  - São precisos dois para haver um assass¡nio. H v¡timas natas, nas-  cidas para terem a gorja cortada, ao mesmo passo que os cortadores de# 

Car¢fidas nascem para serem enforcados. Isso se lhes pode ler nas caras.  H um tipo de v¡tima como h um tipo de criminoso. Walter  evidente-

  mente uma v¡tima; le, por assim dizer, convida os outros a que o maltra-  tem.  - Pobre Walter!  - E  nosso dever - continuou Spandrell  maus tratos a que faz jus - ~ - 

- fazer que le receba os 

- Por que não fazer que le não os receba? Pobre cordeirinho!  - Devemos estar sempre do lado do destino. Walter nasceu manifes-  tamente para apanhar. . .  nosso dever cooperar com a sorte dle.  o  que vejo com satisfaão que est s fazendo, . .  - Mas eu te asseguro que não. Tens foaO? -- Spandrell riscou o f¢s-

  foro. Com um cigarro prso aos l bios finos, Lucy se inclinou para beber  a chama. Spandrell a tinha visto inclinar-se daquela maneira, com o mes-  mo movimento vivo, gracioso e vido - inclinar-se sobre le para lhe be-  ber os beijos. E o rosto que se aproximou dle agora estava concentrado  e fixamente atento na chama, do mesmo modo que le o tinha visto  concentrado e fixamente atento na iluminaão interior do prazer pr¢ximo.  Os pensamentos e os sentimentos são numerosos e diversos, mas não exis-  tem senão uns poucos gestos; a mascara tem somente uma meia d£zia de  caretas para exprimir mil coisas. Lucy empertigou- se; Spandrell jogou o  f¢sforo para fora da janela. A ponta vermelha do cigarro se avivava e se  sumia na escuridão. '  - Lembras-te daquela nossa curiosa temporada em Paris?---pergun-  tou le, pensando ainda no rosto dela concentrado e ansioso. Outrora, ha-

  via trs anos, ¡e a tivera como amante por um ms.  Lucy fez com a cabea que sim.  - Lembro-me de que foi uma aventura quase ideal, enquanto durou.  Mas tu eras horrivelmente vol£vel.  - Em outras palavras, eu não fiz a baderna que esperavas quando me  deixaste por Tom Trivet.  -  mentira! - disse Lucy com indignaão. -- Tu j tinhas  Comeado a te afastar muito antes que eu sonhasse com Tom.  - Pois bem, seja como quiseres ... Para falar a verdade, não eras o  gnero de v¡tima que meu gâsto exigia. --- Não havia nada de -vritima em

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  Lucy; e muito pouco tambm, pensara le com freqncia, de mulher  COMUM. Lucy sabia procurar o prazer como uni homem procura o seu,  sem remorso, com t"da a Fora de esp¡rito, sem permitir que seus pensa- 

159# 

mentos e sentimentos ficassem minimamente atingidos. Spandrell não  gostava de ser usado e explorado para prazer de outrem. Queria ser o  explorador. Mas com Lucy não havia possibilidade de escravidão. - Eu  sou como tu - ajuntou le. - Preciso de v¡timas.  - Subentende-se então que eu sou um dos criminosos?  - Julguei que estivssemos h muito de ac"rdo a sse respeito, minha  cara Lucy.  - Jamais concordei com coisa alguma na minha vida - protestou  ela -, e jamais hei de concordar. Pelo menos, durante mais de meia hora  de cada vez.  - Foi em Paris, lembras-te? Na Chaumire. Havia um jovem que  pintava os l bios na mesa pr¢xima.  - E que tinha um bracelete de diamantes e de platina. - Lucy sacu-  diu a cabea num sinal afirmativo, sorrindo. - E tu me chamaste anjo,  ou coisa que o valha.

  - Anjo mau - precisou le -, anjo mau de nascena.  - Para um homem inteligente, Maurice, tu dizes besteiras aos mon-  tes. Acreditas sinceramente que haja coisas direitas e coisas tortas?  Spandrell tomou-lhe da mão e beijou-a.  - Querida Lucy, tu s esplndida. E rião deves esconder nunca os  teus talentos. Bravos, ¢ bom e fiel s£cubo! - Beijou-lhe a mão de n"vo.  - Continua a fazer o teu dever como tens feito at agora.  tudo quanto  o cu exige de ti.  - Eu procuTo simplesmente divertir-me. - O t xi estacou diante da  casinha de Lucy, em Bruton Street. - E sem muito xito - ajuntou ela  ao descer do carro -, s¢ Deus sabe ... Olha, eu tenho dinheiro. -  Estendeu ao condutor uma nota de 10 xelins. Lucy insistia, quando se  achava com homens, em pagar o mais poss¡vel. Pagando, ela era indepen-

  dente, podia agir como entendia. - E ningum me ajuda muito - conti-  nuou, tateando com a chave para achar a fechadura. - Vocs todos são  assombrosamente insipidos.  Na sala de jantar esperava-os uma bela natureza morta de garrafas,  frutas e sandu¡ches. Nas curvas dos flancos polidos da garrafa trmica as  imagens de ambos, refletidas, passeavam fant...sticamente num universo  não-euclidiano. O Prof. Dewar tinha liquefeito o hidrognio a fim de que  a sopa de Lucy pudesse conservar-se quente para ela at as primeiras ho-  ras da madrugada. Por cima do bufete estava pendurada uma das pintu-  ras de John Bidlake que representavam cenas de teatro. Uma curva da  galeria, uma fileira de rostos em declive, um canto do proscnio brilhante.  - Como isso est bem! - disse Spandrell, pondo a mão em pala  sâbre os olhos para ver o quadro mais claramente.

  Lucy não fz coment rio. Estava a mirar-se num velho espelho de vi-  dro embaciado.  - Que hei de fazer quando ficar velha? - perguntou ela de s£bito. 

160 

- por que não morrer? --sugeriu Spandrell com a b"ca cheia de pão  e de f¡gado de ganso de Estrasburgo.  - Acho que vou me dedicar ... cincia, como o Velho. Não existe algo  a que se possa chamar "zoologia humana"? Eu me fatigaria muito

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depressa das rãs - prosseguiu ela. - Por falar em rãs - acrescentou  aqule homenzinho de cabelos c"r de cenoura me agradou um pou  co ... como e o nome dle? ... filidge. Como le nos detesta por sermos  ricos!  - Não me arroles no n£mero dos ricos. Se soubesses. . . - Span-  drell sacudiu a cabea. "Esperemos que ela traga algum dinheiro quando  vier amanhã", pensava le, recordando-se do recado que Lucy lhe trou-  xera da mãe. Tinha-lhe escrito que o caso era urgente ...  - Gosto das pessoas que sabem odiar - continuou Lucy.  - filidge sabe odiar. Est todo recheado de teorias, d fel e de inveja.  Anseia por fazer saltar vocs todos a dinamite.  - E então por que não faz? Por que tu não fazes? Não foi para isso  que o teu clube foi criado?  -- H uma leve diferena entre a teoria e a pr tica, tu sabes. E quando  se  comunista militante e materialista cient¡fico, e admirador da Revo-  luão Russa, a teoria  das mais esquisitas. Devias ouvir o nosso jovem  amigo falar do homic¡dio! O que o interessa especialmente , est claro,  o assass¡nio pol¡tico; mas le não faz muita distinão entre os diferentes

  ramos da profissão. Segundo filidge, uma espcie  tão inofensiva e  o  moralmente indiferente como outra. A nossa vaidade faz-nos exagerar a  importncia da vida humana; o indiv¡duo  nada; ... Natureza importa  apenas a espcie. E assim por diante ... E estranho - comentou Span-  drell num parntese - como as £ltimas manifestaões de arte e de  pol¡tica são geralmente ^fora de moda e at primitivas! O jovem filidge  fala como uma mistura de Tennyson no In Memoriam mais um ¡ndio do  Mxico ou um malaio que procura decidir-se a entrar em amoque*. Òle  justifica a indiferena mais primitiva, mais selvagem, mais animal para  com a vida por'meio de argumentos cient¡ficos obsoletos.  verdadeira-  mente muito estranho. . .  - Mas por que h de ser a cincia obsoleta? - inquiriu Lucy. --

  Porque, no fint de contas, o pr¢prio filidge  um cientista. . .  - Mas  tambm um comunista. O que significa que le est saturado  do materialismo do sculo XIX. Ningum pode ser comunista verdadeiro  Sem Ser tambm mecanista. E necess rio acreditar que as £nicas realida-  des fundamentais são o espao, o tempo e a massa, e que todo o resto   disparate, mera ilusão e, ainda por cima, ilusão burguesa. Pobre filidge!  Einstein e Edington o enchem duma aflião enorme. E como le detesta 

* ExcitaãO man¡aca que se observa nos pa¡ses nialaios e que conduz os pacientesafugas  e bWlOes agressivas. Uma espcie de del¡rio homicida. (N~ do T.) 

161

  11, 1# 

Henri Poincar! E como fica furioso com o velho Mach! T"da essa gente  est solapando a sua f simples. Dizem-lhe que as leis da natureza são  convenões £teis, de fabric ão exclusivamente humana, e que o espao e  o tempo e a massa, stes mesmos - todo o universo de Newton e de selis

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  sucessores - são apenas uma invenão nossa, muito nossa. Esta idia lhe   tão indizivelmente chocante e dolorosa como seria para um cristão a  idia da não~existncia de Jesus. Illidge  homem de ci#^--ncia, mas seus  princ¡pios o levam a lutar contra tâda teoria cient¡fica que tenha menos  de cinqenta anos de idade.  uma coisa deliciosamente c"mica.  - Não resta d£vida. . . - disse Lucy, bocejando. - Isto : no caso  de estarmos interessados em teorias, o que não acontece comigo. ...  - Mas acontece comigo - retorquiu Spandreli; - assim, eu não te  peo desculpas. Mas, se preferes, posso dar-te exemplos das  inconseqncias pr ticas do homenzinho. Descobri, não h muito tempo,  e duma maneira completamente casual, que Illidge tem o sentimento mais  tocante de lealdade familiar. Òle sustenta a mãe, custeia a educaão do  irmão mais nâvo e deu 50 libras ... irmã quando ela se casou ...  - Que ma] h nisso?  - Mal? Mas  desagrad...velmente burgus! Em teoria filidge não v  distinão entre sua mãe e qualquer outra mulher idosa. Sabe que, numa  sociedade racionalmente organizada, ela seria levada para a cmara de  asfixia por causa da sua artrite. A despeito disso, envia ... velha não sei  quanto por semana a fim de lhe tornar poss¡vel arrastar uma existncia  in£til. Eu o increpei disso outro dia. filidge corou e ficou terrivelmente  transtornado, como se tivesse sido apanhado a fazer trapaa num jâgo de  cartas. Assim, para restaurar o pr¢prio prest¡gio, teve de mudar de assun  to e comeou a falar s¢bre o assass¡nio pol¡tico e as suas vantagens, com  a ferocidade mais admir...velmente calma, desprendida e cient¡fica dste

  mundo. Eu me limitei a rir. "Num dstes dias", ameacei-o, "eu te pegarei  pela palavra e te convidarei para uma expedião de caa ao homem." E o  mais importante  que eu vou convid -lo mesmo!  - A menos que continues a conversar fiado, como todos os  outros ...  - Sim - concordou Spandrell -, a menos que eu continue a conver-  sar fiado. . .  - Se um dia parares de tagarelar e fizeres algo de positivo, faze que  eu saiba. As coisas assim ganhariam mais vida ...  - Ou mais morte, talvez. . .  - Mas a vitalidade mortal  realmente a mais viva de t"das. - Lucy  franziu o sobrolho. - Estou tão enfarada destas espcies ordin rias e

  convencionais de vitalidade! A juventude na proa e o prazer ao leme. Tu  sabes.  tolo,  mon¢tono. A energia parece ter hoje em dia tão poucas  maneiras de se manifestar ... Julgo que no passado era diferente ...  - Havia violncia e ao mesmo tempo amor.  o que queres dizer? 

162 

 isso. - Lucy f_ez com a cabea um sinal afirmativo. - A vitali-  dade não era tão exclusivamente ... tão exclusivamente bordeleira, para  usar um trmo cru. i  - Òles sabiam quebrar tambm o sexto mandamento. Hoje em dia h# 

muitos policiais.  - Muitos, demais ... Não permitem nem que pestanejemos. A gente  devia experimentar tudo. . .  - Mas de que serviria isso, uma vez que, como pareces pensar, não  h coisas certas nem coisas erradas, não existe nem o bem nem o mal? De  que serviria?  - De que serviria? Mas poderia haver experincias divertidas,  experincias excitantes.

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  - Mas essas experincias nunca poderiam ser l muito excitantes se  não sent¡ssemos que eram um mal, um rro. - O tempo e o h bito  tinham tirado a maldade de quase todos os atos que outrora le julgara  pecaminosos. Spandrell os realizava com tão pouco entusiasmo como te-  ria realizado o ato de tomar o trem da manhã para a cidade. - H

pessoas - continuou le com um ar meditativo, tentando precisar o que  havia de obscuro e vago nas suas pr¢prias sensaões h pessoas que  não podem conceber o bem senão pecando contra le. Mas quando os  velhos pecados cessam de ser considerados como tais, que acontece? A  discussão continuava dentro do crebro de Spandreli. A £nica soluão  parecia ser cometer pecados novos e progressivamente mais srios, para  experimentar tudo, como dissera Lucy em seu jargão. - Uma das manei-  ras de conhecer Deus - disse le lentamente, ... guisa de conclusão -   neg -lo.  - Meu bom Maurice! - protestou Lucy.  - Vou parar. - Riu. - Mas, na verdade, se  caso para dizer "meu  bom Maurice" - (aqui Spandrell imitou o tom da voz dela) -, se s  igualmente insens¡vel ao bem e ao pecado contra o bem, para que, então,  queres praticar dsses atos que provocam a interferncia da pol¡cia9  Lucy deu de ombros.  - Por curiosidade. A gente se aborrece. . .  - Ai! A gente se aborrece. . . - Spandreli tornou a rir. - Apesar  de tudo eu penso que o sapateiro não devia ir alm da chinela...  - E qual  a minha chinela?,

  Spandrell sorriu arreganhadamente:  - A modstia - comeou le - me impede ... 

163 

11 

O# 

CAPITULO XIII

  Walter dirigia-se para a Fleet Street. Não se sentia precisamente feliz,  mas estava pelo menos calmo - calmo ... idia de que tudo agora estava  arranjado. Sim, tudo tinha sido arranjado; tudo - porque, no curso da  explosão emocional da £ltima noite, tudo tinha vindo ... superf¡cie. Para  comear, le não tornaria a

ver Lucy nunca mais; isso estava definitiva-  mente decidido e prometido, tanto para o seu bem como para o de Marjo-  rie. Depois, ia passar t"das as noites com Marjorie. E finalmente ia pedir  um aumento a Burlap. Tudo estava assentado. O pr¢prio tempo parecia

  saber disso. Era um dia de bruma branca tenaz, tão intrinsecamente cal-  mo que todos os ru¡dos de Londres pareciam um contra-senso. O tr fego  rugia e se precipitava, mas sem tocar, entretanto, a quietude e o silncio  essenciais do dia. Tudo estava ajustado; o mundo recomeava outra vez  - talvez não duma maneira l muito triunfal, não de todo brilhante, mas  com resignaão, com uma calma absoluta que coisa alguma podia turbar.  Lembrando-se do incidente da noite anterior, Walter esperava ser rece-  bido friamente na redaão. Mas, pelo contr rio, Burlap estava em um de  seus dias de maior cordialidade. Tambm se lembrava da noite passada e

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  estava ansioso por que Walter a esquecesse. Chamou-lhe "meu velho",  apertou-lhe afetuosamente o brao; sentado em sua cadeira, ergueu os  olhos para o rapaz, aqules olhos que não exprimiam nada, que eram ape-  nas dois buracos metidos na escuridão interior do crnio. Sua b"ca, entre-  tanto, sorriu encantadora e sutilmente. Walter retribuiu-lhe o 11 meu  velho" e o sorriso, mas com uma conscincia dolorosa de insinceridade.  Buriap sempre lhe produzia aqule efeito; na presena dle Walter nunca  se sentia absolutamente honesto ou sincero. Era uma sensaão  desagrad vel em extremo. Com Burlap le era sempre, de certa maneira  obscura, mentiroso e comediante. E ao mesmo tempo, tudo quanto dizia,  mesmo quando exprimia as suas convicões mais ¡ritinias, transformava-  se numa espcie de falsidade.  -- Gostei do teu artigo s"bre Rimbaud - declarou Buriap, ainda  apertando o brao de Walter, ainda sorrindo para le, sentado na sua  cadeira girat¢ria atirada para tr s.  - Isso me alegra - respondeu Walter, sentindo com um certo mal-  estar que aquela observaão não era realmente dirigida a le, mas sim a  alguma parte do pr¢prio esp¡rito de Burlap, que tinha sussurrado: "Tu 

I r1i 

devias dizer algo de agrad vel sâbre o artigo dle", e que estava vendo a  sua exigncia satisfeita por outra parte do esp¡rito do mesmo Burlap.  - Que homem! - exclamou Burlap. - Era uma criatura que acredi-

  tava na Vida, não achas?  Desde que Burlap exercia as funões de chefe da redaão, os artigos  editoriais do Literary World tinham quase t"das as semanas proclamado  a necessidade de acreditar na Vida. A f de Burlap na Vida era uma das  coisas que mais inquietavam Walter. Que significaão encerrariam aque-  las palavras? Walter nunca chegara a ter a mais leve idia. Burlap jamais  explicara. . . Era preciso entender por intuião; quem não o conseguisse  estaria condenado ao inferno. Walter supunha achar-se entre os malditos.# 

Era pouco prov vel que viesse um dia a esquecer a sua primeira entre~

  vista com o futuro chefe.. "Ouvi dizer que o senhor precisa dum redator-  adjunto", principiara le timidamente. Burlap fez com a cabea um sinal  afirmativo: "Sim, preciso", e, depois de um enorme e horr¡vel silncio, o  homem s£bitamente olhou para Walter com os seus blhos vazios e  perguntou: "O senhor acredita na Vida?" Walter corou at a raiz dos  cabelos e respondeu: "Sim". Era a £nica resposta poss¡vel. Houve outro  deserto de silncio e depois Burlap tornou a erguer os olhos: "O senhor   virgem?", inquiriu. Walter corou ainda mais violentamente, hesitou, e por  fim sacudiu a cabea. Foi s¢rnente mais tarde que descobriu, por meio de  um dos artigos do pr¢prio Burlap, que o diretor do Liferary World tinha  modelado sua atitude de acârdo com a de Toist¢i - "indo direito ...s  grandes coisas simples e fundamentais", segundo a descrião que o  pr¢prio Burlap fazia das impertinncias espirituais do velho ap¢stolo

  salvacionista.  - Sim, Rimbaud ertamente acreditava na Vida - aquiesceu Walter  com uma voz mole, sentindo ao pronunciar as palavras a mesma impres-  são que sentia quando tinha de escrever uma carta de psames. Falar a  respeito da f na Vida era uma falta de sinceridade da mesma ordem que  falar em "sentidas condolncias" e em "vossa perda irrepar vel" ...  - Rimbaud acreditava tanto na Vida - continuou Burlap, baixando  os olhos (com grande al¡vio da parte de Walter) e meneando a cabea, ao  passo que pronunciava as palavras como se as ruminasse -, de maneira  tio profunda que estava pronto at para renunciar a ela.  assim que eu

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  interpreto o seu abandono da literatura - um sacrificio consciente. -  "Òle u...a com demasiada facilidade as grandes palavras% pensou Walter.  - O que quiser salvar a sua vida deve perd-la. - "Oh! Oh!" - Ser o  melhor poeta de sua geraão e, sabendo disso, abandonar a poesia,  per-  der a pr¢pria vida para salv -la.  acreditar verdadeiramente na vida. A  sua f era tão forte que le estava disposto a perder a sua vida, na certeza  de ganhar uma vida nova e melhor. - Sim, com demasiada facilidade!  Walter sentia~se cheio de embarao. - Uma vida de contemplaão 

165# 

m¡stica e de intuião. Oli, se ao menos se soubesse o que le fez e pensou  na µfrica! Se ao menos se soubesse!  Walter teve a coragem de replicar:  - Contrabandeava armas de fogo para o Imperador Menelik. E, a jul-  gar por suas cartas, Rimbaud parece ter pensado sobretudo em ganhar  bastante dinheiro para se estabelecer. Levava 40 O00 francos no cinturão.  Dez quilos de ouro em târno dos rins. - "Por falar em ouro", pensou  Walter, "preciso falar-lhe a respeito do meu ordenado."  Mas, ao ouvir falar nos fuzis de Menelik e nos 40 O00 francos, Burlap

  sorriu com uma expressão de indulgncia cristã.  -- Mas tu realmente pensas - perguntou le - que o contrabando de  armas e o dinheiro eram as coisas que ocupavam o esp¡rito dle no deser-  to? Dle? Do autor de Les I11umÖnations?  Walter corou, corno se tivesse cometido uma grave inconvenincia.  - São sses os £nicos fatos que conheo - respondeu le, desculpan-  do~se.  -- Mas h uma intuião que v mais fundo do que os simples fatos. -  "Intuião profunda" era o nome que Burlap gostava de dar ... sua pr¢pria  opinião. - Òle estava apanhando o sentido da vida nova, estava  ganhando o Reino do Cu.  -  uma hip¢tese - disse Walter, contrafeito, desejando que Burlap  nunca tivesse lido o Nâvo Testamento.

  - Para mim - retorquiu Burlap -  uma certeza. Uma certeza  absoluta. - Falava com muita nfase, sacudindo a cabea com violncia.  - Uma certeza completa e absoluta - repetiu, hipnotizando-se com a  reiteraão da frase ao ponto de entrar num estado ficticio de convicão  apaixonada. -- Completa e absoluta. - Silenciou; mas interiormente  continuou a se aoitar at entrar num furor m¡stico. Pensou em Rimbaud  ao ponto de se trarsformar- le pr¢prio em Rimbaud. E depois, s£bita-  mente, o seu diabinho meteu para fora a carantonha arreganhada e cochi-  chou: "Dez quilos de ouro ... cinta". Burlap exorcizou o dem"nio, mudan-  do de assunto. -- Viste os livros novos para a resenha? - perguntou,  apontande para uma dupla pilha de volumes que se achava a um canto da  mesa. - Metros e metros de literatura contempornea. - Foi prsa de  uma exasperaão humor¡stica. - Por que ser que os autores não

  param?  uma doena. Um Puxo de sangue, como aqule de que sofria  aquela pobre senhora da B¡blia, lembras-te?  Aquilo de que Walter se lembrava principalmente era de que aquela  comparaao era de Ph¡lip Qparies.  Burlap levantou-se e comeou a examinar os livros.  - Piedade para o pobre cr¡tico! - disse le com um suspiro. "O po-  bre cr¡tico" - não seria a deixa esperada para comear a sua conversa  sâbre o ordenado? Walter criou nimo, concentrou a sua vontade.  - Eu estava justamente a considerar. . . - principiou. 

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  166 

Mas Burlap, quase ao mesmo tempo, tinha comeado a falar por su  vez: 

Vou chamar Beatrice -- disse, apertando trs vzes na campainha.# 

Perdão. Que dizias?  - Nada.  O pedido tinha de ser transferido. Não podia ser feito em p£blico,  particularmente quando o p£blico era Beatrice. "Maldita Beatrice!", pen-  sou Walter, com um ¢dio injusto. Por que vinha ela fazer de graa'a revi-  são de provas e a redaão de not¡cias curtas? Simplesmente porque tinha  rendimento pr¢prio e porque adorava Burlap.  Walter queixara-se a ela certa vez, por brincadeira, de suas miser veis  6 libras semanais.  - Mas o World merece que faamos sacrificios por le - retrucara  a Srta. Gilray num tom sco. - Alm do mais, temos responsabilidades  para com os outros; devemos fazer algo por les. - Repetidos assim por  aquela voz clara e martelada, os sentimentos cristãos de Burlap tinham

  um sabor particularmente estranho. - O World faz alguma coisa;  pre-  ciso que o ajudemos.  A rplica natural seria esta: os rendimentos particulares dle, Walter,  eram muito pequenos e le não estava apaixonado por Burlap ... No  entanto Walter não respondeu assim, e se deixou bicar. F"sse como fâsse,  o diabo que levasse aquela maldita mulher!  Beatrice entrou, uma figura fornidarnente bem feita, muito ereta e com  ares atarefadissimos.  - Bom dia, Walter - cumprimentou. Cada uma de suas palavras era  c~ mo um golpe curto e vigoroso, dado com um martelo de marfim nos  nos dos dedos. -- Tens o ar fatigado -- continuou ela. - Gasto. Como  se tivesses andado de fari~a a noite passada. - Bicada vinha ap¢s bicada.

  - Nio andaste?  Walter corou:  - Dormi mal - resmungou le; e absorveu-se no exame dum livro.  Classificaram os volumes para os diversos cr¡ticos. Uma pilha pequena  para o entendido em cincia, outra para o metafisico acreditado, um mon-  te enorme para o especialista em ficão. A pilha maior tinha o nome de  "Droga". Eram livros que não mereciam cr"nicas, mas apenas uma nota  r pida.  - Eis aqui um livro s"bre a Polinsia para ti, Walter - disse Burlap  generosamente. - E uma nova antologia de versos franceses. Não, pen-  sando melhor, acho que eu  que vou escrever sâbre isto. - Pensando  melhor, le geralmente guardava para si os livros mais interessantes.  A Vida de São Francisco Reconiada para as Crianas por Bella Jukes:

  Teologia ou droga? - perguntou Beatrice.  - Droga - respondeu Walter, olhando por cima do ombro dela.  - Mas eu gostaria de ter um pretexto para fazer um artiguinho a res- 

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  peito de São Francisco - disse Burlap. Nos intervalos que lhe deixavam  as funões de redator, tinha le empreendido um estudo de f"lego que se  deveria chamar Sio Francisco e a Psique Modefeia.,Burlap tomou o livri-  nho das mãos de Beatrice e fez desfilar as p ginas sob o seu polegar. -  Parece droga mesmo - admitiu. - Mas que homem extraordin rio!  Extraordin rio! - Comeou a hipnotizar~se, a flagelar-se para atingir o  estado de esp¡rito franciscano.  - Extraordin rio! - martelou Beatrice, com os olhos fitos em Bur- 

lap.  Walter olhou para ela com curiosidade. As idias de Beatrice e aquelas  bicadas de ganso pareciam pertencer a duas pessoas diferentes, entre as  quais o £nico elo percept¡vel era Burlap. Haveria tambm alguma ligaão  interna, orgnica?  - Que integridade devastadora! - continuou Burlap, numa auto-in-  toxicaão. Sacudiu a cabea e, suspirando, recuperou a calma suficiente  para poder continuar o trabalho da manhã.  Quando, por finn, Walter teve ensejo de falar (com que timidez, com  que escrupulosa relutncia!) a respeito de seu ordenado, Burlap mostrou-  se admir...velmente cheio de simpatia.  - Eu sei, meu velho - disse le, descansando a mão no ombro do  outro com um gesto que perturbadoramente recordou a Walter o tempo  em que, menino de escola, le representava o papel de Ant"nio em O Mer-

  cador de Veneza, e o detest vel Porter (o mais velho), caracterizado de  Bassnio, ensaiava um gesto que traduzisse amizade. ' Eu sei o que   andar mal de dinheiro. - A sua risadinha dava a entender que le,  Rurlap, era um verdadeiro franciscano especialista em pobreza, mas que  era modesto demais para insistir no assunto. - Eu sei, meu velho. - E  realmente chegava quase a acreditar que não era co-propriet rio e diretor  da redaão do World, que não tinha um n¡quel empregado no jornal, que  vivia com 2 libras por semana havia muitos anos. - Eu quisera que  estivssemos em condiões de pagar-te trs vzes o que te estamos pagan-  do. Tu o mereces, meu velho. - Deu uma palmadinha no ombro de Wal-  ter.  Òste resmungou algumas palavras vagas de modstia. Aquela palinadi-  nha, pensou, era a deixa para le comear:

  Eu sou a ovelha maculada do rebanho  Que mais merece ser levada ao matadouro ... 

- Eu s¢ quisera - continuou Burlap -, para o teu bem e para o  meu tambm - acrescentou com um risinho tristonho, metendo-se, com  relaão ...s finanas, dentro da mesma panela de Walter -, eu so quisera  que o jornal desse lucro maior. Se tu escrevesses menos bem, le daria. -  O elogio era encantador. Burlap o reforou com outra palinadinha 

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~Vel e com um novo sorriso. Mas os olhos não exprimiam nada

  Encontrando-os por um instante, Walter teve a estranha impressão de que  #qules olhos não estavam absolutamente olhando para le, que não esta-# 

~ olhando para coisa nenhuma. - O jornal  bom demais. E isto em  ,gaude parte por culpa tua. Não se pode servir a Deus e a Mamona ao  j~ tempo...  Naturalmente - concordou Walter; mas sentiu de nâvo que as

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  ~ palavras tinham vindo com demasiada facilidade.  Eu quisera que isso fosse poss¡vel - falou Burlap, como um São  Fravicisco brincalhão que fingia zombar de seus pr¢prios princ¡pios.  Walter aderiu ... risada, mas sem alegria. Preferia mil vzes que não  tivesse mencionado a palavra "ordenado".  - Vou falar ao Sr. Chivers - disse Burlap. O Sr. Chivers era o dire-  lor comercial. Burlap se sCrvia dle, como os homens de Estado se servem  do& or culos e dos aug£rios, em beneficio da sua pr¢pria pol¡tica. As suas  decisões mal acolhidas podiam sempre ser levadas ... conta do Sr. Chivers;  e quando le tinha algum gesto simp tico era invari...velmente "... revelia  do desalmado despotismo do diretor comercial". O Sr. Chivers era a mais  conveniente das ficões. Hei de falar-lhe esta manhã mesmo.  - Não te incomodes disse Walter.  - Se ror humanamente poss¡vel arrancar alguma coisa mais para  ti. . .  - Não, eu te peo. . . - Walter chegava positivamente a suplicar  que nio lhe aumentassem o ordenado. - Eu sei bem das dificuldades.  Não penses que eu quero ...  - Mas n¢s te estamos explorando, Walter, estamos-te positivamente  pagando um sal rio de fome. - Quanto mais Walter protestava, mais  generoso ficava Burlap. - Não penses que eu não percebo. H muito que  isso me vem preocupando.  A sua magnanimidade era infecciosa. Walter estava resolvido a não  aceitar nenhum aumento, firmemente resolvido, embora tivesse a

  COnvicão de que o jornal estava em condiões de pagar-lhe melhor.  - Realmente, Burlap - disse le quase numa s£plica -, eu preferia  antes que deixasses as coisas como elas estão. - E então, de s£bito, Wal~  tu Pensou em Marjorie. Como a estava tratando injustamente! Sacrifi-  CRM O bem-estar dela ao seu. Porque le achasse desagrad vel negociar,  Porque lhe f"sse repugnante lutar, por um lado, e, pelo outro, aceitar favo-  rM a pobre Marjorie teria de continuar sem novos vestidos e sem mais  Umacriada.  Mas Burlap afastava-lhe as objeões. Insistiu em ser generoso.  - Vou falar a Chivers imediatamente. Creio que posso persuadi-lo a  481MAD mais 25 por ano.  Vinte c cinco. Equivalia aquilo a 10 xelins por semana, isto , a nada

.  M~ie tinha dito que le devia exigir pelo menos mais 100 libras. 

169# 

i! i 

- Obrigado - agradeceu Walter. E por ter dito esta palavra despre-  zou-se a si -nesmo.  -  ridiculamente pouco, acho eu. Ridiculamente, eis o trmo.

  "Era o que eu devia ter dito", pensou Walter.  - Sente-se at vergonha de oferecer isso. Mas que  que se vai fazer?  "Se" manifestamente não podia fazer nada, pela boa razão de que "se"  era impessoal e não existia.  Walter resmungou algo a respeito de "ficar grato". Sentiu-se humi-  lhado e culpou Marjorie do que acontecera.  Quando trabalhava na redaão, o que acontecia s¢rnente trs dias por  semana, Walter ficava na mesma sala de Beatrice. Burlap, num isola-  mento diretorial, ficava s¢zinho. Era dia de "Diversas". Viam-se sâbre a  mesa as pilhas de "Drogas". Walter e Beatrice serviram-se. Era um festim

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  liter rio - um festim de sobejos. M s novelas e versos sem valor, siste-  mas imbecis de filosofia e moralizaões chatas, biografias insignificantes  e livros maantes de viagem, livros dum pietismo tão nauseante e  hist¢rias infantis tão vulgares e t"las que l-los era sentir vergonha por  tâda a raa humana; a pilha era alta, e a cada semana ia ficando ainda  mais crescida. A perseverana de Beatrice, que semelhava a das formigas,  o discernimento r pido' e a facilidade de Walter eram completamente  incapazes de reprimir o fluxo crescente. Ambos puseram mão ... obra "co-  mo abutres", dizia Walter, "nas Târres do Silncio". O que le escreveu  naquela manhã,foi particularmente mordaz.  No papel Walter era tudo o que não conseguia ser na vida. Suas cr¡ti-  cas eram ricas de epigramas e implac veis. As pobres solteironas conipe~  netradas, quando liam o que le escrevia a respeito de seus poemas  sentid¡ssimos s"bre Deus e a Paixão, e sâbre as Belezas da Natureza, se  sentiam picadas ao vivo pelo desdm brutal do cronista. Os caadores de  caa grossa que tinham feito, cheios de g"zo, uma excursão ... µfrica  perguntavam-se a si mesmos como a narrativa de uma aventura tão  interessante podia ser qualificada de cacte. Os jovens novelistas que  tinham modelado os seus estilos e as suas concepões picas de acârdo  com os melhores autores, que tinham ousadarriente p"sto a descoberto os  segredos de sua vida ¡ntima e sexual, ficavam feridos, ficavam abismados,  ficavam indignados ao lerem que os seus escritos eram pomposos, sua  construão inexistente, sua psicologia falsa e seu drama, teatral e  melodram tico. Custa tanto escrever um mau livro como um bom; sai

  com a mesma sinceridade da alma do autor. Mas, sendo a alma do mau  autor, pelo menos artisticamente, de qualidade inferior, suas sinceridades  serão, senão sempre intrinsecamente desinteressantes, pelo menos desinte-  ressantemente exprimidas, e o trabalho dispensado, nessa expressão ser

malbaratado. A natureza  monstruosamente injusta. Não h substituto  para o talento. A ind£stria e t"das as virtudes são de nenhum proveito.  Imerso na sua "Droga", Walter comeou a escrever ferozmente s"bre a 

falta de talento. Conscientes de sua ind£stria, de sua sinceridade e de suas  boas intenões art¡sticas, os autores das "Drogas" sentiam-se tratados de  maneira injusta e ultrajante.

  Os mtodos de cr¡tica de Beatrice eram simples; em todos os casos ela# 

procurava dizer o que imaginava que Burlap diria. Na pr tica, o que  acontecia era que ela elogiava todos os livros nos quais a Vida e os seus  problemas eram, julgava ela, levados a srio; e condenava todos os outros  em que isso não acontecesse. Beatrice teria classificado o Festus de Bai-  ley acima do Candide, a menos,  claro, que Burlap ou alguma outra pes-  soa de autoridade lhe tivesse dito prviamente que era seu dever preferir  Candide. Como nunca lhe permitiam criticar nada a não ser o que era  "Droga", a sua falta absoluta de senso cr¡tico era de pouca importncia.

  Walter e Beatrice trabalharam, sa¡ram para fazer O lanche, voltaram e  recomearam o trabalho. Onze livros novos haviam chegado no intervalo.  - Eu sinto - disse Walter - o que devem sentir os abutres de Bom-  baim quando h epidemia entre os parses.  Bombaim e os parses lembraram-lhe a irmã. Elinor e Philip deviam es-  tar embarcando naquele dia. Walter se alegrava por sab-los de volta ...  p tria. Eram quase as £nicas pessoas com as quais le podia falar com  intimidade a respeito de seus assuntos. Poderia discutir com les os seus  problemas. Seria um conf"rto, um al¡vio de responsabilidade. E então,  s£bitamente, o jovem Bidlake lembrou se de que tudo estava ajustado, de

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  que não havia mais problemas. Nenhum mais ... Foi nesse momento que  a campainha do telefone tilintou. Walter levantou o receptor e disse:  Al"!  - s tu, Walter querido? - Era a voz de Lucy.  O coraão de Walter desfaleceu; le sabia o que ia acontecer.  - Acabo de acordar - explicou ela. - Estou completamente s¢.  Queria que le rosse para o ch . Walter recusou. Que rosse, então,  depois do ch .  - Não posso - persistiu le.  - Bobagem! Est claro que podes.  - Imposs¡vel.  - Mas por qu?  - Trabalho.  - Mas depois das 6. Fao questão ...  No fim de contas, pensou le, talvez rosse melhor ir v-la e explicar-lhe  o que tinha resolvido.  - Eu nurca te hei de perdoar se não vieres.  - Est bem. Farei um esforo. Irei, se for poss¡vel ...  - Que dengoso le  - caoou Beatrice quando Walter pendurou de  RâVO o receptor. - A dizer não s¢ pelo prazer de se sentir requestado.  E quando, poucos minutos depois das 5, o rapaz deixou a redaão sob  O pretexto de que precisava ir ... London Library antes da hora de fechar,

  170# 

Beatrice dirigiu-lhe votos ir"nicos de felicidade. E as suas £ltimas pala-  vras foram: -"Bon amusement* 11 ! 

J I 

No -abinete do diretor, Burlap estava ditando cartas para a sua  secret ria:

  - De V. S.', etc., etc. - terminou le. Tomou de outro mao de  papis. - Cara Srta. Saville - comeou, depois de relancear os olhos  sâbre les. - Não - corrigiu~se. - Cara Srta. Romola Saville. Obri-  gado pela sua carta e pelos manuscritos anexos. - Fz uma pausa e,  inclinando-se para tr s na cadeira, fechou os olhos, numa reflexão breve.  - Não  meu costume - continuou por fim, com uma voz macia e  long¡nqua -, não  meu costume escrever cartas particulares a colabora-  dores desconhecidos. - Descerrou as p lpebras para dar com o olhar  escuro e brilhante da secret ria, que se achava do outro lado da mesa. A  expressão dos olhos da Srta. Cobbett era sarc stica; o mais p lido dos  sorrisos encrespava-lhe qu*ase imperceptivelmente as comissuras dos  l bios. Burlap ficou contrariado; mas escondeu os seus sentimentos e  continuou a olhar direito para a frente, como se a Srta. Cobbett não se

  achasse presente e como se le estivesse a olhar distraidamente para  qualquer pea da mob¡lia. A Srta. Cobbett baixou de n"vo o olhar para o  caderno de apontamentos.  "Como  desprez¡vel", exclamou ela rio seu ¡ntimo. "Como  indizivel  mente vulgar!"  A Srta. Cobbett era uma mulherzinha de cabelos negros, que tinha os  cantos do l bio superior sombreados duma penugem escura: olhos casta-  nhos desproporcionadamente grandes para o rosto fino e um tanto doen-  tio. Olhos sombrios e apaixonados, com uma expressão quase perma-  nente de censura que por vzes se iluminava em c¢lera s£bita, ou, como

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  naquele momento, em esc rnio. Ethel Cobbett tinha direito de lanar para  o mundo um olhar de acusaão. O destino a tinha tratado com dureza.  Com muita dureza, mesmo. Nascida e educada no meio duma prosperi-  dade razo vel, a morte do pai a deixara, dum dia para outro, desesperada-  1  mente pobre. Ficou noiva de Harry Markham. A vida prometia comear  de n"vo. Depois veio a guerra. Harry alistou-se e foi morto. Esta morte  condenou a Srta. Cobbett ... estenografia e ... datilografia pelo resto da  existncia. Harry era o £nico homem que a tinha amado, o £nico homem  que quisera correr o risco de am -la. Os outros homens achavam-na  inquietadoramente violenta. apaixonada e sria. Ethel levava tudo  terrivelmente a srio. Os jovens sentiam-se mal e achavam-se rid¡culos na  companhia dela. E vingavam-se rindo da pobre criatura, acusando-a de 

* Bom divertimento. (N. do E) 

172 

"não ter senso de humor", de ser pedante e, ... medida que o tempo passa-  va, de ter-se tomado uma solteirona que vivia a suspirar por um homem.  Diziam que a Srta. Cobbett parecia uma feiticeira. Apaixonara-se muitas# 

vzes, ardentemente, com uma violncia sem esperana. Os homens ou  não percebiam isso ou, se percebiam, fugiam precipitadamente; outras  vzes zombavam dela ou, o que era muito pior, mostravam-se duma bon~  dade condescendente, como se estivessem tratando com uma pobre cria-  tura desviada que, embora f"sse aborrc¡vel, devia, não obstante, ser  tratada com caridade. Ethel Cobbett tinha pleno direito a usar aquela  expressão de censura.  Conhecera Burlap porque, quando menina, nos dias de prosperidade,  tinha freqentado o mesmo colgio de Susan Paley, que se tornara poste-  riormente esp"sa dle. Quando Susan morreu e Burlap explorou a dor que  sentiu, ou pelo menos proclamou ter sentido, numa srie mais do que

  habitualmente dolorosa daqueles artigos sempre dolorosamente pessoais  que eram segrdo de seu xito como jornalista (pois o grande p£blico tem  um apetite cr"nico e canibalesco pelas indiscriões pessoais), Ethel lhe  escreveu uma carta de condolncia, que flez acompanhar dum longo  memorial a respeito da Susan dos tempos de menina. Pela volta do cor-  reio veio-lhe uma resposta comovida e comovente: "Obrigado pelas  merriorias que me representam a verdadeira Susan tal como eu sempre a  senti - a menina que sobreviveu tão magnificamente e tão puramente na  mulher, at o derradeiro momento; a encantadora criana que, a despeito  da cronologia, ela não tinha cessado de ser, so b a Susan f¡sica que vivia  no tempo e paralelamente a ela. Nas profundezas mais ¡ntimas de seu  coraão, estou certo, ela nunca chegou a crer no seu eu adulto e  cronol¢gico, nunca p"de desfazer-se da idia de que continuava a ser uma

  criana que brincava de ser gkande".  E assim por diante - p ginas de um lirismo um tanto histrico s"bre  a mulher-riana defunta. Incorporou uma boa parte da substncia dessa  carta em seu artigo da semana seguinte. "Dsses Ser o Reino dos Cus"  - era o t¡tulo. Um dia ou dois mais tarde le foi a Birmingharn para ter  uma entrevista pessoal com aquela mulher que havia conhecido a verda-  deira Susan na poca em que ela era criana, tanto cronol¢gica como  espiritualmente. A impressão que cada um dles causou no outro feri  favor vel. Para Ethel, cuja vida era de amargura e de recriminaão contra  o destino, para Ethel, que vivia entre o seu apartamento sombrio e o odio

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-  so escrithrio da companhia de seguros onde estava empregada, a chegada  da carta, primeiro, e a do pr¢prio Burlap, depois, tinham sido aconteci-  mentos grandes e maravilhosos. Tratava-se dum escritor de verdade, um  homem que tinha um crebro e uma alma. No estado mental que fabri-  cara para si -mesmo, Burlap teria gostado de qualquer mulher que lhe  pudesse falar da meninice de Susan e oferecer-lhe o calor de uma compai-  xio maternal, em que, criana tambm, le pudesse mergulhar com 

173# 

!i 

del¡cia, como num leito de penas. Ethel Cobbett não se limitava a  testemunhar-lhe simpatia e a ter sido amiga de Susan; tinha tambm  inteligncia, uma cultura sria, e sabia admirar. As primeiras impressões  foram boas.  Burlap chorou, abjetamente. Torturou~se a si mesmo com o pensa-  mento de que nunca, nunca mais poderia pedir perdão a Susan de t"das  as maldades que lhe fizera, de tâdas as palavras cruis que pronunciara.  E confessou, na agonia da contrião, que lhe rora uma vez infiel. Contou

  as contendas domsticas. E agora Susan estava morta; nunca lhe poderia  pedir perdão. Nunca, nunca- Ethel ficou comovida. "Ningum", pensou  ela, "h de mostrar sse intersse por mim quando eu morrer." Mas os  testemunhos de amor e de intersse depois que morremos são coisas me~  nos satisfat¢rias do que os testemunhos de amor e de ¡ntersse quando  estamos vivos. Aqules paroxismos de dor que Burlap, por um processo  de concentraão intensa sâbre a idia da sua perda e da sua tristeza, tinha  conseguido fazer ferver dentro de si mesmo, não eram de maneira nenhu-  ma proporcionais aos sentimentos que le experimentara com relaão ...  Susan viva. Para cada jesu¡ta novio Loyola prescrevia um retiro de  meditaão solit ria s"bre a paixão de Cristo; alguns dias dste exerc¡cio,  acompanhados de jejum, bastavam geralmente para produzir no esp¡rito  do novio a realidade viva, m¡stica e pessoal da existncia e dos sofri-

  mentos reais do Salvador. Burlap empregou o mesmo processo; mas, em  lugar de pensar em Jesus, ou então em Susan, pensou em si mesmo, nas  suas agonias, na sua pr¢pria solidão, nos seus pr¢prios remorsos. E, com  efeito, ao cabo de alguns dias de masturbaão espiritual incessante, le  obteve em recompensa a realidade m¡stica de seu pr¢prio pesar, £nico e  incompar vel. Via-se, numa visão apocafiptica, como o varão de dores.  (A linguagem do N"vo Testamento vinha aos l bios de Burlap e-brotava-  lhe da pena constantemente. "A cada um de n¢s", escrevia le, " dado  um Calv rio proporcional ...- capacidade individual de resistncia e ...s  possibilidades de auto-aperfeioamento." Burlap falava familiarmente de  agonias no h"rto e em c lices.) Aquela visão lhe espedaou o coraão; o  homem ficou inundado de piedade de si mesmo. Mas a pobre Susan tinha,  na verdade, muito pouco que ver corri os sofrimentos daquele Burlap com

  ares de Cristo. O seu amor pela Susan viva tinha sido por le pr¢prio tão  forado, tão buscado, tão estu¡dadamente intensificado como rora a sua  tristeza pela Susan morta. Burlap havia amado, não Susan, mas a imagem  mental de Susan e a idia do amor - coisas sâbre as quais concentrara  ffixamente o esp¡rito, ... melhor maneira jesu¡tica, at que elas se tornassem  alucinantemente reais. Seus ardores para com aqule fantasma, para com  o amor do amor, a paixão pela paixão, que le conseguira extrair das  profundezas mais remotas de sua conscincia, haviam conquistado  Susan, que imaginava que aqules sentimentos tivessem alguma relaão  com ela. O que mais agradava a Susan naqueles sentimentos do marido

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 era a sua qualidade de pureza, que nada tinha de masculina. Os ardores

  de Burlap eram os duma criana para com sua mãe (duma criana um  pouco incestuosa,  verdade; mas como le representava com tato e deli-  cadeza o papel de pequeno Edipo!), seu amor era ao mesmo tempo infan-# 

til e maternal; sua paixão era uma espcie de nina-nana passiva. Fr gil,  melindrosa, não tendo atingido a plenitude da vida e continuando por isso  a ser menos do que adulta, uma eterna menor, Susav adorava o marido  como a um amante superior e quase sagrado. E Burlap, em troca, adorava  o seu fantasma particular, adorava a sua concepão lindamente cristã do  matrim"nio, adorava a sua maneira ador vel de ser esp"so. Seus artigos  peri¢dicos em louvor do casamento eram l¡ricos. Isso não o impedia de  cometer freqentes infidelidades; mas tinha uma maneira tão pura, tão  infantil, tão plat"nica de ir para a cairia com as outras mulheres que nem  estas nem le podiam jamais achar que aquilo fosse realmente "dormir  juntos". A vida de Burlap com Susan foi uma sucessão de cenas, em t"das  as variedades da gama emocional. Òle mastigava e remastigava sem ces-  sar um agravo qualquer at ficar envenenado num paroxismo de c¢lera ou  de ci£me. Ou então insistia em suas. pr¢prias fraquezas e mostrava-se  servilmente arrependido ou se rolava aos ps de Susan no xtase de sua

  adoraão incestuosa pela maniã-beb imagin ria que era sua esp¢sa, e  com a qual lhe teria sido agrad vel identificar a Susan de carne e osso.E  muitas vzes, então, com grande inquietude de Susan.. le interrompia  s£bitamente o fluxo de suas emooes com um estranho risinho c¡nico, e  transformava-se por um instante num ser inteiramente diverso, num ser  que lembrava o Alegre Moleiro da canão: "Não fao caso de ningum,  oli, não! E ningum faz caso de mim, tambm!" "O dem"nio de cada um"  - era assim que le descrevia impessoalmente tais estados de esp¡rito  depois de ter reconquistado a espir¡tualidade emotiva; e citava as pala-  vras do Velho Marinheiro, de Coleridge, a prop¢sito do cochicho do  dem"nio que lhe havia deixado o coraão sco como poeira. Seria mesmo  o dem"nio de cada um" - ou era, talvez, o verdadeiro Burlap, o Burlap

  fundamental, fatigado enfim do esforo de se fazer passar por um outro e  de forar a fermentaão de emoões que le não sentia espontnearriente.  o verdadeiro Burlap que concedia a si mesmo um curto feriado?  Susan morreu; mas a dor prolongada e apaixonada que le experi-  mentou naquela ocasião poderia ter sido provocada quase com o mesmo  xito se Burlap resolvesse imaginar a esp"sa morta e a si mesmo abando-  nado e solit rio, durante a vida dela. Ethel ficou sensibilizada pela inten-  sidade daqueles sentimentos, ou, -melhor, pela violncia e pela insistncia  que Burlap punha no exprimi-los. O homem parecia absolutamente  aniquilado, tanto de corpo como de esp¡rito, pelos seus pesares. A Srta.  Cobbett sentiu o seu coraão sangrar por le. Encorajado pela simpatia  da Mâa, Burlap mergulhou numa orgia de lamentaões cuja vaidade as

  tornava exasperadoramente acerbas, arrependimentos tanto mais crucian- 175

 ~ Ö

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  tes quanto eram tardios, confissões e humilhaões desnecess rias. As  sensaões não são entidades ... parte, suscet¡veis de ser estimuladas  independentemente do resto do esp¡rito. Quando um homem fica emocio-  nalmente exaltado numa direão, est sujeito A ficar tambm em outras.  A dor de Burlap tornava-o nobre e generoso; a piedade de si mesmo lhe  tornava f cil ter sentimentos cristãos para com as outras pessoas.  - A senhora tambm  infeliz - disse le a Ethel. - Eu bem o vejo.  Ela concordou; disse-lhe o quanto odiava o seu trabalho, o seu  emprgo, o pessoal com quem trabalhava; contou-lhe a sua hist¢ria  desgraada. Burlap p"s em ebulião a sua simpatia.  - Mas que importam as minhas pequenas misrias comparadas com  as suas? - protestou Ethel, lembrando-se da violncia das lamentaões  do outro.  Burlap falou da franco-maonaria do sofrimento e depois, ofuscado pe-  ta visão da bondade de seu pr¢prio eu, chegou a oferecer ... Srta. Cobbett  um lugar de secret ria-ester¡~grafa no Literary World. Embora Londres e  o Literary World lhe parecessem infinitamente prefer¡veis a Birrningharn  e ... companhia de seguros, Ethel hesitou. O emprgo nesta £ltima era  mon¢tono, mas era s¢lido, permanente e dava direito a uma aposenta-  doria. Numa outra explosão de sentimento generoso, ainda mais violenta  do que a primeira, Burlap garantiu-lhe t"da a permanncia que ela deseja-  va. E sentiu o seu ser todo aquecido de bondade.  A Srta. Cobbett deixou-se persuadir. Foi para Londres. Se Burlap esp

e-  rava deslizar degrau ap¢s degrau e de modo quase impercept¡vel at a ca-  ma de Ethel, ficou desapontado. Criana abatida pela dor e necessitada  de consolaão, le gostaria de induzir a sua consoladora - oh! mas quão  espiritual e plat"nicamente! - a um suave e delicioso incesto. Uma tal  idia, porem, era inconceb¡vel para Ethel Cobbett; nunca haveria de  entrar-lhe na cabea. Era uma mulher de princ¡pios, tão apaixonada e vio-  lenta nas suas lealdades morais como no seu amor. Tinha tomado a dor  de Burlap a srio e literalmente. Quando ambos pactuaram, entre l gri-  mas, fundar uma espcie de culto particular para a pobre Susan, a fim de  elevar e guardar perptuamente iluminado e adornado um altar interior ...  sua mem¢ria, Ethel imaginou que as palavras de Bxkrlap deviam ser toma-  das ao p da letra. F"sse como f"sse, as dela eram sinceras. Nunca lhe

  ocorreu que as de Denis não o fossem. O comportamento ulterior dste a  espantou e escandalizou. Era então aqule homem - perguntava Ethel a  si mesma, vendo Burlap viver a sua vida de promiscuidades disfaradas,  platânicas e viscosamente espirituais---, era aqule homem que tinha fei-  to o voto de conservar para sempre velas acesas na frente do altar da  pobrezinha da Susan? Ela exprimia a sua desaprovaão por meio de olha-  res. e de palavras. Burlap se maldizia por causa da sua loucura de t-la  tirado da companhia de seguros, por causa da sua refinad¡ssinia  imbecilidade de lhe prometer permanncia no emprgo. Se ao menos ela 

se demitisse por sua livre vontade! Procurava tornar-lhe a existncia  intoler vel, tratando-a com impessoalidade glacial, superior, como se ela  rosse apenas uma m quina de apanhar cartas e de copiar artigos. Mas

  Ethel Cobbett se aferrava ferozmente ao emprgo; havia então dezoito  meses que se achava agarrada a le e não dava sinais de se demitir. Era  intoler vel; aquilo não podia continuar. Mas como havia le de p"r um# 

run ... hist¢ria? Era claro, le não estava por lei obrigado a conserv -la  indefinidamente. Não tinha escrito nada, prto no branco ... Na pior das  hip¢teses...

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  Revelando um insens¡vel desdm pela expressão dos olhos de Ethel  Cobbett e pelo seu quase impercept¡vel sorriso de ironia, Burlap conti-  nuou com o ditado. Não se deve dar atenão ...s m quinas: us -las, ape-  nas. Mesmo assim, a coisa como estava simplesmente não podia conti-  nuar.  - Não  meu costume escrever cartas particulares a colaboradores  desconhecidos - repetiu Burlap num tom de voz firme e resoluto. --  Mas não posso deixar de dizer-lhe ... não, não: de agradecer-lhe o gran-  de prazer que seus poemas me deram. A frescura l¡rica da sua obra, a sua  sinceridade apaixonada, o seu esplendor livre e quase selvagem chega-  ram-me como uma surprsa e um refrigrio. Um diretor de jornal  obri-  gado a absorver tão grande quantidade de m literatura que chega a ficar  quase patticamente reconhecido para com os que ... não, escreva: para  com os raros e preciosos esp¡ritos que lhe oferecem ouro em vez da  esc¢ria habitual. Agradeo-lhe a remessa de. . . - Buriap olhou de n"vo  para os papis - . . de "O Amor na Floresta Verdejante" e de "Passi-  floras". Obrigado pelos seus poemas, cujas palavras semelham a  superf¡cie cintilante e turbulenta dum lago. Obrigado tambm pela  sensibilidade ... não: pela vibrante sensibilidade, pela experincia de  sofrimento, pela, ardente espiritualidade que uma visão mais profunda  descobre debaixo dessa superf¡cie. Vou mandar paginar imediatamente  ambos os poemas para public -los no ms pr¢ximo.  "At l , se acontecer a senhorita passar nas proximidades de Fleet  Street, eu me consideraria muito honrado em poder ouvir pessoalmente

  algumas indicaões sâbre seus projetos poticos. O aspirante a literato,  mesmo quando tem talento, fica muitas vzes embargado pelas dificul-  dades materiais que o homem de letras profissional sabe como contornar.  Sempre considerei como um dos meus maiores privilgios e deveres de  cr¡tico e de jornalista aplainar o caminho para o talento liter rio. Esta  ser a minha escusa por ter escrito tão longamente. Creia-me verdadeira-  mente muito seu ... 1,  Burlap tornou a olhar para os poemas datilografados e leu uma linha  ou duas. "Talento verdadeiro", disse de si para si v rias vzes, "talento  verdadeiro." Mas o "dem"nio de cada um" achava que aquela rapariga  era not...velmente franca, que devia ter temperamento e que parecia ser# 

dona duma certa experincia ... 

Pousou os papis no csto que tinha ...  sua direita e apanhou outra carta do csto da esquerda.  - Ao Reverendo James Hitcheock - ditou. - Presbitrio Tuttle-  ford, Wilts. Prezado senhor: Lamento vivamente estar impossibilitado de  utilizar o seu longo e muito interessante artigo a respeito da relaão entre  as l¡nguas aglutinantes e as formas aglutinativas de quimeras na arte  simb¢lica. Exigncias de espao ... 

I

  - Mas por que não?  - Não d certo ...  - Porque não?  - Para principiar: as coisas ficariam muit¡ssimo mais complicadas  para ti.  - Qual! Não ficariam - afirmou Walter.  Não havia complicaões. Marjorie cessara de existir.  - Alm disso - continuou Lucy -, tu pareces esquecer a minha  pessoa. E eu não quero ...

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  Mas os l bios dle eram macios, as suas mãos tocavam de leve. O bater  de asas das maripâsas prenunciadoras do prazer voltaram palpitante-  mente ... vida sob aqules beijos e aquelas car¡cias. Lucy fechou os olhos.  As car¡cias de Walter eram como uma droga que fosse ao mesmo tempo  excitante e opiada. Bastava relaxar a vontade; a droga haveria de possu¡-  Ia completamente. Lucy cessaria de ser ela mesma. Não seria nada mais  do que uma epidernie de prazer palpitante a envolver um v cuo, uma tre~  va quente e abismal.  - Lucy! - As p lpebras dela palpitaram e estremeceram sob os  l bios do rapaz. As mãos dle tocavam-lhe o peito. - Minha querida! -  Ela jazia completamente im¢vel, com os olhos sempre fechados.  Um guincho s£bito e penetrante f-los ambos despertar, completamente  acordados, do esquecimento do tempo em que haviam mergulhado. Foi  como se um assass¡nio tivesse sido cometido a poucos ps do lugar onde  ambos se achavam - mas um assass¡nio cuja v¡tima achasse um pouco  divertida, ao mesmo tempo que dolorosa, a sensaão de ser assassinada.  Lucy desatou a rir.  -  Polly.  Voltaram-se ambos para a gaiola. Com a cabea um pouco inclinada  para um lado, a ave os estava examinando com um âlho negro e circular.  E enquanto Lucy e Walter olhavam, uma cortina de pele pergaminhosa  passou como uma catarata momentnea s"bre o ¢lho brilhante e  inexpressivo, para logo depois se reerguer. Repetiu-se de n¢vo o grito de  agonia do m rtir jocoso.

  - Ter s de cobrir a gaiola com o pano - sugeriu Lucy.  Walter voltou-se para ela e p"s-se a beij -la com raiva. A cacatua gri-  tou outra vez. A risada de Lucy redobrou.  -  in£til. . . - disse, arquejante. - Ela não parar senão depois  que a cobrires.  A ave confirmou o que Lucy dissera com outro berro de agonia alegre.# 

E Walter, furioso, exasperado e consciente do seu rid¡culo, abandonou a  Posião genuflexa e atravessou o compartimento. · aproximaão dle a

  ave comeou a danar animadamente no seu poleiro; aIou-se-lhe a cris-  ta, a plumagem da cabea e a do pescoo eriou-se como as escamas du-  ma pinha madura. - Bom dia - dizia a cacatua numa voz gutural de 

Rosada dentro do seu roupão como as tulipas nos vasos, Lucy estava  deitada, apoiada nos cotovelos, lendo. O divã era de c"r alegre, as pare-  des estavam forradas de sda cinzenta, o tapte era c"r-de-rosa. Na sua  gaiola de ouro at a pr¢pria cacatua era rosa e cinza. A porta se abriu.  - Walter, querido! Enf im! - Lucy deixou cair o livro.  - Enfim. Se soubesses de t"das as coisas que eu devia estar fazendo  agora em vez de estar aqui! - "Prometes?", perguntara Marjorie. E le  respondera: "Prometo". Mas aquela £ltima visita de explicaão não  entrava em conta ...

  O divã era largo. Lucy afastou os ps para a parede, fazendo lugar para  Walter sentar-se. Um de seus chinelos turcos vermelhos tombou.  - Aquela aborrec¡vel manicura. . . - disse ela, erguendo o p nu  alguns cent¡metros, de maneira a coloc -lo dentro de seu campo de visão.  - Quer por fora p"r essa horr¡vel coisa vermelha nas unhas dos meus  ps. Parecem at chagas ...  Walter não falou. Seu coraão batia violentamente. Como o calor dum  corpo transposto para uma outra gama sensorial, o olor das gardnias de  Lucy o envolvia. H perfumes quentes e frios, sufocantes e frescos. As  gardnias de Lucy pareciam encher-lhe a garganta e os pulmões duma

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  doura tropical e pesadamente opressiva. Sâbre a sda cinzenta do divã,  o p lido p da rapariga parecia uma flor, era como os botões p lidos e  carnudos das fi"res de l¢tus. Os ps das deusas hindus que passeiam por  entre os seus I¢tus são tambm como ffires. O tempo se escoava em siln-  cio, mas não in£tilmente como nos momentos ordin rios. Dir-se-ia que  le era aspirado, a cada bombada do coraão inquieto de Walter, para  dentro de algum reservat¢rio fechado de sensaões experimentadas, que  subiam atr s da reprsa, at que por fim, de repente ... De repente  Walter estendeu o brao e tomou o p nu em sua mão. Sob a pressão de  todos aqules minutos silenciosamente acumulados, a barragem ru¡ra.  Era um p alongado, alongado e estreito. Os dedos de Walter se fecharam  em târno dle. Inclinando-se, o rapaz beijou o peito daquele p.  - Mas meu caro Walter! - Lucy p¢s-se a rir. - Tu est s te tor-  nando verdadeiramente oriental.  Walter não disse palavra, mas, ajoelhando-se no chão ao lado do divã,  curvou-se sâbre Lucy. O rosto que se inclinou para beij -la estava fixo  numa espcie de loucura desesperada. As mãos que tocavam o corpo dela  tremiam. Lucy sacudiu a cabea, escudou o rosto com a mão.  - Não, não. 

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I# 

ventr¡loquo. - Bom dia, titia, bom dia, titia, bom dia, titia ... Walter  desdobrou o brocado c¢r-de-rosa que se achava em cima da mesa perto  da gaiola e apagou o animal. Um £ltimo "bom dia, titia" saiu de baixo da  coberta. E depois f,ez-se silncio.  - Ela gosta dessa brincadeira - disse Lucy, assim que o animal  desapareceu. Tinha acendido um cigarro.  Walter tornou a atravessar a pea e, sem dizer palavra, arrebatou o  cigarro dos dedos dela e jogou-o dentro da lareira. Lucy alou as sobran-  celhas, mas Walter não lhe deu tempo para falar. Ajoelhando-se outra vez  ao p dela, comeou a beij -la com f£ria.  - Walter - protestou Lucy. - Não! Que  que tens? - Tentou  desvencilhar-se, mas le estava surpreendentemente forte. - Pareces uma  bsta-fera. - O desejo dle era mudo e selvagem. - Walter! Eu insisto!

  - Lucy teve uma idia absurda e comeou s¢bitamente a rir. - Se  soubesses como estavas cinematogr fico! Um grande, um enorme close-  up cheio de dentes arreganhados.  Mas o rid¡culo foi tão - in£til como os protestos. E desejaria Lucy  verdadeiramente que le fosse eficaz? Por que não se abandonava?  Simplesmente porque era um pouco humilhante ser levada daquele modo,  ser forada em vez de escolher. Seu orgulho, sua vontade resistiam a Wal-  ter - resistiam ao seu pr¢prio desejo. Mas, no fim de contas, por que  resistir? A droga era ativa e deliciosa. Por que resistir? Lucy fechou os  olhos. Mas, enquanto hesitava, o acaso repentinamente tomou uma deci-

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  são por ela. Bateram ... porta.  Lucy tornou a abrir os olhos.  - Vou dizer que entrem -- sussurrou.  Walter p¢s-se precipitadamente de p, ao mesmo passo que se ouvia  unia segunda batida.  - Entre!  A porta se abriu.  - O Sr. filidge deseja v-la, senhora - disse a criada.  Walter se achava ... janela, fingindo que estava profundamente interes~  sado num caminhão de entrega encostado ... calada da casa fronteira.  - Manda-o subir - ordenou Lucy.  Walter voltou-se logo que a porta se fechou atr s da criada. O rosto  dle estava muito p lido, os l bios lhe tremiam.  - Eu tinha esquecido completamente - explicou Lucy. - Pedi a  Illidge que viesse, a noite passada; ou melhor, esta manhã.  O rapaz voltou o rosto e, sem dizer palavra, cruzou o quarto, abriua  porta e se foi.  - Walter! - gritou ela, atr s dle. - Walter! - Mas Walter não  voltou.  Na escada encontrou filidge que subia, precedido pela criada.  Walter respondeu-lhe ...s palavras de saudaão com um cumprimento 

180 vago e passou por le apressadanente. Não estava bastante calmo para

  arriscar-se a falar.  - Nosso amigo Bidlake parece que ia com grande pressa - disse  Illidge, depois dos cumprimentos preliminares. Sentia-se exultantemente# 

certo de que tinha pâsto o outro na rua.  Lucy observava-lhe o ar de triunfo. "Parece um galinho de plumagem  vermelha", pensou ela.

  - Walter tinha esquecido qualquer coisa. . . - explicou vagamente.  - Espero que não tenha sido dle mesmo - fez o homenzinho,  trocista. E quando Lucy riu, mais da masculinidade f tua da expressão  dle do que pr¢priamente da brincadeira, Illidge se sentiu inchado de  satisfaão e de confiana em si mesmo. Aquela aventura mundana lhe ia  saindo tão f cil como jogar boliche ... Sentindo-se inteiramente ... vonta-  de, estendeu as pernas, olhou em t"rno. A elegncia ricamente s¢bria do  aposento impressionou-o desde logo como sendo de perfeito bom-tom.  Aspirou o ar perfumado com satisfaão.  - Que  que h debaixo daquele misterioso pano vermelho, ali? -  perguntou, apontando para a gaiola coberta.  -  um papagaio - respondeu Lucy. - Um curru-paco-papaco! -  corrigiu-se ela, rompendo numa s£bita risada inquietarite e inexplic vel.

  H dores confess veis, sofrimentos de que nos podemos positivamente  orgulhar. A perda dum ente que nos  caro, a partida, o sentimento do  pecado, o mdo da morte - de tudo isso os poetas j falaram com  ,eloq£ncia. Tais dores se impõem ... simpatia do mundo. Mas h tambm  angUtias vergonhosas, não menos cruciantes do que as outras e das  quais, no entanto, o paciente não ousa nem pode falar. A ang£stia do  desejo contrariado, por exemplo. Era essa a ang£stia que Walter carre-  gava consigo pela rua. Era dor, raiva, desapontamenp, vergonha e  desespro combinados. Òle tinha a impressão de que a sua alma estava  em agonia de morte. E, no entanto, a causa era inconfess vel, baixa e

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  mesmo rid¡cula. Suponhamos que um amigo então o encontrasse e lhe  perguntasse por que le tinha um ar tão infeliz.  - Eu estava em col¢quio amoroso com uma mulher quando fui inter-  rompido, primeiro pelos gritos dum papagaio e depois pela chegada duma  visita.  O coment rio a essa confissão seria uma gargalhada enorme de  zombaria. E a sua confissão se converteria numa anedota de sala de  fMair. E, no entanto, Walter não estaria sofrendo mais se tivesse.perdido  a mie...  Vagou durante uma hora pelas ruas, em Regent's Park. A luz se sumia  gradualmente da tarde brumosa e branca: Walter ficou mais calmo. Aqui-  16 rora uma lião, pensava le, um castigo: tinha quebrado a promessa.  Para o seu pr¢prio bem e para o bem de Marjorie - nunca mais. Olhou  O re169io e, vendo que j passava das 7, voltou para casa. Chegou cansa- 

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I# 

do e decididamente arrependido. Marjorie estava costurando; a luz da  lmpada brilhava-lhe no rosto magro e fatigado. Ela twnbm vestia um

  roupão. Era c"r de inalva e horrendo; Walter sempre achara que ela tinha  mau g"sto. O apartamento estava invadido por um cheiro de cozinha.  Walter detestava os cheiros de cozinha, mas nisso residia outra razão pa-  ra ser fiel. Era uma questão de honra e de dever. L porque preferisse  gardnia a couve não era motivo para Marjorie sofrer.  - Vieste tarde - disse ela.  - Havia muita coisa a fazer - explicou Walter. - E vim a p. -  Isto pelo menos era verdade. . . - Como te sentes? -- pousou a mão no  ombro dela e inclinou-se. Deixando a costura, Marjorie lhe passou os  braos em t"rno do pescoo. Que felicidade, pensava ela, t-lo de n"vo!  Possu¡-lo, uma vez mais! Que reconf"rto! Mas no pr¢prio instante em que  o estreitava contra o corpo, Marjorie percebeu que mais uma vez fora  tra¡da. Afastou-se bruscamente do companheiro.

  - Walter, tiveste coragem?  O sangue afluiu ... face do rapaz; mas le tentou continuar a comdia.  - Coragem de qu?  - Tornaste a procurar aquela mulher ...  - Mas de que  que est s falando? - Sabia que era in£til, mas assim  mesmo continuou a fingir.  - Não vale a pena mentir. -- Marjorie se ergueu com tal violncia  que o csto de costura virou, derramando'o conte£do pelo soalho. Atra-  vessou a pea, sem querer ouvir nada. - Vai-te embora! - gritou ela,  quando Walter fez menão de segui-la. O outro encolheu os ombros e  obedeceu. - Tiveste coragem! - continuou ela. -- Vir para casa  recendendo ao perfume dela. - Eram as gardnias, então ... F"ra um  tolo por não haver previsto aquilo. . . - Depois de tudo o que disseste a

  noite passada. Como pudeste fazer isso?  - Mas se tu me deixasses explicar. . . - protestou le num tom de  v¡tima, de v¡tima exasperada.  - Explica por que mentiste - disse ela com amargura. - Explica  por que faltaste ... tua promessa,  A sua c¢lera cheia de desprezo evocou uma c¢lera correspondente em  Walter.  - Quero simplesmente explicar - disse le com uma polidez dura e  perigosa. Como ela era aborrec¡vel com as suas cenas e os seus ci£mes.  Que cacte intoler vel, irritante.

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  - Queres simplesmente cqntinuar a mentir - escarneceu Marjorie.  Outra vez Walter encolheu os ombros.  - Se preferes encarar a questão assim. . fz le polidamente.  - Não passas dum mentiroso reles!  o que tu s. - E, voltando-lhe  as costas, cobriu o rosto com as mãos e comeou a chorar.  Walter não ficou comovido. A vista daqueles ombros que arfavam na- 

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da mais fez senão exasper -lo e aborrec-lo, Olhou para a mulher com  uma c¢lera fria e cansada.  - Vai-te embora! - gritou Marjorie rio meio das l grimas - vai-te  embora! - Não queria que Walter ficasse ali, triunfante. enquanto ela# 

chorava. - Vai -te embora!  - Queres que eu me v de verdade? - perguntou le com a mesma  polidez fria e exasperante.  - Sim, vai, vai.  - Muito bem! - disse Walter, e, abrindo a porta, abalou.  Em Cainden Town tomou um t xi e chegou a Bruton Street exatamente  * tempo de achar Lucy prestes a sair. Ia jantar fora.

  Vais sair comigo - anunciou Walter muito calmamente.  Ai! Ai!  Sim, vais.  Lucy olhou para Walter com curiosidade. Òle lhe retribuiu firmemente  * olhar, sorrindo, com uma estranha expressão de triunfo divertido, de  poder invenc¡vel e obstinado - expressão que ela nunca lhe vira antes no  rosto. 

- Pois bem - disse a rapariga, afinal. E, tocando a campainha para  chamar a criada, ordenou: - Telefona a Lady Sturlett, sim? Dize-lhe que  sinto muito, mas estou com uma tremenda dor de cabea e não posso ir  at a casa dela esta noite. A criada retirou-se. - Bem, e tu te vais  mostrar reconhecido agora?

  - Estou comeando. . . respondeu le.  - Comeando? - Lucy fingiu indignaão. - Gosto dessa tua infer-  nal impertinncia.  - Eu sei que gostas ---retrucou le, rindo. E ela gostava mesmo.  Naquela noite Lucy se tornou amante de Walter. 

Era entre 3 e 4 da tarde. Spandrell mal acabara de sair da cama. Nio  se tinha barbeado ainda; por cima do pijama vestira um roupão de pano  pardo e grosseiro, como um h bito de monge. (A nota mon stica era estu-  dada; le gostava de lembrar a si mesmo os ascetas. Gostava, um pouco  Puerilmente, de representar o papel de anacoreta diab¢lico.) Tinha enchi-  do a chaleira e estava esperando que a gua fervesse sâbre a chama do  g s. Parecia que aquilo estava levando um tempo exageradamente longo.

  Spandrell sentia a b"ca sca e assediada por um gâsto que lembrava os  vapâres de cobre aquecido. O brandy produzia seus efeitos habituais.  - Como o cervo que suspira pelos claros regatos - disse le de si pa-  ra consigo -, assim minh'alma anseia... Sim, e com uma sde de ressa-  ca... Se ao menos a Graa pudesse ser engarrafada como a gua  Perrier. . . 

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 os

 I

Foi at a janela. Alm de um raio de 50 metros, tâdas as coisas tinham  sido abolidas pelo nevoeiro branco. Mas com que insistncia aqule poste  de iluminaão se erguia na frente da casa cont¡gua, ... direita, com. que  importncia! O mundo tinha sido destru¡do e s¢rnente o poste, como No,  fora preservado do cataclismo universal. E le nunca tinha antes dado pe-  1... existncia daquela coisa ali; at aqule momento ela simplesmente não  existira. Spandrell olhou para o poste com uma atenão fixa, sem respi-  rar. Aqule poste-solit rio em meio do nevoeiro ... Não tinha le, Span-  dreli, visto antes algo semelhante? Aquela sensaão esquisita de se achar  em companhia do £nico sobrevivente do Dil£vio parecia-lhe familiar.  Olhando fixamente para o poste, Maurice procurava lembrar-se. Ou,  melhor, fazia um esforo esfalfante para não se lembrar; mantinha a  distncia a sua vontade e os seus pensamentos conscientes, assim como  um policial mantm afastada a multidão em tâmo duma mulher que  desmaiou na rua; mantinha a distncia a sua conscincia, a finn de dar ...  mem¢ria aturdida o espao necess rio para se espichar, para respirar, pa-

  ra voltar ... vida. Olhando firmemente para o poste, Spandrell esperpu,  agoniado e paciente, qual um homem que, sentindo-se a ponto de espirrar,  espera trmulamente o paroxismo previsto; esperou que revivesse a recor-  dao que havia muito tinha morrido. E de s£bito ela brotou, vivamente  despertada, surgida da sua catalepsia, e, com um sentimento de enorme  al¡vio, Spandrell se viu subindo o caminho coberto de neve batida e dura  que levava de Cortina para a garganta de Falzarego. Uma nuvem fria e  branca descera s"bre o vale. Não havia mais montanhas. Os fant sticos  pin culos de coral dos Dolomitos tinham sido suprimidos. Não havia  mais alturas nem profundezas. O mundo tinha apenas 50 passos de largu-  ra - neve branca no chão, nuvem branca em t"rno e no alto. E de  quando em quando, contra a brancura, aparecia um vulto escuro de casa  ou de poste telegr fico, de rvore, homem ou tren¢; prodigiosos em seu

  isolamento e no seu car ter de coisa £nica, cada um dles era como um  sobrevivente solit rio da deitruião geral. A sensaão era sobrenatural,  misteriosa; mas como era sensacionalmente nova, como era estranha-  mente bela! O passeio era uma aventura; Spandrell se sentia emocionado  e uma espcie de ansiedade intensificava a sua felicidade a ponto de le  mal a poder suportar.  - Olha s¢ para aqule chalzinho ... esquerda - gritou le para a  mãe. - Quando subi a £ltima vez não estava ali. Juro que não estava.  Conhecia o caminho perfeitamente; tinha-o subido e descido uma cen-  tena de vzes e nunca vira o chalzinho. E agora a casinhola se erguia  quase ameaadora, como a £nica coisa escura e definida dentro dum vago  mundo de brancura.  - Sim, eu nunca o vi antes - disse a mãe. - O que mostra apenas

  ajuntou ela com uma nota de ternura que sempre lhe vinha ... voz quan-  do falava fio defunto marido - como tinha razão o teu pai. 'Vesconfiai 

de todos os testemunhos", costumava le dizer, "mesmo dos vossos  pr¢prios."  Spandrell tomou-lhe da mão e ambos se puseram a caminhar juntos em  silncio, puxando os tren¢s.#

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Maurice afastou-se da janela. A chaleira estava fervendo. Derramou a  gua no bule, Rez ch , encheu uma x¡cara e bebeu. A sde, bastante  simb¢licamente, permaneceu insatisfeita. Spandrell continuou a beber em  pequenos goles, pensativo, recordando e analisando aquelas felicidades  completamente incr¡veis da sua meninice. Invernos entre os Dolomitos,  primaveras na Toscana, em Provena ou na Baviera; o verão ... beira do  Mediterrneo ou na Sab¢ia. Depois da morte do pai e antes de ir para r,  escola, les tinham vivido quase continuamente no estrangeiro -- era  mais barato. E quase t"das as suas frias escolares era passadas fora da  Inglaterra. Dos sete aos quinze anos le se locomovera dum pqra outro  ponto pitoresco da Europa, apreciando a beleza - e sinceramente, note-  se bem -, como um precoce Childe Harold. Depois disso, a Inglaterra  pareceu-lhe um pouco sem graa. Spandrell lembrou-se de outro dia de  inverno. Daquela vez não havia bruma: era um dia brilhante; o sol ardia  num cu sem nuvens; os precip¡cios de coral dos Dolomitos brilhavam -  laranja, rosa e branco - acima das florestas e dos declives cobertos de  neve. Òle e a mãe desciam de esqui atravs dos bosques de larios. Raiada  de sombras de rvores, a neve sob os ps dies era como um imenso tigre  branco e azul. A luz do sol fulgia alaranjada entre os galhos sem fâlhas;  era verde-mar entre as barbas pendentes de musgo. A neve pulverizada  chiava sob os esquis, o ar estava ao mesmo tempo m"rno e vivo. E, quan-

  do Spandrell emergiu dos bosques, os grandes declives se estendiam dian  te dle, semelhantes aos contornos de um corpo maravilhoso, e a neve vir-  gem era lisa como uma epiderme, delicadamente granulada sob o sol  baixo da tarde e tâda cintilante de diamantes e lantejoulas. Òle tinha  vindo na frente. · beira do bosque fez alto para esperar a mãe. Olhando  para tr s, viu-a aproximar-se atravs das rvores. Uma silhueta alta e for-  te, aindajovem e gil, o rosto m"o pregueado num sorriso. A Sra. Span-  drell desceu na direão do filho ... Era o mais lindo e ao mesmo tempo  o mais simples, o mais reconfortante e familiar dos sres.  - Então?---disse ela, rindo, ao deter-se diante do rapaz.  - Então? - Òle olhou para a mãe e depois para a neve, para a som-  bra dEs rvores, para os grandes rochedos nus e para o cu azul; final-  mente voltou os olhos de n"vo para a mãe. E de s£bito se sentiu invadido

  por uma felicidade intensa e inexplic vel.  "Nunca tornarei a ser tão feliz como agora", disse de si para consigo  mesmo, quando ambos de n"vo se puseram a caminho. "Nurica mais,  mesmo que eu viva cem anos.'~ Çquele tempo tinha apenas quinze anos;  mas fora aquilo justamente o que pensara e sentira.  E as suas palavras foram profticas. F"ra aquela a sua £ltima flici~ 

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r:,# 

dade. Depois ... Não, não. Preferia não pensar no depois. Nem no  presente. Encheu de n"vo a x¡cara de ch .  O toque de uma campainha sobressaltou-o. Spandrell caminhou para a  porta do apartamento e abriu-a. Era a mãe.  - Tu? - Então lembrou-se s£bitamente de que Lucy lhe dissera  alguma coisa ...quele respeito.  - Não recebeste o meu recado? - perguntou a Sra. Knoyle, ansiosa.  - Sim. Mas tinha-o esquecido completamente.  - Julguei que precisasses. . . - principiou ela. Temia ser importuna

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:  o rosto de Maurice tinha uma expressão nada acolhedora.  As comissuras de seus l bios se encresparam irânicamente.  - Sim, preciso. - Vivia num estado cr"nico de falta de dinheiro.  Passaram para outro quarto. Num relance a Sra. Knoyle notou que as  janelas estavam embaciadas de sujeira. Em cima da prateleira e da cha-  min havia uma grossa camada de p¢. Teias de aranha negras de fuligem  pendiam do teto. Ela havia tentado conseguir que Maurice lhe permitisse  mandar uma mulher para fazer a limpeza trs vzes por semana. Mas le  respondera: "Nada dessas tuas visitas sanit rias! Prefiro chafurdar ... A  sujeira  o meu elemento natural. Alm disso eu não tenho nenhuma  posião militar de destaque pela qual deva zelar. . . " Rira silenciosa-  mente, mostrando os grandes dentes fortes. Aquilo era para ela... A Sra.  Knoyle nunca ousara repetir o oferecimento. Mas o quarto necessitava  verdadeiramente duma limpeza.  - Queres ch ? - perguntou le. - Est pronto. Acabo de fazer a  primeira refeião da manhã - acrescentou, chamando propositadamente  a atenão da mãe para as irregularidades de seu modo de vida.  Ela recusou, sem arriscar nenhum coment rio sâbre a hora desusada  da colaão. Spandrell ficou um pouco desapontado por não ter conse-  guido o que pretendia. Houve um longo silncio.  De quando em quando a Sra. Knoyle lanava para o filho um olhar  quase furtivo. Spandrell estava olhando fixamente para a lareira vazia. O  rapaz tinha o ar envelhecido, pensava ela, e um aspecto terr¡vel de doena

  e abandono. Tentou reconhecer nle a criana, o rapagão colegial que le  fora naqueles tempos long¡nquos, quando ambos eram felizes juntos e  s¢s ... Lembrou-se da tristeza que Maurice sentia quando ela não trajava  como le achava que devia trajar, quando não estava elegante, quando  não brilhava com todo o seu brilho. Maurice sentia pela mãe a mesma  afeião ciumenta que esta tinha por le. Mas a responsabilidade de sua  educaão era um fardo pesadb para ela. O futuro a tinha sempre apavora-  do; a Sra. Spandrell temera sempre tornat uma decisão; não tinha  confiana em suas faculdades. De resto, por morte do marido não lhe  ficaram senão recursos modestos; ela não tinha cabea para neg¢cios,  nenhum talento para dirigir uma casa. Como havia de conseguir recursos 

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  para mandar o filho para a universidade, como inici -lo na vida? Estas  perguntas a atormentavam. Passava as noites em claro, a perguntar-se a  si mesma que devia fazer. A vida a aterrorizava. A Sra. Spandrell possu¡a  uma capacidade infantil para a felicidade, mas era tambm medrosa e  inepta como uma criana. Quando a existncia se mostrava como um# 

feriado, ningum podia ser mais arrebatadamente feliz do que ela; mas,  quando havia projetos a fazer, decisões a tomar, a pobre criatura ficava  absolutamente perdida e cheia de mdo. E, para c£mulo de males, depois

  que Maurice foi para a escola ela se sentiu s¢. O rapaz ficava com a mãe  oenas durante as frias. Os nove meses, dos doze, ela os passava s¢zi-  nha, sem ningum a quem pudesse dar o seu amor, ningum a não ser o  seu velho podengo. Por fini at mesmo ste veio a faltar-lhe - caiu doen-  te, o pobre animal, e foi preciso pâr-lhe fim aos tormentos. Foi pouco  depois da morte do velho Fritz que ela conheceu o então Major Knoyle.  - Dizes que trouxeste o dinheiro? - perguntou Maurice, quebrando  o longo silncio.  A Sra. Knoyle corou:  - Sim, est aqui. - Abriu a b"lsa. Chegara o momento de falar. Era

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  seu dever admoest -lo e o mao de clulas lhe dava sse direito, sse  poder. Mas o dever era odioso e ela não tinha desejos de usar daquela  fora. Ergueu os olhos e fitou-os no filho com um ar implorante. - Mau-  rice - suplicou ela - por que não podes ser razo vel? Que loucura, que  insensatez !  Spandrell alou as sobrancelhas.  - Que  que  loucura? - inquiriu le, fingindo não saber de que se  tratava.  Embaraada por ser daquela maneira compelida a especificar as suas  censuras vagas, a Sra. Knoyle corou.  - Tu sabes o que eu quero dizer. Òste teu modo de vida.  mau,   est£pido. Que dissipaão, que suic¡dio! Alm disso, não s feliz; eu bem  o vejo.  - Não tenho então nem mesmo o direito de ser infeliz, se isso me  agrada? - perguntou le ir"nicamente.  - Mas queres tambm fazer-me infeliz? - perguntou ela. - Porque,  Se queres, tu o consegues, Maurice, tu o consegues. Fazes-me terrivel-  mente infeliz. - Vieram-lhe l grimas aos olhos. Procurou um leno na  b"lsa.  Spafidrel! ergueu-se de sua cadeira e comeou a caminhar no quarto  dum lado para outro.  - Não pensaste muito na minha felicidade, no passado ...  A mãe não lhe respondeu, mas continuou a chorar em silncio.  - Quando casaste com aqule homem - continuou le - pensaste

  acaso na minha felicidade? A

- Tu sabes que eu julguei que isso seria para o teu bem - respondeu  ela com voz entrecortada. J tinha explicado aquilornuitas vzes; não po-  dia recomear agora. - Tu sabes - repetiu.  - Eu s¢ sabia o que senti e disse naquele tempo - respondeu Mauri-  ce. - Tu não me escutaste, e agora dizes que me quiseste fazer feliz ...  - Mas foste tão pouco razo vel! - protestou a Sra. Knoyle. - Se

  me tivesses apresentado razões ...  - Razões - repetiu Spandrell vagarosamente. - Esperavas sincera-  mente que um menino de quinze anos dissesse ... sua mãe as razões pelas  quais não queria que ela partilhasse a sua cama com um estranho?  Spandrell pensou naquele livro que havia circulado sub-repticiamente  entre os rapazes de seu dormit¢rio, no colgio. Enojado e cheio de vergo-  nha, mas irresistivelmente fascinado, le o tinha lido ... noite, ... luz de uma  lmpada eltrica de bâlso, debaixo das cobertas. Chamava-se Um Inter-  nato de Meninas em Paris - t¡tulo bastante inocente; mas o conte£do era  pornografia pura. As proezas sexuais dos militares eram exaltadas em  estilo pind rico. Um pouco Mais tarde a mãe lhe escreve, dizendo que ia  casar com o Major Knoyle ...

  -  in£til, mamãe - disse le em voz alta. - Não seria melhor que  fal ssemos de outras coisas?  A Sra. KnoYle respirou profundamente e, com ar resoluto, pela £ltima  vez, enxugou os olhos e tornou a pâr o leno na b"lsa.  - Desculpa -- disse ela. - Foi uma tolice minha. Talvez seja  melhor que eu me retire.  Secretamente ela esperava que o rapaz protestasse, que lhe pedisse para  ficar. Mas Spandrell não disse palavra.  - Aqui est o dinheiro. . . - acrescentou ela.

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  Spandrell tomou as cdulas dobradas e atufou-as no b"lso do roupão.  - Lamento ter sido obrigado a pedir-lhe isto - disse. - Eu estava  num buraco ... Farei o poss¡vel para não tornar a cair nle.  Olhou para a mãe durante um momento, a sorrir, e de s£bito, atravs  da m scara gasta, ela julgou v~lo tal qual le tinha sido na meninice. A  ternura, como uma tepidez suave, estendeu-se por todo o corpo dela -  suave, mas irresist¡vel. Imposs¡vel de conter ... A Sra. Knoyle pousou as  mãos nos ombros do filho.  - Adeus, meu menino querido - disse. Spandrell reconheceu na voz  da mãe aquela nota que ela deixava transparecer quando lhe falava do pai  morto. A Sra. Knoyle inclinou-se para beijar Maurice. Voltando o rosto,  ele suportou passivamente que os l bios dela lhe tocassem a face. 

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CAPITULO XIV 

A Srta. Fulkes Rez girar o globo terrestre at que o tringulo carmesim  da India lhes ficasse bem na frente dos olhos.  - Aqui  Bombaim - disse ela, apontando com o l pis. - Foi aqui  e papai e mamae tomaram o navio. Bombaim  uma grande cidade da  Ce  dia - prosseguiu did...ticamente. - Tudo isto  a India.  - Por que  que a india  encarnada? - perguntou o pequeno Phil.

Eu j te disse. V se te lembras ...  - Porque  inglsa? - Phil lembrava-se, naturalmente; mas. a-expli-  caão lhe parecera insuficiente. Esperava uma melhor daquela vez.  - A¡ est ... Tu bem vs que te podes lembrar quando fazes empe-  nho - disse a Srta. Fulkes, anotando ste pequeno triunfo.  - Mas por que  que as coisas inglsas são encarnadas?  - Porque o encarnado  a câr da Inglaterra. Olha, aqui est a peque-  na Inglaterra. - Fz girar o globo. - Encarnada tambm.  - A gente mora na Inglaterra, não mora? - Phil olhou pela janela.

  O relvado com a sua wellingtânia, os olmos podados, pareciam olhar pa-  ra le tambm, numa retribuião.  - Sim, moramos mais ou menos aqui. . . - E a Srta. Fulkes fluicou  a ponta do l pis no ventre da ilha vermelha.  - Mas  verde onde n¢s moramos; não  encarnado.  A Srta. Fulkes tentou explicar, como tinha feito muitas vzes, o que era  precisamente um mapa.  No jardim a Sra. Bidiake caminhava entre as suas ffires, arrancando  as ervas daninhas e meditando. A sua bengala tinha na extremidade um  pequeno escardilho dentado; assim ela podia fazer o seu trabalho sem  precisar inclinar-se. As ervas m s nos canteiros das fl"res eram jovens e  fr geis; cediam sem luta sob a pressão do instrumento. Mas os dentes-de-

  leão e a tanchagem eram inimigos mais formid veis. As ra¡zes dos  primeiros semelhavam longas serpentes brancas adelgaadas. A tancha-  gem, quando a Sra. Bidlake tentava arranc -la, aferrava-se desesperada-  mente ... terra.  Era a-estaão das tulipas. A "Duque van Thol" e a "Kaisers Kroon",  a "Prosrpina" e a "Thomas Moore" achavam-se em posião de sentido  em todos os canteiros, lustrosas sob a luz. Vibravam tomos no sol e o  seu tremor enchia todo o espao. Os olhos sentiam aquelas pulsaões sob  a forma de luz; os tomos de tulipa absorviam ou refletiam os movimen-  tos harmoniosos, criando câres pelo amor das quais os burgueses da

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  Haarlem do sculo XVII se desfaziam prazerosamente de seus florins  entesourados. Tulipas vermelhas e amarelas, brancas e mosqueadas, lisas 

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1# 

ou felpudas - a Sra. Bidiake olhava para elas, feliz. Eram como aqules  jovens alegres e brilhantes, pensou ela, dos frescos de Pinturicchio, em  Siena. Deteve-se um instante para poder fechar os olhos e concentrar  melhor o pensamento em Pinturicchio. A Sra. Bidiake s¢ podia pensar  duma maneira verdadeiramente sria quando tinha os olhos fechados. A  cabea um pouco atirada para tr s, face para o cu, as p lpebras duma  brancura de cra fechadas ... luz, ali ficou recordando, pensando confusa-  mente. Pinturicchio, Siena, a enorme catedral solene. Tâda a Toscana da  Idade Mdia desfilou diante dela, numa procissão confusa e pomposa...  Ela se tinha alimentado de Ruskin. Watts pintara-lhe o retrato ao tempo  de menina. Rebelando-se contra os pr-rafaelitas, a Sra. Bidlake se pusera  a vibrar pelos impressionistas, numa admiraão avivada, a princ¡pio, por  um sentimento de sacrilgio.  F"ra por amar a arte que ela casara com John Bidlake. Como gostava

  das suas pinturas, imaginara, quando o autor das Viradoras de Feno lhe  fizera a c"rte, que adorava o homem. O pintor era vinte anos mais velho  do que ela; sua reputaão como marido era m ; a fam¡lia dela opunha-se  vigorosarnen¡`ao casamento. Isso não lhe deu cuidado. John Bidlake era  a personificaão da Arte. Sua funão era sagrada e, graas a essa funão,  le correspondia ao idealismo vago mas ardente da m"a. As razões de  John Bidlake para desejar casar-se mais uma vez eram prosaicas. Via-  jando pela Provena, tinha contra¡do uma febre tifiSide. 'Eis o que acon-  tece a quem bebe gua", costumava le dizer depois. "Quem me dera ter  ficado fiel ao borgonha e ao conhaque!") Depois de um ms de hospital  em Avinhão, voltou para a Inglaterra, convalescente, magro e camba-  leante. Trs semanas mais tarde a influeriza, seguida de pneumonia, leva-  ram-no de n"vo ...s portas da morte. Bidlake se restabeleceu lentamente.

O  doutor o felicitou por ter sarado por completo.  - O senhor chama a isto sarar? - resmungou John Bidlake. -- Te-  nho a impressão de que trs quartos do meu ser estão mortos e enterrados.  Habituado a sentir-se bem, ficou aterrorizado pela doena. Imaginou-  se a viver miserivelinente, como um inv lido solit rio. O casamento lhe  seria um al¡vio. Decidiu casar-se. A m"a devia ser bonita - isto nem  era preciso dizer ... Mas sriatambne nada vol£vel: dedicada e caseira.  Em Janet Paston le achou tudo quanto procurava. A jovem tinha um  rosto de santa; era sria quase em excesso-, sua adoraão por Bidlake era  lisonjeira.  Casaram, e, se John Bidiake tivesse ficado no estado de invalidez aque

  julgara estar condenado, o casamento teria podido ser feliz. A devoão de  Janet haveria compensado a sua incompetncia como enfermeira; a fra-  queza de Bidlake t-la-ia tornado indispens vel ... sua felicidade. Mas a  saude retornou. Seis meses depois do casamento John Bidlake voltava a  ser inteiramente o que era antes. E o antigo "eu" comeou a portar-se da  maneira antiga... A Sra. Bidlake achou ref£gio contra a infelicidade nu-  ma intermin vel meditaão imaginativa, a qual mesmo os seus filhos  dificilmente conseguiam interromper.  Aquilo durava havia um quarto de sculo. Ela se achava ali no meio 

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das tulipas - uma dama alta e imponente de cinqenta anos, t"da vesti-# 

da de branco, com um vu tambm branco a cair-lhe do chapu, os olhos  fechados, pensando em Pinturicchio e na Idade Mdia, no tempo que pas-  sa e passa, e em Deus que est im¢vel ... ribanceira eterna.  Um latido agudo precipitou-a das alturas da sua eternidade. Tornou a  abrir os olhos, com relutncia, e olhou em târno de si. Par¢dia min£scula  e sedosa dum monstro do Extremo Oriente, o seu pequeno pequins ladra-  va para o gato da cozinha. Saltando dum lado para outro em t"nio da  circunferncia dum c¡rculo. cujo raio era proporcional ao terror que lhe  inspirava o gato mosqueado que bufava furioso e arqueado -- le ladrava  histricam ente. A sua cauda era como uma pluma ao vento, seus olhos  saltavam do focinho negro.  - T'ang! - gritou a Sra. Bidlake. - T'ang! - Todos os seus pequi-  neses, durante os £ltimos trinta anos, tinham tido nomes din sticos.  'rang Primeiro havia florescido antes do nascimento de seus filhos. F¢ra  com T'ang Segundo que ela e Walter tinham visitado o moribundo  Wetherington. O gato da cozinha bufava agora para T'ang Terceiro. Nos  intervalos, pequenos Mings e Sungs tinham vivido e ca¡do em decrepitude

  e, seguindo o caminho de todos os animaizinhos de estimaão, haviam  acabado seus dias na cmara de asfixia. - Aqui, T'ang! - Mesmo  naquela emergncia a Sra. Bidlake tinha o cuidado de pronunciar o ap¢s-  trofo. Ou antes, não punha nenhum cuidado ao pronunci -lo; pronuncia-  va-o por instinto de cultura porque, sendo o que a natureza e a educaão  tinham feito dela, não podia simplesmente deixar de pronunciar a palavra  sem o ap¢strofo, mesmo ante a ameaa de um sarilho.  O cachorrinho obedeceu afinal. O gato cessou de bufar, o plo alisou-  se-lhe no dorso e o bichano se foi, majestosamente. A Sra. Bidlake conti-  nuou a sua taref*a de jardinagem e a sua vaga e inf ind vel meditaão por  entre as fl"res. Deus, Pinturicchio, dentes-de-leão, eternidade, o cu, as  nuvens, os primitivos venezianos, dentes-de-leão ...  L em cima, na sala de estudos, a lião tinha terminado. Pelo menos

  terminara no que dizia respeito ao pequeno Phil, porque le agora estava  fazendo aquilo que mais gostava no mundo: desenhar. A Srta. Fulkes,   verdade, dava ao processo o nome de "Arte" ou de "Educaão da Imagi-  naão", e dedicava-lhe meia hora t"das as manhãs, das 12 ...s 12 e meia.  Mas para o pequeno Phil aquilo era apenas um divertimento. Estava sen-  tado, encurvado sâbre o seu papel, com a ponta da l¡ngua entre os dentes,  11  o rosto concentrado e srio; desenhando, desenhando com uma espcie de  violncia inspirada. Manejando um l pis que parecia desproporciona-  damente grande, a sua mãozinha morena trabalhava infatig...velmente. As  linhas da composião infantil, ao mesmo tempo r¡gidas e ondulantes, iam-  se traando s"bre o papel.  A Srta. Fulkes estava sentada ao p da janela olhando para fora, para

  o jardim cheio de sol, mas sem v-lo conscientemente. O que ela via se  achava atr s de seus olhos, num universo de fantasia. Ela se via a si mes-  ma - se via a si mesma naquele encantador vestido de Lanvin que fâra  reproduzido o ms passado no Vogue, com prolas, danando no Ciro's 

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  I 

- o qual se parecia curiosamente (porque ela nunca visitara o Ciro's)  com o Hammersmith Palais de Danse, onde j estivera: "Como ela   linda!", dizia t"da a gente. Ela caminhava com um andar bamboleante,  como aquela atriz que tinha visto no London Pavilion - como era  mesmo o nome dela? A Srta. Fulkes estendeu a mão branca; foi o jovem,  Lorde Wonersh quem a beijou. Lorde Wonersh, que se parecia com Shel-  ley, que vivia,como Byron, que possu¡a metade de Oxford Street e que  viera at Gattenden, no £ltimo fevereiro, com o velho Sr. Bidlake, e que  lhe dirigira a palavra talvez em duas ocasiões. E depois, s£bitamente, a  Srta. Fulkes se viu passeando a cavalo em Hyde Park. E dois segundos  mais tarde se achava num iate, no Mediterrneo. E depois, num  autom¢vel. Lorde Wonersh tinha acabado de sentar-se ao seu lado  quando o ru¡do dos latidos agudos de T'ang a trouxeram num sobressalto  a realidade consciente do relvado, das tulipas brilhantes, da wellingtânia  e, por outro lado, da sala de estudos. A Srta. Fulkes sentiu-se criminosa,  tinha negligenciado o menino que estava sob seus cuidados.  - Então, Phil - perguntou ela, voltando-se vivamente para o aluno  que  que est s desenhando?  - A Srta. Stokes e Albert, puxando a relvadora de tosquiar.  - Tosquiadora de relva corrigiu a Srta. Fulkcs.

  - Tosquiadora de relva repetiu Phil obedientemente.  Tu nunca consegues dizer direito as palavras compostas. Relva-  dora de tosquiar, rara-paios, porta~capel --  uma espcie de defeito men-  tal, como o de escrever ...s avessas, parece-me. - A Srta. Fulkes tinha fei-  to um curso de psicologia educativa. - Tu deves, deves mesmo tentar  corrigi-lo, Phil - acrescentou ela com seriedade. Depois de um  abandono tão longo e flagrante de seus deveres (no Ciro's, a cavalo, na  limusina com Lorde Wonersh), a Srta. Fulkes sentia que lhe cumpria  mostrar-se particularmente sol¡cita, cientificamente sol¡cita; era uma  m"a muito conscienciosa. - Vais tentar9 - insistiu.  - Vou, Srta. Fulkes - respondeu o pequeno. Não tinha a menor  idia do que a profess"ra lhe pedira que fizesse. Mas se respondesse "sim"

  ela ficaria tranqila. Phil estava absorvido num ponto particularmente  dificil de seu desenho.  A Srta. Fulkes suspirou e de nâvo olhou para fora atravs da janela.  Desta vez ela percebeu conscientemente o que seus olhos viam. A Sra.  Bidlake passeava por entre as tulipas, vaporosamente vestida de branco,  com um vu branco a pender-lhe do chapu - parecia uma espcie de  espectro pr-rafaclita. De quando em quando detinha-se e olhava para o  cu. O velho Sr. Stokes, o jardineiro, passou carregando um ancinho; as  falripas de sua barba branca flutuavam docemente ... brisa. O rel¢gio da  aldeia bateu meia hora. O jardim, as rvores, os campos, as colinas  cobertas de bosques na distncia eram sempre os mesmos. A Srta. Fulkes  sentiu-se, de repente, tão desesperanadamente triste que poderia quase  ter desandado a chorar.

  As relvadoras de tosquiar, quero dizer, as tosquiadoras de relva 192

 # 

tm rodas? - perguntou o pequeno Phil, erguendo os olhos com uma ru-  ga de esforo e perplexidade a vincar-lhe a testa. - Não me lembro ...

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  - Tm. Não ... deixa ver. . . - A Srta. Fulkes tambm franziu a  testa. - Não. Tm rolos.  - Rolos! - gritou Phil. -  isso mesmo! - E atacou o desenho de  p"vo, com f£ria.  Sempre a mesma coisa. Parecia não haver sa¡da, nenhum prospecto de  liberdade. "Se eu tivesse mil libras", pensou a Srta. Fulkes, "mil libras.  Mil libras." As palavras eram m gicas. "Mil libras."  - Pronto! - exclamou Phil. - Venha ver! -- Estendeu o papel. A  Srta. Fulkes ergu'eu-se e atravessou a sala, rumo da mesa.  - Que desenho bonito! - disse ela.  - Aqui são os pedacinhos de relva que estão voando - explicou  Phil, apontando para uma nuvem de pontos e de pequenos traos que apa-  recia no meio de seu desenho. Estava particularmente ufano da sua relva.  - Estou vendo. . . -- disse a Srta. Fulkes.  - E olhe como Albert est puxando com fâra! - Era verdade;  Albert estava puxando frenticamente. E o velho Sr. Stokes, reconhec¡vel  pelos quatro traos paralelos de l pis que lhe sa¡am do queixo, puxava  tio enrgicamente como Albert, na outra extremidade da m quina.  Para uma criana de sua idade, o pequeno Phil tinha um "lho observa-  dor e um estranho talento para reproduzir s¢bre o papel o que via - não  realisticamente,  claro, mas sim por meio de s¡mbolos expressivos.  Albert e o Sr. Stokes, a despeito da incerteza de suas silhuetas garatuja-

  das, estavam violentamente vivos.  - A perna esquerda de Albert est engraada, não ? - disse a Srta.  Fulkes. - Um tanto comprida, fina e. . . -- Conteve-se, lembrando-se  do que dissera o velho Sr. Bidlake. "Sob pretexto nenhum se deve ensinar  o pequeno a desenhar, no sentido que se d ... palavra nas escolas de arte.  Sob pretexto nenhum. Não quero que o estraguem."  Phil arrebatou o papel da mão da Srta. Fulkes.  - Não  verdade! -- exclamou colricamente. O seu orgulho f"ra  ferido. le odiava a cr¡tica, recusava mesmo reconhecer-se em rro.  - Talvez não seja, mesmo. . . -- apressou~se a ma a abrand -lo.  Talvez eu me tenha enganado. - Phil sorriu de n"vo. "Por que dia-  bo" , pensou ela, "não se deve dizer a uma criana que ela desenhou uma

  perna incrivelmente longa, fina e tremida? Não compreendo. . . " Toda-  via, o velho Sr. Bidlake devia saber. Um homem da posião dle, com  aqUela reputaão de grande pintor - ela tinha ouvido chamarem-lhe  muitas vzes o grande pintor, lera-o em artigos de jornais, mesmo em  livros. A Srta. Fulkes tinha um profundo respeito pelos Grandes.  Shakespeare, Milton, Michelangelo ... Sim, o Sr. Bidlake, o Grande John  Bidiake, devia saber o que dizia. Ela tinha feito mal em falar da perna  esquerda. 

193# 

- J passa de meia hora depois do meio-dia - continuou a Srta. Ful-  kes com uma voz viva e decidida. -  hora de deitar. - O pequeno Phil  sempre ficava deitado meia hora, antes do lanche.  - Não! - Phil sacudiu a cabea, exibiu uma carranca feroz e fez um  gesto furioso, com os punhos cerrados.  - Sim - disse a Srta. Fulkes calmamente. - E não faas essas care-  tas tâlas. - Sabia por experincia que o pequeno não estava realmente  zangado; estava apenas fazendo uma demonstraão, para afirmar a sua  personalidade e na vaga esperana, talvez, de intimidar o advers rio, da

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  mesma maneira que os soldados chineses - dizem - põem m scaras de  dem"nio e emitem rugidos terr¡veis quando se aproximam do ininfigo, na  esperana de inspirar-lhes terror.  - Mas por qu? - O tom de voz de Phil eraj muito mais calmo.  - Porque deves.  O pequeno levantou-se obedientemente. Quando a m scara e os urros  não conseguem produzir efeito, o soldado chins, se  homem sensato e se  não tem nenhum desejo de sair ferido, rende-se ...  - Vou puxar as cortinas para ti - disse a Srta. Fulkes.  Caminharam juntos ao longo do corredor que levava ao quarto de Phil.  O pequeno tirou os sapatos e deitou-se. A Srta. Fulkes puxou as pregas de  cretone c"r de laranja ao longo das janelas.  - Escuro demais, não! - pediu Phil, vigiando-lhe os movimentos em  meio do crep£sculo ricamente colorido.  - Tu descansas melhor quando est escuro.  - Mas eu tenho mdo.  - Qual! Tu não tens nem um pouquinho de mdo. Alm disso, não  est completamente escuro. - A Srta. Fulkes caminhou para a porta.  - Srta. Fulkes! - Ela não atendeu. - Srta. Fulkes!  Na soleira da porta a Srta. Fulkes se voltou.  - Se continuares a gritar - disse ela severamente -, eu vou ficar  muito zangada. Compreendes? - Deu meia volta e se foi, fechando a  porta atr s de si.  - Srta. Fulkes! - continuou o menino a chamar, mas baixinho, num

  murm£rio. - Srta. Fulkes! Srta. Fulkes! - Era claro que ela não o devia  ouvir; porque então ficaria zangada de verdade. Ao mesmo tempo Phil  não queria obedecer mansamente, sem protesto. Sussurando o nome da  goverrianta, rebelava-se, afirmava a sua personalidade, mas sem correr  perigo algum.  Sentada no seu pr¢prio quarto, a Srta. Fulkes lia - para cultivar o  esp¡rito. O livro era A Riqueza das Naões. Adam Smith, sabia ela, era  Grande. O seu livro era um dos que se deviam ler. Continha o que se ti-  nha pensado ou dito de melhor. A fam¡lia da Srta. Fulkes era pobre, mas  cultivada.  preciso que amemos o que h de mais alto, quando le se nos  depara. Mas quando o que h de mais alto toma a forma de um cap¡tulo  que comea: "Corno  a faculdade da troca que d lugar ... divisão do 

194 trabalho, assim a extensão dessa divisão deve necess...riamente ser l¡mi-

  tada pela extensão daquela faculdade, ou, em outras palavras, pela exten-  são do mercado" - então  dificil, na verdade, am -lo tão ardentemente# 

como devramos. "Quando o mercado  muito pequeno, ningum encon-  tra proveito em se dedicar inteiramente a uma £nica ocupaão, por causa  da falta de oportunidades para trocar todo o excesso do produto de seu  trabalho, sâbre o pr¢prio consumo, por tais e tais partes de produto do

  trabalho de outros homens que lhe convenha adquirir."  A Srta. Fulkes leu a frase integralmente; mas antes de chegar~lhe ao  fim j tinha esquecido de que tratava o princ¡pio. Comeou de n"vo:  ... por causa da falta de oportunidades para trocar todo o excesso  . . " 'Eu podia tirar as mangas de meu vestido marrom", pensou ela,  "porque foi s¢ debaixo dos braos que le comeou a rasgar; posso us -lo  s¢ como saia, com um pul"ver.") ... do produto de seu trabalho s"bre o  pr¢prio consumo por tais e tais partes ... ("Talvez um pul"ver laranja.")  Fz uma terceira tentativa, lendo as palavras em voz alta. - "Quando o  mercado  muito pequeno. . . " - Uma visão do mercado de gado de

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  Oxford flutuou-lhe diante dos olhos interiores; era um mercado muito  grande. -". . . ningum encontra proveito em se decidir. . . "- De que  se tratava? A Srta. Fulkes s¢bitamente revoltou-se contra o seu pr¢prib  excesso de conscincia. Odiava "o que havia de mais alto", quando ste  se lhe deparava. Erguendo-se, rep"s na prateleira A Riqueza das Naões.  Era uma fileira de livros muito "elevados"; ela lhes chamava "meus  tesouros". Wordsworth, Longfellow e Tennyson, encadernados em couro  rolo; com os cantos arredondados e com os seus t¡tulos em caracteres  g¢ticos, pareciam outras tantas B¡blias. Sartor Resartus e tambm os  Ensaios de Emerson. Marco Aurlio, numa dessas pequenas ediões  art¡sticas de couro flex¡vel que se oferecem, pelo Natal, e em desespro de  causa, ...s pessoas a quem não se acha nada mais apropriado para dar. A  Hist¢ria de Macaulay, Thomas ... Kempis, a Sra. Browning.  A Srta. Fulkes não escolheu nenhum dles. P"s a mão atr s daqueles  volumes que continham o que se tinha pensado ou dito de melhor e reti-  rou de seu esconderijo um exemplar de O Mistrio das Esmeraldas dos  Castlemaine. Uma fita marcava o lugar em que terminara a £ltima leitu-  ra. A Srta. Fulkes abriu o livro e leu: 

Lady Kitty acendeu a luz e entrou. Um grito de horrorpartiu de  seus l bios, uma fraqueza s£bita quase a dominou. No meio do  quartojazia o corpo de um homem vestido impec...velmente em tra-  je de noite. O rosto estava quase irreconhecivelmente mutilado; ha-  via um talho vermelho no peito da camisa branca. O rico tapte

  oriental estava sombriamente empapado de sangue... A Srta. Fulkes continuou a ler, com sofreguidão. O atroar do gongo f-

 195

Ia sair em sobressalto do mundo das esmeraldas e dos assass¡nios.  Ergueu-se num pincho.

  "Eu devia ter cuidado da hora", pensou, cGm um sentimento de culpa-  bilidade. "Vamos chegar tarde." Tornando a colocar O Mistrio das  Esmeraldas dos Castlemaine no seu lugar, bem atr s Xo que se tinha pen-  sado e dito de melhor, dirigiu-se apressadamente rumo do quarto de dor-  mir do menino. Era preciso ainda lavar e pentear o pequeno Phil. 

Não havia brisa nenhuma, exceto o vento produzido pela pr¢pria velo-  cidade do navio; e sse era como um bafo que sa¡a da sala das m quinas.  Estendidos em suas cadeiras, Philip e Elinor observavam o decrescimento  gradual, contra o cu, de uma ilha denteada de rocha nua. Do convs  superior vinha o barulho das pessoas que jogavam shujfleboard*. Cami-  nhando por princ¡pio ou para ganhar apetite, os companheiros de viagem  passavam e repassavam corri a regularidade previs¡vel dos cometas.

  - A maneira como essa gente faz exerc¡cio! - queixou-se Elinor  num tom que tra¡a positivamente ressentimento; olhar para aqule vaivm  dava-lhe calor. - At no mar Vermelho ...  - Isso explica o Imprio Britnico - disse o marido.  Houve um silncio. Queimados de sol a ponto de parecerem morenos  ou escarlates, rapazes que gozavam frias passavam rindo, numa  proporão de quatro para cada mâa. Veteranos do Oriente, dessecado , s  pelo sol e como que conservados em caril, passeavam dum lado para  outro, tendo nos l bios palavras acrimoniosas referentes ...s Reformas e  ao custo da vida na ¡ndia. Duas mission rias passavam maciamente, num

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  silncio raras vzes interrompido. Os globe-trotters franceses, para reagir  contra a atmosfera opressivamente imperial, falavam em voz muito alta.  Os estudantes indianos davam-se palmadas nas costas uns aos outros, co-  mo faziam os comparsas das peas teatrais do tempo dA Tia de Carlitos;  a g¡ria que falavam teria parecido fora de moda at numa escola prim ria.  O tempo passava; a ilha desapareceu; o ar ficou, se poss¡vel, mais  quente.  - Ando aborrecida por causa de Walter - disse Elinor, que tinha  estado a ruminar os conte£dos da £ltima remessa de cartas que recebera  pouco antes de deixar Bombaim.  ~-  um idiota -- respondeu Philip. - Depois de cometer uma asnei-  ra com aquela fernea do Carling, devia ter tido o bom senso de não  comear outra com Lucy.  - Est claro que devia - disse Elinor com irritaão. - Mas o caso 

* J"go no qual se empurram discos de madeira com uma p (a bordo de navio). (N. do 

E.,) 

196 

 que o rapaz não teve sse bom senso. Trata-se agora de pensar num  remdio.

  - Ora ... não vale a pena pensar nisso a 5 O00 milhas de distncia.# 

- Temo que le se precipite e deixe a pobre Marjorie abandonada. E  com um filho a caminho, ainda por cima ... Ela  uma mulher maante.  Mas não se deve permitir que Walter a trate dessa maneira.  - Pois  - concordou Philip. Houve uma pausa. A procissão espar-  sa dos amantes do exerc¡cio continuava a passar. - Eu estive pensando  - continuou le meditativamente - que sse caso daria assunto exce~  lente para uma novela...  - Que caso?

  - O de Walter.  - Ter s a intenão de explorar o pobre rapaz como modlo? - Eli-  nor estava indignada. - Não, realmente, eu não admitiria isso. Seria o  mesmo que plantar rvores sâbre: a sua sepultura - ou pelo menos sâbre  o seu coraão.  - Mas est claro que não vou fazer isso! - protestou Philip.  - Maisje vous assure - gritava uma das francesas em voz tão alta  que Philip teve de abandonar a tentativa de continuar - aux Galeries  Lafayette les camisoles enflanellepour enfant ne cot¡lent que. .  - Camisoles enflanelle - repetiu Philip. - Bolas!  - Mas falando srio, Phil. . . 

- Mas, minha querida, eu nunca pretendi utilizar nada mais alm da

  situaão. O rapaz que tenta fazer a sua vida rimar com os seus livros  idealistas, e que julga sentir um grande amor espiritual, para descobrirno  final de contas que ficou amarrado a um ente aborrec¡vel que le não ama  absolutamente.  - Pobre Marjorie! Mas por que ser que ela não traz o rosto mais  bem empoado? E aqules tais colares e brincos art¡sticos que ela usa  sempre. . .  - E que tomba como um pau de boliche - continuou Philip - ...  simples vista de uma sereia.  a situaão que me tenta. Não os indiv¡duos.

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  No fim de contas, h muitos outros rapazes encantadores alm de Walter.  E Marjorie não  a £nica criatura enfadonha. Nem Lucy a £nica devora-  dora de homens. 

de. 

- Bem, se  s¢rnente: a situaão. . 

- consentiu Elirior, de m vonta- 

- Alm disso - continuou le -, a hist¢ria não foi escrita e  prov...velmente nunca ser . Não h portanto razão para alarma, posso  aSSCgurar-te.  - Est bem. Não direi nada mais at ver o livro.  Houve outra pausa. 

* Mas eu vos asseguro que nas galerias Lqfayette as camisolas deflanela para criana  custwn apenas... (N. do E.) 

197 # 

I# 

... uma temporada maravilhosa em Gulmerg o verão passado -  estava dizendo a jovem dama aos seus quatro cavalheiros sol¡citos. -  Havia g¢lfe e danas tâdas as noites, e. . .  - Em qualquer caso - comeou de n¢vo Philip num tom meditativo  a situaão seria uma espcie de ...  - Mais, je lu i ai dit, les hommes sont comme a. Une jeunefille bien

  leve doit ... *  - , . . uma espcie de pretexto - disse Philip a plenos pulmões. -   o mesmo que tentar falar dentro da gaiola dos papagaios, no zool¢gico  - acrescentou, num parntese de irritaão. - Uma espcie de pretexto,  como eu estava dizendo, para uma nova maneira de olhar as coisas com  a qual quero tentar uma experincia.  - Eu quisera antes que comeasses a olhar para mim duma nova  maneira - disse Elinor com uma risada curta. -- Nova e mais humana.  Mas, falando srio, Elinop ...  i  - Falando srio - troou ela. - Ser humano não e serio. S¢  srio  ser inteligente.  - Pois bem - disse Philip, encolhendo os ombros---, se não queres

  escutar, eu me calo.  - Não, não, Phil. Por favor. - Elinor pousou as suas mãos nas do  marido. - Por favor!  - Não te quero cacetear. . . -- Òle estava irritado e cheio de dignida- 

de. 

-- Desculpa, Phil. Mas tu ficas tão câmico quando est s mais triste  do que zangado. , . Lembras-te daqueles camelos em Bikaner? Que  expressão extraorditi...riamente superior! Mas ... continua!

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  - Ôste ano - dizia uma das mission rias ... outra, ao passarem am-  bas por perto do casal - o bispo de Kuala Lumpur ordenou seis di co-  nos chineses e dois malaios. E o bispo do Bornu Setentrional Britni-  co. . . - As vozes calmas se esva¡ram no impercept¡vel.  Philip esqueceu a sua dignidade e desatou a rir.  - Decerto ordenou alguns orangotangos ...  - Mas não te lembras da mulher do bispo da ilha Thursday?  perguntou Elinor. - A mulher que encontramos naquele pavoroso navio  australiano cheio de baratas. . .  - Aquela que comia picles com o caf da manhã?  - E picles de cebolas, ainda por cima - precisou ela com um  estremecimento. -- E a tua maneira nova de olhar as coisas? Parece-me  que j nos afastamos um bom pedao do assunto.  - Bem, para falar a verdade - disse Philip ---, não nos afasta-  mos ... T"das essas camisoles enflanelle e picles de cebolas e bispos de  ilhas canibalescas vm at muito a calhar. Porque a essncia da nova 

* Mas, eu lhe disse, os homens são assim. Umajovem de classe deve... (N. do E) 

198 

maneira de olhar as coisas  a multiplicidade. A multiplicidade de olhos#

 

e a multiplicidade de aspectos vistos. Por exemplo, uma pessoa interpreta  os acontecimentos em funão de bispos; outra, em funão do preo das  camisolas de flanela; outra, como aquela jovem dama de Gulmerg nes-  te ponto Ph¡lip indicou com a cabea o grupo que desaparecia em  funão de divertimentos. E depois h ainda o bi¢logo, o qu¡mico, o fisico,  o historiador. Cada um v, profissionalmente, um diferente aspecto do  acontecimento, uma diferente camada da realidade. O que quero fazer   olhar com todos sses olhos ao mesmo tempo. Com olhos religiosos,  olhos cient¡ficos, olhos econâmicos, olhos de homme moyen sensuel...  - Olhos amantes tambm ...

  Philip sorriu para a mulher e acariciou-lhe a mão.  - O resultado. . . - Hesitou.  - Sim, qual seria o resultado?  - Estranho. Um quadro na verdade muito estranho.  - Um pouco estranho demais, na minha opinião ...  - Mas não pode ser estranho em demasia - disse Philip. - Por  mais estranho que sse quadro seja, nunca conseguir ser tão singular co-  mo a realidade original. Aceitamos t"das as coisas como naturais; mas  no momento em que comeamos a pensar, elas se tornam estranhas. E  quanto mais pensamos, mais estranhas elas ficam.  o que eu quero p"r  no meu livro - a qualidade surpreendente, pasmante das coisas mais ¢b-  vias. Para falar a verdade, qualquer aão, qualquer situaão servir . Por-  que tudo est impl¡cito em tudo. O livro todo podia ser escrito a respeito

  de um passeio de Piccadilly Circus a Charing Cross. Ou então tu e eu  sentados aqui, num enorme navio, a singrar as guas do mar Vermelho.  Na verdade, nada podia ser mais singular do que isto. Quando refletimos  sâbre os processos de evoluão, s"bre a pacincia e s"bre o gnio huma-  nos, sâbre a organizaão social, s"bre tudo o que tornou poss¡vel para  n¢s o estar aqui, e os foguistas que se expõem a um ataque de apciplexia  em nosso beneficio, e as turbinas de vapor que fazem 5 O00 revoluões  por minuto, e o mar que  azul, e os raios luminosos que não contornam  os obst culos, para que haja sombra, e o sol que nos fornece todo o tempo  energia para viver e pensar - quando pensamos em tudo isso e num

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  milhão de outras coisas, chegamos ... conclusão de que nada pode ser mais  estranho e que nenhuma descrião, por mais singular que seja, poder fa-  zer justia aos fatos.  - Apesar de tudo - disse Elinor, depois de um longo silncio -, eu  gostaria que um dia escrevesses uma hist¢ria simples e franca a respeito  de um rapaz e de uma rapariga que se amaram, casaram, encontraram  dificuldades mas venceram-nas e finalmente passaram a viver tranqilos.  - E por que não uma novela policial? - Philip riu. Mas, se não 

*Homem medianamente sensual. (N. do E.) 

199 

,; I 

~ V 

I# 

1:  i escrevia aquela espcie de literatura - pensou -, era talvez porque não  pudesse. Na arte h simplicidades mais dificeis do que as mais cerradas  complicaões. Òle podia conduzir as complicaões tão bem como qual-  quer outro. Mas quando chegava ...s simplicidades, faltava-lhe o talento  - aqule talento que  do coraão, não menos do que do crebro, dos  sentimentos, das simpatias, das intuiões, não menos do que da  compreensão anal¡tica. O coraão, o coraão, disse le de si para consigo  mesmo. "Porventura não percebeis nem entendeis? Tendes o coraão ain-

  da endurecido?" Sem coraão não h entendimento.  - . . . uma terr¡vel namoradora - gritou um dos quatro cavalheiros,  quando o grupo dobrou a esquina, ficando a distncia de ser ouvido.  - Não sou! - retorquiu ajovem COM indignaão.  - s sim! - gritaram todos juntos. Era uma c"rte feita em c"ro e  sob a forma de caoadas para amofinar.  -  mentira! - Mas percebia-se muito bem, na sua voz, que aquela  lisonjeira acusaão a deleitava.  "Corno cães", pensou Philip. Mas o coraão, o coraão ... O coraão  era a especialidade de Burlap. "Voc nunca h de escrever um bom livro`,  dissera le oracularmente, "a menos que sse livro lhe brote do coraão."  Era verdade, Philip o sabia. Mas seria Burlap o homem indicado para

di-  zer aquilo? - Burlap, cujos livros vinham tão do fundo do coraão que  pareciam ter sa¡do do est"mago, depois dum vomit¢rio. Se le se dedi-  casse ...s grandes simplicidades, os resultados seriam não menos repulsi-  vos. Melhor seria cultivar o se£'pr¢prio jardim particular em t"da a sua  plenitude. Melhor seria permanecer r¡gida e lealmente le mesmo. Òle  mesmo? Mas esta questão de identidade era precisamente um dos proble-  mas cr"nicos de Philip. Te¢ricamente, com a sua inteligncia, era-lhe tão  f cil ser quase qualquer um! Philip tinha tal poder de assimilaão que

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  corria muitas vzes o perigo de não mais distinguir o assimilador do assi-  milado, de não conhecer, entre a multiplicidade de seus papis, qual era o  ator. A arrieba, quando acha uma prsa, abarca-a com a sua substncia,  incorpora-a e continua a deslizar. Havia algo de arnebiano no esp¡rito de  Philip Quaries. Era como um mar de protoplasma espiritual, capaz de  fluir em t"das as direões, de engolfar todos os objetos que se lhe deparas-  sem no caminho, de se infiltrar em todos os orificios, de encher todos os  moldes e, depois de engolfar, de encher - continuar a fluir para outros  obst culos, outros recept culos, deixando os primeiros vazios e secos. Em  ocasiões diferentes de sua vida, e at mesmo simultneamente, le tinha  enchido os mais variados moldes. Philip tinha sido c¡nico e tambm m¡sti-  co, humanit rio e tambm um misantropo cheio de desdm; tinha procu-  rado viver uma vida de razão desprendida e est¢ica, e em outra ocasião  aspirara ... ausncia de razão duma existncia natural e não civilizada. A  escolha dos moldes dependia do momento, dos livros que lia, das pessoas  com quem mantinha relaões. Burlap, por exemplo, tornara a dirigir a

  200 

corrente de seu esp¡rito para aqules canais m¡sticos que le não enchera  desde que havia descoberto Boehme, nos seus tempos de estudante.  Depois Phil compreendera claramente Burlap e seu espirito se afastara,# 

ficando sempre pronto, todavia, para a qualquer momento voltar atr s,  desde que as circunstncias parecessem exigi-lo. Naquele instante voltava  ú coar-se num molde que tinha a forma de um coraão. Onde estava o eu

  ú que le podia ser leal?  As mission rias passaram em silncio. Olhando por cima do ombro de  Elinor, Phil viu que ela estava lendo as Mil e Uma Noites, na traduão de  Mardrus. Os Fundamentos Metafisicos da Cincia Moderna, de Burtt,  estavam s"bre os seus joelhos; Phil tomou do livro e comeou a procurar  a p gina onde tinha parado. Ou acaso não existia um eu? - pensou le.  Não, não, aquilo era insustent vel, aquilo contradizia a experincia  imediata. Olhou por cima da borda superior do livro, para o enorme cla-  rão azul do mar. O car ter essencial do eu consistia precisamente naquela  ubiqidade l¡quida e indeform vel; naquela capacidade de esposar todos  os contornos e de não ficar, no entanto, fixado em nenhuma forma; rece-  ber impressões e com a mesma facilidade apag -las. A todos aqules mol-  des que seu esp¡rito podia ocupar de tempos em tempos, todos aqules

  obst culos duros e ardentes que seu esp¡rito podia contornar, submergir,  penetrando-lhes o coraão fogoso e permanecendo no entanto frio - a  todos aqules moldes Philip não devia nenhuma lealdade permanente.   que les eram esvaziados com tanta facilidade como tinham sido enchi-  dos; os obst culos eram contornados. Mas o l¡quido essencial que escor-  ria onde queria, o fluxo frio e indiferente da curiosidade intelectual -  sse persistia e a le Philip devia lealdade. Se houvesse um modo simples  de vida em que le pudesse crer de maneira dur vel, sse seria aquela mis-  tura de pirronismo e de estoicismo, que lhe havia dado a impressão, a le,  simples colegial curioso no meio de fil¢sofos, de ser o cume da sabedoria

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  humana; e dentro dsse molde de indiferena ctica le derramara a sua  adolescncia sem paixão. Philip Quarles se rebelara muitas vzes contra  a suspensão pirr"nica do ju¡zo e contra a imperturb abil idade est¢ica. Mas  teria sido alguma vez realmente sria tal rebelião? Pascal fizera dle um  cat¢lico - mas s¢rnente durante o tempo em que o volume dos Pensa-  mentos permanecera aberto diante de seus olhos. Havia momentos em  que, na conipanhia de Carlyle, de Whitman ou do vigoroso Browning, le  tinha acreditado no ardor pelo amor ao ardor. Então vinha Mark Ikam-  pion. Depois de algumas horas passadas na companhia de Mark Ram-  pion, Philip acreditava realmente na selvageria nobre; convenc¡a~se de  que o intelecto orgulhosamente consciente devia humilhar-se um pouco e  admitir as reivindicaões do coraão - sim, e das entranhas, dos rins,  dos ossos, da pele e dos m£sculos - a uma parte razo vel de vida. O  coraão de nâvo! Burlap estava acertado, embora não passasse dum char-  latão, duma espcie de escamoteador trapaceiro de emoões. O coraão! 

201# 

Mas, rosse qual f"sse o seu procedimento, Phil sabia perfeitamente bem,  nas profundezas secretas de seu ser, que não era cat¢lico, nem partid rio  da vida ardente, nem m¡stico ou selvagem nobre. E embora desejasse

  algumas vzes, com nostalgia, ser uma ou outra coisa, ou t"das elas a um  tempo, sentia-se sempre secretamente alegre por não ser nada disso e por  achar-se livre, mesmo que essa liberdade fosse, de modo estranho e para~  doxal, um obst culo e um limite ao seu esp¡rito.  - Essa tua hist¢ria simples não serviria - disse le em voz alta.  Elinor ergueu os olhos das Mil e Uma Noites.  - Que hist¢ria simples?  - Aquela que querias que eu escrevesse.  - Ali! Aquela. . . - Elinor riu. - Estiveste meditando nela muito  tempo.  - Ela não me daria a oportu , nidade que procuro - explicou Phil. -  Seria preciso que f"sse s¢lida e profunda. Ao passo que eu sou largo; lar-  go e l¡quido. Não seria do meu gnero.

  - Eu te poderia ter dito isso no primeiro dia em que te encontrei  disse Elinor. E voltou para Scheherazade.  "Apesar disso", pensava Philip, "Mark Rampion tem razão. Na  pr tica tambm; o que torna a coisa muito mais impression ante. Na sua  arte e na sua vida, bem como nas suas teorias. Não  como Burlap." Pen-  sou com desg"sto nos artigos de fundo emticos do Literary World. Pare-  ciam uma travegsia espiritual do canal da Mancha... E uma dessas vi-  das sujas, viscosas. Mas Rampion era a prova de suas pr¢prias teorias.  "Se eu pudesse capturar algo do seu segrdo!", Phil suspirou  interiormente. "Irei v-lo logo que chegar em casa." 

202 

CAPITULO XV Durante as semanas que seguiram a sua cena final, Walter e Marjorie

  viveram num estado de relaões singular e desagrad...velmente falsas.  Mostravam-se muito cheios de atenões um para com o outro, muito  corteses, e cada vez que se encontravam a s¢s entabulavam longas  conversaões polidas e sem intimidade. O nome de Lucy Tantamount  nunca era pronunciado e não se fazia nenhuma referncia ...s ausncias de  Walter, que se repetiam quase tâdas as noites. Havia uma acârdo t cito  para fingir que nada tinha acontecido e que tudo andava da melhor

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  maneira dentro do melhor de todos os mundos poss¡veis.  No primeiro acesso de c¢lera Marjorie tinha verdadeiramente  comeado a fazer as suas malas. Partiria sem demora, naquela mesma  noite, antes que le voltasse. Devia mostrar-lhe que havia um limite para  os ultrajes e insultos que ela sempre relevara. Vir para casa recendendo  ao perfume daquela mulher! Era ign¢bil. Walter parecia imaginar que ela  estava abjetamente apaixonada por le e que dependia tanto dle, sob o  ponto de vista material, que lhe seria poss¡vel continuar a insult -la sem  nenhum mdo de lhe provocar uma franca revolta. Fizera mal em se não  ter afirmado antes. Não devia ter-se deixado comover pela sua ang£stia  na noite precedente. Mas antes tarde do que nunca. Daquela vez seria  definitivo. Tinha de pensar no seu amor-pr¢prio. Tirou as malas de# 

dep¢sito e comeou a ench-las com as suas coisas.  Mas para onde iria? Que faria? De que iria viver? Estas perguntas se  formulavam com uma insistncia que crescia de minuto para minuto. O  £nico parente que tinha era uma irmã casada, mulher pobre cujo marido  não aprovava a conduta de Marjorie. A Srta. Cole tinha tido uma desa-  vena com ela. Não havia outras amigas que quisessem ou pudessem  ajud -la. Marjorie não aprendera oficio nenhum, nem possu¡a dons espe-  ciais. Alm disso, estava para ter um beb; nunca acharia um emprgo. E

  no fun de contas, a despeito de tudo, tinha muita afeião por Walter, ama-  va-0, não sabia como poderia viver sem le. E Walter a tinha amado, ain-  da a amava um pouco, estava certa disso. E talvez aquela loucura se  dissipasse por si mesma; ou talvez ela conseguisse traz-lo de volta para  si, gradualmente. E em qualquer caso era melhor não agir precipitada-  mente. Acabou esvaziando as malas outra vez e arrastando-as de volta  Para o dep¢sito. No dia seguinte comeou a representar a sua comdia de  fingimento e de ignorncia deliberadamente falsa. 

203# 

Por sua vez, Walter folgava em representar o papel que lhe cabia na  comdia. Nada dizer, agir como se nada de especial tivesse acontecido -  isso lhe convinha perfeitamente. A evaporaão de sua c¢lera, o apazigua-  mento do desejo o tinham reduzido, daquele estado momentneo de f"ra  e brutalidade, ... sua condião normal de timidez branda e torturada de  remorsos. A fadiga do corpo tinha um efeito calmante s"bre as fibras do  esp¡rito. Walter voltou da casa de Lucy sentindo-se criminoso, sentindo  que tinha feito uma grande inj£ria a Marjorie e esperando com mdo a ce-  na que esta certamente havia de fazer. Mas Marjorie dormia quando le  se introduziu furtivamente no seu quarto. Dormia. ou, pelo menos, fingia  dormir; não o chamou. E, no dia seguinte, não foi senão pelas saudaões  dela, mais do que habitualmente corteses e cheias de formalidades, que

  Walter desconfiou do seu aborrecimento. Cheio de imenso al¡vio, retri-  buiu aqule silncio pressago com o silncio, e aquela cortesia polida-  mente trivial com uma cortesia que, no seu caso, era mais do que simples-  mente formal, porque lhe vinha do coraão, porque era uma tentativa  sincera (tão intranqila estava a sua conscincia) de lhe prestar um  servio, de fazer reparaõ~s sol¡citas e afetuosas pelas ofensas passadas,  de implorar adiantadamente perdão para as ofensas que le não tinha  intenão de deixar de cometer no futuro.  Foi um grande al¡vio para le o fato de não ter havido explosões, repro-  ches: s¢rnente o silncio polido de quem finge ignorar ... Mas os dias

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  passavam e Walter comeou a achar a falsidade dessas relaões cada vez  mais angustiante. A comdia lhe ataca,,a os nervos. o silncio era uma  acusaão. Ficava cada vez mais polido, mais sol¡cito, mais afetuoso; mas,  embora gostasse sinceramente de Marjorie, embora desejasse sincera-  mente faz-la feliz, as visitas que fazia cada noite a Lucy davam mesmo  ... sua afeião sincera por Marjorie o aspecto duma mentira e ... solicitude  verdadeira para com ela um ar de hipocrisia, at para consigo mesmo -  isto enquanto persistisse em fazer, nos intervalos de sua bondade, precisa-  mente aquelas coisas que le sabia haviam de torn -la infeliz.  "Mas se ao menos", dizia de si para consigo mesmo, com a sua c¢lera  impotente e cheia de queixa, "se ao menos ela se contentasse com o que  eu lhe posso dar e deixasse de se torturar com o que não posso". Porque  era evidente, a despeito da comdia de silncio e de cortesia, que ela se  estava atormentando. O seu rosto magro e macilento era por si s¢ sufi-  ciente para desmentir a indiferena estudada da sua atitude. "O que lhe  posso dar j  tanto ... E o que não posso  tão sem importncia. Pelo  menos para ela", acrescentou; porque não era sua intenão anular o  compromisso sem importncia que tinha com Lucy aquela noite. 

Afalfindo o g"zo, logo desprezada;  Com alma buscada, apenas possu¡da,  Com a mesma alma odiada. 

22  _04 

A literatura, como de costume, o tinha levado pelo mau caminho. Lon-  ge de faz-lo odiar e desprezar, a posse e o g"zo o levavam s¢mente a  ansiar por uma renovaão dessa posse e dsse gzo.  verdade que le# 

sentia sempre um pouco de vergonha daquela ansiedade. Queria que ela  losse justificada por alguma coisa mais alta - pelo amor. "No fim de  contas", argumentava le, "não h nada de imposs¡vel ou de antinatural

  no fiato de arriar duas mulheres ao mesmo tempo. Amar sinceramente."  Walter acompanhava os seus ardores com t"da a ternura delicada e  encantadora da sua natureza um pouco fraca e ainda adolescente.  Tratava Lucy, não como a dura e implac vel caadora de prazer que tão  claramente reconhecera nela, antes de se tornar seu amante - mas sim  como um ser sens¡vel e idealmente: gracioso que deve ser adorado ao mes-  mo tempo que desejado, uma espcie de combinaão de criana, mãe e  amante; um ser que devemos proteger maternalmente e do qual devemos  receber proteão materrral; um ser que, ao mesmo tempo, tambm deve-  mos amar com virilidade e - por que não? - faunescamente.  A sensualidade e o sentimento, o desejo e a ternura são tão freqente-  mente amigos como inimigos. H algumas pessoas que, mal acabam de  gozar, desprezam o que gozaram. Mas h outras em que o g¢zo est asso-

  ciado com a bondade e a afeião. Em WaIter, o desejo de justificar as  suas ansiedades pelo amor, era apenas, em £ltima an lise, a expressão  estritamente moral de sua natural tendncia para associar o ato do g"zo  sexual com o sentimento de ternura ao mesmo tempo cavalheirescamente  protetor e infantilmente humilhado. Nle a sensualidade produzia ternu-  ra; e, inversamente, onde não havia sensualidade, a ternura não se desen-  volvia.. Suas relaões com Marjorie eram excessivamente assexuais e  plat"nicas para serem plenamente ternas. A ternura s¢ pode viver numa  atmosfera de ternura. F"ra como sensualista duro e ferozmente c¡nico que  Walter conquistara Lucy. Mas, uma vez posta em aão, a sua sensuali-

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  dade o sentimental iz ava. O Walter que tinha tido Lucy nua nos braos  era diferente do Walter que apenas desejara fazer isso; e ste n¢vo Walter  tinha necessidade, num simples instinto de conservaão, de acreditar que  Lucy, sob a influncia de suas car¡cias, não se sentia menos penetrada de  ternura do que le. Continuar a acreditar, como o antigo Walter tinha  acreditado, que ela era dura, ego¡sta, incapaz de um sentimento afetuoso  - isso teria matado a ternura macia do n"vo Walter. Era essencial para  le acredit -la terna. Fz o que p"de para se iludir. Cada um dos momen-  tos de langor e de abandono era ...vidamente interpretado por le como um  sintoma de amolecimento ¡ntimo, de confiana, de capitulaão. Cada  palavra de amor - e Lucy, seguindo a moda, era pr¢diga com os seus  "queridos" e "anjos" e "amados", muito liberal nas expressões de arreba-  tamento ou de elogio - era recebida e guardada como uma palavra que  vinha direito das profundezas do coraão. Çqueles ind¡cios de amoleci-  Inento imagin rio e de calor sentimental le retribu¡a com um redobra-  mento cheio de gratidão de sua pr¢pria ternura; e esta ternura redobrada 

205# 

ficava duplamente desejosa de achar em Lucy uma ternura correspon-  dente. O amor gerava um desejo de ser amado. O desejo de ser amado

  engendrava uma crena prec ria e ansiosa de que le era amado. A  crena de que era arriado fortalecia-lhe o amor. E era assim que todo o  processo circular se intensificava a si mesmo, e comeava de n"vo.  Lucy ficou tocada pela ternura adorativa de Walter, tocada e surpreen-  dida. Ela o tinha aceito como um amante porque estava aborrecida, por-  que os l bios dle eram macios, porque as mãos dle sabiam acariciar e  porque, no £ltimo momento, sentira-se divertida e deliciada pela sua s£bi-  ta conversão da humildade ... impertinncia conquistadora. Que estranha  noitada haviam passado! Walter sentado na frente dela ... hora do jantar,  com aquela expressão dura do rosto, como se estivesse terrivelmente  encolerizado e tivesse vontade de moer os pr¢prios dentes; mas mostran-  do-se muito divertido, contando as hist¢rias mais maliciosas desta vida a

  respeito de tâda a gente, engendrando as informaões hist¢ricas mais  fant sticas e mais grotescas, as citaões mais surpreendentes de velhos  livros ... Findo o jantar, Walter falou: - "Vamos voltar para a tua  casa." - Mas Lucy queria ir ver o n£mero de Nellie Wallace no Victoria  Palace e depois entrar no Embassay para comer alguma coisa e danar  um pouco; a seguir iria procurar talvez Cuthbert Arkwright, na esperana  de que. . . Não que ela tivesse algum desejo verdadeiro e ativo de ir ao  music-ha11, ou de danar, ou de escutar a conversa de Cuthbert. Queria  s¢rnente afirin r a sua vontade contra a de Walter. Queria apenas domi-  nar, ser comandante e obrig -lo a fazer o que ela queria e não o que le  queria. Mas Walter não se deixou abalar. Não disse palavra, sorriu  simplesmente. E quando o t xi parou ... porta do restaurante, deu o  eiidero de Bruton Strct.

  - Mas isto  uma violncia! - protestou ela.  Walter pâs-se a rir.  - Ainda não. Mas vai ser.  E quase foi mesmo, no salão cinzento e c"r-de-rosa. Lucy provocou,  para se submeter a elas - t"das as violncias da sensualidade. Mas o que  ela não tinha esperado provocar era a ternura apaixonada e cheia de  adoraão que se seguiu ...quelas primeiras violncias. A expressão dura de  c¢lera apagou-se do rosto de Walter e foi como se uma couraa protetora  lhe tivesse sido arrancada, deixando-o nu, na nudez fremente e vulner vel  do amor e da adoraão. As car¡cias dle eram como um calmante da dor

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  ou do terror, como um apaziguamento da c¢lera, como propiciaões deli-  cadas. Suas palavras eram ...s vzes como fragmentos de oraões sussur-  rados a um deus, outras vzes palavras de conforto murmuradas a uma  criana doente. Lucy ficou surpreendida, tocada, quase envergonhada  daquela paixão t"da feita de ternura.  - Não, eu não sou assim, não sou assim - protestava ela em res-  posta ao murm£rio de adoraões de Walter. Não podia aceitar tal amor 

206 

com fingimentos. Mas os l bios macios dle, roando lhe a pele, as extre-  In idades de seus dedos que a tocavam de leve eram sedativos, e, acarician-  do-a at lev -la a um sentimento de ternura, transforinavam~na  m...gicamente no objeto terno, amante e caloroso de sua adoraão,# 

carregavam-na eltricamente com t"das aquelas qualidades que seus  murm£rios lhe tinham atribu¡do e cuja posse ela tinha negado.  Lucy puxou a cabea do amante contra o seu peito, passou os dedos  entre os cabelos dle:  - Meu querido Walter - sussurrou -, querido Walter. -- Houve

  um longo silncio, uma felicidade morna e quieta. E então, de s£bito,  juitameiite por que aquela felicidade silenciosa fosse tão profunda, tão  completa e, por conseqncia, aos olhos de Lucy, tivesse qualquer coisa  de intrinsecamente absurdo e mesmo de perigoso na sua impessoalidade  perfeita, um pouco ameaadora para a sua vontade consciente -- ela  pergun tou:  - Dormiste, Walter? - E torceu-lhe a orelha.  Nos dias que se seguiram Walter fez desesperadamente o poss¡vel para  lhe atribuir as emoões que le pr¢prio experimentava. Mas Lucy não lhe  facilitava a tarefa. Não queria sentir aquela ternura profunda que  uma  capitulaão da vontade, o ruir das barreiras pessoais. Lucy queria ser ela  mesma, Lucy Tantamount, dominadora absoluta da situaão, que se  divertia conscientemente at o limite extremo, desfrutando o seu g"zo sem

  nenhuma contemplaão: livre, não s¢rnente financeira e legalmente, mas  tambm emotivamente -- livre emotivamente de tomar Walter ou de não  tom -lo. De deix -lo cair como o tinha tomado, a qualquer momento,  quando melhor lhe parecesse. Não tinha desejo de capitular. E aquela ter-  nura dle - ora! era tocante, não havia d£vida, lisonjeira e bastante  encantadora em si mesma, mas um tanto absurda e, na sua exigrÖcia  inquieta duma correspondncia de sua parte, verdadeiramente fastidiosa.  Lucy se deixava levar um pouco no caminho do abandono sob as car¡cias  do rapaz, deixava-se impregnar um pouco da sua ternura, apenas para  depois esquivar-se de repente, num desprendimento arreliador e provo-  cante. E Walter despertava de seu sonho de amor e ca¡a na realidade  daquilo a que Lucy chamava "prazer", na luz fria da sensualidade  conscientemente aguda e visivelmente deliberada. Ela o deixava sem

  justificaão, sem paliativo para o seu sentimento de culpabilidade.  - Tu me amas? - perguntou-lhe Walter uma noite. Sabia que ela  não o amava. Mas queria perversamente ter aqule conhecimento confir-  mado de maneira expl¡cita.  - Acho que tu s um querido - disse Lucy. Sorriu para le. Mas os  olhos de Walter continuaram sombrios e desesperados.  - Mas tu me amas? - insistiu. Apoiado nos cotovelos, curvou-se  sâbre ela quase ameaadoramente. Lucy estava deitada de costas, com as  Mãos entrelaadas atr s da cabea, os seios chatos erguidos pela traão 

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  207 

I# 

.dos m£sculos distendidos. Walter baixou o olhar s"bre ela; sob seus de-  dos estava a tepidez el stica e curva do corpo que le tinha possu¡do du-  ma maneira tão absoluta e completa. Mas a dona daquele corpo lhe sorria  atravs das p lpebras sernicerradas, long¡nqua e inating¡vel. - Tu me  amas?  - Tu s encantador. - Entre os seus c¡lios escuros brilhou qualquer  coisa que parecia uma zombaria.  - Mas isso não  uma resposta ... minha pergunta. Tu me arrias?  Lucy encolheu os ombros e fez uma pequena careta.  - Amar? - repetiu ela. -  uma palavra bastante solene, não  achas? - Libertando uma das mãos de tr s da cabea, Lucy a ergueu um  pouco para bater na mecha de cabelos castanhos que tinha ca¡do sâbre: a  testa de Walter. - Tens os cabelos compridos demais. 

Então, por que me aceitaste? - insistiu Walter.  Se soubesses como ficas rid¡culo com essa cara solene e sse cabelo  nos olhos! - Lucy riu. - Pareces um cão pastor com prisão de ventre.

  Walter puxou para cima a mecha ca¡da.  - Quero uma resposta - continuou obstinadamente. - Por que me  aceitaste?  - Por qu? Porque a coisa  divertida. Porque eu quis. Não são moti-  vos razo...velinente evidentes?  - Sem me amar?  - Por que h s de vir sempre com o amor? - perguntou ela, impa-  ciente.  Por qu? - repetiu Walter. - Mas como podes deix -lo de lado?  Mas se eu posso ter o que quero sem le, a tr"co de que hei de met-  lo no neg¢cio? E, alm do mais, a gente não o mete ... O amor nos acon-  tece... Quão raramente! Ou talvez nunca acontea; não sei. Em todo ca~  so, que fazer nos intervalos? - De n"vo segurou Walter pela mecha de

  cabelos e puxou o rosto dle contra o seu. - Nos intervalos, Walter que-  rido, eu te tenho a ti...  A b"ca do rapaz estava a poucos cent¡metros da de Lucy. Òle endure-  ceu o pescoo e não se deixou levar mais perto.  - Para não falar nos outros. . . - insinuou Walter.  Lucy puxou-lhe mais fortemente os cabelos.  - Idiota! - disse, franzindo as sobrancelhas. -  reconhecido, agradecido pelo que conseguiste.  - Mas que foi que consegui? - O corpo dela curvava-se, sedoso e  quente, sob a mão dle; mas Walter estava olhando para os olhos zomba-  dores da amante. - Que foi que consegui?  Lucy continuava com a testa enrugada.  - Por que não me beijas? - perguntou ela, como se estivesse entre-

  Devias estar 

gando um ultimato. Walter não respondeu, não se moveu. - Pois muito  bem. - Lucy empurrou-o. - Se tu podes assumir essa atitude eu  tambm Posso. - -  Repelido, Walter inclinou-se ansiosamente para beij -la. A voz de  Lucy se havia tornado dura na ameaa; le se debatia no terror de t-la# 

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  perdido. - Sou um idiota!  s, sim. - Lucy voltou-lhe o rosto.  Perdoa.  Mas ela não queria fazer as pazes.  - Não, não - disse. E quando, com uma das mãos sob a face dela,  Walter procurava voltar~lhe o rosto para os seus beijos, Lucy Fez um  movimento brusco e feroz e mordeu-lhe a ponta do polegar. Cheio de ¢dio  e de desejo, le a possuiu ... fâra.  - Ainda preocupado com o amor? - perguntou Lucy afinal,  quebrando o silncio daquela convalescena lnguida que sucede ... febre  dos desejos satisfeitos.  Com relutncia, quase com dor, Walter reuniu foras para responder.  A pergunta de Lucy, dentro daquele profundo silncio, foi como a infla-  maão dum f¢sforo na escuridão da noite. A noite  ilimitada, enorme,  pontilhada de estrlas. Risca-se o f¢sforo e t"das as estrlas são  instantneamente abolidas; não h mais distncias nem profundezas. O  universo fica reduzido a uma pequena caverna luminosa escavada no  negrume s¢lido, povoado de caras brilhantemente iluminadas, de mãos e  corpos, dos objetos pr¢ximos e familiares da vida comum. Naquela pro-  funda noite de silncio Walter tinha sido feliz. Convalescente, depois da  febre, le a tinha nos braos, j agora sem ¢dio, mas sim cheio de uma ter-  nura sonolenta. Seu esp¡rito parecia flutuar na serenidade tpida entre o

  ser e a aniquilaão. Ela fremia nos braos dle, falava, e aquela  maravilhosa serenidade extraterrestre ondulava e se quebrava como a  superf¡cie: lisa e espelhante duma gua s£bitamente turbada.  - Eu não estou me preocupando com coisa nenhuma. -- Walter  abriu os olhos e viu que ela o observava, divertida e curiosa. Franziu a  testa. - Por que me olhas assim?  - Eu não sabia que era proibido ...  - Estiveste olhando para mim desta maneira todo sse tempo? - A  idia lhe era estranhamente desagrad vel.  - H horas... Mas com admiraão, te garanto. Achei que estavas  verdadeiramente encantador. Uma leg¡tima Bela Adormecida. - Lucv  sorria, zombeteira; mas falava a verdade. Estticamente, com a satisfaão  dum entendedor, ela estivera realmente a admir ~lo enquanto le ali se

  deixara ficar, deitado, p lido, de olhos fechados, como se estivesse morto,  a seu lado.  Walter não se deixou abrandar pela lisonja. 

I# 

Não me agrada que tu tripudies sâbre mim - disse, ainda de ce-

  nho cerrado.  - Tripudiar?  Como se me tivesses matado.  Que romntico incorrig¡vel! - Lucy riu. Mas, no entanto, era ver-  dade. Òle dera a impressão dum morto; e a morte, naquelas circunstn-  cias, tinha algo de levemente rid¡culo e humilhante. Viva, bem desperta e  conscientemente viva, ela havia estudado a magn¡fica atitude mortu ria  de Walter. Com admiraão, mas com um desprendimento divertido, Lucy  contemplara aquela criatura esquisita e p lida que ela tinha usado para  seu pr¢prio g"zo e que agora estava morta. "Que b"bo!", pensara ela. E

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  "por que as pessoas se tornam a si mesmas desgraadas, em lugarde acei-  tar o prazer que se lhes oferece?" Ela tinha exprimido seus pensamentos  na pergunta zombeteira que despertara Walter do fundo de sua eterni-  dade. A preocupar-se com o amor - que idiota!  - Apesar de tudo - insistiu Walter -, tu estavas exultante.  - Romntico, romntico! - escarneceu ela. - Tens uma maneira  tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar e tripudiar sâbre  cad veres e amar e o mais que segue.  rid¡culo. Por que não andas logo  de fraque e plastrão? ... Procura ser um pouco mais moderno.  - Prefiro ser humano.  - Viver modernamente  viver r...pidamente - continuou ela. - Não  podes carregar contigo um vagão cheio de idias e romantismos nestes  tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para tr s as bagagens  pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia  vagarosamente. Mas  pesada demais para os nossos dias. Não h lugar  para ela no avião ...  - Nem mesmo para um coraão? - perguntou Walter. - Não me  preocupa muito a alma. - J uma vez se preocupara com ela. Mas agora  que a sua vida não consistia mais em ler os fil¢sofos, le estava um pouco  menos interessado nela. - Mas o coraão - ajuntou -, o coraão ...  Lucy sacudiu a cabea.  - Talvez seja uma pena - concedeu ela. 

- Mas tudo tem o seu

  preo. Se gostamos da velocidade, se queremos ganhar terreno, não pode-  mos levar bagagem. Trata-se de saber o que queremos e de estarmos  prontos a pagar o preo devido. Eu sei exatamente o que quero; assim,  sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num caminhão de mudanas,  viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ¢ meu suav¡ssimo Walter.  Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu monoplario de dois  lugares.  Houve um longo silncio. Walter fechou os olhos. Quisera estar morto.  O contato da mão de Lucy no seu rosto f-lo sobressaltar-se. Sentiu que  ela lhe tomava o l bio inferior entre o polegar e o indicador. Beliscou-o  suavemente. E disse:  - Tens a mais deliciosa das bâcas ... 

210 CAPITULO XVI

Os Rampions moravam em Chelsea. A casa dles consistia num gran-  de est£dio com trs ou quatro quartinhos anexos. Um bonito recanto, na  sua maneira um pouco r£stica, refletiu Burlap, ao fazer soar a campainha  da porta naquela tarde de s bado. E Rampion o tinha comprado por pou-  co mais que nada, exatamente antes da guerra. Não pagara mais aluguis

  depois da guerra. Um presente de 150 libras l¡quidas por ano. "Diabo de  sorte!", pensou Burlap, esquecendo naquele momento que le pr¢prio vi-  via sem pagar aluguel na casa de Beatrice e lembrando-se apenas de que  tinha acabado de gastar 24 xelins e 9 pence, numa ceia com Molly  d'Exergillod.  Mary Rampion abriu a porta.  - Mark o espera no est£dio - disse ela ap¢s a troca de saudaões.  "Mas por que diabo", estava Mary a se dizer interiormente, "por que dia-  bo continua le a ter relaões de amizade com ste indiv¡duo?  coisa que  est alm de t"da compreensão." Detestava Burlap. -  uma espcie de

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  abutre - dissera ao marido depois da £ltima visita do jornalista. - Não,  não  um abutre, porque os abutres s¢ comem carnia.  um parasita que  se alimenta de seus h¢spedes vivos, e sempre do que pode achar de  melhor. E tem faro para descobrir o que h de melhor; isso eu lhe reco-  nheo. Uma sanguessuga espiritual; eis o que le . Por que deixas que le  te sugue o sangue?  - E por que não? - retorquira Mark. - Òle não me faz nenhum  mal e me diverte.  - Creio que le lisonjeia a tua vaidade - disse Mary. -  lisonjeiro  ter parasitas.  um elogio ... qualidade do teu sangue.  - E, alm disso - continuara Rampion -, le tem algum mereci-  mento.  - Est claro que tem - respondeu Mary. - Tem o teu sangue, entre  outras coisas. E o sangue de t"das as outras pessoas de que le se alimen-  ta. 

- Vamos, não exageres, não sejas romntica - objetava Rampion a  tâdas as hiprboles que não f"ssern as suas pr¢prias.  - Pois bem, tudo o que posso dizer  que não gosto de parasitas.  Mary falava com um tom decidido. - E a pr¢xima vez em que le apare~  cer eu lhe vou jogar em cima um pouco de p¢ inseticida, s¢ para ver o que  licontece. A¡ est ... 

i

  2# 

No entanto, a pr¢xima vez tinha chegado, e l estava ela, a abrir a porta  para Burlap e a dizer-lhe que se dirigisse ao est£dio, como se se tratasse  dum visitante bem-vindo. Mesmo na atav¡stica Mary a fora do h bito de  polidez era mais forte do que o seu desejo de jogar p¢ inseticida.  Os pensamentos de Burlap, enquanto le se dirigia para o est£dio, esta-  vam ainda voltados para as questões financeiras. A lembrana do preo

  que havia pago pela ceia continuava a irrit -lo.  "Rampion não s¢mente não paga aluguel", pensava le, "mas tambm  quase nem chega a ter despesas. Vivendo como les vivem, apenas com  uma criada, fazendo les pr¢prios a maior parte dos trabalhos domsticos  e não tendo autom¢vel, devem mesmo gastar ridiculamente pouco.  ver-  dade que tm dois filhos para educar." Mas Burlap conseguia, por uma  espcie de passe de prestidigitaão mental em que era prof Öcient¡ssimo, fa-  zer que os dois filhos desaparecessem do campo de sua sensibilidade  consciente. "E entretanto Rampion deve fazer bom dinheiro. Vende muito  bem os seus quadros e desenhos. E tem um mercado regular para tudo  quanto lhe apraz escrever. Que ser que faz de todo sse dinheiro?",  perguntava le a si mesmo com uma ponta de ressentimento, enquanto  batia ... porta do est£dio. "Ser que o guarda? Ou que far , então?"

  - Entre! -- gritou a voz de Rampion do outro lado da porta.  Burlap comp"s o rosto num sorriso e abriu.  - Ali! s tu - disse Rampion. -- Não te posso apertar a mão agora.  Estava limpando os pincis. - Como est s?  Burlap sacudiu a cabea e disse que eõtava precisando dumas frias,  mas que seus recursos não lhe permitiam t-las. Caminhou em t"rno do  est£dio, olhando com ar reverente para as pinturas. A maior parte delas  dificilmente teria merecido a aprovaão de São Francisco. Mas que vida,  que energia, que imaginaão! A vida, no Fim de contas, era o que importa-  va. . . "Eu acredito na vida." Era o primeiro artigo do credo.

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  - Como  o t¡tulo dste? - perguntou Burlap, detendo-se na frente  duma tela que se achava no cavalete.  Enxugando as mãos enquanto se aproximava, Rampion atravessou o  quarto e parou ao lado de Burlap.  - Òste? Bem, Amor, suponho,  o nome que lhe darias. . . - P"s-se  a rir; tinha trabalhado bem aquela tarde e estava com ¢tima disposião.  - Mas as pessoas menos espirituais, menos refinadas, podem preferir al-  go mais cru. . . - Sorrindo um sorriso arreganhado, sugeriu algumas  das variantes mais cruas. O sorriso de Burlap era um tanto amarelo. -  Não sei se podes encontrar outros. . . - concluiu Rampion maliciosa-  mente. Na presena de Burlap, Mark achava divertido e ao mesmo tempo  sentia que era positivamente um dever ser chocante.  Falavam de um quadro um tanto pequeno, a ¢leo. Embaixo, no ngulo  esquerdo da tela, numa espcie de nicho entre um primeiro plano de  rochas escuras e troncos de rvores e um fundo de rochedos escarpados, 

212 

tendo por cima uma ab¢bada formada por uma massa de folhagem, duas  figuras, um homem e uma mulher, estavam deitadas, abraadas. Dois cor-  pos nus, branco o da mulher, e o do homem dum moreno avermelhado.  Òsses dois corpos eram a fonte de t"da a iluminaão do quadro. Os roche-# 

dos e os troncos de rvores do primeiro plano se silhuetavam contra a luz  que emanava das figuras. O precip¡cio, ao fundo, era dourado pela mesma  luz, que tocava a face inferior da folhagem acima, lanando sombras  sâbre uma massa espssa de verdura. Jorrava para fora do recesso no  qual o homem e a mulher se achavam, atravessando diagonalmente todo  o quadro, iluminado e criando - sentia-se -, pela sua radiosidade, uma  flora surpreendente de rosas,.de z¡nias e de tulipas gigantescas, com cava-  los, leopardos e pequenos ant¡lopes que iam e vinham entre as ffires enor-  mes; e, mais alm, uma paisagem verde que se ia aprofundando, plano  ap¢s plano, at o azul, com um vislumbre de mar entre as colinas; por ci-  ma, formas de nuvens enormes e her¢icas contra o cu azul.

  -  bonito - disse Burlap vagarosamente, sacudindo a cabea dian-  te do quadro.  - Mas estou vendo que tu o detestas. - Mark Rampion arreganhou  os dentes numa espcie de triunfo.  - Mas por que dizes isso? - protestou o outro com uma tristeza  suave de m rtir.  - Porque  verdade. A coisa não  suficientemente "suave-Jesus" pa-  ra ti. O amor, o amorfisico, como fonte da luz, da vida e da beleza - oh!  não, não, não!  por demais grosseiro e carnal;  lament...velmente fran-  co ...  - Mas ser que me tornas pela palmat¢ria do mundo?  - Não pela palmat¢ria do mundo. - O bom humor de Rampion  transbordou em zombaria. - Digamos: por São Francisco. Por falar nis-

  so, como vai a vida dle que est s escrevendo? Espero que ponhas nela  uma descrião bem suculenta daquele epis¢dio em que o santo lambe os  leprosos. - Burlap fez um gesto de protesto. Rampion riu escancarada-  mente. - Para falar a verdade, o pr¢prio São Francisco  um pouco cres-  cido para ti. As crianas não lambem os leprosos. S¢ os adolescentes  sexualmente pervertidos fazem isso. Santo Hugo de Lincoln, eis o que tu  s, Burlap. Òle era uma criana, tu sabes, um puro e suave nenzinho. Um  amorzinho de beb que gosta de nanar no colinho de sua mamãezinha.  Arregalava os olhos e mostrava-sq reverente diante das mulheres, como e  elas t"das fossem madonas. Vinha para se deixar acariciar e beijar, a fim

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  de que desaparecessem os seus dod¢is, e para ouvir a hist¢ria do pobre Je-  sus - ou mesmo para chuchar uns goles de leite, caso houvesse algum.  - Com efeito! -protestou Burlap.  - Sim, com efeito - parodiou Rampion. Gostava de atormentar o  outro, de fazer que le parecesse um m rtir cristão que perdoava... Era  bem feito: quem o mandara entrar ali com aquela atitude de disc¡pulo 

213# 

amado, quem o mandara dar mostras de uma reverncia e uma admi-  raão tão repugnantes?  - Santo Hugo de olhos arregalados e caminhar indeciso. Dandando  como um beb, todo reverente, na direão das mulheres, como se elas  tâdas fossem madonas. Mas, apesar disso, metendo a sua mãozinha  mimosa debaixo das saias delas ... Vinha para orar mas ficava para  compartilhar a cama da madonnina. - Rampion sabia um mundo de  coisas a respeito dos casos amorosos de Burlap e tinha adivinhado outras  tantas. --- Meu prezado Santo Huguinho! Como le vai caminhando  bonitinho para o quarto de dormir e que jeitinho gracioso de beb le tem  quando se aninha entre os len¢is! Estas coisas são demasiadamente  grosseiras e pouco espir¡tuais para o nosso Huguinho. - Atirou a cabea

  para tr s e desatou a rir.  -- Continua, continua - disse Burlap. - Que eu não te sirva de  est"rvo. - E, ... vista daquele sorriso espiritual de m rtir, Rampion riu  ainda mais estridentemente.  - Ora, ora, ora! - exclamou le, ofegante. - Na tua pr¢xima visita  hei de ter para ti uma c¢pia de Santa M"nica e Santo Agostinho, de Ary  Scheffer. Isso h de te fazer verdadeiramente feliz. Queres ver alguns dos  meus desenhos? - perguntou Rampion noutro tom. Burlap meneou a  cabea afirmativamente. - São grotescos em sua maioria. Caricaturas.  Um tanto livres, previno-te. Mas se queres vir olhar os meus trabalhos, j 

sabes o que te ~spera...

  Abriu a pasta que estava s"bre a mesa.  -- Por que imaginas que eu não gosto de teus trabalhos? - pergun-  tou Burlap. -- No Fim de contas, s um crente da vida e eu tambm o sou.  Temos as nossas diferenas; mas a respeito da maioria das questões o  nosso ponto de vista  o mesmo.  Rampion ergueu os olhospara le.  - Oh! Estou certo de que  o mesmo, sei que . - E tomou a arrega-  nhar os dentes.  - Bem, se sabes que  o mesmo - disse Burlap, cujos olhos, voltados  para o lado, não tinham visto o sorriso aberto no rosto do outro -, por  que imaginas que eu desaprovo os teus desenhos?  - Por que mesmo, não ? - motejou Rampion.  - Uma vez que o ponto de vista  o mesmo ...

  -  evidente que as pessoas que olham a paisagem do mesmo ponto  devem ser idnticas. - Nâvo arreganhar de dentes. - Q. E. D.* - Tor-  nou a virar-se para tirar um dos desenhos da p...sta. -- Eis o que eu cha~  mo F¢sseis do Passado e F¢sseis do Futuro. - Estendeu o desenho para 

* Abreviaão da expressão latina quod erat demonstrandum, muito usada em  matem tica, depois de se enunciar o resultado de uma demonstraão. Signoca "o que devia  ser demonstrado " (N. do E)

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 214

 Burlap. Era um trabalho a tinta, tocado com aquarela colorida, extraor-

  diri...riamente brilhante e v¡vido. Encurvada num S magnificamente vasto,  uma grotesca procissão de monstros marchava diagonalmente, atraves-  sando o papel de cima para baixo. Dinossauros, pterod ctilos,# 

titanotrios, dip"cos e ictiossauros caminhavam, nadavam ou voavam  ... cauda da procissão; a vanguarda era composta de monstros humanos,  criaturas de cabeas enormes, sem membros nem corpos, rastejando co-  mo lsmas s"bre prolongamentos vagamente viscosos dos seus queixos e  pescoos. A maior parte tinha os rostos de contemporneos eminentes,  No meio da multidão Burlap reconheceu J. J. Thompson, 1,orde Edward  Tantarnount, Bernard Shaw assistido por eumicos e solteironas. Sir Oliver  Udge, servido por um fantasma de cabea de nabo enrolado num lenol  e por um tubo cat¢dico ambulante; Sir Alfred Mond e a cabea de John  D. Rockefeller, carregada sâbre uma enorme travessa por um ministro  batista; o Dr. Frank Crane e a Sra. Eddy com aurolas, e muitos outros.  - Os lagartos morreram porque tinham corpo em excesso e a cabea  demasiadamente pequena - disse Rampion, explicando. -  pelo me-

  nos o que os cientistas nunca se cansam de nos dizer. O tamanho f¡sico   uma desvantagem, depois de certo ponto. Mas e o tamanho mental? Òstes  imbecis parecem esquecer que les são exatamente tão desequilibrados,  informes e desproporcionais corno qualquer dipl¢doco. Sacrificam a vida  fisica e afetiva ... vida mental. Que imaginam les que vai acontecer?  Burlap exprimiu o seu assentimento com um aceno de cabea.  -  o que sempre perguntei. O homem não pode viver sem coraão.  - Para não falar nas tripas, na pele, nos ossos e na carne. Òles estão  simplesmente marchando rumo da extinão. E - com mil diabos! --   uma felicidade. Mas o que h de mau no caso  que les estão arrastando  o resto do mundo consigo. Raios os partam! Devo confessar que não me  agrada ser condenado ... extinão s¢ porque sses imbecis e cientistas,  moralistas, espiritualistas, tcnicos, sses literatos e pol¡ticos de tendn-

  cias enaltecedoras e todo o resto do bando não tm o bom senso de ver  que o homem deve viver como homem, não como um monstro de cerebra-  lidade ou de alma. Brr! Eu quisera mat -los todos. -- Rep"s o desenho  na pasta e tirou outro. - Eis aqui dois Bosquejos de Hist¢ria, o da  esquerda segundo H. G. Wells, o da direita segundo eu.  Burlap olhou, sorriu e acabou rindo francamente.  - ¢timo!  O desenho da esquerda era composto ... maneira de um simples crescen-  do. Um macaco min£sculo era seguido por um pitecantropo levissima-  mente maior, o qual por sua vez era seguido por um homem de Neander-  thal levissimamente maior do que le. O homem paleol¡tico, o homem  neol¡tico, o eg¡pcio da Idade do Bronze e o homem babil"nico, o grego da

  Idade do Ferro e o homem romano - as figuras cresciam vagarosamente  em tamanho. · poca em que Galileu e Newton surgiram em cena, a 

215# 

humanidade tinha atingido dimensões bem respeit veis. O crescendo  continuava ininterrupto atravs de Watt e Stevenson, Faraday e Darwin,

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  Bessemer e Edison, Rockefeller e Wanamaker, para chegar ... perfeião  contempornea nas figuras do pr¢prio Sr. H. G. Wells e de Sir Alfred  Mond. E o futuro tambm não fora descurado. Atravs da bruma radiosa  da profecia, as silhuetas de Wells e Mond, que iam ficando sempre maio-  res a cada repetião, se espichavam numa espiral triunfante para alm do  papel, rumo do infinito ut¢pico. O desenho da direita tinha uma compo-  sião menos otimista de picos e decl¡nios. O min£sculo macaco bem  depressa florescia num homem da Idade do Bronze, o qual dava lugar a  um grego muito grande e a um etrusco escassamente menor. Os romanos  iam ficando de n"vo menores. Os monges da Tebaida mal se distinguiam  dos macaquinhos primitivos. Seguia-se um certo n£mero de florentinos,  inglses e franceses de bom tamanho. Vinham ap¢s stes uns monstros  revoltantes denominados Calvino e Knox, Baxter e Wesley. A estatura  dos homens representativos declinava. Os vitorianos tinham comeado a  ficar anões e disformes. Os'seus sucessores do sculo XX eram abortos.  Atravs das brumas do futuro podia-se ver a companhia decrescente de  pequenas g rgulas e de fetos cujas cabeas eram grandes demais para os  seus corpos gelatinosos, e as caudas simiescas; e os rostos de nossos  contemporneos mais eminentes todos a se morder, a se arranhar e a se  estripar uns aos outros com essa energia met¢dica e sistem tica que   apan gio exclusivo dos sres mui altamente civilizados.  - Eu quisera ter um ou dois dstes desenhos para o World - disse  Buriap, quando acabaram de examinar o conte£do todo da pasta. - Em  geral não reproduzimos desenhos. Somos francamente mission rios e não

  uma emprsa de arte pela arte. Mas estas coisas tuas são par bolas ao  mesmo tempo que pinturas. Devo dizer - acrescentou - que te invejo  sse poder que tens de dizer as coisas de modo tão imediato e econ"mico.  Eu gastaria centenas e milhares de palavras para dizer as mesmas coisas,  menos vigorosamente, num ensaio.  Rampion concordou com um meneio de cabea.  - Eis por que abandonei a pena por enquanto. As palavras não são l

muito adequadas para dizer o que eu acho que quepo dizer agora. E que  conforto fugir das palavras! Palavras, palavras! Elas levantam um muro  entre n¢s e o universo. Trs quartos do tempo a gente não est em contato  com as coisas, mas apenas com as malditas palavras que as representam.  E muitas vzes nem mesmo com elas e sim , com essa infernal algaravia  metaf¢rica dos poetas. "Vibra em cada hemist¡quio um cntico nupcial",

  por exemplo. Ou "E no seio nutriz da natureza bruta, resguardava o pu-  dor teu verde coraão!" Ou, então: "Uma ave negra friamente po. sta num  busto acima dos portais". - Olhou para Burlap com os dentes ... mostra.  - Mesmo a "ave negra" se transformou numa abstraão metaf¢rica.  "Friamente posta", com efeito! Oh, essas palavras! Como me sinto feliz 

216 

por ter fugido a elas.  como sair duma prisão - oh! uma espcie de pri-  são muito elegante e fant stica, cheia de frescos e de tapearias e o mais  que segue. Mas a gente prefere a verdadeira campina ao ar livre. A pintu-  ra, acho eu, nos põe em real contato com ela. Posso dizer o que quero.#

 

- Bem, tudo quanto posso fazer - disse Burlap -  fornecer um  p£blico para escutar o que tens a dizer.  - Pobres diabos 1 - exclamou Rampion, rindo.  - Mas eu acho que les devem escutar. Tem-se uma grande responsa-  bilidade. Eis a razão por que eu gostaria de publicar alguns dos teus dese-  nhos no L iteraiy World. Sinto que isso  realmente um dever.  - Ob! se  uma questão de imperativo categ¢rico - disse Rampion,

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  rindo de nâvo -, est claro então que deves faz-lo. Leva o que te agra-  dar. Quanto mais chocantes forem os desenhos que publicares mais pra-  zer hei de sentir.  Burlap sacudiu a cabea.  - Devemos comear suavemente - redargiu. Não acreditava na  Vida a ponto de correr o risco de reduzir a circulaão do jornal ...  - Suavemente, suavemente, . . - repetiu o outro, num tom de mofa.  Vocs, jornalistas, são todos os mesmos. Nada de solavancos. A segu-  rana antes de tudo. Literatura sem dor. Nada de preconceitos extra¡dos  a frio ou de idias pregadas a martelo:  preciso um anestsico. Os leito-  res devem ser mantidos permanentemente num estado de sono crepuscu-  lar. Vocs todos são um caso perdido.  - Um caso perdido - repetiu Burlap, num tom de penitncia -, eu  sei. Mas, ai!  preciso transigir um pouco com o mundo, a carne e o dia-  bo. 

- Pouco se me d que faas isso ou não --- respondeu Rampion.  O que me indigna  a maneira repugnante por que vocs transigem com o  cu, com a respeitabilidade e com Jeov . Enfun, suponho que em tais  circunstncias nada podes fazer ... Leva o que quiseres.  Burlap fez a sua escolha.  -- Levo stes - disse por fim, erguendo trs dos desenhos menos  polmicos e escandalosos. -- Fica bem9  Rampion deitou-lhe os olhos.

  - Se esperasses mais unia semana - resmungou le - eu teria uma  c¢pia de Ary Scheffer pronta para ti.  - Eu temo - disse Burlap com aquela expressão de espiritualidade  pensativa que sempre lhe vinha ao rosto quando le comeava a falar a  respeito de dinheiro -, temo que não te possa pagar muito por stes  trabalhos ...  - Ali! Ora ... Estou acostumado a isso. - Rampion encolheu os  ombros. Burlap ficou satisfeito por ver que o outro encarava a coisa  daquela maneira. E, no fim de contas, refletiu le, era verdade. Rampion  não estava habituado a ganhar muito. E depois, com aqule seu modo de 

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vida não precisava mesmo de muito ... Não tinha autom¢vel, não tinha  criados . . .  - Seria de desejar que se estivesse em condiões. . . - disse em voz  alta, refugiando-se no impessoal. - Mas o jornal. . . - Sacudiu a  cabea. - Tentar persuadir o p£blico a arriar as coisas elevadas, quando  les vem que isso não compensa... Pode-se conseguir 4 guintis por  desenho.  Rampion riu-se.  - Não  exatamente uma oferta principesca... Mas leva-os. Leva-os

  de graa, se quiseres.  - Não, não - protestou Burlap. - Eu não faria isso. O World não  vive de caridade. Paga o que publica - não paga muito, coitado! mas pa-  ga sempre um pouco; paga um pouco.  uma questão de princ¡pio -  continuou le, sacudindo a cabea -, mesmo que eu tenha de tirar  dinheiro do meu pr¢prio b"lso.  uma questão de princ¡pio. Absoluta-  mente de princ¡pio --- insistiu, contemplando com um frmito de  satisfaão leg¡tima o ¡ntegro e altru¡stico Denis Burlap que pagava os  colaboradores do seu pr¢prio b"lso e em cuja existncia le, enquanto  falava, estava comeando a acreditar. Continuou a falar e a cada uma de

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  suas palavras os contornos daquele Burlap magnificamente pobre mas  honesto se tornavam mais claros diante da sua visão interior; e ao mesmo  tempo o World arrastava-se, aproximando-se cada vez mais das bordas  da insolvncia, a conta do jantar crescia de momento para momento e  seus rendimentos particulares diminu¡am correl ativamente...  Rampion o contemplava com curiosidade. "Por que diabo estar le  agora a meter no corpo, a chicote, essa f£ria t"da?", perguntava le a si  mesmo. Uma explicaão poss¡vel s£bitamente lhe ocorreu. Quando Bur-  lap parou para respirar, Rampion sacudiu a cabea com simpatia:  - Aquilo de que precisas  dum capitalista. Se eu tivesse algumas  centenas ou alguns milhares de libras dispon¡veis, empregava-as no  World. Mas, ai de mim! não tenho. Nem 6 pence - concluiu le, quase  triunfalmente. E a expressão de simpatia se transformou de repente num  sorriso largo de dentes arreganhados. 

Naquela noite Burlap se atirou ... questão da pobreza franciscana. "De  ps descalos pelas colinas da £mbria ela caminha, a Senhora Pobreza."  Era assim que comeava o seu cap¡tulo. Stia prosa, em momentos de  exaltaões, tendia a transformar-se em versos brancos. "Pousam seus ps  nas alvas estradas poeirentas que lembram, a quem as contempla dos mu-  ros das pequenas cidades, brancas fitas estiradas l embaixo na planura."  Seguiam-se referncias ...s oliveiras nodosas, ...s vinhas, aos campos  terraplenados, aos "grandes bois brancos com os seus comos recurvos", 

218 aos burrinhos que carregavam pacientemente as suas cargas, subindo as

  estradas pedregosas, ...s montanhas azuis, ...s cidades que repousam s"bre  as colinas, na distncia - cada uma delas como uma pequena Nova# 

Jerusalm num livro de gravuras -, ...s guas cl ssicas de Clitumno e ...s  inda mais cl ssicas guas de Trasimeno. "Eis a¡ uma terra", continuou  Burlap, "e uma poca em que a pobreza era um ideal admiss¡vel,

  pratic vel. A terra provia a t"das as necessidades dos que viviam dela,  havia pouca especializaão profissional; cada campons era, numa larga  medida, seu pr¢prio manufator, do mesmo modo que era o seu pr¢prio  aougueiro, padeiro, verdureiro e vinhateiro. Uma sociedade na qual o  dinheiro era ainda relativamente sem importncia. A maioria o dispen-  sava quase por completo. Negociava diretamente com as coisas - os  objetos domsticos de seu pr¢prio fabrico e os tenros frutos da terra -,  e não tinha assim nenhuma necessidade dos metais preciosos que com-  pram as coisas. O ideal de pobreza de São Francisco era então pratic vel,  porque le propunha ... admiraão geral um m)do de vida que não diferia  enormemente do modo de vida efetivo dos seus mais humildes contem-  porneos. Òle convidava os membros ociosos da sociedade e aqules que  tinham uma especializaão profissional - os que viviam principalmente

  em funão do dinheiro - a viver como os seus inferiores estavam viven-  do, em funão das coisas. Como  diferente a situaão de hoje!" Burlap  caiu uma vez mais no verso branco, levado desta vez pela indignaão e  não pela ternura l¡rica. "Somos todos especialistas que vivemos em  funão s¢rnente do dinheiro e não das coisas reais, e habitamos  abstraões remotas e não o mundo verdadeiro que produz e que fabrica."  Garatujou alguma coisa a respeito das "grandes m quinas que, tendo si-  do escravas do homem, são agora suas tiranas", a respeito da estandardi-  zaão, da vida industrial e comercial e de seu efeito esterilizante sâbre a  alma humana (e para ste £ltimo ponto Burlap pediu emprestadas algu-

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  mas das frases favoritas de Rampion).  O dinheiro, concluiu Burlap, era a raiz de todo o mal; a fatal necessi-  dade, sob a qual o homem agora trabalha, de viver em funão do dinheiro  e não das coisas reais. "Aos olhos modernos os ideais de São Francisco  parecem fant sticos, supinamente insanos. A Senhora Pobreza foi rebai-  xada pelas circunstncias modernas at a semelhana duma jornaleira de  sapatos furados que usa avental de est"pa... Nenhum homem sensato  sonharia com segui-la. Idealizar uma Dulcinia tão repulsiva seria  mostrar-se mais louco do que o pr¢prio Dom Quixote. Dentro da nossa  sociedade moderna o ideal franciscano  impratic vel. Tomamos a pobre-  za detest vel. Mas isto não significa que possamos simplesmente  desdenhar São Francisco como se le fosse um vision rio de sonhos  loucos. Não. Pelo contr rio, a irisnia  nossa e não dle. Òle  o mdico  no manic"mio. Para os lun ticos o mdico parece ser o £nico louco.  Quando recobrarmos a razão, haveremos de compreender que le era o 

219# 

£nico homem são. Nas condiões atuais o ideal franciscario  inexeq¡vel.  A moral disso  que as condiões devem ser alteradas, radicalmefite. Nos-

  so alvo deve ser criar uma nova sociedade na qual a Senhora Pobreza seja  não a s¢rdida jornaleira, mas sim uma forma esplndida de luz, de graa  e de beleza. Oh, Pobreza, Pobreza, linda Senhora Pobreza. . .  Beatrice entrou para dizer que a ceia estava na mesa.  - Dois ovos - comandou ela, exprimindo a sua solicitude no tom vi-  vo e cortante da voz. - Dois, fao questão. Foram feitos especialmente  para voc.  - Tu me tratas como ao filho pr¢digo - disse Burlap. - Ou como  ao bezerro gordo quando estava sendo engordado. - Sacudiu a cabea,  sorriu o seu sorriso ... Sodoma e se serviu do segundo âvo.  - Quero pedir a sua opinião a respeito de algumas aões duma  companhia de gramof"nes que eu tenho - disse Beatrice. -- Elas tm  subido com tanta violncia. . .

  - Gramofones! - disse Burlap. - Ah ...  E deu a sua opinião. 

220 

CANTULO XVII 

Estava a chover havia v rios dias. Parecia a Spandrell que os cogume-  los e o m¡ldio estavam brotando at em sua alma. Deixava-se ficar na ca-  ma ou sentado no seu quarto sombrio, ou ainda encostado ao balcão dum  caf, sentindo a viscosidade crescer dentro dle, e observando- a com seus  olhos interiores.

  - Mas se ao menos tu fizesses alguma coisa - implorara-lhe tantas  vzes amãe. - Qualquericoisa ...  E todos os seus amigos tinham dito o mesmo, tinham continuado a  diz-lo durante anos ...  Mas le preferia ir para o inferno a ter de fazer alguma coisa. Traba-  lhar - o evangelho do trabalho, a santidade do trabalho, laborare est  orare* - tudo isso era tolice e conversa fiada. - Trabalho! - dissera  le um dia, num assomo de pouco caso diante das censuras cordiais de  Philip Quarles. - O trabalho não  mais respeit vel do que o lcool, e  serve exatamente para o mesmo fim: distrai simplesmente o esp¡rito, faz

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  que o homem se esquea de si mesmo. O trabalho não passa de uma  droga como as outras.  humilhante que os homens não possam viver  sem drogas, s¢briamente;  humilhante que les não tenham a coragem de  ver que o mundo e les mesmos são o que realmente são. Tm necessidade  de se narcotizar com trabalho.  imbecil. O evangelho do trabalho   simplesment o e~angelho daestupidez e da covardia. Trabalhar pode ser  orar; mas  tambm esconder a cabea na areia,  tambm fazer tanto  ru¡do e tanta poeira que a gente não possa ouvir a pr¢pria voz nem ver a  pr¢pria mão diante do rosto.  esconderirio-nos de n¢s mesmos. Não  admira que os Sainuel Smiles e os grandes homens de neg¢cios sejam tão  entusiastas do trabalho. O trabalho lhes d a ilusão confortadora de que  les existem e at de que são importantes. Se parassem de trabalhar, have-  riam de perceber que a maioria dles simplesmente não existe. São apenas  buracos no ar, nada mais. Buracos talvez um tanto malcheirosos. A mão-# 

ria das almas smileanas deve ter um certo mau cheiro, acho eu ... Não  admira que elas não ousem deixar de trabalhar. Poderiam descobrir o que  realmente são, ou antes, o que realmente não s~o.  um risco que não tm  a coragem de enfrentar.  E que foi que a tua coragem te permitiu descobrir em ti mesmo?  inquirira Philip Quarles.

  * Trabalhar  rezar. (N. do E.) 

221# 

Spandrell arreganhou os dentes duma  melodram tica.  - Foi preciso alguma coragem para continuar a olhar o que eu tinha

  descoberto. Se eu não tivesse sido tão bravo, havia muito que estaria  entregue ao trabalho ou ... morfina.  Spandrell se dramatizava um pouco, fazia a sua atitude parecer um  pouco mais racional e romntica do que na realidade era. Se não fazia na-  da, era em virtude de uma preguia habitual e tambm por um princ¡pio  moral sofistico e subversivo. A preguiga tinha mesmo precedido o  princ¡pio e era a raiz dste. Spandrell nunca teria descoberto que o traba-  lho era um opiato pernicioso se não tivesse de achar uma razãoe uma  justificaão para a sua preguia invenc¡vel. Mas era verdade que se fazia  necess ria alguma coragem de sua parte para não fazer nada; porque le  era preguioso a despeito das devastaões de um tdio cr"nico, que podia  tornar-se, em momentos comq aqule, quase insuport...velmente agudo.  Mas o h bito da ociosidade estava nle tão profundamente inveterado

  que, para quebr -lo, havia mister de mais coragem do que para suportar  as agonias do tdio a que ela dava lugar. O orgulho tinha reforado aque-   SU  Ia preguia natural - o orgulho dum liornem capaz que não tficiente-  mente capaz, dum admirador das grandes realizaões que compreende  que lhe falta talento para realizar uma obra original, que não quer humi-  lhar-se corn o que le sabe que h de ser uma tentativa infrut¡fera de criar,  ou que não quer rebaixar-se, ainda que com xito, a um trabalho mais  f cil. 

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  maneira levemente 

-- Fica-te muito bem falar de trabalho -- dissera le a Philip - Mas  tu podes fazer alguma coisa, eu não posso. Que queres que eu faa? Que  me empregue num banco? Que me torne caixeiro-viaj ante?  - H outras profissões - respondeu Philip. - E, j que possuis al-  gum dinheiro, tens todo o campo da erudião, tâda a hist¢ria natural ...  - Oli! Tu queres que eu seja um colecionador de formigas, não? Ou  um escritor dsses que escrevem teser, s¢bre: o emprgo do sabão entre os  angevinos. Um bom velho tio Tobias com as suas manias. Mas, eu te di-  go, não quero ser nenhum tio Tobias. Se na verdade não presto para nada,  prefiro continuar a ser simplesmente imprest vel. Não quero disfarar-me  de homem instru¡do. Não quero ser representante de uma mania qualquer.  Quero ser o que a natureza f-ez de mim -- um in£til.  Desde o segundo casamento de sua mãe, Spandrell tinha sempre feito  perversamente as piores coisas, escolhido o caminho pior, cultivado  deliberadamente as suas piores tendncias. Era com a devassidão que le  distra¡a os seus ¢cios sem f . Estava se vingando dela, e de si mesmo  tambm, por ter sido tão es...pidamente feliz e bom. Agia assim por des-  peito dela, por despeito de si mesmo, por despetio de Deus. Esperava que  houvesse um inferno para onde ir e lamentava a sua incapacidade de acre-  ditar na existncia dle. Enf im, houvesse ou não inferno, era satisfat¢rio, #

 

222 

era mesmo excitante naqueles primeiros tempos saber que se estava fazen^  do algo de mau e de errado. Mas h na devassidão alguma coisa tão  intrinsecamente mon¢tona, algo tão absoluta e desesperadamente triste,  que s¢ os sres raros, dotados duma dose de inteligncia muito inferior ...  habitual e de muito mais apetite do que o vulgar, podem continuar a go-  zar ativamente o v¡cio e a acreditar na sua maldade. A maioria dos devas-  sos  devassa não porque goste da devassidão, mas sim porque sente mal-  estar quando se priva dela. O h bito transforma os gozos esquisitos em

  necessidades mon¢tonas e cotidianas. O homem que adquiriu o h bito  das mulheres ou da genebra, de fumar ¢pio ou de suportar a flagelaão,  acha tão dificil viver sem os seus v¡cios como viver sem pão e gua,  mesmo quando a pr tica do v¡cio se possa ter tornado em si mesma tão  despida de sensaão como comer uma c"dea de pão ou beber um copo de  gua da pena. O h bito  tão fatal para o sentimento da pr tica do mal  como para o g"zo ativo. Depois de alguns anos o judeu convertido ou  ctico e o hindu ocidentalizado podem comer carne de porco e came de  boi com uma serenidade que para os seus irmãos ainda crentes parece  brutalmente c¡nica. Passa-se o mesmo com o devasso habitual. As aões  que a princ¡pio se afiguram emocionantes, excitantes na sua maldade  intr¡nseca, tornam-se, depois de um certo n£mero de repetiões, moral-  mente neutras. Um pouco desgostantes, talvez, porque a pr tica da maio-

  ria dos v¡cios e seguida de reaões fisiol¢gicas deprimentes; mas que jnão são "m s", porque se fizeram costumeiras.  dificil uma rotina dar a  impressão de maldade.  Privado gradualmente, pelo h bito, de seu gâzo ativo e tambm de seu  sentimento ativo de fazer o mal (sentimento que tinha sido sempre uma  parte integrante de seu prazer), Spandrell voltara-se numa espcie de  desespro para os refinamentos do v¡cio. Mas os refinamentos do v¡cio  não produzem refinamentos correspondentes das sensaões. D -se justa-  mente o contr rio; quanto mais refinado  o v¡cio na sua extravagncia  e5~tudada, quanto mais anormal e raro  le, tanto mais mon¢tona e

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  desesperadamente vazia de emoão se torna a sua pr tica. A imaginaão  pode esforar-se em conceber as mais improv veis variaões s¢bre o tema  sexual normal; mas o produto emocional de t"das as variedades de orgia   sempre o mesmo --- um sentimento sombrio de humilhaão e baixeza.  H muitas pessoas,  verdade (e são em geral as mais intelectualmente  civilizadas, refinadas e sofisticadas), que tm uma inclinaão irresistivel  para o que  baixo e que procuram ...vidamente a sua pr¢pria baixeza no  meio de m£ltiplas orgias, prostituiões masoquistas, uniões acidentais e  quase bestiais com estranhos, relaões sexuais com criaturas grosseiras e  sem educaão de uma classe inferior. O excessivo refinamento esttico e  intelectual corre o risco de ser comprado um tanto caro, ... custa de algu-  ma estranha degeneraao emotiva, e o chins perfeitamente civilizado,  com o seu amor da arte e o seu amor da crueldade, sofre, sob uma outra 

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forma, da mesma molstia que d ao esteta moderno perfeitamente civili-  zado o g"sto pelos soldados da guarda e pelos apaches, pelas promiscui-  dades humilhantes e pelas violncias.  "Alta intelectualidade, baixa animalidade" - f"ra assim que Rampion

  uma vez resumira o caso aos ouvidos de Spandrell. - Quanto mais alta   uma mais baixa  a outra. - Spandrefl, de sua parte, não tinha nenhum  g"sto pela humilhaão. Os resultados emocionais de todos os refina-  mentos poss¡veis do v¡cio lhe pareciam mon¢toriamente uniformes.  Divorciadas de t"da emoão significativa, f"sse ela de aprovaão ou fosse  cheia de remorsos, as meras sensaões de excitamento e de prazer fisicos  eram-lhe ins¡pidas. A corrupão da juventude era a £nica forma de liberti-  nagem que agora lhe dava algumas emoões ativas. Inspirado, como  Rampion adivinhara, por aqule curioso ¢dio vingado ao sexo, produto  do choque causado pelo segundo casamento de sua mãe, choque que se ti-  nha superposto, num momento delicado de sua adolescncia, ... educaão  burguesa normal de refinamento e de contenão cavalheiresca - Span-  drell podia ainda sentir uma satisfaão particular em infligir o que le ti-

  nha considerado como sendo a humilhaão do prazer sensual ...s inocentes  irmãs dessas mulheres muit¡ssimo amadas, e portanto detestadas, que  haviam sido para le a personificaão do detestado instinto. Odiando du-  ma maneira medieval, Spandrell se vingou, -não (como os ascetas e os  puritanos) mortificando a carne odiada das mulheres, mas ensinando-lhes  uma indulgncia que le pr¢prio considerava como m , atraindo-as com  as suas car¡cias para uma rebelião cada vez mais completa e triunfante  contra a alma consciente. E o est dio final de sua vingana consistia em  insinuar gradualmente no esp¡rito da v¡tima o sentimento do rro e da bai-  xeza fundamental das del¡cias, dos arroubos que le mesmo lhe ensinara  a sentir.  Harriet, a pobre criaturinha, era a £nica inocente com a qual, at  então, Spandrell conseguira executar integralmente o seu programa. Com

  as suas predecessoras nunca tinha ido tão longe; e Harriet não tivera  sucessoras. Seduzida da maneira que Maurice descrevera aos Rampions,  Harriet o tinha adorado e imaginara-se adorada. E quase chegara a ter  razão; porque Spandrell sentia sinceramente afeião por ela, mesmo  quando estava deliberadamente procurando transform -la em sua v¡tima.  A violaão de seus pr¢prios sentimentos, bem como dos dela, forneceu ao  caso o tempro suplementar da perversidade. Pacientemente, com o tato e  a delicadeza e a compreensão do mais delicado, do mais esquisitamente  compreensivo dos amantes, le lhe acalmou os temores virginais e fundiu  gradualmente a frieza de sua mocidade, fez cair as barreiras que a sua

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  educaão levantara - tudo isso para impor ... inexperincia a aceitaão  ingnua das mais fant sticas lubricidades. V-las aceitas por Harriet co-  mo sinais ordin rios de afeião era j , para o asceta ...s avessas que havia  dentro de Spandreil, uma admir vel vingana que le tomava do fato de 

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ela ser mulher. Mas isso não bastava; comeou a simular escr£pulos, a  encolher-se com um ar de ang£stia, fugindo aos ardores dela; se os aceita-  va, fingia faz-los passivamente, como se le estivesse sendo ultrajado e  violado. Harriet ficou subitamente ansiosa e angustiada, sentiu vergonha,# 

como acontece sempre as pessoas sensiveis cujos ardores não encontram  eco; e repentinamente, ao mesmo tempo, a rapariga se achou um pouco  grotesca, como um ator que, estando a representar com um grupo de  companheiros,  abando , nado e de s£bito percebe que est s¢ no palco -  sentiu-se grotesca e mesmo um pouco repugnante. Seria que le não a  arriava inais9 Amava-a muito, respondeu Spandreli. Então, por qu9  Precisamente por causa da profundeza de seu amor; e le comeou a falar  a respeito da alma. O corpo era como uma bsta feroz que devorava a ai-  ma, anulava a conscincia, abolia o eu e o tu verdadeiros. E como se, por

  casualidade, algum naquela mesma noite tivesse mandado a Spandrell  um pacote misterioso - foi le aberto e descobriu-se que continha uma  pasta, cheia de gravuras francesas pornogr ficas nas quais a pobre Har-  riet viu, com uma sensaão crescente de horror e repugnncia, tâdas as  aões que ela tão inocentemente e tão calorosamente aceitara como amor,  representadas em contornos frios e l£cidos e figuradas de maneira tão  odiosa, tão baixa, tão profundamente vulgar que bastaria pâr-lhes os  olhos em cima para odiar e desprezar tâda a raa humana.  Durante alguns dias Spandrell h...bilmente a saturou de horror; e  depois. quando elaj estava completamente impregnada do sentimento de  culpabilidade e arrepiada de nojo de si mesma, Maurice c¡nica e violenta-  mente renovou o seu agora obsceno assdio amoroso. Ela acabou por  deix ~lo, odiando-o, odiando-se a si mesma. Aquilo acontecera trs meses

  atr s. Spandrell não fizera nenhuma tentativa para recuper -la ou para  repetir a experincia com outra v¡tima. A coisa não valia o esf"ro.  Contentava-se com falar a respeito dos est¡mulos do diabolismo, ao passo  que na pr tica permanecia mergulhado ap...ticamente na rotina tristonha  do brandy e do amor verial. Aquela conversaão o excitara inomentnea-  mente; mas, passada que foi, Spandrell tornou a cair ainda mais fundo no  tdio e no abatimento. Havia ocasiões em que le sentia uma espcie de  paralisia interior, como se a alma, a pr¢pria alma, perdesse pouco a pou-  co a conscincia de existir. Era uma paralisia suscet¡vel de ser curada por  um esfâro de vontade, Mas le não podia nem mesmo queria fazer sse  esf"ro.  -- Mas se tu te entedias, se tu detestas isso -- Philip Quarles tinha

  perguntado, locando s"bre Spandrell a sua curiosidade viva e inteligente  -, por que diabo continuas nessa vida? - Havia então um ano que a  pergunta tinha sido formulada; a paralisia, ...quela poca, não estava tão  profundamente infiltrada na alma de Spandrefi. Mas j então Philip havia  achado o caso dle muito enigm tico. E j que o homem estava disposto  a falar a respeito de si mesmo sem exigir nenhuma confidncia pessoal em 

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troca, j que le não parecia p"r objeões a ser alvo da cuiiosidade  cient¡fica e se mostrava mais jactancioso do que reticente a respeito de  suas fraquezas, Philip tinha aproveitado a oportunidade para interrog -lo.  - Não consigo descobrir por qu. . . - insistiu. Spandrell encolheu  os ombros.  - Porque estou condenado a ela. Porque de certo modo  o meu desti-  no. Porque, finalmente, a vida  isso mesmo - detest vel e cacte; eis o  que são os sres humanos, quando ficam entregues a si mesmos -- odio-  sos e aborrecidos tambm. Porque, uma vez que estamos desgraados,  devemos desgraar-nos duplamente. Porque ... sim, porque eu realmente  gosto de odiar e de viver entediado ...  Gostava daquilo. A chuva ca¡a, ca¡a; os cogumelos brotavam dentro de  seu coraão e le propositadamente os cultivava. Podia ter ido ver os ami-  gos; mas preferia ficar s¢ e aborrecer-se. A temporada de concertos esta-  va no auge, havia ¢pera em Covent Garden, todos os teatros estavam  abertos; mas Spandrell apenas lia os an£ncios - A Her¢ica no Queen's  Hall, Schnabel tocando Op. 106 no Wigmore, Don Giovanni no Covent  Garden, Little Tich no Alhambra, Otelo, no Old Vic, Charlie Chaplin no  Marbie Arch -, lia-os com muito cuidado e ficava em casa. Havia uma

  pilha de m£sicas em cima do piano, suas prateleiras estavam cheias de  livros, tâda a London Library se achava ... sua disposião; Spandrell não  lia nada a não ser magazines, seman rios ilustrados e os jornais matuti-  nos e vespertinos. A chuva deslizava incessantemente pelos vidros sujos  das janelas; Spandrell virava as enormes p ginas crepitantes do Times.  "O Duque de York" - leu le, depois de ter devorado o seu caminho, co-  mo a larva do escaravelho bosteiro em seu elemento nativo, atravs de  Nascimentos, Mortes, An£ncios Pessoais, atravs de Precisa-se e  Im¢veis, atravs das Notas Forenses, das Not¡cias do Imprio e do  Estrangeiro, atravs do Parlamento, atravs do boletim meteorol¢gico,  atravs dos cinco artigos editoriais, atravs das Cartas ao Diretor, at  chegar ao pequeno ensaio clerical s"bre "A B¡blia em Dias de Mau  Tempo" -, "O Duque de York receber na pr¢xima segunda-feira o

  t¡tulo & S¢cio Honor rio da Companhia de Arames Gold and Silver. Sua  Alteza Real jantar com o presidente e os diretores da companhia ap¢s a  cerim"nia". Pascal e Blake estavam ao alcance da mão, na prateleira.  Mas "Lady Augusta Crippen deixou a Inglaterra no 'Berengaria'.  Atravessar a Amrica para visitar o seu cunhado e a sua irmã, o  governador-geral da Melansia do Sul e Lady Ethelberta Todhunter".  Spandrell desatou a rir e a sua risada era uma libertaão, era uma fonte  de energia. Ergueu-se; vestiu o seu imperme vel e saiu. "O governador-  geral da Melansia do Sul e Lady Ethelberta Todhunter." Ainda sorrindo,  entrou no caf da esquina. Era cedo; havia apenas um outro fregus no  bar. 

226

  I  - A trâco de que duas pessoas devem ficar juntas para ser infelizes?  estava perguntando a caixeira. - A tr"co de qu? quando podem# 

conseguir um div¢rcio e viver felizes ...  O fregus solit rio replicou:

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  Porque o matrim"nio  um sacramento.  Pois fique-se com o seu sacramento! - retorquiu a mâa,  desdenhosamente. Dando pela presena de Spandrefi, Fez um aceno de  cabea e sorriu. Maurice era um cliente habitual.  - Brandy duplo - pediu le. Curvando-se sâbre o balcão, examinou  o desconhecido. Tinha ste uma cara de menino de c"ro - mas de um  menino de câro que de s£bito houvesse sido assoberbado pela idade  madura; rechonchudo, duma gordura bonitinha de boneca, mas mirrado.  A bâca era horrivelmente pequena, como uma fenda min£scula num  botão de rosa. As bochechas de querubim tinham comeado a cair e eram  cinzentas, como o queixo, que trazia a barba da vspera.  - 'Porque - continuou o desconhecido, e Spandrell percebeu que le  nunca ficava quieto, mas estava constantemente a sorrir, a franzir o  cenho, a alar as sobrancelhas, a atirar a cabea para um lado ou para  outro, retorcendo o corpo num xtase perptuo de vaidade pessoal -,  porque um homem deve unir-se ... sua mulher e tornar-se com ela uma s¢  carne. Uma s¢ carne - repetiu, fazendo acompanhar as palavras duma  torcedura de corpo mais vigorosa que as outras e dum risinho espremido.  Seu olhar encontrou o de Spandrell. O homem corou e, para salvar as  aparncias, esvaziou r...pidamente o seu copo.  - Que pensa o senhor, Sr. Spandreli? - perguntou a empregada do  bar ao voltar-se para apanhar a garrafa de brandy.  - A respeito de qu? De ser uma s¢ carne? - A m"a Fez com a  cabea um sinal afirmativo. - Hum! Justamente eu estava h pouco

  invejando o governador-geral da Melansia do Sul e Lady Ethelberta  Todhunter por serem ambos duma maneira tão inequ¡voca duas carnes  separadas. Se voc se chamasse governador-geral da Melansia do Sul -  continuou le, dirigindo-se para o mirrado menino de c"ro - e a sua  mulher f"sse Lady Ethelberta Todhunter, supõe que ambos seriam uma  s¢ carne? - O desconhecido enroscou-se todo, como um verme num  anzol. -  evidente que não. Seria chocante se o f"ssem.  O desconhecido pediu outro u¡sque.  - Mas, brincadeira ... parte - disse -, o sacramento do  matrim"nic, ...  - Mas a tr"co de que duas pessoas hão de ser infelizes - insistiu a  caixeira -, quando não  necess rio?  - E por que não hão de ser infelizes? - inquiriu Spandrell. - Tal-

  vez seja para isso mesmo que elas estão no mundo. Sabes l se por acaso  a terra não  o inferno de algum outro planta? 

227# 

A rapariga, muito positivista, desatou a rir.  - Que asneira! 

--- Mas os anglicanos não consideram o matrimânio um sacramento  - continuou Spandre11.  Ci menino de c"ro torceu-se de indignaão.  - O senhor me torna por um anglicano?  O dia de trabalho terminara; o bar comeou a encher-se de homens que  procuravam repouso espiritual. Jorrava a cerveja, o lcool era medido em  copinhos, preciosamente. Em stout*, em bitter, em u¡sque, les compra-  vam sucedneos de viagens ao estrangeiro e o xtase m¡stico; o sucedneo  da poesia, de fins de semana em companhia de Cle¢patra, de caadas em  grande escala e da m£sica. O menino de c¢ro pediu mais outro u¡sque.

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  - Que idade, esta em que vivemos! - disse le, sacudindo a cabea.  B rbara. Que ignorncia abismal das mais rudimentares verdades reli-  giosas!  - Para não falar nas verdades higinicas - disse Spandrell. - Estas  roupas molhadas! E nem ao menos uma janela. . . - Tirou o leno e  levou-o ao nariz.  O menino de câro stremeceu e levantou os braos:  -- Mas que leno! - exclamou - que horror!  Spandrell afastou-o do rosto, para o examinar.  - Parece-me um leno bem bonito. - Era uma bandana de sda  vermelha, com desenhos vivos em negro e rosa. - Extremamente caro,  devo acrescentar ...  - Mas a c"r, meu caro senhor. A c"r!  - Gosto.  -- Mas não para esta poca do ano. Entre a P scoa e o Pentecostes?  Imposs¡vel! A c"r lit£rgica  o branco. - Tirou para fora o seu leno.  Era alvo como a neve. - E minhas meias. . . - Levantou um p.  - Eu estava perguntando a mim mesmo por que  que voc anda com  sse ar de quem vai jogar tnis ...  - Branco, branco - disse o menino de câro. - Est prescrito. Entre  a P scoa e o Pentecostes a casula deve ter o branco como c¢r predomi-  nante. Sem levar em conta que hoje  a festa de Santa Nat lia, a Virgem.  E o branco  a c"r para tâdas as virgens que não sejam tambm m rtires.  - Pois eu diria que elas tâdas foram m rtires - volveu Spandrell.

  Isto , desde que tenham ficado virgens durante muito tempo ...  A porta de vaivm se abria e fechava, se abria e fechava. L fora havia  a solidão e o crep£sculo £mido; ali dentro, a felicidade de serem muitos,  de estarem em contato ¡ntimo. O menino de c¢ro comeou a falar do  pequenino Santo Hugo de Lincoln e de São Piran de Perranzabuloe, 

* Cervejafone (N. do E.) 

228 

patrono dos mineiros da Cornualha. Bebeu outro u¡sque e conflou a  Spandrell que estava escrevendo em verso as vidas dos santos inglses.

- Mais um Derby debaixo da gua - profetizou um grupo de pessi-  mistas, ao balcão; e eram felizes por poderem profetizar assim em grupos,  com bom tempo dentro do ventre e um sol acervejado nas almas. As rou-  pas molhadas despediam um vapor mais sufocante do que nunca - um  vapor de felicidade; o som das conversas e das risadas era ensurdecedor.  O mirrado menino de c"ro soprou na cara de Spandrell o seu h lito  alco¢lico e os seus vsos. 

"Das Cassitridas em meio

  Por s"bre o mar o santo veio cantarolou le. Quatro u¡sques j o tinham quase curado das torceduras e

  das caretas. O homenzinho havia perdido o seu embarao. O espectador  consciente de si mesmo tinha ido dormir. Que viessem outros u¡sques, e  não haveria mais um eu de que se pudesse ter conscincia.  - "Mui leve. . . " - continuou: - 

"Mui leve s"bre as ondas andou  São Piran de Perranzabuloe. "

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 Foi o principal milagre de Piran - explicou le -, caminhar do

  Land's End at as ilhas Scilly.  - Por um triz que não bate o recorde mundial, hein? - observou  Spandrefi.  O outro sacudiu a cabea.  - Houve um santo irlands que foi a p para Gales. Mas não me pos~  so lembrar do nome dle. M"a! - chamou. - Aqui! Outro u¡sque, faa  o favor.  - F"ra  reconhecer - disse Spandrell - que voc sabe aproveitar  ste mundo e o cu tambm. Seis u¡sques ...  - S¢ cinco - protestou o menino de c"ro. - Òste  apenas o quinto.  - Cinco u¡sques, então, e as c"res lit£rgicas. Sem falar em São Piran  de Perranzabuloe ... Voc acredita mesmo naquela caminhada at as  ilhas Scilly?  - Absolutamente.  - Aqui est , para o mâo do Sacramento - disse a caixeira, empur-  rando o copo sâbre o balcão.  O menino de c"ro sacudiu a cabea enquanto pagava.  Blasfmias por todos os lados. Cada palavra  mais uma chaga  no Sagrado Coraão. - Bebeu. - Uma chaga sangrenta e dolorosa a  mais! 

229

230 

Como voc goza com sse seu Sagrado Coraão!  Gozar? - repetiu o menino de c¢ro, indignado.  Cambaleando do balcão para os degraus do a.Itar. E do confes-  sion rio para o bordei.  a vida ideal. Nem sequer um iristante de mono-  tonia. Eu o invejo.  - Continue a zombar, continue! - O outro falava com o tom de um  m rtir agonizante. - Se o senhor soubesse que tragdia tem sido a minha

  vida, não diria que me inveja.  A porta se abria e fechava, se abria e fechava. Cheios da divina sde  apanhada nos desertos espirituais das oficinas e dos escrit¢rios, os  homens chegavam como a um templo. A misteriosa divindade que se lhes  revelava era engarrafada e posta em tonis ...s margens do Clyde e qo Lif-  fey, do Umisa, do Douro e do Trent. Para os brmanes que espremiam  e bebiam o soma, o seu nome era Indra; para os iogues comedores de  haxixe, Siva. Os deuses do Mxico moravam dentro do peiote. Os sufis  persas descobriram Al no vinho de Xiraz, os xamãs dos samoiedos  comiam cogumelos e ficavam cheios do esp¡rito de Num.  - Mais outro u¡sque, senhorita -- pediu o menino de c¢ro. E, voltan-  do-se para Spandreil, quase verteu l grimas s¢bre as suas desgraas. Ti-  nha amado, tinha casado - sacramentalmente; insistia nisso. F"ra feliz.

  Ambos haviam sido felizes.  Spandrell alou as sobrancelhas.  - Ela gostava do cheiro de u¡sque9  O outro sacudiu a cabea tristemente.  - Eu tinha os meus defeitos - confessou. - Era fraco. Esta maldita  bebida! Maldita! - E num s£bito entusiasmo pela temperana derramou  o seu u¡sque no soalho. - Pronto! - exclamou triunfalmente.  - Que nobreza! - disse Spandreil. Acenou, para a rapariga do bar.  - Outro u¡sque para ste cavalheiro.  O menino de c"ro protestou, mas sem muito ardor. Soltou um suspiro.

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  - Òste foi sempre o meu grande pecado. Mas depois ficava sempre  arrependido. Sinceramente arrependido.  - Tenho certeza disso ... Nunca um instante de aborrecimento ...  - Se ela tivesse continuado comigo, eu me poderia ter curado ...  - A ajuda duma mulher pura, hein?  - Exatamente - fez o outro, com um sinal afirmativo de cabea. -   exatamente isso. Mas ela me abandonou. Fugiu. Ou antes, não fugiu.  Foi seduzida. Não teria feito isso por si mesma. Foi aquela horr¡vel cobri-  nha que se escondia na relva. Aqule. . . - Neste ponto le Fez uso do  vocabul rio vigoroso do estivador. - Eu lhe torceria o pescoo se le  estivesse aqui - continuou 'o menino de câro. O Senhor das Batalhas  baixara no seu quinto u¡sque. - Aqule porco imundo! - Deu um ssoco  sâbre o balcão.---0 senhor conhece o homem que pintou aqules qua-  dros da Tate Gallery, o Bidlake? Pois bem, foi o filho dsse sujeito. Wal-  ter Bidlake. 

Spandrell ergueu as sobrancelhas, mas não fez coment rios. O menino  de c¢ro continuou a falar. # 

Walter jantava no Sbisa com Lucy Tantamount.

  - Por que não vais tambm a Paris? - perguntou Lucy  Walter sacudiu a cabea.  - Preciso trabalhar.  - Acho verdadeiramente imposs¡vel ficar num lugar mais de um par  de meses de cada vez. A gente envelhece, murcha, fica indi71velmente  aborrecida ... Assim que embarco no avião, em Croydon, tenho a  impressão de que estou nascendo de n¢vo - como no Exrcito da  Salvaão.  - E quanto tempo dura a nova vida?  Lucy encolheu os ombros.  - Tanto tempo quanto a velha. Mas, por sorte, h aviões em quanti-  dade quase ilimitada. Eu sou francamente pelo progresso. 

As portas do-templo do deus desconhecido fecharam~se atr s dles.  Spandrell e seu companheiro sa¡ram pga a escuridão fria e chuvosa.  - Uf! - fez o menino de c"ro, tiritando. Levantou a gola do imper-  me vel. -  o mesmo que mergulhar numa piscina.  --  como ler Haeckel depois de Fnelon. Vocs, cristãos, vivem num  universozinho ador vel transformado em caf.  Caminharam alguns metros rua abaixo.  - Olhe aqui -- disse Spandrell -, acha que pode ir para casa a p?  Porque voc não d a impressão de ser capaz disso ...  Apoiando-se ao poste de iJuminaão, o menino de c"ro sacudiu a  cabea.  - Vamos esperar um t xi.  Esperaram. A chuva ca¡a. Spandrell olhou para o outro homem com

  uma aversão fria. A criatura o tinha divertido; durante o tempo em que  ambos haviam permanecido no caf, servira-lhe de distraão. Agora, de  repente, o homenzinho se mostrava simplesmente repulsivo.  - Não tem mdo de ir para o inferno? - perguntou Maurice. - L

hão de faz-lo beber u¡sque em chamas. Voc ter eternamente na barriga  um pudim de Natal. Se voc pudesse ver a si mesmo como est agora...  Que espet culo revoltante!  O sexto u¡sque do menino de c¢ro tinha sido cheio de contrião.  - Eu sei, eu sei. . . - gemeu le. - Eu sou repugnante. Sou  desprez¡vel. Mas se o senhor soubesse como eu tenho lutado, como tenho

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  me esforado e ... 

231# 

- Ali vem um t xi - Spandrell deu um grito.  - Como tenho orado. . . - continuou o menino de c"ro.  - Onde mora?  - Ossian Gardens, 4 1. Tenho lutado ...  O carro estacou na frente dles. Spandreli abriu a porta.  - Entre, seu borracho - disse le, dando um empurrão no outro.  Ossian Gardens, 41 - ordenou ao condutor. O menino de c¢ro, entre-  mentes, se tinha arrastado para o banco. Spandrell o seguiu. - Lsma  nojenta!  - Continue, continue. Eu mereo ... O senhor tem t"da a razão de  me desprezar.  - Eu sei. Mas se voc pensa que lhe vou dar o prazer de continuar a  dizer-lhe estas coisas, est muito enganado. - Inclinou-se para tr s no

  seu canto e cerrou os olhos. Tâda a sua terrificante lassidão, tâda a sua  repugnncia lhe tinham voltado de s£bito. - Deus - disse le interior-  mente -, Deus, Deus, Deus. - E, como um eco grotesco e escarninho  de seus pensamentos, o menino de câro orava em voz alta.  - Deus tenha piedade de mim - repetia a voz lamurienta. Spandrell  explodiu numa gargalhada.  . Deixando o brio junto ao portal de sua casa, Spandrell voltou para o  t xi. Lembrou-se s£bitamente de que não tinhajantado.  - Para o Sbisa's Restaurant - disse para o condutor. - Deus, Deus  - repetiu depois na escuridão. Mas a noite era um v ctio enorme.  - L est Spandrell! - gritou Lucy, interrompendo o companheiro  no meio duma frase. - Ergueu o brao e acenou.  - Lucy! - Spandrell tomou-lhe da mão e beijou-a. Sentou~se ... mesa

  dles. - H de te interessar saber, Walter, que acabo de fazer o papel do  bom samaritano para com a tua v¡tima.  - Minha v¡tima?  - O teu c"rno, Carling; não  assim que le se chama? - Walter  corou, agoniado. - Ele usa os chifres como t"da a gente. Bem da manei-  ra tradicional. - Olhou para o interlocutor e alegrou-se por ver sinais de  ang£stia no rosto dle. -- Encontrei-o afogando as suas m goas em  u¡sque - continuou Spandrell maliciosamente. - O grande remdio  romntico.  Era um al¡vio poder vingar-se um pouco de suas pr¢prias misrias. 

CAPiTULO XVIII

  Em Port Said desceram ... terra. O costado do navio era um precip¡cio  de ferro. A seus ps a chalupa arfava s¢bre um mar sujo e suavemente  agitado; entre a sua amurada e a extremidade da escada do portal¢ um  pequeno abismo se contra¡a e alargava. Para um par de pernas sãs o salto  não seria nada. Mas Philip hesitou. Saltar com a perna aleijada na frente  podia significar uma queda sob o choque da chegada; e se le se fiasse  naquela perna para lhe dar o impulso, haveria uma boa probabilidade de  cair ridiculamente antes de atingir a chalupa. Foi salvo desta situaão por#

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um senhor de ar militar que o precedera no salto.  - Olhe, segure a minha mão - disse le, percebendo a hesitaão de  Philip e a sua causa.  Muito obrigado - disse o escritor, quando se viu a salvo na lan- 

cha. 

Que coisa est£pida! - comentou o outro. - Principalmente quan-  do se tem uma perna de menos, hein?  - Muito est£pida.  - Mutilado da guerra?  Philip sacudiu a cabea.  - Acidente no tempo de rapaz - explicou telegr...ficamente. O san-  gue subiu-lhe ...s faces. - Aqui vem minha mulher - acrescentou num  murm£rio, contente por achar uma desculpa para se livrar do interlocu-  tor. Elinor saltou, apoiando-se no marido para manter o equil¡brio; dirigi~  ram-se ambos para os lugares que ficavam na outra extremidade da  lancha.  - Por que não me deixaste descer primeiro para te ajudar?  perguntou ela.  - Não era preciso - respondeu Philip scamente e num tom de voz

  que a decidiu a não dizer mais palavra. Elinor ficou a perguntar-se a si  mesma que teria acontecido. Alguma coisa relacionada com o defeito fisi-  co do marido? Por que se mostrava le tão esquisito nesse particular?  O pr¢prio Philip teria achado dif¡cil explicar o que, na pergunta do  cavalheiro de aspecto militar, o incomodara. No fim de contas, não havia  absolutamente nada de vergonhoso em ter sido atropelado por um ve¡cu-  lo. E o fato de ter sido rejeitado como totalmente incapaz para o servio  militar nada oferecia de impatri¢tico. E entretanto, contra tâda a razão, a  pergunta o perturbara, como acontecia com t"das as perguntas da mesma 

233# 

espcie e com qualquer alusão demasiadamente clara que se fizesse ao seu  defeito.  Discutindo com Elinor, a mãe de Philip dissera uma vez:  - Philip era a £ltima pessoa, verdadeiramente a £ltima pessoa do  mundo a quem tal coisa devesse acontecer. Òle nasceu longe, muito  distante. . . se  que compreendes o que quero dizer com isto. Era sempre  demasiado f cil para le dispensar os outros. Gostava muito de se fechar  no fundo de seu pr¢prio silncio. Mas podia ter aprendido a se exterio-  rizar mais, se não sobreviesse aqule horr¡vel acidente. Ele levantou uma  barreira artificial entre Philip e o resto do mundo. Para principiar: o ra-

  paz não podia mais pratica , r esportes; e não praticar esportes significava  menos contatos com os outros meninos, mais solidão, mais lazer para os  livros. E isso, por sua vez (pobre Phil!), trazia novos motivos de timidez.  Um sentimento de inferioridade. As crianas são capazes de revelar uma  crueldade tão horr¡vel ... ·s vzes riam dle na escola. E mais tarde,  quando as meninas comearam a tomar importncia a seus olhos, como  desejei que Phil estivesse em condiões de ir aos bailes e ...s partidas de  tnis! Mas le não podia danar nem jogar. E, est claro, não queria ir co-  mo espectador, como estranho ... A sua pobre perna esmagada comeou

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  por conserv -lo fisicamente a distncia das meninas de sua idade. E  tambm psicol¢gicamente. Porque eu acredito que le sempre receou (em  segrdo, j se v, e sem o querer admitir) que elas rissem dle, como  faziam alguns dos rapazes; e não queria correr o risco de ser rejeitado em  beneficio de algum outro mais favorecido do que le. Não que Phil algu-  ma vez tomasse muito intersse pelas meninas. . . -- acrescentara a Sra.  Quarles.  E Elinor pusera-se a rir, dizendo:  - Quanto a isso não tenho d£vidas ...  - Mas Philip nunca chegaria a adquirir o h bito de evit -las proposi-  tadamente. Tambm não teria fugido de modo tão sistem tico a todos os  contatos pessoais - não apenas com as m"as; com os homens tambm.  Contatos intelectuais - são os £nicos que le admite.  - Dir-se-ia que não se sente seguro senão no meio de idias.  - Porque no meio delas le pode oferecer resistncia; porque pode ter  certeza da sua superioridade. Habituou-se a ter mdo e a suspeitar quan-  do se v fora dsse mundo intelectual. Foi um rro ... E eu sempre tentei  tranqiliz -lo, fazer que le sa¡sse do seu mundo; mas Philip não se deixa  tentar, encolhe-se dentro da sua concha. - E depois dum silncio a Sra.  Quarles ajuntou: - E aquilo s¢ teve um resultado bom; refiro~me ao  acidente. Salvou-o de ir para a guerra e de ser morto, prov...velmente. Co-  mo o irmão dle.

  A lancha comeou a mover-se rumo da terra. Depois de ter apresen-  tado como uma muralha ameaadora de ferro negro, o paqute, ... medida  que les se afastavam, transformava-se num grande navio, visto agora na  sua inteireza. Amarrado, im¢vel entre o mar e o resplendor azul do cu, 

234 

parecia um dsses cartazes que anunciam cruzeiros tropicais na vitrina de  uma agncia de viagens de Cockspur Street,  "A pergunta foi uma impertinncia", pensava Philip. "Que lhe importa# 

que eu seja ou não um mutilado da guerra? Como continuam a se vanglo-  riar da sua guerra, sses soldados profissionais! Ora, eu posso considerar-  me feliz por ter ficado afastado dessa sangueira. Pobre Geoffre'y!" Pensou  no irmão morto.  - E, no entanto - conclu¡ra a Sra. Quarles depois de uma pausa  num certo sentido, eu quisera que Philip tivesse ido ... guerra. Oh! não por  motivos belicosos ou patri¢ticos. Mas porque, se me pudessem garantir  que le não morria nem ficava mutilado, teria sido tão bom para le ...  - violentamente bom, talvez; dolorosamente bom; mas, em qualquer ca-  so - bom. Podia ter-lhe quebrado a concha, podia t-lo libertado de sua

  propria prisão. Liberdade sob o ponto de vista emocional; porque o seu  intelecto  j bastante livre. Livre demais, talvez, c para o meu gâsto  antiquado. - E a mãe de Philip, neste ponto, sorriu com uma pontinha  de tristeza. - Livre de ir e vir dentro do mundo humano, em vez de ficar  fechado naquela sua indiferena.  - Mas essa indiferena não  coisa natural nle? - objetara Elinor.  - Parcialmente, . Mas em parte  um h bito. Se le conseguisse que-  brar o h bito, seria muito mais feliz. E julgo que le sabe disso, mas não  se pode livrar o h bito por si mesmo. Se os outros o pudessem libertar ...

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  Mas a guerra foi a £ltima oportunidade. E as circunstncias não permiti-  ram. que ela fosse aproveitada.  - Graas aos cus!  - Bem ... talvez tenhas razão.  A lancha tinha chegado. Philip e a mulher saltaram para a terra. O ca-  lor era terr¡vel, o calamento lampejava, o ar estava cheio de poeira. Com  muita exibião de dentes, muito fulgor de olhos negros e l¡quidos, muita  gesticulaão coreogr fica, um homem c"r de oliva com um fez ... cabea  procurava vender-lhes taptes. Elinor deu mostras de querer afast -lo.  - Não gastes energia - aconselhou Philip. - Quente demais.  Resistncia passiva; finge que não compreendes.  Continuaram a caminhar como m rtires atravs duma arena; e como  um leão famlico o homem do fez os acossava. Se não queriam taptes,  comprassem pelo menos prolas artificiais. Nem prolas? Então charutos  leg¡timos de Havana a 1 pni e meio cada um. Ou um pente de celul¢ide.  Ou uma imitaão de mbar. Ou braceletes de ouro quase leg¡timo. Philip  continuava a sacudir a cabea.  - Corais bonitos. Escaravelhos bonitos - velhos de verdade.  Aqule sorriso insinuante estava comeando a dar a impressão dum ani-  mal que arreganha os colmilhos.  Elinor tinha dado com a loja de fazendas que estava procurando;  atravessaram a rua e entraram.  - Salvos! Òle não ousar seguir-nos at aqui. Eu estava com tanto

1! 

1 1 11 

236 

mdo de que o homem comeasse de repente a morder ... No entanto,

  um pobre-diabo! Acho que dev¡amos comprar-lhe alguma coisa.  Elinor deu uma volta e dirigiu-se ao caixeiro que se achava atr s do  balcão.  - Enquanto ficas aqui - disse Philip, prevendo que as compras da  mulher iam ser intermin...velmente tediosas -, vou sair para comprar  cigarros.  Saiu para a claridade ofuscante. O homem de tarbuche estava ... espera.  Deu um pincho, agarrou Philip pela manga. Desesperadamente, jogou o  £ltimo trunfo.  - Postais bonitos - sussurou le confidencialmente, tirando um  envelope do b"lso de dentro. - Gnero livre. S¢ 10 xelins.  Philip olhava sem dar mostras de que compreendia.

  - Não ingls - disse. E saiu a caminhar rua afora, manquejando. O  homem do tarbuche caminhava apressado a seu lado.  - Trs curleuses - insistiu. - Trs amusantes. Moeurs arabes. Pour  passer le temps ... bord. Soirantefrancs seulement. - Não viu nenhuma  luz de compreensão. - Mollo artistiche - insinuou em italiano. - Pro-  prio curiose. Cinquantafranchi. - Examinou com desespro o rosto de  Philip, que se mantinha impass¡vel. - Hbsch - continuou o vendedor.  - Sehr geschlechtlich. Zehn Mark. - Nem um m£sculo se moveu. -  Muy hermosas, muy agraciadas, mucho indecorosas. - Fz nova tentati-  va. - Skon brev-kort. Liderligfotograj7 bild. Naknajungfrun. Verklig

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  smutsig. - O fregus não era evidentemente escandinavo ... Seria esla-  vo? Spro~ny obraz * - disse o homem em tom persuasivo. In£til. Talvez  o portugus. . . - Fotografias desonestas. . . - principiou.  Philip desatou a rir.  - Toma - disse, dando ao vendedor meia coroa. - Tu o mereces.  - Descobriste o que querias? - perguntou Elinor quando o marido  voltou.  Philip fez que sim com a cabea.  - E descobri tambm a £nica base poss¡vel para a Liga das Naões.  O intersse comum. O nosso amigo da dentua me ofereceu postais inde-  centes em dezessete l¡nguas. Òste homem est -se perdendo em Port Said.  Devia estar em Genebra. 

- Duas senhoras desejam v-lo, patrão - disse o cont¡nuo da  redaão do Literary World. 

* Enifrancs: 'Multo originais. Muito divertidas. Costumes rabes. Para passar o tempo  a bordo. Sessenta francos s¢mente " , Em italiano: "MUito art¡sticas. Realmente curiosas.  Cinqtienta francos" Em alemão: "Bonitinho. Muito sexual. Dez marcos". Em espanhoL  'Muito bonitas, muito engraadas, muito indecorosas". Em sueco: "Lindo cartão-postal.

Fotografia sensual. Jovens nuas. Realmente sujos". Em polons: Vigura obscena"  (N. dåE.) 

Duas? - Burlap levantou as sobrancelhas escuras. - Duas? -  O rapaz confirmou. - Bem, faa-as subir. - O cont¡nuo retirou-se. Bur-  lap sentiu-se contrariado. Esperava Romola Saville, a Romola Saville que  tinha escrito: 

Conheo o amor desde que o mundo  mundo.  E assim, em meus transportes milenares,  Tomei nos braos o divino cisne  Efuipossu¡dapelo louro P ris, 

E agora a poetisa vinha com uma dama de companhia. Não era coisa  que se esperasse dela. Duas senhoras.  As duas portas de seu santu rio se abriram simultneamente. Ethel  Cobbett apareceu a uma delas, trazendo nas mãos um mao de provas de  gal. Pela outra entraram as duas senhoras. Parada ... soleira, Ethel olhou  as recm-chegadas. Uma delas era alta e notilvelmente magra. A outra,  quase tão alta como a companheira, era corpulenta. Nenhuma das duas  era jovem. A senhora magra dava a impressão de ter 43 ou 44 anos de

  virgindade fanada. A corpulenta era talvez um pouco mais velha, mas ha-  via conservado uma frescura desabrochada de vi£va. A magra era p lida,  tinha feiões ossudas e angulosas, cabelos dum castanho indefin¡vel e  olhos cinzentos; estava vestida mais ou menos dentro da moda, não no  estilo de Paris, mas sim de acârdo com, a maneira mais jovial e vistosa de  Hollywood - em cinza-p lido e rosa. A outra senhora era muito loura,  tinha olhos azuis, longos brincos pendentes e um colar de l pis-laz£li da  mesma c"r. O estilo de seu vestido era mais matronal e europeu que o da  companheira e apresentava grande n£mero de ornamentos de pouco  preo suspensos aqui e ali ao longo de t"da a sua pessoa - berloques que

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  tilintavam levemente quando ela caminhava.  As duas visitantes avanaram atravs da sala. Burlap fingiu estar tão  profundamente imerso no seu trabalho de composião liter ria que não  ouvira abrir~se a porta. Foi somente quando as senhoras j se achavam a  poucos passos de sua mesa que le ergueu os olhos do papel em que esti-  vera a escrever furiosamente - e com que sobressalto de surprsa, com  que expressão de embarao cheio de escusas! Ergueu-se dum salto.  - Sinto muit¡ssimo. Perdoem - . . Eu não tinha percebido. Fica-se tão  absorto. . . - Os nn e os mm mudavam-se em dil e lib. Burlap estava  resfriado. - Tão edvolvido cob o beu trabalho.  Contornou a mesa para se aproximar das duas mulheres, sorrindo o  seu mais sutil e espiritual sorriso ... Sodorna. Mas, "Oh, Deus!", excla-  mava le interiormente. "Que remeas pavorosas!"  - E qual - continuou le, agora em voz alta, e sorrindo de uma para  outra -, qual das duas senhoras, permitam a pergunta,  a Srta. Saville?  - Nenhuma de n¢s - disse a mulher corpulenta com uma voz um 

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tanto profunda, mas com ar brincalhão acompanhado dum sorriso.  - Ou ambas, se assim prefere. . . - disse a outra. Sua voz era alta

  e met lica. Falava agudamente, em pequenos esguichos, e com uma rapi-  dez extraordin ria e vertiginosa. - Ambas e nenhuma...  E as duas senhoras romperam simultneamente a rir. Buriap olhava e  escutava com o coraão desfalecente. Em que complicaão se metera le?  As mulheres eram tremendas. O redator do Literary World assoou o  nariz; tossiu. Elas faziam-no piorar do resfriado.  - O fato  que - disse a mulher corpulenta, atirando a cabea para  o lado com um pouco de traquinice e afetando uma ponta de ceceio -,   que noff. . .  Mas a magra a interrompeu:  - O fato  que n¢s - disse ela, despejando as palavras tão r pida-  mente que causava assombro o simples fato de conseguir articul -las -,  n¢s somos uma parceria, uma combinaão, quase uma conspiraão. - E

  emitiu uma risada aguda e cortante.  - Ffim, uma cotifpirajão - disse a corpulenta, ceceando por pura  brincadeira.  - Somos as duas partes da dupla personalidade de Romola Saville.  - Na qual eu sou o Dr. Jekyll - acrescentou a corpulenta. Ambas  riram ainda uma vez mais.  "Uma conspiraão", pensou Burlap, com um sentimento crescente de  horror. "Nem resta a menor d£vida. . . "  - Dr. Jekvll, ali s, Ruth Goffer. Permite que eu lhe apresente a Sra.  Goffer?  Ao passo que eu fao o mesmo com o Sr. Hyde, ali s, Srta. Hig- 

nett? Ao passo que ambas juntas nos apresentamos como a Romola

  Saville a respeito de cujos pobres versos o senhor disse palavras tão  bondosas.  Buriap apertou as mãos das duas senhoras e disse algo a respeito do  prazer edorbe que sedUa em conhecer as autoras do trabalho que le tanto  tinha atibirado. "Mas como ser que me vou livrar delas?", perguntava  le a si mesmo. Tanta energia, tanta exuberncia de f"ra e vontade!  Desembaraar-se delas não seria brincadeira. Burlap estremeceu interior-

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  mente. "São como m quinas a vapor", concluiu. E haveriam de  atorment -lo para que le continuasse a publicar-lhes os malditos versos.  Aqules versos obscenos - porque era isto o que les eram, ... luz da ida-  de daquelas mulheres, ... luz de sua energia, de suas aparncias f¡sicas -  sim, justamente isso: obscenos. "Estas cadelas!", disse le de si para con-  sigo, com a sensaão de que elas lhe tinham impingido um conto do  vig rio, que tinham tirado partido de sua inocncia para engan -lo. Foi  nesse momento que Burlap deu pela presena da Srta. Cobbett. Ela  ergueu o mao de provas interrogadoramente. Buriap sacudiu a cabea. 

238 

- Mais tarde - disse, com uma expressão editorial de dignidade. A  Srta. Cobbett se afastou, mas não sem que Burlap lhe tivesse notado no# 

rosto uma expressão de triunfo cheio de zombaria. Maldita mulher! Era  intoler vel.  - Ficamos tão comovidas e contentes com a sua am vel carta - dis-  se a mais forte das senhoras.  Burlap sorriu franciscanamente.  - Fica-se contente quando se pode fazer algo pela literatura.

  - São tão poucos os que tomam intersse por ela ...  - Sim, tão poucos. . . - repetiu a Srta. Hignett num eco. E, falando  com a rapidez de algum que tentasse dizer no m¡nimo de tempo e com o  menor n£mero poss¡vel de erros "Pia o pobre pinto prto, o pobre pinto  prto pia9', ela despejou a hist¢ria da parceria, e as suas queixas. Viviam  juntas em Wimbiedon e conspiravam para ser Romola Saville havia j

mais de seis anos; durante todo sse tempo s¢ haviam conseguido publi-  car os seus trabalhos em nove ocasiões. Mas não tinham perdido a cora~  gem. O seu dia, elas sabiam, havia de chegar. Continuaram a escrever.  Escreveram muito e muito. Quem sabe se o Sr. Burlap não estava  interessado em ver as peas que elas tinham escrito? E a Sr-ta. Hignett  abriu uma pasta e deitou sâbre a mesa quatro calhaniaos de originais  datilografados. Eram peas hist¢ricas em verso branco. E os t¡tulos eram

  Fredegunda, O Bastardo da Normandia, Semiramis e Gilles de Retz.  Retiraram-se, por fim, levando consigo a promessa de Burlap de ler as  peas, de publicar uma seqncia de sonetos, de ir jantar na casa delas em  Wimbledon. Burlap suspirou e depois, recompondo o rosto numa expres-  são impass¡vel de superioridade, tocou a campainha chamando a Srta.  Cobbett.  - Tem a¡ as provas? - perguntou, duma maneira distante e sem  olhar para a m"a.  Ethel passou-lhe os papis.  - Telefonei para dizer que fizessem subir depressa o resto.  - Bom.  Houve um silncio. Foi a Srta. Cobbett quem o quebrou, e, embora não

  se dignasse de olhar para o rosto dela, Buriap percebeu, pelo tom da voz,  que a secret ria estava sorrindo.  - A sua Romola Saville - disse ela - lhe deu um pequeno choque,  não foi?  A lealdade da Srta. Cobbett para com a mem¢ria de Susan era tanto  mais intensa quanto era forada e propositada. Ela pr¢pria amara Burlap.  A sua lealdade para com Susan e para com aquela espiritualidade  platânica que era a especialidade amorosa de Burlap (ela acreditava, a  principio, que Denis era sincero nas coisas que dizia com tanta  constncia e duma maneira tão bonita) exercitava-se nuina luta cont¡nua

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  contra o amor e ficava cada vez mais forte, graas a sse exerc¡cio. Bur~ 

239# 

lap, que era experimentado nesses assuntos, tinha bem depressa percebi-  do, pela reaão da m"a aos seus primeiros assdios plat"nicos que, con-  forme o linguajar chulo que mesmo o seu diabo dificilmente usava, não  havia "nada feito". Insistindo, le conseguiria apenas comprometer a sua  pr¢pria reputaão de alta espiritualidade. A despeito do fato de a m"a  estar apaixonada por le, ou, em certo sentido, por causa disso mesmo  (porque, amando, ela compreendia quão perigosamente f cil seria trair a  causa de Susan e do esp¡rito puro e, percebendo o perigo, resistia a le),  ela nunca permitiria - compreendeu Burlap - a sua passagem, embora  gradual, da espiritualidade para a carnalidade, por mais refinada que esta  rosse. E, j que le pr¢prio não a amava, j que ela tinha despertado nle  apenas o vago prurido adolescente de desejo que de certo modo qualquer  outra mulher podia satisfazer, custou-lhe pouco ser prudente e retroceder.  A retirada, calculava le, havia de reforar a admiraão dela pela sua  espifitualidade, havia de fortificar-lhe o amor. Burlap tinha verificado

que   sempre £til ter empregadas que amem a gente. Elas trabalham com mais  afinco e exigem muito menor remuneraão do que as que não estão  apaixonadas. Durante algum tempo, tudo marchara de ac"rdo com o pla-  no. A Srta. Cobbett fazia o trabalho de trs secret rias e do cont¡nuo, ao  mesmo tempo que adorava o chefe da redaão. Mas houve incidentes.  Burlap se interessava demais pelas colaboradoras. Unia das mulheres  com quem Denis efetivamente dormira tinha vindo fazer suas confidn-  cias ... Srta. Cobbett. A f da m"a ficou abalada. Sua indignaão virtuosa  diante daquilo que ela considerava uma traião de Burlap a Susan e a  seus ideais, diante da hipocrisia propositada daquele homem, se inflamou  de sentimentos pessoais. Òle tambm a tinha tra¡do. Ethel estava cheia de  ¢dio e de despeito. O ¢dio e o despeito intensificaram-lhe a lealdade ideal.

  Ela s¢ podia exprimir ci£me em funão de sua lealdade para com Susan  e para com o esp¡rito.  A g"ta que f-ez transbordar o copo foi Beatrice Gilray. O c lice de  amargura da Srta. Cobbett transbordou quando Beatrice se instalou no  Literary World - na sala da redaão, e ainda por cima a escrever efeti-  vamente alguma coisa para o jornal. A Srta. Cobbett se consolava um  idia de que a prosa de Beatrice se destinava apenas ...s Diversas  pouco ... 1  - notas r pidas, que eram absolutamente sem importncia. Mas, apesar  disso, estava cheia dum despeito amargurado. Era muito mais instru¡da  do que aquela t"la da Beatrice; muito mais inteligente tambm. Se permi-  tiam que Beatrice escrevesse, era apenas porque tinha dinheiro. A Srta.  Gilray empregara 1000 libras no jornal. Trabalhava de graa - e, por

  sinal, trabalhava como doida; bem como a pr¢pria Srta. Cobbett  trabalhara no princ¡pio. Agora, Ethel fazia o menos poss¡vel. Valia~se dos  seus direitos; nunca chegava um minuto mais cedo, nunca ficava um  minuto alm do tempo regulamentar. Não fazia mais do que aquilo que  lhe pagavam para fazer. Burlap ficou aborrecido, melindrado e cheio de 

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aflião; teria de sobrecarregar-se de servio ou de contratar out-ra  secret ria. Foi então, que, providencialmente, apareceu Beatrice.

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  Tomou a seu cargo todo o trabalho menor da redaão que a Srta. Co b-# 

bett não tinha tempo para fazer. Como compensaão dsse trabalho e das  1000 libras, Burlap permitiu~lhe escrever um pouco para o.j¢mal. Be a~  trice não sabia escrever, era claro; mas não importava. Quem ia ler ;as  Diversas?  Quando Burlap foi morar em casa de Beatrice Gilray, a taa da Srt-a.  Cobbett transbordou de n¢vo. No primeiro momento de c¢lera Eth , e] Foi  bastante imprudente para fazer a Beatrice uma advertncia solene com  relaao ao seu inquilino. Mas a sua solicitude desinteressada para com a  reputaão e a virgindade da outra estava, duma maneira dernasiadanien te  manifesta e incontrol vel, imbu¡da de despeito para com Burlap. O £nico  efeito de sua admonião foi exasperar Beatrice a ponto de provocar~lhe  uma resposta desabrida.  - Ela  verdadeiramente insuport vel - queixou-se Beatrice mais  tarde a Burlap, sem, entretanto, esmiuar as razões t"das que tinha para  achar a colega insuport vel.  Burlap tomou o seu ar de Jesus Cristo.  - Ela  complicada - concordou. - Mas  de se lamentar. Teve  uma vida trabalhosa. . .  - Não vejo em que uma vida trabalhosa possa ser desculpa para uma

  pessoa portar-se mal - replicou a Srta. Gilray com rudeza.  - Mas  preciso mostrar-se tolerante - disse Buriap, sacudindo a  cabea.  - Se eu f"sse voc - disse Beatrice -, não a conservaria rio  emprgo; havia de mand -la embora.  - Não, eu não posso fazer isso - respondeu Burlap, falando lenta-  mente, como quem rumina, como se t"da a discussão se estivesse reali-  zando dentro dle mesmo. - Nestas circunstncias, não. - Sorriu uim  sorriso ... Sodorria, sutil, espiritual e suave; uma vez mais sacudiu a sua  cabea escura e romntica. - As circunstncias são um tanto  especiais. . . - Continuou a falar duma maneira vaga, sem nunca  explicar com precisão quais Fossem as tais circunstncias especiais, e corn

  uma espcie de modstia, como se relutasse em cantar os seus pr¢prios  louvores. Cabia a Beatrice compreender que Burlap dera o emprgo ... Sr-  ta. Cobbett por caridade.  A Srta. Gilray sentiu-se invadida por um sentimento misto de admi-  raão e piedade - admiraão pela bondade de Burlap, e piedade por v-  lo assim indefeso dentro dum mundo ingrato.  - Apesar de tudo - disse ela, e ao dizer isto tinha um ar feroz, suas  palavras eram como pequenos golpes rijos de malho -, não vejo por que  voc h de se deixar intimidar. Pois eu, eu não me deixaria levar  assim ... 

241

A partir daquele momento Beatrice não perdeu oportunidade de apos-  trofar a Srta. Cobbett, de se mostrar rude para com ela. A Srta. Cobbett,  em retribuião, tambm ralhava, mostrando-se igualmente rude e sarc s-  tica. Na redaão do Literary World a guerra estava aberta. 1,onginqua-  mente, mas não com imparcialidade absoluta, semelhante a um deus que  tivesse um preju¡zo em favor da virtude - que era representada, no caso,

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  por Beatrice -, Burlap pairava como um mediador por s"bre a batalha.  O epis¢dio de Rornola Saville forneceu ... Srta. Cobbett uma oportuni-  dade para p"r em exerc¡cio a sua mal¡cia.  - Viste aquelas duas terr¡veis poetisas? - perguntou ela a Beatrice  na manhã seguinte, com um ar falso de camaradagem.  Beatrice varou-a com um olhar penetrante. Que pretenderia aquela  mulher?  - Que poetisas? -perguntou com desconfiana.  - Aquelas duas formid veis senhoras maduras que o diretor convi-  dou para vir v-lo, sob a impressão de que elas f"ssern uma s¢ ... e  jovem. - Pâs-se a rir. - Romola Saville. Era assim que os poemas esta-  vam assinados. O nome tinha um ar tão romntico ... E os poemas eram  tambm tão romnticos ... Mas as duas autoras! Oh, meu Deus! Quan-  do eu vi o diretor nas garras delas, senti realmente pena dle. Mas, no fim  de contas, foi le o culpado. Se teima em escrever ...s colaboradoras ...  Naquela noite Beatrice renovou as suas queixas a respeito da Srta.  Cobbett. A mulher não era s¢rnente enfadonha e impertinente - tudo se  poderia suportar se ela fizesse o seu trabalho convenientemente; mas era  tambm uma preguiosa. Publicar um jornal era um negocio como qual-  quer outro. Não  poss¡vel fazer-se um neg¢cio sâbre bases de sentimenta-  lismo. Vagamente, cheio de modstia, Burlap falou de n"vo nas  circunstncias esoeciais do caso. Beatrice replicou. Houve um debate.  - E o que acontece a quem se mostra bom demais - concluiu  Beatrice, r¡spida.

  - Achas? - O sorriso de Burlap era tão lindamente, tão tristemente  franciscano que Beatrice sentiu-se derreter por dentro em ternura.  - Sim, acho - afirmou ela, martelando, cada vez mais dura e hostil  para com a Srta. Cobbett ... medida que se sentia mais molernente, mais  maternalmente protetora para com Burlap. A sua ternura, por assim  dizer, estava forrada de indignaão. Quando não queria mostrar a sua  brandura, Beatrice virava os seus sentimentos ao avsso e enchia-se de  c¢lera. "Pobre Denis!", pensou ela por baixo da sua indignaão.  "Realmente, precisa de algum que tome conta dle.  bom demais." Pâs~  se a falar em voz alta: - Apanhaste uma tosse espantosa! - disse em  tom de reproche, numa inconseqncia que era apenas aparente. Ser bom  demais, não ter ningum que cuidasse dle, apanhar uma tosse - as  idias tinham uma conexao l¢gica. - O que precisas - continuou ela no

  mesmo tom r¡spido de comando -  de uma boa fricão com ¢leo canfo~  242 

rado e um chumao de terin¢geno. - Pronunciou estas palavras quase  ameaadoramente, como se estivesse a atemoriz -lo com uma boa sova e  com um ms a pão e gua. A sua solicitude se exprimia assim; mas,  debaixo daquela superficie spera, que suavidade fremente!  Burlap sentiu-se flic¡ssimo em deixar que ela executasse a terna# 

ameaa. ·s 10 e meia estava le estendido na cama com uma garrafa

  suplementar de gua quente. Tinha bebido um copo de leite quente com  mel e agora estava chupando uma pastilha peitoral. Que pena, pensava  le, que Beatrice não fosse mais m"a. Mesmo assim, era na verdade  surpreendentemente jovem para a idade que tinha. O rosto, o corpo,  pareciam mais de uma mulher de 25 do que uma de 35. Burlap  perguntava a si mesmo como haveria Beatrice de se portar quando le  conseguisse, por fim, que seus terr"res se dissipassem. Havia algo de  muito estranho naqueles terr¢res infantis duma mulher adulta. Uma  metade de seu ser tinha parado na idade em que tio Ben fizera aquela  experincia prematura. O diabo de Burlap arreganhou os dentes ...

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  lembrana da narrativa que Beatrice fizera do incidente.  Ouviu-se uma batida ... porta e a Srta. Gilray entrou, trazendo o ¢leo  canforado e o term¢gerio.  - Aqui est o carrasco - disse Burlap, rindo. - Ao menos quero  morrer como um homem! - Desabotoou o casaco do pijama. Seu peito  era branco e bem fornido; o cont"rno das costelas mostrava-se mal e mal  atravs da carne. Entre os mamilos, uma listra de cabelos negros e cres-  pos seguia a linha do esterno. - Seja bem m - continuou le a grace~  jar. - Estou pronto. - E o seu sorriso estava cheio de ternura brinca-  lhona.  Beatrice desarrolhou a garrafa e despejou um pouco do ¢leo arom tico  na palma da mão direita.  - Pegue a garrafa - ordenou ela - e bote-a ali. - Burlap obede-  ceu. - Pronto! - fez Beatrice quando Burlap de nâvo ficou estendido,  im¢vel; e comeou a esfregar.  Sua mão deslizava sâbre o peito dle, para diante e para tr s, vigorosa-  mente, eficazmente. E, quando a direita cansou, ela recomeou a fricão  com a esquerda, para diante e para tr s, para diante e para tr s.  - Pareces uma m quinazinha a vapor - disse Burlap com o seu ter-  no sorriso travsso.  -  a impressão que tenho - respondeu ela. Mas não era verdade.  Beatrice tinha a impressão de ser tudo menos uma m quina a vapor. Tive-  ra que vencer uma espcie de terror antes de conseguir tocar aqule peito  branco e polpudo. Não que le fosse feio ou repulsivo. Pelo contr rio, era

  at bonito na sua brancura lisa e na sua fâra carnuda. Bonito como o  torso duma est tua. Sim, duma est tua. Acontecia apenas que a est tua  tinha negros anis de cabelo ao longo do esterno e, em cima do coraão,  uma verruguinha morena que subia e descia com a pele ao ritmo da 

243# 

pulsaão. A est tua tinha vida; e nisso residia o elemento inquietador. O  alvo peito nu era lindo; mas, vivo, tomava-se quase repulsivo. Toc -  lo ... Ela estremeceu interiormente com um pequeno espasmo de horror,

  e sentiu-se encolerizada contra si mesma por ter sentimentos tão est£pi-  dos. R...pidamente estendeu a mão e comeou a esfregar. A sua palma  deslizava com facilidade s"bre a pele lubrificada. O calor do corpo de  Burlap comunicava-se ... mão de Beatrice. Atravs da pele ela podia sentir  a dureza dos ossos. Houve um eriamento spero contra os seus dedos,  quando les tocaram os cabelos ao longo do estemo; e os mamilos peque-  nos eram firmes e el sticos. Ela estremeceu de nâvo, mas havia algo de  agrad vel no sentimento de horror e no fato de triunfar s"bre le; havia  um estranho prazer naquele arrepio de alarma e de repulsão q?e lhe  viajava pelo corpo. Beatrice continuou a esfregar. Da m quina a vapor  possu¡a apenas o vigor e a regularidade dos movimentos; no ¡ntimo,  porm, como se sentia cheia de vida palpitante e em luta consigo mesma!  Burlap estava deitado, com os olhos fechados, sorrindo um pouco com

  o prazer do abandono e da capitulaão volunt ria. Òle se sentia,  voluptuosamente, como uma criana: abandonado, impotente; estava nas  mãos de Beatrice como uma criana que j não  senhora de si - uma  propriedade, um jogute de sua mamãe. As mãos dela eram frias contra o  seu peito. A sua carne estava passiva e entregue, como mera argila, ...que-  las mãos fortes e frias.  - Cansada? -- perguntou Burlap, quando ela se deteve para mudar  de mão pela terceira vez. Abriu os olhos para olhar a amiga. Beatrice  sacudiu a cabea. - Eu te dou tanto inc"modo como um beb doente ...

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  - Voc não d inc"modo nenhum.  Mas Burlap insistiu em lamentar-lhe a sorte e em desculpar-se.  - Pobre Beatrice! Quando penso em tudo quanto fizeste por mim! Fi-  co at envergonhado!  Beatrice limitou-se a sorrir. Os seus primeiros arrepios de imotivada  repulsa tinham passado. Ela se sentia extraordin...riamente feliz.  - Pronto! - disse por fim. - Vamos agora ao term¢geno. - Abriu  a caixa de papelão e desdobrou a lã c"r de laranja. - O problema agora   fazer isto parar no seu peito. Eu tinha pensado em mant-lo no lugar  com uma atadura. Duas ou trs voltas ao redor do corpo. Que acha?  - Não acho nada - respondeu Burlap, que continuava gozando a  vol£pia da infntilidade. - Estou inteiramente nas tuas mãos.  - Pois bem. Sente-se - ordenou ela. Burlap sentou-se na cama.  Segure a lã contra o seu peito enquanto eu passo a atadura.  Para fazer a atadura dar volta em trno do corpo de Burlap, Beatrice  teve de inclinar-se muito sâbre le, chegando quase a abra -lo; suas  inaos se encontraram por um momento atr s das costas do homem,  enquanto ela desenrolava a atadura. Burlap deixou cair a cabea para  diante e sua testa descansou contra o seio da enfermeira. A testa duma  criana fatigada contra o seio de sua mamãe. 

244 

- Segure a ponta um momento enquanto vou buscar uma joaninha.  Burlap levantou a testa e endireitou-se. Um pouco corada, mas ainda  com um ar muito srio e muito preocupado, Beatrice estava tirando uma# 

joaninha dum pequeno cartão de alfintes sortidos.  - Agora vem o momento dificil de verdade - disse ela, rindo.  Voc não faz caso se eu fincar o alfinte na sua carne?  - Não, não fao caso - disse Burlap, e era verdade; não faria caso  mesmo. Ficaria at muito contente se ela o magoasse. Mas tal não aconte-  ceu. A atadura foi pregada na sua posião com uma habilidade perfeita-

  mente profissional.  - Pronto!  - Que queres que eu faa agora?  obedecer.  - Deite-se.  Burlap deitou-se. Beatrice abotoou-lhe o casaco do pijama.  - Agora voc deve dormir o mais depressa poss¡vel. - Puxou as  cobertas at o queixo de Burlap e prendeu~as sob o colchão. Depois p"s-  se a rir. - Voc parece um menino.  - Não vais me dar o beijo de boa noite?  As faces de Beatrice se coloriram. Curvou-se e beijou Burlap na testa.  - Boa noite! - disse.  E s£bitamente veio-lhe um desejo de torn -lo nos braos, de estreitar a

  cabea dle contra o seu seio e acariciar-lhe o cabelo. Mas contentou-se  com pousar a mão por um instante cofitra a face de Burlap e depois saiu  apressadamente do quarto. 

- perguntou Burlap, vido por# 

CAPITULO XIX

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 O pequeno Phil estava estendido na sua cama. O quarto se achava

  mergulhado num crep£sculo c"r de laranja. Uma agulha fina de sol se  insinuava por entre as cortinas corridas. Phil estava mais desinquieto que  de costume.  - Que horas são? - gritou por fim, embora j tivesse gritado antes  e recebido em resposta a ordem de ficar quieto.  - Não  hora ainda de levantar - respondeu a Srta. Fulkes do outro  lado do corredor. Sua voz saiu abafada, porque ela estava metida a meio  corpo no seu vestido azul, com a cabea envolvida numa obscuridade de  sda, os braos lutando cegamente para achar a entrada das respectivas  mangas. Os pais de Phil chegavam naquele dia; estariam em Gattenden  para o lanche. O Vestido azul da Srta. Fulkes - o melhor que ela tinha  -- era de absoluta necessidade.  - Mas que horas são? - insistiu o pequeno, enfurecido. -- Quero  dizer: no teu rel¢gio.  A cabea da Srta. Fulkes emergiu para a luz.  - Vinte para 1. Deves ficar quieto.  - Porque não  1 ?  - Porque não . Agora não vou te responder mais. E se gritas de  n"vo vou contar ... tua mãe como tens sido travsso.  - Malvada! - disse Phil, pondo uma f£ria cheia de l grimas na sua  voz, mas falando tão baixo que a Srta. Fulkes mal ouviu. - Tenho raiva

  de ti!  Estava claro que Phil não odiava. Mas fizera o seu protesto; a honra  estava salva.  A Srta. Fulkes continuou a vestir-se. Sentia-se nervosa, cheia de mdo,  dolorosamente agitada. Que pensariam les de Phil - do seu Phil, do  Phil que ela tinha feito? "Espero que le se porte bem. Espero que le seja  bonzinho." O menino sabia ser um anjo, era encantador ... quando isso  lhe aprazia. E quando não era anjo, havia sempre uma razão; mas era  preciso conhec-lo, compreend-lo a fim de descobrir essa razão.  Prov...velmente os pais não seriam capazes de descobri-la. Tinham estado  fora durante tanto tempo. Podiam ter at esquecido como era o pequeno.  E, em qualquer caso, não podiam saber como le estava agora, em que se

  tinha transformado depois do crescimento dos £ltimos meses. S¢ ela  conhecia aqule Phil. Conhecia e amava - tanto, tanto ... S¢ ela. E um 

246 

dia teria de deix -lo. Não tinha direitos -s¢bre le, não tinha nada que  reclamar; amava-o apenas. Podiam arrebatar-lhe Phil a qualquer momen-  to que quisessem. A Srta. Fulkes se olhou no espelho. A sua pr¢pria ima-  gem refletida no vidro tremeu e se perdeu numa bruma irisada, e de s£bito  as l grimas inundaram-lhe as faces.  O trem chegou no hor rio e o auto esperava os viajantes. Philip e Eli-  nor entraram nle.

  - Não  mesmo maravilhoso estar de n"vo aqui? - Elinor tomou da  mão do marido. Seus olhos fulgiram. -- Mas, bom Deus! - ajuntou ela,  num tom de horror e sem esperar pela resposta. - Constru¡ram um mun-# 

do de casas novas ali em cima da colina. Como se atreveram a tal?  Philip olhou.  - Um pouco cidade-jardim, não ?  pena que os inglses amem tan-

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  to o campo. Estão a mat -lo ... fora de carinho.  - Mas, apesar de tudo, como o campo ainda  lindo! Não est s  tremendamente comovido?  - Comovido? - perguntou le com precauão. - Ora...  - Não est s mesmo contente por podres ver o teu filho de n"vo?  - Naturalmente.  - Naturalmente! - Elinor repetiu as palavras num tom de esc rnio.  - E falas com sse tom de voz! Nunca pensei que coubesse um"natural-  mente" no caso; mas, agora que chegou a hora, nunca me senti tão agita-  da em tâda a minha vida...  Houve um silncio; o carro continuou acorrer sinuosamente, ao longo  dos caminhos tortuosos. A estrada era em aclive; o auto subiu por entre  um bosque de faias e entrou num altiplano arborizado. Bem na extremi-  dade de uma longa perspectiva verde, o monumento mais colossal da  grandeza dos Tantamourit, o pal cio do Marqus de Gattenden, se aque-  cia ao sol, l embaixo. A bandeira ondulava; milorde estava nos seus  dom¡nios.  -  preciso que faamos uma visita ao velho maluco uni dstes dias  - disse Philip.  Os gamos pastavam no parque.  - Por que ser que se viaja? - perguntou Elinor, olhando para os  animais.  A Srta. Fulkes e o pequeno Ph¡l estavam esperando na escada.  - Creio que ouvi o barulho do autom¢vel - disse a Srta. Fulkes. O

  seu rosto um tanto macio estava muito p lido; o coraão batia-lhe com  uma fora maior que a ordin ria. - Não - acrescentou, depois de ter  ficado a escutar por um momento, com atenão intensa. O que tinha ouvi-  do era o sonido de sua pr¢pria ansiedade.  O pequeno Phil se movia dum lado para outro, num mal-estar, cons-  ciente apenas do desejo violento de "ir a certa parte". A espera lhe tinha  alojado um ourio nas entranhas. 

247 

, J#

 

- Não te sentes feliz? - perguntou a Srta. Fulkes com um entu-  siasmo fingido, e com a determinaão (em que ela pr¢pria se sacrificava  volunt...riamente) de que o menino devia sentir-se louco de alegria ... idia  de tornar a ver os pais.  - Não est s tremendamente emocionado?  Mas les podiam arrebatar-lhe o pequeno, se quisessem, podiam lev -lo  embora e nunca mais deixar que ela o tornasse a ver.  - Estou. . . - respondeu Phil num tom um pouco vago. Estava  preocupado exclusivarrente com a aproximaao dos acontecimentos

  viscerais.  A Srta. Fulkes sentia-se desapontada diante da falta de entusiasmo que  havia na voz do menino. Olhou para le inquiridoramente.  - Phil?  Tinha observado a sua dana inquieta. O pequeno fz que sim com a  cabea. A m"a tomou-lhe da mão e levou-o ...s pressas para o interior da  casa.  Um minuto mais tarde Philip e Elinor paravam diante do alpendre  deserto. Elinor não p"de deixar de sentir um desapontamento. Tinha pre~

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  visto a cena com tanta nitidez. . . - Phil, na escada, acenando num fre~  nesi -- tinha ouvi4o tão distintamente, por antecipaão, os gritos do  filho ... e os degraus estavam vazios.  - Ningum para nos receber - disse ela. E o tom de sua voz era  melanc¢lico.  - Tambm não se podia exigir que les ficassem por a¡ ... nossa espera  replicou Philip. Abominava tudo o que tivesse a natureza de rebulio,  de alvor"to ... Para le a perfeita chegada ao lar seria dentro dum manto  de invisibilidade. E a maneira como chegavam agora estava em segundo  lugar entre as que Philip reputava boas.  Desceram do carro. A porta da frente se achava aberta. Entraram. No  vest¡bulo silencioso e deserto trs sculos e meio de vida estavam adorme-  cidos. A luz do sol jorrava atravs das janelas. Os painis tinham sido  pintados de verde-p lido no sculo XVIII. A escada, tâda de carvalho  velho, subia, a perder de vista, at os andares mais altos. Uma miscelnea  de perfumes de fl"res flutuava tnuamente no ar; era como se a gente  percebesse o velho silncio sereno por meio de outro sentido.  Elinor olhou em t"rno, respirou profundamente, passou a ponta dos de-  dos ao longo da madeira polida duma mesa de nogueira e com o ¡ndex  dobrado bateu num vaso bojudo de vidro veneziano que se achava sâbre  o m¢vel; o l¡mpido som de sino ressoou longa e docemente dentro do  silncio perfumado.  -  como a Bela Adormecida - disse Elinor. Mas, no pr¢prio ins~

  tante em que ela pronunciou estas palavras, o encantamento se quebrou.  De s£bito, como se o tinir do vidro tivesse chamado a casa ... vida, o som  e o movimento ressuscitaram. L em cima, em alguma parte, uma porta  se abriu; atravs do ru¡do sanit rio da gua que se despenca, veio o som  248 

da voz jovem e estridente de Phil, ps pequeninos caminharam ao longo  do tapte do corredor, estrepitararti como pequenos cascos s"bre o carva-  lho nu dos degraus. Ao mesmo tempo uma porta do andar trreo se abria  bruscamente e o vulto enorme de Dobbs, a camareira, se precipitou para# 

o vest¡bulo.  - Oh! Sra. Elinor, eu não ouvi chegarem. . .  O pequeno Phil dobrou a £ltima volta da escada. A vista dos pais deu  um grito e apressou o passo; deslizou quase de degrau em degrau.  - Não venha tão ligeiro! Não venha tão ligeiro! - gritou-lhe a mãe,  ansiosamente. Correu para le.  - Não v tão ligeiro! - repetiu a Srta. Fulkes num eco, descendo  apressadamente os degraus. E de repente, saindo dum pequeno quarto que  dava para o jardim, a Sra. Bidlake apareceu, branca e silenciosa, entre  vus esvoaantes, como um fantasma imponente. Num cestinho trazia um  ramilhete de tulipas cortadas; a sua tesoura de podar pendia da ponta du-  ma fita amarela. T'ang III a seguia, latindo. Houve uma confusão de

  abraos e apertos de mão. As saudaões da Sra. Bidlake tinham a majes-  tade dum ritual, a graa solene de uma dana antiga e sagrada. A Srta.  Fulkes se torcia t"da, t¡mida e comovida, mantendo-se s"bre uma perna,  depois sâbre a outra, assumindo atitudes de figurinos e de manequins; de  quando em quando ria agudamente. Quando apertou a mão de Philip,  encolheu-se com tanta violncia que quase perdeu o equil¡brio.  "Pobre criatura!", Elinor tinha tempo para pensar entre as perguntas  que formulava e as respostas que recebia. "Que necessidade urgente ela  tem de casar! Est muito pior do que quando a deixamos."  - Mas como le est crescido! - disse em voz alta. - E como est

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  mudado! - Segurou o filho com os braos estendidos, afastando-o um  pouco com o gesto do connaisseur* que recua para examinar um quadro.  - Òle antes era o retrato de Philip. Mas agora. . . - Sacudiu a cabea.  Agora a cara larga tinha encompridado, o nariz curto e reto (o c"mico  "nariz de gato" que no rosto de Philip f¢ra para ela ao mesmo tempo  objeto de riso e de amor) tinha crescido, ficando mais fino e levemente  aquilino; o cabelo ganhara um tom escuro. - Agora le est exatamente  como Walter. Não acham? - A Sra. Bidlake sacudiu a cabea, num  assentimento remoto ...  - Exceto quando le ri - acrescentou Elinor. - O riso dle  puro  Phil.  - Que foi que me trouxeste? - perguntou o pequeno Phil quase com  ansiedade. Quando as pessoas sa¡am e voltavam depois para casa, sempre  traziam alguma coisa para le. - Onde est o meu presente?  - Que pergunta! - protestou a Srta. Fulkes, corando de vergonha e  torcendo-se de n"vo.  Mas Elinor e Philip desataram a rir. 

* Conhecedor, perito (N. do E)# 

 o Walter, quando est srio - disse Elinor.

  Ou tu. . . - Philip olhava de um para a outra.  Não faz nem um minuto que teu pai e tua mãe chegaram  A Srta. Fulkes continuava com as suas repreensões.  - Malvada! - retorquiu o pequeno, jogando a cabea para tr s num  pequeno movimento de c¢lera e orgulho.  Elinor, que o estava observando, quase riu alto. Aqule s£bito erguer  de queixo - ora! - era a par¢dia do gesto de superioridade do velho Sr.  Quarles. Por um momento o pequeno transformou-se no sogro de Elinor,  no seu absurdo e deplor vel sogro: uma caricatura miniatural. Era câmi-  co, mas ao mesmo tempo e de certo modo não era uma brincadeira. Ela  quis rir, mas sentiu-se oprimida por uma conscincia s£bita dos mistrios  e complexidades da vida, pelas inescrutabilidades do futuro. Ali estava o  seu filho - mas le era igualmente Philip, era tambm ela pr¢pria, era

  tambm Walter, era o av" e`... av¢ maternos, e agora, com aqule alar de  queixo, se tinha repentinamente revelado como sendo tambm o  deplor vel Sr. Quarles. E podia ser centenas de outras pessoas tambm.  Podia ser? Certamente era. Era tios e primos que Elinor mal conhecia;  av¢s e tios-av¢s que ela s¢ vira quando criana e que esquecera completa-  mente; antepassados que tinham morrido havia muito. - Que  remontavam ... origem das coisas. T"da uma populaão de desconhecidos  habitava aqule corpinho e lhe dava forma, morava naquele esp¡rito e  cont rolava os seus desejos, ditava-lhe os pensamentos e havia de conti-  nuar a ditar e a controlar ... Phil, o pequeno Phil - sse nome era uma  abstraão, um t¡tulo dado arbitr...riam ente, como "Frana" ou "Iriglater-  ra", a uma coletividade, nunca por muito tempo a mesma, de muitos  indiv¡duos que nasciam, viviam e morriam em seu ser, como os habitantes

  de um pa¡s aparecem e desaparecem, deixando, porm, viva em sua passa-  gem,a identidade da naão a que pertencem. Elinor olhava para o filho  com uma espcie de terror. Quanta responsabilidade!  - Isso  o que chamo amor interesseiro - continuava ainda a Srta.  Fulkes. - E tu não deves dizer "malvada" para mim dsse modo.  Elinor soltou um pequeno suspiro, sacudiu-se para despertar do deva-  neio e, tomando o filho nos braos, estreitou-o contra o peito.  - Não faz mal. . . - disse ela, em parte para a reprovadora Srta.  f ulkes e em parte para o seu eu cheio de apreensão. - Não faz mal ...  Beijou-o.

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  Philip estava consultando o rel¢gio.  - Seria bom, talvez, que-rossernos lavar as mãos e nos arranjar um  pouco antes do lanche.  Tinha o sentimento da pontualidade.  - Mas primeiro - disse Elinor, que achava que as refeiões foram  feitas para o homem não o homem para as refeiões -, primeiro o que 

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devemos fazer  simplesmente ir at a cozinha para cumprimentar a Sra.  Ininan. Seria imperdo vel se não o fizssemos. Vem.  Ainda segurando o pequeno, Elinor precedeu-os atravs da sala dejan-  tar. O cheiro de pato assado ia cada vez ficando mais forte ... medida que  les avanavam.# 

Um pouco aborrecido pela conscincia que tinha daquela falta de  pontualidade, e um pouco inquieto por se ter de arriscar, embora tendo  Elinor como dragornaria, a entrar na cozinha e meter-se entre os criados  - Philip seguiu-a com relutncia.  · hora do lanche o pequeno Phil celebrou o acontecimento portando-

  se de maneira atroz.  - A comoão foi forte demais para le - repetia continuamente a  pobre Srta. Fulkes, tentando desculpar o menino e indiretamente justifi~  car-se a si mesma. Tinha ¡mpetos de chorar. - A senhora h de ver, Sra.  Quarles, quando le se habituar com a sua presena aqui - ajuntou,  voltando-se para Elinor. - A senhora vai ver; le sabe ser um anjo ...   a agitaão. . .  A Srta. Fulkes tinha chegado a amar aquela criana a tal ponto que os  triunfos e as humilhaões de Phil, as suas virtudes e os seus crimes faziam  que ela se sentisse exultante ou acabrunhada, satisfeita consigo mesma ou  envergonhada, como se se tratasse da sua pr¢pria pessoa. Alm disso, lia~  via o amor-pr¢prio profissional. Durante todos aqules meses ela f"ra a  £nica respons vel por Phil, ensinando-o a portar-se em sociedade, expli-

  cando-lhe por que o tringulo da ¡ndia est pintado de carmesim no ma-  pa; tinha-o feito, tinha-o modelado. E agora, quando sse objeto de seu  mais temo amor, sse produto de sua habilidade e de sua pacincia  gritava ... mesa, cuspia fora bocados de alimentos sernimastigados,  derramava gua, a Srta. Fulkes não s¢rnente corava, cheia duma  vergonha agoniada, como se f"sse ela quem tinha gritado e cuspido e  derramado gua, mas tambm experimentava ao mesmo tempo a  humilhaão do prestidigitador cujo truque Iongamente preparado falhou  diante do p£blico; era como o inventor da m quina ideal de voar que v  a sua engenhoca recusar terminantemente erguer-se do chão.  - No fim de contas - disse Elinor, num tom consolador -, era de  prever ...  A pobre mâa lhe inspirava sincera piedade. Elinor olhou para o filho.

  Phil estava gritando - e ela esperara (sem razão nenhuma) que agora se-  ria bem diferente, que iria encontr -lo inteiramente ajuizado e crescido.  Teve um instante de desespro. Amava-o, mas as crianas eram tão  terr¡veis ... E Phil era ainda uma criana.  - Agora, Phil - fez ela com severidade -, deves comer. Nada de  tolices!  O pequeno uivou mais forte. Gostaria de portar-se bem, mas não sabia 

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como fazer para deixar de portar-se mal. Tinha-se metido volunt...ria-  mente naquele estado de triste revolta, e agora a emoão se assenhoreara  dela, era mais forte que a sua vontade. Era-lhe imposs¡vel, mesmo que le  o desejasse, voltar atr s. Alm disso, a criaturinha sempre sentira certa  aversão por pato assado; e, como acabasse de pensar durante cinco minu-  tos no pato assado, com um desgâsto e um horror concentrados, chegara  ao ponto de abomin -lo. A vista, o cheiro, o gâsto daquele prato deixa-  vam-no verdadeiramente e sinceramente mareado.  A Sra. Bidlake, no entanto, conservava a sua calma metafisica. Sua al-  ma navegava serenamente, como um grande navio sâbre um mar bravio;  ou talvez ~e parecesse mais com um balão que se ergue muito alto pcima  das guas, e flutua no mundo sereno e sem ventos da fantasia. Ela estivera  falando a Philip a respeito do budismo. (A Sra. BidIake tinha um fraco  especial pelo budismo.) Aos primeiros gritos não chegara nem mesmo a  voltar a cabea para ver o que se passava, contentando-se com elevar a  voz para que a pudessem ouvir por s¢bre o tumulto. Os uivos se renova-  ram, continuaram. A Sra. Bidlake fez silncio e fechou os olhos. Um buda  de pernas cruzadas, dourado e tranqilo, apareceu contra o fundo verme-  lho de suas p lpebras fechadas; viu os sacerdotes de vestes amarelas em

  t"rno dle, cada qual na atitude do deus e mergulhado numa meditaão  ext tica.  - Maya - disse a Sra. Bidlake com um suspiro, como se falasse pa-  ra si mesma. - Maya: a eterna ilusão. - Abriu os olhos de n"vo. -  Sim, parece que o pato est um pouco duro - acrescentou, dirigindo~se  a Elinor e ... Srta. Fulkes, que tentavam desesperadamente fazer o pequeho,  comer.  Phil apanhou no ar a desculpa que a av¢ lhe tinha dado assim gratuita-  mente.  - Est duro! - gritou por entre l grimas, afastando de si o garfo no  qual a Srta. Fulkes, com a mão trmula pelo excesso de emoões doloTo-  sas, lhe estava oferecendo um naco de pato assado e a metade de uma

  batata nova.  A Sra. Bidiake cerrou os olhos outra vez, por um momento, depois  voltou-se para Philip e continuou a discutir sâbre a Via das Oito Veredas. 

Naquela noite Philip escreveu bastante longamente no seu livro de  notas, no qual registrava de mistura pensamentos e fatos, conversaões,  coisas ouvidas e vistas. "A Cozinha da Casa Velha" - foi o t¡tulo que  pos na pagina. 

- bastantef cil de reproduzir. Asjanelas Tudor refletidas nosfundos  das panelas de cobre. O enonnefogão negro com suas guarniões de ao 

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  polido, e o fogo que espia para fora atravs da portinhola superior  semicerrada. O resed nasjardineiras dajanela. O gato, um enorme eunu-  co c"r de gengibre, cochilando no seu balaio ao p do arm rio. A mesa da  cozinha, tão usada pelo tempo e pelas es/regadelas constantes que os  veios da madeira se destacam em relvo s"bre as partes mais moles -  como se um gravador tivesse preparado a prancha xilogr fica de alguma# 

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  gigantesca impressão digital. As vigas do teto baixo. As cadeiras defaia  castanha. A massafresca que se est rolando. O cheiro de cozinha. A  coluna inclinada de sol amarelo, cheia de part¡culas brilhantes. E final-  mente a velha Sra. Inman, a cozinheira; pequena, fr gil, indom vel, a  autora de ningum sabe quantas mil refeiões! Burilemos um pouco isto  e havemos de ter o quadro. Mas quero algo mais. Um esb"o da cozinha  tanto no tempo como no espao, uma indicaão do que ela significa no  cosmo humano em geral. Escrevo umafrase: Verão ap¢s verão, desde o  tempo. em que Shakespeare era rapaz at agora, dez geraões de cozi-  nheiros empregaram radiaões infravermelhas para quebrar as molculas  das Prote¡nas dos patos postos no esplo. ("Não nasceste pra morrer, ¢  p ssaro imortal", etc) Uma frase, e eu j estou em cheio dentro da  hist¢ria, dentro da arte e de t"das as cincias. T"da a hist¢ria do universo  se acha contida implicitamente em qualquer de suas partes. O "lho da  meditaão pode ver atravs de todo e qualquer objeto e enxergar, como  atravs dumajanela, o cosmo inteiro. Basta tornar di fano o odor de pato  assado numa velha cozinhapara trnios, num vislumbre, a visão de t"das  as coisas, desde as nebulosas espiraladas at a m£sica de Mozart e os  estigmas de São Francisco de Assis. O problema art¡stico  produzir  diqfneidade por partes, selecionando essas partes de maneira que não  revelem senão as mais humanamente significativas entre as perspectivas  distantes queficam atr s do objeto pr¢ximo efamiliar. Mas em todos os  casos as coisas vistas ao fundo da perspectiva devem ser bastante estra-

  nhas parafazer que ofamiliar pareafant...sticamente misterioso. Pergun-  ta: pode-se chegar a sse resultado sem pedantismo e sem prolongarfasti-  diosa e intermin...velmente a hist¢ria? Isso exige muit¡ssima reflexão.  "Mas como  encantadora a cozinha! Como são simp ticos os seus  habitantes! A Sra. Inman pertence ... casa h tanto tempo quanto Elinor.  Um milagre de beleza que envelheceu. E como ela  serena, como   aristocr...ticamente imperiosa! Quando uma pessoa foi monarca trinta  anos de tudo quanto a cerca, ela toma um ar de rei, mesmo quando o que  a cerca  apenas a cozinha. E depois h uma Dobbs, a camareira. Dobbs  esta na casa desde um pouco antes da guerra. Uma invenão de Rabelais.  Seis ps de altura e proporcionalmente gorda. E o corpo enorme abriga o  esp¡rito de Gargntua. Que alegria larga, que apetite de viver, que anedo-  tas, que risof cil e enorme! A risada de Dobbs  quase apavorante. Nu-

  ma prateleira do arm rio da copa eu notei, quandofomos apresentar nos-  sos cumprimentos, umfrasco verde, cheio at a metade depiMas - mas 

253 

t# 

p ulas que eram bolas de bom tamanho, como essas que se sopram para  a goela dos cavalos por meio de um tubo de borracha. Que indigestões  homricas essas p¡lulas sugerem!

  "A cozinha  boa; mas boa tambm  a sala de visitas. Chegamos de  volta de nosso passeio da tarde para encontrar o pastor e sua mulher  conversando s"bre Arte ao redor de taas de ch . Sim, Arte. Porquefoi a  primeira visita que nosfizeram depois queforam ver a Academia.  " um acontecimento anual. Todos os anos, no dia seguinte ao da  Ascensão, les tomam o trem da 8h52 para a cidade e pagam o tributo  que mesmo a Religião deve ... Arte - a Religião Estabelecida ... Arte  Estabelecida. Ambos examinam todos os cantos e recanios de Burlinglon  House, anotando o cat logo, enquanto andam a girar,fazendo humor or-  de o humor  admitido - porque o Sr. Truby (que se parece um tanto

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  com o No duma arca infantil)  um dsses homens de igrejajoviais que  -fazem brincadeiras afim de mostrar que, a despeito do redingote prto e  do colarinho virado, les são 'humanos, 'bons camaradas, etc.  "A fornida e bela Sra. Truby  menos ruidosamente divertida do que  seu marido, mas não  menos essa coisa a que as pessoas da classe mdia  superior que lem o Punch chamariam 'uma alma sinceramente alegre,  sempre pronta a divertir-se inocentemente, e cheia de observaões curio-  sas. Eu continuava a olhar e a escutar, fascinado, enquanto Elinor lhes  arrancava reflexões s"bre a par¢quia e a Academia; senti o que Fabre  sentia entre os cole¢pteros. De quando em quando alguma palavra da  conversaão atravessava os abismos espirituais que separavam a mãe de  Elinor das coisas e pessoas que a cercavam, e penetrava-lhe o devaneio,  produzindo uma curiosa reaão. Oracularmente, e de maneira desconcer-  tante, com uma seriedade que era quase assustadora no meio das brinca-  deiras dos Truby, elafalava; suas palavras eram como que vindas de um  outro mundo. E no entanto, l fora, o jardim  verde e florido. O velho  Stokes, o jardineiro,  barbudo e se parece com Pai Tempo. O cu  azul-  p lido. H um ru¡do de p ssaros. Òste lugar  bom. E para descobrir que  le  bom foi preciso navegar primeiro em t¢rno do mundo. Por que não  ficar? Criar raizes? Mas as raizes são cadeias. Tenho pavor de perder mi-  nha liberdade. Livre, sem pelas, não serpossu¡do por nenhuma das coisas  que possu¡mos - livre defazer o que queremos, de partir sem o menor  aviso prvio para onde quer que a fantasia possa sugerir - isso seria  bom. Mas ste lugar tambm o . Não poderia ser melhor? Para ganhar

  a liberdade sacrificamos alguma coisa -- a casa, a Sra. Inman, Dobbs,  Truby, o pndego do presbitrio, as tulipas do jardim, e tudo o que estas  coisas e esta gente significam. Sacrificamos alguma coisa - mas ser por  um lucro maior em sabedoria, em compreensão, em vida intensificada?   o que muitas vzesfico a perguntar a mim mesmo. . . " 

254 

Lorde Edward e seu irmão estavam tomando'ar no parque de Gatten-  den. Lorde Edward tornava-o caminhando. O quinto marqus tornava-o  numa cadeira de rodas puxada por um grande burro cinzento. Era inv li-  do. "O que, por felicidade, não impede o meu esp¡rito de correr", gostava  de dizer Lorde Gattenden. E seu esp¡rito tinha corrido confusamente t"da

  a sua vida, confusamente, daqui para ali. No entanto o burro cinzento# 

contentava-se com caminhar mui devagar. Na frente e ...s costas dos dois  Tantamourits, se estendia a grande alamda de Gattenden. Uma milha na  frente dles, n@ fim da perspectiva reta, erguia-se uma reproduão da  coluna de Trajano em pedra de Portland, suportando em seu cimo uma  est tua de bronze do primeiro marqus; tinha uma inscrião em grandes  letras em trno do pedestal, proclamando os seus t¡tulos de gl¢ria. Òsse  marqus havia sido, entre outras coisas, vice-rei da Irlanda e Pai da Agri-  cultura Cient¡fica. Ao fim da grande alamda, uma milha atr s dos

  marqueses, erguiam-se as fant sticas t¢rres e os pin culos do Castelo de  Gattenden, edificado para o segundo marqus por James Wyatt no mais  extravagante estilo g¢tico de Strawberry Hill; o solar tinha um aspecto  mais medieval do que tudo com que podia ter sonhado a verdadeira Idade  Mdia. O marqus residia permanentemente em Gattenden. Não que gos-  tasse de modo particular da casa ou da paisagem que a cercava. Mal dava  pela existncia de ambas ... Quando não estava lendo, estava pensando  no que tinha lido; o mundo das aparncias, denominaão que le platâni-  camente gostava de dar ... realidade vis¡vel e tang¡vel, não o interessava-  Esta falta de intersse era a sua vingana contra o universo que o fizera

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  inv lido. Morava em Gattenden porque era s¢mente em Gattenden que  le podia dar passeios sem perigo em sua cadeira de rodas. Pall Mall não   lugar para burros cinzentos e para velhos cavalheiros paral¡ticos que  lem e meditam enquanto passeiam. Doara Tantamount House a Lorde  Edward e continuara a fazer-se puxar pelo seu asno por entre as faias do  parque de Gattenden.  O burro fizera alto para pastar ... margem da estrada. O quinto marqus  e o irmão estavam trocando idias a respeito de Deus. O tempo passava.  Ambos se achavam ainda falando s"bre Deus quando, meia hora mais  tarde, Philip e Elinor, que tinham estado a fazer o seu giro da tarde pelo  parque, emergiram do bosque de faias e inesperadamente deram com a  cadeira de rodas do marqus.  - Pobres velhos! - comentou Philip quando se viram, le e a  mulher, a distncia de não serem ouvidos. - A respeito de que poderiam  les estar conversando? São velhos demais para falar de amor - velhos  e bons demais. Demasiadamente ricos para falar de dinheiro. Demasiada-  mente intelectuais para falar das outras pessoas e demasiadamente eremi-  tas para conhecer pessoas de quem possam falar. T¡midos demais para fa-  lar de si mesmos, demasiado inexperientes para falar da vida ou mesmo 

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da literatura. Que resta, pois, aos pobres velhos como assunto de  palestra? Nada - a não ser Deus.  - E, do modo como as coisas vão  exatamente como les daqui a dez anos ... 

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disse Elinor -, tu estar s 

CANTULO XX

  O velho John Bidiake dizia do pai de Philip Quarles que le se parecia  a uma dessas igrejas italianas de estilo barroco que tm frontarias falsas.  Alta, impressionante, eriada de ordens cl ssicas, de frontões quebrados e  de estatu ria, a fachada tem o aspecto de pertencer a uma grande cate-  dral. Mas olhai-a mais de perto e descobrireis que  s¢mente um  frontisp¡cio. Atr s da enorme e complicada fachada se acocora um  miser vel templinho de tijolo, de pedra bruta e argamassa leprosa. E,  desenvolvendo o s¡mile, John Bidlake punha~se a descrever o padre mal  barbeado, algaraviando a sua missa, o pequeno ac¢lito ranhento de  sobrepeliz suja, a congregaão de componesas papudas com os seus  fedelhos, o idiota que mendiga ... porta, as coroas de lata das imagens,a

  sujeiro do soalho, o cheiro ranoso de geraões inteiras de humanidade  piedosa.  - Como  - dizia le para concluir, esquecendo-se de que estava  comentando duma maneira pouco lisonjeira os seus pr¢prios sucessos -,  como  que as mulheres sempre acabam se apaixonando fatalmente pela  coisa mais baixa que lhes aparece, ou melhor, pelo homem mais baixo?   curioso. Particularmente neste caso. Era de se julgar que Rachei Quarles  fosse bastante inteligente para não se deixar iludir por sse v cuo.  Outras pessoas tambm pensavam assim; tinham igualmente ficado a  refletir sâbre o caso. Rachei Quarles parecia incompar¡lvelmente superior

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  ao marido que tinha. Mas ningum se casa com uma coleão de virtudes  e de talentos; casa~se com um ser humano individual. O Sidney Quarles  que tinha pedido a mão de Rachei era um jovem pelo qual qualquer  mulher poderia ter-se apaixonado, um jovem em quem t¢da a gente podia  ter acreditado - tâda a gente; e Rachei tinha apenas dezoito anos e era  uma criatura das mais inexperientes. Ôle tambm era m"o (a mocidade   em si mesma uma virtude), m"o e de boa aparncia. Ombros largos,  proporcionadamente alto, corpulento a ponto de ser quase gordo, Sidney  Quarles tinha ainda uma figura imponente. Aos 23 anos, aqule grande  corpo fora atltico. O cabelo grisalho, que agora cercava uma tonsura  r¢sea e polida, era então dum castanho dourado e cobria todo o crnio  com a sua abundncia ondulante. A cara grande, muito corada e carnuda,  tinha sido mais fresca, mais firme e menos semelhante a uma lua cheia. A  testa, mesmo antes de a calv¡cie haver aparecido, tinha um aspecto inte-  lectual na sua amplidão lisa. E a conversaão de Sidney Quarles não 

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desmentia de maneira nenhuma a prova circunstancial que a sua fronte  oferecia. Falava bem, embora mostrasse sempre um pouco de arrogncia  e de vaidade excessivas. Alm do mais Sidney Quarles tinha ...quela poca

  uma reputaão; acabara de sair da universidade, aureoNdo de um certo  resplendor de gl¢ria acadmica e orat¢ria. E na larga tela virgem do futu-  ro os seus amigos mais entusiastas pintavam as visões mais f lgidas. Ao  tempo em que Rachel. o viu, pela primeira vez, essas profecias tinham um  ar verdadeiramente razo vel. E em todo caso, com ou sem razão, ela o  amava. Casaram-se quando a m"a tinha apenas dezenove anos.  Do pai, Sidney herdara uma bonita fortuna. O neg¢cio (o velho Sr.  Quarles negociava com a£car) ia muito bem. A propriedade de Essex  produzia o suficiente para se manter. A casa da cidade ficava em Port-  man Square; a casa de campo em Chaniford era c"moda e de estilo geor-  giano. Sidney tinha ambiões pol¡ticas. Depois dum aprendizado na  administraão dos neg¢cios locais, entraria para o Parlamento. Sua  diligncia incans vel, seus discursos ao mesmo tempo srios e brilhantes

  o marcariam como um homem de futuro. Haviam de oferecer-lhe o lugar  de adjunto a uma subsecretaria; seria promovido r pidamente. Sidney po-  dia esperar (pelo menos f"ra o que lhe parecera 35 anos atr s) a reali-  zaão das ambiões mais extravagantes.  Mas o Sr. Quarles, como dizia o velho Bidlake, não passava duma  fachada, duma aparncia impressionante, duma voz, duma habilidade  superficial - nada mais. Atr s daquele magn¡fico frontisp¡cio vivia o  verdadeiro Sidney, fraco, falho de t"da persevtrana nos assuntos impor-  tantes, embora fosse obstinado quando se tratava de ninharias; f cilmente  inflam vel pelo entusiasmo, mas ainda mais f cilmente levado ao tdio.  Aquela habilidade mesma, no fim de contas, não passava dessa espcie de  habilidade que permite aos alunos brilhantes escrever versos latinos ...  maneira de Ovidio ou par¢dias humor¡sticas de Her¢doto. P"sto ... prova,

  sse talento de classe de ret¢rica se revelava tão impotente no dom¡nio  puramente intelectual como no dom¡nio da pr tica. Quando, ao cabo dum  per¡odo de negligncia agravado por especulaões febris e por uma orien-  taão m , le viu a emprsa do pai levada a meio caminho da ru¡na (Ra-  chel o obrigou a vender t"da a sua parte no neg¢cio antes que rosse dema-  siado tarde), quando suas esperanas pol¡ticas se viram completamente  arruinadas por v rios anos de alternativas entre a indolncia e a atividade  sem disciplina - Sidney Quarles concluiu que sua vocaão verdadeira  era o publicismo. No primeiro ¡mpeto desta convicão nova, chegou efeti-  vamente a terminar um livro sâbre os princ¡pios do govrno. Superficial e

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  vago, cheio de lugares-comuns cuja inferioridade era acentuada pela  pretensão dum estilo trabalhado que coruscava de epigramas puramente  verbais, o livro foi acolhido com uma indiferena merecida, que Sidney  Quarles atribuiu ...s maquinaões de inimigos pol¡ticos. O autor confiava  na posteridade para lhe fazer justia. 

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Desde a long¡nqua publicaão do primeiro livro, o Sr. Quarles tinha  estado ocupado - ou pelo menos se supunha que assim f"sse - com  escrever um outro, mais volumoso e mais importante, s"bre a democra~  cia- Òsse tamanho e essa importnciajustificavam um retardamento qua-# 

se indefinido no acabamento da obra. Havia j mais de sete anos que  Sidney trabalhava e nem sequer tinha ainda - dizia le a quem quer que  o interrogasse s¢bre a marcha do livro (e sacudindo a cabea, com a  expressão dum homem que carrega um fardo quase intoler vel) -, nem  sequer tinha ainda acabado de colhr o material.  -  um trabalho de Hrcules - costumava le dizer, com ar de m r-  tir e ao mesmo tempo com uma arrogncia f tua. Ao falar, o velho Quar-  les tinha o vzo de levantar o rosto e lanar as palavras no ar como se ros-

  se um obuseiro, ao mesmo tempo que olhava para o interlocutor (quando  se dignava de faz-lo) com um olhar que sa¡a debaixo das p lpebras  semicerradas e deslizava ao longo do nariz. Tinha a voz bem timbrada e  cheia dsses balidos com que os oxfordianos mais afetados costumam  enriquecer a l¡ngua inglsa. Era como se um rebanho de carneiros se  tivesse p"sto ...s s"ltas no seu vocabul rio. "Um trabalho de Hrcules."  Estas palavras eram acompanhadas dum suspiro. " realmente de atemo-  rizar."  Se o interlocutor rosse suficientemente simp tico, Sidney Quarles o  levava a seu gabinete de trabalho e lhe mostrava (sobretudo quando se  tratava duma mulher) todo o aparelhamento complicado de fich rios e  classificadores de ao que le tinha acumulado em târno de sua escriva-  ninha americana de aspecto ultraprofissional. · medida que o tempo

  passava, embora o livro não desse sinais de estar sendo escrito, o Sr.  Quarles ia fazendo a aquisião de mais e mais outros daqueles objetos  im pression antes. Eram les as provas vis¡veis de seu trabalho,  simbolizavam a terr¡vel dificuldade da tarefa. O escritor não possu¡a  menos de trs m quinas de escrever. A Corona port til o acompanhava  aonde quer que le fosse, para o caso em que lhe viesse a inspiraão num  momento qualquer, durante as viagens. De tempos em tempos, quando  sentia a necessidade de impressionar mais que de costume, Sidney levava  a Hammond, m quina um pouco maior em que os caracteres eram fundi-  dos, não em braos separados, mas sim sâbre uma cinta desmont vel de  metal, fixada a um tambor girat¢rio, de maneira que permitia a mudana  dos alfabetos, ... vontade, e escrever em grego ou em rabe, em s¡mbolos  matem ticos ou em russo, segundo as necessidades do momento; o Sr.

  Quarles tinha uma bela coleão dessas cintas com tipos diferentes - ti-  pos de que, est claro, le não se servia nunca, mas dos quais sentia um  grande orgulho, como se cada um dles representasse um talento ou um  dom especial, todo seu. Enfim, havia a terceira e a mais recente das  m quinas de escrever, um utens¡lio de escrit¢rio muito grande e muito ca-  ro, que era não s¢rnente m quina de escrever mas tambm m quina de 

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calcular. Muito c"moda, explicava o Sr. Quarles, para compilar as  estat¡sticas de seu grosso volume e para fazer as contas da administraão  de seus bens. E apontava com um orgulho todo particular o pequeno mo-  tor eltrico ffixado ... m quina; estabelecia-se o contato com o tomador de  corrente da parede e o motor fazia todo o trabalho - absolutamente todo  -, menos, est claro, a composião efetiva do livro. Não era preciso fa-  zer nada mais do que tocar na tecias, assim (e o Sr. Quarles fazia uma  demonstraão); a eletr`icidade fornecia a f"ra necess ria para p"r os  caracteres em contato com o papel. Todo esfâro muscular era eliminado.  Podia-se continuar a escrever assim durante dezoito horas a fio - e o Sr.  Quarles dava a entender que era coisa comum para le ficar dezoito horas  ... mesa de trabalho (como Balzac, ou Sir Isaac Newton) -, podia-se  continuar, em suma, quase indefinidamente, sem experimentar a mais leve  fadiga, pelo menos nos dedos. Uma invenão americana. Muito engenho-

  sa.  O Sr. Quarles tinha comprado a sua m quina de escrever calculadora  no momento em que, pr...ticamente, cessara de se ocupar com a gestão de  seus bens. Porque Rachei lhe tinha deixado a direão da propriedade.  Não que le a dirigisse melhor de que o neg¢cio que ela o tinha persua~  dido a abandonar em'boa hora. Mas a ausncia de lucros não importava;  e as perdas, quando as havia realmente, eram pouco consider veis.  Rachei Quarles esperava que a gestão dos bens do casal constitu¡sse  ocupaão sã para o marido. E valia a pena gastar alguma coisa nesse  prop¢sito. Mas o preo que foi mister pagar---nos anos de depressão que  seguiram a guerra, se tornou muito elevado; e como Sidney cada vez se  ocupasse menos com a direão dos seus bens particulares, o preo cresceu  de maneira alarmante, ao passo que o alvo que justificaria tal sacrificio

  - o fato de achar uma ocupaão saud vel para Sidney - não era atingi-  do. ·s vzes,  verdade, Sidney tinha alguma idia e s£bitarriente mergu-  lhava numa orgia do que le denominava "melhoramentos imobili rios".  Certa ocasião, depois da leitura dum livro s"bre os rendimentos america~  nos, le comprou uma grande quantidade de m quinas caras, simples-  mente para descobrir que no fim de contas a propriedade não era bastante  grande para comport -las. Sidney não podia dar trabalho suficiente ...s  suas m quinas. Mais tarde construiu uma f brica de gelias em conserva;  o estabelecimento nunca lhe rendeu um n¡quel. A falta de xito f-e-lo per-  der r...pidamente o intersse nos "melhoramentoõ". · fora de trabalho  rduo e de atenão constante não seria imposs¡vel que les se tornassem  lucrativos com o tempo; por enquanto, todavia, graas ... negligncia de  Sidney, o melhoramento resultara em preju¡zo total. Decididamente, o

  preo era excessivo, e estava'sendo pago a tr"co de nada.  Com seu tato habitual - porque ao cabo de mais de trinta anos de  casamento ela conhecia o marido com perfeião -, Rachei o convenceu  de que le teria mais tempo para consagrar ao seu grande livro se deixasse 

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a outros a aborrec¡vel tarefa da gestão da propriedade. Ela e o intendente  bastariam para isso. Era absurdo desperdiar num trabalho tão mecnico  talentos que podiam ser utilizados melhor e mais convenientemente. Sid-  ney deixou-se convencer com facilidade. A administraão de seus bens o  entediava; a propriedade lhe tinha ferido o amor-pr¢prio insistindo tão  maivolamente em seus resultados deplor veis, a despeito dos melhora-  mentos. Ao mesmo tempo le percebia bem que um abandono completo  seria a confissão de seu pr¢prio fracasso, e um tributo - mais um - pa-  go ... superioridade inata de sua mulher. Aceitou a proposta de consagrar  menos tempo ...s min£cias da gestão, mas prometeu, ou ameaou, ...  maneira dum deus, continuar a zelar pela propriedade, segui-la de longe,  mas não menos eficazmente, nos intervalos de seus trabalhos liter rios.  Foi então que, para se justificar, para aumentar a sua importncia, com-  prou a m quina de escrever e de calcular. Ela era o s¡mbolo da enorme  complexidade do trabalho liter rio ao qual le se ia agora consagrar aci-  ma de tudo; e Sidney provava ao mesmo tempo que não tinha cessado  completamente de se interessar pelos neg¢cios materiais. Porque a  m quina de calcular devia encarregar-se não s¢rnente das estat¡sticas (de  que maneira? - Era coisa que o Sr. Quarles tinha a prudncia de nunca  especificar), mas tambm das contas, sob as quais, ficava subentendido, a  pobre Rachei e o intendente haveriam de sucumbir por f"ra sem o

  aux¡lio superior dle, Sidney.  O Sr. Quarles não reconhecia, est claro, a superioridade da mulher.  Mas a conscincia que dessa superioridade le tinha duma maneira obs-  cura, e o despeito que sentia por isso, o desejo de provar que, apesar de  tudo, le valia tanto quanto a espâsa, ou, no fundo, talvez mais do que ela  - condicionava t¢da a sua vida. Era sse despeito, sse desejo de afirmar  sua superioridade domstica que o tinha feito apegar-se ... sua malograda  carreira pol¡tica. Entregue a si mesmo, Sidney Quarles teria sem d£vida  abandonado a vida pol¡tica ... primeira revelaão das dificuldades e da ari-  dez daquela; porque nle a indolncia era mais forte do que a ambião.  Mas a relutncia em reconhecer o fracasso e a inferioridade pessoal que  le implicaria o impediram (enchendo~o duma confiana transbordante  no seu futuro) de abandonar a cadeira no Parlamento. Tendo perptua-

  mente diante dos olhos o espet culo exasperante da serena capacidade de  Rachei, le não podia confessar-se vencido. O que Rachei fazia, fazia  bem; t"da a gente a amava e admirava. Era para rivalizar com ela, para  fazer as coisas melhor do que ela, aos olhos do mundo e aos seus pr¢prios  olhos, que Sidney Quarles se aferrava ... pol¡tica, que mergulhava nas  caprichosas atividades que tinham marcado a sua carreira parlamentar.  Desdenhando ser um simples escravo de seu partido e vido de conseguir  uma distinão pessoal, Sidney Quarles se fizera o campeão entusiasta du~  ma srie de causas, simplesmente para depois fugir delas com desg"sto. A  abolião da pena capital, o antivivisseccionismo, a reforma das prisões, o 

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melhoramento das condiões de trabalho na µfrica Ocidental - eram  casos que tinham solicitado, cada um por sua vez, a sua eloqncia mais  inflamada e um breve assomo de energia. Òle se via a si mesmo sob o  aspecto dum reformista triunfante que trazia a vit¢ria, com a sua simples  presena, a qualquer causa que lhe aprouvesse defender. Mas as muralhas

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  de Jeric¢ não ca¡ram jamais ao som de sua trombeta, e Sidney Quarles  não era homem de empreender assdios laboriosos. Os enforcamentos, as  operaões cir£rgicas em cães e em batr quios, os condenados solit rios,  os negros maltratados - cada um dsses assuntos, um ap¢s outro, per-  deu todo o encanto a seus olhos.  E Rachei continuava a ser uma criatura capaz, continuava a ser amada  e admirada.  Entrementes, os encorajamentos diretos da parte dela tinham sempre  reforado aqule estimular)te indireto ... ambião que Rachei fornecera,  duma maneira completamente involunt ria, pelo simples fato de ser quem  era e de ser a mulher de Sidney. No in¡cio, Rachei Quarles acreditara  sinceramente no marido; encorajara o seu her¢i. Poucos anos bastaram  para transformar em piedosa esperana a f no seu sucesso final. Quando  a esperana se foi, Rachei encorajou o marido por motivos diplom ticos  - porque o fracasso na pol¡tica custava menos caro do que o fracasso no  comrcio. Porque a maneira como Sidney dirigia seu negocio era uma  ameaa de desastre. Ela não ousava dizer-lhe isso, não ousava aconse-  lhar-lhe que cdesse a sua parte; faz-lo seria incitar o marido a aferrar-se  ao negocio com mais tenacidade do que nunca. Lanando d£vida s"bre a  capacidade dle, Rachei conseguiria apenas acicat -lo para novas e mais  perigosas especulaões. Porque Sidney reagia ... cr¡tica hostil duma  maneira violenta e por uma birra obstinada. Rachei Quarles, que a  experincia tornara prudent, evitou o perigo encorajando-lhe com ardor  redobrado as ambiões pol¡ticas. Amplificou a importncia de sua ativi-

  dade parlamentar. Que bom, que nobre trabalho le estava fazendo! E que  pena que os cuidados dos neg¢cios ocupassem uma tão grande parte do  tempo e da energia que poderiam ser mais bem empregadas! Sidney  mostrou-se logo sens¡vel a tais argumentos, com uma gratidão secreta e  nova. A rotina mon¢tona dos neg¢cios o aborrecia; comeava a se inquie-  tar com suas especulaões onerosas. Recebeu com alegria aquela  desculpa para se desfazer de suas responsabilidades, aquela escusa que  Rachei lhe oferecia diplom...ticamente. Vendeu a sua parte no neg¢cio  antes que fosse tarde demais e tornou a empregar o d¡nheiro ern't¡tulos  garantidos, que por si mesmos cuidavam dos dividendos. Dessa maneira  sua renda foi reduzida a mais ou menos um tro; mas, em qualquer caso,  agora havia segurana - e isso era o que preocupava Rachei antes de  mais nada. Sidney andou a vangloriar-se dos grandes sacrif¡cios finan-

  ceiros que tinha feito a fim de poder consagrar todo o seu tempo aos 262

 pobres condenados. (Mais tarde foram os pobres negros, mas os

  sacrif¡cios continuaram a ser os mesmos.)  Quando, cansado f inalmente de ser uma nulidade pol¡tica, e furioso por# 

causa do que le considerava como a injustia de seus chefes de partido,

  Sidney abandonou sua cadeira no Parlamento, a Sra. Quarles não fez  nenhuma objeão. Não havia neg¢cio, agora, que seu marido pudesse fa-  zer periclitar, e a propriedade, naquela poca de prosperidade agr¡cola  que seguiu imediatamente o armist¡cio, era ainda lucrativa. Sidney expli-  cou que le não servia para a pol¡tica pr tica; a pol¡tica degradava os  homens de valor, salpicando-os com o seu Iâdo. Decidira (porque a  conscincia que tinha da superioridade de Rachei não lhe permitia  repousar) devotar-se a alguma coisa mais importante do que a "desleal"  pol¡tica. a alguma coisa que rosse mais digna de seus talentos. Ser o  fil¢sofo da pol¡tica era melhor do que ser pol¡tico. Conseguiu terminar e

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  publicar uma primeira parte da sua filosofia pol¡tica. O esf¢ro prolon-  gado que teve de fazer para escrever embotou-lhe o entusiasmo de autor  filos¢fico, o sucesso magrrimo do livro o desgostou profundamente. Mas  Rachei era sempre uma mulher capaz- e querida. A fim de salvaguardar  sua reputaão. Sidney anunciou a intenão de publicar a obra mais  importante e mais completa que j se escreveu sâbre a democracia.  Rachei podia ser muito ativa rios comits, podia fazer- boas obras; ela era,  sem d£vida alguma, amada pelos aldeães, tinha amigos e pessoas que lhe  escreviam em abundncia; mas, no fim de contas, que era isso comparado  ... publicaão do livro mais importante s¢bre a democracia? O £nico  aborrecimento era que o livro não se escrevia ... Quando Rachei se mos-  trava eficiente demais, quando as demonstraões de estima que lhe  dispensavam eram excessivas, o Sr. Quarles comprava outro fich rio, ou  um modlo n"vo e mais engenhoso de livro de notas de f"lhas s"ltas, ou  uma caneta-tinteiro com um reservat¢rio particularmente importante -  um estil¢grafo, explicava le, que podia escrever 6 O00 palavras sem ter a  necessidade de ser reabastecido de tinta. A rplica era talvez inadequada.  Mas a Sidney parecia bastante boa.  Philip e Elinor passaram dois dias com a Sra. Bidlake em Gattenden.  Depois foi a vez dos pais de Philip. O casal chegou a Chainford e logo  soube que o Sr. Quarles havia comprado um ditafone. Sidney não permi-  tiu que o filho ficasse muito tempo ria ignorncia de seu triunfo. O dita-  fone era a sua maior faanha depois da m quina de escrever calculadora.

  -- Acabo de fazer uma aquisião - disse le com sua voz cheia,  lanando as palavras por cima da cabea de Philip. - Algo que te  interessar na tua qualidade de escritor.  Conduziu o filho at seu gabinete de trabalho.  Philip o seguiu. Esperava ser assediado com perguntas a respeito do  Oriente e dos tr¢picos. Em vez disso o pai se contentou com perguntar se# 

le tinha feito boa viagem, e continuou a falar de seus neg¢cios, quase an-  tes que Philip tivesse tempo de responder. No primeiro instante, Philip fi-

  cou surprso, e mesmo um pouco picado. Mas a lua - pensou le -  parece maior do que S¡rio porque est mais perto. A viagem, a sua via-  gem, era para le uma lua e para seu pai a menor das estrlas de dcima  grandeza.  - Aqui est - disse o Sr. Quarles, erguendo a tampa. O ditafone se  revelou aos olhares de ambos. - Maravilhosa invenão! - Òle falava  com profundo contentamento de si mesmo. Era o despontar s£bito da  "lua dle", em t"da a sua refulgncia. Explicou o funcionamento da  m quina. Depois, erguendo o rosto para o alto, ajuntou: -  muito £til,  quando nos ocorre uma idia. A gente a transforma em palavras imedia-  tamente. A gente fala consigo mesmo: depois a m quina recorda. Mando-  a para meu quarto de dormir ... aaa ... t¢das as noites. Quando esta-  mos na cama nos vm idias mui preciosas, não achas? Sem um ditafone

  elas ficariam ... aaa... perdidas.  -- E que  que fazes quando chegas ao fim dum dsses rolos do  f¢ri¢grafo?  Mando-o ... minha secret ria... aaa... para datilografar.  Philip alou as sobrancelhas.  Tens agora uma secret ria?  O Sr. Quarles sacudiu a cabea com ar importante.  Por enquanto ela não me consagra senão a metade de seus dias --  disse le, dirigindo- se ... cornija da parede fronteira. - Não fazes a menor  idia de tudo quanto tenho a fazer. O livro, a propriedade, as cartas, as

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  contas ... e ... aaa ... sei l quanta coisa mais. . . - concluiu le de  maneira um tanto insatisfat¢ria. Suspirou, sacudiu a cabea de m rtir. --  s feliz, meu caro rapaz - continuou o velho Quarles. - Não tens  distraões. Podes empregar todo o teu tempo na literatura. Eu quisera fa-  zer o mesmo com tâdas as minhas horas. Mas tenho a propriedade e o  mais que segue ... Tudo isto  trivial, mas  preciso ser feito. - Suspi-  rou de n"vo. - Invejo a tua liberdade.  Philip pâs-se a rir:  - Sim, eu mesmo quase chego a me invejar, ...s vzes! Mas o ditafone  ser um grande aux¡lio para ti.  - Oh! como não! Indubitilvelmente.  - Como vaio livro?  - Devagar, mas firme. Acho que j colhi ... aaa... a maior parte  do material.  Bem,j  alguma coisa.  Vocs, novelistas - disse o Sr. Quarles num tom protetor -, são  afortunados. Não precisam fazer nada mais ... aaa ... que sentar e  escrever. Nenhum trabalho preliminar  necess rio. Nada disto. - Apon-  tou para os arquivos e os fich rios. Eram a prova de sua superioridade, 

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bem como das dificuldades enormes com que andava ...s voltas. Os livros  de Philip podiam obter sucesso. Mas, no fim de contas, que era uma nove-

  la? Uma hora de entretenimento, eis tudo; uma coisa que se apanha e que  depois se joga fora descuidosamente. Ao passo que o livro mais impor-# 

tante sâbre a democracia ... Alm disso, qualquer um podia escrever um  romance. Tratava-se apenas de viver e de p"r-se depois a registrar o fato.  Mas para compor o livro mais importante s"bre a democracia era preciso  tomar notas, coligir materiais em fontes inumer veis, comprar m¢veis  classificadores e m quinas de escrever port teis, poliglotas e calculado-  ras; era preciso um fich rio, livros de notas com f"lhas s"ltas, um

  estil¢grafo capaz de escrever 6 O00 palavras sem necessidade de ser  reabastecido; era preciso um ditafone e uma secret ria que nos  consagrasse a metade de seus dias, e que em breve f"sse obrigada a nos  consagrar os dias inteiros.  - Nada disto - insistiu o Sr. Quaries pai.  - OM Não - disse Philip, que se tinha p"sto a passear pela pea e  a examinar o aparelhamento liter rio. - Nada disto. - Apanhou alguns  recortes de jornal que se achavam debaixo do pso de papel, s"bre a tam-  pa da Corona que nunca se abrira. - Palavras cruzadas? - perguntou,  erguendo os desenhos irregularmente quadriculados. - Não sabia que te  havias tornado um amador de palavras cruzadas ...  O Sr. Quarles arrebatou os recortes das mãos do filho e os fechou nu-  ma gaveta. Ficou contrariado por Philip t-los visto. As palavras cruza-

  das desmanchavam o efeito produzido pelo ditafone.  - Coisas pueris - disse le com uma risadinha. - Mas constituem  uma distraão ... aaa ... quando o esp¡rito est cansado. Gosto de me  divertir com elas uma vez que outra.  Na realidade o Sr. Quarles passava quase t"das as suas manhãs a deci-  frar palavras cruzadas. Elas se adaptavam exatamente ao seu tipo de  inteligncia. Era um dos decifradores mais ex¡mios de seu tempo.  Entrementes, na sala de visitas, a Sra. Quarles palestrava com a nora.  Era uma mulherzinha ativa, de cabelos grisalhos, mas que conservava

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  intato e mal e mal deformado o cont"mo dos traos regulares e bem  modelados. A expressão do rosto era ao mesmo tempo viva e cheia de  sensibilidade. Uma energia delicada, uma vida intensa, mas vibr til ... me-  nor sensaão, e que brilhava em incessantes variaões de esplendor e de  nuanas de c"r nos seus olhos expressivos, dum cinzento azulado. Os  l bios respondiam aos pensamentos e ...s sensaões quase com a mesma  rapidez e constncia que os olhos; eram graves ou firmes, sorriam ou  ficavam melanc¢licos, seguindo t"da uma escala por assim dizer  inf initesimalmente crom tica de expressão emotiva.  - E o pequeno Phil? -- perguntou ela, pedindo not¡cias do neto.  - Transbordante de sa£de.  - Aqule homenzinho! - O calor da afeião da Sra. Quarles dava 

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mais plenitude ... sua voz e transparecia em luz nos seus olhos. - Devias  ter ficado muito triste por ter de abandon -lo durante tanto tempo.  Elinor teve um encolher de ombros quase impercept¡vel:  - Ora, eu sabia que entre a Srta. Fulkes e mamãe le seria mais bem  cuidado do que comigo. - P"s-se a rir e sacudiu a cabea. - Não acre-

  dito que a natureza me tenha destinado a ter filhos. Ou sou impaciente  com les ou então encho-os de mimos. O pequeno Phil  encantador, estclaro; mas eu sei que uma fam¡lia numerosa me teria deixado louca.

  A expressão do rosto da Sra. Quaries mudou.  - Mas não sentiste uma alegria transbordante ao rev-lo, ao cabo de  tantos meses? - O tom em que ela fez esta pergunta era quase de inquie-  taão. Esperava que Elinor respondesse pela afirmaão entusiasta que te-  ria sido natural em circunstncias an logas. Mas ao mesmo tempo se via  acossada por um mdo de que aquela estranha criatura lhe respondesse  (com a franqueza que era, nela, uma qualidade admir vel mas ao mesmo  tempo perturbadora, porque revelava estados de alma pouco familiares e  mesmo incompreens¡veis para Rachel) que não tinha sentido nenhum pra-  zer'ein rever o filho. As primeiras palavras de Elinor lhe trouxeram um

  al¡vio.  - Sim, foi uma coisa maravilhosa.  Mas em seguida roubou ... frase todo o efeito, acrescentando:  - Eu não imaginava que pudesse ficar tão contente ao rev-lo. Mas  foi verdadeiramente uma emoão forte.  Houve um silncio.  "Criatura estranha", pensou a Sra. Quaries. Seu rosto tra¡a qualquer  coisa do espanto que ela sentia sempre na presena de Elinor. Fazia o  poss¡vel para amar a nora; e o tinha conseguido at certo ponto. Elinor  possu¡a muitas qualidades excelentes. Mas parecia faltar-lhe alguma coi-  sa, alguma coisa sem a qual-nenhum ser humano podia ser inteiramente  simp tico a Rachel Quarles. Dir-se-ia que a mulher de Philip tinha  nascido privada de certos instintos naturais. Não esperar sentir-se feliz

  pelo fato de rever o filho - isso j era bastante esquisito. Mas o que  Rachel achava quase mais estranho ainda era a maneira tranqila e  simples com que Elinor reconhecia-o fato. Ela, Rachel, teria corado ao  fazer uma tal confissão, mesmo que representasse a verdade. Ter-lhe-ia  parecido algo de vergonhoso - uma espcie de blasfmia, a negaão  duma coisa sagrada. Em Rachel, a veneraão pelas coisas sagradas era  natural. Essa falta de veneraão em Elinor, e a sua incapacidade para  perceber, mesmo, que as coisas sagradas eram efetivamente sagradas,   que tornavam imposs¡veis ... Sra. Quaries ter pela nora t"da a afeião que  desejava.

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  or sua vez Elinor admirava, respeitava e amava sinceramente a mãe  de seu marido. Nela, a dificuldade cr"nica era.estabelecer um contato efe- 

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tivo com uma pessoa cujas idias e motivos determinantes lhe pareciam  tão estranhamente incompreens¡veis, e mesmo tão absurdos. A Sra. Quar-  les era religiosa, sem ostentaão, mas ardentemente, e vivia tanto quanto  poss¡vel de ac"rdo com as suas crenas. Elinor a admirava, mas achava  que aquilo era um pouco absurdo e suprfluo. Tinha recebido uma# 

educaão ortodoxa. Mas não conservava nenhuma lembrana duma po-  ca, mesmo da infncia, em que tivesse acreditado sriamente no que lhe  contavam sâbre o outro mando e sâbre os seus habitantes. O outro mun-  do a aborrecia; Elinor s¢ se interessava por ste. A confirmaão não tinha  despertado nela mais entusiasmo do que uma representaão teatral -  consider¡lvelmente menos, at. Sua adolescncia transcorrera sem um  trao de crise religiosa.  - Isso tudo me parece simplesmente absurdo - dizia ela quando  discutiam tais assuntos em sua presena. E não havia nhhuma afetaão

  em suas palavras, elas não eram ditas como provocaão. Elinor enun-  ciava simplesmente- um fato de sua hist¢ria pessoal. A religião, e, com a  religião, t¢da a moral transcendente, tâda especulaão metafisica, lhe  pareciam absurdas, do mesin¡ssimo modo que o cheiro de Gorgonzola lhe  parecia repugnante. Não havia nada a fazer contra aquela experincia  direta. Muitas vzes, em casos como o presente, quisera poder fazer algu~  ma coisa. Gostaria de atravessar o abismo que a separava da Sra. Quar-  les. Mas o fato  que experimentava uma certa inquietude quando se  achava com a sogra; hesitava, na presena dela, em exprimir suas  sensaões ou em dizer o que pensava. Porque tinha observado muito  repetidamente que a franca enunciaão do que lhe parecia serem  sentimentos perfeitamente naturais e opiniões razo veis era suscet¡vel de  entristecer a mãe de seu marido, de feri-la como coisas estranhas e

  chocantes. Era o que acabava agora de acontecer, segundo viu pela  expressão que o rosto m¢vel e sens¡vel da Sra. Quarles assumiu por um  instante. Que acontecera, pois,. dessa vez? Elinor, que não tinha  conscincia de nenhuma culpa, não p"de fazer outra coisa senão perder~  se em cogitaões mudas. Decidiu nunca mais arriscar opiniões pessoais:  limitar-se-ia a concordar com o que lhe dissessem.  Aconteceu, entretanto, que o assunto logo a seguir atacado era um ds-  ses em que Elinor estava demasiadamente interessada para poder manter-  se fiel ... resoluão recente. Alm do mais, era matria s"bre a qual, Elinor  o sabia por experincia, ela podia falar livremente sem risco de ofensa  involunt ria. Porque, no que dizia respeito a Philip, os sentimentos e as  opiniões de Elinor pareciam ... Sra. Quarles inteiramente apropriados.  - E o Philip grande? - perguntou ela logo em seguida.

  - A senhora v como le est com boa aparncia - respondeu Eli-  nor, referindo-se ... sa£de do marido, muito embora soubesse que a inter-  rogaão não se referia ao bem-estar corr)oral. Foi com certo temor que ela 

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previu a conversaão que estava por vir. Ao mesmo tempo, todavia,

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  sentiu-se contente por ter ocasião de discutir o assunto que lhe ocupava  os pensamentos duma maneira tão constante e tão penosa.  - Sim, sim, isso eu j vi - disse a Sra. Quarles. - Mas o que eu  queria perguntar era: como vai le em si mesmo? Como vai contigo?  Houve um silncio. Elinor enrugou levemente a testa e olhou para o  chão.  - Long¡nquo. . . - disse por flun.  A Sra. Quarles suspirou.  - Sempre foi assim. Sempre long¡nquo.  A Philip tambm - parecia-lhe -, a le tambm faltava alguma coisa  o desejo e a faculdade de se dar, de se exteriorizar e de ir ao encontro  de seus semelhantes, mesmo dos que o amavam, mesmo dos que le ama-  va. Geoffrev, sse sim, era tão diferente! · recordaão do filho morto, a  Sra. Quarles sentiu todo o seu ser invadido duma tristeza acerba. Se  alguem sugerisse a idia de que ela o amara mais do que a Philip, a Sra.  Quarles teria protestado. Seus sentimentos, ela estava certa, tinham sido  os mesmos, em sua origem. Mas Geoffrey se deixara amar mais plena-  mente, mais intimamente do que o irmão. Se ao menos Philip tivesse  permitido que ela o arriasse mais! Mas tinha havido sempre barreiras en-  tre ambos - barreiras que le pr¢prio erguera. Geoffrey, sse, tinha ido  ao seu encontro, tinha dado o que podia receber. Mas Philip fâra sempre  relutante e parcimonioso. Fechara sempre as portas quando ela se aproxi-  mava, fechara sempre a cadeado o seu esp¡rito, de mdo que ela pudesse  lanar um olhar furtivo sâbre os seus segredos. A Sra. Quarles nunca che-

  gara a saber o que le sentia e pensava verdadeiramente.  - Mesmo quando era menino - acrescentou Rachei em voz alta.  - E agora, le tem o trabalho - fez Elinor depois dum silncio.  De sorte que  ainda pior.  como um castelo bem no alto duma monta-  nha, sse trabalho. Philip se fecha dentro dle e fica inexpugn vel.  A Sra. Quarles sorriu com tristeza.  - Inexpugn vel. -- Era o tmio exato. Mesmo quando menino Philip  fl ra sempre inexpugnavel. - Talvez no fim le se entregue por vontade  pr¢pria.  - A mim? - perguntou Elinor. - Ou a uma outra? Não seria gran-  de cons¢lo para mim se fosse a uma outra, não  mesmo? E no entanto,  quando consigo deixar de ser ego¡sta - acrescentou -, chego a desejar  que le se entregue a quem quer que seja, a quem quer que seja para o seu

  pr¢prio bem.  As palavras de Elinor levaram os pensamentos da Sra. Quarles para o  marido - não com esp¡rito de censura, embora le tivesse procedido mal,  embora a tivesse ferido, mas com piedade, talvez, com solicitude. Porque  ela não podia chegar a convencer-se de que aquilo era inteiramente culpa  de Sidney. Era apenas infelicidade dle. 

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Elinor suspirou:  - Não posso, na verdade, esperar a capitulaão dle. Quando a gente  j se transformou num h bito, não pode de maneira nenhuma transfor-  mar-se bruscamente numa revelaão que submerge tudo. . .

A Sra. Quarles sacudiu a cabea. Naqueles £ltimos anos, as revelaões  submersoras de Sidney tinham vindo de fontes tão humildes! A criadinha  da cozinha, a filha do couteiro ... Como pudera le fazer aquilo?  perguntou Rachei a si mesma pela milsima vez. Como pudera? Era  incompreens¡vel.  - Se ao menos - disse ela, quase num murm£rio -, se ao menos tu

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  tivesses Deus como companheiro! - Deus tinha sido sempre o seu  reconf"rto. Deus e o cumprimento da vontade de Deus. Ela não podia  nunca conceber como as pessoas pudessem atravessar a. vida sem le. -  Se ao menos tu pudesses achar Deus!  O sorriso de Elinor foi sarc stico. Observaões daquele gnero a abor-  reciam por serem tão ridiculamente fora de prop¢sito.  - Seria talvez mais simples. . . - comeou ela; mas deteve-se ...s  primeiras palavras. Queria dizer que seria mais simples, talvez, achar um  homem. Mas lembrou-se da resoluão que tomara de não ofender a sogra.  E não disse nada.  - Que era que ias dizer?  Elinor sacudiu a cabea.  - Nada. 

Felizmente para a Sra. Quarles o Br¡tish Museum não tinha sucursal  em Essex. Era em Londres s¢mente que le podia fazer pesquisas e reco-  lher os documentos necess rios ao seu livro. A casa de Portinari Square  estava alugada (o Sr. Quarles maldizia o impâsto sâbre a renda, mas  eram suas pr¢prias especulaões com o a£car as principais  respons veis); e era num modesto apartamento de Bloomsbury  ("convenientemente perto do Museu") que le agora acampava quando as  necessidades da erudião o chamavam ... cidade.  No decorrer das £ltimas semanas, essas necessidades tinham sido mais  perempt¢rias que de costume. Suas visitas a Londres tomavam-se

  freqentes e prolongadas. Depois da segunda dessas visitas a Sra. Quarles  ficara a perguntar se a si mesma se o marido tinha achado uma outra  mulher. E quando, ao regressar da terceira viagem, e, alguns dias depois,  nas vsperas duma quarta, le se p"s a lamentar-se com ostentaão, falan-  do da enorme complexidade da hist¢ria da democracia entre os antigos  hindus, Rachei ficou convencida de que havia ali outra mulher. Ela  conhecia Sidney o bastante para estar certa de que, se le tivesse real-  mente compulsado documentos s"bre os antigos hindus, não se teria 

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nunca dado o trabalho de falar dles ... mesa -- pelo menos duma maneira  tão prolongada e com tanta insistncia. Sidney falava pela mesma razão  que leva a spia perseguida a esguichar tinta - para dissimular seus  movimentos. Por tr s da nuvem de tinta dos antigos hindus esperava ir  refestelar-se em Londres sem ser observado. Pobre Sidney! Ele sejulgava  tão maquiavelico! Mas sua tinta era transparente, o seu ardil era digno de  uma criana.  - Não podes conseguir que te mandem livros da London Library? -  perguntou a Sra. Quarles duma maneira um pouco contundente.  Sidney sacudiu a cabea.  - São dessa espcie de livros - disse le com importncia - que se  encontram s¢rnente no Museu.

  Rachel suspirou e lim itou-se a esperar que a tal mulher f"sse sul Öciente-  mente esperta para evitar t"da a complicaão sria, mas não tanto que  quisesse prevalecer-se da situaão.  - Acho que vou ... cidade com voces amanhã - anunciou le na  manhã anterior ao dia da partida de Philip e Elinor.  - Outra vez? - perguntou a Sra. Quarles.  - Uma d£vida a respeito. . . aaa... dsses malditos hindus -  explicou le. -  uma coisa que realmente preciso elucidar. Acho que  vou descobri-la no livro de... aaa... Prainathanatba Banerjea... Ou

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  talvez ela tenha sido tratada por Radakhumud Mookerji. Pronunciou  sses nomes de maneira impressionante, profissional. Trata-se do  govrno local na poca dos M tirias. Muito democr tico,  sabido, a des-  peito do despotismo central. Por exemplo ...  Atravs da nuvem de tinta a Sra. Quarles vislumbrava uma figura de  mulher.  Terminada a refeião matinal, Sidney se retirou para seu gabinete de  trabalho e atirou-se as suas palavras cruzadas da manhã. Uma espcie de  cebola, quatro letras. Visões antecipadas do amanhã o distra¡am; não po-  dia fixar a atenão no passatempo. Os seios da rapariga, pensava le, seu  dorso liso e branco ... Ser "cebolinho"? Não servia; tinha nove letras.  Caminhando at a prateleira de livros, S¡dney Quarles apanhou a sua  B¡blia; as p ginas finas rugiram sob seus dedos. "O teu umbigo  uma  taa redonda a que não falta o vinho. O teu ventre  como um monte de  trigo cercado de aucenas. Os teus dois peitos são como dois cabritinhos  gmeos, filhos da cabra-monts." Salornão falava por le, e com que rica  eloqncia ribombante! "As juntas das tuas coxas são como colares feitos  por mão de mestre." Sidney leu estas palavras em voz alta. Gladys tinha  um corpo perfeito. . . "Como uma taa redonda a que não falta o vinlio."  Aqules orientais sabiam o que era a paixão. Dando ... libidinosidade o  nome impr¢prio de "paixão", o Sr. Quarles se considerava um homem  muito apaixonado. "O teu ventre  como um monte de trigo cercado de 

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  I 

mão. 

aucenas." A paixão  respeit vel,  efetivamente respeitada pela lei em# 

alguns pa¡ses. Para os poetas ela  at sagrada. O Sr. Quarles concordava  com os poetas. Mas, "como dois cabritinhos gmeos" era um s¡mbolo  estranho e inadequado. Gladys era nutrida sem ser gorda, e firmemente

  el stica. Os cabritinhos monteses, pelo contr rio. . . Como um homem  de grandes paixões, Sidney podia considerar-se como serdo uma figura  her¢ica e nobre. "Um jardim fechado  minha irmã, minha noiva, um  manancial fechado, uma fonte selada. Os teus renovos são um pomar de  romãs com frutos preciosos. A heria com o nardo, o nardo e o aafrão, a  cana arom tica e o cinamomo, com t"das as rvores do incenso; a  mirra. . . " Mas, est claro, a palavra era "alho"! Quatro letras. Uma  espcie de cebola. "Mirra e alos, com tâdas as principais especiarias."  O trem que os Quarles tomaram na manhã seguinte estava om um  atraso de quase vinte minutos.  - Que escndalo! - repetia o Sr- Quarles, olhando o rel¢gio. -   uma vergonha!  - Est s com muita pressa de encontrar os teus hindus - disse Philip,

  sorrindo do seu canto.  O velho franziu o sobrolho e desviou a conversa. Em Liverpool Street  se separaram, Sidney tomou um t xi e Philip e Elinor tomaram outro.  Sidney chegou ao seu apartamento exatamente na hora. Estava ainda  ocupado em lavar as grandes mãos carnudas, sujas da viagem, quando a  campainha retiniu. Apressou-se em enxugar as mãos e depois, compondo  a fisionomia, dirigiu-se para o hali e abriu a porta. Era Gladys. Sidneya  recebeu com uma espcie de majestade condescendente, o queixo estendi-  do, o peito puxado para tr s, o colte em relvo bojudo - mas sorrindo

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  do alto para a m"a (Gladys se chamava a si mesma '~petite), os olhos  a cintilarem benvolamente atravs das p lpebras sernicerradas. Foi uma  carinha impudente, comum, de nariz arrebitado, que lhe retribuiu o sorri-  so. Mas não tinha sido aquela cara que trouxera o Sr. Quarles a Londres,  não f"ra Gladys Helmsley como indiv¡duo; f"ra o simples aspecto  genrico da mulher, fora a sua "figura", como diria Sidney num eufmis-  MO. 

s muito pontual, minha pequena - disse le, segurando-lhe a 

Gladys ficou um pouco surpreendida diante da frieza da recepão.  Depois do que se tinha passado a £ltima vez, ela esperava algo de mais  terno.  - Sou mesmo? - flez ela, na falta de melhor coisa a dizer; e, uma vez  que os sres humanos s¢ dispõem de um n£mero limitado de ru¡dos e de  caretas para exprimir a multiplicidade de suas emoões, a m"a se p¢s a  rir como se alguma coisa a tivesse divertido, embora na realidade ela não 

271# 

se sentisse senão cheia de surprsa e embarao. Gladys tinha na ponta da  l¡ngua as palavras para perguntar ao amigo, duma maneira provocante e  petulante, por que não a beijava, e se j estava enfarado dela. Mas decidiu  esperar.  - Quase pontual em demasia - continuou Sidney. - Meu trem teve  um atraso realmente escandaloso. Realmente escandaloso!  Sidney Quarles irradiava indignaão.  - Veja s¢! - disse Gladys. O refinamento que envolvia suas pala-  vras, como um disfarce demasiadamente distinto, ca¡a, de tempos em tem-  pos, deixando certas palavras e certas frases na nudez de seu acento  londrino.  -  realmente escandaloso! - disse Sidney. - Os trens não tm o  direito de andar fora do hor rio. Vou escrever ao superintendente do

  Tr fego de Liverpool Street. Não tenho ... aaa... certeza - acrescen-  tou, ainda com mais importncia -, mas  poss¡vel que escreva tambm  ao bmes.  Gladys estava impressionada. Òsse era, ali s, o efeito visado pelo Sr.  Quarles. Fora de tâdas as satisfaões simplesmente sensuais, o maior  encanto de suas frias amorosas residia no fato de reparti-las com compa-  nheiras f ceis de impressionar. Sidney gostava que elas f"ssem não  s¢rnente jovens, mas tambm de classe inferior, e pobres. Sentir-se  superior sem nenhum equivoco, ver-se sinceramente admirado, era para  Sidney um luxo quase tão grande como um abrao carnal. Suas  escapadas eram feriados não s¢rnente para a castidade, mas tambm para  aquela sensaão de inferioridade que, em casa, no Parlamento, no  escr

it¢rio, o tinha sempre assombrado como um fantasma, com  insistncia crescente. Na presena de mulheres jovens de condião infe-  rior, le se tornava um grande homem, ao mesmo tempo que um "apaixo~  11  nado .  Gladys, por sua vez, ficava impressionada pelos seus trovões. Mas não  achava menos graa. Impressionada porque pertencia ao mundo dos  escravos do sal rio, criaturas pobres e pacientes, que aceitam as sensabo-

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  rias da vida social como outros tantos fen"menos naturais, recalcitrantes  aos desejos humanos e incontrol veis pela humana aão. Mas Sidney era  um dos ricos do Olimpo: os ricos recusam aceitar as sensaborias; escre-  vem ao Times a sse respeito, passam telegramas, usam da sua influncia,  fazem queixas ... pol¡cia, sempre amiga e obsequiosa. Para Gladys tudo  aquilo era maravilhoso - maravilhoso, mas tambm muito engraado.  Havia tantos requebros, tanta afetaão naquela hist¢ria! Dava a impres-  são de uma par¢dia de si mesma, representada no palco dum music-hall.  Ela admirava, ela compreendia muito bem as causas econ"micas e sociais  da conduta de Sidney - e f"ra mesmo essa compreensão intuitiva que  tão prontamente tinha feito dela sua amante. Mas Gladys ria do caso ao  mesmo tempo. Faltava-lhe o sentimento de reverncia. 

O Sr. Quarles abriu a porta do pequeno salão e afastou~se para deix -la  passar.  - Bigada! - disse Gladys. E entrou.# 

Sidney a seguiu. Sâbre a nuca, os seus cabelos negros, cortados rente,

  terminavam num pequeno tringulo cuja ponta descia ao longo da espi-  nha dorsal. A rapariga estava metida num fino vestido verde. Atravs da  fazenda tnue le via, bem abaixo das esp duas, a linha em que as roupas  de baixo davam lugar ... pele nua. Gladys tinha um cinto de couro negro  brilhante, pâsto obliquamente s"bre as ancas, e muito baixo. A cada um  de seus passos o cinto subia e descia s"bre a anca esquerda, com uma  regularidade r¡tmica. As meias eram câr de carne queimada de sol. O Sr.  Quarles, que pertencia a uma poca em que as damas pareciam deslizar  s"bre rodas, era particularmente sens¡vel ao encanto das barrigas de per-  na; regalava-se com a moda atual e não conseguia desembaraar-se  completamente da idia de que as jovens que a adotavam se tinham torna-  do indecentes em proveito dle, de prop¢sito deliberado, porque  desejLvam ser suas amantes ... O velho seguia com os olhos as curvas

  daquela segunda c£tis queimada e lustrosa. Mas o que mais o fascinava,  agora, era o cinto de couro negro que se erguia e baixava s"bre a anca  esquerda, com a regularidade duma pea de mecanismo, cada vez que a  m"a avanava uma perna. Naquelas subidas e descidas, t"da a espcie  individualizada, o sexo inteiro, lhe faziam um sinal semaf¢rico de chama-  da.  Gladys deteve-se e voltou-se para le com um sorriso, faceira, espe-  rando alguma coisa. Mas o Sr. Quarles não fez gesto que correspondesse  ... sua expectativa.  -- Tenho aqui a Corona. Talvez seja melhor comearmos imediata-  mente.  Pela segunda vez Gladys sentiu-se surpreendida; pensou em fazer um  coment rio, mas tambm dessa vez não disse nada, contentando-se com

  sentar-se em silncio diante da m quina de escrever.  O Sr. Quarles p¢s o pince-nez de aros de tartaruga e abriu a sua b"lsa.  Tinha arranjado uma amante, mas não via por que devesse perder uma  datil¢grafa cujos servios, no fim de contas, eram remunerados.  - Talvez - disse le, erguendo o olhar para ela, por cima das bordas  do pince-nez -, talvez seja melhor comear essas cartas ao superinten-  dente do Tr fego e ao Times.  Gladys ajustou o papel na m quina e escreveu a data. O Sr. Quarles  pigarreou e comeou a ditar. Havia algumas frases boas, felizes em suas

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  cartas, constatou le com vaidade. "Negligncia inescus vel que acarreta  a perda dum tempo bem mais precioso que o dos burocratas sonolentos  das estradas de ferro" - esta, por exemplo, era excelente. E assim (desta  vez para o Times) a passagem: "Os amimados parasitas sociais de uma  ind£stria protegida".# 

-  uma lião para sses patifes! - disse o velho Quarles com satis-  faão ao reler suas cartas. - Isto vai mo-los. - Olhou para Gladys, ...  procura dum aplauso, e não ficou inteiramente satisfeito com o sorriso  que viu no rosto impertinente da rapariga. - Uma pena que o velho Lor-  de Hagworni não esteja vivo - acrescentou, chamando a si aliados for-  tes. - Eu teria escrito a le. Era administrador da companhia. - Mas o  £ltimo dos Hagworin havia morrido em 1912. E Gladys continuava a  mostrar-se mais divertida do que admirada.  O Sr, Quarles ditou ainda uma d£zia de cartas, as respostas a uma  correspondncia que tinha deixado acumular-se durante v rios dias antes  de vir a Londres, de maneira que o total parecesse mais importailte, e  tambm para que le pudesse tirar do servio de Gladys, como secret ria,  um proveito que cor-respondesse plenamente aos honor rios que pagava.  - Deus seja louvado - disse le, quando terminou a resposta ... ulti-  ma das cartas. - Tu não tens idia - continuou (e o grande pensador ti-

  nha vindo reforar o propriet rio de terras) -, tu não tens idia de  como ... aaa. . . são exasperantes estas coisinhas triviais, quando se tem  algo realmente mais importante em que pensar.  - Sim, acho que devem ser. . . - volveu Gladys, que o estava  achando impag vel.  - Tome nota! - ordenou o Sr. Quarles'a quem uma pense* tinha  s£bitamente ocorrido. Inclinou-se para tr s na sua cadeira e, cerrando os  olhos, pâs-se a perseguir a expressão fugitiva.  Gladys esperava, com os dedos suspensos por cima do teclado. Olhou  para o rel¢gio de pulso. Meio-dia e dez. Dentre em breve seria hora do  lanche. Um rel¢gio n"vo - era a primeira coisa que havia de pedir ao  velho. O que ela tinha era barato e feio; e nunca andava certo ...  - Nota para o volume de Reflexões - disse o Sr. Quarles, sem abrir

  os olhos. As teclas fizeram o seu t -t -t r pido. "Os pin culos de marfim  do pensarnento" -- Sidney repetia as palavras interiormente. Elas provo-  caram ecos satisfat¢rios nos corredores de seu esp¡rito. A expressão esta-  va apanhada. Sidney Quarles empertigou-se na cadeira, num movimento  brusco, e reabriu os olhos - para perceber que o canhão de uma das  meias de Gladys, em fio de algodão câr de carne queimada, estava vis¡vel,  do lugar em que le se achava, e a uma distncia consider vel acima do  joelho.  - T"da a minha vida - ditou le, com os olhos fitos no canhão da  meia - sofri interrupões inconseqentes ... não, ponha "importu~  nas" ... da trivialidade do mundo, ponto. H pensadores, v¡rgula, eu sei,  v¡rgula, que são ... aaa... capazes de ignorar volunt...riamente essas

  interrupões, v¡rgula, de dar-lhes uma atenão passageira mas suficiente, * Pensamento. (N. do E.)

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 v¡rgula, e de retornar então com o esp¡rito sereno as coisas mais elevadas,

  ponto final.  Houve um silncio. Acima da malha de algodão, pensava o Sr. Quar-  les, havia a pele - macia, distendida sâbre a carne firme e curva. Acari-

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  ci -la, e, acariciando, sentir sedosamente acariciadas as pontas dos dedos.# 

Comprimir uma nesga de carne el stica. Morder, mesmo. Como uma taa  redonda, como um monte de trigo.  Gladys, ao notar de s£bito a direão dos olhares do homem, puxou a  saia.  - Onde estava eu9 - perguntou o Sr. Quarles.  - "Com o esp¡rito sereno ...s coisas mais elevada*s" - respondeu  Gladys, lendo na rolha que tinha diante dos olhos.  - Hum! - Sidney esfregou o nariz. - Para mim, v¡rgula, ai! v¡rgu-  la, uma tal serenidade foi sempre imposs¡vel, ponto e v¡rgula; tenho uma  sensibilidade nervosa... aaa. . . demasiadamente forte, ponto. Arras-  tado dos pin culos de marfim do pensamento - recitou a frase com  del¡cia - para ser lanado ... poeira comum, v¡rgula, fico exasperado,  v¡rgula, perco t"da a paz de esp¡rito e sinto~me incapaz de guindar-me  novamente ... minha t"rre.  Levantou-se e comeou a passear desassossegado, no quarto, dum lado  para outro.  - Ôsse foi sempre o meu mal - co-mentou le. - Sensibilidade em  demasia... Um pensador não deveria ter temperamento, nem nervos,

  realmente não devia. Não tem o direito de ser apaixonado.  A pele, pensava le, a carne el stica e firme ... Deteve-se atr s da  cadeira de Gladys. O pequeno tringulo dos cabelos rentes descia em  ponta ao longo da espinha dorsal. Sidney pousou a mão nos ombros da  secret ria e inclinou-se sâbre ela.  Gladys ergueu os olhos, sorrindo duma maneira impertinente e triunfal.  - Então? - perguntou.  O Sr. Quarles inclinou-se ainda mais e beijou-lhe a nuca. A m"a sol~  tou uma risadinha espremida.  - Como sinto c¢cegas!  Os dedos de Sidney a exploravam, descendo ao longo dos braos,  apertando-lhe o corpo - o corpo da espcie, do sexo inteiro. A Gladys  individualizada continuou a emitir as suas risadinhas.

  - Travsso! - exclamou ela, fingindo que afastava as mãos do  velho. - Traquinas! 

275# 

CAPITULOXXI 

- H um ms - disse Elinor, enquanto o t xi sa¡a da estaão de  Liverpool Street -- est vamos em Udaipur.  - Não h d£vida de que parece inveross¡mil - volveu Philip,

  concordando com a idia que a observaão da mulher trazia impl¡cita.  - Esses dez meses de viagem passaram como uma hora no cinema.  Olha ali o cais. Chego a duvidar de que estive fora. . . - Suspirou. -   uma sensaão um tanto aflitiva.  - Achas? Suponho que j me acostumei a isso. Parece-me sempre  que o passado não existe. - Alongou o pescoo atravs da portinhola.  - Para que perder tempo com o Taj Malial quando temos a Catedral de  São Paulo para olhar? Que maravilha!  - E aqule maravilhoso branco e negro da pedra...  - Sim, dir-se-ia uma gravura. Duplamente uma obra de arte. Não

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  apenas arquitetura, mas uma arquitetura representada em gua-forte. -  Inclinou-se para tr s. -- Eu pergunto a mim mesmo com freqncia se  alguma vez cheguei a ter uma infncia - prosseguiu, voltando ... conver-  saão precedente.  -  porque nunca pensas nela. H um mundo de coisas de minha  infncia que para mim são mais verdadeiras que ste nosso Ludgate Hili.  Mas acontece que eu penso nisso constantemente.  -  verdade - disse Philip. - Não procuro recordar com freqn-  cia. Para falar a verdade, quase nunca. Parece-me que sempre tenho coi-  sas demais a fazer, coisas demais em que pensar.  -- Não tens piedade natural. E eu quisera que tivesses ...  Rolaram ao longo do Strand. As duas igrejinhas velhas protestavam  contra a massa tâda nova da Australia House, mas em vão. No p tio do  King's College um grupo de rapazes e de mâas estava sentado ao sol,  esperando o professor de teologia pastoral. · entrada da platia do  Gaiety havia j algumas pessoas enfileiradas, formando um como d  cauda; os cartazes anunciavam a quatrocentsima representaão de A  Menina de Biarritz. Ao lado do Savoy, observou Philip, podia-se ainda  comprar um par de botinas por 12 xelins e meio. Em Trafalgar Square os  repuxos jorravam, os leões de Sir Edwin Landseer dardejavam suave-  mente seu olhar feroz, o amante de Lady Hamilton estava empoleirado l

no alto, entre as nuveng,, como São Simeão Estilita. E, atr s da austera  colunata da National Galiery, os cavaleiros de Uccello combatiam esque-  cidos do tempo que fugia, Rubens raptava as suas sabinas, Vnus se mira-

  276 

va em seu espelho e, no meio dos anjos de Piero que cantavam em c"ro,  Jesus nascia, dentro dum mundo m...gicamente encantador.  O ve¡culo obliquou para descer em Whiteliali.  - Gosto de-pensar em todos sses burocratas.  - Pois eu não - disse Elinor.  - Escrevinhando, escrevinhando. continuou Philip - escrevi-  nhando desde a manhã at a noite a fim de que possamos viver com liber-  dade e conf"rto. Escrevinhando, escrevinhando. . . O resultado  o  Imprio Britnico. Que bem-estar sentimos em viver num mundo em que#

 

podemos delegar a outrem tudo o que  aborrec¡vel, desde a necessidade  de governar at a fabricaão de salsichas!  · porta dos Horse Guards, as sentinelas a cavalo tinham o ar de figu-  ras empalhadas. Perto do Cenot fio achava-se uma senhora de idade  madura, os olhos erguidos, murmurando uma oraão por cima da Kodak  com a qual se propunha tirar um instantneo das almas dos 900 O00 mor-  tos. Um sikh* de barba negra e turbante c"r de malva p lida saiu da casa  Grindley no momento em que Philip e Elinor passavam. Pelo Big Ben,  eram 11 horas e 27 minutos. Haveiia algum marqus a dormitar na  biblioteca da Cmara dos Pares? Um "nibus despejou os seus americanos

  ... porta da Abadia de Westminster. Olhando para tr s, pela janelinha tra-  seira da capota, Philip e Elinor puderam ver que o hospital estava ainda  em necessidade urgente de fundos.  A casa de John Bidlake ficava na Grosvenor Road, com vista para o  rio. 

- Pimlico - disse Philip meditativamente, ao se aproximarem da ca-  sa. Riu. - Tu te lembras daquela canão rid¡cula que teu pai citava sem-  p,re?

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  - "Vamos todos a Pimlico" - cantarolou Elinor.  - "Uma estrofe falta aqui."  preciso não esquecer isto! - Riram  ambos, lembrando-se dos coment rios de John Bidlake.  - "Uma estrofe falta aqui. . . " Falta em t"das as antologias. Nunca  pude descobrir o que se passou quando les chegaram a Pinilico. Durante  muitos anos fiquei a pensar nisso, febrilmente. Não h nada como o  bowdlerismo para inflamar a imaginaão.  - Pirrilico - repetiu Philip. - O velho Bidlake, pensou le, tinha fei-  to de Pinilico uma espcie de Olimpo rabelaisiano. Gostava da expressão.  Mas, para o uso p£blico, le preferia "gargantuesca" a "rabelaisiana".  Aos que não o tinham lido nunca, Rabelais não evocava senão a idia de  pornografia. Um Olimpo gargantuesco, então. Tinha-se pelo menos  not¡cias de que Gargantua era grande.  Mas o John Bidlake que les encontraram sentado perto da estufa, no  seu est£dio, não tinha nada de ol¡mpico; sua estatura, em vez de s"bre-liu- 

*Membro de uma seita religiosa hindu. (N. do E.) 

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mana, parecia antes um tanto minguada. Deixou- se beijar pela filha e  apertou molemente a mão do genro.  - Folgo em ver vocs de n"vo - declarou le. Mas não havia nenhu-  ma ressonncia na sua voz; aqule eco tonitruante de risos joviais estava  ausente dela. Òle falava sem nenhum entusiasmo. Seus olhos estavam sem  lustro e estriados de sangue. O velho Bidlake tinha uma aparncia de  magreza; estava cinzento.  - Como vais, papai?  vira o pai num tal estado.  --- Mal. . . - respondeu le, sacudindo a cabea - mal ... H *qual-  quer coisa que não funciona bem aqui dentro. - Mostrou o ventre. O ve-  lho leão s£bitamente se p¢s a rugir, conforme a sua maneira habitual. -  Fazer a gente andar vida em fora carregando um montão de tripas! Eu

  sempre quis mal a Deus porcausa dessas brincadeiras de mau gsto ...  - O rugido se fez queixa. - Não sei o que est acontecendo ...s minhas  v¡sceras agora. Mas  qualquer coisa de muito desagrad vel. -- A queixa  degenerou quase em lam£ria. - Eu me sinto desgraado.  John Bidla-ke descreveu minuciosamente os sintomas de seu mal.  - Consultaste um mdico? - perguntou Elinor, quando o pai termi- 

Elinor ficou surprsa e cheia de pena. Nunca 

nou.  O velho sacudiu a cabea.  - Não acredito nos mdicos. Nunca fazem bem nenhum ... gente.  A verdade era que le tinha um terror supersticioso dos mdicos. Detes

  tava v-tos em casa: eram aves agourentas.  - Mas tu devias chamar, falando srio!  Elinor tentou convenc-lo.  - Bom - consentiu por fim o velho Bidlake, resmungando. -- Que  venham os charlatães. -- Mas secretamente sentia um certo al¡vio. Havia  j algum tempo que desejava consultar um mdico; mas at então a  superstião tinha sido mais forte que sse desejo. O feiticeiro de mau  agouro podia vir agora - não a chamado seu, mas de Elinor. A respon-  sabilidade não era sua; irão seria, portanto, s"bre le que a desgraa havia  de cair. A religião particular do velho Bidlake era obscurainente compli~

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  cada.  Comearam a falar de outras coisas. Agora que sabia poder consultar  um mdico em segurana, John Bidlake se sentia melhor e mais animado.  - Estou inquieta com le - disse Elinor no t xi que a levou em  companhia do marido.  Philip concordou com um meneio de cabea.  Ter 73 anos não  brincadeira. Òle comea a aparentar a idade que 

tem.  Que cabea! pensava Philip. Quisera ser pintor. A literatura era ¡mpo-  tente para reproduzir aquilo. Poder-se-ia descrever,  claro, a menor ruga. 

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Mas a que resultado se chegaria dessa maneira? A nenhum. As descriões# 

são coisa lenta; um rosto  instantneamente percebido. Uma palavra,  uma simples frase - era do que se precisava. "A gl¢ria que foi a Grcia,  agora decrpita." Esta, por exemplo, diria j alguma coisa do homem.  Mas, naturalmente, não bastava. As citaões tm em si alguma coisa de  chistosamente pedante. "Uma est tua em pergarninho" - seria melhor

  esta. . . "A est tua em pergaminho daquele que outrora fora Aquiles  estava sentada, encolhida, ao p da estufa. . . " Sim, aproximava-se do  objetivo. Nada de descriões de longo f"lego. Mas, para quem quer que  alguma vez tivesse visto um molde em gsso do DisciSbolo, para quem  quer que tivesse manejado um livro encadernado em pergaminho e ouvido  falar de Aquiles - John Bidlake tornava-se vis¡vel. naquela £nica frase.  Mas e os que nunca haviam visto a est tua grega, nem lido nada s"bre  Aquiles num livro de capa de couro de carneiro enrugado? Pois sses ...  podiam ir para o diabo!  "Apesar de tudo", pensava Philip, " demasiadamente liter rio. Cultu-  ra em excesso."  Elinor rompeu o silncio.  - Eu s¢ queria saber  como vou encontrar Everard, agora que le se

  tornou um grande homem. - Via em imaginaao aqule rosto ardente,  aqule corpo enorme mas gil. Rapidez e violncia ... E Webley estava  apaixonado por ela. E ela?.  o? 

- - Gostava daquele homem? Ou detestava- 

- Pois queria s¢ saber se le j se p"s a puxar as orelhas do povo, co-  mo Napoleão. . . - disse Philip, rindo. - Em todo caso não passa du-  ma questão de tempo.  -- Apesar de tudo, gosto dle. -- A zombaria de Philip lhe tinha  fornecido uma resposta ... sua pr¢pria pergunta.  - Eu tambm gosto dle. Mas ser que não posso rir quando tenho

  vontade?  - Tu ris tambm de mim.  porque gostas de mim?  Philip tomou a mão da esp"sa e beijou-a.  - Eu te adoro e nunca rio de ti. Levo-te perfeitamente a srio.  Elinor olhou para le sem sorrir.  - H momentos em que me deixas desesperada. Que farias se eu me  f"sse embora com um outro homem? Isso te importaria, um bocadinho  que f"sse?  - Eu me sentiria verdadeiramente desgraado.  -  verdade? - Elinor fitou os olhos nle. Philip sorria; estava

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  1000 quil"metros afastado. . . - Pois tenho vontade de fazer a  experincia - acrescentou ela, enrugando a testa. - Mas ser que te  sentirias mesmo desgraado? Eu quisera ter certeza disso antes de  comear ... 

279# 

- E quem seria o teu companheiro de experincia?  - Ali! Eis a dificuldade. A maioria dos outros homens são tão  insuport veis ...  - Que elogio!  - Mas tu tambm s insuport vel, Phil! Tu s o mais insuport vel de  todo~, para falar a verdade. E o pior  que eu te amo, apesar de tudo. E  tu sabes. Sim, e tu exploras essa circunstncia.  O carro parou ... beira da calada. Elinor estendeu a mão para tomar o  seu guarda-chuva.  -- Mas toma cuidado - continuou ela, levantando-se. - Eu não te  deixarei abusar de mim indefinidamente. Não quero continuar t"da a mi-  nha vida a dar muito a tr"co de nada. Um dstes dias eu me ponho ... pro-  curado "outro". . .  Saltou para a calada.

  - Por que não experimentas Everard? - caoou le, seguindo-a com  os olhos pela portinhola do ve¡culo.  - Talvez experimente. Sei que Everard não deseja outra coisa.  Philip pâs-se a rir e atirou-lhe um beijo com a ponta dos dedos.  - Dize ao chofer que me leve ao clube.  Everard fe-la esperar quase dez minutos. Quando acabou de p"r um  pouco de p¢ no rosto, Elinor explorou curiosamente a sala. As fi"res esta-  vam abominµvelmente mal-arranjadas. E aquela vitrina cheia de velhos  sabres, de punhais, de pistolas guarnecidas de incrustaões - era horren-  da, como um mostru rio de museu; era uma monstruosidade, embora  f"sse ao mesmo tempo e de certo modo tocantemente absurda. Desde o  colgio Everard conservava a ambião de correr mundo a cavalo e de  decepar cabeas aqui e ali; a vitrina o denunciava. O mesmo acontecia

  com aquela mesa de plancha de vidro, com seu tabuleiro cheio de  medalhas e moedas, sob uma coberta de cristal. Com que orgulho le lhe  tinha mostrado seus tesouros! Havia l a tetradracma macedoniana, com  a cabea de Alexandre, o Grande, na atitude de Hrcules; o sestrcio do  ano 44 antes da nossa era, com o perfil formid vel de Csar, e, ao lado  dle, o real de Eduardo 111, estampado com a efigie do navio que simboli-  zava o in¡cio do poderio mar¡timo da Inglaterra. E l estava ainda, sâbre  a medalha do Pisanello, Sigismundo Malatesta, o mais belo dos rufiões; e  mais a Rainha Elizabeth com sua golilha alta, um Napoleão com louros  na cabea, e o Duque de Wellington. Elinor sorriu afetuosamente para  aquelas figuras; eram velhos amigos. O que havia de agrad vel em Eve-  rard, pensava Elinor, era que com le a gente sempre sabia a quantas esta-  va. Webley era sempre, e de maneira perfeitamente definida, le mesmo;

  vivia ... altura de sua reputaão. Elinor abriu o piano e tocou um par de  acordes: o instrumento estava desafinado, como de costume.  Sâbre a mesinha perto da chamin havia um volume dos £ltimos  Discursos e Procla~es de Everard. Elinor tomou do livro. folheou-o. 

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"A pol¡tica dos lnglses Livres", leu ela, "pode-se resumir assim: Socia-  lismo sem Democracia pol¡tica e Nacionalismo sem Insularidade." Aqui-  lo soava bem. Mas, se le tivesse escrito: "democracia pol¡tica sem socia-

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  lismo, e insularidade sem nacionalismo" - ela o teria admirado# 

prov...velmente com a mesma sinceridade. Ali, aquelas abstraões! Elinor  sacudiu a cabea e suspirou. "Devo ser uma t"la", pensou. Mas aquelas  abstraões eram efetivamente destitu¡das de sentido para ela. Absoluta-  mente vazias. Palavras, nada mais que palavras. Voltou a p gina: "O sis-  tema dos partidos funciona bastante bem quando os partidos são simples-  ffiente dois grupos de oligarcas rivais, que pertencem ... mesma classe,que  tm no fundo os mesmos intersses e o mesmo ideal, e que lutam um con-  tra o outro pelo poder. Mas quando os partidos se identificam com as  classes e aplicam de modo rigoroso os princ¡pios partid rios, o sistema se  torna um absurdo. Pelo fato de eu sentar de um lado na Cmara e voc do  outro, sou compelido a admitir o individualismo com exclusão de t"da  interferncia do Estado, e voc  constrangido a admitir a interferncia do  Estado com exclusão de todo individualismo; sou obrigado a admitir o  nacionalismo, mesmo o nacionalismo econ"mico (que  um absurdo),  voc  compelido a admitir o internacional ismo, mesmo o internacio-  nalismo pol¡tico (que não  um absurdo menor); sou forado a admitir a  ditadura dos ricos (com a exclusão dos inteligentes), voc  levado a acei-  tar a ditadura dos pobres (igualmente com exclusão dos inteligentes). Tu-

  do isso pela razão simpl¡ssima, e politicamente inconseqente, de eu ser  da Direita e voc da Esquerda. Em nossos Parlamentos, os direitos da  topografia são mais fortes do que os do bom-senso. Eis os beneficios do  moderno sistema de partidos. E o alvo dos Inglses Livres  abolir sse  sistema, bem como o parlamentarismo corrompido e impotente que lhe  serve de corol rio."  Tudo isso parecia certo, pensou Elinor; mas ficou a perguntar a si mes-  ma, não obstante, por que motivo as pessoas se atormentavam com coisas  daquele gnero. Em lugar de viver, simplesmente viver. Mas segundo  parece, quando se  homem, acha-se aborrecido simplesmente viver. Eli-  nor reabriu o livro, mais ou menos no meio. "Cada uma das liberdades  inglsas foi adquirida ao preo duma nova escravidão. A destruião do

  feudalismo fortificou a Coroa. Durante a Reforma n¢s nos  desembaraamos da infalibilidade papal, mas nos curvamos ao pso do  direito divino dos reis. Cromwell esmagou o direito divino dos reis, mas  imp"s a tirania dos propriet rios de terras e das classes mdias. A tirania  dos propriet rios de terra e das classes mdias est em via de destruião  r pida, a fim de que tenhamos a ditadura do proletariado. Uma infalibi-  lidade nova, não mais a do papa, mas sim a da maioria, foi proclamada  - uma infalibilidade na qual somos obrigados a acreditar pela lei. Os  Inglses Livres juraram fazer triunfar uma nova reforma e uma nova  revoluão pol¡tica. N¢s nos desembaraaremos da ditadura do proleta- 

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riado como nossos pais se desembaraaram do direito divino dos reis.  Negaremos a infalibilidade da maioria como les negaram a infalibilidade  papal. Os Inglses Livres se batem. . . " Elinor sentiu alguma dificuldade  no voltar a p gina. Por que se batiam les? perguntou ela a si mesma. Pe-  la ditadura de Everard e a infalibilidade de Webley? Soprou as p ginas  recalcitrantes, que se abriram enfun. " ... pela justia e pela liberdade.  Sua pol¡tica  que os homens de mais valor devem governar, qualquer que

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  seja a sua origem. Tâdas as carreiras, numa palavra, devem ser larga-  mente abertas aos talentos. Eis a justia- Òles exigem que cada problema  seja tratado objetivamente, sem referncia aos preju¡zos tradicionais de  partidos nem ... opinião sem valor das maiorias est£pidas. Eis a liberdade.  Os que imaginam que a liberdade  sin"nimo de sufr gio universal. . . "  Uma porta bateu; uma voz forte ressoou no vest¡bulo. Houve um ru¡do de  passos precipitados na escada; a casa tremeu. A porta do salão foi aberta  violentamente, como se uma bomba tivesse explodido do outro lado. Eve-  rard Webley entrou, numa torrente de ruidosas desculpas e boas-vindas.  - Como me posso descul~ar? - gritou le, tomando as mãos de Eli-  nor. - Mas se soubesses em que turbilhão eu vivo! Como  maravilhoso  tornar a ver-te! E não mudaste nada. Encantadora como sempre. - Pou-  sou no rosto dela um olhar profundo e intenso. - Os mesmos olhos p li-  dos e serenos, os mesmos l bios cheios e melanc¢licos... E est s com  uma aparncia maravilhosa!  Elinor correspondeu-lhe ao sorriso. Everard tinha os olhos dum casta-  nho muito escuro; vistos de uma certa distncia, pareciam inteiramente  tomados pelas pupilas. Bonitos olhos, mas um pouco inquietadores, pen-  sava ela, por causa de sua fixidez intensa, brilhante, vigilante. Ela mergu-  lhou por um segundo o olhar nles, depois desviou-o.  - Tu tambm - disse -, sempre o mesmo.  verdade que não vejo  por que devramos ter mudado. - Tornou a encarar Webley e viu que le

  a olhava sempre com intensidade. - Dez meses em viagem pelos tr¢pi-  cos não  o bastante para nos transformar em outra pessoa...  Everard p"s-se a rir.  - Felizmente! Demos graas aos cus! E agora, desamos para o lan-  che.  - E Philip? - perguntou le, quando o peixe foi servido.  Tambm  o mesmo de sempre?  - Um pouco mais o mesmo, se isso  poss¡vel.  Everard meneou a cabea.  - Um pouco mais. . . Sim, compreendo ... Era de se esperar. O fato  de ver negros passeando sem calas deve t-lo feito ainda mais ctico do  que era quanto ...s verdades eternas.  Elinor sorriu, mas ao mesmo tempo ficou um pouco ofendida pela

  zombaria. 782

 - E que efeito produz em ti o fato de ver tantos inglses passeando de

  uniforme verde-ervilha?  Everard desandou a rir. 

- Isso fortifica a minha crena nas verdades eternas, est claro.# 

- Verdades das quais tu s uma, não?  O homem fez com a cabea um sinal afirmativo.  - Das quais sou uma, naturalmente. - Olharam um para o outro,  sorrindo. Foi Elinor que, de n"vo, afastou primeiro o olhar.  - Obrigada pela informaão. - Ela mantinha o tom de ironia. - Eu  podia não ter adivinhado por mim mesma.  Houve um pequeno silncio.  - Não imagines - disse le por fim, com um tom que não era mais  trocista, mas srio - que me vais enraivecer chamando-me de  presunoso. - Everard falava docemente; mas sentiam-se nle errormes

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  reservas em potncia. - Outros poderiam conseguir isso, talvez. Mas   que não gostamos de ser incomodados pelos animais inferiores. Esmaga-  mo-l~s. Com sres humanos, nossos iguais,  diferente: com les  discutimos as coisas racionalmente.  - Que al¡vio ouvir de ti estas palavras! - riu Elinor.  - Achas que eu tenho muita pros pia. E isso deve ser verdade, num  certo sentido. Mas o que h de grave  que sei muito bem que meu orgu-  lho  justificado - sei por experincia. A modstia  prejudicial, quando  falsa. Milton diz que "nada  mais proveitoso do que a estima de si mes-  mo fundada s"bre a justia e o direito". Sei que a minha repousa s"bre a  justia e o direito. Sei - estou absolutamente convencido disso - que  posso fazer o que quero. Para que negar esta convicão? Vou tornar-me  senhor, vou impor a minha vontade. Tenho resoluão e coragem. E em  muito pouco tempo terei a fora organizada. Assumirei, então, o contr"le.  Eu sei; por que haveria de fingir que ignoro? - Inclinou-se para tr s na  cadeira. Houve um longo silncio.  " absurdo", pensava Elinor, " rid¡culo falar dessa maneira." Era o  protesto de sua inteligncia cr¡tica contra seus sentimentos. Porque seus  sentimentos tinham sido estranhamente tocados. As palavras de Webley,  o tom da sua voz - tão macio, deixando adivinhar entretanto, sob sua  suavidade, tantas reservas latentes e vibrantes de fora e paixão - a  tinham conquistado. Quando le dissera: "Vou tomar-me senhor", foi co-  mo se ela houvesse tomado um trago de vinho quente e capitoso, tal fora  o calor que s£bitamente lhe formigara no corpo todo. " rid¡culo", repe~

  tia ela interiormente, tentando tirar de Webley uma desforra da conquista  f cil, tentando punir os traidores que moravam dentro de sua pr¢pria al-  ma e que tinham capitulado tão f cilmente. Mas o que estava feito era  imposs¡vel de se desfazer de maneira completa. As palavras podiam ser  rid¡culas; mas o fato era que, quando le as pronunciara, Elinor tinha 

283# 

vibrado de admiraão s£bita, de emoão, dum desejo estranho de exultar  e de rir forte.

  O criado trocou os pratos. Falaram de coisas indiferentes - da viagem  de Elinor, dos acontecimentos de Londres durante sua ausncia, de arni~  gos oormins. Veio o caf; ambos acenderam os seus cigarros; houve um  silncio. De que modo seria le quebrado? Elinor ficou a pensar nisso  com apreensão. Ou melhor, não pensou - pois j sabia e foi sse conhe-  cimento proftico que lhe deu tanta apreensão. Talvez pudesse frustr -lo,  rompendo ela mesma o silncio. Era poss¡vel que, continuando a palestrar  r...pidarnente, conseguisse manter a conversaão num plano neutro at que  chegasse a hora de ela partir. Mas lhe pareceu de s£bito que não havia  mais nada a dizer. Elinor se sentiu como que paralisada pela aproxi-  maão do acontecimento inevit vel. Nada mais podia fazer senão ficar  sentada e esperar. E por fim o inevit vel aconteceu, como devia aconte-

  cer. - Lembras-te - perguntou le lentamente, sem erguer os olhos - do

  que eu te disse antes de tua partida?  - Julguei que tivssemos combinado não tornar a falar nisso ...  Everard jogou a cabea para tr s, com uma pequena risada.  - Pois te enganaste. - Olhou-a e leu nos olhos dela uma expressão  de ang£stia e de inquietude, um aplo ... sua clemncia. Mas foi  implac vel. Fincou os cotovelos na mesa e se inclinou para ela.  Elinor baixou os olhos.

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  Com sua voz macia cheia de reservas latentes de violncia, le falou.  - Tu me disseste que não mudei, no que diz respeito ... f¡sionomia.  Pois bem, meu coraão tambm não mudou. Ficou o mesmo, Elinor -  sempre o mesmo, como no momento em que partiste. Eu te amo tanto  quanto te amei sempre, Elinor. Não, eu te amo mais. - Ela estendera a  mão para a frente, pousando-a na mesa. Webley estendeu tambm uma  das suas e tomou a de Elinor. - Elinor. . . - murmurou.  Ela sacudiu a cabea sem olhar para o amigo.  Docemente, apaixonadamente, le continuou a falar:  - Tu não sabes o que pode ser o amor. Tu não sabes o que eu te pos-  so dar. O amor que  desesperado e louco, como uma esperana derra-  deira. E ao mesmo tempo temo, como o de uma mãe para com o filho  doente ... O amor que  violento e suave, violento como um crime e sua-  ve como o sono.  "Palavras", pensava Elinor, "palavras absurdas, melodram ticas."  Mas elas comoviam, como a lisonja dle a tinha comovido.  - Por favor, Everard - disse em voz alta -, cala-te. - Não queria  ser comovida. Fz um esf"ro para manter o olhar firme ao passo que  observava o rosto dle, seus olhos vivos e escrutadores. Tentou um sorri-  so, sacudiu a cabea. - Porque  imposs¡vel, e tu bem sabes.  - Tudo o que sei - disse le lentamente -  que tens mdo. Mdo 

IRA 

de vir para a vida. Porque tu viveste meio morta, todos stes anos. Não  tiveste a menor oportunidade de despertar plenamente para a vida. E sa-  bes que eu ta posso dar. Tens mdo, tens mdo.# 

- Que tolice!  Aquilo tudo era bomb stico, melodram tico.  - E talvez tenhas razão, em certo sentido. Estar vivo, verdadeira  mente vivo não  brincadeira.  perigoso. Mas, por Deus! - e t"da a  violncia latente de sua voz doce vibrou de s£bito, s"lta, numa realidade  sonora -  sensacional.

  - Se soubesses que susto me deste! Gritando dessa maneira. . .  Mas não f"ra apenas susto o que ela sentira. Seus nervos e a sua propria  carne palpitavam ainda ...s sensaões obscuras e violentas de exultaão  que a voz de Webley tinha despertado nela. " rid¡culo", pensava Elinor,  para se tranqilizar. Mas era como se ela tivesse ouvido aquela voz dire-  tamente com todo o seu corpo. Os ecos pareciam ressoar no seu pr¢prio  diafragma. . . "Rid¡culo", repetiu ela ... E, depois, que era aqule amor  de que'le falava duma maneira tão vibrante? Apenas um breve interl£dio  de violncia, nos intervalos dos neg¢cios. Everard desprezava as mulhe-  res, queria-lhes mal porque elas desperdiavam o tempo e a energia dum  homem. Elinor muitas vZes lhe ouvira dizer que não tinha tempo para se  ocupar com o amor. Suas investidas eram quase um insulto - como as  propostas que se fazem a uma mulher da rua.

  - S razo vel, Everard - disse ela.  Everard retirou sua mão da de Elinor e depois, com uma risada, jogou-  se para tr s na cadeira.  - Muito bem. Por hoje.  - Para sempre. - Ela se sentiu profundamente aliviada. - De resto  acrescentou, citando uma frase de Webley com um leve sorriso irânico  tu não s um membro da classe ociosa... Tens coisas mais impor-  tantes a fazer do que te ocupares com o amor.  Everard olhou-a por alguns instantes em silncio, e seu rosto se fez gra-

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  ve, com um ar de ameaa pensativa. Coisas mais importantes a fazer?  Era verdade, sem d£vida. Estava zangado consigo mesmo por desej -la  tão violentamente. E zangado tambm com Elinor por deix -lo assim  insatisfeito.  - Devemos falar s"bre Shakespeare? - perguntou le, sarc stico.  Ou s"bre o copofone? 

O preo da corrida foi 3 xelins e 6 pence. Philip deu ao condutor 2  meias coroas e subiu os degraus do p¢rtico de seu clube, perseguido pelas  palavras de agradecimentos. Tinha por h bito dar gorjetas largas. Não  era por ostentaão, nem porque tivesse pedido ou tencionasse pedir ser-  285# 

vios especiais. (Realmente, poucos homens conseguiriam ser menos  exigentes do que Philip para com os criados, muito poucos poderiam  suportar com mais pacincia um servio malfeito e mostrar-se mais  dispostos a desculpar negligncias.) Nle a gorjeta larga era a expressão  material duma espcie de desdm carregado de remorsos e de desculpas.  "Meu pobre diabo!", parecia querer dizer a gratificaão pr¢diga, 9a-  mento muito ser teu superior." E talvez Philip desse tambm 1 xelim em  reparaão da sua pr¢pria indulgncia para com os criados. Porque, se le

  era pouco exigente, isso se devia tanto ao pavor e ... aversão que lhe inspi  rava todo contato humano não absolutamente necess rio, como aos senti  mentos de consideraão e polidez. Daqueles que o serviam Philip exigia  pouco, pela boa razão de que queria ter o menor n£mero poss¡ vel de  relaões com les. A presena de serviais o perturbava. Òle não gostava  de que sua intimidade rosse violada por pessoas estranhas. Ser obrigado a  falar-lhes, a estabelecer um contato direto - não entre as inteligncias,  mas entre as vontades, os sentimentos, as intuiões - com aqules viola-  dores era-lhe sempre desagrad vel. Òle o evitava na medida do poss¡vel;  e, quando o contato se tornava necess rio, Philip fazia o poss¡vel para  desumanizar as relaões. A sua generosidade era assim, em parte, uma  compensaão ... sua bondade inumana para com os que eram objeto dela.

  Era, de certa maneira, uma penitncia paga rn dinheiro.  As portas estavam abertas; o escritor entrou. O vest¡bulo de colunas  era vasto, sombrio e fresco. O grupo aleg¢rico de m rmore, de Sir Francis  Chantrey, que representava a Cincia e a Virtude subjugando as Paixões,  se encolhia com todo o decâro cl ssico num nicho, em cima da escada.  Philip pendurou o chapu e foi passar os olhos pelos jornais na sala de  fumar, esperando a chegada de seus convidados. Spandreli foi o primeiro  a aparecer.  - Dize-me - pediu Philip, logo depois que as primeiras saudaões  foram trocadas e pedido o vermute -, dize-me depressa, antes que le  aparea: que e que h com o meu jovem e rid¡culo cunhado? Que  que se  passa entre le e Lucy Tantamount?  Spandrell deu de ombros.

  - Que  que se passa geralmente em tais casos? E, de qualquer modo,  serão stes o lugar e a hora para entrar em detalhes?  Apontou os outros ocupantes da sala de fumar. Um ministro, dois  magistrados e um bispo estavam ao alcance da voz dles.  Philip pâs-se a rir.  - Mas eu apenas quero saber se a coisa  mesmo sria, e quanto tem-  po parece que vai durar...  -  muito sria, no que diz respeito a Waiter. Quanto ... duraão -  quem sabe? Mas Lucy deve-partir para o estrangeiro dentro de muito  pouco tempo.

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  -- Deus seja louvado! Ah! l est le! - Era Walter. - E Illidge 

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tambm. - Philip lhes fez um sinal com a mão. Os recm-chegados recu-  saram o aperitivo. - Vamos comer em seguida, então - disse Philip.  A sala de jantar do clube de Philip era imensa. Uma dupla fila de colu-  nas cor¡ntias de estuque suportava um teto dourado. S"bre as paredes# 

dum marrom de chocolate, os retratos dos membros ilustres, atualmente  defuntos, olhavam a sala com um ar feroz. As cortinas de veludo c"r de  clarete achavam-se arrepanhadas por cordões, de cada lado das seis jane-  las; um tapte tambm c"r de clarete amortecia o ru¡do dos passos, e, em  suas librs c"r de clarete, os garons se moyirnentavam dum lado para  outro, quase invis¡veis, como insetos numa floresta.  - Sempre gostei desta sala -- disse Spandrell ao entrar nela com os  outros. - Parece uma montagem para um festim de Baltasar.  - Mas dum Baltasar bem anglicano - precisou Walter.  - Safa! - exclamou Illidge, que tinha deixado o olhar passear em  t"rno. - São coisas dste gnero que me dão verdadeiramente a sensaão

  de ser da plebe.  Philip se p"s a rir, prsa dum leve mal-estar. Mudando de assunto,  mostrou os criados no mimetismo de suas librs dum vermelho protetor.  Òles confirmavam a hip¢tese darwiniana.  -  a sobrevivncia dos mais aptos - disse o novelista, quando se  sentaram todos ... mesa que lhes estava reservada. - Os que trajavam de  outras c"res devem ter sido assassinados pelos s¢cios do clube enfureci-  dos. - Um dos sobreviventes c"r de clarete trouxe o peixe. Comearam  a comer.  -  curioso - disse filidge, seguindo o fio dos pensamentos sugeri-  dos pelas primeiras impressões da sala -,  verdadeiramente extraor-  din rio, em suma, que eu esteja aqui. Pelo menos, sentado com vocs, na  qualidade de convidado. Porque não teria sido coisa de surpreender se eu

  estivesse aqui com uma dessas librs c"r de vinho. Isso pelo menos estaria  em harmonia com aquilo a que os past"res chamariam "minha condião  social". - Emitiu um riso breve de despeito. -- Mas estar sentado aqui  com vocs, assim, dste modo -  mesmo quase incr¡vel. E tudo isso se  deve ao fato de um lojista de Manchester ter tido um filho com tendncias  para a escr¢fula. Se Reggie Wright f"sse uma criatura normalmente sã, eu  a esta hora estaria prov...velmente remendando sapatos em Lancashire.  Mas felizmente Reggie tinha bacilos de Koch no seu sistema linf tico. Os  mdicos lhe prescreveram a vida do campo. O pai alugou uma casinha na  minha aldeia, para a mulher e o filho, e Reggie foi para a escola do lugar.  Mas o pai era ambicioso no que dizia respeito ao filho. (Que ratinho  repugnante era le!) - observou filidge entre parnteses. -- Queria que

  o rapaz entrasse mais tarde para o colgio de Manchester. Com uma b"l -  sa de estudos. Pagou o nosso professor para lhe dar liões particulares.  Eu era um bom aluno; o professor gostava muito de mim. Enquanto dava  repetiões a Reggie, achou que podia tambm incluir~me nas aulas. 

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  Gr tis, o que  mais importante. Não permitiu que minha mãe pagasse  um n¡quel. Não que ela pudesse pagar muito f...cilmente, pobre mulher!  Veio a poca de exames e fui eu quem ganhou a b"lsa. Reggie foi reprova-  do. - Illidge riu. - Miser vel ftinho escrofuloso! Mas eu lhe serei  eternamente grato, assim como aos bacilos ativos das suas glndulas.  Sem les eu teria ido para a oficina de sapateiro de meu tio, numa aldeia  de Lancashire. E são de coisas como essa que depende tâda uma  existncia - de alguma probabilidade absurda, uma contra 1 milhão.  Uma insignificncia - e t"da a nossa vida fica alterada.  - Não, não foi uma insignificncia - objetou Spandrell. - A tua  matr¡cula gratuita não foi um acidente; ela estava completamente de  acârdo, completamente em harmonia contigo. De outro modo tu não a  terias obtido, não estarias agora aqui. Duvido que haja acontecimentos de  fato insignificantes. Tudo que acontece  intrinsecamente semelhante ao  homem a quem acontece.  - Isso  um tanto oracular, não achas? - objetou Philip. - Perce-  bendo os acontecimentos, os homens os deformam - expressemo-nos as-  sim -, de sorte que o que acontece parece-se com les.  Spandrell encolheu os ombros.  - Pode ser que essa espcie de deformaão exista. Mas eu creio que  os acontecimentos se apresentam j feitos para se adaptarem ...s pessoasa  quem acontecem.  - Que asneira! - exclamou Illidge, com desg"sto.

  Philip discordou duma maneira mais polida.  - Mas pessoas diferentes podem ser influenciadas pelo mesmo  acontecimento de maneiras inteiramente diferentes e caracter¡sticas.  - Eu sei - disse Spandrell. - Mas, por algum processo imposs¡vel  de descrever, o acontecimento  modificado, modificado qualitativa-  mente, de maneira que se adapte ao car ter de cada pessoa nle envolvi-  da. E um grande mistrio e um paradoxo.  - Para não dizer um absurdo e uma impossibilidade - acrescentou  Illidge.  - Absurdo, seja. Impossibilidade, mesmo - concordou Spandrell.  Mas, apesar de tudo,  assim que as coisas acontecem, na minha  opinião. Por que haviam elas de ser l¢gicamente explic veis?  - Com efeito, por qu? - fez Walter, num eco.

  - No entanto - interveio Philip -, essa providncia de vocs faz,  dum mesmo acontecimentp, coisas qualitativamente diferentes para  indiv¡duos diferentes. Não acham isto um pouco duro de digerir?  - Não  mais indigesto do que o fato de estarmos aqui. Nem mais  indigesto do que tudo isto. . . - Apontou a sala de jantar baltasaresca,  os convivas ...s suas mesas, os criados câr de ameixa, e o secret rio  perptuo da Academia Britnica, que casualmente ia entrando na sala, 

288 

em companhia do professor de poesia da Universidade de Cambridge.  Mas Philip insistiu nos seus argumentos.  - Mas admitindo, como fazem os homens de cincia, que a hip¢tese

  mais simples seja a melhor - embora eu nunca tenha encontrado em  t"da a minha vida uma justificaão, alm da inpcia humana, para tal# 

atitude...  - Apoiado! apoiado!  - Que justificaão? - repetiu filidge. - A justificaão da experin-  cia, ora essa! Est experimentalmente verificado que a natureza faz, com

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  efeito, as coisas da maneira mais simples.  - Ou então - disse Spandrell -, que os sres humanos não  compreendem senão as explicaões mais simples. Na pr tica não seria  poss¡vel distinguir entre essas duas alternativas.  - Mas se uma coisa tem explicaão simples, natural, não pode ao  mesmo tempo ter uma explicaão complicada, sobrenatural.  - Por que não? - perguntou Spandreli. - Pode muito bem aconte-  cer que sejamos incapazes de compreender ou de medir as f"ras sobrena-  turais que estão atr s das foras superficialmente naturais (seja qual f"r a  diferana entre o natural e o sobrenatural). Mas isso não prova que elas  não estejam agindo. O que tu fazes  simplesmente promover a tua tolice  a categoria de lei geral.  Philip aproveitou o ensejo para prosseguir na sua argumentaão.  - Mas admitindo, apesar de tudo - atalhou le, antes que Illidge  pudesse replicar -, que a explicaão mais simples possa ser a mais  verdadeira, ser que os fatos não se explicam mais simplesmente se  dissermos que  o indiv¡duo, com a sua hist¢ria e o seu car ter, que defor-  ma o acontecimento para faz-lo ... sua pr¢pria semelhana? N¢s vemos  os indiv¡duos, mas não vemos a providncia; somos obrigados a  pressupo-la. Não ser melhor, se pudermos dispens -la, deixar de parte  sse postulado suprfluo?  - Mas ser realmente suprfluo? - inquiriu Spandreli. -  possivel  explicar os fatos sem ela? Duvido. Que dizes dessa espcie male vel de  gente?---e somos todos mais ou menos inale veis, somos todos mais ou

  menos modelados. Que dizes das pessoas cujos caracteres não são inatos  mas sim formados, inexor...velmente, por uma srie de acontecimentos to-  dos do mesmo tipo? Uma corrente de felicidade, se te agrada dar-lhe ste  nome, ou uma corrente de infelicidade; uma corrente de pureza ou uma  corrente de impureza, uma corrente de belas oportunidades her¢icas, ou  uma corrente de oportunidades ign¢beis e tristes. . . Depois que a cor-  rente persistiu o tempo suficiente (e  espantoso como tais correntes  persistem!), o car ter estar formado; então, se te agrada explicar a coisa  dessa maneira, poder s dizer que  o indiv¡duo que deforma ... sua pr¢pria  semelhana tudo quanto lhe acontece. Mas antes que le tenha um car ter 

289#

 

bem definido, ... semelhana do qual possa deformar os acontecimentos  - que me dizes, hein? Quem decidiu essa espcie de coisas que lhe acon-  teceram antes9  - Quem decide se uma moeda cai com a cara ou com a coroa voltada  para o alto? - perguntou Illidge com desdm.  - Mas por que introduzir moedas na discussão? - retorquiu Span-  drell. - Por que vens com as moedas, quando estamos falando de sres  humanos? Considera o teu caso. Ser que tens o sentimento de ser uma  moeda quando te acontece alguma coisa?  - Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada

  tm que ver com os fatos objetivos.  - Mas as sensaões, essas sim, tm. A cincia  a racionalizaão das  percepões dos nossos sentidos. Por que haver¡amos de atribuir valor  cient¡fico a uma certa classe de intuiões psicol¢gicas, quando a recusa-  mos a t"d as as outras? A intuião direta duma aão providencial tem tan-  tas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos  quanto a intuião direta da c"r azul ou da dureza. E quando as coisas nos  acontecem não temos a sensaão de ser uma moeda. Sentimos que os  acontecimentos tm a sua significaão, que foram arranjados. Especial-  mente quando les se produzem em sries. Como se a moeda ca¡sse de ca-

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  ra cem vzes seguidas, digamos.  - Concede~nos ao menos o mrito de cair de coroa - disse Philip  rindo. - N¢s somos os intelectuais, não te esqueas.  Spandrell franziu o sob , rolho; aquela frivolidade fora de prop¢sito o  chocava. Era um assunto que le levava a srio.  - Quando penso em mim mesmo - disse le -, fico convencido de  que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado prvia-  mente. Quando gar"to, tive um pren£ncio do que eu poderia ter vindo a  ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo ... Algo completa-  mente diverso dste "eu" real.  - Um anjinho, heiti? - troou Illidge.  Spandrell não tomou conhecimento da interrupão.  - Mas a partir dos meus quinze anos, comearam a acontecer-me  coisas ... semelhana proftica do que sou atualmente.  Calou-se.  - De maneira que te cresceram um rabo e uns cascos fendidos, em  vez dum balo e dum par de asas. Uma hist¢ria triste. Nunca te feriu a  atenão - continuou filidge, voltando-se para Walter -, a ti, que s  perito em matria de arte, ou que pelo menos devias ser - nunca te feriu  a atenão o fato de que tâdas as reproduões de anjos em quadros são  absolutamente incorretas e anticient¡ficas? - Walter Rez "não" com a  cabea. - Um homem de 70 quilos, se lhe crescessem asas, deveria rece-  ber ao mesmo tempo m£sculos colossais para as mover. E grandes m£s-  culos de v"o significariam um esterno em proporão, como o das aves.

  290 

Um anjo dsse pso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria  ter um esterno que passasse de 4 ou 5 ps, pelo menos. Dize isso ao teu  pai, na proxinia vez em que le tiver vontade de pintar uma Anunciaão.  Todos os Anjos Gabriis que existem são escandalosamente# 

inverossimeis.  Spandrell, entrementes, pensava naqueles arrebatamentos no meio das

  montanhas, naquelas delicadezas de sentimento, naqueles escr£pulos,  sensibilidades e remorsos da sua mocidade; le dizia a si mesmo que tudo  aquilo - o arrependimento das m s aões não menos que o w;ebata-  mento extasiado diante do espet culo duma flor ou duma paisagem -,  que tudo estava ligado dum certo modo a seus sentimentos para com a  mãe, que tudo estava enraizado e implicitamente contido naqueles senti-  mentos. Lembrou-se de Um Internato de Meninas em Paris, aquelas  leituras er¢ticas sob as cobertas, ... luz duma lmpada de algibeira. O livro  datava da poca em que as longas meias pretas e as longas luvas da mes-  ma câr constitu¡am o maior requinte da moda pornogiafica, e quando  "beijar um homem sem bigode era comer um âvo sem sal". - O major  sedutor e pri pico tinha bigodes longos, retorcidos e duros de cosmtico.  Que vergonha le, Spandrefi, sentira, e que remorso! Como tinha lutado,

  com que ardor tinha orado para ter fora moral! E o deus a quem orara  era a imagem de sua mãe. Resistir ... tentaão era mostrar-se digno dela.  Sucumbindo, le a atraioaria, renegaria Deus. Tinha triunfado de in¡cio.  Mas uma manhã, inopinadamente, chegara a not¡cia de que ela ia casar  com o Major Knoyle. O Major Knoyle tinha tambm bigodes retorcidos.  - Santo Agostinho e os calvinistas tinham razão - disse Spandrell  em voz alta, interrompendo a discussão a respeito de estemos e serafins.  - Voltas a repisar o assunto? - perguntou Illidge.  - Deus deseja salvar uns e danar outros.  - Ou antes, le o poderia fazer (a) se existisse, (b) se existisse uma

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  coisa chamada salvaão, e (c)...  - Quando penso na guerra - continuou Spandrefi, interrompendo-o  no que ela poderia ter sido para mim, e no que ela foi efetivamente ...  Deu de ombros. - Sim, Santo Agostinho tinha razão.  - Bem, devo confessar - disse Philip - que sempre fui reconhecido  para com Santo Agostinho, ou para com quem quer que tenha sido o  respons vel por me ter dado uma perna defeituosa. Isso impediu que eu  me tornasse um her¢i; mas me impediu igualmente de me tornar um  cad ver.  Spandrell olhou para le, com um vinco ir"nico nas comissuras da  b¢ca largamente rasgada:  - O teu acidente te garantiu uma vida tranqila e desprendida. Em  outras palavras, o acontecimento assemelhou-se a ti. Da mesma maneira  que a guerra, no que me diz respeito, foi exatamente ... minha semelhana.  Havia j um ano que eu estava em Oxford, quando ela comeou. 

291# 

I

  i 

- A velha Alma Mater, hein? - zombou Illidge, que não podia ouvir  pronunciar o nome dum dos centros de instruão antigos e caros sem fa-  zer algum coment rio sarc stico.  - Trs semestres cheios de vida e dois per¡odos de frias ainda mais  cheios de vida - o descobrimento do lcool e do p"quer e da diferena  que h entre as mulheres em carne e osso e as da imaginaão adolescente..  Que apocalipse, a primeira mulher real! - acrescentou le entre parnte-  ses. - E, ao mesmo tempo, que desilusão revoltante!  uma coisa chata,  em certo sentido, que sucede ... imaginaão superaquecida e ao livro  pornogr fico.

  - O que  um tributo ... arte - disse Philip -, como muitas vzes  apontei. -- Sorriu para Walter, que corou, recordando-se do que lhe tinha  dito o cunhado a respeito dos perigos que havia em imitar, em amor, os  modelos poticos elevados. - Nossa educaão  feita ...s avessas -  continuou Philip. - Põe-se a arte diante da vida; Romeu e Julieta e  hist¢rias imundas antes do casamento ou de seus equivalentes. Da¡ resul-  ta que t"da a jovem literatura moderna seja desiludida. Inevit...velmente.  No bom tempo antigo, os poetas comeavam por perder a sua virgindade;  depois, de posse dum conhecimento completo da coisa real, e sabendo  exatamente onde e como ela cessava de ser potica, aplicavam-se delibe-  radamente a idealiz -la e embelec-la. N¢s comeamos pelo potico e  partimos da¡, rumo do não-potico. Se os rapazes e as raparigas perdes~

  sem sua virgindade tão cedo como na poca de Shakespeare, ter¡amos um  renovamento da l¡rica amorosa elizabetaria.  - Talvez tenhas razão - disse Spandrell. -- Tudo o que sei  que,  uma vez que descobri a realidade, achei-a decepcionante - mas atraente,  apesar de tudo! Talvez tão atraente pelo motivo mesmo de ter sido tão  decepcioriante. O coraão  uma espcie curiosa de monturo; a imund¡cia  atrai a imund.cia,_e o grande encanto do v¡cio reside em sua estupidez e  em sua baixeza. Ele atrai porque  assim repelente. Mas continua a ser  sempre repelente. Eu me recordo.. quando chegou a guerra, de como exul-  te¡ por ter uma oportunidade de fugir ... esterqueira e fazer alguma coisa

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  decente, para variar ...  Pelo Rei e pela P tria - zombou Illidge.  Pobre Rupert Brooke*! A gente sorri agora do que le escreveu, a  respeito do ret"rno da honra ao mundo. Os acontecimentos fizeram que  isso parecesse um pouco c"mico.  - Foi uma brincadeira sinistra, mesmo na poca em que foi escrita  disse Illidge. 

* Rupert Brooke, poeta ingls. NascidoernRugby, a3 de agâsto de 1887. Morreuduran-  te a Grande Guerra, como soldado do Exrcito Britnico, a bordo dum navio que conduzia  fi ras no Mar Egeu (23 de abril de 1915). Seus poemas alcanaram xito not vel, especial-  mente a srie de sonetos escritos nas trincheiras. (A~ do T,) # 

292 

tia. 

Não, não. ·quela poca, ela era exatamente o que eu pr¢prio sen- Est claro que era o que tu sentias. Porque eras como Brooke: um

  membro corrompido e blas* da classe ociosa. Tinhas necessidade duma  emoão nova, eis tudo ... A guerra e essa famosa "honra" de vocs  forneceram-lhes essa emoão.  Spandrell deu de ombros.  - Explica a coisa assim, se queres. Tudo o que posso dizer  que em  ag"sto de 1914 eu queria fazer alguma coisa de nobre. Ter-me-ia sido  perfeitamente agrad vel ser morto.  - "Antes a morte que a desonra", hein?  - Sim, exatamente ao p da letra. Porque posso te assegurar que to-  dos os melodramas estão perfeitamente de acârdo corri a realidade. H

certas ocasiões em . que as pessoas dizem efetivamente coisas como essa.  O £nico defeito do melodrama  que le tende a nos fazer crer que as pes-  soas fazem dessas frases sempre e sempre. Mas infelizmente não  assim.  "Antes a morte que a desonra" era exatamente o que eu pensava em agâs-  to de 1914. Sim, se a £nica possibilidade existente fora da morte rosseo  modo de vida est£pido por mim levado, eu preferia morrer ...  - Ainda est falando o cavalheiro desocupado. . . - observou  Illidge.  - Foi então que, simplesmente por ter sido educado em grande parte  no estrangeiro, por conhecer duas ou trs l¡nguas, por ter uma mãe que  me amava demais e um padrasto influente nos meios militares -, fui  transferido, de bom ou de mau grado, para a Intelligence. Deus tinha na  verdade intenão de me danar.

  - Òle estava misericordiosamente procurando salvar-te a vida - opi-  nou Philip.  - Mas eu não queria que me salvassem a vida. A menos que pudesse  empreg -la em qualquer coisa de decente, em qualquer coisa de her¢ico,  de preferncia, ou pelo menos de dificil e de arriscado. E, em lugar disso,  me deram um trabalho de ligaão e depois me mandaram dar caa aos  espiões. Meteram-me em todos os neg¢cios s¢rdidos e ign¢beis.  - Mas, no fim de contas, as trincheiras não tinham l nada de muito  romntico ...  - Não, mas eram perigosas. Para ficar sentado numa trincheira, era

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  preciso coragem e pacincia est¢ica. Um caador de espiões estava em  perfeita segurana, e não tinha de p"r ... prova nenhuma de suas nobres  virtudes; e, quanto ...s ocasiões de praticar o v¡cio ... Ah! Aquelas cida-  des da retaguarda da frente de batalha, Paris, os portos - as prostitutas  e o lcool eram os seus produtos principais.  - Mas, no fim de contas - disse Philip -, eram males que se 

* Embotado, desiludido, entediado. (N. do E.) 

293# 

podiam evitar. - Sendo frio de natureza, le achava f cil ser razo vel.  - Evit veis, mas não para mim - respondeu Spandrell. - Sobre-  tudo naquelas circunstncias. Eu quisera fazer alguma coisa decente e ti-  nha sido impedido nesse prop¢sito. De sorte que se tornou uma espcie de  questão de honra fazer o contr rio do que tinha desejado. Uma questão  de honra, compreendes?  Philip sacudiu a cabea:  -  um pouco sutil demais para mim ...  - Mas imagina que te encontras na presena dum homem que respei-  tas, e amas, e admiras como nunca amaste, respeitaste e admiraste nin-

  gum antes.  Philip fez com a cabea um sinal afirmativo. Mas a verdade era, refle-  tiu le, que nunca tinha admirado ningum profundamente, de todo o  coraão. Te¢ricamente, sim; mas nunca na pr tica, nunca a ponto de que-  rer constituir-se disc¡pulo da pessoa admirada, nunca a ponto de segui-la.  Tinha adotado as opiniões de outras pessoas, mesmo os seus modos de vi-  da - mas sempre com a convicão subjacente de que não os tinha feito  realmente seus, com a certeza de que podia abandon -los, e de que na cer-  ta os abandonaria, tão f cilinente como os adotara. E sempre que lhe  parecera correr algum perigo de se deixar arrebatar, le tinha resistido  deliberadamente, tinha lutado ou fugido, a rim de conservar a sua liberda-  de.

  - Ficas subjugado pelo que sentes por essa pessoa - continuou  Spandrell. - E caminhas para ela de mãos estendidas, oferecendo a tua  amizade e o teu devotamento. Por £nica resposta, essa criatura a que te  entregas enfurna as mãos nos bolsos e volta-te as costas ... Que farias  nesse caso?  Philip riu.  - Eu teria de consultar o Livro de Etiquta do Vogue.  - Tu o deitarias por terra com um sâco. Pelo menos era o que eu  faria. Uma questão de honra. E quanto mais forte tivesse sido a minha  admiraão, mais violento seria o s"co, e mais tempo eu danaria depois  s¢bre a carcaa do homem que me desprezou. Eis por que as prostitutas  e o lcool não podiam ser evitados. Pelo contr rio, tomou-se uma questão  de honra para mim o não evit -los nunca. Aquela vida, na Frana, pare-

  cia-se com a que eu tinha levado antes da guerra - apenas era muito  mais ign¢bil e est£pida, e supinamente falha de qualquer elemento que a  pudesse aliviar ou redimir. E depois de um ano de guerra eu lutava  desesperadamente para me apegar ... minha desonra e evitar a morte. San-  to Agostinho tinha razão, garanto-lhes; somos condenados ou salvos de  antemão. As coisas que acontecem são uma conspiraão da providncia.  - Disparates! - disse filidge. Mas, no fundo do silncio que se  seguiu, o homenzinho ficou a pensar de n"vo em como era extraordin rio  e infinitamente pouco prov vel que le estivesse ali sentado a beber clare- 

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te, com o secret rio perptuo da Academia Britnica sentado duas mesas  alm, e o vice-presidente da C¢rte Suprema colocado exatamente atr s  dle. Vinte anos antes, as probabilidades que havia contra a sua presena  ali, sob aqule teto dourado, tinham sido numa proporão de v rias cente-# 

nas ou milhares de milhões contra uma. Não obstante, l estava le...  filidge bebeu um outro trago de clarete.  E Philip, entrementes, se estava lembrando daquele imenso cavalo  negro, que escoiceava e pinoteava, os dentes arreganhados e as orelhas  deitadas para tr s; e de como o animal se arremessara de s£bito para a  frente, arrastando consigo o condutor; e do estrondo das rodas; e "Ai!",  dos gritos que le, Philip, soltara; e de como recuara para o talude escar-  pado, como tentara escal -lo, escorregando porm e rolando para o chão;  e do pinote espantoso e das patadas do gigante; e "Ai! AW', daquela mas-  sa enorme que se interpusera entre le e o sol; e dos grandes cascos; e, de  repente, aquela dor aniquiladora...  E, dentro daquele mesmo silncio, Walter pensou na tarde em que pela  primeira vez entrara no salão de Lucy Tantamotint. "Tâda coisa que  acontece  intrinsecamente semelhante ao homem a quem ela acontece."

  I 

- Mas, enfim, qual ser o segrdo dela? - perguntou Marjorie. -  -Por que ser que Walter anda louco por ela? Sim, porque le est louco.  Literalmente.  - Não te parece que  um segrdo muito evidente? - sugeriu Elinor  O que ela achava esquisito não era que Walter tivesse perdido a cabea  por Lucy, mas sim que le tivesse achado alguma coisa de atraente na po-  bre Marjorie. - No fim de contas -continuou-, Lucy  muito diverti-  da, muito cheia de vivacidade. E, alm disso - acrescentou ainda, recor-  dando-se das observaões exasperantes de Philip a prop¢sito do cão que  les tinham atropelado em Bombaim -, ela tem m reputaão ...

  - Mas ser isso um atrativo? Uma reputaão m ? -0 bule de chficou suspenso por s"bre a taa enquanto Marjorie fazia a pergunta.  - Est claro que . Significa que a mulher que a possui   acess¡vel ... A£car? Não, obrigada.  - Mas  natural - disse Marjorie, passando a taa ... outra - que  um homem não queira dividir suas amantes com outros homens.  - Talvez não. Mas o fato de uma mulher ter outros amantes d ao  homem esperana. . . "Onde outros foram bem sucedidos eu tambm  posso ser." Eis o argumento do homem. E, ao mesmo tempo, uma repu-  taão m f -lo imediatamente pensar na mulher sob o ponto de vista da  aventura amorosa. Quando vemos Lola Montes, a sua reputaão faz que  pensemos autom...ticamente na alcova. Não nos vem ao pensamento a  alcova quando vemos Florence Nightingale. Lembramo-nos apenas de

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quartos de doente. O que não  a mesma coisa - ajuntou Elinor para  terminar.  Houve um silncio.  Elinor estava pensando que era abomin vel de sua parte não sentir

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  mais simpatia por Marjorie. Mas não sentia: era essa a verdade... Pro-  curou fazer-se lembrada da vida lament vel que aquela pobre mulher  levara - com o marido, primeiro, e agora com Walter. Abomin vel, na  verdade, mas aqules pavorosos brincos pendentes, imitando jade! E  aquela voz, aquela maneira importante ...  Marjorie ergueu os olhos:  - Mas ser poss¡vel que os homens possam ser tão f...cilmente enga-  nados? Por uma isca tão grosseira? Homens como Walter. Como Walter!  insistiu ela. - Ser que homens como le podem ser tão, tão ...  - Porcos? - sugeriu Elinor. - Aparentemente, podem. Isso parece  estranho,  verdade. - "Seria talvez melhor", pensava ela, "que Philip  fosse um pouco mais porco e um pouco menos bernardo-eremita. Os por-  cos são humanos - talvez demasiadamente humanos, mas de qualquer  modo sempre são humanos. Ao passo que os bernardos-eremitas fazem o  poss¡vel para ser moluscos."  Marjorie sacudiu a cabea e suspirou:  -  extraordin rio - disse ela, com uma convicão que p4receu a  Elinor um tanto ris¡vel.  "Que espcie de opinião poder ter ela de si mesma?" perguntou Eli-  nor interiormente. Mas a boa opinião de Marjorie se aplicava, menos a ela  mesma do que ... sua virtude. A companheira de Walter tinha sido educa-  da na crena da fealdade do v¡cio e da parte animal da natureza humana,  na beleza da virtude e do esp¡rito. E, fria por natureza, tinha, da mulher  fria, a total incompreensão da sensualidade. Que Walter cessasse de

  repente de ser o Walter que ela conhecia e se portasse "como um porco",  segundo a expressão um pouco crua de Elinor - era coisa que lhe pare-  cia verdadeiramente extraordin ria, ... parte t¢das as consideraões s"bre  seus atrativos pessoais.  - E depois,  preciso que te lembres - disse Elinor em voz alta - de  que Lucy tem uma outra vantagem no que diz respeito aos homens como  Walter.  uma dessas mulheres que tm um tempeamento de homem. Os  homens podem achar prazer num encontro fortuito. Em sua maior parte,  as mulheres'não podem:  preciso que sintam amor - mais ou menos.   preciso que suas emoões estejam envolvidas no caso. T"das - com ra-  ras exceões. Lucy  uma dessas exceões. Ela tem a faculdade masculina  do desprendimento. Tem o poder de separar os apetites do resto de sua al-  ma.

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- Que horror!  Marjorie estremeceu. 

Elinor observou sse estremecimento e ficou tão aborrecida com le  que foi ao ponto de contradizer a outra.  - Achas? Isso me parece, ...s vzes, um talento bastante invej vel. -  Desatou a rir e Marjorie ficou escandalizada diante do cinismo dela. -# 

Para um rapaz tão t¡mido e embaraado como Walter - continuou Eli-  nor -, h alguma coisa de muito excitante num temperamento afoito  dessa espcie.  justamente o contr rio do seu. Temer ria, sem escr£pu-  los, voluntariosa, sem um tomo de conscincia. Oh, eu compreendo mui-  to bem por que o rapaz perdeu a cabea. - Pensou em Everard Webley.  - A fora  sempre uma atraão - acrescentou. - E sobretudo quando  a gente mesma falta essa fora, como no caso de Walter. Pode-se não  amar essa espcie de f"ra. - Ela pr¢pria não gostava muito da ambião  enrgica de Webley. - Mas não se pode deixar de admirar a fâra em si.

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   como o Ni gara.  magn¡fico, embora possamos não ter desejos de nos  colocar debaixo dle. Posso tirar mais uma fatia de pão com manteiga?  - Serviu-se. Por delicadeza, Marjorie tambm tirou uma. - Que deli-  cioso pão prto! - exclamou Elinor. E ficou a perguntar a si mesma co-  mo Walter pudera viver com uma pessoa que recurvava no ar o dedo  m¡nimo da mão que segurava a taa de ch e que mordia a fatia de pão  em bocados tão terrivelmente pequenos, mastigando em seguida s¢ com  os dentes da frente, como uma cobaia - como se o fato de comer f"sse  uma coisa indelicada e um tanto repugnante ...  Mas que achas que devo fazer? - decidiu perguntar Marjorie por 

f im.  Elinor encolheu os ombros.  - Que outra coisa podes fazer senão desejar que le obtenha o que  deseja e que logo f ique enjoado?  Era evidente; mas Marjorie achou que Elinorf¢ra um tanto insens¡vel,  dura e cruel por ter dito aquilo. 

Os Quarles haviam improvisado em Londres, de maneira simplista,  uma residncia na £ltima duma srie de antigas cocheiras de Belgr via.  Para entrar passava-se sob um arco. Um penhasco de estuque creme se  erguia a pique, ... esquerda do observador -- sem uma £nica janela, por-  que os habitantes daquele bairro aristocr tico, outrora, nem sequer  tomavam conhecimento da miser vel vida privada de seus dependentes. ·

  direita se estendia a linha baixa dos est bulos, com o £nico andar de salas  de estar em cima, ocupados agora por enormes Daiinlers e pela fam¡lia de  seus choferes. As cavalarias terminavam por um muro, por cima do qual  se podiam ver os pl tanos dos jardins de Belgr via balanando-se ao ven-  to. A entrada da casa dos Quarles ficava ... sombra dsse paredão. Metida 

297# 

entre os jardins e as cavalarias pouco habitadas, a casinha era muito  quieta. O silncio não era quebrado senão pelo ir e vir das limusines e pe-

  lo grito casual duma criana.  - Mas, felizmente - tinha observado Philip -, os ricos se podem  oferecer ve¡culos silenciosos. E h alguma coisa no motor de combustão  interna que leva ... limitaão dos nascimentos. Quem j viu um chofer com  oito filhos?  O abrigo dos carros e as baias dos cavalos tinham sido amalgamados,  na reconstruao do est bulo, num simples e espaoso salão. Dois biom-  bos constitu¡am uma imitaão de parede divis¢ria. Atr s dos biombos, ...  direita de quem entra, ficava o lado "sala de visitas" do apartamento -  cadeiras e um sof , agrupados ao redor da lareira. O biombo da esquerda  escondia a mesa da sala de jantar e a entrada duma cozinha min£scula.  Uma pequena escada subia obliquamente ao longo de uma das paredes, e  conduzia aos quartos de dormir. Cortinas de cretone amarelo davam a

  ilusão da luz do sol que não entrava nunca pelas janelas, voltadas para o  norte. Havia muitos livros. O retrato de Elinor, quando mocinha, feito pe-  lo velho Bidlake, estava pendurado por cima da lareira.  Philip se achava deitado no sof , livro na mão. 

',Muito not vel", lia le, " a nota do Sr. Tate Regan s"bre os machos  pigmeus parasitos em trs espcies de diabos-marinhos cerativideos. Nos  Ceratias holbolli, do µrtico, umaje-mea de mais ou menos 20 cent¡metros  de comprimento carregava s"bre a superfi-cie do ventre dois machos de

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  perto de 6 cent¡metros. A região dofocinho e do queixo, no macho pig-  meu, estavafixada de maneira permanente a umapopila da pele daje-mea,  e os vasos sangu¡neos dos dois indiv¡duos eram confluentes. O macho não  tem dentes; sua b"ca  in£til; o canal alimentar est atrofiado. Nos  Photocarynus spiniceps, umaflemea de perto de 6 cent¡metros de compri-  mento levava um macho de 1 cent¡metro no alto da cabea, diante do  "lho direito. Nos Edriolychnus schmidti as dimensões eram pouco mais  ou menos as mesmas que no caso precedente, mas a fe-mea levava o  macho pigmeu de cabea para baixo, s"bre a superfilcie interna da  branquOstega. " 

Philip abandonou o livro e tirou do b¢lso interno o caderno de notas e  a caneta-tinteiro: 

"Os diabos-marinhosfimeas ", escreveu, "carregam, presos a seus cor-  pos, machos pigmeus parasitos... Fazer a comparaão que se impõe  quando o meu Walter anda atr s da sua Lucy. E se eu escrevesse uma ce-  na diante dum aqu rio? Òles entram com um amigo cientista que lhes  mostra os diabos-marinhos flemeas e seus maridos. O crep£sculo, os  peixes - unifundo perfeito ". 

298 

Philip ia pâr de lado o caderno quando outro pensamento lhe ocorreu.

  Tornou a abri-le. "P"r o aqu rio em M"naco e descrever Monte Carlo e t"da a R ivie

sob o aspecto de monstros dofundo do mar. " 

nhos.  Falou-lhe. 

Acendeu um cigarro e continuou com o livro. Bateram. ... porta. Philip

  ergueu-se e foi abrir; era Elinor.  - Que tarde! - exclamou ela, atirando-se s¢bre uma cadeira.  - Então, que novidades me contas de Marjorie?  - Novidades? Nada que se parea com isso. . . - disse Elinor num  suspiro, enquanto tirava o chapu. - A pobre criatura est ins¡pida co-  mo sempre. Mas lamento-a sinceramente.  - Que lhe aconselhaste fazer?  Nada. Que queres que ela faa? E Walter? - perguntou Elinor por 

- De pai semi-severo, digamos ... Obtive que le se f"sse instalar em  sua vez. - Achaste ocasião de fazer o papel de pai severo? 

1 Chainford com Marjorie.

  Obtiveste? Foi um verdadeiro triunfo.  Não tanto como julgas. Não tive inimigo contra quem combater.  Lucy parte para Paris no pr¢ximo s bado.  - Esperemos que ela fique por l . . . Pobre Walter!  - Sim, pobre Walter... Mas eu tenho que te falar dos diabos-mari- 

Um dstes dias - concluiu -- preciso escrever uni Besti rio  moderno. Que liões de moral! Mas, dize-me, como achaste Everard? Ti  nha esquecido completamente que o havias visto.  - Não podias deixar de esquecer. . . - retrucou ela desdenhosa-

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  mente.  - Achas9 Não sei por qu. .  - Não, não sabes.  - Estou esmagado sob o pso do teu desdm 

- disse Philip com 

uma humildade fingida.  Houve um silncio.  -- Everard est apaixonado por mim - falou por fim Elinor, sem  olhar para o marido, e com uma voz perfeitamente calma e fria.  - Mas isso  novidade? Julguei que le fosse um velho admirador.  - Mas  srio - prosseguiu Elinor. - Muito srio. - Ela esperava  ansiosamente os coment rios do marido. Òstes vieram depois dum curto  silncio.  - Isso deve ser menos divertido ...  Menos divertido! Pois então le não compreendia?  No fim de contas Philip não era um tolo. Ou talvez compreendesse 

299# 

muito bem e estivesse apenas fingindo o contr rio; talvez estivesse mesmo  secretamente contente com a paixão de Everard. Ou era então simples-  mente a indiferena que o tornava cego? Ningum pode compreender  aquilo que não sente. Philip não podia compreend-la, porque não sentia  as coisas do mesmo modo. Estava confiante na crena de que as outras  pessoas eram tão razo...velmente mornas como le.  - Mas eu gosto dle - afirmou Elinor em voz alta, fazendo uma  derradeira tentativa desesperada para arrancar do marido pelo menos um  simulacro de demonstraão de amor. Se ao menos le se mostrasse  ciumento, ou triste, ou zangado, como ela seria feliz, como lhe ficaria  reconhecida por isso!  - Gosto muito de Webley - continuou Elinor. - H alguma coisa  de muito atraente nle. Aqule seu car ter apaixonado, aquela violn-

  cia ...  Philip pâs-se a rir:  - O irresist¡vel homem das cavernas, hein?  Elinor ergueu-se com um pequeno suspiro, apanhou o chapu e a b"lsa  inclinando-se sâbre o marido, beijou-lhe a testa, como para lhe dizer  adeus; depois se afastou e, sempre sem dizer palavra, subiu para o quarto.  Philip tornou a apanhar o livro que tinha abandonado. Leu: 

"Bonellia viridis  um verme verde, não muito raro no Mediterrneo. A  je-mea tem o corpo do tamanho aproximado duma ameixa, munida dum  apndice proboscidiano em., ilamento, bfd" na extremidade, fortemente  contr til, e que pode atingir 2 ps de comprimento. Mas o macho e

  microsc¢pico e vive no que pode ser denominado o conduto reprodutor  (nefr¡dio modificado) titifimea. Não tem b"ca e se alimenta £nicamente  do que absorve parasit...riamente atravs de suas superf¡cies ciliadas. . . " 

Mais uma vez Philip largou o livro. Ficou a pensar sâbre se devia ou  não subir e falar a Elinor. Estava convencido de que ela nunca chegaria  a amar realmente Everard. Mas talvez le, Philip, não devesse ter a coisa  como muito certa. A mulher lhe parecera um pouco transtornada. Talvez

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  esperasse que le lhe falasse, que lhe dissesse de seu amor, de quanto seria  infeliz - e de como ficaria furioso - se ela deixasse de quer-lo. Mas  eram estas precisamente as coisas mais imposs¡veis de dizer. Ao cabo,  decidiu não subir. Ia esperar para ver ... trari*sfria para outra ocasião.  Continuou a leitura sâbre a Bonellia viridis. 

300 

CAKTULO XXII 

DO CADERNO DE NOTAS DE PHILIP QUARLES. 

"Hoje, em casa de Lucy Tantamount, fui v¡tima duma associaão de  idias muito curiosa. Lucy, como de costume, era uma bandeirafrancesa;  olhos redondos e azuis, b"ca escarlate e o resto dum branco de morte  contra um fundo de cabelos negros e reflexos met licos. Eu disse uma# 

brincadeira qualquer. Ela riu, abrindo a b"ca - e sua l¡ngua e suas gen-  givas estavam de tal maneira mais p lidas do que o vermelho dos l bios,  que pareciam (senti um pequeno calq/rio estranho de horror admirado)

  inteiramente exangues e brancas, pelo contraste. E então, sem nenhuma  transião, me achei diante dos crocodilos sagrados nosjard¡ns do Pal cio  de Jaipur; o guia hindu lhes atirava pedaos de carne, e as bstas tinham  o interior das goelas quase branco, como se elas estivessem forradas de  pele de c"r creme ligeiramente lustrosa. E  assim que o esp¡ritofunciona  naturalmente. E temos ainda pretensdes intelectuais! Bem, bem. Mas que  achado para o meu romance!  assim que vou comear o meu livro. Meu  her¢i "walteresco "faz rir a sua sereia "lucyesca " e imediatamente (com  horror de sua parte, não obstante o qual le continua a desej -la com um  toque de perversidade, apesar de tudo, e mesmo com mais ardor ainda)  le rev os ign¢beis crocodilos que tinha visto na ¡ndia, um ms atr s.  Dessa maneira,firo logo de in¡cio a nota do estranho e tiofant stico. Tu-  do ser incr¡vel, se pudermos tirar a crosta de banalidade evidente que os

  nossos h bitos põem nas coisas. Todo objeto, todo acontecimento contm  em si uma infinidade de profundezas dentro de outras profundezas. Nada  se parece, por mnos que seja, com sua aparencia - ou antes, tudo se  parece ao mesmo tempo com v rios milhões de outras coisas. T"da a 1w  dia passa pela cabea do meu homem como umffime de cinema enquanto  ela ri, mostrando - ela, a amada, a adorada, a desejada, a bela - aque-  las gengivas e aqule palato horrivelmente exangues de crocodilo. . . " 

"A musicalizaão da _ficão. Não ... maneira simbolista, subordinando  o sentido ao som. (Pleuvent les bleus baisers des astres taciturnes*. Mera 

*Literalmente: "Chovem os beijos azuis dos astros taciturnos-. (N. do E)

  301# 

glossolalia.) Mas em grande escala, na construão. Meditar s"bre Beetho-  ven. As mudanas de modos, as transiões abruptas. (A majestade alter-  nando com a brincadeira, por exemplo, no primeiro movimento do Quar-  teto em Si Bemol Maior. A comdia sugerindo s£bitamente solenidades

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  prodigiosas e tr gicas no scherzo do Quarteto em D¢ Sustenido Menor.)  Ainda mais interessantes, as modulaões, não s¢rnente dum tom para um  outro, mas de um modo para outro modo. Um tema  exposto, depois  desenvolvido, mudado, imperceptivelmente deformado, at que, se bem  que reconhecivelmente o mesmo, le se tenha tornado de todo em todo  d~ferente. Nas sries de variaões, o processo  levado um passo mais lon-  ge. Por exemplo, essas incr¡veis variaões s"bre um tema de Diabelli. O  mbito inteiro do pensamento e da emoão, e tudo isso em relaão  orgnica com uma pequena ria de valsa rid¡cula. P"r isto num romance.  Como? As transiões abruptas não apresentam nenhuma dificuldade. O  que precisamos  de um n£mero sujiciente de personage s, e intrigas  paralelas, contrapontisticas. Enquanto Jones assassina sua mulher, Smith  empurra o carrinho do filho no parque. Alternam-se os temas. Mais  interessantes, as modulaões e as variaões são tambm mais d¡yi'ceis. O  novelista modula repudiando situaões e caracteres. Òle mostra v rias  personagens que se apaixonam, ou que morrem, ou que oram, de manei-  ras diferentes - dissimilitudes que resolvem o mesmo problema. OU,  vice-versa, personagens semelhantes confrontadas com problemas  dessernelhantes. Desta maneira, podemos modular de modo a apresentar  todos os aspectos do tema, podemos escrever modulaões s"bre um  n£mero qualquer de modos diferentes. Outro processo: o novelista pode-  se arrogar o privilgio divino do criador, e simplesmente considerar os  acontecimentos da narraão sob seus diversos aspectos - emotivo,  cient¡fico, econ"mico, religioso, metafisico, etc. Òle modular de um para

  outro - por exemplo, do aspecto esttico para o aspecto fisico-quimico  das coisas, do religioso para o fisiol¢gico ou para o financeiro. Mas tal-  vez seja uma imposião demasiadamente tirnica da vontade do autor.  H pessoas que pensarão assim. Mas por que h de ficar o autor sempre  no £ltimo plano? Acho que, nos nossos dias, somos um pouco melin-  drosos com relaão a essas apariões pessoais. " 

-P¢r na novela um novelista. Òle servir de pretexto ...s generalizaões  estticas que poderão ser interessantes -pelo menos para mim. Òlejusti-  ficar igualmente a experimentaão. Espcimes do seu trabalho poderão  ilustrar outras maneiras poss¡veis de contar uma hist¢ria. E se o pomos a  contar partes da mesma hist¢ria, como n¢s, poderemosfazer assim uma  variaão s"bre o tema. Mas Por que limitarmo~nos a um s¢ novelista na

  novela? Por que não um segundo na novela do primeiro? E um terceiro 302

 na novela do segundo? E assim por diante, at o infinito, como sses

  reclames de Aveia Quaker em que h um quacre segurando uma lata de  aveia, s"bre a qual se v um desenho dum outro quacre segurando outra  lata de aveia, s"bre a qual etc., etc. Na dcima imagem poder-se-ia ter um  novelista contando a hist¢ria em s¡mbolos algbricos ou em notaões da  variaão da tensão arterial, do pulso, da secreão das glndulas internas# 

e dos tempos de reaão. " 

"O romance de idias. O car ter de cada uma das personagens deve-se  achar, tanto quanto poss¡vel, indicado nas idias das quais ela  porta-  voz. Na medida em que as teorias são a racionalizaão de sentimentos, de  instintos, de estados de alma, isto  pratic vel. O defeito capital do  romance de idias  que somos obrigados a p"r em cena pessoas que tm  idias a exprimir, o que exclui mais ou menos a totalidade da raa huma-  na - ... parte apenas O,01 por cento. Aqui a razão pela qual os roman-

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  cistas verdadeiros, os romancistas natos não escrevem tais livros. Mas,  ora! eu nuncapretendi ser um romancista nato. " 

"O grande defeito do romance de idias  que le  uma coisa artfcial,  arranjada. Necess...riamente; porque as pessoas capazes de desenvolver  tesesformuladas de maneira adequada não são bem reais; são levemente  monstruosas. Torna-se um tanto cansativo, com o andar do tempo, viver  com monstros. " 

"O instinto aquisitivo comporia mais perversões, na minha opinião, do  que o instinto sexual. Pelo menos as pessoas me parecem mais estranhas  em questões de dinheiro do que mesmo em questões de amor. Que  parcimonias espantosas não se encontram constantemente, sobretudo nos  ricos! Que extravagncias fant sticas, tambm. Muitas vzes as duas  qualidades, ao mesmo tempo, e na mesma pessoa. E depois, os entesoura-  dores e enterradores, as pessoas que vivem inteira e quase incessante-  mente preocupadas com o dinheiro! Ningum sepreocupa com o sexo as-  sim com essa constncia - sem d£vida porque a satisfaão fisiol¢gica   poss¡vel em assuntos sexuais, ao passo que ela não existe quando se trata  de dinheiro. Quando o corpo est saciado o esp¡rito cessa de pensar em  alimentos ou em mulheres. Mas o apetite do dinheiro, a necessidade de o  possuir,  de ordem mais ou menos exclusivamente mental. Não h

nenhuma satisfaão filsica poss¡vel.  o que explicar os excessos e as 

303# 

perversões do instinto de aquisião. Nosso corpo obriga, por assim dizer,  o instinto sexual a se conduzir normalmente.  preciso que as perversões  sej . am muito violentas para que possam dominar as tendncias  fisiol¢gicas normais. Mas, no que diz respeito ao instinto de aquisião,  não h corpo regulador, nem uma massa de carne s¢lida que sejapreciso  desviar da trilha do h bito fisioi¢gico. A menor tendncia ...perversão se  torna imediatamente manifesta. Mas talvez a palavra '~perversão "não te-  nha sentido neste contexto. Porque perversão implica a existncia duma

  norma que lhe sirva de ponto de partida. Qual  a norma do instinto de  aquisião? Pode-se entrever vagamente algum justo meio-trmo; mas  estar a¡, defato, a verdadeira norma estat¡stica? Quanto a mim, imagino  que sou antes um "subaquisitivo ",* menos interessado que o comum dos  mortais no dinheiro e nas posses em geral. Illidge diria que isto se deve  inteiramente ao fato de eu ter sido educado numa atmosfera de largas  facilidades pecun i rias. Isso pode ser verdade, em parte. Mas não inteira-  mente, na minha opinião. Consideremos o grande n£mero de pessoas que  nasceram ricas e que vivem £nicamente preocupadas com ganhar dinhei-  ro. Não, minha "subaquisitividade " heredit ria não menos que adquiri-  da. Seja comof"r, não tenho muito intersse pela posse e não sinto senão  pouca simpatia pelos que se interessam por ela; não os compreendo  tambm. Nenhumapersonagem cuja dominante seja o instinto de adquirir

  figura em qualquer dos meus romances...  um defeito; porque os aqui-  sitivos são mantistamente muito comuns na vida real. Mas  duvidoso  que eu possa tornar uma tal personagem interessante, j que eu mesmo  não me interesso pela paixão aquisitiva. Baizacpodia; as circunstncias e  a hereditariedade o tinham feiti apaixonadamente interessado pelo  dinheiro. Mas, quando achamos um assunto aborrecivel, a nossa tendn-  cia  tornarmo-nos tambm aborreciveis tratando dle. . . ' 

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  CAPITULO XX1I1 

A escrivaninha f 'cava diante da janela. Embaciado pelo ar enfumaado  de Sheffield, um raio de sol amarelo e de aparncia viscosa iluminava  uma quina da mesa e um ngulo do tapte vermelho estampado de fl"res.  Everard Webley estava escrevendo uma carta. Sua pena corria sâbre o  papel. Tudo o que le fazia era feito com rapidez e com decisão. 

Winha muito querida Elinor ", escreveu le. 

"De profundis clamavi, das profundezas dste quarto de hotel repulsi-  vo, e das profundezas ainda mais profundas dste giro pol¡tico do Norte,  eu grito por ti. " (Òle escrevia os II mai£sculos do pronome da primeira  pessoa como grandes colunas: um trao direito e forte e duas lhilias trans-  versais decisivas, uma no alto, outra na base. Os cortes dos ti eram firmes  e denotavam inflexibilidade.) "Mas tu não escutas, decerto. Sempre senti  muita simpatia pelos selvagens que dão uma boa sova em seus deuses  quando stes não respondem ...s suas oraões ou não atendem aos seus  sacrricios. A Inglaterra espera que cada um de seus deuses, neste dia,  cumpra o seu dever. Se não cumprirem -- muito bem, tanto pior para# 

les; hão de tomar o g"sto do rebenque. A adoraão moderna dum  Inef vel remoto, ci<ios gestos efeitos não criticamos, me parece muito  poucosatWat¢ria. Para quefazer um contrato com algum que o poder

violar ... vontade e contra quem não temos nenhum recurso? As mulheres  seguiram o mesmo caminho que os deuses. Tm todos os direitos. E não  nos permitido obrig -las a cumprir o seu deverpara com os seus adora-  dores ou de representar seu papel no contrato natural entre os sexos.  Escrevo, imploro. Mas, como um deus de n"vo estilo das filosofias  modernas e das teologias de idias largas, tu não escutas. E não se tem o  direito de exercer repres lias:  de mau tom bater no deus negligente. Isso  não se faz. Apesar de tudo, eu te previno: um dstes dias vou exper¡-  mentar os bons mtodos antigos. Farei o meu pequeno Rapto das Sabinas

  e quero ver então ondeficar essa tua superioridade inef vel e remota.  Como eu te detesto de verdade por me obrigares a te amar tanto! E uma  injustia tão atroz - receber de mim tanta paixão e desejo e não me dar  nada em troca! E não estares aqui para receber o castigo que mereces!  Tenho de me vingar nos pat~/s que perturbam os meus com¡cios. Tive  uma batalha terr¡vel a noite passada. Urros, assobios; cantaram em c"ro  a Internacional. Mas eu os subjuguei. Literalmente, num dado momento.  305# 

Fui obrigado a deixarprto o "lho dum dos cabeas. Pobre diabo! Òlepa-

  gou apenas pelas tuasfaltas, Elinor. Foi o teu bode expiat¢rio. Porquefoi  contigo, na verdade, que eu lutei. Se nãof"sse por ti eu não teria sido tão  violento... E sem ¡vida não teria vencido. De sorte que, por vias indi-  retas,  a li que devo a minha vit¢ria. Pela qual te sou devidamente grato.  Mas doutra vez não haver comunistas contra quem descarregar a minha  raiva. A pr¢xima batalha ser contra o inimigo verdadeiro - contra ti.  Assim, tem cautela, minha querida. Procurarei evitar os tapa-olhos;  mas no calor do momento, a gente nunca sabe... Mas sriamente, Eli-  nor, sriamente: por que s tãofria, tão long¡nqua, tão morta? Por que te  proteges contra mim? Penso em ti tão constantemente, com tanta

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  insistncia! A tua imagem me est sempre presente no pensamento. Jaz  escondida, latente, nas coisas e nos lugares mais inverossimeis, pronta,ao  comando de qualquer associaão de idiasfortuita, a saltar do recanto em  que se mantm de emboscada. Ela me persegue, como uma conscincia  criminosa. Se eu ... 

Bateram ... porta. Hugo Brockie entrou. Everard olhou para o rel¢gio e  depois para Hugo. A expressão de seu rosto era ameaadora.  -- Por que vem tão atrasado? - perguntou, com uma voz cuja calma  mesma era formid...velmente inquietadora.  Hugo corou.  - Não dei pela hora. . . - E dizia a pura verdade. Tinha jantado  com os Upwich, a 30 quil"metros dali. Polly Logan estava passando  alguns dias em casa dles. Depois do jantar o velho Upwich e os outros  tinham sa¡do para uma partida de g¢ife no campo particular que le tinha  arranjado no parque. Polly, por um acaso providencial, não jogava g"lfe.  Hugo a tinha levado a passear pelo bosque, ao longo do rio. Como pode-  ria le ter tido conscincia da hora? - Sinto muito. . . - acrescentou  Hugo.  - Espero que sinta. . . - disse Everard, e a violncia latente irrom-  peu de sob a caim . a. - Como! Eu lhe digo que volte ...s 5 horas e j são  6 e um quarto! Enquanto voc estiver comigo, a servio dos Inglses  Livres, estar debaixo de disciplina militar. Minhas ordens devem ser

  executadas. Compreendeu?  Flugo, timidamente, meneou a cabea:  - Sirr..  - E agora v ver se todos os preparativos para o com¡cio desta noite  foram convenientemente feitos. E tome nota: que isto não acontea de  n"vo! Na pr¢xima vez voc não se livrar tão f...cilmente ...  Hugo tornou a fechar a porta atr s de si. Tâda a c¢lera desapareceu  imediatamente do rosto de Everard. Òle tinha por mtodo fazer mdo aos  seus subordinados de quando em quando. A c¢lera, sabia-o por experin-  c¡a,  uma arma excelente, desde que não nos deixemos dominar por ela. 

306 

Era o seu caso. Pobre Hugo! Webley sorriu pensando no rapaz, e conti-  nuou com a carta. Dez minutos mais tarde Hugo tornou a aparecer para  anunciar que o jantar estava pronto. A reunião fora marcada para as 8;  tinham de jantar muito cedo.# 

- Mas isso  tão tolo, tâdas estas disputas pol¡ticas - disse Ram-  pion, com a voz esganiada pela exasperaão -, tão supinamente tolo!

  Bolcheviques e fascistas, radicais e conservadores, comunistas e Inglses  Livres - por que diabos estão-se batendo les? Eu lhes digo. Estão lutan-  do para decidir se n¢s vamos para o inferno pelo trem expresso comunis-  ta, ou pelo auto de corrida dos capitalistas, ou pelo ânibus dos individua-  listas ou pelo bonde coletivista que rola s"bre os trilhos do contr"le do  Estado. O destino  o mesmo em qualquer dos casos. Todos les vão  direito ao inferno, precipitam-se todos no mesmo impasse psicol¢gico e  no colapso social que resulta do colapso psicol¢gico. O £nico ponto em  que les diferem  ste: "Como chegarmos at l ?"  simplesmente  imposs¡vel a um homem de bom senso interessar-se por semelhantes

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  disputas. Para o homem sensato a coisa importante  o inferno, e não o  meio de transporte que deve ser empregado para chegar at l . A questão  que se depara ao homem sensato : "Queremos ou não queremos ir para  o inferno?" E a resposta : "Não, não queremos." E se a resposta  esta,  .então sse homem não dar ouvidos a pol¡ticos de espcie alguma. Por-  que les, no fim de contas, nos querem levar para o abismo. Todos, sem  exceão. Lnin e Mussolini, MacDonald e Baldwin. Estão todos igual-  mente ansiosos por nos levarem para o abismo, e discutem apenas a res-  peito dos meios de nos carregarem ...  - Alguns dles nos poderão levar um pouco mais devagar do que os  outros - sugeriu Philip.  Rampion deu de ombros.  - Mas tão pouco mais devagar que não faria nenhuma diferena  apreci vel. Òles acreditam todos no industrialismo sob uma forma ou  outra, acreditam todos na americanizaão. Pense no ideal bolchevista.   a Amrica fortemente exagerada. A Amrica com servios governa-  mentais em lugar de trustes, e funcion rios em lugar de ricos. E depois o  ideal do resto da Europa!  a mesma coisa, apenas ali os ricos são  conservados. Dum lado, o maquinismo e os funcion rios. Do outro, o  maquinismo e Alfred Mond ou Henry Ford. O maquinismo para nos le-  var ... perdião; os ricos ou os funcion rios, para dirigi-lo. Pensas que al-  gum dsses grupos poder dirigir mais prudentemente do que os outros?  Talvez tenhas razão. Mas não vejo nada a escolher entre les. Estão todos  igualmente apressados. Em nome da cincia, do progresso e da felicidade

  humana! Amm - e p no acelerador! 307

Philip Fez um sinal de assentimento com a cabea.  - E aceleram mesmo! - disse. - A coisa marcha.  o progresso.  Mas, como dizes, marcha prov...velmente na direão do abismo ...  - E o £nico assunto que os reformadores acham para comentar  a  forma, a c"r e o mecanismo de direão do ve¡culo. Òsses imbecis não vm  então que  o rumo tomado o que importa, que estamos absolutamente no

  caminho errado e que seria preciso fazer meia volta, de preferncia a p,  sem essa maquina fedorenta?  - Talvez tenhas razão - disse Philip. - Mas o mal  que, dado o  nosso mundo tal como existe, não se pode fazer meia volta, não se pode  parar a m quina. Não  poss¡vel isso, a menos que estejamos dispostos a  exterminar mais ou menos a metade da raa humana. O industrialismo  perrpitiu duplicar a populaão mundial em cem anos. Se quisermos  desembaraar-nos do industrialismo,  preciso voltar ao ponto de partida.  Quer isto dizer que  necess rio matar a metade do n£mero existente de  homens e de mulheres. O que, sub specie aeternitatis, ou simplesmente  historiae~, seria talvez uma excelente coisa. Mas dificilmente seria uma  questão de pol¡tica pr tica.  - Por enquanto não  -- concordou Rampion. - Mas a pr¢xima

  guerra e a pr¢xima revoluão hão de fazer que a questão se torne bastante  pr tica.  -  poss¡vel. Mas não devemos contar com as guerras e as  revoluões. Porque, se contamos com elas, elas hão de vir na certa.  -- Virão, contemos ou não com elas. O progresso industrial significa  superproduão, significa a necessidade de conseguir novos mercados,  significa a rivalidade internacional, significa a guerra. E o progresso  mecnico significa mais especializaão e padronizaão do trabalho, signi-  fica divertimentos despersonalizados, feitos para todo mundo, significa  uma queda da iniciativa e das faculdades criadoras, significa mais

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  intelectual ismo, e uma atrofia progressiva de todos os elementos vitaise  fundamentais da natureza humana, significa mais tdio e agitaão, signi-  fica enfim uma espcie de loucura individual que não pode ter outro resul-  tado senão a revoluão social. Contemos ou não com elas, as revoluões  e as guerras são inevit veis, se permitirmos que as coisas continuem o seu  curso atual.  De sorte que o problema se resolver por si mesmo ...  Mas somente por sua pr¢pria destruião. Quando a humanidade  f"r destru¡da, est claro que não haver mais problema. Mas isso me  parece uma triste soluão ... Acredito que possa existir outra, mesmo no  quadro do sistema atual. Uma soluão provis¢ria, enquanto o sistema  f¢sse sendo modificado na direão duma soluão permanente. A raiz do  mal est na psicologia individual; de maneira que  por a¡, pela psicologia 

308 

* ---Sobo aspecto da eternidade ", ou simplesmente Va hist¢ria " (N. do E) 

i #

 

individual, que seria preciso comear. O primeiro passo seria fazer que as  pessoas vivessem duma maneira dupla, em dois compartimentos. Num  dos compartimentos, como trabalhadores industrializados, no outro, co-  mo sres humanos. Como idiotas, como m quinas, durante oito horas  dentro das 24; e como verdadeiros sres humanos o resto do tempo.  - Elas j não fazem isso?  - Est claro que não. Os homens vivem como idiotas, como m qui-  nas, todo o tempo, tanto nas horas de trabalho como nas horas de folga.  Corno idiotas e como m quinas, mas imaginando que vivem como sres  humanos civilizados, mesmo como deuses. O primeiro passo a dar  faz-

  los reconhecer que les são idiotas e m quinas durante as horas de traba-  lho. "Sendo a nossa civilizaão o que ", eis o que ser preciso dizer-lhes,  "iocs devem passar oito horas das 24 como uma espcie de interme-  di rio entre um imbecil e uma m quina de coser.  muito desagrad vel,  eu sei.  humilhante,  repugnante. Mas a¡ est ... Vocs tm de fazer is-  so; de outra maneira, t"da a estrutura do mundo se far em pedaos e n¢s  morreremos de fome. Eis por que  preciso que vocs faam sse trabalho  bstamente e mecnicamente; e que passem as horas de lazer como  homens ou como mulheres verdadeiros e completos. Não misturem as  duas vidas; mantenham os compartimentos bem estanques entre elas. O  que importa acima de tudo  a vida autnticamente humana das horas de  folga. O resto não passa de uma necessidade s¢rdida que  preciso satisfa-  zer. E não esqueam nunca que ela  efetivamente s¢rdida e - a não ser

  por permitir que vocs se alimentem e conservem intata a sociedade -  absolutamente sem importncia, sem a menor relaão com a verdadeira  vida humana. Não se deixem enganar pelos patifes cheios de unão que  falam da santidade do trabalho e do servio cristão que os homens de  neg¢cios prestam aos seus semelhantes. Tudo isso são mentiras. O  trabalho de vocs não passa duma tarefa repugnante e desagrad vel, mas  que infelizmente  necess ria por causa da loucura de nossos antepassa-  dos. Òles acumularam uma montanha de lixo, e  preciso que vocs  fiquem a trabalhar dia e noite com suas p s procurando remover o mon-  turo, de mdo que o fedor dle os envenene e mate;  preciso que vocs

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  trabalhem para respirar, maldizendo a mem¢ria daque * les insensatos que  lhes deixaram todo sse trabalho ign¢bil por fazer. Mas não procurem  entregar-se-lhe de coraão, fingindo que sse sujo trabalho mecnico   uma necessidade nobre. Não  verdade; e o £nico resultado que vocs  obterão dizendo isso e crendo nisso ser abaixar a nossa humanidade ao  n¡vel dessa necessidade infecta. Se vocs acreditam nos neg¢cios, como  no servio e na santidade do trabalho, vocs se transformarão simples-  mente em idiotas mecanizados durante 24 horas, das 24 que tem um dia.  Reconheam que  um trabalho infecto, tapem o nariz, dediquem-se a le  durante oito horas e depois concentrem-se em si mesmos para ser, nas ho-  ras de folga, entes humanos verdadeiros. Sres humanos verdadeiros e 

309# 

completos. Não leitores de jornais, nem amadores dejazz, nem man¡acos  da radiof"nia. Os industriais que fornecem ...s massas divertimentos  padronizados e fabricados em srie fazem o poss¡vel para torn -los, nas  horas de lazer, os mesmo imbecis mecnicos que vocs são durante as ho-  ras de trabalho. Mas não permitam isso.  preciso fazerem o esforo  necess rio para serem humanos." Aqui est o que se deve dizer ...s gentes;

  eis a lião que devemos ensinar aos moos.  necess rio convencer t"da  a gente de que t"da essa magn¡fica civilizaão industrial não passa dum  mau cheiro, e de que a vida verdadeira, a que significa alguma coisa, não  pode ser vivida senão fora dela. Ser preciso muito, muito tempo para que  uma vida decente e o cheiro industrial se possam conciliar. Talvez sejam  mesmo inconcili veis.  o que ainda est para se ver... Seja como ror,  por ora  necess rio atacar as imund¡cias de rijo, suportar o cheiro est¢i-  camente, e, nos intervalos, tratar de levar uma vida verdadeiramente  humana.  -  um bom programa. Mas não te vejo ganhando muitos votos com  le nas pr¢ximas eleiões.  - Eis a dificuldade. - Rampion franziu a testa. - Ter¡amos todos  contra n¢s. Porque a £nica coisa a cujo respeito todos estão de ac"rdo -

  conservadores, liberais, socialistas, bolcheviques -  a excelncia  intr¡nseca do fedor industrial e a necessidade de suprimir, pela padroni-  zaão e pela especializaão, todo trao de virilidade ou de feminilidade na  raa humana. E querem que a gente se interesse pela pol¡tica! Ora,  ora. . . - Sacudiu a cabea. - Vamos pensar em coisas mais  agrad veis. Olha, quero mostrar-te ste quadro. - Atravessou o est£dio  e tirou uma tela duma pilha que estava apoiada contra a parede. - Pron-  to - disse, depois que acabou de instalar o quadro num cavalete. Senta-  da no alto dum talude coberto de relva, onde formava o pice da compo-  sião piramidal, uma mulher nua dava o seio a um beb. Embaixo, diante  dela, estava acocorado um homem, as costas nuas voltadas para o espec-  tador; e, ao lado direito, numa posião correspondente, achava-se um  menino. O homem acocorado brincava com um par de cachorrinhos de

  leopardo, que ocupavam o centro do quadro, um pouco mais abaixo dos  ps da mãe sentada. O menino olhava a cena. Atr s da mulher, bem perto  dela, ocupando quase tâda a parte superior do quadro, via-se uma vaca,  com a cabea levemente voltada para um lado, ruminando. A cabea e os  ombros da mulher se destacavam, p lidos, contra o flanco escuro do ani-  mal. 

-  um quadro de que gosto dum modo todo particular - disse  Rampion depois dum pequeno silncio. - As carnes estão bem, não  achas? Tm vio, tm vida. Meu Deus, como o teu sogro sabia pintar

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  maravilhosamente os nus ao ar livre! Espantoso! Ningum os fez melhor  - nem mesmo Renoir. Ah! Se eu tivesse os dons que le tinha! Mas ste  não est mal - continuou Rampion, voltando ao quadro. - Não est

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pr¢priamente mal. E depois, tem outras qualidades. Sinto que consegui  . 1  por ai as relaões vivas das personagens entre si e o resto do mundo ...# 

A vaca, por exemplo. Ela não tem conscincia da cena humana. Mas  sente-se, entretanto, que o animal est em contato feliz com os humanos,  duma maneira leitosa, ruminante, bovina. E os humanos estão em contato  com a vaca. E tambm com os leopardos, mas não do mesmo modo -  duma maneira que corresponde ...quela maneira flina e viva pela qual os  cachorrinhos estão em contato com les. Não h d£vida: gosto dste qua-  dro.  Eu tambm - disse Philip. -  algo a opor ao fedor industrial.  Riu. - Devias fazer, para companheira desta, uma pintura da vida no  mundo civilizado. A mulher de imperme vel, apoiada contra uma gigan-  tesca garrafa de Bovril, e alimentando seu beb com Glaxo. O talude

  coberto de asfalto. O homem, vestindo um traje de 5 guinus, agachado  diante dum pâsto radior"nico, com o qual brinca. E o rapazinho,  raqu¡tico e cheio de espinhas, observando a coisa com intersse.  - E o todo executado ao modo cubista - disse Rampion -, para  dar certeza absoluta de que não havia nle nada de vivo. Nada como a ar-  te moderna para esterilizar as coisas e extirpar-lhes a vida. O cido fenico  não pode competir com ela...# 

CAPiTULO XXIV

  O govrno local dos hindus sob os imperadores da dinastia dos M ti-  rias continuou, semana ap¢s semana, a exigir a presena do Sr. Quarles  no Britisli Museum, pelo menos dois dias inteiros em cada sete.  - Eu não tinha a menor idia - explicava le - de que houvesse  tanto material dispon¡vel.  Enquanto isso, Gladys descobria que se tinha enganado. Os bons  momentos que esperara gozar sob a proteão do Sr. Quarles dão eram  melhores do que os bons momentos que podia desfrutar com "boys" qua-  se tão pobres quanto ela pr¢pria. O Sr. Quarles, parecia, não estava dis-  posto a pagar o luxo de sentir-se superior. Queria ser um grande homem,  mas com pouca despesa. A desculpa que alegava para ir ao restaurante de  segunda ordem e aos lugares baratos no teatro era sempre a necessidade

  de segrdo. Seria desastroso que algum conhecido o encontrasse em  companhia de Gladys; e como as pessoas de seu conhecimento perten-  ciam ao mundo que se faz passear, repleto, de Berkeley at as poltronas  do Gaiety Theatre, o Sr. Quarles e Gladys comiam numa Corner House*  e assistiam aos espet culos do alto da segunda galeria. Tal a explicaão  oficial da qualidade pouqu¡ssimo principesca das festas que proporcio-  nava ... rapariga. A explicaão real não era a necessidade de guardar  segrdo, mas a aversão inata de Sidney a se desfazer do seu dinheiro. Por-  que, embora as grandes somas significassem pouco para le, as pequenas  significavam muito. Quando se tratava de "melhoramentos imobili rios"

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  le de bom grado desembolsava dezenas ou mesmo centenas de milhares  de libras. Mas quando se tratava de pagar 2 ou 3 meias coroas para dar  ... sua amante um lugar melhor no teatro ou uma refeião mais saborosa,  um ramilhete de f16res ou uma caixa de bombons, Sidney Quarles se tor-  nava repentinamente o mais econâmico dos homens. Essa avareza tinha  raizes num certo puritanismo curioso, que coloria suas opiniões a respeito  de quase todos os prazeres e divertimentos (fora os estritamente sexuais).  Jantando com uma empregadinha seluzida na barata obscuridade de uma  bai£ca de Solio, le (com tâda a paixão dum Milton reprovando os filhos  de Belial, com t"da a seriedade dum Wordsworth defendendo a causa du-  ma vida material mais humilde e dum pensamento mais elevado) denun-  ciava os grosseiros gozadores do Carlton, os glutões do Ritz, que, no 

*Cadeia de restaurantes normalmentefrequentados pela pequena burguesia. (N. do E) 

312 

meio das misrias amontoadas de Londres, gastam descuido samente o  sal rio mensal dum oper rio agr¡cola num jantar tte-...-tte*. Dessa  maneira S¡dney dava, ...s suas preferncias parcimoniosas em matria de

  restaurantes e de lugares de teatro, um car ter de alta moral não menos  que de simples medida diplom tica. Seduzidas por um libertino jvelliusco, as amantes do Sr. Quaries ficavam surpreendidas de se verem

  jantando com um profeta liebreu e d¡vertindo-se na companhia de um  disc¡pulo de Catão ou d Calvino.# 

- Quem o ouve falar julgar que voc  um santo! - disse Gladys  com sarcasmo, quando Sidney fez uma pausa para respirar, no meio de  uma de suas diatribes de Comer House contra os pr¢digos e os glutões.  - Voc!

  * risada da rapariga era ferozmente sarc stica.  * Sr. Quarles ficou desconcertado. Estava habituado a ver-se escutado  respeitosamente, como um deus do Olimpo. O tom de voz de Gladys era  grosseiro e revoltado; le não gostava daquilo; o caso o inquietava, mes-  mo. Sidney alou o queixo com dignidade e disparou um tiro de censura  s"bre a cabea dela:  - Não  uma simples questão de personalidades. Realmente  uma  questão de princ¡pios gerais.  - Não consigo ver nenhuma diferena - replicou Gladys. abolindo  de golpe tâdas as pretensões solenes de todos os fil¢sofos e moralistas, de  todos os chefes religiosos, reformadores e fabricantes de Utopias, desdeo

  como dos tempos humanos.  O que, sobretudo, exasperava Gladys era que mesmo no mundo dos  "freges" e dos lugares baratos de teatro o Sr. Quarles não abandonava as  suas pretensões nem as suas maneiras ol¡mpicas. A indignaão dle, uma  noite em que havia uma multidão compacta na escada das segundas gale  rias, foi clamorosa e cheia de sentimento de justia.  - Realmente, isto  um escndalo! - classificou Sidney.  - Quem v pensa que voc tomou o camarote real. . . -- observou  Gladys sarciÖsticamente.  E quando, numa casa de ch , o velho Quarles se queixou de que a fati

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a  de salmão de 1 xelim e 4 pence, a julgar pelo g¢sto, tinha vindo da  Col£mbia Britnica e não da Esc¢cia, Gladys lhe aconselhou que escre-  vesse ao Times a respeito. Òsse achado fez as suas del¡cias, e da¡ por dian-  te ela não cessou de recomendar irânicamente a Sidney que escrevesse ao  Times. Òle se queixava, fil¢sofo nobre e desiludido, da vacuidade dos  pol¡ticos e da trivialidade s¢rdida da vida pol¡tica? Gladys lhe sugeria  que escrevesse ao Times. Se o velho discorria com eloqncia sâbre a  hipocrisia da Senhora Opinião P£blica e s"bre a intolerncia dos inglses,  a rapariga lhe dizia que escrevesse ao Times. Era realmente um escndalo 

Para duas pessoas s¢mente. (N. do E.) 

313# 

que nem Sir Edward Grey nem Lloyd George soubessem falar francs;  outra vez vinha ... baila o Times ... O Sr. Quaries sentiu-se ferido e ultra-  jado. Nunca lhe acontecera coisa semelhante. Na companhia de suas  outras amantes a conscincia de sua superioridade tinha sido uma felici-  dade serena. Elas o haviam venerado e admirado; le se sentira um

  verdadeiro deus. F,, durante os primeiros dias, Gladys dera a impressão de  ser tambm uma adoradora. Mas, tendo vindo para orar, ficara para  zombar ... A felicidade espiritual do Sr. Quaries estava aniquilada. Não  f"sse a satisfaão material que lhe davam as qualidades biol¢gicas de  Gladys, le teria r...pidamente esgotado o assunto do govrno local entre  os M urias e passaria a ficar em casa. Infelizmente a jovem secret ria ti-  nha sido dotada duma dose incomum dos caracteres gerais da espcie.  Como indiv¡duo, Gladys, com o seu sarcasmo, magoava e repelia Sidney  Quarles; mas essa repulsa individual era anulada pela atraão que exercia  no velho o que nela havia de especificamente feminino, o que ela tinha de  comum com tâda a sua espcie, todo o seu sexo. A despeito das zomba-  rias da amante, o Sr. Quarles voltava a Londres. Os reclamos dos hindus

  tornavam-se cada vez mais imperiosos.  Percebendo o seu poder, Gladys comeou a recusar o que le desejava.  Talvez fosse poss¡vel, por meio de um pouco de chantagem, for -lo a es-  sa generosidade que não estava na sua natureza revelar espontneamente.  Ao regressar duma noitada muito pouco onerosa, numa Corner House e  num cinema, ela repeliu Sidney com c¢lera quando, no t xi, le tentou as  car¡cias habituais.  - Não me pode deixar em paz? - perguntou Gladys scamente. E,  ao cabo dum momento: - Diga ao chofer que v primeiro ... minha casa,  que eu quero descer.  - Mas, minha pequena! - protestou o Sr. Quaries.  Não tinha ela prometido entrar com le?  - Mudei de idia. Diga ao chofer.

  O pensamento de que, ao cabo de trs dias de antecipaões ardentes,  le seria obrigado a passar uma noite solit ria, foi-lhe uma tortura.  - Mas Gladys, minha querida...  - Diga ao chofer. . .  - Mas, realmente, isto  cruel demais; s tão, tão m ...  - Pois então escreva uma carta ao Times - foi a £nica resposta da  rapariga. - Eu mesma falo ao chofer.  Depois duma noite de ins"nia e de sofrimento, o Sr. Quarles saiu, logo  que as lojas se abriram, e comprou um rel¢gio de pulso de 14 guinus.

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 Era um reclame de dentifr¡cio. Mas como a gravura representava um

  par que danava o fox-trote, exibindo-se m£tuamente os dentes num sorri- 

314 

so amoroso e nacarado, e como a palavra comeasse com um d, o peque-  no Phil, sem a menor hesitaão, leu: - Dana.  O pai desatou a rir:  - Grande embusteiro! E eu que pensei que sabias ler!  - Mas les estão danando - protestou o menino.  - Sim, mas não  isso que est escrito. L de n"vo.# 

Mostrou-lhe a palavra com o dedo estendido.  O pequeno Phil relanceou de n"vo a palavra imposs¡vel e olhou longa-  mente para a imagem. Mas o par de danadores não lhe deu a menor indi-  caão.  - D¡namo - disse le por fim, em desespro de causa. Foi a £nica  outra palavra comeada por d que lhe veio ao esp¡rito naquele momento.  - Por que não "dinossauro", duma vez? Ou "dolicocfalo"? Ou  "dicotiled"neo"? - O pequeno Phil ficou profundamente ofendido; não

  podia suportar que zombassem dle. - Vamos, l de n"vo. E desta vez  procura ler de verdade. Não adivinhes.  O menino virou a cabea:  - Isso  enjoado. . . - Sua vaidade o impedia de tentar o que não  podia realizar com xito pleno. A Srta. Fulkes, que tinha por princ¡pio  ensinar por persuasão racional e com o consentimento raciocinado do  aluno (ela era ainda muito jovem), lhe havia feito preleões s¢bre a sua  pr¢pria psicologia, na esperana de que, uma vez tendo conscincia de  seus defeitos, Phil pudesse corrigi-los. "Tens um orgulho da pior espcie",  dissera-lhe ela. "Não tens vergonha de ser um burro e de não saber as coi-  sas. Mas tens vergonha de te enganares. Preferes não fazer uma coisa a  faz-la ...s avessas. Isso  um rro muito grande." O pequeno Phil sacudira  a cabea num sinal de assentimento e dissera: "Sim, Srta. Fulkes", da

  maneira mais racional e compreensiva que se podia imaginar. Mas conti-  nuava preferindo não fazer as coisas a faz-las com dificuldade e errado.  - Isso  enjoado. . . - repetiu le. - Mas tu queres que eu faa um  desenho? - prop"s, voltando-se de n"vo para o pai com um sorriso cati-  vante.  Estava sempre pronto a desenhar; desenhava bem.  - Não, obrigado. Quero que leias.  - Mas isso  enjoado. . .  - Não importa.  preciso que experimentes.  - Mas eu não quero experimentar.  - Mas eu  que quero. Experimenta.  O pequeno desatou a chorar. As l grimas, le o sabia, eram uma arma  irresist¡vel. E efetivamente, elas demonstraram uma vez mais o seu poder.

  Elinor, que se achava sentada, com um livro entre as mãos, na outra  extremidade do compartimento, ergueu os olhos.  - Não o faas chorar - exclamou ela. - Faz-lhe tanto mal ...  Philip deu de ombros: 

315# 

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  - Se achas que essa  a maneira de educar uma criana. . . - retru-  cou com um amargor que a ocasião não justificava, um amargor acurriu  lado pouco a pouco no curso das £ltimas semanas de silncio e de hostili-  dade remota, de introspec...o e de censuras in£teis a si mesmo, um amar-  gor que achava agora uma ocasião para se exprimir, embora fora de  prop¢sito.  - Não acho coisa alguma - disse Elinor com uma voz fria e dura.  Sei apenas que não quero que le chore. - O pequeno Phil redobrou  o chro. A mãe chamou-o e sentou-o s"bre seus joelhos.  - Mas, j que le tem a infelicidade de ser filho £nico, seria  necess rio mesmo fazer um esforo para não mim -lo tanto ...  Elinor comprimiu a face contra os cabelos do filho:  - J que le  filho £nico, não vejo por que não possa ser tratado co-  mo tal.  - s um caso perdido. J  tempo de criarmos ju¡zo, para que o rapaz  tenha uma oportunidade de ser educado racionalmente.  - E quem se ocupar com a sua educaão racional? Tu? - Elinor  riu sarc...sticamerite. - Ao cabo de oito dias estarias tão enfarado que te  haverias de suicidar ou de tomar o primeiro avião para Paris, voltando s¢  depois de seis meses!  - Papai malvado! - fez o pequeno Phil.  Philip se sentiu ofendido, tanto mais que, no ¡ntimo, sabia que a mulher  tinha dito a verdade. O ideal de um interior r£stico, cheio de pequenos

  deveres e de contatos humanos banais, era dsses que, para le, chegavam  ...s raias do absurdo. Embora a idia de zelar pela educaão do menino  fâsse interessante, Philip sabia que a pr tica seria intoler¡lvelmente abor-  recida. Relembrou as tentativas espasm¢dicas de educaão que seu pai  empreendera. Com le aconteceria o mesmo. E era precisamente por essa  razão que Elinor não devia ter-lhe dito aquilo.  - Não sou tão infantilmente, tão absolutamente leviano como pare-  ces imaginar - retrucou Philip, com dignidade e com uma c¢lera conti-  da. 

- Ao contr rio, tu s adulto e srio demais. Serias incapaz de te ocu-  pares com uma criana, porque não s bastante criana. Tu te pareces  com uma dessas personagens tão terrivelmente adultas do Matusalm de

  Bernard Shaw.  - Papai malvado!---repetia o pequeno Phil duma maneira exaspe-  rante, como um papagaio cujo repert¢rio se limitasse a uma £nica frase.  O primeiro impulso de Philip foi de arrebatar o filho dos braos da  mãe, dar~lhe umas palmadas pela impertinncia, p"-lo para fora da sala,  e depois voltar-se violentamente para Elinor e "ajustar contas" com cIa.  Mas o h bito de autodom¡nio que tem todo homem bem-educado e seu  horror ...s "cenas" fizeram que le conservasse a calma. Em lugar de  abandonar-se a uma sã explosão, fez um esfâro de vontade e se fechou 

316 

em si mesmo mais estreitamente do que nunca. Conservapdo a sua

  dignidade e seu ressentimento inexprimido, Philip ergueu-se e saiu para o  jardim pela porta envidraada. Elinor viu-o partir. Seu primeiro impulso# 

foi de correr atr s dle, tomar-lhe da mão e fazer as pazes. Mas conteve  se tambm. Philip se foi, manquejando, e sumiu-se. O menino continuava  a choramingar. Elinor sacud¡u-o um pouco.  - P ra, Phil - disse ela quase com raiva. - Agora chega. P ra j e

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 j !

 Os dois mdicos examinavam algo que, para o "lho inexperiente,"teria

  podido passar pela fotografia dum tufão no g"lfo de Sião, duma explosão  de fumaa negra em meio de nuvens, ou simplesmente duma mancha de  tinta. 

Est muito claro - disse o jovem radi¢grafo. - Vejam. - Mos-  trou com o dedo a nuvem de fumaa. - H , no piloro, uma neoformaão  perfeitamente vis¡vel. - Lanou ao seu eminente colega um olhar cheio  duma espcie de deferncia interrogativa.  Sir Herbert sacudiu a cabea num sinal de aprovaão.  - Bem vis¡vel - repetiu le. Seu tom era o dum or culo; o que le  dizia, sentia-se, era sempre e inevit...velmente verdadeiro.  - Não podia mesmo ser muito grande. Pelo menos com os sintomas  registrados at agora. Não houve ainda v"mitos.  - Não houve, vâmitos? - exclamou o radi¢grafo, dando mostras de  espanto e dum intersse talvez excessivo. - Isso explica a pequenez ...  - A obstruão  apenas leve.  - Seria sem d£vida interessante abrir o abd"men para permitir a  exploraão ...  Sir Herbert fez uma careta leve e sacudiu a cabea com um ar de d£vi-  da:

  - Temos de pensar na idade do paciente.  - Perfeitamente - apressou-se em concordar com o radi¢grafo.  - Òle  mais velho do que parece.  - Sim, sim.  certo que le não mostra a idade que tem.  - Bem, preciso retirar-me - disse Sir Herbert.  O jovem radi¢grafo se precipitou para a porta, apresentou-lhe o chapu  e as luvas, escoltou-o pessoalmente at o Daimier que o esperava. Vol-  tando ... sua mesa, de nvo correu os olhos pela radiografia manchada de  -negro e nublada de cinza.  "Um clich verdadeiramente not vel e feliz", disse le de si para si,  com satisfaão; depois, voltando ... radiografia, escreveu nas costas algu-  mas palavras a l pis.  "J. Bidlake, Esq. Est"mago, depois da ingestão de b rio. Neoplasma no

  317# 

piloro, pequeno mas muito claro. Radiografado. . - " Consultou o  calend rio, escreveu a data na radiografia e arqu¡vou-a- 

O velho criado anunciou a visita e se retirou, fechando atr s de sia  porta do est£dio.  - Então, John? - perguntou Lady Edward, avanando atravs do

  compartimento. - Como vais? Disseram-me que estavas adoentado.  Espero que não seja nada de srio ...  John Bidlake não se ergueu nem mesmo para receb~la. Das profun-  dezas da poltrona na qual tinha passado o dia a meditar com terror sâbie  temas de molstias e de morte, estendeu uma das mãos ... amiga.  - Mas, meu pobre John! - exclamou Lady Edward, sentando-se ao  lado dle. - Tens um ar de cansao e abandono. Que  que h ?  John Bidlake sacudiu a cabea:  - S¢ Deus sabe! - Òle tinha adivinhado, estava claro, partindo das  palavras vagamente profissionais de Sir Herbert a respeito duma "ligeira

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  obstruão nas vizinhanas do piloro"; le sabia de que se tratava... Seu  filho Maur¡cio não tinha morrido da mesma doena, havia cinco anos, na  Calif¢rnia? Òle sabia; mas não queria dar voz ao seu conhecimento. Uma  vez exprimida, a mais terr¡vel das coisas se torna mais espantosa ainda,  mais irrevog vel. De resto, não devemos nunca formular nosso conheci-  mento dum mal que est por vir; porque então o destino ter , de certo mo-  do, um padrão de ac¢rdo com o qual poder dar forma aos aconteci-  mentos. H sempre uma espcie de probabilidade long¡nqua de não  acontecer a desgraa, quando não damos expressão aos nossos maus  press gios. Os mistrios da religião pessoal de John Bidlake eram tão  supinamente obscuros e paradoxais como qualquer dos que se podem  encontrar nas ortodoxias "te¢latras" que le gostava de ridicularizar.  - Mas,não procuraste um mdico? - O tom da voz de Lady Edward  era acusad or; ela conhecia o estranho preconceito de seu amigo contra os  mdicos.  - Est claro que procurei - respondeu le com irritaão, sabendo-a  a par de tudo. - Tomas-me por um imbecil? Mas les são todos uns  charlatães. Procurei um que tem um t¡tulo de Sir. Mas pensas que le sabe  alguma coisa mais do que os outros? Limitou-se a me dizer, no seu jargão  de curandeiro, o que eu lhe tinha dito em palavras claras: que eu tenho  qualquer coisa estragada c dentro. Patifão imbecil! - Seu ¢dio contra  Sir Herbert e contra todos os mdicos o havia mornentneamente reani-  mado.  __ Mas le deve ter -te dito alguma coisa - insistiu Lady Edward.

  Estas palavras lhe trouxeram ao pensamento aquela "ligeira obstruão  nas vizinhanas do piloro", a molstia, a dor e a f£nebre aproximaão da 

318 

morte. O pintor recaiu no seu antigo acabrunhamento, no seu velho ter-  ror. 

Nada de importante - murmurou le, voltando o rosto.  Então talvez não seja nada de verdadeiramente srio - sugeriu  Lady Edward para reconf"rt -lo.# 

- Não, não! - Aqule otimismo despreocupado fez s¢bre o velho o  efeito duma inj£ria. Òle não queria entregar-se ao destino formulando a  horr¡vel verdade. Mas ao mesmo tempo queria que o tratassem como se a  verdade estivesse expl¡cita. Que o tratassem com uma comiseraão grave.   srio.  muito srio - insistiu.  Pensou na morte; na morte, sob a forma duma vida nova, que crescia  e crescia em seu ventre, como um embrião num £tero. A £nica coisa fres-  ca e ativa no seu velho corpo, a £nica coisa viva, duma maneira exube-  rante e crescente, era a morte.  Em târno, em t"das as paredes do est£dio, estavam penduradas notas  fragment rias da vida de John Bidiake. Duas pequenas paisagens execu-

  tadas nos jardins do P¡ncio, nos dias em que Roma tinha cessado recente-  mente de pertencer ao papa - uma vista de campan rios e de c£pulas  percebidas atravs da chanfradura de* carvalhos verdes, um par de  est tuas silhuetadas contra o cu. Ao lado, uma cara de s tiro, chata e  barbada - o retrato de Verlaine. Uma cena de rua, em Londres, cheia de  hansom-cabs*, de chapus altos e de saias arrepanhadas. Trs esboos da  Mary Betterton f¢rnida e alegremente colorida de havia trinta anos. E  Jenny, o mais magn¡fico dos modelos, deitada nua sâbre uma preguiosa,  com umajanela atr s de si, nuvens brancas ao longe, um vaso de rosas no  peitoril da janela e um grande gato persa azul estendido, como um leão

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  her ldico, s"bre o ventre branco da rapariga, cochilando, as patas entre  os seios redondos e rasos.  Lady Edward mudou vivamente de assunto:  - Lucy acaba de partir para Paris, de avião -- comeou ela. 

1 * Pequena carruagem de duas rodas, em que a boliafica atr s da capota.(N. do E) 

319# 

CAPITULO XXV 

"Quai Voltaire. 

"O ar estava agitado. Eu tinha esquecido os Quies para os ouvidos e  me vi no meio dum verdadeiro inferno de ru¡do durante duas horas e  meia. Sinto-me muilofatigada e,eni conseqncia disto, meu suave Wal-  ter, um pouco sentimental e sola sola*. Por que não est s aqui para me  consolar da insuport vel tristeza desta magn¡fica noite quefaz l fora de  minhajanela? O Louvre, o rio, o cu dum verde de cristal, a luz do sol,  e estas sombras veludosas - tudo isto me d desejos de explodir em

  l grimas. E não  s¢mente a paisagem. Meus braos nas mangas de meu  roupão, minha mão enquanto escrevo, at os dedos nus de meus ps, ago-  ra que deixo cair meus chinelos -  terrivel, terr¡vel. E quanto a meu ros-  to no espelho, a meus ombros, ...s rosas alaranjadas, aos peixinhos da  mesma c"r,....s cortinas de Dufy e a todo o resto - sim, todo, porque tudo   igualmente belo e extraordin rio, mesmo as coisas opacas efeias -, tu-  do isso  demais para se suportar.  demais. Não posso, e, o que  mais,  não hei de suportar... Intervalo de cinco minutos.  porque telefonei a  Ren Tallemant para le vir tomar um coquetel e me levar a alguma parte  onde a gente se divirta, malgr** minha dor de cabea. Recuso simples-  mente me deixar levar pelo mundo exterior. Conheces Ren? Realmente---   um homenzinho surpreendente. Mas eu preferia quef"sses tu, apesar de

  tudo.  hora de eu ir p"r alguma roupa. · toi*** 11LUCY. 11

 "Quai Voltaire.

 "Twa carta estava cansativa. Que choramingas 1 E não  lisonjeiro ver-

  se a gente comparada a UM veneno que se injUtra no sangue.  como se  nos chamassem 'dor de est"mago'. Se não podes escrever duma maneira  mais sensata, não escrevas, então. Quant ... moi, je m'amuse. Pas folle-  ment****. Mas suficientemente, suficientemente. Teatros; em sua maioria,  maus; mas gosto dles; sou ainda bastante pueril para me sentir envolvida  nos enredos imbecis. E compro vestidos; que arrebatamentos 1 Eu simples-

  * Expressão italiana que signffica "extremamente s¢ ". (N. do E.)  **Apesar de. (N. do E.)  Tua. (N. do E.)  Quanto a mim, eu me divirto. Não loucamente. (N. do E) 

mente me adorei nos espelhos de Lanvin. Olhar quadros, por outro lado,   um esporte muito caro. Mas a dana não. Haveria algum sentido na vi-  da, se ela f"sse sempre semelhante a uma dana com um profissional.  Mas não . E, sef"sse, a gente não teria talvez desejo mais vivo que o de

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  caminhar. · noite, arrasto-me pelos cafs de Moniparnasse, atravs das  hordas de americanos, de polacos, de estonianos, de romenos, definlande-  ses, de letões, de lapões, de vnedos, etc., que todos (Deus nos acuda!) são  artistas. Ser preciso fundar uma liga para a supressão da arte? Parisfaz  que eu deseje isso ardentemente. Eu quisera tambm encontrar um pouco# 

mais de heterossexuais, para variar. Não me agradam, parafalar a verda-  de, ni les tapettes ni les gousses*. E, desde que Proust e Gide os puseram  em moda, não se v outra coisa nesta cidade cansativa. Tâda a minha  respeitabilidade inglsa irrompe!... 

"Tua L. " 

"Quai Voltaire. 

"Desta vez a tua cartafoi muito melhor. (Os £nicos versos que me des-  te, e assim mesmo Por acidente. Não importa: não são maus.) Se ao me-  nos t"da a gente quisesse convencer-se de que ser infeliz ou feliz a  prop¢sito do amor  sobretudo uma questão de moda! Ser poticamente  desgraado  uma moda velha - e, de resto, as rimas não ajusti)licam em

  ingls. Cuore-dolore-amore: em italiano, não h fugir... Nem em ale-  mão: o Herz deve sentir Schmerz e o Liebe est inevit...velmente cheio de  Triebe. Mas em ingls, não. Não h dor associada aos loves inglses; s¢  gloves e turtle-doves. E as £nicas coisas que, pelas leis da potica, podem  ir direito aos hearts dos inglses são as tarts e as amorous arts. E, assegu-  ro-te, um homem est muito mais bem ocupado quando pensa nessas coi-  sas do que quandofica a dizer o quanto se sente desamparado, ciumento,  1 . ncompreendido e mais as asneiras restantes. Eu quisera que sse idiota  do Ren pudesse compreender isto. Mas, infelizmente, coeur rima com  douleur**, e le francs. O rapaz se est tornando quase tão aborrecido  como tu, meu pobre Walter. Mas espero que agora estejas convertido.  Gosto de ti. 

"L. 11 "Quai Voltaire.

 Em giriafrancesa. "nem os pederastas nem as lsbicas " (N. do E,)

  Cuore: coraão; dolore: dor; amore: amor; Herz: coraão; Schmerz: dor; Lieb: amor;  Triebe: impulsos; loves: am"res; gloves: luvas; turfic-doves: pombas-r"las; hearts:  coraões; tarts: mundanas; amorous arts: artes amorosas; cocur: coraão; doulcur dor. (N.  do E.) 

321# 

"Estou resfriada e cheia dum intenso aborrecimento, aliviado apenas  momentneamente pela tua carta. Parafalar a verdade, Paris  terrivel-  mente mon¢tono. Tenho vontade de tomar um avião e de me ir embora

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  para alguma parte, mas não sei onde. Eileen veio ver-me hoje. Quer dei-  xar Tim, porque ste faz questão de que ela se deite nua na cama,  enquanto le prende fogo nos jornais por cima dela e deixa-lhe cair as  cinzas quentes s"bre o corpo. Pobre Tim! Não me parece gentil priv -lo  de seus pequenos prazeres inocentes! Mas Eileen anda nervosa ... idia de  poderficar tisnada... FicouJériosa comigo porque eu ri e não demons-  trei nenhuma simpatiapor ela. Tomei a coisa como brincadeira. E  brin-  cadeira mesmo. Uma brincadeira muito leve. Porque, como a rainha, não  achamos graa. A h 1 Como eu te detesto por não estares aqui para me  distrair! Pode-se perdoar tudo, menos a ausncia. ¢ Walter  imperdo...velmente ausente, adeus 1 Eu tenho envie* de ti esta noite, detuas  mãos, de tua b"ca... E tu? Lembras-te? 

"L. 11 

"Quai Voltaire. 

---Desorte que Philip Quarles pretende instalar-se no campo e tornar-se  mistura da Sra. Gaskell e de Knut Hamsun. Bem, bem... Mas  bom  que ainda haja gente capaz de ter ilusões. Em todo caso, le não poder 1  aborrecer-se mais.na sua aldeia do que eu aqui. A quanta coisa mesqui-  nha a gente est sujeita! A noitepassadafui com Tim e Eileen, que parece

  reconciliada com as demonstraões pirotcnicas, a um dsses lugares em  que a gente paga 100francos para ter o privilgio de assistir, como espec-  tador, a orgias (põe-se uma m scara -  a £nica coisa divertida), e,  querendo, participar delas. Uma iluminaão reduzida - religiosa; peque-  nos cub¡culos, divãs; e muito disso a que osfranceses chamam "amour",  passando-se numa grande promiscuidade. Esquisito e grotesco, sim -  mas terrivelmente aborrecido e depois tudo tão ... tão "mdico"! Um  misto de n£mero representado por clowns** muito est£pidos e de anfitea-  tro de dissecaão. Tim e Eileen queriam ficar. Eu lhes disse que preferia  ir visitar o necrotrio e deixei-os l . Espero que se tenham divertido. Mas  que coisa cacte, que coisa desesperadamente, irremedi...velmenie cacte!  Sempre pensei que Heliog balo tivesse sido um jovem muito pervertido.  Mas, agora que vi o que o divertia, compreendo que le devia ter o

  esp¡rito dum beb - absolutamente pueril. Tenho a infelicidade de ser  demasiado adulta no que diz respeito a certas coisas... Tenho vaga- 

* Desejo. (N. do E)  **Palhaos. (N. do E) 

322 

mente a idia de ir a Madri na semana pr¢xima. L h defazer um calor  formid vel,  claro. Mas adoro o calor. Desabrocho nosfornos. (Talvez  aqui esteja uma indicaão signJicativa do que me reserva a imortalida-# 

de ... ) Por que não vens comigo? Falo srio. Assassina Burlap e vemfii-  zer uma excursão ... Ia Maurice Barrs. Du sang, de Ia volupt et de Ia  mort*. Sinto-me um pouco sanguin ria neste momento. A Espanha me  serviria- Enquanto isso, vou fazer um inqurito a respeito da temporada  das corridas de touros. A arena nos mareia; minha sde de sangue não vai  at o desejo de ver estripar matungos. Mas os espectadores são maravi-  lhosos. Vinte mil frissons**s dicos simultneos. Realmente not vel!   preciso que venhas, meu suave Walter. Dize sim. Insisto.

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 "LUCY. 11

 "Quai Voltaire.

 ---Foiuma gentileza tua, meu Walter querido, fazer o imposs¡vel para

  vi . r ... Espanha. Eu quisera, por uma vez quef"sse, que tu não tomasses  tão a srio a minha envie momentnea. Madri est esquecida, pelo menos  por ora. Se- a idia me vier de n"vo eu te comunicarei em seguida. Por  enquanto, Paris. Escrevo-te ...s pressas. 

,IT,, 

* Sangue, vol£pia e morte. (N. do E.)  **Arrepios. (N. do E.)# 

CAPITULO XXVI 

DO CADERNO DE NOTAS DE PHILIP QUARLES 

"Encontrei Rampion taciturno e exasperado, não sei a prop¢sito de

  qu, e conseqentemente pessimista - l¡rica e violentamente pessimista.  -- Dou dez anos ...s condiões atuais - disse-me le, depois de ter  catalogado os horrores do mundo moderno. - Depois disso vir o caos  mais espantoso e mais sangrento quej se viu.  "E profetizou guerras de classes, guerras de continentes, o estraalha-  mento catastr¢fico de nossa sociedadej terrivelmente inst vel.  -- Não  uma perspectiva l muito agrad vel para nossos filhos -  disse-lhe eu. - N¢s, pelo menos,j tivemos os nossos trinta anos de vida,  mais ou menos ... Mas les hão de crescer simplesmeme para verem o  Juizo Final!  "- Não dev¡amos t-los pâsto no mundo.  "Citei-lhe o caso dsses melansios de quefala Rivers, e que simples-

  mente recusaram-se a continuar tendofilhos depois que os brancos lhes  extirparam a religião e a civilizaão tradicionais.  "- A mesma coisa se passa no mundo ocidental - disse-lhe eu  porm mais lentamente. Não o brusco suic¡dio da raa, mas a diminuião  gradual da natalidade. Gradualporque, entre n¢s, o veneno da civilizaão  moderna contaminou os homens muito mais lentamente. H muito tempo  que a coisa dura: mas apenas agora comeamos a perceber que somos  v¡timas de um envenenamento. Eis por que mal comeamos a cessar de  procriar. Os melansios tiveram a sua alma assassinada bruscamente, de  sorte que não puderam deixar de perceber o que lhes acontecia. Foi essa  a razão por que decidiram, por assim dizer dum dia para outro, não se  dar mais o trabalho de manter a raa viva. 

11  - O veneno, agora, j não  lento. Òle opera cada vez mais r pida-  mente.  feitos são cumulativos. A partir dum certo  Como o arsnico; os e  momento comeamos a galopar rumo da morte.  "- A procriaão diminuiria duma maneira muito mais completa se as  pessoas tivessem compreendido ... Ora, ora! Os nossos pimpolhos terão  de abrir o "lho para se cuidarj que estão aqui.  "- E enquanto isso - sugeri eu -  necess rio a gente continuar a

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  conduzir-se como se nosso mundo f"sse durar para sempre - devemos 

324 

-lhes boas maneiras e gram tica latina e o mais que segue. Quej -  ensinar  zes com os teus?  '~- Se eu pudesse empregar o meu mtodo, não lhes ensinaria coisa  alguma. Eu os poria em liberdade no campo, numafazenda, e lhes diria  que se divertissem. E, se lesf"ssem incapazes de se divertir, havia de dar-  lhes veneno de matar rato.# 

Isso  um pouco ut¢pico como programa de educaão, não achas?  Eu sei. Òles tm de ser pessoas instru¡das e bem educadas - o  diabo os leve! H vinte anos eu teria protestado contra esta educaão  burguesa. T-los-ia educado como camponeses. Mas nos nossos dias as  classes oper rias estão tão apodrecidas como as outras. Não são mais  que pssimas imitaões da burguesia - e, sob certos aspectos, piores do  que o original. De sorte que meus garotos são educados como cavalhei-

  ros, apesar de tudo. E como pessoas instru¡das. Que idiotice!  "Rampion queixou-se a mim de que ambos osfilhos tinham a paixão  das m quinas - autos, trens, avOes, r dios.  -~-  contagioso, como a varicela. O amor da morte anda no ar. les  o respiram,flicam contaminados. Tento persuadi-los a amar outra coisa.  Mas les não querem ouvir nada. A mecnica  a £nica coisa que os  seduz. Estão contaminados pelo amor da morte. Dir-se-ia que os moos  estão absolutamente determinados a levar o mundo para um fim - a  mecaniz -lo primeiro at a loucura e depois at o assass¡nio puro e  simples. Pois bem, deix -los fazer, j que o querem, sses diabinhos  imbecis! Mas  humilhante,  terrivelmente humilhante que os sres  humanos tenham dessa maneira semeado a desorganizaão por t"da  parte. A vida poderia ser bela, bastava apenas que les quisessem. Sim, e

  ela foi bela outrora, creio. Agora se transformou numa loucura; não   mais do que a morte, violentamente galvanizada,fazendo contorões aqui  e ali, e produzindo uma algazarra infernal para se convencer a si mesma  de que ela não  realmente a morte, mas sim a mais exuberante espcie de  vida. Pensemos em Nova York; pensemos em Berfim. Bom Deus! Enfim,  deixemos que vão para o inferno, se assim querem. A mim  que isso não  preocupa.  ' "Mas o diabo  que a coi . sa preocupa mesmo Rampion. 

---Desdeque li Alverdes e Wheeler, estou absolutamente convencido de  que meu romancista deve ser um zo¢logo amador. Ou, melhor ainda, um  zo¢logo profissional que escreve um romance nas suas horas de lazer. Òle  h de ver as coisas estritamente sob o ngulo da biologia. Passar

constantemente do termiteiro para o salão e para af brica, e vice-versa.  Ilustrar os v¡cios humanos com os dasfiormigas, que negligenciam a sua  prognie pelo amor do licor inebriante exsudado pelos parasitos que lhes 

325# 

invadem os ninhos. Seu her¢i e sua hero¡na passarão a lua-de-mel ...s mar-

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  gens dum lago, em que os mergulhões e os marrecos demonstrarão todos  os aspectos do galanteio e do casamento. Observando a "ordem das bica-  das " habitual e quase sagrada que reina entre as galinhas de seu terreiro  - a galinha A bicando a galinha B, mas sem ser bicadapor ela, a galinha  B bicando a galinha C e assim por diante - o pol¡tico meditar s"bre a  hierarquia cat¢lica e s"bre o fascismo. Um novlo de cobras em suas  c¢pulas entrelaadas lembrar ao libertino as suas orgias. (J vejo a¡ um  epis¢dio interessante, no qual uma espcie de Svandrell tirar a morali-  dade, para uma inocentejovem idealista, da promiscuidade amorosa dum  grupo de serpentes) O nacionalismo e o amor religioso da propriedade  nas classes mdias serão ilustrados pela defesa apaixonada eferoz que a  toutinegra macho faz de seu territ¢rio escolhido. E assim por diante.  Pode-se tirar disso tudo alguma coisa de estranho e de muito divertido. " 

"Uma das coisas mais dfficeis de ter em mente  que o valor dum ho-  mem numa esfera determinada não constitui uma garantia de seu valor  em outra esfera. A matem tica de Newton não prova nada em favor da  sua teologia. Faraday tinha razão a respeito da eletricidade, mas não a  respeito do sandemanismo. Platão escreveu maravilhosamente bem, e esta  e a razão pela qual muita gente acredita ainda na sua pemiciosafilosofia.  ToIst¢ifoi um excelente romancista; mas não constitui isto razão para  que deixemos de considerar detest veis suas idias s"bre a moral, ou para  que sintamos outra coisa que não seja desdm pela sua esttica, pela sua

  sociologia e pela sua religião. No caso dos homens de cincia e dosfil¢so-  fos, uma tal inpciafoia de sua especialidade não tem nada de surpreen-  dente. Ela , at, mais ou menos inevit vel, Porque  evidente que o  desenvolvimento excessivo das funões purãmente mentais leva a uma  atrofia de t"das as outras. Da¡ a infan tilidade not¢ria dos profess"res e a  simplicidade vis¡vel das soluões que les oferecem para os problemas da  vida. O mesmo acontece com os especialistas em espiritualidade. A pro-  funda toleima das pessoas santas; a sua puerilidade. Mas no artista h

menos especializaão, menos desenvolvimento unilateral; conseqente-  mente, o artista deveria ter mais bom senso geral do que o mal-equili-  brado homem de cincia; não devia apresentar os puncta caeca* e as  imbecilidades dos fil¢sofos e dos santos. Eis por que um homem como  Tolst¢i  tão imperdo vel. Instintivamente. tem-se mais confiana nle do

  que num intelectual ou num especialista do esp¡rito. E le d em perverter  todos os seus instintos mais profundos e a mostrar-se exatamente tão  est£pido e pernicioso como São Francisco de Assis, ou como Kant, o 

* Pontos cegos. (N. do E) 

3 26 

moralista (ah! sses imperativos categ¢ricos! E, depois, ofato de serem as  frutas cristalizadas a £nica coisa que podia apaixonar um pouco aqule  Velho cavalheiro!), ou como Newton, o te¢logo! Isso nos põe de sobrea-  viso mesmo contra os quejulgamos estarem proviivelmente com a verda-  de. Como Rampion, por exemplo. Um artista extraordin rio. Mas ter

razão em suas idias sibre o mundo? Ah! isso não se pode deduzir da# 

excelncia de suas pinturas e de seus escritos. Entretanto, duas coisas me  dão confiana nas suas opiniões s"bre os problemas da vida. A primeira   que le vive duma maneira mais satisfat¢ria do que qualquerpessoa das  que conheo. Vive duma maneira mais satisfat¢ria porque vive duma  maneira mais realista do que os outros. Rarripion, na minha opinião, leva

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  em conta todos osfatos (ao passo que os outros se escondem dssesfatos,  ou fingem que os que les acham desagrad veis não existem, ou não deve-  riam existir), e se põe então a adaptar seu modo de vida aos fqtos, ao  invs de procurar obrigar os fatos a se adaptarem a uma idia preconce-  bida da verdadeira maneira de viver (como sses imbecis dos cristãos, dos  intelectuais, dos moralistas e dos homens de neg¢cios pr¢speros). A  segunda coisa que me d confiana nojulgamento de Rampion  que mui-  tas de suas opiniões concordam com as minhas, o que, postas ... parte  t"das as questões de vaidade,  um bom sinal, visto como partimos de  pontos iniciais muito afastados - de dois p¢los, em suma. As opiniões  s"bre as quais dois advers rios estão de ac"rdo (porque  isto o que  somos essencialmente, e desde a origem: advers rios) tm fortes  probabilidades de serjustas. A diferena principal entre n¢s, ali s,  que  suas opiniões são vividas, ao passo que as minhas, no conjunto, não pas-  sam de pensadas. Como le, eu desconfio do intelectualismo, mas descon-  fio intelectualmente; não creio na efic cia de nenhuma teoria cient¡fica ou  filos¢fica, de nenhum princ¡pio moral abstrato - isto, porm, com  fundamentos cientifeos, filos¢ficos e de moral abstrata. Oproblema, para  mim,  transformar um ceticismo intelectual e desprendido num modo de  vidapleno e harmonioso.  "O caminho de todo intelectual, quando le prossegue a sua jornada  por bastante tempo e sem desfalec£nento, termina na evidncia, da qual  os não-intelectuais nunca se desviaram. Òste temafoi desenvolvido por  Burlap, num dsses artigos viscosos e emticos em que le  especialista.

  E h nisso um bom fundo de verdade, a despeito de Burlap. (Aqui esta-  mos outra vez de volta ...s personalidades. O homem profundamente  desprez¡vel pode ter opiniões preciosas, bem como o homem admir vel  - a certos respeitos - pode ter opiniões detest veis. E suponho, entre  parnteses, que perteno ... primeira categoria - se bem que não tão  completamente, espero, como Burlap, e duma maneira diversa) Muitos  intelectuais, est claro, não vão bastante longe para voltarem ... evidncia.  Òles se aferram a uma crena pattica no racionalismo e na supremacia  absoluta das faculdades mentais e da vontade inteiramente consciente. 

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Devemos ir mais longe do que sses cavalheiros do sculo XIX, por  exemplo, pelo menos tão longe quanto Prot goras e Pirrão, antes de  voltarmos a essa evidncia em que permaneceram sempre os não-  intelectuais. E devemos apressar~nos a deixar bem claro que sses não-  intelectuais não são a canalha moderna que l os jornais ilustrados,  escuta r dio, dana o jazz e tem por preocupaão exclusiva ganhar  dinheiro e levar a pavorosa "boa vida " moderna. Não, não; não se trata  de fazer o elogio do homem de neg¢cios de cabea s¢lida, nem do goza-  dor vulgar. Porque, a despeito de sua estupidez, de suafalta de g"sto, de  sua vulgaridade, de sua infantilidade (ou melhor, por causa de todos stes

  defeitos), não são les os não-intelectuais de quefalo. Òles consideram co-  mo evidente o principal axioma intelectualista - de que a vida mental,  consciente, volunt ria tem qualquer coisa de intrinsecamente superior ...  vida fisica, intuitiva, instintiva, emotiva. O todo da civilizaão moderna  est fundado s"bre a idia de que a funão especializada que d ao  homem seu lugar na sociedade  mais importante do que o homem inteiro,  ou, melhor, de que ela "" o homem inteiro, sendo todo o resto sem  importncia ou mesmo (visto como a parte fisica, intuitiva, instintiva,  emotiva do homem não contribui de maneira apreci vel parafaz-lo enri-  quecer e progredir num mundo industrializado) positivamente prejudicial

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  e detest vel. O homem vulgar da nossa sociedade moderna industria-  lizada tem todos os defeitos do intelectual e não tem nenhuma das quali-  dades que redimem ste £ltimo. Os não-intelectuais em que estou pen-  sando são sres muito diferentes. Poder¡amos achar ainda alguns dles na  It lia (embora o fascismo j os tenha provilvelmente transformado todos  em m s imitaões de americanos e de prussianos); alguns, talvez, na  Espanha, na Grcia, na Provena. Em nenhuma parte mais da Europa  moderna. Havia talvez um bom n£mero dles h coisa de 3 O00 anos.  Mas os esforos combinados de Arist¢teles, de Jesus, de Newton e dos  grandes neg¢cios transformaram seus descendentes na burguesia e no  proletariado modernos. A evidncia ... qual chega de volta o intelectual,  quando vai bastante longe, não  a mesma, est claro, que a evidncia dos  não-¡ntelectuais. Porque a evidncia dstes  a pr¢pria Vida, e a que o  1 . ntelectual encontra nojim de seu caminho não passa da idia dessa vida.  Não são muitos os capazes de vestir essa idia de carne e de sangue, e de  fazer dela uma realidade. Os intelectuais que, como Rampion, não tm  necessidade de voltar ... evidncia.. mas sempre creram nela, e a viveram,  levando ao mesmo tempo a vida do esp¡rito, são ainda mais raros.  "A companhia de Rampion me deprime um pouco; porque le mefaz  ver quão grande  o abismo cavado entre o conhecimento da evidncia e  o simples fato de viv-la realmente. A h! Que dificuldades h para trans-  por sse abismo! Percebo agora que o verdadeiro encanto da vida intelec-  tual - da vida consagrada ... erudião, ... pesquisa cient¡ffica, ...ffiosofia, ...

  esttica. ... cr¡tica -  a ~facilidade.  a substituião de simples esque- 328

 nias intelectuais em lugar das complicaões da realidade; da morte silen-

ciosa e r¡gida em lugar dos movimentos desconcertantes da vida.   incompar...velmente mais µcil saber muitas coisas, digamos, s"bre a  hist¢ria da arte, e ter idias profundas s"bre metafisica e sociologia, do  que conhecer pessoalmente, intuitivamente os seus semelhantes e ter

  relaões satisfat¢rias com seus amigos e suas amantes, sua mulher e seus  filhos. Viver  muito mais dif¡cil que o snscrito, que a qu¡mica ou que a  economia pol¡tica. A vida intel , ectual  um brinquedo de criana; eis por  que os intelectuais tm uma tendncia para voltar ... infncia, para cair em  seguida na imbecilidade, e, fmalmente, como demonstra com clareza a  hist¢ria pol¡tica e industrial dstes £ltimos sculos, a tornarem-se homici~  das loucos e selvagens. Asfunões reprimidas não morrem; deterioram  se, decompõem-se, revertem ao estado primitivo. Mas enquanto isso   muito mais f cil ser criana, louco ou bsta do que homem adulto  harmonioso.  por isto que (entre outras razões) h tanta procura de  instruão superior. A corrida para os livros e para as universidades  lembra a corrida para as tavernas. Essa gente necessita afogar a  conscincia das dificuldades que h em viver decentemente neste grotesco

  mundo contemporneo; les tm necessidade de esquecer a sua deplor vel  insuficincia como cultivadores da arte de viver. Uns afogam suas triste  zas no lcool, mas outros, ainda mais numerosos, as afogam nos livros e  no diletantismo art¡stico; uns procuram achar o esquecimento de si mes  mos na libertinagem, na dana, no cinema, no r dio; outros, nas confern  cias e nas ocupaões cient¡ficas. Os livros e as conferncias são melhores  para qfogar as m goas do que a bebida e afornicaão; não deixam dor de  cabea nem essa sensaão desesperante do post coitum triste. At h bem  pouco, confesso-o, eu levava muito a srio o saber, afilosofia, a cincia  - t"das as atividades que amontoamos com grandiloqncia sob o t¡tulo

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  de "Procura da Verdade " , Considerava a Procura da Verdade como a  mais alta das tarefas humanas e os Procuradores como os mais nobres  dos homens. Mas de um ano para c comeo a ver que essafamosa Pro  cura da Verdade  simplesmente um divertimento, uma distraão como  t"das as outras, um sucedneo bastante refinado e complicado da vida  verdadeira; e que os Procuradores da Verdade tornam-se tão tolos, tão  infantis e tão corrompidos, ... sua maneira, como os beberrões, os estetas  puros, os homens de neg¢cios, os adeptos da Boa Vida, ... maneira dles.  Percebi igualmente que a Busca da Verdade não passa dum nome polido  para designar o passatempo favorito dos intelectuais, que consiste em  substituir por abstraões simples, e por conseguinte falsas, as complexi  dades vivas da realidade. Mas procurar a Verdade  muito maisf cil do  que aprender a arte de viver integralmente (arte em que, est claro, a Pro~  cura da Verdade tomar seu lugarjusto e razo vel entre os outros diverti  mentos, tais como o boliche e o alpinismo). Isto explica, sem ojustificar,  o fato de que eu continue a me entregar de maneira desordenada aos 

329# 

v¡cios da leitura informativa e da generalizaão abstrata. Terei algum dia  bastante f"ra de esp¡rito para me livrar dsses h bitos indolentes de  1 . melectualismo e para consagrar minha energia ... tarefa mais sria e mais  diffi-cil de viver integralmente? E, mesmo que eu me esforasse por aban-  donar sses h bitos, não seria para descobrir que a hereditariedadejaz no  fundo dles e que eu sou congnitamente incapaz de viver de maneira  integral e harmoniosa 2 " 

330 

CAPITULO XXVII 

John Bidlake e sua terceira mulher nunca se tinham "separado" defini-  tiva e oficialmente. Limitavam-se apenas a não se verem com muita  freqncia. O arranjo convinha muito bem a John. le detestava tudo  quanto tivesse ares de "cena" e era inimigo de todo cempromisso defini-  tivo e irrevog vel. Qualquer arranjo que o amarrasse, que lhe impusesse  responsabilidades e lhe lembrasse deveres, era-lhe intoler vel. "S¢ Deus  sabe o que eu teria feito", costumava le dizer, "se tivesse de ir a um  escrit¢rio todos os dias, ou de terminar um trabalho numa data prefixada!  Creio que ficaria louco e teria virado fera no fim de alguns meses, com tal  regime." Quanto ao casamento, jamais f"ra partid rio dle. Mas infeliz-  mente não podia possuir sem casamento t"das as mulheres que desejava.

  Tinha sido constrangido a comprometer-se trs vzes por aquilo a que le  chamava, em linguagem cicerânica, "pactos inoportunos e obscenos". A  idia do div¢rcio ou de uma separaão oficial lhe era apenas pouco me~  nos desagrad vel que a do casamento; tais coisas são definitivas, elas nos  ligam. Por que não deixar ...s situaões a tarefa de se resolverem por si  mesmas, ao inves de procurar dar-lhes uma forma arbitr ria? O ideal era  viver, emotiva e socialmente falando, sem pensar no futuro - sem pla-  nos, sem estatutos, na agrad vel companhia que a gente mesma esco~  lhesse: cada dia, e não na escolhida pelos outros, ou por um "eu" defunto  qualquer. "Dormir ... gandaia. . . " - f"ra assim que le ouvira uma rapa-

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  riga americana descrever o lado amoroso da vida ideal que se levava em  Hollywood. Os outros aspectos dessa vida podiam ser classificados sob o  t¡tulo de "andar ... gandaia". A vida não-ideal, a vida que John Bidlake ti-  nha sempre recusado levar, era a que consistia em dormir e andar, não "...  gandaia", mas sim definitivamente aqui ou ali, dia ap¢s dia, de ac"rdo  com um programa fixado e previs¡vel, que s¢ a morte, ou pelo menos uma  intervenão da Providncia ou dos inimigos do Reino podiam alterar.  As relaões de John Bidlake com sua terceira mulher tinham - e isso  havia j muitos anos - um car ter de indeterminaão muito satisfat¢rio.  Não moravam juntos, mas não estavam separados. Escreviam~se rara-  mente, mas não tinham nunca brigado. Havia mais de vinte anos que  John dormia e andava por a¡ "... gandaia", e, entretanto - quando o aca-  so os reunia -, les se viam como bons amigos, e se o pintor desejava  refrescar suas lembranas da paisagem dos Chilterris setentrionais, sua  chegada a Gattenden era aceita sem nenhuma observaão, como se f"sse# 

a coisa mais natural do mundo. Esse ajuste convinha perfeitamente a  John Bidlake; e, para fazer-lhe justia, le Ficava reconhecido ... sua  mulher por t-lo tornado poss¡vel. Todavia, abstinha-se de exprimir essa  gratidão; porque seria comentar o arranjo; e qualquer coment rio teria  trazido uma ponta de definião com efeitos destrutivos para uma situaão

  cuja fr gil excelncia consistia precisamente nessa vagidade virgem e  lindamente intata. Poucas mulheres, o marido reconhecia agradecido,  teriam como Janet aceito a situaão, ou mesmo seriam capazes de manter  tão constantemente inviolado o car ter indeterminado daquela. Qualquer  outra esp"sa teria exigido explicaões, teria querido saber a quantas esta-  va, teria oferecido a escolha irrevog vel entre a paz ou a guerra, a vida em  comum ou a separaão. Mas a Sra. BidIake permitira que o marido se  evaporasse da vida conjugal sem uma disputa, quase sem uma palavra. E  ela aceitava com mui poucos coment rios as suas reentradas breves e  espasm¢dicas. Desde a infncia Janet se sentira mais ... vontade no mundo  fict¡cio que criava para si mesma do que no mundo real. Quando menina,  tivera uma irmã imagin ria que morava na guarita do sinaleiro, junto a

  um cruzamento de estradas. Entre dez e treze anos, sua incapacidade para  distinguir entre os testemunhos de seus sentidos e os de sua imaginaão ti-  nha dado muitas vzes em resultado o ser ela punida como mentirosa. Os  quadros e os livros haviam aberto uma nova estrada ... sua fantasia, quese  tornou menos pessoal e mais cl...ssicarnente art¡stica, liter ria e especula-  tiva. A partir dos dezesseis anos Janet habitara quase que exclusivamente  o pa¡s da arte e das letras, não passando de uma estrangeira retida, inal-  grado seu, na prosaica Inglaterra. E porque ela tivesse imaginado que  John B¡dlake era um seu compatriota espiritual, apaixonou-se por le -  com uma paixão art¡stica, potica - e consentiu em tornar-se sua  mulher. Os pais de Janet, que consideravam Bidlake simplesmente como

  um s£dito de Sua Majestade igual a les e ligavam mais importncia, da-  das as circunstncias, ... sua carreira de marido do que ... de artista, fize-  ram o poss¡vel para dissuadi-la da idia. Mas janet era maior e tinha t"da  a obstinaão dos que sabem simplesmente retirar-se do plano em que se  trava a discussão, deixando o advers rio desperdiar sua energia contra  um simples corpo sem alma.  Acabou por fazer o que queria. Quando descobriu, e isto s¢ aconteceu  tarde demais, que havia muito pouco em comum entre o artista admir vel  que ela tinha amado e o marido que desposara, Janet Bidlake sentiu-se,

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  por um amor-pr¢prio muito natural, impedida de queixar-se. Não tinha  nenhum desejo de proporcionar a seus parentes o prazer de comentarem:  "Eu bem dizia!" John dormia e andava "... gandaia" e cada vez se sumia  mais da vida conjugal. Janet silenciou e refugiou-se, buscando cons"lo  nas regiões da imaginaao art¡stica e liter ria de onde era natural e onde  se sentia mais ... vontade. Recursos pessoais, acrescidos por contribuiões  irregulares e vari veis que John Bidlake fornecia quando se lembrava de 

332 

que tinha de prover ...s necessidades da esp"sa e dos filhos, ou sempre que  achava que seus meios lho permitiam - tornavam-lhe Poss¡vel aquela fu-  ga para o pa¡s long¡nquo da fantasia. Elinor nascera um ano ap¢s o casa-  mento. Quatro anos mais tarde, o estârnago ulcerado trouxe John BidIake# 

de volta ao lar, na qualidade de marido provis¢riamente regenerado -  para curar-se. Walter foi o resultado dessa convalescena, ainda  dome tica. As £lceras se curaram e John Bidiake desapareceu outra vez  do horizonte familiar. Amas e governantas tomaram conta das crianas.  A Sra. Bidlake zelou pela educaão delas, mas vagamente, como que de

  muito longe. De quando em quando fazia uma incursão r pida, atraves-  sando a fronteira que separava seu pa¡s privado do mundo dos fatos  ordin rios; e suas intervenões na ordem cotidiana das coisas tinham  sempre uma certa qualidade desconcertante e quase sobrenatural. Coisas  incalcul veis estavam sujeitas a acontecer quando por acaso ela descia -  como um ser vindo dum outro plano, e que julgava os acontecimentos de  ac"rdo com outras normas que não as do mundo comum - para o meio  da rotina da educaão dos filhos. Um dia, por exemplo, a Sra. Bidlake  despediu uma governanta porque a tinha ouvido tocar no piano da sala de  estudos a canão de Dan Leno que conta a hist¢ria s"bre A Vespa e o  ¢vo Cozido. Era uma boa rapariga, que ensinava muito bem, e susten-  tava o pai paral¡tico. Mas grandes princ¡pios art¡sticos estavam em j¢go.  O g"sto musical de Elinor corria o risco de ser irremedi...velmente

  corrompido (diga-se de passagem que Elinor se parecia com o pai: detes-  tava, como le, a m£sica); e o fato de ela ter muita afeião ... Srta. Demps-  ter agravava ainda o perigo da contaminaão. A Sra. Bidlake foi  inabal vel. Não se podia tolerar A Vespa e o õvo Cozido. A Srta.  Dempster foi despedida. Ao saber da verdade, o velho pai da rapariga  teve um nâvo ataque, do qual saiu cego dum âlho e privado da palavra.  Mas os regressos dessas viagens da Sra. Bidlake pelo mundo da  imaginaão eram geralmente menos graves em seus resultados. Quando  ela intervinha na pr tica da educaão dos filhos, não era, em geral, senão  para faz-los ler ... f"ra autores cl ssicos, considerados habitualmente co-  mo incompreens¡veis ou pouco convenientes para os pequenos. Ôstes, tal  era a sua teoria, não deviam ser educados senão dentro do que h de  melhor na filosofia e nas artes.

  Elinor tinha suportado a leitura de Ham/et na idade de trs anos; seus  livros de figuras eram reproduões de Giotto e de Rubens. Tinham-lhe  ensinado francs em Candide, deram-lhe Tristram Shandy e a Teoria da  Visão, do Bispo Berkeley, na idade de sete anos, a tica de Spinoza, as  guas-fortes de Goya e, como manual de alemão, A Iso sprach Zaralhus~  tra, ... idade de nove anos. O resultado dsse contato prematuro com a  melhor filosofia foi produzir em Elinor aqule desdm um pouco diver-  tido pelas grandes abstraões e pelos idealismos bomb sticos, que tinha  acabado por caracteriz -la tão plenamente. Educada ao mesmo tempo na 

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atmosfera dos cl ssicos não expurgados, ela adquirira desde a infncia  um conhecimento te¢rico completo de todos os assuntos que se conside-  ram como os menos indicados para se fazerem conhecidos dos jovens. s-  se conhecimento tinha reforado, ao invs de diminu¡~las, a frieza e a falta  de curiosidade pr tica a respeito de t"das as coisas de ordem amorosa,  que lhe eram naturais; e Elinor crescera num estado de inocncia bem  informada e superficialmente c¡nica, qual uma dessas hero¡nas shakespea-  riarias cujo falar cient¡fico e rabelaisiano acompanha aões do refina-  mento mais delicadamente virtuoso. A Sra. Bidlake sofria diante da  atitude irreverente de Elinor para com as fantasias que ela tanto  acariciava; mas, s bia ... sua maneira, não disse nada, não tentou reform -  Ia; simplesmente fez por ignorar aquilo e tratou de se retirar, da mesma  maneira como não quisera ver os defeitos do marido e como se retirara do  conhecimento dles para os reinos mais felizes da arte e da imaginaão.   imposs¡vel anular fatos consumados; mas, para as necessidades da pr ti-  ca, a conspiraão do silncio  quase tão eficaz como a anulaão. Não  mencionadas, as coisas que são podem passar como se não f"ssem. Quan-  do John Bidlake chegou a Gattenden - um doente que o abatimento, o  terror e a absorvente comiseraão de si mesmo tornavam mais doente ain-

  da, a Sra. Bidlake passou em silncio s"bre o fato que ela teria podido  comentar tão f...cilmente: que o marido s¢ voltava a casa quando tinha  necessidade de algum que cuidasse dle. Prepararam-lhe um quarto; o  velho instalou-se. Foi como se nunca tivesse sa¡do dali. Na intimidade  secreta da cozinha, os criados resmungaram um pouco por e  aumento de servio, ao passo que a Sra. Inirian suspirava e Dobbs se  entregava ... sua indignaão macia e anglican a diante da maneira como o  velho Sr. Bidlake tratava a mulher. E ao mesmo tempo les sentiam todos  para com o velho uma espcie de piedade cheia de regozijo. A doena e os  seus sintomas eram objeto de conversas feitas em voz baixa, religiosa-  mente. Em voz alta podiam resmungar e exprimir sua desaprovaão. Mas  em segrdo estavam mais contentes do que outra coisa. A chegada de  John B¡dlake quebrava a monotonia cotidiana, e o fato de que le ia mor-

  rer lhes dava, a todos, um sentimento de importncia. O pessoal doms~  tico de Gattenden ganhava como que um valor n"vo ... aproximaão da  morte do velho. Aqule acontecimento futuro foi o sol em t"rno do qual  as almas da casa se puseram então a gravitar, cheias de significaão e  quase que furtivamente. Podiam resmungar e dar mostras de descontenta-  mento, mas cuidavam do doente com solicitude. De certa maneira obscu-  ra, eram-lhe reconhecidos. Morrendo, John Bidlake acelerava-lhes a vida. 

334 

CAPITULO XXVIII 

Com Moily d'Exergillod tudo tinha que ser articulado, formulado,

  exprimido. Tudo o que se sente era para ela apenas a matria-prima com  a qual um esp¡rito ativo podia fabricar palavras. O minrio de ferro não  foi de utilidade para o homem senão depois que le aprendeu a fundi-lo e  a forjar o metal puro em utens¡lios e espadas. Para Molly, os fatos brutos  da existncia, as sensaões, os sentimentos, os pensamentos e as  lembranas eram tão pouco interessantes em si mesmos como outros tan-# 

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  tos blocos de rocha. Não ganhavam valor senão depois de terem sido  transformados pela arte e pela ind£stria da conversaão ern. palavras  elegantes e em frases bem modeladas. Ela amava um crep£sculo  vespertino porque podia dizer dle: "Parece uma mistura de fogos de  Bengala, de Mendelssohn, de fuligem e de morangos com creme"; ou  eirtão as fi"res da primavera: "Elas nos dão a sensaão que  expeimentamos quando estamos convalescentes dum ataque de gripe.  Não acham?" E, inclinando~se com um ar de intimidade, insistia na  pergunta ret¢rica: "Não acham?" O que lhe agradava numa vista de  montanhas long¡nquas sob uma tempestade era que isso se parecia muito  com as paisagens de Toledo pintadas por El Greco. Quanto ao amor, ah!  todo o encanto do amor, aos olhos de Molly, residia em sua aptidão quase  ilimitada para se d...xar transformar em frases. Podia-se falar dle eterna-  mente.  E ela estava agora falando do amor a Philip Quarles - falava j havia  uma hora, analisando-se a si mesma, contando suas sensaões, interro-  gando-o s"bre seu passado e s"bre os seus sentimentos. Relutantemente e  com dificuldade (porque le detestava falar de si mesmo, e o fazia muito  mal), Philip lhe respondia.  - Tu não achas - dizia ela - que o que h de mais apaixonante no  amor são os descobrimentos que le nos permite fazer s"bre n¢s mesmos?  Philip aquiesceu obedientemente.

  - Eu não tinha idia do fundo maternal de meu car ter, antes de ca-  sar com Jean. Fico tão preocupada, agora, quando le tem os ps molha-  dos! 

- Eu  que ficaria muito aborrecido se tu estivesses com os ps  molhados -- disse Philip, ensaiando uma galanteria. "Que idiotice!",  pensou le. Não era perito em galanterias. Preferia não se sentir muito  atra¡do pela beleza um tanto cremosa e florida de Molly. Se ela f"sse feia  le não estaria ali, fazendo aqule papel rid¡culo.# 

- s muito gentil - agradeceu Molly. - Dize-me - ajuntou ela  inclinando-se sâbre le, o rosto e o peito num oferecimento - a razão por  que gostas de mim.  - Mas a razão não est bem clara?  Molly sorriu:  - Sabes por que Jean me diz que sou a £nica mulher pela qual le se  poderia apaixonar?  - Não - respondeu Philip, achando que Molly era realmente sober-  ba no seu tipo de Juno.  - Porque - continuou Molly---, segundo le, sou a £nica mulher  que não  aquilo a que Baudelaire chama le contrairedu dandy. Lembras-  te daquela passagem de Mon Coeur Mis ... Nu? "Lafemme afaini et elle  veut manger; soif, et elle veut boire. Lafemme est naturefle, c'est-...-d

ire  abominable.Aussiest-efl. . .  Philip interrompeu-a, rindo:  - Saltaste uma frase. "Soif, et elle veui boire. " E depois: 'Elle est en  rut, et elle veut tre. . .---** A palavra não figura, com tâdas as letras, na  edião Crpet, mas eu ta posso fornecer, se quiseres.  - Não, obrigada - disse Molly, um pouco atrapalhada por causa da  interrupão, que era um obst culo ao desdobramento f cil dum gambito  de conversaão bem ensaiado. Molly não estava habituada a que as pes-

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  soas com quem falava fâssem versadas em literatura francesa no mesmo  grau que Philip-. A palavra não tem nenhuma importncia.  - Não tem? Philip arqueou as sobrancelhas. - E o que pergunto  a mim mesmo ...  - "A ussi est-elle toujours vulgaire continuou Moily apressando-  se para chegar ao ponto em que tinha sido interrompida -, "cesuii-dire  le contraire du dandy"***. Jean diz que eu sou a £nica mulher dndi. Que  achas disso?  - Temo que le tenha razão!  - Porque sse "temo"?  - Não sei se gosto muito dos dndis. Particularmente dos dndis  femininos. - "Urna mulher que faz uso da forma deliciosa dos seus seios  para nos constranger a admirar-lhe o esp¡rito, eis uma personagem  interessante", pensou Philip, "para o meu romance. Mas exasperante na  vida privada, pra l de exasperante." - Prefiro-as ao natural - ajuntou  le. 

- Mas que intersse h em ser natural, a menos que não sejamos bas-  tante artistas para fazer a coisa bem e bastante conscientes de n¢s mes- 

* Meu Coraão P"sto a Nu: ---Amulher tem fome e ela quer comer; sde, e ela quer  beber. A mulher  natural, isto , abomin vel. Ela  tambm. "(N. do E.)  est no cio, e ela quer ser. . . -(N. do E.) _ 

   tambm sempre vulgar, ou seja, o contr rio do dndi. "(N. do E) 336

 mos para saber at que ponto estamos sendo naturais? - Molly sentiu-se

  satisfeita com a sua pergunta. Dando-lhe um pouco de polimento, ela  ficaria epigram¡lticamente perfeita. - Não h intersse em estar apaixo-# 

nada por algum, a menos que se saiba exatamente o que se sente e que se  possa exprimir a coisa sentida.

  - Vejo nisso, pelo contr rio, muito intersse - disse Philip. - Não  e preciso sermos botnicos ou pintores de naturezas mortas para apreciar  as flres. E do mesmo modo, minha querida Molly, não h necessidade de  ser Sigmund Freud nem Shakespeare para te apreciar. -- E, deslizando  s£bitamente s"bre o sof , mais para perto da mulher, Philip tornou-a nos  braos e deu-lhe um beijo.  - Mas que  que est s pensando? - exclamou ela cheia dum espanto  doloroso.  - Não estou pensando coisa alguma - respondeu o escritor, um  pouco raivoso, da outra extremidade do brao dela que o mantinha a  distncia. - Não penso; s¢ desejo. . . - Sentia-se humilhado, tornara-  se rid¡culo. - Mas eu tinha esquecido que eras uma freira...  - Não sou nada que se parea com isso - protestou ela. - Sou

  simplesmente civilizada. Todos sses pinchos e sses agarramentos são  verdadeiramente selvagens demais. - Molly reajustou uma mecha do seu  cabelo ondulado e comeou a falar das relaões plat"nicas como auxilia-  res do desenvolvimento do esp¡rito. Quanto mais plat"nicas f"ssem as  relaões entre um homem e uma mulher amorosos, mais a vida do esp¡rito  consciente seria intensa nles.  - O que o corpo perde a alma ganha. Não foi Paul Bourget que  demonstrou isto na sua Psychologie Contemporaine? Um mau novelista  - ajuntou ela, achando necess rio desculpar-se por ter citado um autor  tão fora de moda e tão pouco reputado - mas um bom ensa¡sta, na mi-

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  nh a opinião. Não foi Paul Bourget? - repetiu.  - Sim, deve ter sido Paul Bourget - respondeu Philip com lassidão.  - A energia que se quer gastar em paixão f¡sica  desviada de seu cur-  so e faz girar os moinhos da alma. - "Faz girar os moinhos da alma"  era talvez levemente romntico demais, demasiadamente vitoriano, muito  ... Meredith, pensou ela no momento mesmo em que pronunciou estas  palavras. - O corpo  condenado e canalizado - corrigiu Molly -,  constrangido a p"r em marcha os d¡namos do esp¡rito. O inconsciente  contrariado se desafoga intensificando o consciente.  - Mas quem deseja ter o seu consciente intensificado? - perguntou  Philip, contemplando com raiva o corpo delicioso que estava na outra  extremidade do sof . - Para falar a verdade, estou ficando um pouco  cansado do consciente. - Ôle admirava o corpo de MoIly, mas o £nico  contato que ela queria permitir-lhe era o do esp¡rito, muito menos interes-  sante e menos belo. Òle desejava beijos e não obtinha senão anedotas  anal¡ticas e epigramas filos¢ficos. - Inteiramente cansado - repetiu le.# 

Não era para admirar.  Molly limitou-se a rir.  - Não comeces a fingir que s o homem paleol¡tico das cavernas. Is-  so não te fica bem. Cansado do consciente, esta  boa! Logo quem! Pois

  olha, se est s cansado do consciente, então  que est s cansado de ti mes~  mo ...  - O que  exatamente o que acontece - disse Philip. - Tu me tor-  naste cansado de mim mesmo. Absolutamente cansado. - Sempre irrita-  do, le se ergueu para partir.  -  um insulto? - inquiriu ela, erguendo os olhos para o novelista.  - Por que te fatiguei de ti mesmo?  Philip sacudiu a cabea:  - Não te posso explicar ... Deixei de explicar as coisas ...  Estendeu a mão. Molly tornou-a na sua, deixando pousado nle o mes-  mo olhar interrogador. Philip continuou:  - Se não f"sses uma das vestais da civilizaão, compreenderias sem  ter necessidade que te explicassem. Ou melhor, não haveria nada a expli-

  car. Porque não me terias cansado de mim mesmo ... E permite-me  acrescentar, Molly, que, se f"sses verdadeira e l¢gicamente civilizada,  tomarias precauões para te tornares menos desej vel. A desejabilidade   uma coisa b rbara. Selvagem como os pinchos e agarramentos. Tu devias  ser parecida com George Eliot. Adeus! - E, apertando-lhe a mão pela  £ltima vez, saiu da pea a manquejar.  Na rua recuperou um pouco a calma. Pâs-se at a sorrir de si mesmo.  Porque aquilo tinha graa. O espet culo do caador caado sempre   comico, mesmo quando o caador acontece ser a gente mesmo. Cons-  ciente e civilizado, le f"ra vencido por algum ainda mais civilizado do  que le. Um exemplo de justia potica. Mas que advertncia! As  par¢dias e caricaturas são as mais penetrantes das cr¡ticas. Philip vislum-  brou em Molly uma espcie de versão de si mesmo, feita por Max Beer-

  bohm. O espet culo era alarmante. Depois de sorrir, ficou pensativo.  - Devo ser medonho - refletiu.  Sentado numa cadeira, no parque, meditou sâbre seus defeitos. J os ti-  nha examinado muitas vzes. Mas nada fizera ainda com relaão a les.  Sabia de antemão que ainda daquela vez não faria nada. Pobre Elinor! A  algaravia de Molly s"bre as relaões plat"nicas e sâbre Paul Bourget lhe  deu uma idia do que ela tinha de suportar. Philip resolveu contar-lhe sua  aventura com Molly - duma maneira comica, porque e sempre mais  f cil exprimir-se por gracejos - e p"r-se em seguida a falar de ambos.

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  Sim, era o que ia fazer. Devia ter falado antes. Havia algum tempo que  Elinor andava tão estranhamente silenciosa, duma maneira tão contr ria  ... sua natureza - tão remota. . . O fato lhe causava inquietude; Philip  queria falar-lhe, sentia que devia falar-lhe. Mas falar de qu? Aqule  epis¢dio rid¡culo com Molly lhe fornecia uma entrada no assunto. 

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Vi Molly d'Exergillod esta tarde - comeou le quando viu Eli- 

nor.  Mas o tom do "Viste?" que a mulher emitiu pareceu-lhe tão frio e indi-# 

ferente que Philip não foi adiante. Fz-se um silncio.  Elinor continuou a sua leitura.  O marido lanou um olhar furtivo por cima da borda superior do livro  que segurava nas mãos. O rosto p lido de Elinor tinha uma expressão cal-  ma e long¡nqua. Philip tornou a sentir aquela inquietude cheia de cuida-  dos que experimentara tão repetidamente durante as £ltimas semanas.  - Por que não falas mais agora? - perguntou aquela noite depois do  jantar, reunindo t¢da a coragem que tinha.

  Elinor encarou o marido, erguendo os olhos do livro:  - Eu não falo mais? - disse ela sorrindo ir"nicamente. - Sem  d£vida  porque não h a dizer nada que apresente um intersse especial.  Philip reconheceu nestas palavras uma das respostas que le tinha o  h bito de dar ...s censuras de Elinor, e ficou de tal maneira intimidadoque  se calou. E no entanto era uma injustia da parte dela retrucar-lhe daque-  le modo. Porque no seu caso a resposta encerrava uma verdade; le não  tinha efetivamente nada de interessante a dizer. · f"ra de mant-las  secretas, acabara por abolir quase completamente suas sensaões ¡ntimas.  Parecia passar-se muito pouca coisa na parte não-intelectual do seu  espirito - muito pouca coisa, em todo caso, que não fosse ou trivial ou  então desabonat¢ria. Ao passo que Elinor tinha sempre um mundo de coi-

  sas a dizer. Coisas que se diziam por si mesmas, que sa¡am s¢zinhas das  profundezas de seu ser. Philip quisera explicar-lhe isto; mas era dificil,  não podia ...  - Assim mesmo - conseguiu dizer ... custa de esf"ro, ao cabo dum  momento -, antigamente tu falavas mais. Foi s¢ nestes £ltimos dias ...  - Suponho que  porque estou um pouco cansada de falar, a¡ est ...  - Mas por que havias de estar cansada?  - Não se tem o direito de cansar de quando em quando?  Elinor soltou uma risadinha um tanto vingativa. E acrescentou:  - Tu pareces sofrer de canseira cr"nica ...  Philip olhou para ela com uma espcie de ansiedade. Seus olhos pare-  ciam implorar. Mas ela não queria deixar-se comover. Fizera-o demasia-

  das vzes. Philip tinha explorado o seu amor, retribu¡ra-o mal, sistem...ti-  camente, e, cada vez que ela ameaava revoltar~se, le se tornava de s£bi~  to melanc¢lico e, na sua fraqueza, apelava para os bons sentimentos da  espâsa. Daquela vez saberia ser dura. Ele podia tomar os ares s£plices e  desamparados que quisesse - não lhe daria atenão. Era bem feito. Ape-  sar de tudo Elinor se sentia um pouco culpada. E no entanto a culpa era  dle. Por que não podia Philip ain -la ativamente, duma maneira articu-  lada, clara? Quando ela lhe oferecia o seu amor, le aceitava-o passiva-  mente como uma coisa que lhe coubesse por direito. E quando ela cessava 

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de oferecer, Phil tomava um ar silenciosamente inquieto e implorativo.  Mas quanto a dizer alguma coisa, a fazer alguma coisa ...  Os segundos passaram. Elinor esperava, fingindo que lia. Se ao menos  le falasse, se ao menos se movesse! Esperava ansiosamente uma des-  culpa para am -io de n¢vo. Quanto a Everard - ah! Everard nem mes-  mo existia. Nas profundezas instintivas de seu ser, le não tinha na verda  de nenhuma importncia, e se ao menos Philip se desse o trabalho de  am Ia, um pouco que f¢sse, le não teria mais importncia para a parte  consciente dela, que procurava am -lo - arri -lo por princ¡pio, por assim  dizer, arn -lo de vontade plena, de prop¢sito deliberado ... Mas os  segundos se passaram em silncio. E enfim, com um pequeno suspiro  (porque le quisera, le tambm, dizer alguma coisa, fazer alguma coisa;  mas era imposs¡vel, porque seria preciso que essa alguma coisa f"sse  pessoal), Philip tornou a pegar do livro e, no intersse do romancista  zo¢logo de seu romance, continuou a leitura sâbre o instinto de posse nas  aves ... Lia de nâvo. Não ia dizer nada, no fim de contas. Muito bem; se  le queria absolutamente que ela se tornasse amante de Everard, a culpa  era dle. Elinor tentou encolher os ombros e fazer-se truculenta. Mas sen~  tia bem, no seu ¡ntimo, que a ameaa era dirigida contra ela mesma, mais

  do que contra Philip. Era ela e não le que estava condenada. Condenada  a ser amante de Everard.  Tomar um amante tinha parecido a Elinor, te¢ricamente e de antemão,  um assunto que não apresentaria grandes dificuldades. Ela não o conside-  rava como moralmente mau. Ah! todo sse alvor"o que fazem a respeito  disso os cristãos e as hero¡nas de romances! Era incompreens¡vel, "Se  duas pessoas desejam dormir juntas", dizia ela, "por que não o fazem  bcm simplesmente, francamente, sem se atormentarem a si mesmas nem  aos outros que se acham por perto?" Ela não temia as conseqncias  mundanas do fato de tomar um amante. As pessoas que, sabendo disso,  fariam objeões eram precisamente aquelas a quem ela, Elirior, fizera  tambm as suas objeões. Recusando procur -la, essas pessoas lhe  dispensariam um favor. Quanto a Phil, seria bem feito. Tivera em seu

  poder a possibilidade de impedir que o fato se consumasse. Por que não  pudera aproximar-se dela, dar-lhe um pouco mais de si mesmo? Elinor  tinha-lhe mendigado o amor; mas o que o mafido lhe dera era uma  benevolncia remota e impessoal. Um pouco de calor, era tudo o que ela  desejava, um pouco de simples humanidade. Não era exigir muito ... E  ela o tinha prevenido tantas vzes do que aconteceria se le não lho des-  se ...  Philip não compreendia? Ou simplesmente aquilo lhe era indiferente?  Talvez le não sentisse a menor m goa; a punião não conseguiria o seu  objetivo. Seria humilhante. Mas no fim de contas - continuava ela a  fazer-se lembrada cada vez que chegava (ainda uma vez mais) ...quele  ponto da sua discussão interior -, no fim de contas não era apenas, nem 

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 mesmo principalmente, para punir Philip, não era com a finalidade essen-

  cial de ensin -lo a ser humapo, mediante a dor e o ci£me, que ela ia tomar# 

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  um amante. Era no intersse da sua felicidade. (Ela se esforaria para  esquecer como a tornava desgraada a busca da pr¢pria felicidade.) De  sua felicidade pr¢pria, independente. Elinor se acostumara a pensar e a  agir exclusivamente em relaão a Philip. Mesmo quando projetava tomar  um amante, era ainda nle que Elinor pensava. E aquilo era absurdo,  absurdo.  Mas Elinor era obrigada a repetir constantemente os lembretes de seu  direito, de sua intenão de ser feliz por conta pr¢pria. Sua maneira de  pensar natural e habitual, mesmo a respeito de um poss¡vel amante, era  influenciada ainda pelo marido - tudo se relacionava com a conversão  ou a punião dste. Era s¢rnente ... custa de esforos, e dum modo delibe-  rado, que ela podia lembrar-se de esquec-lo.  Mas, de qualquer forma, e f"ssern quais f"ssem seus motivos para o  fazer, tomar um amante lhe tinha parecido, por antecipaão, uma coisa  que não apresentava grande dificuldade do ponto de vista psicol¢gico.  Sobretudo se o amante devesse ser Everard Webley. Porque ela gostava  de Everard - gostava muito, mesmo; admirava-o; sentia-se  estranhamente comovida e palpitante pelo efeito da f"ra que parecia  emanar dle. E entretanto, quando se tratava de contato f¡sico com le,  que dificuldades extraordin rias surgiam de imediato! Gostava de achar-  se a sos com le; gostava de suas cz,~rtas; podia imaginar, quando Webley  não a tocava, que estava apaixonada por le. Mas quando, no segundo  encontro depois do regresso ... Inglaterra, Everard a tomara nos braos e  lhe dera um beijo, Elinor fIcara prsa duma espcie de horror, sentindo

  que adquiria uma frieza de pedra nos braos dle. Era o mesmo horror, a  mesma frieza que sentira, havia quase um ano atr s, quando Everard ten-  tara beij -la pela primeira vez. A mesma - embora no intervalo ela se  tivesse preparado para pensar de outra maneira, embora tivesse acostu-  mado o esp¡rito consciente ... idia de ter aqule homem como amante.  Aqule horror, aqule calafrio eram as reaoes espontneas da parte  instintiva e habitual de seu ser. Fâra s¢ o esp¡rito que decidira aceit -lo.  Os sentimentos, o corpo, todos os h bitos de seu eu instintivo estavam em  revolta. O que o intelecto achava inofensivo o corpo retesado e arisco  condenava apaixonadamente. O esp¡rito era libertino, mas a carne e suas  afeiões eram castas.  - Por favor, Everard - pedira ela -, por favor ...  Webley largou-a.

  - Por que me odeias?  - Mas eu não te odeio, Everard.  - Não ... eu te dou apenas arrepios, eis tudo! - disse le num tom  feroz de zombaria. Ferido, aqule homem tinha prazer em abrir a propria  ferida. - O que acontece  simplesmente isto: eu te repugno ... 

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- Como podes dizer coisa semelhante? - Elinor se sentia infeliz,  envergonhada da recusa de seu corpo; mas a sensaão de repulsa persistia

  ainda. - Porque  essa a verdade.

  - Não, não . - A estas palavras Everard estendeu de n"vo as mãos.  Elinor sacudiu a cabea. - Mas não deves me tocar - suplicou. -  Agora não! Isso estragaria tudo. Não posso explicar-te por qu.. . . Não  sei por qu. Mas agora não. Ainda não - ajuntou ela, prometendo  implicitamente, mas evitando por ora.  Aquela promessa impl¡cita reavivou a insistncia de Everard. Elinor  arrependeu-se um pouco de ter pronunciado aquelas palavras, mas ao

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  mesmo tempo sentia-se contente por se ter comprometido at aqule pon-  to. Aliviada por se ter subtra¡do ... ameaa do contato material, não deixa-  va entanto de querer mal a si mesma por causa da recusa que opusera a  Everard. Seu corpo e seus instintos se tinham rebelado contra a sua von-  tade. A promessa impl¡cita constitu¡a uma repres lia dessa vontade con-  tra os traidores que moravam dentro dela. Elinor dava a Everard a  compensaão que, sentia, era seu dever dar~lhe. "Ainda não." Mas quan-  do? Quando? Não importa quando, respondia a sua vontade, não importa  - quando quiseres. Era f cil prometer, mas, ah! como era dificil cum-  prir! Elinor suspirou ... Se ao menos Philip consentisse em se deixar  amar por ela ... Mas le não dizia nada, não fazia nada - continuava  simplesmente a ler. Com o seu silncio Philip a condenava ... infidelidade. 

CAPITULO XXIX 

A cena era em Hyde Park; o dia, um s bado de junho.  Vestido de verde, com uma espada ... cinta, Everard Webley se dirigia  a um milhar de Inglses Livres, do alto de seu cavalo branco, Bucfalo.  Com uma precisão militar que faria honra ... Guarda, os Inglses Livres se  haviam reunido na esplanada ... margem do rio, em Blackfriars, e tinham  marchado com m£sica e com estandartes simb¢licos para Charing Cross,  subindo a Northumberland Avenue, atravessando Trafalgar Square e  Cambridge Circus, at a Tottenham Court Road, e seguindo da¡, ao longo

  de Oxford Street, rumo do Marble Arch. · entrada de Hyde Park tinham  encontrado uma procissão antivivissecc¡onista, e do encontro resultara le-  ve confusão - algumas filas misturadas, algumas dissonncias musicais,  quando as duas m£sicas se chocaram - os Brilish Grenadiers com Mi-  nha F Ergue os Olhos para Ti, ¢ Cordeiro do Calv rio -, um emara-  nhamento de bandeiras: "PROTEJAMOS OS NOSSOS CACHORRI-  NHOS" com "OS INGLÒSES JAMAIS SERÇO ESCRAVOS!-  "SOCIALISMO  TIRANIA "com "DOUTâRFS OU DEMâNIOS?"  Mas a admir vel disciplina dos Inglses Livres tinha impedido que a  confusão se tornasse sria, e, com um breve atraso, os mil homens tinham  entrado no parque, desfilando diante de seu chefe, e formando finalmente  em trs lados de um espao vazio quadrangular, do qual Everard ocupa-  va, com seu estado-maior, o centro do quarto lado. As trombetas tocaram

  uma farifarra e os mil homens entoaram as estrofes do hino um pouco  kiplinguesco de Everard, a Canão dos Inglses Livres. Quando o hino  cessou, Eyerard comeou seu discurso.# 

- Inglses Livres! - gritou le - camaradas!  E, ao som daquela voz forte e desembaraada, fez-se um silncio mes-  mo entre os espectadores ociosos que se tinham reunido para ver o que se  passava. Carregadas duma fora que não pertencia intrinsecamente a  elas, duma fora que pertencia ao orador e não ao que le dizia - aque-  las palavras ca¡ram uma a uma, eletrizantemente audiveis, em meio do

  silncio atento que elas haviam criado. Webley comeou por fazer um  elogio ... disciplina dos Inglses Livres.  - A discipiina - disse le---, a disciplina volunt...riamente aceita   a primeira condião da liberdade, a -virtude primordial dos Inglses  Livres. Os espartanos disciplinados e livres contiveram as hordas persas.  Os macedânios livres e disciplinados -conquistaram metade do mundo.  Cabe a n¢s, Inglses Livres e disciplinados, a tarefa de libertar nosso pa¡s 

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dos escravos que o reduziram ... escravidão. Trezentos homens combate  rarri nas Term¢pilas contra dezenas de milhares. Na luta que temos de  sustentar, as proporões não são tão desesperadoras. Vosso batalhão   apenas um entre mais de sessenta -- um simples milhar entre os 60 O00  Inglses Livres da Inglaterra. O n£mero dos nossos cresce de dia para dia.  Vinte recrutas novos, cinqenta - ...s vzes cem se incorporam a n¢s  di...riamente. Nosso exrcito engrossa, o verde exrcito dos Inglses  Livres.  "Os Inglses Livres trazem um uniforme verde. Òles vestem a farda de  Robin Hood e de Littie John, a farda dos que estão fora da lei! Sim, por-  que n¢s estamos fora da lei neste est£pido mundo democr tico - fora da  lei e orgulhosos por isso mesmo! A lei do mundo democr tico  a quanti-  dade. N¢s, que estamos fora dessa lei, cremos na qualidade. Para os  pol¡ticos democratas a voz do maior n£mero  a voz de Deus; sua lei  a  lei que agrada ao populacho. Fora do p lio da lei feita pelo populacho,  queremos n¢s o govrno dos melhores, e não o dos mais numerosos. Mais  est£pidos do que seus av¢s liberais, os democratas de hoje querem desani-  mar a iniciativa individual e, nacionalizando a ind£stria e o solo, investir  o Estado de podres tirnicos como le jamais possuiu, salvo talvez na ¡n-  dia, no tempo dos mong¢is. N¢s, os fora-da-lei, somos livres. Cremos no

  valor da liberdade individual. Queremos encorajar a iniciativa individual,  porque acreditamos que, coordenada e controlada no intersse da socie-  dade em geral, a iniciativa individual produz os melhores resultados  econâmicos e morais. A lei do mundo democr tico  a estandardizaão  humana,  a eduão de tâda a humanidade ... menor medida comum. Sua  religião  a adoraão do homem mediano. N¢s, os fora-da-lei, cremos na  diversidade, na aristocracia, na hierarquia natural. Desejamos suprimir  todos os obst culos suprim¡veis e dar a cada homem sua plena possibili-  dade, a fim de que os melhores possam elevar-se ... situaão para a qual a  natureza os destinou. Numa palavra, n¢s cremos na justia. E veneramos  não o homem ordin rio, mas o homem extraordin rio! Eu poderia estirar  at o infinito esta lista de pontos em que n¢s, os Inglses Livres, estamos

  em desacârdo radical com os governantes democr ticos do que foi outro-  ra a livre e alegre Inglaterra. Mas j vos disse o bastante para mostrar-vos  que não pode haver nenhuma paz entre les e n¢s. O branco dles  o nos-  so prto; seu ideal pol¡tico  a nossa abominaão; seu paraiso terrestre   * nosso inferno. Colocando-nos volunt...riamente fora da lei, repudiamos  * regra Mes, vestimos o costume verde da floresta. E esperamos a nossa  hora, esperamos a nossa hora. Porque a nossa hora h de vir, e não temos  a intenão de ficar para sempre fora da lei. Tempo vir em que as leis  serão as que tivermos feito, em que a floresta ser o ref£gio dos que detm  atualmente o poder. H dois anos, nossa tropa era insignificante. Hoje   um exrcito - um exrcito de homens fora da lei. Ainda um pouco de  tempo, ¢ meus camaradas, e ela ser o exrcito dos que fazem as leis, e

  não mais o dos que as infringem. Sim, dos que as infringem. Porque, antes 344

 que possamos fazer boas leis, ser-nos-ii necess rio infringir as m s.  pre

-  ciso que tenhamos a coragem de nosso estado de fora-da-lei. Inglses  Livres, companheiros fora da lei, quando chegar o momento, tereis essa# 

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  coragem?-  Das Fileiras de t£nicas verdes se elevou um grito enorme.  - Quando eu der o sinal, haveis de me seguir?  - Seguiremos! Seguiremos! -- repetiram a uma voz os mil homens  k,crdes.  - Mesmo se fâr preciso infringir certas leis?  Houve uma nova explosão de entusiasmo afirmativo. Quando ela se  apaziguou, e no momento em que Everard Webley abria a b"ca para  continuar o seu discurso, uma voz gritou:  Abaixo Webley! Abaixo a mil¡cia dos ricos! Abaixo os Bloodi, 

B ...  Mas, antes que a voz tivesse podido enunciar na ¡ntegra a detestada  par¢dia do nome dles, uma meia d£zia de Inglses Livres mais pr¢ximos  se havia lanado s"bre o aparteante.  Everard Webley ergueu-se s"bre os estribos.  - Para as fileiras! - gritou em tom perempt¢rio. - Como ousais  abandonar as fileiras?  Houve oficiais que se precipitaram s"bre o lugar do tumulto, ordens  gritadas com c¢lera. Os Inglses Livres ultrazelosos tornaram a entrar em  forma. Segurando contra o nariz um leno manchado de sangue, e escol-  tado por dois agentes de pol¡cia, o inimigo dos homens de verde afastou-

  se. Tinha perdido o chapu. Seus cabelos em desalinho brilhavam como  uma chama vermelha ao sol. Era Illidge.  Everard Webley virou-se para o oficial comandante da companhia cu  jos homens tinham rompido as fileiras.  -- A insubordinaão. . . - comeou le; e sua voz se flez fria e dura;  não mais forte, mas perigosamente incisiva - a insubordinaão  a  pior ...  Illidge retirou o leno do nariz e gritou numa voz de falsete:  - Ah! mocinhos malvados ...  Houve gargalhadas partidas dos espectadores. Everard não f-ez caso da  interrupão e, tendo terminado a sua reprimenda, retomou o fio do discur-  so. Sua voz, imperiosa e no entanto persuasiva, apaixonada, mas medida  e musical, sua voz fez vibrar o audit¢rio; num momento o silncio que-

  brado se refez em t¢rno de suas palavras, a atenão dissipada se concen-  trou e se fixou de n"vo. Houvera uma rebelião; le conquistara mais unia  vit¢ria. 

Spandrell esperava sem impacincia. O atraso de Illidge lhe dava  oportunidade para beber um ou dois coquetis suplementares. Estava no# 

seu terceiro e sentia~se j muito melhor e mais alegre quando a porta do  restaurante se abriu, dando passagem a filidge, que vinha com ares beli-  cosos de desafio, dando a impressão de que trazia ferozmente em triunfo

  o âlho enegrecido.  - Bebedeira e desordem? - interrogou Spandreli, ... vista dos estra-  gos. - Ou ser que encontraste algum marido furioso? Ou tiveste então  uma explicaão com uma dama?  Illidge sentou-se e contou com detalhes a sua aventura, bazofiando e  fazendo floreios. A crer nle, havia-se portado como um misto de Hor cio  Cocles na defesa da ponte e de Santo Estvão sob a avalancha de pedras.  - Que patifes! - disse Spandrell com simpatia. Mas seus olhos  brilhavam dum riso cheio de mal¡cia. As desgraas dos seus amigos  constitu¡am para le uma fonte de divertimento infal¡vel, e o que Illidge

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  acabava de contar era um desastre particularmente divertido.  - Pelo menos eu estraguei o melhor efeito daquele discurso nojento  de Webley - continuou Illidge, no mesmo tom satisfeito.  - Seria um pouquinho mais satisfat¢rio se lhe tivesses estragado a  cara. . .  Illidge se sentiu picado pelo tom de zombaria com que foram ditas es-  tas palavras.  - Estragar-lhe a cara não seria suficiente - disse le com ferocidade,  fechando a carranca. - Aqule homem devia ser exterminado.  um  perigo p£blico - le e o seu bando de malfeitores! - E desandou a blas-  fernar.  Spandrell limitou-se a rir.  - Esbravejar  f cil. Por que não agir um pouco, para variar? ...  Um pouco de aão direta, no gnero do pr¢prio Webley?  O outro deu de ombros como para se desculpar.  - Não estamos suficientemente bem organizados.  - Não me parece que haja tanta necessidade de organizaão para dar  uma cacetada na cabea dum homem. Não, o que  verdade  que vocs  não são suficientemente corajosos ...  filidge corou:  - Isso  uma mentira!  - Não estão suficientemente bem organizados! - Spandrell repetiu  com desprzo. - Ao menos s moderno nas tuas desculpas. O grande

  deus Organizaão! Brevemente a arte e o amor estarão tambm dobrando  a espinha, como tudo mais ... Por que os versos de fulano são tão maus?  Porque a ind£stria da poesia não est suficientemente bem organiza-  da ... E o amante impotente se desculpar da mesma maneira, e assegu-  rar ... dama indignada que, na pr¢xima vez, ela se achar em face duma  organizaão absolutamente perfeita... Não, não, meu caro Illidge, isso  não pega, sabes? isso não pega...  Oh, tu s muito engraado, não h d£vida nenhuma - disse Illid 

ge, ainda vermelho de c¢lera. - Mas dizes tolices. Não se pode comparar  a poesia com a pol¡tica. Um partido pol¡tico  um amontoado de pessoas  que  necess rio disciplinar e manter unidas. Um poeta  um homem sso.  - Mas um assassino tambm não ? - O tom da voz de Spandrell e

  o seu sorriso eram sempre sarc sticos. filidge sentiu o sangue refluir-lhe  ao rosto, como o calor dum braseiro interior que tivesse s£bitamente# 

rebentado em chamas. Òle detestava Spandrell por causa daquela facul-  dade que le tinha de humilh -lo, de fazer-lhe sentir tâda a sua pequenez,  de lhe dar a conscincia da sua tolice e da sua vergonha. Illidge tinha che-  gado com uma sensaão de importncia e de heroismo, todo vermelho de  satisfaão. E eis que, em algumas palavras pronunciadas lentamente e

  com uma zombaria perversa, Spandrell acabava de transformar aquela  satisfaão de si mesmo num furor de vergonha. Houve um silencio; am-  bos iam engolindo a sopa sem dizer palavra.  - Um s¢ homem - disse Spandrell meditativamente, atirando-se pa-  ra tr s na sua cadeira. - Com tâda a responsabilidade dum homem ...  Mil homens não tm responsabilidade. Eis por que a organizaão  uma  coisa tão reconfortante. O membro de um partido pol¡tico se sente tão  seguro como o freqentador duma igreja. Seu partido pode decretar a  guerra civil, o saque, o massacre; le faz o que lhe dizem, prazenteira-  mente, porque sua responsabilidade não est comprometida.  a do chefe

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  que est . E o chefe  o homem raro, como Webley. O homem que tem  coragem.  - Ou covardia, no caso dle - disse filidge. - Webley  o coelhi-  nho burgus que o terror arrasta ... ferocidade.  - Achas? - perguntou Spandreli, arqueando as sobrancelhas ir"ni-  camente. - Enfim, talvez tenhas razão. Mas, seja como f"r, le difere um  pouco do coelho ordin rio. O coelho ordin rio não se deixa arrastar ...  ferocidade, mesmo pelo mdo. Òle se deixa aterrorizar at a mais abjeta  inatividade - ou ... abjeta atividade que consiste em obedecer ...s ordens  de outrem. Mas jamais ... atividade por conta pr¢pria, ... atividade cuja  responsabilidade lhe deve caber. Quando se trata de assass¡nio, por exem-  plo, sses coelhos ordin rios não se mostram particularmente desejosos  de comet-lo, hein? Òles esperam ser organizados. A responsabilidade   demasiada para o pequeno indiv¡duo. Ôle fica amedrontado.  - Meu Deus,  evidente que ningum deseja ir para a f"rca.  - Òle ficaria amedrontado mesmo se não existisse a f"rca.  - Não vais agora p"r em cena mais uma vez o imperativo categ¢rico,  eu suponho. -- Chegara a vez de Illidge mostrar-se sarc stico.  - Ôje aparece em cena por si mesmo ... At no teu caso pessoal.  Quando se tratasse de chegar a vias de fato, tu não ousarias nunca fazer  nada a Webley. a menos que dispusesses duma organizaão que te  livrasse de tâda responsabilidade. Não, não ousarias - repetiu Spandrell  numa espcie de desafio cheio de esc rnio.

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Encarou Illidge com um olhar penetrante, p lpebras entrecerradas, e,  enquanto durou a resposta um pouco sobrecarregada de ret¢rica em que  filidge falava em lanhar cobras, abater tigres e esmagar percevejos, le fi-  cou a estudar o rosto congestionado e furioso de sua v¡tima. Como era

  c"mico quando se esforava por fazer o papel de her¢i! Elidge continuava  seu discurso incendi rio, tendo desagrad ...vel mente conscincia do exces-  so de amplitude e do som "co de suas frases. Mas a nfase, e sempre a n-  fase, ... medida que o sorriso do outro se tornava mais desdenhoso, lhe  parecia ser a £nica rplica poss¡vel ... zombaria tranqila e exasperante de  Spandreil. Ônfase e mais nfase - por mais falsa que pudesse parecer a  sua ret¢rica. Como um homem que p ra de gritar porque teme que sua  voz degenere em soluos, Illidge se calou de repente. Spandreli sacudiu a  cabea com lentidão.  - Est bem - disse le misteriosamente. - Est bem. 

" absurdo", repetia Elinor para si mesma. " pueril. Pueril e absur-  do!" Era uma inconseqncia. Everard não tinha mudado s¢ porque esti-

  vera montado num cavalo branco, a comandar e a receber as aclamaões  de uma multidão entusiasta. Não se tornava melhor s¢ porque ela o tinha  visto ... frente de um de seus batalhões. Era absurdo, era pueril ficar como-  vida daquela maneira. Mas o fato  que ela ficara comovida mesmo; e s-  se fato permanecia. Que estremecimento, quando Webley aparecera, a  cavalo, ... frente de seus homens! O coraão lhe batera mais forte, pare-  cera aumentar ... E aquela inquietude, durante os poucos segundos de  silncio, antes que le comeasse a falar! Tinha sido um verdadeiro  terror: Webley ia talvez gaguejar, hesitar; ia talvez dizer alguma coisa

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  est£pida ou vulgar; ia revelar-se talvez um charlatão ... E depois,  quando sua voz se fez ouvir, sem esforo, mas vibrante, penetrante,  quando seu discurso comeou a se desenrolar em palavras apaixonadas e  palpitantes, mas nunca teatrais, em frases ricas, mas breves e incisivas-  então, que triunfo, que sentimento de orgulho! Mas quando aqule ho-  mem fizera a interrupão, Elinor sentira, ao mesmo tempo que uma onda  de indignaão contra o aparteante, um renovamento de sua inquietude, de  seu terror de ver Everard falhar ou ser humilhado e envergonhado p£bli-  camente. Mas le ficara em cima de seu cavalo, impass¡vel, externara a  sua reprimenda severa, tornara a criar um silncio fremente de respi-  raões suspensas, e depois, enfim, retomara o discurso, como se nada se  tivesse passado. A inquietude de Elinor tinha dado lugar a uma felicidade  extraordin ria ... O discurso terminou; houve uma explosão de gritos  entusiastas, e Elinor se sentiu f¢rmid...velmente orgulhosa e exaltada, ao  mesmo tempo que embaraada, como se os vivas tivessem sido em parte  para ela; e tinha rido alto, sem saber por qu, e o sangue lhe subira ...s 

faces, e ela se voltara cheia de confusão, sem ousar erguer os olhos para  Everard; depois, sem motivo, pusera-se a chorar.  -Absurdo, pueril", repetia para si mesma, a fim de se tranqilizar. Mas  ali estava: a coisa absurda, pueril se tinha produzido; e não podia mais  ser desfeita.

 # 

DO CADERNO DE NOTAS DE PHILIP QUARLES 

"No Sunday Pictorial, um instantneo de Everard Webley, com a b"ca  aberta - um buraco negro no meio dum rosto contra¡do pelo es oro -,  fi5  aberta para berrar.'0 Sr. E. W., o fundador e o chefe da B. B. F., falou  s bado £ltimo a um batalhão de Inglses Livres em Hyde Park', eis tudo  quantoficou do acontecimento - essa g rgula simb¢lica da demagogia.

  Uma b"ca aberta para zurrar. Que horror! E no entanto o acontecimento  foi deveras impressionante. E os berros de Webley ressoavam mui nobre-  mente, no momento em que foram emitidos. E o homem tinha um ar  monumental em cima do seu cavalo branco. Escolhendo um instante iso~  lado entre o que tinha sido um conjunto, uma continuidade, a Kodak o  transformou num espantalho da advertncia. Injustia? Ou  verdadeira a  visão da Kodak e falsa a minha? Porque, no fim de contas, o conjunto  impressionante devia ser composto de instantes tão pavorosos como o  que afotografia registrou. Pode um todo ser algo completamente diverso  das suas partes? No mundo f¡sico, sim. Considerados como um todo, o  corpo e o crebro são radicalmente diferentes dos eltrons que os consti-  tuem. Mas no mundo moral? Pode uma coleão de coisas sem valor cons-  tituir uma coisa de alto valor? A fotogralia de Everard apresenta um

  problema. Eis a¡ milhões de instantes monstruosos queformwn uma meia  hora magn¡fica.  "Não que eu tivesse qualquer d£vida s"bre essa magnoicncia, no  momento preciso. E... falou muito das Term¢pilas e dos espartanos.  Mas minha resistnciafoi mais her¢ica ainda. Le"nidas tinha trezentos  companheiros. Eu defendo as minhas Term¢pilas espirituais s¢zinho con-  tra E. e seus Inglses Livres. Òles me impressionam; mas eu lhes oponho  resistncia. A parada, para principiar, foi magn¡fica. Eu a olhava, encan-  tado. Como sempre. Como se explica a atraão que exerce o espet culo  mililar? Nega-se melhor do que se explica... Fiquei a pensar nisso

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  durante todo o tempo em que estive olhando.  "Uma esquadra se compõe apenas de dez homens e  neutra sob o pon-  to de vista emotivo. O coraão s¢ comea a bater ... vista duma compa-  nhia. As evoluões dum batalhão são inebriantes. E uma brigada j um  exrcito com bandeiras, o que equivale - como sabemos pelo 'Cntico  dos Cnticos'- aflicar apaixonado. A emoão  proporcional ao n£me- 

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ro. Admitindo-se ofato de não trmos mais de 1 metro e 75 de altura por  2 ps de largura, e de sermos solit rios, uma catedral  por f"ra mais  impressionante do que uma cabana e 1 quil"metro de homens em marcha  e mai . s imponente do que uma d£zia de vagabundos numa esquina. Mas  não  tudo. Um regimento  mais impressionante do que uma multidão. O  exrcito com bandeiras equivale ao amor apenas quando manobra  impec...velmente. As pedras que constituem um edifiio são mais belas do  que umas pedras amontoadas ... toa. O exerc¡cio e o uniforme impõem  uma arquitetura ... turba. Um exrcito  bonito. Mas não  ainda tudo; le  satisfaz instintos mais baixos que o instinto esttico. O espet culo de  sres humanos reduzidos ao automatismo satisfaz o desejo de f"ra.  Olhando escravos mecanizados, a gente se imagina um amo. Foi o que eu

  senti quando admirava as evoluões dos Inglses Livres de Everard. E,  desmontando assim minha admiraão, pea por pea, evitei que ela me  dominasse. Dividir para reinar. Fiz o mesmo com a m£sica e em seguida  com o discurso de Everard.  ---Quemagn¡j?'¡co diretor de cena o teatro perdeu em Everard! Nada po-  dia ser mais impressionante (rompendo o silncio estudadamente prolon-  gado) que aquelafanfarra de trombetas, e l em cima, solenes, as harmo-  nias maias de mil vozes entoando a Canão dos Inglses Livres. As  trombetas eram prodigiosas - como a ouverture do Juizo Final. (Por que  os sons harm"nicos nos sacodem tanto a alma?) Depois, quando a ouver-  ture das trombetas terminou, as mil vozes romperam nesse acorde quase  sobrenatural que tm sempre os coros. Formid vel, como a voz de Jeov .  Nem mesmo Reinhardt em pessoa teria conseguido isso de modo mais

  brilhante. Eu experimentava a sensaão de ter um buraco no lugar onde  se devia achar o meu diafragma; uma espcie deformigueiro inquieto me  percorreu a pele; as l grimas quase me vieram aos olhos. Tomei afazer  o papel de Le"n¡das, dizendo a mim mesmo que a m£sica estava abaixo  da cr¡tica,e as palavras eram uma declamaão rid¡cula.  ---A£ltima Trombeta, a voz de Deus - depois foi a vez de Everard  falar. Mas eu não me deixei ainda abater, dominar. E como lefalou bem!  Sua voz nos atingia em pleno plexo solar, como aqules sons harm"nicos  das trombetas. Era comovente e convincente, embora se soubesse que o  que le estava dizendo era vago e mais ou menos vazio de sentido. Anali-  sei os truques. Eram os habituais. O mais eficaz foi o emprgo de pala-  vras in piradoras que tm dois ou trs sentidos diferentes. `Liberdade,  por exemplo. A do t¡tulo e a do programa dos Inglses Livres  a

  liberdade de comprar, de vender e de possuir a propriedade com um  m¡nimo de interferncia do govrno. (Um m¡nimo bastante elevado, diga-  se entre parnteses; mas prossigamos ... ) Everard nos berra essapalavra  a plenos pulmões, com a sua voz que esmurrava o plexo solar: 'Comba-  temos pela LIBERDADE, 'vamos LIBERTAR o pa¡s, etc. O espectador  se v logo sentado em mangas de camisa, ao lado duma garrafa e duma 

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rapariga complacente, sem que haja leis, nem c¢digo de boas maneiras,

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  nem esp"sa, nem agentes de pol¡cia, nem padres para defender seja o que  f"r. A liberdade! Naturalmente: ela lhe desperta o entusiasmo 1 S¢ depois  que os Inglses Livres estiverem no poder  que o espectador perceber o# 

sentido inteiramente outro que tinha sido dado a essapalavra... Dividir  para vencer. Eu venci.  "P. S.: OU, Melhor, uma parte de mim mesmo venceu. Aquiri o h bito  de me aliar a essa parte e de aplaudir quando ela triunfa, Mas, no fim de  contas, ser ela a melhor parte? Neste caso particular, sim, talvez.   proviivelmente melhor abandonar-se ... an lise sem paixão do que ser  submergido pela encenaão e pela eloqncia de Everard ao ponto de se  converter ...s doutrinas dos Inglses Livres. Mas em outras circunstn-  cias? Rampion prov...velmente tem razão. Mas quando adquirimos o  h bito de dividir para reinar, em nome da inteligncia,  diticil parar. E  talvez não seja Meiramente uma questão de segunda natureza; quem sabe  se a natureza pura não tem interferncia no caso? f cil acreditar que  precisamos modificar nosso modo de vida. A dificuldade  agir de ac"rdo  com essa crena. O fato de eu me instalar no campo, por exemplo; ser  r£stica, paternal e bom vizinho; viver uma vida vegetativa e intuitiva -  ser verdadeiramente poss¡vel? Imagino-o; mas na realidade - na reali-  dade?... Por enquanto podia ser interessante engendrar uma persona-

  gem assim: um homem que sempre se deu o trabalho defavorecer suas  tendncias intelectu alistas a custa de t"das as outras. Evita o mais  poss¡vel as relaões pessoais, observa sem participar, não gosta de se  abandonar,  sempre espectador preferivelmente a ator. Por outro lado,  sempre teve o cuidado de nunca distinguir um dia, um lugar, de um outro  dia e de um outro lugar; de não passar em revista o passado nem defazer  projetos defuturo no Ano N"vo, de não celebrar nem o Natal nem os  anivers rios de nascimento, de não rever as paisagens de sua infncia, de  não fazer peregrinaões ...s cidades natais dos grandes homens, aos cam-  pos de batalha, ...s ru¡nas e assim por diante. Por esta supressão das  relaões emotivas e da piedade natural, parece-lhe ter atingido a liberdade  - a liberdade com relaão ... sentinientalidade, ao irracional, ... paixão, ao  impulso, ... emotividade. Mas, na realidade, como descobre pouco a pou-

  co, le não fiz senão estreitar e dessecar sua existncia; e, alm do mais,  embotou o seu intelecto graas ao pr¢prio processo que deveria, julgava  le, emancip -lo. Sua razão permaneceu livre - mas para se ocupar  s¢rnente com uma pequena fraão dos fatos da experincia. Òle percebe  seus defeitos psicol¢gicos e deseja, te¢ricamente, moditicar-se. Mas   dif¡cil vencer h bitos de t"da a vida; e talvez os h bitos não sejam senão  a expressão duma indiferena e dumafrieza inatas, quepoderia ser quase  imposs¡vel vencer. E para le, em todo o caso, a vida simplesmente inte-  lectual  maisf cil;  a linha de menor resistncia, porque  a linha que  evita os outros sres humanos. Entre stes, sua mulher. Porque le teria 

351#

 

uma mulher, e haveria elementos de drama nas relaões entre essa  mulher, que viveria principalmente com suas emooes e suas intuiões, e  le, o homem cuja existncia se mantm sobretudo no plano intelectual  abstrato. Òle a ama, ... sua maneira; e ela o ama, tambm de um modo to-  do particular. O que significa que le est satisfeito; mas acontece que ela  não est ; porque o amor, tal como le o concebe, comporta o m¡nimo des~

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  sas relaões humanas quentes e confiantes que constituem a essncia mes-  ma do amor, segundo a concepão dela. Ela se queixa disso; le quisera  dar mais, mas sente dificuldade em se modjicar. Ela ameaa mesmo  deix -lo, preferindo um amante mais humano; mas ama-o demais para  p"r a ameaa em execuão. " 

Naquele domingo de tarde, Elinor e Everard Webley fizeram um pas-  seio de autom¢vel pelo campo.  - Quarenta e trs milhas em uma hora e sete minutos - disse Eve-  rard, olhando para o rel¢gio, ao descer do carro. - Andamos depressa,  se levarmos em conta que sa¡mos de Londres e nos atrasamos por causa  daquele miser vel charabã, em Guildf"rd. Nada mau.  - E o principal - disse Elinor -  que estamos ainda vivos. Se  soubesses quantas vzes eu fechei os olhos esperando não reabri-los senão  no dia do Ju¡zo ...  Òle se p¢s a rir, feliz, em suma, por v-la assim apavorada ante a  violncia de sua maneira de conduzir o auto. Os terrâres que ela sentira  lhe davam uma sensaão agrad vel de fora e de superioridade. Tomou-a  pelo brao num gesto de proteão e ambos partiram a p ao longo da  estrada verdejante, rumo do bosque. Everard respirou profundamente.  - Ali! Isto  melhor do que fazer discursos pol¡ticos! - exclamou  le, apertando-lhe o braoi  - No entanto deve ser maravilhoso ficar em cima dum cavalo e  conseguir que um milhar de pessoas faa o que a gente quer.

  Everard riu.  - Infelizmente não h muita coisa mais em pol¡tica alm disso. -  Lanou um olhar para a companheira. - Gostaste do com¡cio?  - Fiquei eletrizada. - Ela o reviu sâbre o cavalo branco, ouviu-lhe  a bela voz vibrante, relembrou o seu sentimento de triunfo, as l grimas  subitas. Era magn¡fico, pensava Elinor, magfi¡f ico! Mas não achava meio  de recapturar sse sentimento de vit¢ria. Everard segurava-lhe o brao,  sua enorme presena planava sâbre ela, quase ameaadora. "Ser que le  me vai beijar?", perguntava Elinor a si mesma, nervosamente. Tentou  espantar aqule terror indiscreto e substitu¡~lo pela exaltaão da vspera.  Era magn¡fico! Mas o terror não se deixava exorcismar.  - Achei esplndido o teu discurso - disse em voz alta, perguntando 

352 a si mesma, entre parnteses, ao mesmo tempo que pronunciava estas

  palavras, a respeito de que falara le ... Recordava-se do som e do tim-  bre das palavras de Everard, mas não de sua significaão ... Era in£til.  -- Que madressilvas encantadoras!  Everard se ergueu nas pontas dos ps, enorme, e lhe apanhou umas  duas fl"res:# 

- Que beleza, que encanto! - Citou Keats, remexeu na mem¢ria pa-

  ra achar um verso do Sonho duma Noite de Verão. Indagou, liricamente,  por que se vivia nas cidades, por que se desperdiava tempo ... procura do  dinheiro e do poder, quando havia tâda aquela beleza ... espera de que a  viessem conhecer e amar.  Elinor o escutava, cheia duma espcie de mal-estar. Everard parecia  que estava ligando uma corrente que alimentava aqule amor da beleza,  como uma luz eltrica - apagando o amor da f"ra, a efic cia e as  preocupaões pol¡ticas para acender o amor da beleza. Mas por que não  havia de faz-lo, no fim de contas? Não havia nada de mal em amar as  coisas bonitas. Nada - s¢ que, por algum motivo obscuro, imposs¡vel de

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  descrever, o amor de Everard pela beleza não era bem o que devia ser.  Deliberado demais, talvez? Intermitente demais? Demasiadamente "ar-  tigo de frias"? Demasiadamente convencional, pesado, reverente, sem  unia ponta de humor? Ela o preferia no seu papel de cultor da f"ra. Co-  mo cultor da f"ra le parecia ser de melhor qualidade que como amante  da b...eza. Inferior, talvez, como amante da beleza, por ser como era tão  not vel como cultor da f"ra. Era uma compensaão. Tudo tem o seu  preo.  Continuaram o passeio. Numa clareira, entre as rvores, as dedaleiras  estavam se abrindo em dor.  - Dir-se-ia pequenas tochas ardendo de baixo para cima - disse  poticamente Everard.  Elinor parou diante duma ptanta alta, cujas primeiras fi"res campanu-  ladas ficavam ao n¡vel de seus olhos. A carne vermelha das ptalas era  fresca e el stica entre seus dedos. Espiou para dentro da bâca aberta da  campnula:  - Imagina como seria desagrad vel ter sardas na garganta - disse.  Isso para não falar nos besourinhos ...  Afastaram-se em silncio entre as rvores. Foi Everard quem falou  primeiro.  - Algum dia me amar s? - perguntou le de repente.  - Tu sabes como gosto de ti, Everard - Elinor sentiu o coraão

  parar; tinha chegado o momento, le ia querer beij -la. Mas o homem não  fez um gesto; limitou-se a rir, um pouco melanc¢licamente.  - Gostas muito de mim -- repetiu. - Ali! Se ao menos pudesses ser  um pouco menos razo vel, um pouco mais louca! Se ao menos soubesses  o que  amar! 

353# 

- Não ser bom que algum seja são de esp¡rito? - perguntou Eli-  nor. - São prviamente, quero dizer. Porque todos o podem ser depois.  At mesmo sãos demais, quando o acesso passou e os amantes se põem a  indagar se, no fim de contas, valeu realmente a pena ter renunciado ao  mundo ... Reflete, Everard, reflete primeiro. Queres perder o mundo?  - Nunca! - respondeu Everard; e sua voz tinha aquela vibraão  estranha e palpitante que ela parecia ouvir, não com os ouvidos, mas com  todo o seu corpo, em pleno diafragma. - Òles não mo podem arrebatar.  Os tempos mudaram, depois da poca de Parnel). Alm disso, eu não sou  Parnell. Que tentem, pois, arrebatar-me o mundo! - Desatou a rir. - O  amor, e mais o mundo! Que eu terei os dois, Elinor, os dois! - Baixou o  olhar, sorrindo para ela. Era de nvo o cultor da fora triunfante.  - Est s pedindo demais - respondeu Elinor, rindo. - s gul"so,

  insaci vel. - A sensaão de triunfo lhe formigou de n"vo pelo corpo to-  do, como o calor quase sufocante dum vinho quente.  Everard inclinou-se e beijou-a. Elinor não recuou.  Outro carro havia parado ... beira da estrada, um outro par passeava  pela senda verdejante, rumo do bosque. Sob o rosa e branco berrantes de  seus cosmticos, o rosto da mulher era velho; a carne fatigada tinha  desca¡do e perdido as formas outrora encantadoras.  - Oh ! Como  bonito - repetia ela sem cessar enquanto caminhava,  movendo com dificuldade o corpo pesado sâbre sapatos de saltos muito  altos que pisavam o solo desigual. - Como  lindo!

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  Spandreli - porque era le - não respondeu.  -- Apanha-me um pouco daquelas madressilvas - suplicou ela.  Spandrell lhe arrancou um ramo florido com o cabo recurvo da benga-  la. Atravs das emanaões de perfumes qu¡micos e de roupas de baixo  não muito limpas, o cheiro das fl"res chegava, fresco e delicioso, ...s nari-  nas de Spandrell.  - Oh! Que perfume divino! - exclamou ela, inspirando-o com  del¡cia. - Divin¡ssimo!  As comissuras dos l bios de Spandreli se encresparam num sorriso.  Divertia-o ouvir locuões assim sa¡das da b"ca daquela prostituta  envelhecida. Olhou para ela. Pobre Connie! Era como que a aparião de  um esqueleto numa festa - um esqueleto mais espantosamente repug-  nante ainda, por ter os ossos recobertos de tanta carne fl cida e ca¡da.  Repugnante mesmo. . . Não havia outra palavra. Ali, ao sol, Connie  parecia uma pea de cen rio de teatro vista ... luz do dia e bem de perto.  F"ra por isso que le se decidira a fazer a despesa do aluguel do Daimler  e a sair com ela - simplesmente porque a pobre prostituta velha era tão  repugnante. Spandrell sacudiu a cabea num sinal aprovativo:  - Sim, o perfume das fl"res  bom, mas eu prefiro o teu ...  Continuaram a caminhar. J incerto da diferena entre uma segunda e  uma tra menor, um cuco lanou os seus chamados. Nos corredores 

354

  I # 

obl¡quos de sol que se abriam como t£neis entre o verde e o roxo das som  bras da floresta, as pequenas m"scas danavam e ziguezagueavam com  saltos bruscos. Não havia vento; as rolhas pendiam, pesadas de verdura.  As rvores pareciam empanturradas de seiva e de sol.  - Como  bonito 1 Como  bonito! - Era o refrão de Connie. Aqule  recanto, aqule dia lembravam-lhe, disse ela, a sua meninice no campo.

  Suspirou.  - E desejarias ter sido sempre uma boa menina - disse Spandre11  sarc...sticamente. - "As rosas em târno ... porta me lembram a irirncia  morta." Eu ci, eu sei. - Calou-se por um momento. - O que detesto  nas arvores no verão - continuou depois -  a sua brutal complacncia  gorda. Balofas - eis o que elas são; dir-se-ia tubarões obesos. Incham de  insolncia, de uma insolncia passiva.  - Oh! As dedaleiras! - exclamou Connic, que nem mesmo o tinha  escutado. Correu para as ffires, grotesca e sem firmeza sâbre os saltos  altos. Spandrell a seguiu.  - Agrad...velmente f licas - comentou le tocando com o dedo um  dos estames dum botão ainda fechado. E se pâs a desenvolver o assunto,  com profusão de detalhes.

  - Oh! Fica quieto, fica quieto! - exclamou Connie. - Como tens  coragem de dizer coisas como essas? - Ela estava ofendida, ferida.  Como tens coragem ... Aqui?  -- No campo do bom Deus - zombou le. - Como tenho coragem?  E, erguendo a bengala, se p"s de s£bito a fender o ar da direita paraa  esquerda -- lepte! lepte! -, quebrando uma das altas plantas orgulhosas  a cada golpe. O solo dentro em pouco ficou juncado de fi"res assassina-  das.  - P ra! P ra! - Cormie segurou os braos de Spandrell. Rindo

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  silenciosamente, ste se desembaraou da companheira e continuou a der-  ribar as plantas. - P ra! Por favor! Não, não! - A mulher se precipitou  de n"vo sâbre le. Sempre rindo, sempre fendendo o ar com a bengala,  Spandrell se afastou dela bruscamente.  - Abaixo com e4as! - gritava. - Abaixo com elas! - As fl"res  ca¡am uma ap¢s.outra sob seus golpes. - Pronto! - disse le por fim.  Connie chorava.  - Oli ! Como pudeste fazer isso? Como pudeste?  Spandrell riu de nvo, silenciosamente, atirando a cabea para tr s.  - Bem feito para elas! - exclamou le. - Tu pensas que eu vou fi-  car quieto e deixar que me insultem? Ah! Que insolncia des tas est£pi-  das 1 Ah 1 Ali est mais outra! - Atravessou a clareira, rumo do lugar em  que se erguia ainda uma £ltima dedaleira alta, escondida entre as noguei-  ras novas. Um golpe foi o bastante. A planta quebrada tombou quase sem  ru¡do. -- Maldita insolncia!  bem feito para elas... Vamos voltar pa- 

ra o carro. 

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CAPITULO XXX

  Rachei Quarles não tinha nenhuma simpatia por sses filantropos  sentimentais que apagam a distinão entre o bem e o mal, entre justos e  culpados. A seus olhos eram os criminosos  não a sociedade na qual les  viviam os responsaveis por seus crimes. Os pecadores cometiam efetiva-  mente os seus pecados; não era o meio ambiente que o fazia por les. Ha-  via desculpas, estava claro, paliaões, circunstncias atenuantes. Mas o  bem era sempre o bem, e o mal continuava sendo o mal. Havia  circunstncias em que era muito dificil escolher o bem; mas era sempre o  indiv¡duo que fazia a escolha e, uma vez feita, era respons vel por ela. A  Sra. Quarles, numa palavra, era cristã e não humanit ria. Como cristã  achava que Marjorie tinha feito mal em deixar o marido - muito embora  se tratasse dum marido como Carling - por um outro homem. Ela desa-

  provava o ato mas não se atrevia a julgar a pessoa - tanto mais que,  apesar do que ela tinha feito, o coraão e a cabea de Marjorie haviam  sempre persistido, sob o ponto de vista cristão da Sra. Quarles, "no bom  caminho". Rachei achava mais f cil amar uma pessoa que tinha proce-  dido mal continuando porm a ter pensamentos virtuosos, do que uma  outra que, como sua nora Elinor, pensava de maneira errada, embora  sempre se tivesse conduzido, ao que ela sabia, de modo absolutamente  irrepreens¡vel. Havia circunstncias, tambm, em que a aão m lhe  parecia quase menos repreens¡vel do que o pensamento mau. Não que ela  simpatizasse com a hipocrisia. A pessoa que pensava e falava bem, ao  passo que, consciente e constantemente, procedia mal, era-lhe odiosa.  Tais pessoas são raras, entretanto. A maior parte dos que fazem mal a  despeito de suas crenas sãs o fazem num momento de fraqueza, e lamen-

  tam em seguida a falta que cometeram. Mas aqule cujos pensamentos  são maus não admite o car ter pecaminoso das m s aões. Não v por  que não os haja de cometer e por que, depois de faz-lo, tenha de se  arrepender e corrigir. E mesmo que, de fato, se porte virtuosamente, le  pode, merc de seus maus pensamentos, arrastar outros homens a m s  aões.  -  uma mulher admir vel - dissera John Bidlake, pronunciando  seu julgamento---, mas gosta demais das f"lhas de parreira, sobretudo na  b"ca.  Quanto a Rachei Quarles, não tinha conscincia senão do fato de ser

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  cristã. Não podia conceber como certas pessoas podiam viver sem serem 

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cristãs. E no entanto um grande n£mero - era obrigada a admitir com  tristeza - o conseguia perfeitamente. Quase tâdas as pessoas jovens de  seu conhecimento. "Dir-se-ia que nossos pr¢prios filhos falam uma l¡ngua  diferente", queixava-se ela um dia a uma velha amiga.  A Sra. Quarles achou em Marjorie Carling algum que falava e enten-  dia a sua propria linguagem espiritual.  - Tu a achar s um pouco cacte, temo-o - avisara-lhe Philip, ao  anunciar a intenão que tinha de emprestar a sua casinha de Chamf"rd a  Walter e Marjorie. - Mas s boa para com ela. Apesar de tudo Marjorie  o merece, pobre criatura. Tem tido uma vida muito triste.# 

E contou ... mãe todos os pormenores duma hist¢ria que ela escutou  com suspiros.  - Eu não esperava que Walter Bidlake fâsse assim - comentou ela.  - 1  - Nesses assuntos nao convem esperar coisa alguma de ningum. As  coisas acontecem, simplesmente. Ningum asfaz.

  A Sra. Quarles não respondeu nada. Pensou na poca em que, pela pri-  meira vez, ela descobrira uma das infidelidades de Sidney. O espanto, a  dor, a humilhaão!  No entanto - disse em voz alta -, ningum julgaria que le  pudesse conscientemente tornar algum infeliz.  - Ainda menos que le se tivesse tornado a si mesmo infeliz  conscientemente. E no entanto eu creio que Walter se tornou a si mesmo  tão desgraado quanto Marjorie. Talvez seja esta a sua principal justifi-  caao.  Rachei Quarles suspirou.  - Tudo isso me parece tão extraordiri...riamente desnecess rio ...  Foi fazer uma visita a Marjorie, depois que esta se instalou na nova  residncia.

  - Vem me ver muitas vzes - disse-lhe ao sair. - Porque tu me  agradas - ajuntou, pondo-se s£bitamente a sorrir, motivo pelo qual a po-  bre Marjorie lhe ficou reconhecida, ao ponto de sua gratidão chegar a ter  qualquer coisa de pattico. Não lhe acontecia muito ami£de agradar aos  outros. O fato de ela estar perdidamente apaixonada por Walter se devia  antes de tudo a ter sido ste uma das raras pessoas que se mostraram  interessadas por ela. - E espero que eu te agrade tambm - acrescentou  a Sra. Quarles.  Marjorie apenas pâde corar e gaguejar. Mas j estava adorando ...  Rachei Quarles havia falado com t"da a sinceridade. Gostava efetiva-  mente de Marjorie; gostava dela precisamente por causa dos defeitos mes~  mos que faziam que os outros a achassem tão aborrec¡vel; por causa de  sua estupidez - uma estupidez tão boa, tão cheia de puras intenões; por

  causa de sua falta de senso de humor - coisa que denotava uma tal serie-  dade, um tal ardor! Mesmo aquelas pretensões intelectuais, aquelas obser~  vaões profundas ou did ticas que ela deixava cair como uma coisa 

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portentosa do fundo dum silncio meditativo, não desagradavam ... Sra.

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  Quarles. Ela descobria nisso os sintomas um tanto absurdos dum amor  autntico do bem, do verdadeiro e do belo, dum desejo sincero de  progresso e de cultura.  Por ocasião do terceiro encontro, Marjorie lhe confiou tâda a sua  hist¢ria. Os coment rios da Sra. Quarles foram sensatos e cristãos.  - Não h cura milagrosa para coisas dessa espcie - disse ela; -  não h especialidade farmacutica contra a infelicidade. Existem apenas  velhas virtudes um pouco mon¢tonas, a pacincia, a resignaão, e as  outras; e a velha consolaão, a antiga fonte de t"da fora - velha, sim,  mas não mon¢tona: não, nada de menos mon¢tono do que Deus. Mas a  maior parte das pessoas mâas não querem crer em mim quando lhes di-  go, se bem que les morrem de aborrecimento com o seujazz e as suas  danas.  O primeiro movimento de adoraão de Marjorie se confirmou e cresceu  a tal ponto, mesmo, que a Sra. Quarles ficou t"da envergonhada, co-  mo se tivesse roubado alguma coisa, como se tivesse representado uma  comdia fraudulenta.  - A senhora me tem sido dum tal aux¡lio, dum tal conf"rto! - decla-  rou -lhe Marjorie. 

- Qual! - respondeu ela quase com c¢lera. - A verdade  que tu 

estavas szinha, te sentias infeliz e eu me encontrei a teu lado no devido  momento.

  Marjorie protestou; mas a mulher mais velha não permitia que a  louvassem ou que lhe dirigissem agradecimentos.  Falaram muito em religião. Carling tinha dado a Marjorie o horror de  tudo quanto era pitoresco ou formal no cristianismo. Piran de Perarizabu-  loe, as vestes religiosas, as cerimânias - tudo o que, mesmo de longe, di-  zia respeito a um santo, a um rito, a uma tradião lhe era odioso. Mas ha-  via conservado uma f vaga e rudimentar no que considerava como sendo  as coisas essenciais; tinha guardado de sua infncia um certo h bito de  pensamentos e de sentimentos cristãos. Sob a influncia de Rachei Quar-  les, essa f se tornou mais precisa, as emoões habituais se robusteceram.  - Eu me sinto de tal maneira feliz, desde que estou aqui com a senho-  ra t - anunciou ela, apenas oito dias depois de sua chegada.

  - E porque tu não te esforas por ser feliz, e porque não perguntas a  ti mesma por que te tomaste infeliz, por que cessaste de pensar nas coisas  sob o ponto d vista da felicidade e da infelicidade.  a tolice  enorm¡ssima dos jovens desta geraão - contin'uou a Sra. Quaries; --  les não pensam nunca na vida senão relacionando tudo com a felicida-  de. . . "Que farei para me divertir?" Eis a pergunta que les se fazem a si  mesmos, ou então se queixam: "Por que minha vida não  divertida?"  Mas n¢s estamos num mundo em que "os bons momentos", na acepão  vulgar desta palavra, ou talvez em tâdas as suas acepões, não podem du-  rar continuamente nem pertencer a t"da a gente. E, mesmo que a moci- 

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  dade tivesse sses "bons momentos", ela havia de ficar inevit...velmente# 

decepcionada porque a sua imaginaão  sempre mais bela do que a  realidade. E, depois que gozamos um pouco sses momentos, les se  tornam aborrecidos. Cada um se esfora para obter a felicidade e o  resultado  que ningum  feliz.  porque les estão no caminho errado. A

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  pergunta que deviam fazer a si mesmos não : "Por que não somos feli-  zes?", ou "Coino nos iremos divertir?", mas sim: "Como podemos agra-  dar a DeusT', e: "Por que não somos melhores?" Se as pessoas fizessem  interiormente estas perguntas e respondessem a elas, na pr tica, da  melhor maneira que pudessem, haveriam de atingir a felicidade sem nun-  ca pensarem nela. Porque não  procurando a felicidade que a encontra-  mos;  procurando a salvaão. E quando as criaturas forem s bias, em  vez de serem inteligentes, hão de pensar na vida relacionando-a com a  salvaão e a perdião - não com os "bons" ou "rnaus momentos". Se tu  te sentes feliz agora, Marjorie,  porque cessaste de pensar em ser feliz,e  porque est s tentando ser melhor. A felicidade  como o coque - uma  coisa que se obtm como subproduto da fabricaão de outra coisa. 

Entrementes, em Gattenden, os dias se sucediam, sombrios.  - Por que não fazes um pouco de pintura? - propâs a Sra. Bidlake  ao marido, na manhã que seguiu o dia da chegada dste.  O velho John sacudiu a cabea.  - Havias de tomar gâsto por ela, uma vez que comeasses. . . -  adulou Elinor.  Mas o pai não se queria deixar convencer. Não tinha vontade de pintar,  precisamente porque isso lhe teria sido muito desagrad vel. O terror mes-  mo da dor, da doena e da morte fazia perversamente que le recusasse  deixar distrair o esp¡rito de sua contemplaão abomin vel. Dir-se-ia que

  uma parte dle desejava obscurarriente aceitar a derrota e o abatimento,  estava vida por tornar a sua capitulaão ainda mais total. Sua coragem,  sua f"ra gargantuesca, seu bom humor descuidoso eram os frutos duma  ignorncia volunt ria que durara tâda a sua vida. Mas agora que não era  mais poss¡vel "ignorar", agora que o inimigo estava instalado no seu  pr¢prio corpo, t"da a virtude o havia abandonado. Bidlake tinha mdo, e  nao podia dissimular os seus terr res. Desejava de certo modo ficar  acabrunhado. E ficou mesmo. A Sra. Bidlake e Elinor fizeram o poss¡vel  para o tirar da tristeza ap tica dentro da qual le passava a maior parte  de seus dias em Gattenden. Mas o velho pintor não se deixava despertar  senão para se lamentar e ...s vzes para explodir numa c¢lera cheia de  queixumes. 

- deplor vel-, escreveu Philip em seu caderno de notas, "ver um  ol¡mpico reduzido por um pequeno tumor no estâmago a um estado de 

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sub-humanidade. Mas talvez", acrescentou alguns dias mais tarde, pen-  sando melhor, "le tenha sido sempre um sub-humano, mesmo quando  dava a impressão de ser a mais ol¡mpica das criaturas; talvez ofato de ser  ol¡mpicof"ssejustamente um sintoma de sub-humanidade. " 

Era s¢mente com o pequeno Phil que John Bidlake despertava em cer-  tas ocasiões de seu estado de abatimento. Brincando com o menino, le  esquecia ...s vzes, por um instante, a sua desgraa.  - Desenha-me alguma coisa - pedia.   o pequeno Phil, corri a l¡ngua entre os dentes, desenhava um trem,  um barco, ou os cervos que se batiam no parque de Gattenden, ou o velho  marqus na sua cadeira de rodas puxada pelo burrico.  - Agora tu vais desenhar alguma coisa para mim, vov" - dizia o  pequeno, quando cansava.  E o velho tomava o l pis e fazia cinco ou seis pequenos esboos

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  maravilhosos de T'ang, o cão pequins, ou de Tompy, o gato da cozinha.  Ou então, algumas vzes, num acesso de mal¡cia, rabiscava uma carica-  tura da pobre Srta. Fulkes a estorcer-se tâda. E freqentemente, esquecen-  do-se por completo de que o pequeno estava perto, desenhava para seu  pr¢prio prazer - um grupo de banhistas, dois lutadores, uma danarina.  - Mas por que elas não tm roupa? - perguntava Phil.  - Porque ficam mais bonitas assim.  - Ah! Mas eu não acho. - E, perdendo o intersse pelos desenhos  que tinham tão pouca coisa para lhe contar, o menino exigia de n"vo o  l pis.  Mas não era sempre que John Bidlake acolhia com tanta alegria o neto.  ·s vzes, quando se sentia particularmente abatido, encarava a simples  presena do menino como uma ofensa, uma especie de zombaria. Ficava  encolerizado, vituperava contra o gar to porque ste fazia barulho, por-  que o incomodava.  - Não me deixarão nunca em paz? - gritava le. E punha-se enião  a queixar-se, com blasf-emias, da incapacidade geral de t¢da a gente. A  casa estava cheia de mulheres cuja funão era cuidar daquele maldito  pirralho. Mas le andava por ali, correndo dum lado para outro, fazendo  uma baderna dos infernos, como se quisesse fazer o mundo vir abaixo, e  metendo-se na vida dos outros. Era intoler vel. Sobretudo quando não se  estava passando bem. Absolutamente intoler vel! Ningum tinha a menor  consideraão para com le. Corada, a estorcer~se, a pobre Srta. Fulkes  levava o seu aluno, que uivava, para a nursery.

  As cenas mais penosas se produziam ...s horas de refeião. Porque era  durante as refeiões (reduzidas agora, para le, a caldo, leite e farinha l c-  tea) que John Bidlake era mais desagradilvelmente lembrado de seu esta-  do de sa£de. "Esta lavagem repugnante!", resmungava le. Mas se comia  alguma coisa s¢lida os resultados eram deplor veis. As refeiões eram os 

360 

momentos mais tempestuosos e mais selvagens do dia de John Bidlake.  Òle descarregava a sua raiva s"bre o neto. O pequeno Phil, que não comia  nunca de boa vontade, foi, durante t"da aquela primavera at o como  do estio, particularmente obstinado no que dizia respeito ... alimentaão.#

 

Chorava quase sempre ... hora das refeiões.  -  porque realmente le não vai muito bem - explicava a Srta. Ful-  kes para o desculpar. E era verdade. O pequeno estava um pouco amarelo  e magro, dormia mal, tinha crises de nervos, fatigava-se depressa, sofria  de dores de cabea, não aumentava de pso. O Dr. Crowther tinha pres-  crito malte, ligado de bacalhau e um t"nico.  - Òle não vai bem - insistia a Srta. Fulkes.  Mas John Bidlake não queria ouvir nada.  - Òle  simplesmente desobediente, nada mais. Não quer comer e  pronto! - E, voltando-se para o pequeno, gritava: - Engole, petiz,

  engole! Não sabes engolir? - O espet culo do pequeno Phil, mastigando  e remastigando interm in ...velm ente alguma coisa de que não gostava,  exasperava o velho. - Vamos, engole, gar"to! Não continues a ruminar  assim! Não s nenhuma vaca. Engole isso! - E o menino, vermelho, as  l grimas brotando-lhe nos olhos, fazia um esforo desesperado para engo-  lir o detest vel produto de cinco minutos de mastigaão nauseada. Os  m£sculos de sua garganta se intumesciam e se enrugavam, uma expressão  de nojo invencivel destorcia-lhe o rosto pequenino, ouviam-se os ru¡dos  sinistros de uma nsia de v"mito.  O velho vociferava:

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  - Mas isto  simplesmente revoltante! Engole!  E seus gritos eram uma receita quase infal¡vel para fazer a criana  vomitar. 

Os fardos tomaram-se leves, as trevas deram lugar ... luz. Marjorieteve  apocalipticarriene a revelaão de todos os s¡mbolos da literatura religio-  sa. Porque ela pr¢pria se tinha debatido no 1,odaal do Desespro, e ha-  via emergido dle; tinha tambm feito a escalada laboriosamete, sem  s  e perana, e de s£bito ficara consolada pela vista da Terra Prometida.  - T¢das essas expressões me pareciam tão convencionais e tão insipi-  damente piedosas - disse ela ... Sra. Quarles. - Mas agora percebo que  elas são simples descriões de fatos reais.  A Sra. Quarles concordou com um meneio de cabea.  - M s descriões, porque os fatos não se podem descrever. Mas,  quando os sentimos pessoalmente, podemos compreender a intenão dos  s¡mbolos.  - Conhece a Terra Negra*? - perguntou Marjorie. - Sinto a 

- Região hulheira do centro da Inglaterra. (N. do T.) 

361#

 

sensaão de ter sa¡do duma dessas cidades de mineiros para chegar ...s  plan¡cies - aos largos espaos abertos - acrescentou ela, com a sua voz  ardente e um pouco infantil na sua entonaao arrastada. ("Esta voz", não  pode deixar de pensar a Sra. Quarles, que se arrependeu em seguida do  pensamento, porque no fim de contas a pobre mulher não era respons vel  pela voz que tinha, "esta voz faz parecer abafados e fechados os largos  espaos abertos.") - E quando eu olho para tr s a cidade negra aparece  tão pequenina, tão insignificante em comparaão com o espao e com o  ceu enorme!  como se a olh ssemos por um bin¢culo p"sto ...s avessas.  A Sra. Quarles franziu levemente a fronte:

  - Ela não  tão insignificante assim. Porque, no fim de contas, hpessoas que moram nessa cidade, por mais negra que ela possa parecer. E  a posião errada do bin¢culo , sempre a posião errada. Não se pretende  levar-nos a olhar as coisas de maneira que elas nos paream pequenas e  insignificantes. Eis a¡ uni dos perigos que h em sair para o cu aberto; te-  mos uma tendncia excessiva para considerar como pequenas, remotas e  sem importncia as cidades e as pessoas que elas contm. Mas elas não o  são, Marjorie. E a tarefa dos infelizes que puderam evadir-se, vindo para  o ar livre,  ajudar os outros a fugir tambm. - De nvo franziu a testa,  descontente consigo mesma dessa vez; detestava tudo quanto cheirasse a  sermão. Mas Marjorie não devia imaginar que se tinha tornado superior  e se achava acima do mundo. - Como vai Walter? - perguntou ela,  com uma inconseqncia que era apenas aparente. -- Como vão vivendo

  vocs agora?  - Da mesma. maneira de sempre. - Uma tal confissão, havia al,-u-  mas semanas, lhe teria custado horrivelmente. Mas agora, o pr¢prio Wal-  ter tinha comeado a parecer-lhe pequeno e um pouco remoto. Ainda  continuava a am -lo, naturalmente; mas, de certo modo, com o bin¢culo  ...s avessas. Com ste na posião certa ela apenas via Deus e Jesus; les  cresciam, dominando-lhe avassaladoramente o campo de visão.  A Sra. Quarles olhou para a interlocutora, e uma expressão de tristeza  passou-lhe r...pidamente pelo rosto m¢vel:  - Pobre Walter!

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  -- Sim, eu tambm o lamento - confessou Marjorie.  Fz-se um silncio.  O velho Dr. Fisher lhe havia dito que fsse, procur -lo para traz-lo ao  corrente de tudo a cada duas ou trs semanas, e Marjorie aproveitava o  preo reduzido dos bilhetes de excursão de quarta-feira para ir ... cidade,  fazer algumas compras indispens veis e dizer ao doutor como se sentia  bem.  -  o que revela a sua aparncia - disse o Dr. Fisher, examinando-a  primeiro atravs dos ¢culos e depois por cima dstes. - Sim,  incompar...velmente melhor do que a £ltima vez. Isso se passa muitas  vzes no decorrer do quarto ms - p"s-se le a explicar. O Dr. Fisher 

362 

gostava de que seus clientes tomassem um interÖsse inteligente em sua  propria fisiologia. - A sa£de melhora. O moral tambm.  o corpo que  se adapta ao n"vo estado de coisas. As modificaões na circulaão tm  sem d£vida algo que ver com isso. O coraão do feto comea a bater mais# 

ou menos neste tempo. Tive casos de mulheres neurastnicas que deseja-  vam ter filhos e mais filhos, numa sucessão tão r pida quão poss¡vel. A

  gravidez era a £nica coisa que lhes podia curar a melancolia e as obses-  sões. Quão mal compreendemos ainda as relaões entre o corpo e o  esp¡rito!  Marjorie sorriu e não disse palavra. O Dr. Fisher era um anjo, um dos  homens melhores e mais bondosos do mundo inteiro. Mas havia coisas  que le compreendia ainda menos do que as relaões entre o corpo e o  esp¡rito. Que compreendia le de Deus, por exemplo? Que compreendia  le da alma e de sua comunhão m¡stica com as f"ras espirituais? Pobre  Dr. Fisher! S¢ sabia falar do quarto ms de gravidez e do coraão do feto.  Marjorie sorriu interiormente, sentindo um pouco de piedade pelo velho. 

Burlap, naquela manhã, mostrou-se cheio de afeião:  - Meu velho - disse le, pousando uma das mãos sâbre o ombro de

  Walter -, vamos sair e comer juntos uma costeleta em alguma parte? -  Deu uma palinadinha no ombro do jovem Bidlake e sorriu-lhe o sorriso  cheio da ternura triste e enigm tica dum santo de Sodorna.  -  pena! - disse Walter, procurando simular uma afeião corres-  pondente - tenho de jantar com um amigo na outra extremidade de Lon-  dres. - Era uma mentira; mas não podia suportar a idia de passar uma  hora com Burlap num restaurante de Fleet Street. De resto, queria ver se  havia alguma carta de Lucy esperando por le no clube. Olhou o rel¢gio.  - Cus! -- exclamou, sem desejo de prolongar a conversaão com Bur-  lap - preciso ir. . .  Fora, chovia. Os guarda-chuvas pareciam cogumelos negros brotados  s£bitamente da lama. Tudo sombrio, sombrio ... Em Madri devia estar  fazendo um sol feroz. "Mas adoro o calor", ela dissera. "Desabrocho nos

  fornos." Ôle havia imaginado de antemão as noites da Espanha, negras e  quentes, e o corpo p lido de Lucy ... luz das estrlas - um fantasma, mas  tang¡vel e m"rno; e o amor tão paciente, tão implac vel como o ¢dio; e as  posses que semelhavam um assass¡nio lento. Aquelas vol£pias imagina-  das tinham justificado t"das as mentiras, t"das as baixezas conceb¡veis.  Pouco importava o que se podia fazer ou o que não se devia fazer, con-  tanto que suas visões se realizassem. Ele tinha preparado o terreno, inven-  tado uma srie de mentiras complicadas, um monte para Burlap, outro  para Marjorie; tornara informaões s"bre o preo das passagens,  arranjara no banco um meio de sacar a descoberto contra a sua conta. E

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 363

então viera a carta de Lucy, comunicando que tinha mudado de idia. Ia  ficar em Paris. Por qu? S¢ havia uma explicaão poss¡vel. O ci£me de  Walter, sua decepão, sua humilhaão haviam desbordado em seis p gi-  nas de censuras e de furor.  - Cartas? - perguntou le ao porteiro num tom despreocupado, ao  penetrar no clube.  O tom de sua voz dava a entender que le não esperava nada de mais  inter , essante do que uma circular de editor, ou do que a oferta filantr¢pica  de um emprstimo de 5 O00 libras sem garantias.  O porteiro lhe estendeu o conhecido envelope amarelo; Walter o ras-  gou ...vidamente e desdobrou trs p ginas escritas a l pis. "Quai Voltaire.  Segunda-feira." Fatigou os olhos na decifraão da carta: era quase tão  dif¡cil de ler como um manuscrito antigo. "Por que me escreves sempre a  l pis?" Walter se lembrou da pergunta de Cuthbert Arkwrigth e da res-  posta que Lucy lhe havia dado. "Pois eu havia de fazer que a tinta  desaparecesse a beijos", replicara le. Que est£pido! Walter penetrou na  sala de refeiões e pediu o seu jantar. Entre bocados de comida que levava

  ... bâca, decifrou a carta de Lucy. "Quai Voltaire.

 "Insuport vel a tua carta. De uma vez por t"das recuso receber inj£ria

s  ou lan&rias; não quero em absoluto ouvir censuras nem condenaões.  Fao o que me apraz e não reconheo em ningum odireito de discutiros  meus atos. A semana passada pensei que seria divertido ir a Madri conti-  go; nesta semana mudei de opinião. Se essa mudana te prejudicou  materialmente, sinto muito. Mas nãoformulo a menor desculpa pelofato  de ter mudado de opinião, e, se imaginas que as tuasjeremiadas e as tuas  ciumeiras me enchem de piedade por ti, est s muito enganado. Desejas

  realmente saber por que não deim Paris? Muito bem. 'Sem d£vida encon-  traste um outro homem de quem gostas mais do que de mim.'Maravi-  lhoso, meu caro Sherlock Holmes, maravilhoso! E adivinha onde o  encontrei... Na rua. Passeando ao longo do Boulevard Saint-Germain,  olhando as livrarias. Percebi que estava sendo seguida de vitrina em  vitrina por um jovem. Gostei dos ares dle. Muito moreno, pele c"r de  oliva, aspecto um tanto romano, não mais alto do que eu. Na quarta  vitrina le se p"s a mefalar numfrancs extraordin rio com acentos em  todos os ee mudos. 'Ma lei  italiano*.' Era; enorme contentamento. 'Par-  Ia italiano?*`E sepâs a despejar a sua admiraão no maispuro toscano.  "Olhei para le. No fim de contas, por que não? Algum que nunca  encontramos antes e de quem nada sabemos -  uma idia excitante. Por 

Mas o senhor  italiano. (N. do E.)  Fala italiano? (N. do E) 

364 

um momento, dois sres perfeitamente estranhos; no momento seguinte,  j tão ¡ntimos quanto o podem ser dois entes humanos. De resto, era uma  linda criatura. Worrei e rion vorrei `, disse-lhe eu. Mas le nunca tinha  ouvidofalar de Mozart - não conhecia senão Puccini, de sorte que pus#

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ponto na tagarelice. `Muito bem.'Tomamos um t xi que nos levou a um  pequeno hotel perto do Jardin des Plantes. Quartos a hora. Uma cama,  uma cadeira, um arm rio, um lavat¢rio com uma bacia def"lha e umjar-  ro, um porta-toalhas, um bid. S¢rdido - masfazia parte da brincadeira.  'Dunque **', disse-lhe eu. Não lhe tinha permitido que me tocasse no  t xi. Òle saltou s"bre mim como. se mef"sse matar, os dentes cerrados.  Fechei os olhos, como uma m rtir cristã em face dum leão. O mart¡rio   uma coisa excitante. Deixar-seferir, humilhar, usar como um capacho -  esquisito! Gosto disso. Alm do mais, o capacho tambm faz uso de  quem o usa.  complicado. O homem acabava de voltar de umasfrias  passadas ... beira do mar, no Mediterrneo, e seu corpo estava todo quei-  mado e polido pelo sol. Tinha um ar magnificamente feroz - era como  um pele-vermelha. E tãoferoz como o seu aspectofazia esperar. Ainda te--  nho marcas no pescoo, no lugar em que le me mordeu. Tenho de usar  uma charpe durante alguns dias. Onde terei visto aquela est tua de M r-  sias esfolado? O rosto dle'era assim. Eu lhe meti as unhas nos braos at  fazer sangue. Depois perguntei-lhe o nome. le se chama Francesco A lle-  gri e  engenheiro aeron utico; vem de Siena, onde o pai  professor de  medicina na universidade. Que estranha incongruncia nofato de um sel-  vagem trigueirofazer projetos de motores de avião e ter um paiprofessor  defaculdade !Devo rev-lo amanhã... Então agorpj sabes, Walter, por

  que mudei de opinião a respeito da tal viagem a Madri. Não me mandes  nunca mai . s uma carta como a £ltima. " 

"L. 1 

Marjorie tomou o trem das 3 horas e 12 minutos para voltar a Cham-  ford. A chuva havia cessado quando ela chegou. As colinas do outro lado  do vale, tocadas pela luz do sol, pareciam brilhar com uma radiaão  pr¢pria contra o fumo e o ¡ndigo das nuvens. Gâtas ainda pendiam  suspensas dos ramos, e t"das as taas "cas das ptalas e das f"lhas esta-  vam cheias; ouvia-se um ru¡do de p ssaros. Quando Marjorie passava  sob os ramos pendentes do grande carvalho, na metade do caminho, um  golpe de vento lhe jogou contra o rosto um aguaceiro frio e s£bito. Marjo-

  rie riu de prazer.  Achou a casinhola vazia. A criada tinha sa¡do e não estaria de volta  senão ... hora de deitar. O silncio das peas vazias tinha uma qualidade 

Quereria e não quereria. (N. do E)  Pois bem. (N. do E) 

365# 

i

  de transparncia cristalina e musical, a solidão lhe pareceu amiga e doce.  Movendo-se pela casa, Marjorie caminhou na ponta dos ps, como se  temesse acordar uma criana adormecida.  Fz para si mesma uma taa de ch , que bebeu; comeu um biscoito,  acendeu um cigarro. O gâsto daquilo que ela comia e bebia, o aroma do  tabaco lhe pareciam particularmente deliciosos e de certo modo novos.  Era como se os descobrisse pela primeira vez.  Voltou a poltrona de maneira que ela ficasse de f ce para a janela e  deixou-se ficar sentada, alongando o olhar por sâbre o vale, at as monta

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  nhas brilhantes com o seu fundo de tempestade. Lembrou-se dum dia  an logo, no tempo em que les moravam na casinha de Berkshire. O sol,  mais luminoso por ser tão prec rio naquele fundo sombrio; uma terra  brilhante e transfigurada. Walter estava sentado com ela, perto da janela  aberta. Òle a amava naquele tempo. E, no entanto, ela era mais feliz ago-  ra, muito mais feliz. Não lamentava nada do que se passara no intervalo.  O sofrimento tinha sido necess rio. Era a nuvem que acentuava a luz de  sua felicidade presente. Nuvem sombria - mas como estava long¡nqua  agora, e curiosamente separada dela! E aquela outra claridade feliz, antes  da vinda da nuvem - era tambm min£scula, e long¡nqua, como uma  imagem num espelho curvo. Pobre Walter! pensou ela; e, duma maneira  remota, apiedou-se dle. Correndo atr s da felicidade, Walter se tinha tor-  nado infeliz. A felicidade  um subproduto, a Sra. Quarles o dissera. Era  verdade. "A felicidade, a felicidade. . . " Marjorie repetia interiormente a  palavra. Contra os vap"res negros, as colinas eram como esmeraldas e  ouro verde. A felicidade, a beleza, o bem. . . "A paz de Deus", murmu-  rou ela, "a paz de Deus, que vai al m de todo o entendimento. Paz, paz,  11  paz ...  Teve a impressão de que se fundia naquela calma verde e dourada;  sentiu-se mergulhar nela e absorver por ela, dissolver como se deixasse de

  viver ... parte para se unir ... paz universal. A quietude flu¡a para a quietu-  de, o silncio de fora se identificava como seu silncio interior. O licor da  existncia, agitado e turvo, assentou pouco a pouco, e tudo o que o tinha  tornado opaco - todo o ru¡do e o tumulto do mundo, tâdas as inquietu-  des, todos os desejos, todos os sentimentos pessoais - comeou a se  depositar, como um sedimento, a cair lentamente, lentamente e sem ru¡do,  dentro do invis¡vel. O licor turvo se tornou cada vez mais claro, cada vez  mais transl£cido. Atr s daquela bruma que se dissipava gradualmente,  estava a realidade, estava Deus. Foi uma revelaão lenta, progressiva.  "Paz, paz", murmurava Marjorie para si mesma; e as £ltimas ondulaões  morreram na superf¡cie da vida, as opacidades causadas pela agitaão da  vida acabaram de cair, aniquiladas na calma extrema. "Paz, paz." Marjo-

  rie não tinha mais desejos. mais preocupaões. O licor que fora turvo  estava perfeitamente l¡mpido, agora, mais l¡mpido do que o cristal, mais 

366 

di fano do que o ar; a bruYna se dissipara e a realidade sem vus era um  vazio maravilhoso - era o nada. O nada - a £nica perfeião, o £nico# 

absoluto. O infinito, o eterno nada. A revelaão progressiva estava com-  pleta agora.

  Marjorie foi despertada do seu devaneio pelo clique do trinco da porta  da entrada e por um ru¡do de passos no corredor. Relutantemente e com  uma espcie de dor, ela se alou das profundezas da divina vacuidade;  sua alma remontou ... superficie da conscincia das coisas. O sol s"bre as  montanhas havia tomado um tom mais profundo, as nuvens se tinham  erguido e o cu era dum azul p lido e esverdeado, como o da gua. Era j

quase noite. Marjorie sentia os membros hirtos. Prov...velmente ficara ali  sentada durante horas e horas.

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  - Walter? - gritou ela na direão do corredor, de onde vinham os  ru¡dos.  Walter respondeu com uma voz que lhe pareceu morta, tona. "Por  que ser que le  tão infeliz?", perguntou ela consigo, ao ouv¡-lo; mas  perguntou de muito longe e com uma espcie de ressentimento muito  remoto. Ressentia-se daquela presena que a perturbava e que lhe inter-  rompia o xtase - ressentia-se da pr¢pria existncia de Walter. O rapaz  entrou no compartimento e Marjorie notou que le tinha o rosto muito  p lido, os olhos debruados de negro.  - Que  que h ? - perguntou ela, quase a contragosto. Quanto mais  se aproximava de Walter, mais se afastava do nada maravilhoso, mais se  afastava de Deus. - Não est s com boa aparncia...  - Não  nada. Um pouco de cansao, nada mais.  No trem, durante o trajeto, le tinha lido e relido a carta de Lucy, at  o ponto de sab-la quase de cor. Sua imaginaão tinha fornecido um  suplemento ...s palavras. Conhecia aquIe quartinho s¢rdido de h"tel  meubl*, tinha visto o corpo requeimado do italiano, a brancura de Lucy,  os dentes cerrados do homem, seu rosto que parecia o rosto dum M rsias  torturado, e tambm o rosto de Lucy, com aquela expressão que le bem  conhecia, aqule ar de sofrimento grave e atento, como se o prazer lanci-  nante f"sse uma verdade profunda e rdua, que se não pode apanhar  senão por meio de intensa concentraão ...  Bom, estava pensando Marjorie, le dissera que não era nada. Era

  melhor assim; ela não precisava de se preocupar mais corri aquilo.  - Pobre Walter! - disse em voz alta. E lhe dirigiu um sorriso de pie-  dade terna. Òle não ia fazer nenhum aplo ... sua atenão ou ... sua simpa-  tia; o ressentimento dela desapareceu. - Pobre Walter!  Walter olhou-a um momento, depois se afastou. Não queria piedade. 

* Expressão francesa para designar hotis de baixa calegoria, que alug£m quartos para  casais, por hora. (N. do E) 

367 

I# 

Não aquela espcie de piedade de anjo superior, e ainda menos da parte  de Marjorie. Urna vez aceitara a piedade dela. A recordaão dsse. inci-  dente lhe deu calafrios de vergonha. Nunca mais! Walter se foi.  Marjorie ouviu seus passos na escada e a batida duma porta.  "Apesar de tudo", pensou ela, sentindo com relutncia alguma solici-  tude, "algo não vai bem. Algo h que o torna particularmente desgraado.

  Talvez seja melhor eu subir e ver o que le est fazendo."  Mas não subiu. Ôicou sentada no mesmo lugar, im¢vel, esquecendo-o  deliberadamente. O pequeno sedimento que a chegada de Walter havia  agitado dentro dela tornou a cair bem depressa para o fundo. Atravs do  vazio inanimado do xtase, seu esp¡rito mergulhou de nâvo em Deus, no  absoluto perfeito, no nada eterno e sem limite. O tempo passou; o fl ri da  tarde se mudou em crep£sculo de verão; o crep£sculo se espessou lenta-  mente em trevas.  Daisy, a criada, voltou ...s 10 horas.

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  - Sentada no escuro, patroa? - perguntou ela, lanando um olhar  para dentro da pea. Acendeu a luz. Marjorie estremeceu. O clarão lhe  trouxe aos olhos ofuscados todos os detalhes imediatos e pr¢ximos do  mundo material. Deus se tinha dissipado, como uma bâlha que se fura.  Daisy viu. a mesa vazia. - Então ainda não ceou?'- exclamou com  horror.  - Ora, não. . . - disse Marjorie. - Nem mesmo pensei em cear.  - Nem o Sr. Bidlake? - continuou Daisy em tom de censura.  Oh ! Òle deve estar morto de fome, o coitado!  Precipitou-se para a cozinha, ... procura de carne fria e de picles.  L em cima, no seu quarto, Walter estava deitado na cama, a cara  enterrada nos travesseiros. 

368 

CAPITULO XXXI 

Um problema de palavras-cruzadas havia trazido o Sr. Quarles ao  dcimo stimo volume da Enciclopdia Britnica. A curiosidade ociosa  ali o detivera. O Lorde Chamberlain, aprendeu le, traz um bastão branco  e usa uma chave de ouro ou uma chave engastada de pedras preciosas. A  palavra "loteria" não tem significaão muito definida; mas Nero distri-  bu¡a prmios como uma casa ou UM escravo, ao passo que Heliog balo  introduziu um elemento de absurdidade - um bilhete por um vaso de ou-

  ro, um outro por seis mâscas. Pinckney B. S. Pinchback foi governador  republicano da Louisiana em 1873. Para definir a lira  necess rio  distingui-la claramente da harpa e da guitarra, instrumentos afins. Numa  das ravinas do norte da Madeira existem, vis¡veis a "lho nu, massas dum  essexito grosseiramente cristalino. Mas h igualmente um lado negativo  da magia. E o magnetismo terrestre tem uma longa hist¢ria. Sidney Quar-  les mal havia comeado a leitura do artigo s"bre Sir John Blundell Maple,  Baronet (1845-1903), cujo pai, John Maple (morto em 1900), tinha uma  pequena casa de m¢veis em Tottenharri Court Road, quando uma cama-  reira apareceu ... porta para anunciar que uma m"a desejava v-lo.# 

- Uma m"a? - repetiu le com alguma surprsa, tirando o pince- 

nez. 

- Sim, sou eu - disse uma voz familiar. E Gladys surgiu de tr s da  criada, avanando at o meio da pea.  Vendo-a, o Sr. Quarles sentiu um espasmo s£bito de apreensão.  Ergueu-se.  - Pode retirar-se - disse com dignidade para a criada. Esta se reti-  rou. - Minha pequena! - Tomou a mão de Gladys, que o repeliu.  Mas que surprsa! ...  - Oh ! uma agrad vel surprsa - respondeu ela sarc...sticamente.

  A emoão fazia sempre ressuscitar nela a garâta londrina. Gladys  sentou-se, plantando-se na cadeira com f"ra e determinaão.  "Aqui estou", parecia dizer aquela maneira volunt ria de sentar, "e  aqui f¡co"; talvez mesmo quisesse dizer: "Daqui não saio nem que o mun-  do venha abaixo".  - Realmente agrad vel esta... aaa... surprsa! - disse o Sr.  Quarles com voz mel¡flua, s¢ para dizer alguma coisa. Era terr¡vel, pensa-  va le. Que quereria a rapariga? Que fazer para afast -la da casa? ...  Enfun, em caso de necessidade, poderia sempre dizer que a chamara para 

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I# 

datilografar um trabalho particularmente urgente.  rada - acrescentou em voz alta.  Muito. 

- Mas muito inespe- 

A m"a cerrou a b"ca firmemente e olhou para o velho como quem  espera --- com olhos cuja expressão não agradava nem um pouco ao Sr.  Quarles. Mas que esperava ela?  - Naturalmente, tenho ... aaa...  continuou le.  - Olt! Sim?  Gladys emitiu um riso perigoso.  O Sr. Quarles fitou os olhos nela e teve mdo. Para falar a verdade,  odiava a rapariga. Comeou a perguntar interiormente por que diabos  chegara um dia a desej -la.  - Muito prazer - repetia le, com uma nfase cheia de dignidade. O

  importante era manter uma atitude digna, mostrar com firmeza a sua  superioridade. Mas ...  - Mas. . . fez ela num eco.  - Sim, realmente, penso que foi uma ... aaa ... pequena  imprudncia vir at c ...  - Òle acha que foi uma pequena imprudncia! - disse Gladys, como  se repetisse as palavras do velho a unia terceira pessoa invis¡vel.  Para não dizer que a visita era. . . aaa... desnecess ria...  Ora, quem deve julgar isso sou eu ...  No fim de contas, tu sabes muito bem que se tivesses necessidade  de ... aaa ... me ver, bastava que me escrevesses e eu teria ido logo em  seguida. Tambm, para que arriscar-se a vir aqui? - Sidney esperou.  Mas Gladys não respondeu, limitou-se a olhar para le com os seus olhos

  verdes e duros, e com os l bios apertados num sorriso que parecia encer-  rar eniginitticamente Deus sabia l que pensamentos e sentimentos peri-  gosos. - Realmente, estou aborrecido contigo. - A maneira como o Sr.  Quarles exprimia aquela repreensão era digna e impressionante, mas  cheia de bondade - sempre cheia de bondade. - Realmente, estou ...  aaa... aborrecido.  Gladys atirou a cabea para tr s e soltou uma risadinha de hiena, agu-  da e breve. O Sr. Quarles ficou desconcertado. Mas conservou a dignida-  de 

muito prazer em ver-te. . - - 

- Podes rir. Mas eu estou ... aaa ... falajado sriamente. Não tinhas

  nenhum direito de vir aqui. Sabias muito bem o quão importante  que  ningum ... aaa ... desconfie de nada... Sobretudo aqui ... aqui em  minha pr¢pria casa. Tu sabias ...  - Sim, eu sabia - repetiu Gladys, sacudindo a cabea com truculn-  cia. - E foi exatamente por isso que vim. - Calou-se por um momento.  Mas a pressão de seus sentimentos lhe tornou imposs¡vel manter o siln-  cio. -- Porque eu sabia que voc estava assustado - continuou ela -, # 

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assustado, com mdo de que os outros saibam o que voc realmente . Ve-  lho indecente e porcalhão! - E, perdendo de repente todo o contr"le  s"bre a sua f£ria, ergueu-se num pincho e avanou contra o Sr. Quarles  com um ar tão ameaador que o velho recuou um passo. Mas o ataque de  Gladys foi apenas verbal. - Assumindo ares importantes, como se f"sse  o Pr¡ncipe de Gales. E depois leva uma mâa para jantar num Corner  House. E vive a censurar todo o mundo pior do que um pastor, quando  voc não passa de um porco velho sujo! Sim, um porco velho. sujo:  o  9 ue voc ! Dizendo que me amava, ora bolas! Eu sei que espcie de amor  e sse! Pois sim ... Uma m¢a não est segura dentro de um t xi com  voc. Não! Seu animal repugnante! E depois ...  - Realmente, realmente. . . - o Sr. Quarles se havia refeito suf icien-  temente do primeiro choque de surprsa cheia de horror: agora podia  protestar. Era terr¡vel aquilo, inaudito. le se sentia literalmente devasta-  do, aniquilado, achatado.

  - Realmente, realmente - repetiu Gladys, imitando a maneira de fa-  lar do velho, numa m¡mica derris¢ria. - E depois nem mesmo leva a  gente para um lugar decente no teatro! Mas quando se tratava dos seus  prazeres - oh, Jesus! Seu porco gordo e asqueroso! E tomando ares de  Rodolfo Valentino, conversando fiado, dizendo que t¢das as mulheres  estão loucas por voc ... Por voc! Olhe-se s¢ no espelho ... Parece um  "vo vermelho, sem tirar nem p"r ...  - Que inconvenincia!  - Falar de amor com uma cara dessas! - continuou Gladys numa  voz ainda mais aguda. - Um velho porcalhão como voc! E depois d

para a gente um rel¢gio vagabundo e velho e um par de brincos com  pedras que não valem nada; porque eu perguntei a um joalheiro e le me  contou ... E agora, por cima de tudo, ainda vou ter um beb ...

  - Um beb? - repetiu o Sr. Quaries, incrdulo, mas com uma  sensaão de v cuo e de apreensão mais profunda e mais horr¡vel. - Um  beb, não  poss¡vel!  - Sim, um filho! - gritou Gladys, batendo com o p. - Não enten-  de o que eu digo, velho idiota? Um filho. Foi por isso que vim aqui. E não  vou embora sem primeiro ...  Foi nesse momento que a Sra. Quarles entrou pela porta envidraada,  vinda do jardim. Acabara de palestrar com Marjorie na sua casinha e  entrava para dizer a Sidney que havia convidado o jovem casal para jan-  tar naquela noite.  - Oh, desculpem. . . - disse ela, fazendo alto no portal.  Houve um instante de silncio. Depois, dirigindo-se desta vez ... Sra.  Quarles, Gladys recomeou a falar com uma f£ria incontrol vel. Cinco

  minutos mais tarde ela estava a soluar não menos incontroliivelmente, e  a Sra. Quarles se esforava por consol - Ia. Sidney aproveitou a ocasião  para safar-se. Quando o gongo anunciou o jantar, mandou dizer que se # 

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sentia muito doente e que fizessem o favor de mandar dois ovos cozidos  bem moles, algumas torradas com manteiga e um pouco de compota.  Entrementes, no est£dio, a Sra. Quarles estava inclinada com solicitude  s¢bre a cadeira de Gladys.  - Não  nada - repetia ela, batendo no ombro da rapariga. "Pobre  criatura", pensava. "E que perfume abomin vel! Ali, como foi que Sidney  teve a coragem?" Depois, de n"vo: - Pobre menina! Não chore. Procure  ter coragem. Não h de ser nada.  Os soluos de Gladys decresceram pouco a pouco. A voz calma da  Sra. Quarles continuou a falar, consoladora. A outra escutava. De s£bito,  ergueu-se. O rosto que defrontou o da Sra. Quarles estava carregado de  zombaria selvagem, atr s das manchas das l grimas.  - Oh! Cale a b"ca! - disse ela sarc...sticamente - cale a b"ca! Que  pensa que eu sou? Um nen? A falar dsse jeito ... Ser que pensa que  com isso me vai fazer ficar quieta? Que eu esquea os meus direitos?  "Bilu-bilu ... o nen vai ser bonzinho, o nen não vai?" Mas a senhora  est enganada.  o que lhe digo. Est muit¡ssimo enganada. E muito bre-  ve vai ter a certeza disso ...  o que lhe digo.

  E com estas palavras, saltou para fora do gabinete, ganhou o jardime  desapareceu. 

372 

CAPITULO XXXII 

Na casinha do fundo das cocheiras Elinor se achava completamente s¢.  O fraco ribombar do tr fego long¡nquo acariciava o silncio mrno. Um  vaso de flâres variegadas, que sua mãe lhe tinha dado, povoava para ela  o ar de inumer veis recordaões virtuais de sua infncia. Elinor estava  arranjando as rosas dum vaso; enormes rosas brancas de ptalas de

  porcelana male vel, rosas alaranjadas que pareciam turbilhões de chamas  congeladas e perfumadas. O rel¢gio de carrilhão que havia em cima da  chamin flez um s£bito coment rio inesperado de oito notas e deixou que  as vibraões harmoniosas se dissipassem melanc¢licamente no nada, co-  mo a m£sica dum barco que se afasta. Trs e meia. E ...s 6 horas ela espe-  rava Everard. Esperava-o para tomarem um coquetel - dava-se ela o tra-  balho de explicar a si mesma - antes que le a levasse ao restaurante e  depois ao teatro. Simplesmente uma diversão noturna, semelhante a não  importa que outra diversão noturna. Elinor continuava a repetir a si mes-  ma a explicaão, porque ela sabia, ela via o que se achava escondido sob  aquela desculpa superficial, estava profticainente certa de que aquela  noite não seria de maneira nenhuma como as outras, mas sim capital,  decisiva. Seria obrigada a decidir, a escolher. Mas não queria escolher;

  era por isso que tentava convencer-se de que a noite seria simplesmente  trivial e divertida. Era o mesmo que cobrir um cad ver com fl"res. Com  uma montanha de ffires. Mas o cad ver ali estava sempre, apesar dos  l¡rios que o dissimulavam. E a decisão tinha de ser tomada, a despeito do  jantar no Kettner e a despeito do teatro. Com um suspiro Elinor apanhou  com as duas mãos o pesado vaso e, no momento em que o erguia para o# 

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  colocar em cima da chamin, ouviu-se uma forte batida na porta. Elinor  sentiu um sobressalto tão violento que quase deixou cair o objeto que ti-  nha nas mãos. E o terror persistiu, mesmo depois que ela se refez do pri-  meiro choque da surprsa. Uma batida na porta, quando ela se achava  s¢zinha na casa solit ria, fazia-lhe sempre bater o coraão de maneira  desagrad vel. A idia de que havia algum do lado de fora, algum que  esperava, que escutava - um estranho, um inimigo, talvez (porque a  imaginaão de Elinor estava tâda povoada de horrendas faces cabeludas  que espreitavam dos cantos, com mãos ameaadoras, facas e clavas e  pistolas), ou então um louco que escutasse atentamente os ind¡cios de vi-  da no interior da casa, esperando, como uma aranha, esperando que ela  abrisse a porta - essa idia lhe era um pesadelo, um pavor. Bateram de 

373# 

nâvo. Pousando o vaso. Elinor caminhou na ponta dos ps, com infinitas  precauões, at a janela e arriscou uma olhadela por entre as cortinas.  Nos dias em que ela se sentia particularmente nervosa, faltava-lhe cora-  gem mesmo para fazer aquilo; deixava-se ficar sentada, im¢vel, fazendo  votos para que as batidas de seu coraão não fossem ouvidas da rua, at  que o desconhecido que batera ... porta perdia a pacincia e abalava...

  No dia seguinte o entregador da casa Selfridge lhe causava remorsos atro~  zes quando vinha desculpar-se da entrega tardia. "Ontern bati na porta,  madame, mas não estava ningum em casa." E Elinor ficava cheia de  vergonha, sentia-se rid¡cula. Mas, na pr¢xima vez em que se achasse de  n"vo em casa s¢zinha e nervosa, havia de portar-se exatamente do mesmo  modo ...  Naquela tarde encheu-se de coragem; ousou olhar o inimigo - olhar,  pelo menos, o que podia ver dle, espiando de vis atravs do vidro, na  direão da porta. Uma perna de cala cinzenta e um cotovlo - era tudo  o que se continha em seu campo visual. Bateram ainda mais uma vez.  Depois a perna de cala recuou e todo o casaco ficou vis¡vel; depois, o  chapu prto; a cabea do homem voltou-se: era o rosto de Spandreli. Eli-  nor correu ... porta e abriu-a.

  - Spandrell ! - exclamou ela, porque o rapaz j se tinha voltado pa-  ra partir. Spandrell fez meia volta, tirando o chapu. Apertaram-se as  mãos. - Desculpa - explicou ela. - Eu estava s¢zinha. Julgava que  era no m¡nimo um assassino. Depois dei uma espiadela pela janela e vi  que eras tu.  Spandrell soltou uma risada breve e sem ru¡do.  - Mas podia ser ainda um assassino, mesmo em se tratando daminha  pessoa. - E brandiu a bengala de castão pesado diante dela, numa brin-  cadeira que pareceu tão drarn...ticamente de ac¢rdo com as representaões  imagin rias que ela tinha do tipo autnticamente homicida, que Elinor  sentiu um grande mal-estar.  Encobriu a sua emoão com uma risada, mas decidiu não convid -lo  para entrar. De p ... soleira da porta, sentia-se em maior segurana.

  - Apesar de tudo - disse -, antes ser assassinada por uma pessoa  conhecida do que por um estranho.  - Achas? - Spandrell olhou para a interlocutora; as comissuras de  sua larga bâca se crisparam num sorriso esquisito. -  preciso ser  mulher para pensar nesses refinamentos. Mas, se tiveres vontade que te  cortem a car¢tida duma maneira camarada...  - Meu caro Spandreli! - protestou ela, sentindo-se agora mais con-  tente do que nunca por estar ... soleira da porta e não no interior da casa.  - . . . não hesites: manda-me chamar. Não importa o inc"modo que

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  isso me possa dar - pousou a mão s"bre o coraão -, hei de voar para  o teu lado. Ou, melhor, para o teu pescoo. - Bateu os calcanhares um  contra o outro e inclinou-se. - Mas, dize-me - continuou em outro tom 

374 

- Philip não anda por a¡? Eu queria que le viesse jantar comigo esta  noite. No Sbisa. Eu te convidaria tambm de boa vontade ... Mas  um  assunto puramente masculino.  Elinor agradeceu.# 

- Eu não podia ir de qualquer modo. E Philip foi para o campo ver  a mãe. Vai voltar justamente a tempo para o concrto de Tolley no  Queen's Hall. Mas sei que le disse que passaria pelo Sbisa, depois do  concrto, na vaga esperana de encontrar algum. Assim  que h s de v-  lo hoje. Mais tarde.  - Enfim, mais vale tarde do que nunca. Ou, pelo menos - aqui  Spandrell emitiu uma de suas risadas afonicas -, assim se espera piedo-  samente, no que diz respeito aos amigos. Esperanas piedosas! Mas, para  falar a verdade, o provrbio precisa ser modificado: mais vale nunca do  que cedo.

  --- Então, por que te d s o trabalho de convidar as pessoas para jan- I

 tar ?

  Spandrell deu de ombros.  - Fâra de h bito. De resto, eu os obrigo geralmente a pagar, quando  os convido ...  Riam ambos ainda, quando uma campainhada violenta f-los voltar a  cabea. Um telegrafista numa bicicleta vermelha se precipitava para les.  - Quaries? - perguntou o rapaz, saltando da viatura.  Elinor pegou o telegrama e o rasgou. O riso se lhe desvaneceu do rosto

  ao passo que ela lia.  - Não tem resposta.  O garâto tornou a montar na bicicleta e partiu. Elinor continuava com  os olhos fitos no telegrama, como se ste estivesse redigido numa l¡ngua  pouco conhecida e dif¡cil de decifrar. Olhou o rel¢gio de pulso, depois tor-  nou a fitar os olhos na fina rolha de papel.  - Queres prestar-me um servio? - perguntou etifim, voltando-se  para Spandreli.  - Mas naturalmente 1  - Meu filho est doente - explicou ela. - Pedem-me para voltar. Se  andar depressa - consultou de n"vo o rel¢gio -, poderei ainda tomar o  trem das 4 e 17 em Euston. Mas não haver mais tempo para outra coisa.  Queres telefonar de minha parte a Everard Webley, e explicar-lhe por que

  não posso ir cear com le esta noite? - Era um aviso, pensava ela, uma  proibião. - Antes das 6. No escrit¢rio dle.  - Antes das 6 - repetiu Spandrell lentamente. - No escrit¢rio  dle ... Muito bem.   preciso que eu me avie -- disse ela, estendendo-lhe a mão.  Mas eu vou te chamar um t xi, enquanto pões o chapu.  Elinor agradeceu. Spandrell afastou-se a passo r pido, atravessandoo  p tio das cavalarias. Sim, uma proibião, repetia Elinor para si mesma, 

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pondo o chapu diante do espelho veneziano da sala de estar. A escolha  lhe tinha sido imposta. Era ao mesmo tempo um al¡vio e uma decepão.  Mas imposta, continuava ela a refletir, ... custa do pobre do pequeno Phil.  Elinor ficou a perguntar a si mesma que teria le. O telegrama de sua mãe  - tão caracter¡stico que ela não podia deixar de sorrir, recordando-lhe os  trnios - não dizia nada, em suma. "Philip um pouco enfermo e embora  nada de alarmante aconselharia voltar. Mamãe. "Elinor se lembrou de co-  mo o menino andava nervoso e dif¡cil havia j algum tempo, de como se  fatigava depressa. Censurou-se por não ter compreendido que le estava  incubando alguma doena. Agora esta se declarara. Uma gripe, talvez.  "Eu devia ter sido mais cuidadosa", continuava ela a repetir para si mes-  ma. Escreveu um bilhete ao marido. "O telegrama incluso explica minha  partida repentina. Encontra-me em Gattenden amanhã de manhã." Onde  havia de colocar o papel, para que Philip o visse ao chegar? Contra o  rel¢gio, em cima da chamin? Mas seria que, ao chegar, le ia necess ria~  mente olhar a hora? Ou então em cima da mesa. Não; preg -lo com um  alfinte no biombo; a¡ estava! Assim Philip não poderia deixar de v-lo.  Elinor subiu depressa para buscar um alfinte. S"bre a mesa do quarto de

  Philip viu um molho de chaves. Apanhou-as e examinou-as, franzindo a  testa. "Que idiota! Esqueceu as chaves! Como  que vai entrar esta noi-  te?" O ru¡do dum t xi sob a janela lhe sugeriu uma soluão. Desceu  correndo, prendeu com um alfinte o bilhete e o telegrama, bem ... vista,  s"bre o biombo que separava da porta a parte "sala de visitas" do salão  geral e ganhou o p tio. Spandrell esperava ... porta do t xi.  - F"ste muito amãvel. . . - disse ela. - Mas não acabei de te  explorar ainda. - Ergueu o molho de chaves. - Quando vires Philip es-  ta noite, d -lhe isto e dize-lhe, com lembranas minhas, que le  um  imbecil. Sem as chaves, não poderia entrar. - Spandrell tomou o molho  sem dizer palavra. - Conta-lhe por que fui embora e dize-lhe que o espe-  ro amanhã. - Elinor subiu para o t xi. - E não esqueas de telefonar a  Webley. Antes das 6 horas. Porque le devia vir buscar-me aqui ...s 6.

  - Aqui? - perguntou Spandrell, com uma expressão s£bita de  intersse e de curiosidade que Elinor achou um pouco ofensiva e  embaraante. Estaria le imaginando alguma coisa, ousaria supor? ...  i  - Sim,aqui - fez ela com um breve sinal de cabea.  Não esquecerei - asseverou-lhe Spandrell num tom enf tico; e a  expressão do seu rosto tinha ainda qualquer coisa que dava para suspei-  tar: não se ocultaria uma significa...o especial atr s daquelas palavras  tão naturais? 

- Obrigada - disse Elinor, sem cordialidade. - E agora  preciso  que eu voe ...  Deu o endero ao condutor. O t xi subiu o p tio em marcha ... r, pas-

  sou sob o arco, fez uma volta e partiu. 376

 Spandrell foi a p, lentamente, at Hyde Park Corner. Da cabina

  p£blica da estaão, telefonou a Illidge. # 

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  Everard Webley caminhava dum lado para outro na sala, ditando. Era~  lhe imposs¡vel entregar-se a qualquer trabalho de composião quando  sentado. "Como ser .que conseguem escrever os que passam todo o dia  entalados em cadeiras, e isso do princ¡pio ao flim do ano?" Achava  incompreens¡vel. "Quando estou sentado numa cadeira, ou deitado numa  cama, fico como a mob¡lia a que me juntei... nada mais que madeira e  estofamento. Meu esp¡rito não se mover se os m£sculos não se moverem  tambm." Quando a correspondncia era volumosa, quando havia artigos  a ditar, discursos a preparar, o dia de trabalho de Everard era uma excur-  são pedestre de oito horas. "Bancando o leão", era assim que as  secret rias descreviam os seus mtodos de ditado. Everard "bancava" o  leão naquele momento, o leão inquieto, um pouco antes da hora do repas~  to - caminhando duma parede para outra em seu grande escrit¢rio nu.  - Lembrem-se - dizia le, franzindo as wbrancelhas para o tapete,  enquanto falava; sob o l pis da secret ria os caracteres estenogr ficos  corriam s"bre a p gina branca -, lembrem-se de que em recurso final a  autoridade  minha em todos os casos, e que enquanto eu estiver ... cabea  da B.B.F. t"da tentativa de insubordinaão ser imediata e implac...vel-  mente reprimida. Seu, etc. . . - Calou-se e, voltando ... sua mesa, do  ponto at onde fora em sua marcha leonina e fecunda, passou em revista  os papis esparsos. - Isto parece que  tudo. . . - disse, consultando o  rel¢gio. Eram justamente seis menos um quarto. Que essas cartas este-

  jam prontas amanhã de manhã - continuou le a fim de que eu possa  assin -las. - Tomou o chapu do cabide - Boa noite! - E, batendo a  porta, desceu os degraus de dois em dois. Fora, achou o chofer, que o  esperava com o carro. Era uma m quina possante (porque Everard era  um amante das correrias furiosas), e, como le tambm adorava a  sensaão de lutar com as intempries e com o vento produzido pela sua  pr¢pria velocidade, o carro era aberto. Uma coberta imperme vel, bem  estirada, recobria t"da a parte traseira da carroaria de turismo, como um  t"ldo, deixando apenas os dois assentos dianteiros dispon¡veis para os  viajantes.  - Não preciso de ti esta noite - disse Everard ao chofer, sentando-se  ao volante. - Podes ir.  Apertou o botão de partida, engrenou o carro e arrancou com uma

  impetuosidade violenta. V rias d£zias de cavalos estavam encerrados nos  3 litros dos cilindros de Everard; le gostava de faz-los dar o m ximo. A  t¢da a velocidade, primeiro - depois, a 1 metro do obst culo  ameaador, p nas travas; tal era o seu mtodo. Andar de autom¢vel na# 

cidade com Everard era uma aventura demasiadamente frtil em  emoões. Elinor tinha protestado na £ltima vez em que le a levara a pas-  sear. "Morrer não me d muito cuidado", dissera ela, "mas o que não me  agrada  passar o resto da vida com duas pernas de pau e um nariz  quebrado." Everard rira. "Comigo não corres perigo algum. Nunca me

  acontecem acidentes." "s superior a essas coisas, hein?", retrucara ela,  em tom de zombaria. "Bem, se queres te exprimir assim. . . " Os freios fo-  ram apertados com tal violncia que Elinor se vira forada a segurar  fortemente os braos do banco para não ser projetada contra o p ra-brisa.  "Imbecil!", gritou Webley ao velho senhor atarantado cujas indecisões de  galin ceo s"bre o calamento quase o haviam jogado sob os Dutilops de,  11  Everard. "Se queres te exprimir assim , e o carro saltou para a frente,  num arranco, empurrando Elinor contra o respaldo do assento, "pois

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  sej a... Mas o fato  que não me acontecem acidentes. Sou eu que fabrico  a minha pr¢pria sorte."  Recordando-se dsse incidente, Everard teve um sorriso interior,  enquanto rodava ao longo de Oxford Street. Um carroão de*inercadorias  impediu-o de avanar. Não se deviam tolerar cavalos nas ruas de 1,on-  dres. "Ou bem sou teu amante", era o que ia dizer a Elinor, "e no fim de  contas isto significa que  preciso que a coisa se torne p£blica, que deixes  Philip e venhas para a minha casa" - (porque tencionava ser inteira-  mente franco com ela; não devia haver hipocrisia de nenhuma espcie)  -, "ou bem, então. . . " Apresentou-se um ensejo para contornar o  carroão; Everard fez pressão no aclerador e arrancou, desviando o car-  ro para a direita e depois para a esquerda, indo passar rente ao focinhodo  velho cavalo que trotava pacientemente. "Do contr rio não nos tomare-  mos a ver." Seria um ultimato. Um ultimato brutal. Mas Everard detes-  tava as situaões amb¡guas. Preferia saber a verdade definida, por mais  desagrad vel que fâsse, a ficar, mesmo esperanosamente, na mais feliz  das incertezas. E no caso presente a incerteza nada tinha de feliz. ·  entrada de Oxford Circus um guarda ergueu a mão. Eram 6 horas menos  sete. "Elinor  exigente demais", pensava Webley, olhando em t"mo, "  melindrosa demais no sentir sses edificios novos." Everard não achava  nada de desagrad vel no estilo maciamente florido e barroco do cornr-  cio moderno. Era vigoroso e dram tico; era grande, era caro, simbolizava  o progresso. . Mas  tão revoltantemente vulgar!", protestara Elinor.

  "Mas  dificil", respondera le, "não ser vulgar, quando não se est mor-  to. Protestas contra o fato de essa gente trabalhar. E estou de ac"rdo:  trabalhar  coisa muito vulgar, realmente." Elinor tinha o ponto de vista  caracter¡stico do consumidor e não do produtor. O guarda do tr fego  abaixou a mão. Devagar a princ¡pio, mas num ¡mpeto crescente, a onda  parada da circulaão tornou a avanar ruidosamente. Um esp¡rito de luxo  - era o que Elinor tinha; não um esp¡rito utilit rio. Um esp¡rito que  considerava o mundo sob o aspecto da beleza e do g"zo, e não sob o 

378 

aspecto da utilidade; um esp¡rito preocupado com sensaões e com mati-  zes de sentimento, e preocupado com essas coisas por amor delas mesmas

  e não porque olhos vivos e intuião fossem necess rios na luta pela vida.# 

Ele devia desaprov -la; e o teria feito (Everard sorriu interiormente aofa-  zer esta reflexão) se não estivesse apaixonado por ela. Teria...  Plaf! Da imperial dum "nibus que passava uma casca de banana caiu,  em cima da capota do motor, diante dle, como uma estrla-do-mar suja  e gasta ... f"ra de rastejar. Uma explosão de riso ressoou atravs do ru¡do  do trnsito. Erguendo os olhos, Everard percebeu duas mocinhas que o  espiavam por cima da balaustrada da imperial, a b"ca aberta, como um

  par de pequeninas g rgulas bonitas, rindo, rindo como se o mundo, at  aqule dia, não tivesse visto ainda uma brincadeira. Everard lhes mostrou  o punho, rindo tambm. Como Elinor se teria divertido com aqule inci-  dente, pensou, ela, que gostava tanto das ruas e das suas comdias! Como  Elinor sabia ver o esquisito, o divertido, a coisa significativa! Onde le,  Everard, não percebia senão uma massa humana uniforme, ela distinguia  indiv¡duos. E aquie talento que tinha para inventar tâda uma biografia  para as raridades vistas de relance uma s¢ vez - aqule talento não era  menos not vel que o seu olhar tão penetrante. Elinor saberia dizer tudo  s"bre aquelas raparigas - sua classe social, a espcie de casa em que

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  moravam, onde se vestiam, por que preo, se tinham ainda virtude, os  livros que liam, seus artistas de cinema favoritos. Imaginando o que Eli-  nor teria dito, lembrando-se do riso dela, da expressão de seus olhos e dos  seus h bitos de linguagem, sentiu-se s£bitamente'penetrado de tanta ter~  nura, duma saudade tão violenta, ainda que delicadamente afetuosa, que  mal podia suportar aquela separaão, embora por poucos instantes mais.  Buzinou, para prevenir o t xi que se achava diante dle, e tentou  contom -lo pela direita. Um ref£gio que havia no meio da rua obrigou-o  a recuar, mas não antes que o condutor do t xi tivesse tido tempo de  lanar d£vidas s"bre a paternidade e s"bre a heterossexual idade de Eve-  rard Webley, bem como sâbre as suas probabilidades de ser feliz no outro  mundo. Everard, com grande deleite e com uma originalidade  incompar...velmente maior, devolveu as inj£rias. Sentia-se transbordante  de vida, extraordiri...riamente forte e vigoroso, inexplic...velmente e  (exclu¡da a idia de que aquela espera ia prolongar por mais cinco minu-  tVs a sua separaão de Elinor) perfeitamerte feliz.  Sim, perfeitamente feliz; porque le sabia (e com que tranqila  convicão!) que ela lhe diria "sim", que ela o amava. E sua felicidade se  tornou mais intensa, mais aguda, e ao mesmo tempo mais serena quando  o carro dobrou a esquina de Marble Arch para entrar em Hyde Park. Sua  convicão proftica se tornou mais profunda, transformou-se numa  espcie de certeza relembrada, como se o futuro fosse j hist¢ria. O sol  estava baixo no horizonte, e, onde quer que sua luz r¢seamente dourada  tocasse a terra, era como se um outono prematuro e mais luminoso tives-

  379# 

se pegado fogo nas f"lhas e na relva. Grandes setas de claridade pulveri-  zada desciam obliquamente do poente entre as rvores, e nas sombras o  crep£sculo era uma nvoa de lavanda, um vapor de azul e de ¡ndigo que  ia escurecendo, plano ap¢s plano, at as distncias nevoentas de Londres.  E os pares que passeavam sâbre a relva, as crianas que brincavam eram

  alternadamente eclipsados e transfigurados ao passarem da sombra para  o sol, pareciam umas vzes insignificantes, outras vezes milagrosamente  v¡vidos. Era como se um deus caprichoso, ora aborrecido ora encantado  com as suas criaturas, dirigisse sâbre elas um olhar cheio por vzes de  indiferena aniquiladora e por vzes de um amor que lhes conferia um  pouco de sua pr¢pria divindade. O caminho se estendia diante do auto, li-  vre e liso, mas Everard mal ultrapassou a velocidade permitida - a des-  peito de seu desejo, de sua saudade; e isto, em certo sentido, porque le  amava muit¡ssimo a Elinor. E porque tudo estava assim radiosamente  belo; e onde se achava a beleza, a¡ devia estar Elinor, pensava Everard, de  ac"rdo com uma l¢gica particular e com uma necessidade pessoal. Ela  estava a seu lado naquele instante, porque ela teria gozado de maneira  intensa aqule encantamento. Everard fazia o carro deslizar devagarinho,

  porque certamente Elinor teria querido prolongar o prazer. O motor dava  apenas 1500 rotaões por minuto; o d¡namo mal estava carregando. Um  pequeno Austin tomou-lhe a dianteira, como se o carro de Webley esti-  vesse parado. Que passassem todos! Everard pensou nas expressões que  ia empregar para descrever a Elinor aquelas maravilhas. Atravs dos gra-  dis, os "nibus em Park Lane reluziam, escarlates, brilhando como carros  triunfais num cortejo hist¢rico. Fracamente, atravs de todo o ru¡do do  trnsito, um rel¢gio bateu seis badaladas; e, antes que estas cessassem, o  som de um outro sino se lhes misturou, melodioso, suave, com uma ponta  de melancolia - a voz mesma daquela tarde luminosa, da felicidade de

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  Everard. E eis que, apesar de t"da a lentidão da marcha do auto, as portas  de m rmore de Hyde Park Corner se abriram diante dle. Oferecido - a  despeito da nudez e do desenvolvimento ultra-sueco de seus m£sculos  abdominais - pelas Damas da Inglaterra ao Vencedor de Waterloo, o  Aquiles fundido com o bronze dos canhões de Napoleão se erguia  ameaador, escudo alado, brandindo a espada, defendendo-se contra o  cu p lido e vazio. Foi quase com pesar, embora desejasse ardentemente  chegar ao flun de sua viagem, que Everard deixou Hyde Park. De n"vo os  ânibus monumentais rugiram-lhe ... frente e ... retaguarda. Contornando o  arquiplago de ilhotas, Webley fez a promessa de mandar no dia seguinte  5 libras ao Hospital de São Jorge, se Elinor lhe respondesse "sim". Estava  certo de que ela lhe responderia ... Era como se o dinheiro estivesse pago  adiantadamente. Everard saiu de Grosvenor Place; a trovoada se apagou  atr s dle.  Belgrave Square era um o sis , de rvores; os estorninhos garruleavam  no meio dum silncio agreste. Everard virou o carro uma vez, duas, e, por 

380 

fim, outra vez mais. Ao lado esquerdo, entre duas casas, havia um arco.  Webley o ultrapassou 1 metro ou 2, parou e, em marcha ... r, passou de#

 

n"vo debaixo dle e foi recuando, recuando at o fundo do beco das  cavalarias. Como eram encantadoras as cortinas amarelas!  Parou o carro e saltou. O coraão lhe batia muito forte. Tinha a mesma  sensaão que experimentara ao pronunciar o seu primeiro discurso, meta-  de mdo, metade triunfo. Subindo os degraus da porta, bateu e esperou  durante vinte batidas de coraão; do interior da casa não veio nenhum  som de resposta. Webley bateu de nâvo e, lembrando-se do que Elinor lhe  contara s"bre os seus terr"res, Rez acompanhar a batida dum assobio, e,  como em resposta ao silencioso terror dela, um grito suplementar de  "Amigo!" De repente percebeu que a porta não estava fechada com o

  trinco, mas apenas entreaberta. Empurrou-a; ela escancarou-se. Everard  transp"s a soleira.  - Elinor! - gritou, achando que a amiga devia estar no andar supe-  rior. - Elinor!  Nem assim obteve resposta. Estaria ela a pregar-lhe uma pea? E se de  repente saltasse de tr s de um dos biombos... Webley sorriu a sse  pensamento e avanou para explorar a pea silenciosa, quando seu olhar  foi atra¡do pelas f"lhas de papel prsas com alfinte, bem ... vista, num dos  painis do biombo da direita. Aproximou-se e mal havia comeado a ler:  "O telegrama incluso te explica. . . " quando um ru¡do ...s suas costas f-  lo voltar-se. Um homem se achava a 1 metro dle, com as mãos erguidas:  a maa que elas seguravam tinha j comeado a oscilar para o lado e pa-  ra a frente, partindo de cima do ombro direito. Everard levantou um

  brao, porm tarde demais. O golpe o atingiu na tmpora esquerda. Foi  como se uma luz se tivesse apagado de repente. Ele não teve nem mesmo  conscincia da queda. 

A Sra. Quarles beijou o filho.  - Phil querido - disse ela. - Obrigada por teres vindo depressa.  - Não est s com muito boa aparncia, mamãe ...  - Um pouco fatigada, nada mais ... E aborrecida - acrescentou,  depois de um momento de silncio, e com um suspiro.  - Aborrecida?

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  - A respeito de teu pai. Òle não vai bem - continuou Rachel, falan-  do em voz baixa e como se relutasse. - Òle desejava ver-te particular-  mente. Foi por isto que eu te telegrafei.  - Papai est gravemente doente?  - Fisicamente, não. Mas os nervos ... Uma espcie de colapso. Est

muito excitado. Muito inst vel.  - Mas qual  a causa? 

381# 

A Sra. Quarles ficou silenciosa. E quando por fim falou foi com um  esforo vis¡vel, como se cada uma de suas palavras tivesse de forar uma  passagem atravs duma barreira interior. Seu rosto. de ordin rio tão  m¢vel, estava r¡gido, tenso.  - Aconteceu algo que o transtornou. Teve um choque violento. - E,  lentamente, palavra por palavra, a hist¢ria veio ... tona.  Ph¡lip escutava, curvado para a frente, os cotovelos fincados nos joe~  lhos, o queixo nas mãos. Depois de um primeiro olhar r pido lanado ao  rosto da mãe, conservou os olhos fixos no chão. Sentia que olhar para ela,

  encar -la seria infligir-lhe um embarao in£til. O fato de falar j lhe era  uma dor e uma humilhaão; que ela pudesse, pelo menos, falar sem que a  vissem, como se não existisse testemunha de sua desgraa. Os olhos  desviados de Philip deixavam a. mãe numa espcie de penumbra espiri-  tual. Palavra por palavra, com uma voz macia e incolor, a Sra. Quarles  falou. Foi desfiando os incidentes s¢rdidos um por um. Quando ela se p"s  a contar a visita que Gladys fizera na antevspera, Philip não p"de supor-  tar por mais tempo a narrativa. Era demasiadamente humilhante para ela;  não podia permitir que a mãe continuasse.  - Sim, sim, eu imagino - disse le, cortando-lhe a palavra. E,  erguendo-se num pincho, saiu a caminhar, manco, em passos r pidos e  nervosos, at a janela. - Não continues- - Ficou ali um momento,  olhando para fora, para o relvado, para as espssas muralhas de roche-

  dos, para as colinas c"r de colheita que ficavam longe, do outro lado do  vale. A paisagem era pl cida a ponto de se tornar quase exasperante. Phi-  lip se voltou., tornou a vir, claudicando, pela pea, e, parando um momen-  to atr s da cadeira da mãe, p"s-lhe a mão no ombro; depois se afastou de  n¢vo. -  preciso não pensar mais nisso. Vou fazer o que f"r preciso. -  Teve, com um enorme desgâsto, a visão das cenas indignas, e das dispu-  tas e dos regateios s¢rdidos. - Talvez seja melhor que eu v ver papai --  sugeriu.  A Sra. Quarles aprovou com um meneio de cabea:  Ele estava muito ansioso por te ver.  Por qu?  Não sei. Mas tem estado a insistir ...  E le fala neste ... bem, neste neg¢cio?

  Não. Nunca se refere a le. Tenho a impressão de que o esquece  propositalmente.  - Então seria melhor eu não tocar no assunto.  - Sim, a menos que le comece --- aconselhou a Sra. Quarles. - A  maioria das vzes  de si mesmo que Sidney fala. Do passado, de sua  sa£de, e num tom pessimista. Deves tentar a-inim -lo. - Philip fez um  gesto afirmativo. - Alegra-o - continuou a Sra. Quarles -, e não o  contradigas. Ele se encoleriza f...cilmente. Não lhe faz bem excitar-se.  Phi'.ip escutava. "Como se se tratasse dum animal perigoso", pensou, 

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11 ou duma criana desobediente." Que misria, que ang£stia, que humi-  lhaão para a sua mãe!# 

- E não demores l muito tempo - acrescentou ela.  Philip deixou-a. "Que imbecil", disse le de si para consigo mesmo, ao  atravessar o hal]. "Que refinado imbecil!" Aqule acesso s£bito de c¢lera  e de desprzo que sentia pensando no pai não era temperado por nenhuma  afeião prvia. Não era tampouco exacerbado pelo menor ¢dio prvio.  At então Philip não sentira pelo pai nem amor nem falta de afeião.  Irrefletidamente tolerante, ou, quando muito, com uma ponta de resig-  naão divertida, le tinha-lhe aceitado a existncia. Não havia nada em  suas recordaões de irirancia que justificasse emoões mais positivas.  Como pai, o Sr. Quarles se tinha revelado não menos fantasista e não  menos incapaz do que como pol¡tico e como homem de neg¢cios. Breves  per¡odos de intersse entusiasta pelos seus filhos tinham-se alternado com  longos per¡odos no decorrer dos quais le quase que completamente igno-  rara a existncia dos rapazes. Philip e o irmão o tinham preferido nas  epocas de negligncia; porque o pai os ignorava de uma maneira benevo-  lente. Não gostavam tanto quando le se interessava pela sorte -dos dois.

  Porque o intersse assim testemunhado se dirigia, geralmente, muito me-  nos aos rapazes do que a uma teoria de educaão ou de higiene. Depois  de ter palestrado com um mdico eminente, depois de ter lido o £ltimo li-  vro s"bre os mtodos pedag¢gicos, o Sr. Quarles despertava ... descoberta  de que, se se não tomasse com urgncia alguma medida enrgica, seus  fi,lhos teriam grandes probabilidades de se tornar idiotas e doentes, fracos  de esp¡rito, com os corpos envenenados por uma alimentaão viciosa e  deformados por exerc¡cios impr¢prios. Depois, durante algumas semanas,  os dois garotos eram atochados de cenouras ou de carne bem cozida (isso  dependia do mdico com quem o Sr. Quarles acontecera falar); obriga-  vam-nos a fazer gin stica ou então a aprender danas populares e a  eurritmia; faziam~nos aprender de cor poesias (se acontecia ser a

  memoria a coisa importante no momento), ou então (se acontecia serem  as faculdades racionais) mandavam-nos sair para o jardim, a enterrar  estacas na relva; e, depois, medindo a sombra a diferentes horas do dia,  tinham de descobrir por si mesmos os princ¡pios da trigonometria.  Enquanto durava um dsses acessos, a vida se tornava quase intoler vel  para os dois rapazes. E se a Sra. Quarles protestava, Sidney ficava  colrico e lhe dizia que ela era uma mãe piegas e ego¡sta, para a qual o  verdadeiro bem dos filhos não tinha importncia. A Sra. Quarles não  insistia muito vigorosamente, porque sabia que Sidney, no caso de o  contrariarem, se tornava ainda mais obstinado; tolerado, esqueceria o seu  entusiasmo. E, com efeito, ao cabo de algumas semanas o Sr. Quarles se  fatigava naturalmente de trabalhos que não produziam resultados r pidos  e manifestos. Sua higiene não tinha feito crescer nem deixado mais fortes

  os garotos de maneira percept¡vel; les não se haviam tornado apreci...vel- 383

mente mais inteligentes pela sua pedagogia. O que ambos eram,  incontestÖvelmente, era um aborrecimento de cada dia, de cada hora.  "Neg¢cios de maior momentosidade" absorviam então mais e mais a

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  atenão de Sidney Quarles, de forma que pouco a pouco, como o gato de  Cheshire, le acabava por não ter mais existncia real no mundo da sala  de estudos e da nursery - evaporando-se para as esferas mais elevadas e  mais agrad veis. E os dois rapazes podiam tornar de n"vo ... felicidade.  Philip, que os sons sa¡dos do quarto do pai tinham feito parar dianteda  porta, ficou a escutar por alguns instantes. Seu rosto tomou uma expres-  são de grande inquietude, de alarma mesmo. Aquela voz? E o pai,  tinham-lhe dito, estava szinho. Falando consigo mesmo? Teria chegado  ...quele ponto? Dominando-se, Philip abriu ~ porta e ficou imediatamente  tranqilo ao descobrir que o que le tinha tomado como um sintoma de  insnia era apenas um ditado para o ditafane. Escorado por travesseiros,  o Sr. Quarles se achava na cama, meio sentado, meio deitado. Tinha o  rosto e at o pr¢prio crnio congestionados e brilhantes, e seu pijama de  sda c"r-de-rosa parecia ser uma continuaão intensificada da mesma  febre. O ditafone estava s"bre a mesa, ao lado da cama; o Sr. Quarles  falava diante da embocadura do tubo ac£stico flex¡vel. - A verdadeira  grandeza - dizia em voz sonora -  inversamente proporcional. . .  aaa... ao simples sucesso imediato.  - Ali! s tu! - exclamou le, voltando-se, quando a porta se abriu.  Fz parar o maquinismo do aparelho, tornou a pendurar o tubo ac£stico  e estendeu uma mão acolhedora. Gestos banais ... Mas Philip teve a  impressão de que todos os seus movimentos tinham qualquer coisa de  extravagante. Dir-se-ia que o velho estava no palco. Os olhos que le vol-

  tou para Philip luziam dum brilho desacostumado.  - Como estou contente por teres vindo. Tão contente, meu caro!  Bateu na mão de Philip; sua voz forte se p"s de s£bito a tremer.  Philip, pouco habituado a semelhantes demonstraões, se sentiu emba-  raado.  - Mas como te sentes? - perguntou, com umajovialidade fingida.  O Sr. Quarles sacudiu a cabea e apertou-lhe a mão sem dizer palavra.  Philip ficou mais embaraado do que nunca vendo que o pai tinha l gri-  mas nos olhos. Como lhe teria sido poss¡vel continuar a detest -lo e a sen-  tir c¢lera?  - Mas isso não  nada - continuou le, procurando falar num tom  tranqilizador. -  caso apenas de um pequeno repouso.  O Sr. Quarles acentuou a pressão da mão:

  - Não digas ... tua mãe. Mas eu sinto que o fim ... aaa... estpr¢ximo.  - Mas  uma tolice, papai. Não deves falar assim.  - Est pr¢ximo - repetiu o Sr. Quarles, sacudindo a cabea com  obstinaão - muito pr¢ximo.  por isso que estou tão contente por te 

384 

1 francs

ver. Eu teria me sentido tão infeliz se morresse ... aaa... quando tu esti-  vesses na outra extremidade do mundo. Mas contigo aqui perto de mim,#

 

sinto que posso desaparecer - sua voz tremeu de n"vo - com t"da...  aaa... a serenidade. - Apertou outra vez a mão de Philip. Estava  convencido de que tinha sido sempre um pai devotado que s¢ vivia para  os filhos. - Sim, com tâda a serenidade. - Puxou do leno, assoou o  nariz, e aproveitou para enxugar os olhos furtivamente.  - Mas tu não vais morrer.  - Sim, sim - insistiu o Sr. Quarles -, eu o sinto. - Òle o sentia

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  sinceramente; julgava que ia morrer, porque havia uma parte pelo menos  de seu esp¡rito que desejava morrer. T"das aquelas complicaões das £lti-  mas semanas tinham sido demasiadas para le; e o futuro se anunciava  como mais negro ainda, se tal fâsse poss¡vel. Desaparecer sem dor - se-  ria a melhor soluão para todos os seus problemas. Sidney desejava, acre-  ditava; e, acreditando na sua morte iminente, le se compadecia de si  mesmo como de uma v¡tima, e ao mesmo tempo se sentia cheio de  admiraão diante da nobreza resignada com que le pr¢prio suportava a  sua sorte.  - Mas não vais morrer - insistiu Philip com monotonia, não saben-  do que consolaão oferecer, ... parte essas simples negaões. Não tinha  nenhum talento para enfrentar assim de improviso as situaões emocio-  nais da vida pr tica. - Não  nada. . . - Ia dizer: "Não  nada o que  tens". Mas se conteve, calculando, antes que fosse tarde demais, que seu  pai podia ficar ofendido.  - Não falemos mais nisso. - O Sr. Quarles respondeu acremente;  havia um ar de despeito no seu olhar. Philip se recordou do que a mãe dis-  sera, recomendando-lhe que não o contrariasse. Calou-se. - Não pode-  mos ... aaa... contender com o Destino - continuou o Sr. Quarles  num outro tom. - O Destino - repetiu le, com um suspiro. - Tu  tiveste sorte, meu rapaz; tu descobriste ... aaa ... tua vocaão desde o  inicio. A sorte te tratou bem.  Philip Rez com a cabea um sinal de aquiescncia. Era uma coisa que  le havia dito freqentes vzes a si mesmo, com certa apreensão. Tinha

  uma crena obscura em Nmesis.  - Ao passo que eu. . . - O Sr. Quarles não terminou a frase, mas  ergueu a mão e a deixou cair s¢bre a coberta. - Eu desperdicei anos de  minha vida a seguir... aaa... falsas pistas. Anos e anos, antes de  descobrir o meu caminho verdadeiro. Um fil¢sofo desperdia o seu valor  quando se ocupa com neg¢cios pr ticos.  mesmo um absurdo. Como o  albatroz de ... como  mesmo o nome dle? Tu sabes.  Philip ficou intrigado:  - Queres te referir ao Velho Marinheiro?  - Não, não - disse o Sr. Quarles com impacincia -, não, aqule 

385#

 

- Oh! sim. . - Philip tinha compreendido de que se tratava , . --  "Lepote estsemblable auprincedes nues"*. Tu te referes a Baudelaire.  - Baudelaire, est claro! 

- Exili sur le sol au milieu des hu&s,  Ses ailes de g6ant 1emp6chent de marcher" 

- citou Philip, feliz por poder desviar a conversaão, embora Fosse ape-  nas por um momento, dos assuntos pessoais para a literatura.  O velho Quarles estava deliciado.

  - Exatamente - gritou com ar de triunfo. - Acontece o mesmo  com os fil¢sofos. Suas asas os impedem de ... aaa... caminhar. Duran-  te trinta anos tentei caminhar na pol¡tica, no comrcio. Não percebi que  o meu verdadeiro lugar era no ar e não s"bre a terra. No ar! - repetiu  le, erguendo o brao. - Eu tinha asas! - Agitou a mão num trmulo  r pido. - Tinha asas e não sabia! - A voz se lhe

fizera mais forte, os  olhos mais brilhantes, o rosto mais vermelho e mais lustroso. T"da a sua  pessoa exprimia uma tal excitaão, uma tal exaltaão que Philip ficou

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  sriamente inquieto.  - Não seria bom que repousasses um pouco? - prop"s, cheio de  ansiedade.  O Sr. Quarles não tomou conhecimento da interrupão.  - Asas, asas! - exclamou. - Eu tinha asas e, se tivesse percebido  isso na minha mocidade, a que altitudes não me teria podido elevar! Mas  tentei caminhar. Na lama. Durante trinta anos. S¢ depois de trinta  anos ... aaa... foi que descobri que tinha nascido para voar. E agora  devo renunciar, quando mal comecei. - Suspirou e, encostando-se nos  travesseiros, lanou as palavras para o ar, quase verticalmente. - Minha  obra inacabada. Meus sonhos ... aaa... não realizados. O destino foi  duro para comigo.  - Mas tu ter s o tempo de que precisas para acabar a tua obra.  - Não, não - insistiu o Sr. Quarles, sacudindo a cabea. Òle queria  ser um dos m rtires da sorte, queria poder apontar para si mesmo, dizen-  do: "Eis ai quem, não f"sse a malignidade da providncia, poderia ter si-  do Arist¢teles". A crueldade do destino justificava tudo - seu fracasso  no a£car, na pol¡tica, nos trabalhos da granja, a frieza com que fora aco-  lhido o seu primeiro livro; o atraso indefinido no aparecimento do  segundo; ela justificava mesmo, de alguma maneira não f...cilmente  explic vel, o fato de le ter deixado Gladys gr vida. Ser um sedutor de  criadas, de datil¢grafas, de raparigas do campo fazia parte de seu destino 

"O poeta  semelhante ao pr¡ncoe das nuvens negras, "(N. do E)

  "Exilado s"bre a terra no meio das vaias, suas asas de gigante o impedem de andar. "(N.  do E) 

386 

infeliz. E agora que, para coroar todo o edificio de seu infort£nio, le esta-  va a ponto de motrer (prematura mas est¢icamente, como o mais nobre# 

de todos os romanos), como aqule assunto de virgindades perdidas e de  bebs ameaadores parecia trivial e miser...velmente insignificante! E co-  mo todos os clamores pareciam inoportunos diante daquele filos¢fico lei-  to de morte! Mas s¢ podia desdenh -los sob a condião de que aqule ros-  se verdadeiramente o seu leito de agonia, e de que a crueldade do destino  fâsse coisa universalmente admitida. Um fil¢sofo m rtir em artigo de  morte estaria justificado se recusasse deixar-se importunar por Gladys e  pelo seu beb. Eis porque (embora a razão f"sse s¢mente sentida e não  formulada) o Sr. Quaries repudiava com tanto vigor, e mesmo com  despeito, as garantias de longa vida que seu filho lhe dava ... guisa de  consolaão. Eis porque le acusava a providncia maligna e ampliava,

  com mais fatuidade ainda que de costume, os talentos que a providncia  o impedira de usar.  - Não, não, meu caro rapaz - repetiu le. - Nunca hei de acabar.  E essa  uma das razõ-s pelas quais ... aaa... eu te desejava falar.  Philip o encarou com certa apreensão. Que viria agora? perguntou le  interiormente. Houve um instante de silncio.  - Não devemos desaparecer sem ... aaa ... deixar nenhum trao  disse o Sr. Quarles, com uma voz que o recrudescimento da autocomise-  raão tornava rouca. - A extinão total  dificil de encarar friamente. -  Diante dos olhos de seu esp¡rito se estendia o v cuo abismal e sem luz. A

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  morte ... Ela seria talvez o fim de seus tormentos; mas nem por isso era  menos apavorante. - Tu compreendes ste sentimento? - perguntou  le. 

-- Perfeitamente bem, perfeitamente bem. Mas no teu caso, papai ...  O Sr. Quarles, que se assoara novamente, ergueu a mão num protesto.  - Não, não. - Estava convencido de que ia morrer; era in£til que  quem quer que f¢sse tentasse dissuadi-lo da idia. - Mas tu compreendes  sse sentimento, eis o que importa. Eu me poderia ir ... aaa... em paz,  com a conscincia de que tu não permitir s que se apague completamente  t"da lembrana de mim. Meu caro rapaz, tu ser s o meu executor  liter rio. H fragmentos de meus escritos ...  - Teu livro s"bre a democracia? - perguntou Philip, que se via j

encarregado de terminar a obra mais importante que jamais se concebera  sâbre a matria. A resposta do pai aliviou-o dum pso enorme.  - Não, não  sse - respondeu vivamente o Sr. Quarles. - Dsse fi-  vro s¢ existe material bruto. E, em grande parte, não est lanado no  papel. Apenas no meu esp¡rito. E mesmo - prosseguiu le -, eu ia  precisamente ... aaa ... dizer-te que desejo que t"das as minhas notas  para sse grande livro sejam destru¡das. Sem que ningum as olhe. São  meros apontamentos sem forma. E sem nenhuma significaão, senão para  mim mesmo. - O Sr. Quarles não desejava de modo nenhum que Fosse 

387

descoberta p¢sturriamente, e comentada, a vacuidade dos seus cartões que  se achavam no arquivo. - Tudo isso deve ... aaa. . . ser destruido,  compreendes? - Philip não protestou. - O que eu queria conflar-te,  meu caro rapaz - continuou o Sr. Quarles -,  uma coleão de frag-  mentos mais ¡ntimos. Reflexões sâbre a vida, narraões ... aaa ... de  experincias pessoais ... Coisas dsse gnero ...  Philip fez um gesto afirmativo:  - Sim, compreendo.  - H muito tempo que me pus a escrev-las. Mem¢rias e Reflexões

  de Cinqenta Anos - aqui est um bom t¡tulo. H muitas coisas ...  aaa ... nos meus cadernos de notas. E, nestes £ltimos dias, eu registrei  meus pensamentos aqui. - Bateu no ditaforie. -- Quando se est doente,  tu sabes, pensa-se muitissimo. Suspirou. - Sriamente.  - Est claro.  - Se te agrada escutar. . . Apontou para o ditafone.  Philip flez que sim com a cabea. O Sr. Quarles preparou o aparelho.  - Isto te dar uma idia... aaa... de que se trata. Pensamentos e  recordaões. Olha. . . - Empurrou o aparelho s"bre a mesa e, ao fazer  isto, atirou ao chão uma f"lha de papel. Esta ficou ca¡da sobre o tapte;  era um papel quadriculado: palavras cruzadas. --  aqui que se escu-  ta. . .  Philip escutou. Ao cabo de alguns roncos e alguns chiados, a par¢dia

  guinholesca da voz de seu pai disse: "A chave do problema dos sexos: a  paixão  sagrada, uma manifestaão ... aaa... da divindade". Depois,  sem parada ou transião, mas num tom ligeiramente diferente: "O que h

de pior na pol¡tica  ... aaa. . . a frivolidade dos pol¡ticos. Achando-me  uma noite num jantar com Asquith, não sei onde, aproveitei a ocasião pa-  ra convenc-lo da necessidade de suprimir a pena capital.  uma das  questões ... aaa ... mais srias da vida moderna. Mas le se limitou a  propor, simplesmente, uma partida de bridge. Unidade de medida, sete  letras: Verchok. . . As pessoas delicadas não vivem em chiqueiros de  porcos; nem podem permanecer por muito tempo ... aaa... na pol¡tica

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  ou no comrcio. H esp¡ritos esclarecidos e esp¡ritos tacanhos por nature-  za. Jamais compartilhei a alta opinião ... aaa ... do populacho s"bre  Lloyd George. Todo homem nasce com um direito natural ... felicidade;  mas que repressão feroz quando cada um tenta reclamar o seu direito!  Cegonha do Brasil, seis letras: jabiru. A verdadeira grandeza   inversamente proporcional ao simples sucesso imediato. Ah, s tu ... "O  ronco rascante rez-se ouvir de n"vo.  - Sim, isso me d uma idia do que se trata - disse Philip. erguendo  os olhos. - Como  que se faz parar ste neg¢cio? Ah, j sei. - Fz pa-  rar o aparelho.  - Vem-me tantos ... aaa. . 

388 

pensamentos quando estou aqui deita- 

do. . . - disse o Sr. Quarles, alvejando o ar com as palavras, como se  as dirigisse contra aviões. - Que riqueza! Eu jamais conseguiria  registr -los todos se não fosse a m quina.  admir vel. Realmente# 

admir vel!

  389# 

CAPiTULO XXXIII 

Elinor tivera tempo de telegrafar de Euston. · sua chegada achou o  carro a esper -la na estaão.  - Como vai le? - perguntou ao chofer. Mas Paxton s¢ respondeu  coisas vagas; não sabia ao certo. intimamente, achava que tudo aquilo  era uma tempestade em copo de gua, como fazem sempre os ricos,

  sobretudo quando se trata dos filhos.  Subiram para Gattenden, e a paisagem dos Chilterns sob a luz madura  da tardinha era duma beleza tão serena que Elinor comeou a se sentir  menos ansiosa e chegou quase a lamentar não ter ficado para o £ltimo  trem da noite. Nesse caso teria podido ver Webley. Mas não havia ela  chegado ... conclusão de que estava contente por não v-lo? Pode-se sentir  ao mesmo tempo satisfaão e contrariedade. Passando pela entrada norte  do parque, Elinor vislumbrou atravs das grades a cadeira de rodas de  Lorde Gattenden, no outro lado do portão. O burro tinha parado e estava  roendo a relva da beira do caminho; as rdeas pendiam-lhe frouxas, e o  marqus estava tão fundamente absorvido num grosso in-quarto* de  marroquim que não podia pensar em conduzir. O auto continuou a cor-  rer; mas aquela visão r pida do velho sentado atr s do burro cinzento -

  bem como Elinor o tinha visto tantas vzes sentado, a ler; aquela breve  revelaão da vida vivida regularmente, invari...velmente, sempre da mes-  ma velha maneira---isso foi tão tranqilizador como o calmo esplendor  das faias e dos fetos, como os primeiros planos verde e ouro e as distn-  cias c"r de violeta.  E eis que por fim aparece o hafi! A velha casa parecia dormir sob osol  poente, como um gato; podia-se imaginar que se lhe ouvia at o ronrom.  E o relvado era como veludo verde do mais precioso, e, no ar sem um  spro de brisa, a enorme wellingt¢nia tinha t"da a gravidade digna dum

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  velho gentleman que se senta para meditar, depois duma refeião  fart¡ssima. Era imposs¡vel que ali se passasse alguma coisa muito grave.  Elinor saltou do autom¢vel e correu escadaria acima, direito ao quarto do  filho. Phil estava deitado, completamente im¢vel, olhos fechados. A Srta.  Fulkes, que se achava sentada ao lado dle, se voltou ... entrada da mãe do  pequeno, ergueu-se e caminhou para ela. Um olhar lanado ao rosto do fi-  lho bastou para convencer Elinor de que a calma azul e dourada da paisa- 

* Livro noformaio daqueles impressos emf"lhas dobradas duas vzes. (N. do E) 

390 

gem, a casa que dormitava, o marqus e o seu burro ti...ham sido conso-  laões mentirosas. "Tudo vai bem", pareciam les dizer, "tudo vai indo  como de costume." Mas a Srta. Fulkes estava p lida e tinha um ar de  fadiga; era como se tivesse visto um fantasma.  - Que  que h ? - perguntou Elinor num cicio, ao passo que t"da a  sua ansiedade lhe voltava bruscamente. E, antes que a Srta. Fulkes tivesse  tempo de responder: -- Òle est dormindo? - acrescentou. Se Phil esta-  va dormindo, refletiu depois, era bom sinal; o menino dava mesmo a

impressão de que dormia.  Mas a Srta. Fulkes sacudiu a cabea. O gesto foi suprfluo. Porque,  mal a pergunta tinha sido formulada, o pequeno fez um brusco movi-  mento espasm¢dico sob as cobertas. Seu rosto se contraiu de dor. Phil  soltou um pequeno gemido lamentoso.  - D¢i-lhe muito, muito a cabea - disse a Srta. Fulkes, cujos olhos  tinham uma expressão de terror e de sofrimento.  - V repousar - disse Elinor.  A Srta. Fulkes hesitou, sacudiu a cabea:

  - Eu quisera ser £til ...  Elinor insistiu:  - Ser de muito maior utilidade depois que tiver descansado ...  Observou que os l bios da Srta. Fulkes tremiam, que seus olhos se tor-  navam de s£bito brilhantes de l grimas.  - V . . . - disse Elinor, apertando consoladoramente o brao da  m"a.  A Srta. Fulkes obedeceu com uma vivacidade s£bita. Tinha mdo de  desatar em soluos antes de chegar ao seu quarto.  Elinor sentou-se ao p do leito. Tomou a mão pequenina que repousava  s¢bre a coberta dobrada, passou os dedos pelos cabelos p lidos do meni-  no, num movimento suave e acariciador.

  - Nana - sussurrou ela, enquanto seus dedos o acariciavam -, na-  na, nana. . .  Mas a criana se agitou de n¢vo, inquieta; e a cada instante seu rosto  se retorcia numa dor repentina; sacudia a cabea, como que tentando  desembaraar-se da coisa que lhe fazia mal; soltava o seu pequeno gemi~  do de queixa. E Elinor, inclinando-se sâbre o filho, teve a sensaão de que  se lhe partia o coraão dentro do peito, de que uma mão lhe apertava a  garganta, estrangulando-a.  - Meu querido. . . - disse com voz suplicante, implorando-lhe que  não sofresse. - Meu querido ...

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  E apertou-lhe com mais f"ra a mão pequenina, deixou repousar mais  pesadamente a palma da sua mão s"bre a testa ardente do menino, como  para afugentar a dor, ou pelo menos para amparar o corpinho trmulo  contra as suas investidas. E, com t¢da a sua vontade, ela ordenou ... dor  que cessasse, que deixasse o corpo de Phil - que sa¡sse pelos seus dedos  391# 

e passasse para o corpo dela. Mas o pequeno continuava a agitar-se no  leito, voltando a cabea dum lado para outro, ora dobrando as pernas,  ora estirando-as com um vivo pontap espasm¢dico sob as cobertas. E a  dor voltava sempre, lancinante; e o rosto se crispava numa careta de ago-  nia, os l bios entreabertos davam passagem ao gemido fraco e queixoso,  que se renovava sem cessar. Elinor acariciava a testa do filho, murmu-  rava palavras de ternura. E isso era tudo quanto ela podia fazer. O senti-  mento de sua impotncia a sufocava. Sentia as mãos invisiveis apertarem-  lhe com mais f"ra a garganta e o coraão.  - Como o achas? - perguntou a Sra. Bidlake quando a filha tomou  a descer.  Elinor não respondeu nada, mas voltou o r¢sto. Aquela interrogaão  lhe tinha feito brotar l grimas nos olhos. A Sra. Bidlake a tomou nos

  braos e lhe beijou a face. Elinor escondeu o rosto contra o ombro da  mae.  "Deves ser forte", repetia ela para si mesma. "Não deves chorar, não  te deves abater; s forte. Por le - para que lhe possas ser £til." A mãe  abraou-a com mais fora. Aqule contato f¡sico a reconfortou, deu-lhe a  fora que ela pedira em sua oraão. Fz um esf¢ro de vontade e, retendo  profundamente o respiro, recalcou os soluos na garganta. Ergueu os  olhos para a Sra. Bidlake e sorriu-lhe com reconhecimento. Seus l bios  tremiam ainda um pouco; mas a vontade tinha vencido.  - E uma tolice minha - disse ela para se desculpar. - Não pude  evitar ...  tão horr¡vel v-lo sofrer! E ficar ali, impotente.  pavoroso.  Mesmo que se saiba que no fim de ontas tudo acabar bem.  A Sra. Bidlake suspirou:

  - Sim,  horr¡vel - disse ela, como um eco -, horr¡vel. - E fechou  os olhos numa perplexidade meditativa. Houve um silncio. - A  prop¢sito - ajuntou, abrindo os olhos para os dirigir s"bre a filha -,  creio que deverias ter cuidado com a Srta. Fulkes. Não sei se a influncia  dela ser sempre inteiramente boa...  - A influncia da Srta. Fulkes? - tornou Elinor, abrindo os olhos  espantados. - Mas ela  a mais bondosa, a mais conscienciosa das ...  - Oh! Não  isso, não  isso! - apressou-se a interromp-la a Sra.  Bidlake. - Eu queria referir-me ... influncia art¡stica. Anteontem, quan-  do subi para ver Phil, encontrei-a mostrando ao pequeno figuras terrivel-  mente vulgares de um cão.  - Bonzo? - arriscou Elinor.  A mãe Rez um sinal afirmativo com a cabea:

  - Sim, Bonzo. - Pronunciou a palavra com certa repugnncia. -  Se le quer ver imagens de animais, h reproduões tão perfeitas de  miniaturas persas no British Museum ...  tão f cil corromper o g"sto  duma criana... Mas Elinor! Minha querida!  S£bitamente, irresistivelmente, Elinor se pusera a rir. A rir e a chorar 

392 

ao mesmo tempo, de modo incontrol vel. A dor s¢ ela conseguira domi-  nar. Mas a dor combinada com Bonzo era demais. Alguma coisa tinha

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  cedido no mais ¡ntimo recesso de seu ser, e ela se surpreendeu a soluar  numa risada violenta, dolorosa e histrica.# 

A Sra. Bidlake batia~lhe no ombro sem conseguir acalm -la:  - Minha querida! - repetia sem cessar. - Elinor!  Acordado dum sono agitado e cheio de pesadelos, John Bidlake gritou  furiosamente do fundo da biblioteca.  - Parem com sse cacarejar! - ordenou a sua voz ao mesmo tempo  lamurienta e cheia de c¢lera. - Pelo amor de Deus!  Mas Elinor não podia conter-se.  - Gritando como papagaios! - continuou John Bidlake a resmun-  gar para si mesmo. - Alguma brincadeira idiota... Quando a gente não  est bem ... 

- Ora, pelo amor de Deus! - disse Spandrell brutalmente. - Acal-  ma-te!  filidge apertou o leno contra a bâca; tinha mdo de vomitar.  - Acho que vou deitar-me um momento - murmurou le.  Mas quando tentou caminhar sentiu as pernas como mortas sob o pso  do seu corpo. Dir-se-ia um paral¡tico que se arrastava at o sof .  - O que precisas  um gole de lcool - disse Spandreil. Atravessou

  a pea. Havia uma garrafa de brandy s"bre o bufete; foi buscar copos na  cozinha. Despejou dois dedos da bebida. - Toma, bebe isto. - filidge  apanhou o copo e bebeu em goles pequenos. - Quem visse diria que  est vamos atravessando a Mancha - continuou Spandrell numa zomba-  ria furiosa, bebendo tambm o seu brandy. - Estudo em verde e gengibre  - eis como Whistler te teria descrito neste momento. Verde-maã.  Verde-musgo.  Illidge olhou para o outro um instante, depois virou o rosto, incapaz de  suportar o olhar calmo daqueles olhos cinzentos e cheios de desprzo.  Nunca odiara tanto a Spandrell como naquele momento.  - Para não dizer verde-rã, verde-limo, verde-espuma...  - Oh! Cala a b"ca! - gritou Illidge, com uma voz que tinha reco-

  brado um pouco de sua sonoridade e que j quase não vacilava. A zomba-  ria de Spandrell lhe tinha retemperado os nervos. O ¢dio, como o brandy,   um estimulante. Òle absorveu ainda um gole ardente. Houve um siln-  cio. 

- Quando te -sentires em condiões - disse Spandrell, baixando o  copo vazio -, podes vir ajudar-me a p"r as coisas em ordem. - Levan-  tou-se e desapareceu do outro lado do biombo.  O corpo de Everard Webley jazia no lugar mesmo em que tombara, de 

393# 

lado, os braos estendidos por terra, em cruz. O leno embebido em  clorof¢rmio lhe cobria ainda o rosto. Spandrell abaixou-se e puxou-o  bruscamente. A tmpora que tinha recebido o golpe estava em contato  corn o chão; visto de cima, o rosto parecia não ter nenhum ferimento.  As mãos nos bolsos, Spandrell ficou a contemplar o cad ver.  - H cinco minutos - disse le de si para si, formulando seus pensa-  mentos em palavras a fim de ter uma conscincia mais completa de sua  significaão -, h cinco minutos sse corpo estava vivo, tinha uma alma.

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  Vivo - repetiu; e, balanando-se em equil¡brio inst vel s"bre uma perna,  com o outro p tocou a face morta, empurrou para a frente a orelha e dei-  xou-a voltar de nâvo ... sua posião. - Uma alma. - E, por um instante,  deixou repousar uma parte de seu pso s"bre o que tinha sido o rosto de  Everard Webley. Levantou o p; a marca permaneceu, de um cinzento de  p¢, s"bre a pele branca. - Espezinhar. . . Espezinhar o rosto dum mor-  to. . . - Por que tinha feito aquilo? - Espezinhar. . . - Ergueu de  n"vo o p e apoiou o salto contra a ¢rbita do âlho do morto, docemente,  a t¡tulo de ensaio, como se estivesse fazendo experincias em matria de  inj£rias. "Bem como se faz com as uvas", pensou le. "Esmagando uvas  para fazer vinho." Estava em seu poder espezinhar aquela coisa e reduzi-  Ia a uma papa... Mas o que j fizera bastava. Simb¢licamente le havia  assim extra¡do de seu assass¡nio o horror essencial; sse horror flu¡a de  sob os seus ps, que tinham espezinhado ... O horror essencial? Mas a  coisa era mais est£pida e repugnante do que horr¡vel. Empurrando com a  ponta da botina o queixo do cad ver, Spandrell fez a cabea rolar at que  o rosto ficasse voltado para o teto, a bâca aberta e os olhos semicerrados.  Por cima e por tr s do "lho esquerdo havia uma enorme contusão verme-  lha. Viam-se f iltes de sangue na face esquerda, j secos, e, no lugar onde  a testa havia descansado no soalho, havia uma pequena poa - que nem  chegava bem a ser uma poa -, uma mancha.  - Uma quantidade de sangue incrivelmente pequena - disse Span-  drell em voz alta.

  Ao som dessa voz tão calma Illidge teve um sobressalto violento.  Spandrell retirou o p que sustinha o rosto morto. Òste tornou a cair  para o lado com um leve baque.  - Isto justifica completamente a maa do Bispo Odo -- continuou  Maurice num tom desapaixonado. O fato de estar le a recordar, naquele  pr¢prio momento, os pinotes c"micos do consciencioso homem de igreja,  tais como são representados na tapearia de Bayeux - tambm fazia  parte do horror essencial. A frivolidade do esp¡rito humano!  Inconseqncia err tica! O mal podia bem ter uma certa dignidade. Mas  a toleima...  filidge ouviu-o caminhar para a cozinha. Veio de l o ru¡do, que ia  ficando pouco a pouco mais agudo, da gua que corria para dentro dum 

394 I

 balde. A torneira foi fechada; depois se Ouviu um rumor de passos e o bal

-  de foi p"sto no chão com um tinido met lico.  - Felizmente - prosseguiu Spandrell, num coment rio ... sua £ltima# 

observaão. - Doutra maneira eu não saberia que fazer com t"da esta

  porcaria. 1  Illidge escutava, com atenão tensa e horrorizada, os sons que lhe  vinham do outro lado do biombo. Um ru¡do surdo, macio, carnoso: seria  um brao que se erguera e tombara de n"vo? O arrastar sibilante dum  objeto mole e pesado s"bre o soalho. Depois o chape da gua, o ru¡do  familiar da esc"va que esfrega. E ...queles sons, bem mais profundamente  significativos do que t"das as palavras, por mais brutais, por mais fria-  mente c¡nicas, que Spandrell pudesse ter pronunciado - Illidge sentia  uma recrudescncia daquela fraqueza que lhe tinha feito bater o coraão,  durante os primeiros minutos, com a sensaão duma queda s£bita, quan-

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  do o morto rora estendido ali, a seus ps, crispando-se ainda em movi-  mentos convulsivos. Recordou, reviveu aqules instantes de espera e de  antecipaão ofegante e cheia de n usea que tinham precedido o horr¡vel  acontecimento. O ru¡do do auto que descia a rua em marcha ... r; o rascar  dos sapatos cobertos de areia em cima do degrau da porta, depois a bati-  da; a seguir, um longo, longo silncio feito de pulsaões de coraão, de  contraões viscerais e de pressentimentos vision rios, de pensamentos  justificadores s"bre a revoluão e o futuro, de ¢dio justificador pela  opressão e pela vilania dos ricos. E, ao mesmo tempo, recordaões  rid¡culas, incongruentes lhe vinham ao esp¡rito enquanto le ficava ali,  agachado atr s do biombo, recordaões daquelas brincadeiras infantis de  esconde-esconde, nos dias de festa escolar, entre os tojos e os zimbros do  terreno baldio. "Um, dois, trs. . . "; os que procuravam cobriam o rosto  com as mãos e comeavam a contar a sua centena em voz alta; os que se  deviam esconder dispersavam-se. Atufavam-se nas moitas espinhosas, ou  se deitavam no meio dos fetos. Depois vinham os gritos de "noventa e no-  ve, cem - tempo!", e os procuradores se precipitavam para pegar os  outros. E ficava-se tão intensa, tão dolorosamente excitado, agachado ali  no esconderijo, arriscando espiadelas, escutanto, para poder aproveitar  uma oportunidade de voltar ao campo a t"da a velocidade - a -ente  o  ficava tão emocionado que sentia um desejo quase irrepr¡m¡vel de "f*azer  uma coisa", se bem que j se tivesse feito essa "coisa" atr s dos zimbros

,  havia apenas cinco minutos. Que recordaões absurdas! E, por serem  absurdas, horr¡veis! Pela centsima vez Illidge apalpou o b"lso para certi-  ficar-se de que o frasco de clorof¢rmio estava sempre ali e bem tapado.  A segunda batida na porta soou de maneira alarmante e ao mesmo  tempo o assobio e o grito divertido (ouvia-se pelo tom da voz que o ho-  mem estava sorrindo), o grito de "Amigo!" Atr s de seu biombo Illidge  estremecera. "Amigo!" E, relembrando agora sse detalhe, estremeceu de 

395# 

nâvo, mais violentamente, com tâda a vergonha, todo o horror e tâda a  humilhaão que le não tivera então tempo de sentir. Não tivera tempo;  porque, antes que seu esp¡rito pudesse ter conscincia de t"das as reper-  cussões complexas que se achavam impl¡citas naquele grito sorridente, a  porta gemera nos gonzos, ouvira-se um rumor de passos sâbre o soalho e  Webley gritara o nome de Elinor. (Illidge se surpreendeu a indagar de si  mesmo se Everard não estaria apaixonado por ela.) "Elinor!" Depois vie-  ra um silncio. Webley tinha visto o bilhete pregado com alfinte: ao  biombo. Illidge ouvira-lhe o ru¡do da respiraão, a 50 cent¡metros dle, do  outro lado do biombo. Depois houve o sussurro dum movimento r pido '  o como duma exclamaão, e aqule choque brusco e sco, semelhante  ao som duma palmada, porm mais surdo, mais morto e ao mesmo tempo

  mais violento. A isso se seguira um silncio que durara uma fraão de  segundo; depois, o ru¡do duma queda - não um som £nico, mas uma  srie de sons que se sucederam durante um espao de tempo apreci vel; o  baque ¢sseo dos joelhos, o rascar dos sapatos deslizando pelo soalho poli-  do, o "bum!" surdo do corpo e dos braos, e o choque duro e sco da  cabea contra as t buas do soalho.  - Depressa! - gritara a voz de Spandrell, e Illidge saltara para fora  de seu esconderijo. - Clorof¢rmio!  Passivamente obediente, Illidge embebera o leno em clorof¢rmio e o

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  estendera sâbre o rosto que se contra¡a ainda ... Estremeceu de n"vo; be-  beu outra vez um gole de brandy.  O ru¡do da escâva foi seguido pelo "plaf " de um pano molhado.  - Pronto - disse Spandreil, surdindo de tr s do biombo. Enxugava  as mãos numa toalha. - E como vai o doente? - acrescentou, paro-  diando a maneira do mdico ... cabeceira dum cliente, e sorrindo com ar  ir"nico.  filidge voltou o rosto. O ¢dio irradiava dle, excluindo naquele momen-  to tâda e qualquer outra emoão.  - Estou muito bem - replicou lacânicamente.  - Folgando enquanto eu fao o servio mais desagrad vel, hein? -  Spandrell atirou a toalha em cima duma cadeira e com.eou a descer as  mangas da camisa.  Em duas horas os m£sculos do coraão se contraem e relaxam, se con-  traem e relaxam de nvo, 8 O00 vzes apenas. A terra percorre menos de  200 O00 quil"metros em sua ¢rbita. E as tunas, tm tempo de invadir  s¢rnente uns 40 hectares de territ¢rio australiano. Duas horas são quase  nada. O tempo para escutar a Nona Sinfonia e dois dos quartetos p¢stu-  mos, para voar de Londres a Paris, para fazer passar um jantar do  est"mago para o intestino delgado, para ler ~beth, para morrer de  picada de cobra ou para ganhar 1 xelim e 8 pence como mulher de  servio. Nada mais. Mas a Illidge pareceram infinitas aquelas duas horas 

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  durante as quais ficou ali, sentado, esperando que escurecesse - o  cad ver estendido atr s do biombo.  - s idiota? - perguntou Spandreli, quando filidge sugeriu que  sa¡ssem duma vez e deixassem o cad ver ali mesmo. - Ou est s especial-  mente ansioso por morrer na fl rca? - Aquela zombaria amarga, aquela# 

fria ironia divertida eram enlouquecedoras para filidge. - O corpo seria  descoberto hoje de noite, quando Philip voltasse.  - Mas Quarles não tem a chave.

  - Amanhã, então, logo que le trouxesse um serralheiro. E trs horas  mais tarde, quando Efinor tivesse explicado o que havia feito das chaves,  a pol¡cia viria bater ... minha porta. E eu te afiano que depois disso les  não levariam muito tempo a bater tambm na tua. . . - Sorriu para  filidge, que afastou os olhos. - Não - continuou Spandre11 -,  preci-  so tirar Webley dali. E, com o carro dle ... porta, isso ser uma brinca-  deira de criana, se esperarmos que a noite chegue.  - Mas não anoitecer antes de duas horas. - O ¢dio tornava aguda  e cheia de queixume a voz de Illidge.  - Sim, e depois?  -  que. . . - comeou filidge. C alou-se. Compreendeu que, se qui-  sesse falar a verdade, teria de confessar que não lhe agradava esperar ali  aquelas duas horas porque tinha mdo. - Est bem. Esperemos.

  Spandrell apanhou a cigarreira de prata, abriu-a e cheirou.  - O cheiro  bom - disse le. - Toma um. - Empurrou a caixa  por cima da mesa, na direão de Illidge. - E h montes e montes de  livros. E o Times. E o New Statesman. E o £ltimo n£mero do Vogue.  Uma sala de espera de dentista, sem tirar nem p"r. Poder¡amos at fazer  uma taa de ch para n¢s ...  O tempo de espera comeou. As batidas do coraão se sucediam. A ca-  da segundo a terra viajava 30 quil"metros e as tunas recobriam uns 60  centiares novos de terra australiana. Atr s do biombo jazia o cad ver.  Bilhões e bilhões de indiv¡duos diminutos e diversos se haviam reunido, e

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  o produto de sua dependncia m£tua, de sua m£tua hostilidade tinha sido  uma vida humana. o conjunto daquela col"nia, aquela colmeia viva, ha-  via sido um homem. A colmeia estava morta. Mas, no resto de calor que  persistia, muitos dos indiv¡duos componentes conservavam ainda um res-  to de vida; em breve pereceriam tambm. E no entanto, vindas do ar, hor-  das invis¡veis de sapr¢fitos tinham j comeado a sua invasão sem  resistncia. Iam viver entre as clulas mortas, iam crescer e multiplicar-se  prodigiosamente, e com o seu crescimento e a sua procriaão t"da a  estrutura qu¡mica do corpo seria desfeita, todos os emaranhamentos e  t"das as complexidades de sua matria se resolveriam em seus elementos,  at que, quando a tarefa daqueles estivesse terminada, algumas libras de  carvão, alguns litros de gua, um bocado de cal, um pouco de f¢sforo e de 

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enxâfre, uma pitada de ferro e sil¡cio, um punhado de sais diversos -  tâdas estas coisas dispersadas e recombinadas no mundo circurivizinho  - seria tudo quanto havia de restar da ambião de comando de Everard  Webley, de seu amor por Elinor, de suas idias pol¡ticas, de suas recor-  daões de infncia, de sua esgrima, de sua equitaão, daquela voz suave  e forte, daquele sorriso que se iluminava de s£bito, de sua admiraão por

  Mantegna, de seu horror ao u¡sque, de suas raivas propositadamente terr¡-  ficantes, de seu h bito de acariciar o queixo, de sua f em Deus, de sua  incapacidade para assobiar corretamente uma melodia, de suas determi-  naões inabal veis e de seu conhecimento do russo.  Illidge folheava as p ginas de an£ncios do Vogue. Uma jovem dama  vestida com um casaco de pele que custava 200 guinus subia para um  autom¢vel; na p gina fronteira, uma outra mulher jovem, vestida £nica-  mente com uma toalha, estava saindo dum banho impregnado dos sais  para emagrecer do Dr. Verbruggen. Seguia-se uma natureza morta de  frascos de perfume que continham Songe: Ngre, e a £ltima criaão do  fabricante, o Relent d~4mour. Os nomes de Worth, de Lanvin, de Patou  se estendiam atravs de outras trs p ginas. Depois vinha o retrato de  uma senhora m"a metida numa cinta de borracha, dessas que fazem

  emagrecer; mirava-se ela num espelho. Um grupo de m"as se achava em  est tica contemplaão m£tua diante de seus trajes de dormir, vindos do  departamento de lingerie de Crabb and Lushington. Do outro lado, uma  outra jovem repousava molemente s"bre um divã do Laborat¢rio de Bele-  za de Madame Adrena, enquanto as mãos duma massagista lhe acari-  ciavam a ameaa de papada. Seguia-se uma natureza morta de rolos e de  estr¡geis de borracha destinados a fazer desaparecer, pela massagem e pe-  la fricão, o excesso de gordura das jovens senhoras, e uma outra natu-  reza morta de firascos e de potes que continham cremes destinados a  proteger-lhes o rosto contra as devastaões dos anos e das intemperies.  -- Revoltante! - dizia filidge de si para si enquanto voltava as p gi-  nas. -  um crime! - E alimentou a sua indignaão, cultivou-a. Ficar

  encolerizado era uma distraão, e ao mesmo tempo era uma justificaão.  Enraivecido diante da insensibilidade e da frivolidade plutocr ticas, le  podia quase esquece-se e quase desculpar-se, a seus pr¢prios olhos, da  coisa horr¡vel que acabara de acontecer. O corpo de Webley jazia ali, do  outro lado do biombo. Mas havia mulheres que pagavam 200 guinus por  um casaco de peles. Duzentos guinus! Seu tio Joseph se julgaria feliz se  pudesse ganhar isso em dezoito meses de trabalho com a sua oficina de  sapateiro. E elas compravam perfumes a 25 xelins o frasco de um oitavo  de litro! Illidge relembrou o tempo em que seu irmão mais m"o, Tom, te~  ve uma pneumonia, depois dum ataque de gripe. Pavoroso! E, quando o

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  rapaz entrou em convalescena, o mdico disse qpe seria preciso mand -  lo passar algumas semanas ... beira-mar. Òles não tinham recursos para is-  so. Os pulmões de Tom, depois da doena, nunca mais tornaram a ficar 

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suficientemente fortes. Agora le trabalhava numa f brica de autom¢veis  (fazendo carros em que se refestelariam aquelas cadelas com casacos de  200 guinus!); Illidge tinha fornecido o dinheiro que permitira a Tom  freqentar uma escola tcnica - dinheiro, pensou le, reavivando a sua# 

c¢lera, para que o rapaz pudesse obter o privilgio de ficar de p oito ho-  ras por dia diante duma m quina de fresar! O ar de Manchester não fazia  nenhum bem a Tom. O pobre-diabo não era como aquelas mulheres gor-  das que tinham graxa para ser tirada ... custa de rolos ... Glutonas por-  cas 1 Por que não podiam elas, t"das aquelas gozadoras, fazer um pouco  de trabalho £til, em lugar de viverem a passar o r61o pelas coxas e pelo  ventre? Se trabalhassem haviam de perder as graxas. Se trabalhassem co-  mo a mãe dle! Ela não tinha gordura para eliminar por meio de massa~  gens com rolos, ou para sair com o suor, sob uma cinta de borracha, ou  para cozinhar em banhos quentes com sais.

  Illigde pensou com indignaão nos enfadonhos e intermin veis traba-  lhos domsticos. Dia ap¢s dia, ano ap¢s ano. Fazer as camas. para que  elas rossem desfeitas. Cozinhar para encher os pandulhos eternamente  vazios. Lavar os pratos que a refeião pr¢xima havia de sujar novamente.  Esfregar o soalho, para que depois as botinas enlameadas o sujassem.  Cerzir e remendar, para que se pudessem fazer novos buracos. Era um  trabalho como o de S¡sifo e das Danaides, sem esperana, intermin vel -  ou pelo menos seria intermin vel (exceto no caso da morte de sua mãe) se  le não pudesse mandar-lhe aquelas 2 libras semanais que tirava do orde-  nado. Agora a velha podia pelo menos pagar uma rapariga para ajud -la  a fazer os trabalhos mais pesados. Mas assim mesmo ela ainda fazia mais  do que o suficiente para tornar os cintos de borracha desnecess rios. Que  vida! E, no mundo dos casacos de peles e do Songe Ngre, as mulheres se

  queixavam de aborrecimento e fadiga, tinham de recolher-se a casas de  sa£de para fazer curas de repouso. Ah! se essas mulheres pudessem levar  por um instante que fosse a vida dela! E talvez mesmo qualquer dia  seriam obrigadas a isso (assim esperava le), mesmo na Inglaterra. filidge  pensou com satisfaão nos ex-oficiais do czar que conduziam t xis e  trabalhavam em f bricas, nas ex--condssas que tinham restaurantes,  cabars e chapelarias; em todos os ex-ficos da R£ssia, disseminados pelo  mundo, de Harbin e de Xangai at Roma, Londres e Berlim, arruinados,  humilhados, reduzidos ao estado de escravidão das criaturas comuns ...  custa das quais les tinham vivido outrora, parasit...riamente. Aquilo tudo  rora bem feito para les. E o mesmo podia acontecer igualmente na Ingla-  terra. Mas ali les eram fortes - aquela gente que procurava emagrecer  e que usava casacos de peles; eram numerosos, eram um exrcito organi-

  zado. Mas um exrcito que perdera o chefe. Òste tinha recebido o que  merecia. Como a encarnaão da plutocracia e da baixeza - le jazia ali  atr s do biombo. Mas tinha a bâca aberta, e os m£sculos do rosto, antes  que o leno fumegante a tivesse coberto, se haviam contra¡do dum modo 

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  grotesco. Illidge sentiu um calafrio. Olhou de n¢vo, para nles buscar  uma fonte de indignaão justificadora e uma distraão, a figura da dama  do casaco de peles de 200 guintis, a da jovem nua mas castamente cober-  ta com uma toalha, saindo de seu banho emagrecedor. Prostitutas e comi-  lonas! Pertenciam ... classe que os esforos de Webley tendiam a perpe-  tuar ... Òle rora o campeão de tudo quanto era vil e baixo, em suma. Ti-  nha recebido o que merecia, tinha.  - Bom Deus! - exclamou de repente Spandrell, erguendo os olhos  do livro. O sorri da sua voz, rompendo o silncio, Fez Illidge saltar na  cadeira com um terror incontrol vel. - Eu tinha esquecido completa-  mente. Òles ficarn r¡gidos, não ficam? - Olhou para filidge. - Refiro-  me aos cad veres ...  Illidge fez que sim com a cabea. Respirou fundamente e empertigou-se  num esfâro de vontade.  - Então ... E se o pusssemos no carro, heiri? - Ergueu-se de golpe  e desapareceu r...pidamente atr s do biombo. Illidge ouviu o ru¡do do trin-  co da porta. Foi tomado dum terror s£bito e horr¡vel; Spandrell ia esca-  par-se, deixando-o fechado com o cad ver.  - Aonde vais? - gritou, precipitando-se atr s do outro, numa perse-  guião cheia de pnico. - Aonde vais? - A porta estava aberta, Span-  drell tinha desaparecido e o cad ver jazia s"bre o chão, o rosto desco-  berto, a bâca aberta, os olhos fixos, misteriosamente, intencionalmente,  atr s das p lpebras semicerradas, como se espiassem por uma fresta. -  Aonde vais? - A voz de filidge se tinha elevado de tal modo que quase

  se transformara num grito.  - Para que essa agitaão? - perguntou Spandrell, quando o outro  apareceu, p lido, ar desesperado, ao p da porta. Em p ao lado do auto  de Webley, Maurice estava ocupado em retirar o imperme vel  estirad¡ssimo que recobria t"da a parte da carroaria de turismo situada  atr s dos assentos da frente. - Estas coisas são duras de desarmar.  Illidge p¢s as mãos nos bolsos e procurou fingir que sa¡ra naquela  precipitaão por simples curiosidade ociosa.  - Que  que est s fazendo? - perguntou com um tom indiferente.  Spandrell deu um empuxão final: a coberta se afrouxou, caindo ao lon-  go de todo um lado do carro. Spandrell puxou-a para tr s, olhou para  dentro da parte descoberta:  - Vazio, graas aos cus - disse le. E, estendendo a mão, p"s-se a

  tocar oitavas imagin rias, palmo ap¢s palmo, s"bre a carroaria. -  Digamos 4 ps de largura - concluiu - por outros tantos de compri-  mento. Dste, a metade  ocupada pelo assento. Com 2 ps e meio de  espao livre debaixo da coberta. H lugar suficiente para ficar aqui bem  ... vontade um homem enrodilhado. Mas se o corpo j est duro? - Span-  drell olhou inquiridoramente para Illidge. - Um. homem cabe aqui den-  tro, mas uma est tua não.. 

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Illidge fez um sinal afirmativo com a cabea. Estas £ltimas palavras o  tinham feito lembrar-se s£bitamente do coment rio trocista de Lady  Edward s"bre Webley. "Òle quer que os outros o tratem como se le f"sse

  j a sua pr¢pria est tua colossal; duma maneira p¢stuma, se  que me# 

entende. . . "  - Devemos agir depressa - continuou Spandreli. - Antes que ve-  nha a rigidez cadavrica. - Puxou a coberta e, pousando a mão no om-  bro de Illidge, empurrou-o suavemente para dentro da casa. A porta bateu  atr s dles. Ficaram ambos olhando para o corpo.

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  Temos que levantar os joelhos e baixar os braos - disse Span- 

drell.  Abaixou-se e trouxe um dos braos do cad ver contra o corpo. O mem-  bro tornou a voltar, quando Spandrell o largou, a meio caminho de sua  posião primitiva. Parecia um boneco, refletiu Spandreil, um boneco com  articulaões el sticas. Mais grotesco do que terr¡vel; não tr gico, mas  apenas um pouco aborrec¡vel, absurdo mesmo. Ali estava o horror essen-  cial -- tudo (inclusive aquilo) era uma espcie de brincadeira tediosa e de  mau g"sto.  - Temos de achar algum cordel - disse Spandrell -, qualquer coi-  sa que mantenha os membros no lugar.  Era como se fossem latoeiros amadores. Ou dessas pessoas leigas que  fazem reparos na estufa do jardim. Em suma: uma tarefa simplesmente  desagrad vel e rid¡cula.  Esquadrinharam a casa tâda. Não acharam corda nenhuma. Tiveram  de contentar-se com trs ataduras, que Spandrell achou entre a aspirina e  a tintura de iâdo, o cido b¢rico em p¢ e os laxativos vegetais da pequena  farm cia do quarto de banho.  - Mantm os braos no lugar enquanto eu ato - ordenou Spandreli.  Illidge obedeceu. Mas o frio daqueles pulsos mortos contra seus dedos  era horr¡vel; sentiu que lhe voltavam as n useas, p"s-se a tremer.  - Pronto! - disse Spandreil, erguendo-se. -- E agora as pernas.

  Felizmente não demoramos muito ...  "Que os outros o tratem como se le fosse j a sua pr¢pria est tua." Es-  tas palavras ressoaram na mem¢ria de Illidge. "Duma maneira p¢stuma,  se  que me entende. . . " P¢stuma... Spandrell dobrou uma das pernas,  at o joelho ficar quase em contato com o queixo.  - Segura aqui.  filidge segurou o tornozelo; as meias de Webley eram cinzentas, com  pinhas brancas. Spandrell abandonou a perna que segurava e filidge sen-  tiu um impulso s£bito e assustadoramente forte contra a sua mão, que a  retinha. O morto tentava dar um pontap. Buracos negros comeavam a  se alargar diante dos olhos de Illidge, devorando o mundo s¢lido que esta-  va na sua frente. E o pr¢prio mundo s¢lido oscilava e flutuava em t"mo 

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das bordas daqueles v cuos interestelares. A garganta contraiu- se-lhe, le  sentiu uma vertigem horr¡vel.  - Olha aqui -- comeou Illidge, voltando-se para Spandrell, que  estava sentado s"bre os calcanhares, rasgando o inv¢lucro de uma outra  atadura. Depois fechou os olhos e largou a perna.  O membro, s¢lto, se esticou como uma mola, e o p, jogado para a

  frente, encontrou o ombro de Spandrell, e, colhendo-o no equil¡brio  inst vel em que ste se achava, deitou-o por terra, de costas.  Spandrell ergueu-se.  - Imbecil do diabo! - Mas a c¢lera despertada por aqule primeiro  choque de surprsa se aquietou. Spandrell soltou uma risadinha. -  Pod¡amos ir para um circo. - Aquilo não s¢rnente era tr gico; era uma  palhaada.  Quando por fim o cad ver foi dobrado e atado, Illidge j havia chega-  do ... convicão de que a fraqueza do peito de Tom e os casacos de pele de

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  200 guinus, a vida de escravidão de sua mãe e o excesso de gordura, os  ricos e os pobres, a opressão e a revoluão, a justia, o castigo, a indig-  naão - nada significavam, para le, em face daqueles membros enrijeci-  dos, daquela b"ca aberta e parada, daqueles olhos sernicerrados, v¡treos e  misteriosamente fixos. Nada significavam, eram absolutamente fora de  prop¢sito. 

Philip jantava s¢zinho. Diante de seu prato, uma meia garrafa de clare-  te e a jarra de gua escoravam um volume aberto. O escritor lia en...e as  garfadas. enquanto mastigava. O livro era S"bre o Crebro, de Bastian.  Não muito atual; mas Fora o melhor que conseguira encontrar na biblio-  teca do pai, para distrair-se no trem. Havia comido a metade do peixe  quando chegou ao caso daquele irlands que sofria de parafasia; ficou  impressionado a tal ponto que afastou o prato e, tirando do b61so o  caderno de notas, fez ali mesmo um apontamento. O mdico havia pedido  ao doente que lhe lesse em voz alta um par grafo dos estatutos do Trinity  College, de Dublim. "O Colgio ter a faculdade de examinar ou de não  examinar, a seu arb¡trio, todo licenciado antes de sua admissão a uma  b¢lsa de estudos para curso de aperfeioamento." O que o doente leu  efetivamente foi: "An the bee-what in the tee-mother of the trolhod"od"o,  to majoram or thal emidrate, eni eni krastrei, mestreil to ketra totombrei-  dei, to rafrom treido as that kekritest"* Maravilhoso! disse Philip de si

  para consigo mesmo, copiando a £ltima palavra. Que estilo! Que beleza  majestosa! Que riqueza, que sonoridade, nesta frase do ex¢rdio: "An lhe  bee-what in the tee-mother of the trothodoodoo! -Repetiu-a interiormente. 

* Sucess...o de si7aba5 absolutamente sem sentido. (N. do T.) 

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"Hei de p"-la na primeira p gina da minha pr¢xima novela", escreveu le  no caderno de notas. "A ep¡grafe, o texto de todo o sermão." Shakespeare#

 

s¢ falava de hist¢rias contadas por um idiota. Mas ali era o idiota mesmo  que falava - e em linguagem sha.kespea2-iana, ainda por cima. "A pala-  vra definitiva s"bre a vida", acrescentou Philip a l pis.  No Queen's 11a11, Tolley comeou pelos Borborygmes Symphoniques,  de Erik Satie. Philip achou a brincadeira apenas moderadamente boa.  Uma parte do audit¢rio a melhorou, entretanto, com assobios e apupos.  Tolley, irânicamente polido, agradeceu com uma mesura ainda mais  graciosa que de costume. Quando o tumulto se acalmou, le atacou o  segundo n£mero do programa. Era a abertura de Coriolano. Tolley se  orgulhava dum gâsto muito cat¢lico e de ser competente em todos os

  gneros. Mas, oli, Senhor! pensou Philip enquanto escutava, como le  dirigia mal a verdadeira m£sica! Dir-se-ia que o homem tinha um pouco  de vergonha das emoões de Beethoven e que tentava desculpar-se delas.  Mas, por felicidade, Coriolano era pr...ticamente ... prova de Tolley. A  m£sica era her¢icamente bela, era tr gica e imensa - a despeito dle. A  £ltima palpitaão dos sons que expiravam desvaneceu-se - demons^  traão da grandeza indom vel do homem e da necessidade, da signifi-  caão do sofrimento.  Durante o intervalo Philip dirigiu-se manquejando para o bar, a fimde

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  fumar um cigarro. Sentiu uma mão segurar- lhe a manga.  - O meloman¡aco descoberto! - disse uma voz familiar. Philip  voltou-se e viu Willie Weaver, todo cintilante de bom humor, de bondade,  de absurdidade. -- Que pensas do nosso moderno Orfeu?  - Se te referes a Tolley, acho que le não sabe reger Beethoven.  - Um nadinha leve e fant stico demais para as portentosidades do  velho Ludwig? - arriscou Willie.  - Mais ou menos - respondeu Philip sorrindo. - Tolley não est a  altura dle.  - Ou est muito mais alto. A portentosidade pertence ... poca pr-po-  sitivista.  burguesa, como diria o camarada Lnin. Tolley  contem-  porneo - terrivelmente atual. Òle não te agradou no Satie? Ou então -  continuou Willie, em resposta ao encolher de ombros desdenhoso de Phi-  lip - preferias que le tivesse feito "sati"*? - Tossiu para marcar a  admiraão que lhe causava o seu pr¢prio trocadilho.  - Tolley  quase tão moderno como o irlands de gnio cujas obras  descobri esta noite. - Philip tirou do bâlso o seu caderno de notas e,  depois de uma palavra de explicaão, leu em voz alta: - "An lhe bee-  what in the tee~mother of the trothodood"o. .. " - Ao p da p gina  encontravam-se os seus pr¢prios coment rios, que datavam de uma hora. 

* Antigo costume da India, que consistia em oferecer-se a v ¡va para ser cremada na pira  finebre do marido. (N. do T.)

  403# 

"O texto de todo o sermão. A palavra definitiva s"bre a vida." Não os  leu. Tinha agora mudado completamente de opinião. - A diferena entre  a portentosidade e o Satie-Tolleysmo - continuou o novelista --  a  mesma diferena que h entre os estatutos do Trinity College de Dublim  e o "bee-whal in the tee-mother of the trothodoodoo " *  Philip tinha ca¡do em flagrante contradião consigo mesmo. Mas, no  fim de contas, por que não?

  Illidge queria voltar para casa e p"r-se na cama; mas Spandrell insis-  tira para que le f"sse passar pelo menos uma hora ou duas em Tanta-  mount House.  - Deves fazer que te vejam. Para teres um aKR Quanto a mim, vou  ao Sbisa. Haver uma d£zia de pessoas prontas a declarar que me viram  l ...  Illidge s¢ concordou sob a ameaa de violncia. Temia aquela prova de  ter de falar a algum - mesmo que fosse a uma pessoa tão pouco curio-  sa, tão absorta e distra¡da como Lorde Edward.  - Eu não poderei agentar. . . - repetia le sem cessar, quase  chorando. Tinham sido obrigados a carregar o cad ver, encolhido na

  posião dum feto no ventre materno - a lev -lo amorosamente apertado  num abrao estreito e vacilante -, passando com le pela porta, des-  cendo os degraus e ganhando o p tio. Um £nico bico de g s esverdi-  nhado, suspenso debaixo do arco, alumiava tibiamente as cavalarias; era  o bastante, contudo, para os trair se por casualidade algum passasse  diante da entrada rio, momento em que les levavam seu fardo para fora e  o erguiam para introduzi-lo no autom¢vel. Comearam por deix -lo cair  de costas, sâbre o piso do carro; mas os joelhos erguidos ultrapassavam  o n¡vel da carroaria. Spandrell foi obrigado a trepar no carro e, empur-  rando aqui, dando um empuxão ali, deitar de lado aqule corpo pesado,

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  de maneira que os se joelhos repousassem contra as bordas do assento  traseiro. Fecharam as portinholas, tornaram a ajustar fortemente o imper-  me vel no lugar.  - Perfeito! - disse Spandrell. Segurou o companheiro pelo cotovlo.  Precisas de um pouco mais de brandy - acrescentou.  Mas, apesar do brandy, filidge se sentia ainda um pouco fraco e  trmulo quando se puseram a caminho. E a maneira desastrada por que  Sparidrefi manejava o mecanismo daquele autom¢vel, ainda desconhecido  para le, não foi de molde a acalmar-lhe os nervos. Tinham comeado por  bater violentamente com a traseira do carro contra o muro do fundo das  cavalarias; e, antes de ter descoberto os segredos das engrenagens, Span-  drell fez parar duas vzes o motor, por inadvertncia. Aliviou a sua irri-  taão soltando algumas blasfmias e se p"s a rir. Mas para Illidge essas 

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pequenas desgraas, que acarretavam um minuto de demora no fugir  ...quele lugar horr¡vel e maldito, tomavam a importncia de cat strofes.  Seu terror, sua impacincia angustiada se tornaram quase histricos.  - Não, não posso, não posso! - protestou quando Spandrell lhe dis-  se que le devia impreterivelmente passar o serão em Tantamount House.  - Seja como ror, tu h s de ir. . . - Dizendo isto, Spandrell dirigiu o#

 

carro rumo de Pali Mali. - Eu te largarei na porta.  - Não, falando srio!  - Se f"r necess rio fao-te entrar com um pontap ...  - Mas eu não agento ficar l , não agento!  - Isto  um carro magn¡fico - disse Spandreil, mudando significati-  varnente de assunto. - Muito agrad vel de guiar.  - Eu não agento. . . - repetiu Illidge com uma voz choramingas.  - Creio que os fabricantes garantem 100 milhas ... hora, em pista.  Dobraram, depois do Pal cio de Saint-James, para entrar em Pall  Mail.

  - C est s: . . -disse Spandrell, parando junto ... calada.  Illidge, obediente, des~ceu, atravessou a calada, subiu os degraus epre-  miu o botão da campainha. Spandrell esperou que a porta se fechasse  atr s dle e depois continuou seu caminho at Saint-James Square. Havia  vinte ou trinta autom¢veis parados em t¢rno dos jardins centrais. Span-  drell entrou no meio dles com o carro em marcha ... r, parou o motor,  desceu e foi a p at Piccadilly Circus. Ali tomou um "nibus que, por 1  pni, o levou at o alto de Charing Cross Road. As rvores de Soho Squa-  re irradiavam o seu verde brilhante sob a luz das lmpadas, na extremi-  dade do estreito beco que separava a f brica dos edificios. Dois minutos  mais tarde le se achava no Sbisa, desculpando-se com Burlap e Rampion  de ter chegado tão tarde.

  - Ali, est s a¡! - disse Lorde Edward. - Estimo muito que tenhas  vindo.  filidge murmurou vagas desculpas por não ter chegado mais cedo ...  Uma entrevista com um homem. Neg¢cios. . . "Mas suponhamos", pen-  sava le com terror enquanto falava, "suponhamos que Lorde Edward me  pergunte com quem e a respeito de qu?" Òle não saberia que responder;  ficaria supinamente aniquilado. Mas o velho parecia não ter sequer ouvi-  do as suas desculpas.  - Sinto muito, mas tenho de pedir que me faas um pouco de c lculo

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  disse le com sua voz profunda e velada. Lorde Edward conseguira  tornar-se um matem tico sofrivelmente bom; mas as operaões sempre  lhe foram inacess¡veis. Nunca tinha sido capaz de fazer corretamente uma  multiplicaão. E, quanto ... divisão - havia cinqenta anos que não a ten- 

405# 

tava. - Tenho a: as cifras.---Bateu com o dedo no livro de notas que  estava aberto diante dle, em cima da escrivaninha. - E para o cap¡tulo  s"bre o f¢sforo. Trata-se da perturbaão trazida pelo homem ao cicio  natural. Quanto P O , descobrimos que os esgotos dispersam no mar? -  Voltou uma p gina. - Quatrocentas mil toneladas. Foi isso ... Pr tica-  mente perdidas. Simplesmente jogadas fora. E depois, essa maneira  est£pida como tratamos os cad veres. Em cada corpo h trs quartos de  quilo de anidrido f"sl¢rico. Restitu¡dos ... terra, pode-se alegar. - Lorde  Edward estava pronto a admitir t"das as desculpas, todos os expedientes  de defesa, para poder refut -los de antemão. - Mas muito inadequada-  mente! - Varreu fora t"das as desculpas, fez em pedaos os advogados  de defesa. - Qual! Amontoando os corpos uns s"bre os outros nos  cemitrios! Como se pode esperar que o f¢sforo seja redistribu¡do? Sem  d£vida, com o tempo, le acabar por reentrar no ciclo da vida. Mas, no

  que nos diz respeito, est perdido. Sa¡~ da circulaão. Ora, supondo trs  quartos de quilo de P O, por cad ver, e uma populaão mundial de 1  bilhão e 800 milhões, com um coeficiente mdio de mortalidade de vinte  por mil, qual  a quantidade total restitu¡da cada ano ao solo? Tu sabes  fazer os c lculos, meu caro filidge. Deixo-os ao teu cuidado. - Illidge fi-  cou sentado em silncio, escudando o rosto com a mão.  - Mas - continuou o velho -  preciso não perder de vista que h

um mundo de pessoas que se desembaraam de seus mortos duma manei-  ra mais sensata do que a nossa. Na realidade  s¢rnente entre as raas  brancas que o f¢sforo  retirado da circulaão. As outras não tm  necr¢poles, nem esquifes imperme veis, nem criptas de tijolos. Os £nicos  que são mais desperdiadores do que n¢s são os hindus. Dizer-se que les

  queimam os cad veres e atiram as cinzas nos rios! Mas os hindus são  est£pidos em tudo. Assim, les queimam todos os estrumes de vaca, em  lugar de os espalhar sâbre o solo. E depois se espantam de que a metade  da populaão não tenha que comer. Ser preciso fazer um c lculo ... parte  para os hindus. Mas não tenho aqui as cifras. Enquanto isso, faze o favor  de ir calculando o total geral para o mundo inteiro. E tambm o total para  as raas brancas, se não ror inc"modo. Tenho por a¡ uma lista das  populaões. E, est claro, o ¡ndice de mortalidade ser mais fraco que a  mdia geral do mundo, pelo menos para a Europa Ocidental e para a  Amrica. Não gostarias de sentar aqui? H lugar na ponta da mesa. -  Lorde Edward desimpediu um lugar para le. - Aqui est o papel. E  tambm uma boa pena.  - O senhor não faz caso - disse Illidge em voz dbil - se eu me

  deito por um instante? Não me sinto muito bem ... 406

 CAPITULO XXXIV

 I

 Eram quase 11 horas quando Philip Quarles apareceu no Sbisa. Span-

  drell viu-o entrar e lhe fez um sinal, chamando-o para a mesa ... qual es

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ta-  va sentado em companhia de Burlap e Rampion. Philip atravessou a sala,  manquejando, e sentou-se ao lado dle.# 

- Tenho recados para ti - disse Spandreli -, e, o que  mais impor-  tante - apalpou o b"lso -, a chave da tua casa. - Entregou-lha, expli-  cando-lhe como o objeto lhe chegara ...s mãos. Se Philip soubesse o que  havia acontecido em sua casa aquela noite. . . -- E Elinor partiu para  Gattenden - continuou le. - Recebeu um telegrama. O pequeno  parece que não est bem. E ela te espera amanhã.  - Diabo! - exclamou Philip. - Mas eu tenho pelo menos quinze  compromissos. Que  que o menino tem?  -- Não foi especificado.  Philip encolheu os ombros.  - Se f"sse coisa sria, minha sogra não teria telegrafado - comen-  tou le, cedendo ... tentaão de dizer alguma coisa divertida. - Ela   assim ... Suporta com uma calma perfeita um caso de pneumonia dupla  e depois se mostra horrivelmente alarmada diante duma dor de cabea ou  duma dor de barriga. - Interrompeu-se para pedir uma omelete e meia  garrafa de vinho do Mosela. Entretanto, pensou Philip, o pequeno não  andava l muito bem disposto nas £ltimas semanas. Arrependeu-se um

  pouco de ter cedido ... tentaão ... E o que tinha dito não era nem um  pouquinho divertido. Querer ser divertido - eis o seu principal defeito  liter rio. Seus livros seriam muito melhores se le os deixasse ser muito  mais ins¡pidos. Philip mergulhou num silncio um pouco sombrio.  Essas crianas! -- disse Spandrell. - Quando a gente insiste em 

t-las.  - Entretanto deve ser maravilhoso ter um filho -- disse Burlap com  a expressão de pesar que o caso exigia. - ·s vzes eu quisera...  R.ampion o interrompeu:  - Deve ser mais maravilhoso ainda ser criana. Quando j se  gran-  de, compreenda-se. . . - Arreganhou os dentes.  - Que fazes com os teus filhos? - perguntou Spandrefi.

  - O menos possivel! Infelizmente les tm de ir ... escola. Espero s¢  que não aprendam demais. Seria na verdade terr¡vel que les sa¡ssem de luns pequenos profess"res recheados de sabedoria, exibindo as suas

 407

brilhantes general izaõezinh as abstratas. E provilvelmente  o que hão de  fazer. S¢ para me mortificarem. Em geral os filhos mortificam os pais.  Não de prop¢sito, est claro, mas inconscientemente, porque não podem  fazer outra coisa, porque os pais sem d£vida j foram longe demais numa

  direão;  a reaão da natureza, procurando voltar ao estado de  equil¡brio. Sim, sim, eu sinto isso no fundo de mim mesmo. Serão  profess"res, os diabinhos! Serão pequenos cientistas horr¡veis. Como o  teu amigo Illidge - acrescentou Rampion, voltando-se para Spandreli,  que teve um sobressalto desagrad vel ouvindo aqule nome, ao mesmo  tempo que se sentia contrariado por se haver sobressaltado. -  Crebrozinhos horr¡veis que farão tudo quanto puderem para suprimir o  coraão e as tripas que os acompanham.  Spandrell sorriu o seu sorriso significativo, um pouco melodraniki-  camente irânico.

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  - O jovem Ill¡dge não conseguiu suprimir em si o coraão e as tripas  - disse le. - Falta-lhe ainda muito para isso ...  - Claro que não! Ningum pode suprimi-los. Tudo o que acontece   que, no decorrer do processo, les são transformados de ¢rgãos vivos em  rebotalho. E por que são assim transformados? No intersse de qu?  Dum mundo de conhecimentos tolos e de abstraões sem p nem cabea.  - As quais, no fim de contas, são bem divertidas em si mesmas -  disse Philip, rompendo seu silncio para vir em socorro da inteligncia.  - Fazer generalizaões e buscar a sabedoria são entretimentos. E dos  mais divertidos, na minha opinião. - Philip continuou a desenvolver sua  defesa liedonista da vida mental. - Assim, pois, por que julgar severa-  mente os nossos pequenos prazeres? - perguntou le ... guisa de conclu-  são. - Vocs não condenam o gâIfe; então por que haviam de condenar  os esportes dos intelectuais?  - Isso  um tanto rudimentar, não achas? - fez Rampion. - Pelos  frutos se conhece a rvore. Os frutos do g"lfe são ou inexistentes, ou  inofensivos, ou efetivamente benficos. Um figado em bom estado, por  exemplo: eis um belLssimo fruto. Ao passo que os frutos do intelectua-  lismo. . . bom Deus! - Fz uma careta. - Examina-os ... T"da a nos-  sa civilizaão industrial: eis os seus frutos. O jornal da manhã, o r dio, o  cinema tudo são frutos. Os tanques e o trinitrotoruol; Rockefeller e  Mond frutos tambm. Tudo isso  o resultado do intelectualismo  profissional, sistemiticamente organizado, dstes dois £ltimos sculos. E  queres que eu aprove os divertimentos de vocs? Mas, eu te garanto, prefi-

  ro as corridas de touros. Que  a tortura de alguns animais, que  a bruta-  Iizaão de algumas centenas de espectadores, comparada com a ru¡na, o  envilecimento, a degradaão de todo um mundo? E foi isso que vocs  fizeram, vocs, intelectuais, desde que organizaram e prol ission al iz aram  os seus prazeres.  - Mas vem c . . . - disse Philip. - O teu quadro est um pouco 

408 

carregado nas c"res. E, de qualquer forma, ainda que le seja exato, a

  gente não pode tornar os intelectuais respons veis pelas aplicaões que# 

fizeram os outros dos resultados alcanados por les.  - Mas les são respons veis. Porque trouxeram os outros para a sua  maldita tradião intelectual ista. No fim de contas, os outros não passam  de intelectuais num outro plano. Um homem de neg¢cios  simplesmente  um homem de cincia um pouco mais tolo do que o verdadeiro homem de  cincia. Vive duma maneira tão unilateral, tão intelectual, dentro dos  limites da sua inteligncia, quanto o outro. E o fruto disso  a degene-  raão psicol¢gica interior. Porque, est claro - ajuntou le entre parn-

  teses -, os frutos dos entretimentos de vocs não se resumem no apare-  lhamento externo da moderna vida industrial. Òles residem tambm numa  decadncia interna; no infantilismo, na degeneraão e em t"da sorte de  loucuras e de reversões ao estado primitivo. Não, não, eu não tolero sses  ricos divertimentos do esp¡rito. Vocs causariam muito menos mal se esti-  ves sem jogando glfe.  - Mas e a verdade? - interrogou Burlap, que tinha escutado a  discussão sem falar. - Que me dizem da verdade?  Spandrell fez um gesto de aprovaão.  - Ela não merece que a procuremos?

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  - Certamente - disse Rampion. - Mas não onde Philip e os seus  amigos cientistas e eruditos a procuram. No fi n de contas, a £nica verda-  de que possa apresentar algum intersse para n¢s, ou que possamos  conhecer,  uma verdade humana. E, para descobri-la,  preciso procur -  Ia com todo o ser, e não com uma parte especializada dsse ser. O que os  cientistas estão procurando obter  uma verdade inumana. Não que les  possam um dia consegui-lo de todo; porque um cientista mesmo não pode  cessar completamente de ser humano. Mas les podem dar alguns passos  no sentido de se abstra¡rem do mundo humano da realidade. · fora de  torturar o crebro, conseguem formar uma fraca idia do universo tal co-  mo ste havia de parecer se fâsse visto atravs de olhos não-humanos.  Com sua teoria dos quntuns, sua mecnica ondulat¢ria, sua relatividade  e o mais que segue, les parecem realmente ter sa¡do um pouco fora da  humanidade. Ora, onde diabo est o beneficio disso?  - · parte o prazer da coisa em si - disse Philip -, poder resultar  da¡ algum bem; um descobrimento pr tico prodigioso, tal como o segrdo  da desintegraão do tomo e da libertaão de quantidades ilimitadas da  energia.  - E a reduão conseqente dos sres humanos a um estado de  imbecilidade e de subservincia absoluta ...s suas m quinas - zombou  Rampion. - Eu conheo os para¡sos de vocs ... Mas trata-se neste  momento da verdade. Dessa verdade inumana que os cientistas se  esforam por achar com a sua inteligncia - mas que não tem a menor  relaão com a existncia humana ordin ria. Nossa verdade, a verdade

  409# 

humana que nos interessa,  uma coisa que se descobre vivendo, vivendo  completamente, com a totalidade do nosso ser. Os resultados dos diverti-  mentos de vocs, Philip, t"das essas famosas teorias s"bre o cosmo e  t"das as suas aplicaões pr ticas -- não tm absolutamente nada que ver  com a £nica verdade que nos importa. E a verdade inumana não  mera-

  mente alheia a n¢s;  perigosa. Ela distrai a atenão de cada um da  importante verdade humana. Ela os faz falsificar a sua pr¢pria experin-  cia, a fim. de que a realidade vivida possa ajustar-se ... teoria abstrata.  Assim, por exemplo,  uma verdade inumana bem estabelecida - ou pelo  menos estava bem estabelecida quando eu era m"o - que as chamadas  "qualidades secund rias" não tm existncia real. O homem que leva isso  a srio se nega a si mesmo, destr¢i t"da a contextura de sua vida como ser  humano. Porque sucede que os sres humanos são constitu¡dos de tal mo-  do que as qualidades secund rias são, para les, as £nicas reais. Quem as  nega suicida-se.  - Mas, na pr tica - disse Philip -, ningum as nega.  - Completamente, não. Porque  imposs¡vel. Um homem não pode

  abolir completamente suas sensaões e seus sentimentos, a menos que se  mate fisicamente. Mas le pode depreci -los. E, de fato,  isso o que faz  um grande n£mero de pessoas inteligentes e cultivadas - deprecia o  humano, no intersse do inumano. Seu motivo  diferente do dos cristãos;  mas o resultado  o mesmo.  uma espcie de autodestruião.  sempre a  mesma coisa - continuou, com um repentino assomo de c¢lera na voz  -, a cada tentativa que se faz de ser algo melhor do que um homem, o  resultado  sempre o mesmo. A morte, uma forma ou outra de morte.  Tentamos ser mais do que somos por natureza e matamos qualquer coisa  em n¢s e nos tornamos muito menos do que ramos. Estou cansado de

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  t"das essas asneiras sâbre a vida superior e o progresso moral e intelec-  tual, estou cansado da existncia pelo ideal e do mais que segue. Tudo is-  so leva ... morte. Com a mesma certeza com que viver para o dinheiro leva  ... morte. Os cristãos, e os moralistas, e os estetas cultivados, e os jovens  e brilhantes homens de cincia, e os homens de neg¢cios ... Samuel Smiles  - t"das essas pobres rãzinhas humanas que tentam inflar-se para se  transformarem em bois de pura espiritualidade, de puro idealismo, de pu-  ra eficincia pr tica, de pura inteligncia consciente, acabam simples-  mente estourando e ficando reduzidas a coisa nenhuma a não ser frag-  mentos de rã - e fragmentos putrefatos, ainda por cima. Tudo isso junto   uma vasta estupidez, uma mentira imensa e repugnante. O teu pequeno  São Francisco, sse fedorento, por exemplo. - Mark Rampion voltou-se  para Burlap, que protestou. - Sim, um fedorento - insistiu Rampion.  - Um homenzinho bâbo e vaidoso, que tenta encher-se de vento at se  tornar um Jesus, e que consegue apenas matar o pouco de bom senso ou  de decncia que existia nle, que consegue apenas transformar-se em frag-  mentos repugnantes e malcheirosos dum verdadeiro ser humano. Um ho- 

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mem que andava a colecionar sensaões e a se excitar, lambendo os lepro  sos ! Ui! Que sujeitinho pervertido e repugnante! E se julga bom demai,#

 

para dar um beijo numa mulher; quer estar acima de tâdas as coisas  vulgares, como o prazer natural e saud vel - e o £nico resultado  que  le mata o menor grão de virtude humana que podia ter em si, e se torna  um pervertidozinho, fedorento que não pode mais excitar-se senão lam-  bendo as £lceras dos leprosos. Não curando os leprosos, notem bem. Mas  simplesmente lambendo-os. Por prazer pr¢prio, não pelo dos leprosos.   revoltante 1  Philip inclinou-se para tr s na sua cadeira e riu. Mas Rampion voltou~  se para le com furor.

  - Podes rir. Mas não imagines que s melhor, não. Tu e os teus ami-  gos intelectuais, cient¡ficos. Vocs mataram tanto de si mesmos como os  cristãos man¡acos. Queres que eu leia o programa de vocs? -- Tomou  do livro que estava perto Me, sâbre a mesa, e, comeou a voltar-lhe as  p ginas. - Acabo justamente de dar com isso no "nibus, quando vinha  para c . Aqui est . . . - P"s-se a ler, pronunciando as palavras france~  sas cuidadosa e claramente: "Plus un obstacie matriel, toutes les rapi-  dits gagnes par Ia scince et Ia richesse. Pas une tare ... Vindpendance.  Voir un crime de Ise-moi dans toutefrquentation, homme ou pays, qui  ne serait pas expressment voulu. L Vnergie, le recueillement, Ia tension de  Ia solitude, Ies transporter dans ses rapports avec de vrais semblables.Pas

  d'amour peul-tre, mais des amitis ¡ares, difficiles, exaltes, nerveuses;  vi . vre comme on revivrait en esprit de dtachement, Xinquitude et de  revanche* " Rampion fechou o livro e ergueu os olhos. Òste  o programa  de vocs - disse, dirigindo-se a Philip. - Formulado por Marie Lenru  em 1901. Muito conciso, claro e completo. E, meu Deus, que horror!  Nenhum corpo, nenhum contato com o mundo material, nenhum contato  com os sres humanos, exceto atravs do intelecto, nenhum amor ...  - N¢s mudamos isso um pouco, de 1901 para c - disse Philip com  um sorriso.  - Não na realidade. Vocs admitiram a fornicaão prom¡scua, eis tu-

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  do. Mas nao o amor, nao o contato e a corrente naturais, não a ren£ncia  ao orgulho mental, não o fato de se abandonar ao instinto. Não, não.  Vocs se apegam ainda ... vontade consciente. Tudo deve ser expressrnent  voulu, t"da a vida. E as relaões devem ser puramente mentais. E a vida  deve ser vivida, não como se f"sse a vida num mundo de pessoas vivas, 

* "Mais nenhum obst culo material, t"da a aceleraão conquistada pela cincia e pela  riqueza. Nenhum impedimento ... independncia. Ver um crime de autolesão em t"da  convivncia, homem ou pa¡s, que não teria sido expressamente desejado. Transportar a ener-  gia, o recolhimento, a tensão da solidão nas suas relaões com aqules que lhe srdadei-  ramente iguais. Nenhum amor talvez, mas amizades raras, diji'ceis, exaltadas, nervosas;  viver como quem renascesse com esp¡rito de desintersse, de inquietude e de vingana. "(N.  do E) 

411# 

41 

mas como se consistisse em lembranas, em imaginaões e em meditaões  solit rias. Uma masturbaão sem fim, como o grande e horr¡vel livro de  Proust. Eis a vida superior, isto , um eufemismo para significar morte  incipiente!  significativo,  simb¢lico que essa Lenru tenha sido surda  e quase cega.  o sinal exterior e vis¡vel duma verdade interior e espiri-  tual. Pobre mulher! Ela tinha pelo menos alguma desculpa para a sua  espiritual idade. Mas os outros partid rios da Vida Superior, os que não  tm defeito fisico, são mais dificilmente perdo veis. Mutilaram-se de  prop¢sito deliberado, por prazer.  uma pena que não lhes nasa uma  corcova vis¡vel ou que os olhos não lhes fiquem estr bicos duma vez. A

  gente saberia melhor com quem estava tratando. .  - Perfeitamente - disse Philip, sacudindo a cabea com um riso de  divertimento fingido, para esconder o embarao que lhe causavam as alu-  sões de Rampion aos defeitos fisicos. - Perfeitamente. - Ningum de-  via julgar que, sob pretexto de ter uma perna aleijada, le não apreciasse  a justeza das observaões de Rampion s"bre a deformidade.  A violncia descabida de seu riso fez que Rampion lhe lanasse um  olhar interrogador. Que haveria? Mas le não quis dar-se o trabalho de  procurar.  - Tudo isso são mentiras infectas - continuou Mark -, e, o que   mais, mentiras idiotas - t"da essa comdia de fingir ser mais do que  humano.  idiota, porque isso nunca se d . Tentamos ser mais do que  humanos - mas conseguimos apenas tornar-nos menos do que humanos.

  Sempre. . .  - Apoiado, apoiado! - disse Philip. - "Sâbre a terra caminhamos,  de asas não precisamos." - E de s£bito Philip ouviu a voz forte do pai  a dizer-lhe: "Eu tinha asas. Eu tinha asas"; reviu-lhe o rosto congestio-  nado e o febricitante pijama câr-de-rosa. Era ris¡vel e deplor vel. - Sa-  bes de onde  isto? - continuou le. -  o £ltimo verso do poema que  eu fiz para o prmio Newgate, em Oxford, quando tinha 21 anos. O  assunto era "O Rei Artur", se bem estou lembrado. In£til  acrescentar  que não ganhei o prmio. . Mas o verso era bom.  -  uma pena que não tenhas vivido de acârdo com sse princ¡pio

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  disse Rampion -, em lugar de te prostitu¡res ...s abstraões. Mas, estclaro, não h ningum como o apaixonado das abstraões para condenar

  essas mesmas abstraões. Òle sabe por experincia pessoal que fora  destruidora de vida elas tm. O homem ordin rio pode conseguir viver em  harmonia com elas. Tambm se pode permitir ter asas, com a condião de  não esquecer que tem ps.  quando as pessoas se empenham em querer  voar todo o tempo que lhes corre mal a vida. Tm a ambião de ser anjos;  mas o mais que conseguem ser são cucos e gansos, por um lado, ou então  abutres repugnantes e corvos carniceiros por outro.  - Mas tudo isso - disse Spandrell, rompendo um longo silncio 

não passa do evangelho do animalismo. Tu nos aconselhas pura e  simplesmente a que nos portemos como bstas.  - Eu os aconselho a que se portem como sres humanos disse  Rampion. - O que  levemente diferente. E, alm do mais acres-  centou -,  muit¡ssimo prefer¡vel portar-se como uma bsta quero# 

dizer: como um verdadeiro e autntico animal não domesticado - a  inventar um diabo e em seguida passar a imitar a pr¢pria invenão ...  Houve um silncio curto.  "Se eu lhes contasse% pensou Spandrefi, "se eu lhes contasse que aca

bo  de saltar sâbre um homem de tr s dum biombo, golpeando-o no lado da  cabea com uma maa de gin stica?" Tomou mais um gole de brandy.  - Não - disse em voz alta -, eu não estou seguro do que dizes.  Portar-se como um animal que est abaixo do bem e do mal. Devemos sa-  ber o que  bom, antes de podermos comear a nol port~r como diabos.  - E, no entanto, tudo aquilo tinha sido apenas 4t£p~do e s¢rdido e  repugnante. Sim, e profundamente tolo, uma estupidez enorme. No  coraão do fruto colhido na rvore da cincia do bem e do mal le havia  achado, não fogo e veneno, mas s¢rnente uma putrefaão pardacenta e  repugnante, e algumas larvas mi£das. - As coisas s¢ existem em funão  dos seus contr rios - prosseguiu le, franzindo as sobrancelhas a seus  pr¢prios pensamentos. - O Diabo implica Deus.

  - Sem d£vida - volveu Rampion com impacincia. - Um Diabo  que fosse o mal absoluto implicaria um Deus que seria o bem absoluto.  E depois? Que relaão tem isso contigo ou comigo?  - Muit¡ssima, quei me parecer ...  - Tem tanta relaão conosco quanto o fato de esta mesa ser com-  posta de eletr"nios, ou de ser uma srie infinita de ondas que vibram num  meio desconhecido, ou um grande n£mero de pontos- acontecimentos num  cont¡nuo de quatro dimensões ou qualquer outra coisa que os amigos  cientistas de Philip nos garantem que ela . Quero dizer: não tm pr tica-  mente nenhuma relaão. O Deus absoluto de vocs e o Diabo absoluto  pertencem ... categoria dos fatos sem intersse nem relaões humanas. As  unicas coisas que nos dizem respeito são os pequenos deuses e diabos  relativos da hist¢ria e da geografia, os pequenos bens e males relativos da

  casu¡stica individual. Todo o resto  inumano e est fora da questão; e se  tu te deixas influenciar por consideraões não-humanas, absolutas, então  fazes inevit...velmente de ti mesmo um imbecil ou um celerado, ou talvez  as duas coisas juntas.  - Mas isso  melhor do que fazer de mim mesmo um animal - insis~  tiu Spandreil. - Eu preferiria ser um imbecil ou um celerado a ser um  touro ou um cão.  - Mas ningum te pede que sejas um touro ou um cão - disse Ram-  pion com impacincia. - Ningum te pede que sejas isto ou aquilo, a não#

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ser um homem. Um homem, toma bem nota disto. Nem anjo nem diabo.  Um homem  um ser que anda sâbre uma corda esticada, que caminha  s"bre ela delicadamente, equilibradamente, tendo, numa das extremidades  da vara que lhe d estabilidade, o esp¡rito, a conscincia, a alma, e ria ou-  tra extremidade o instinto e tudo o que  inconsciente, tudo o que  terre-  no e misterioso. Em equil¡brio, sim. O que  tremendamente dificil. E o  £nico absoluto que le pode jamais conhecer de verdade  o absoluto do  equil¡brio perfeito. O absoluto da relatividade perfeita. E isto, sob o ponto  de vista intelectual,  um paradoxo, um contra-senso. Mas tambm o   t"da verdade real, autntica, viva - simples contra-senso, segundo a  l¢gica. E a l¢gica  um simples contra-senso tambm ... luz da verdade vi-  va. Pode-se escolher a que se quiser - a l¢gica ou a vida.  questão de  gâsto. Algumas pessoas preferem ser cad veres ...  "Preferem ser cad veres. . . " Estas palavras ressoaram como um eco  no esp¡rito de Spandrell. Everard Webley, que jazia por terra, amarrado  como um frango - preferiria le tambm a morte?  - Apesar de tudo - disse Spandrell lentamente -, h certas coisas  que devem sempre permanecer absoluta e radicalmente m s. O assass¡nio,  por exemplo. - Òle precisava acreditar que o homic¡dio era alguma coi-  sa mais do que simplesmente vil, s¢rdido e repugnante. Queria acreditar

  que le era tambm terr¡vel e tr gico. - Eis o mal absoluto.  - Mas por que h de ser o assass¡nio mais absoluto do que qualquer  outra coisa? - perguntou Rampion. - H circunstncias em que le   manifestamente necess rio, bom, recomend vel. Segundo o meu modo de  ver, o £nico ato absolutamente mau que um homem pode realizar  aqule  que atenta contra a vida, contra a sua pr¢pria integridade. Òle pratica um  mal se se perverte, se falsifica os seus instintos.  Spandreli se mostrou sarc stico:  -- Eis-nos de volta ...s bstas. Devemos pois sair por a¡ em rapinagem,  satisfazendo todos os nossos apetites ... medida que les se manifestam.   esta a £ltima palavra da sabedoria humana?  - Ora, isso não  na realidade tão est£pido como procuras insinuar  disse Rampion. - Se os homens se pusessem a satisfazer seus desejos

  instintivos apenas quando os sentissem autnticamente - como fazem os  animais que esmagamos com o nosso desprzo -, les se portariam  muit¡ssimo melhor do que se porta hoje a maioria dos sres humanos  civilizados. Não  o apetite natural e o desejo instintivo espontneo que  tornam o homem tão bestial - não, "bestial" não  a palavra adequada;  ela traz impl¡cito um insulto aos animais; - digamos: que o tornam tão  super-humariamente viciados.  a imaginaão, com seus princ¡pios, sua  tradião, sua educaão. Abandonem -se os instintos a si mesmos, e vere-  mos como les hão de causar muit¡ssimo pouco dano. Se os homens  amassem s¢rnente quando levados pela paixão, se les se batessem £nica-  mente quando estão irados ou aterrados, se les s¢ se aferrassem ... 

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  propriedade quando tivessem necessidade ou quando fossem arrastados  por um desejo incontrol vel de posse - então, eu lhes garanto, ste  mundo se pareceria muito mais com o Reino dos Cus do que se parece  agora, sob o nosso presente regime cristão- intelectual-cient¡fico. Não  o# 

instinto que faz os Casanovas, os Byrons, as Ladies Castlemaines;  uma

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  imaginaao em Prurido, que esporeia artificialmente o apetite, que acicata  desejos sem existncia natural. Se os dom-juans e as doria-juanas obede-  cessem s¢rriente a seus desejos, teriam muito poucas intrigas. Òles tm de  excitar a si mesmos em imaginaão antes de poderem afundar nos seus  amores prom¡scuos. E o mesmo se passa com os outro Ö Ö Nã foi  s 111 int ,i ao  to  o  ~s  o instinto da posse que tornou a civilizaão moderna lou~a por nheiro.  ar e  a'kc' do artifi  e it2  Para isso e preciso que o instinto de posse seja sem cessar e  cialmente pela educaão, pela tradião e pelos princ¡pios morais.   necess rio que se repita aos amontoadores de dinheiro que amontoar  dinheiro  uma coisa natural e nobre, que a economia e a ind£stria são  virtudes, que persuadir as pessoas a comprar aquilo de que não tm  necessidade  um dever cristão. Seu instinto de posse não seria nunca  bastante forte para impeli-los a amontoar sem cessar, da manhã ... noite,  durante t"da a sua vida.  necess rio que le seja constantemente exci-  tado pela imaginaão e pela inteligncia. . . Depois, pensem na guerra  civilizada. Ela nada tem que ver com a combatividade espontnea. Os

  homens precisam ser constrangidos por lei e depois excitados pela propa-  ganda, para se baterem. Far-se-ia um trabalho muito mais eficiente em  favor da paz se se dissesse aos homens que obedecessem aos reflexos  espontneos de seus instintos belicosos, do que fundando não importa  quantas Ligas das Naões.  - Far-se-ia ainda muito mais - atalhou Burlap - dizendo-lhes que  obedecessem a Jesus.  - Não, não se faria. Dizer-lhes que obedeam a Jesus  dizer-lhes que  sejam mais do que humanos. E, na pr tica, quando tentamos ser mais que  humanos, conseguimos sempre ser menos do que humanos. Dizer ...s pes-  soas que obedeam a Jesus literalmente  dizer-lhes, de modo indireto,  que se portem como imbecis, e, no fim de contas, como dem"nios. Vejam  os exemplos ... O velho Tolst¢i - eis um grande homem que delibera-

  damente se transformou num imbecil por tentar ser mais do que um gran-  de homem. E o teu pavoroso São Francisquinho. . . - Aqui Rampion  voltou-se para Burlap. - Outro idiota. Mas j no limite do diabolismo.  Com os monges da Tebaida se v o mesmo processo levado mais longe.  Esses transpuseram o limite. Chegaram ao estado demon¡aco. A tortura  de si mesmos, a destruião de tudo o que  decente, belo e vivo. Eis o pro-  grama dles. Ôles se esforam por obedecer a Jesus e por ser mais do que  homens; e o mais que conseguem fazer  transformar-se na encarnaão do  puro esp¡rito diab¢lico da destruião. Poderiam ter sido criaturas huma-  nas perfeitamente decentes se se houvessem limitado a seguir o seu cami- 

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nho portando-se naturalmente, de acârdo com seus instintos. Mas não,  quiseram ser mais do que humanos. De sorte que se transformaram em  dem"nios. Imbecis a princ¡pio, e depois dem"nios imbecis. Irra! -  Rampion Iez uma careta e sacudiu a cabea com repugnncia. - E  quando se pensa - continuou depois, com indignaão - que o mundo  est cheio de criaturas dessa espcie! Não tão insensatos como Santo  Ant"nio e seus dem"nios, ou como São Francisco e seus fracos de

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  esp¡rito. Mas da mesma ordem. Diferindo apenas no grau. E todos  pervertidos da mesma maneira - procurando ser inumanos!  Inumanamente religiosos, inumanamente morais, inumanamente  intelectuais e cient¡ficos, inumanamente especializados e eficientes,  inumanamente homens de neg¢cios, inumanamente avaros e vidos de  posses, inumanamente lascivos e dom-juanescos, inumanamente  conscientes da sua individualidade, mesmo no amor! Todos sses são  sres pervertidos. Pervertidos no sentido do mal ou do bem, da carne ou  do esp¡rito; mas sempre fugindo da norma central, fugindo da humani-  dade. O mundo  um asilo de pervertidos. H quatro em t"rno desta me-  sa, neste momento. - Olhou em t"rno, arreganhando os dentes. - Um  puro pervertidozinho de Jesus. - Burlap teve um sorriso de perdão.  Um pervertido esttico-intelectual.  - Obrigado pelo elogio - disse Philip.  - Um pervertido tico~filos¢fico. - Voltou-se para Spandrell.  Um pequeno Stavr¢guin, sem tirar nem p"r. Desculpa-me o dizer-te,  Spandreil; mas tu s verdadeiramente o imbecil mais colossal de todos.  - Encarou o outro intensamente. - Tu sorris como t"das as persona~  gens tr gicas da ficão condensadas numa s¢. Mas não adianta. Nada  disso consegue esconder o bobalhão simpl¢rio que est por baixo " * ,  Spandrell atirou a cabea para tr s e riu silenciosamente. Se Mark  soubesse, pensava le, se Mark soubesse! Mas se Mark soubesse ...  haveria de ach -lo por isso menos imbecil?  - Podes rir, meu velho Dostoivski! Mas permite que eu te diga:

  Stavr¢guin, e não M¡chkin*, quem devia levar o nome de "Idiota". Òle   dos dois o mais incomparavelmente idiota, o pervertido mais completo.  - E que espcie de imbecil e pervertido  a quarta pessoa que se acha  sentada a esta mesa? - perguntou Philip.  - Sim, que espcie ? - Rampion sacudiu a cabea. Seus cabelos fi-  nos esvoaaram com uma ondulaão de sda. O homem sorriu. - Um  pervertido pedagogo. Um pervertido ... Jeremias. Um pervertido  palmat¢ria-do-mundo. E, acima de tudo, um pervertido tagarela. -  Ergueu-se. - E  por isto que vou me retirar. A maneira como estive a  falar  ... inumana. Verdadeiramente escandalosa. Estou envergonhado.  Mas eis o mal: quando nos insurgimos contra as coisas e as pessoas 

* Respectivamente, personagens de Os Demânios e O Idiota, de Dostoivski. (N.

 do E.) 416

 inumanas, tornamo-nOs tambm inevitilvelmente inumanos. A culpa

  inteiramente de vocs.  Teve um £ltimo arreganhar de dentes, abanou com a mão e se foi. # 

Burlap voltou para casa e encontrou Beatrice a esper -lo, como de cos-

  tume. Sentado - porque tal era o h bito encantadorament~ ~infantil que  le adquirira durante as £ltimas semanas -, sentado no chão aos ps da  Srta. Gilray, com a cabea, em que a pequena tonsura se recortava r¢sea  no meio das madeixas escuras, apoiada contra o joelho dela, Burlap bebe-  ricou o seu leite quente e falou de Rampion. Era um homem extraor-  din rio, um grande homem, mesmo. - Grande? - interrogou Beatrice  num tom de desaprovaão. Não gostava de ouvir atribuir a qualidade de  grandeza a um homem vivo (os mortos eram coisa diferente: estavam  mortos), a não ser que se tratasse do pr¢prio Denis... Não chegava bem  a ser "grande", -insistiu ela com ci£me ... Muito, muito não era, mes-

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  mo ... Mas quase ... Se Rampion não tivesse aquela estranha falta de  sensibilidade para com os val¢res espirituais, aqule preju¡zo, aqule pon-  to cego ... Sua atitude era compreens¡vel, de resto. Òle reagia contra o  que quer que tivesse ido longe demais numa direão; mas, levado por essa  mesma reaão, Mark tinha ido demasiadamente longe no sentido  contr rio. Sua incapacidade de compreender São Francisco, por exemplo.  Tâdas essas coisas grotescas e verdadeiramente horrendas que le tinha a  coragem de dizer s"bre o santo. Era extraordin rio e deplor vel.  - Que foi que le disse? - perguntou Beatrice com severidade. Des-  de que conhecera Burlap, tinha tomado São Francisco sob sua proteão.  Burlap lhe f-ez um relat¢rio, ligeiramente expurgado, do que Rampion  havia dito. Beatrice ficou indignada. Como podia le dizer coisas como  aquelas? Como ousava? Era um ultraje. Sim, Mark tinha aqule defeito,  reconheceu Burlap, aqule defeito real. Mas havia tão poucas pessoas,  ajuntou le numa desculpa caridosa, que nasciam com o verdadeiro g"sto  da beleza espiritual! Rampion era, sob muitos aspectos, um homem  extraordin rio, mas dir~se-ia que lhe faltava sse ¢rgão suplementar dos  sentidos que permite aos homens como São Francisco perceber a beleza  que existe alm da beleza terrestre. Duma maneira bem rudimentar, le,  Burlap, supunha ser dotado dsse poder. Como era raro encontrar algum  que se lhe parecesse! Quase t"da a gente, sob aqule aspecto, lhe era  estranha. Era o mesmo que ter uma visão normal num pa¡s em que as pes-  soas, em sua maior parte, são dalt"nicas. Beatrice não sentia isso  tambm? Porque, estava claro, ela era uma das raras criaturas de visão

  perfeita. Òle sentira isso imediatamente. desde a primeira vez que a  encontrara. Beatrice fez gravemente "sim" cor um sinal de cabea. Sim,  ela tambm sentia aquilo. Burlap ergueu os olhos para a amiga, com um 

417# 

sorriso; le bem o sabia ... Beatrice se sentia orgulhosa e importante.  Aquela concepão de Rampion sâbre o amor, por exemplo; Burlap sacu-

  diu a cabea. Como era grosseira, animal, corporal!  - Pavoroso - disse Beatrice com veemncia. Denis, pensou, era tão  diferente! Ternamente, baixou o olhar para a cabea que repousava com  tanta confiana contra o seu joelho. Adorava o jeito como os cabelos dle  se encrespavam, adorava as suas belas orelhas, muito pequenas, e at  mesmo a mancha r¢sea de calv¡cie que le tinha no alto do crnio. Aquela  pequena tonsura carmesim tinha, Beatrice não sabia bem por qu, algo de  pattico e de convidativo. Houve uni longo silncio.  Burlap soltou por fim um suspiro profundo.  - Como estou com sono!  - Voc devia ir para a cama.  - Tão cansado que nem tenho coragem de me mexer. . . - Denis  apoiou a face mais forte contra o joelho dela e fechou os olhos.

  Beatrice ergueu a mão, hesitou um instante, deixou-a cair de n"vo,  depois tornou a ergu-la e se p"s a passar os dedos suavemente pelos  cabelos escuros e anelados de Burlap. Houve outro longo silncio.  - Ah, não pares - pediu le, quando por fim ela retirou a mão.   tão bom! Parece que emana de ti uma tal virtude ... Quase me curaste  a dor de cabea...  - Est com dor de cabea? - perguntou Beatrice, cuja solicitude,  como de costume, se transformou numa espcie de raiva. - Então o que  voc tem a fazer  simplesmente ir para a cama - comandou ela.  - Mas eu me sinto tão feliz aqui ...

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  - Não. Eu insisto. - Seus sentimentos maternais protetores haviam  despertado completamente. Era uma ternura que se fazia tirnica.  - Como s cruel! - queixou-se Burlap, erguendo-se com relutncia.  Beatrice ficou tocada de compunão.  - Eu acariciarei os seus cabelos quando voc estiver deitado - pro~  meteu ela. Tambm agora lamentava a perda daquele mrno silncio  macio, daquela intimidade sem palavras que sua explosão de solicitude  desp¢tica quebrara tão bruscamente. Beatrice se justificou com uma  explicaão. A dor de cabea voltaria se Burlap não dormisse no instante  em que ela desaparecesse. E assim por diante.  Burlap estava no leito havia quase dez minutos quando a Srta. Gilray  veio para cumprir a promessa. Estava metida num roupão verde e trazia  os cabelos amarelos enastrados num longo rabicho grosso que se  balanava pesadamente quando ela caminhava, como a cauda espssa e  tranada dum cavalo de feira.  - D s a impressão de que tens doze anos, com essa trana pendurada  ...s costas - disse Burlap, encantado.  Beatrice riu, um pouco nervosamente, e sentou-se ... beii a da cama. De-  nis ergueu a mão e agarrou a trana espssa. 

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Que encanto! - disse le. - Convidando a gente a dar um

  - Puxou de leve, por brinquedo.# 

puxão ...  -- Cuidado! - fez ela ... guisa de advertncia. - VO - puxar tambm  os seus cabelos. apesar da dor de cabea! - Segu,~.~dos anis Cscu-  ros. 

- Pax! Pax!* -suplicou Burlap, voltando ao vocabul rio da escoia  preparat¢ria, - Vou largar ... A verdadeira razão - acrescentou --  pela qual os meninos não gostam de lutar com as meninas  simplesmente

  porque elas são muito mais implac veis e ferozes ...  Beatrice riu de nâvo. Houve um silncio. Ela estava um pouco ofegante  e alvoroada, tal como nos sentimos quando esperamos ansiosamente que  alguma coisa acontea.  - Como vai a cabea?  - Nada bem.  Beatrice estendeu o brao e tocou a fronte de Burlap.  - Tua mão  m gica - disse le. Com um movimento r pido e  imprevisto Denis enroscou-se sob as cobertas, ficou deitado de lado e  pousou a cabea s¢bre os joelhos de Beatrice. - Assim - murmurou. E,  com um suspiro de satisfaão, fechou os olhos.  No primeiro momento Beatrice ficou embaraada, quase apavorada.  Aquela cabea escura que repousava, dura e pesada, contra suas coxas -

  pareceu-lhe uma coisa estranha, terrificante. Foi obrigada a reprimir um  pequeno calafrio antes de poder sentir-se contente com o que havia de  confiana infantil no gesto de Burlap. Comeou a acariciar-lhe a testa, a  acariciar-lhe o couro cabeludo atravs dos espessos e escuros cabelos  encaracolados. O tempo pas ' sou. O silncio m"mo e macio os envolveu de  n"%,o, a intimidade muda do contato foi restabelecida. Beatrice cessou de  se mostrar tirnica na sua solicitude protetora, ficou apenas terna. Era co-  mo se a armadura de dureza se lhe tivesse fundido ao redor do corpo,  evaporando-se naquela morna intimidade e dissipando os terr"res que a

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  tinham feito necess ria.  Burlap suspirou de n"vo. Estava numa espcie de madorna feliz de  passividade sensual.  - Melhor? - perguntou ela num cicio suave.  - Ainda me d¢i um pouco do lado - murmurou le em resposta, --  Bem embaixo da orelha. - E deixou rolar a cabea de maneira que Bea-  tricc pudesse atingir mais f...cilmente o ponto doloroso, deixou-a rolarde  modo que seu rosto ficasse apoiado contra o ventre dela, aqule ventre  mole que vibrava com tanta vida ao ritmo da respiraão, que era tão  quente e que cedia ... pressão do rosto dle.  Ao contato daquele rosto contra seu corpo, Beatrice sentiu de repente  uma renovaão dos seus calafrios espasm¢dicos de apreensão. Sua carne 

* Paz! Paz! (N. do E) 

419# 

aterrorizou se com uma intimidade f¡sica tão grande, Mas como Burlap  não se mexia, como não fazia nenhum gesto perigoso, nenhum movi-  mento pai a estabelecer um contato mais aproximado, o terror dela se

  ,gquietou pouco a pouco, e as palpitaões dsse terror serviram apenas pa  ra exaltar e intensificar aquela maravilhosa emoão quente que se lhe  seguiu. Beatrice passou de nâvo os dedos pelos cabelos de Burlap, outra  vez e mais outra ... Sentia o calor da respiraão dle con,ra o seu ventre.  Fremiu ligeiramente, sua felicidade bateu asas, cheia de apreensão e de  antecipaões. Sua carne tremia, mas assim mesmo estava alegre; tinha  mdo, e ao mesmo tempo curiosidade; encolhia~se. mas se deixava vencer  pelo calor do contato, e mesmo, no meio de todos os seus terrires. chega-  va timidamente a desejar. . .  - Vai melhor? - murmurou Beatrice de nâvo.  Denis f`z um pequerio movimento de cabea e comprimiu com mais  f"ra o rosto contra a carne macia de Beatrice.  - Devo parar agora? - continuou ela. - Quer que eu me v ?

  Burlap ergueu a cabea e olhou para a amiga.  - Nã¢, não -- implorou. --- Não v s. Ainda não. Não quebres o  encantamento. Fica aqui ainda um momento. Deita-te um instantinho  debaixo do acolchoado. S¢ um momentinho.  Sem dizer palavra, ela se estendeu ao lado de Denis e le a cobriu com  o acolchoado; apagou a luz.  Os dedos que se puseram a acariciar os braos de Beatrice debaixo da  sua manga ampla a tocaram delicadamente, a tocaram com espiritua-  lidade e como se não fâssem matria. Eram como os dedos dessas ]tivas  de borracha cheias de ar, que nos roam pelo rosto duma maneira'tão  emocionante, na escuridão das sessões esp¡ritas, trazendo-nos o  reconf"rto do Grande Alm e uma mensagem de afeião vinda dos sres  amados que deixaram ste mundo. Acariciar e ser ao mesmo tempo uma

  luva de borracha espiritualizada numa sessão esp¡rita, tornar intimidades,  mas como se fâsse do outro lado do Grande Alm -- nisso estava ¢ talen-  to de Burlap. Maciarriente, pacientemente, com uma infinita suavidade,  duma maneira incorp¢rea, le continuou a acariciar. A armadura da  mulher se havia fundido por completo. Era o coraão, o mago, suave,  virginal e trmulo de Beatrice que Burlap acariciava, com aqule esfrolar  delicado de dedos esp¡ritas do Grande Alm. A armadura de Beatrice ha-  via desaparecido; mas sentia-se tão maravilhosamente segura com Denis!  Não experimentava nenhum mdo, ou pelo menos não tornava a sentir  senão os fracos estremecimentos ofegantes de sua carne ainda quase

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  infantil, os quais serviam para lhe avivar a felicidade. Beatrice se sentia  maravilhosamente segura, mesmo quando, depois do que lhe tinha pare~  cido uma eternidade deliciosa de car¡cias pacientemente repetidas que  iam e vinham do pulso at o ombro -- a mão esp¡rita se evadiu do Alm  e lhe tocou o peito. Delicadamente, duma maneira quase incorp¢rea, ela 

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apalpava como uma pele de borracha cheia de ar~ -espiritual mente a mão  deslizou sâbre a carne arredondada, os dedos anglios passearam-'lhe  com vagar ao longo da epiderme. Ao primeiro contato o seio redondo  estremeceu; le tinha seus terr"res particulares, dentro da felicidade geral# 

de Beatrice, dentro de sua sensaão de segurana. Mas a mão esp¡rita  repetiu a car¡cia - mais outra e outra vez -, pacientemente, suave-  mente. sem alarma, at que o seio, tranqilizado e por fim ansioso, dese-  jou a sua volta; e todo o corpo de Beatrice fremiu, vivo, sob a irradiaão  dos desejos do seio. E na escuridão asternidades se prolongaram. 

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por telegrama. Os jornais da noite chegaram pelo mesmo trem; o chofer  voltou com uma seleão dles. Na primeira p gina anunciava-se o desco-  brimento do cad ver de Everard Webley no seu pr¢prio autom¢vel. Foi  ao velho John Bidiake, que dormitava ap...ticamente na biblioteca, que  trouxeram primeiro os jornais. O velho os leu e ficou de tal. maneira exci-  tado ... not¡cia da morte dum outro, que esqueceu por completo tâdas as  preocupaões relativas ... sua. Rejuvenescido, ergueu-se num pincho e

  correu para o vest¡bulo acenando com o jornal.  - Philip! - gritou le com a voz forte e sonora que lhe havia fugido  naquelas £ltimas semanas. - Philip, venha c imediatamente!  Philip, que acabava de deixar o quarto do doente e se achava parado  no corredor, conversando com a Sra. Bidlake, desceu ...s pressas para ver  o que havia. John Bidlake lhe estendeu o jornal com uma expressão quase  de triunfo no rosto.  - Leia isto - ordenou le com um ar de importncia.  Quando Elinor soube da not¡cia, por pouco não desmaiou. 

CAPITULO XXXV 

No dia seguinte, em lugar de gemer a cada retârno da dor, o menino

  comeou a gritar - a soltar gritos ap¢s gritos, cada vez mais agudos,  repetidos com uma regularidade quase digna dum mecanismo de rel¢gio,  durante um tempo que pareceu a Elinor uma eternidade. Dir-se-iam gritos  dum coelho apanhado numa armadilha. Mas era mil vzes pior; porque se  tratava de uma criana que gritava e não de um animal; era o seu filho,  apanhado na armadilha e prso nas garras da tortura. Elinor tinha a  sensaão de estar prsa num mundu tambm. Prsa da sua incapacidade  absoluta de aliviar a dor do filho. Prsa daquele obscuro sentimento de  culpabilidade, daquela crena irracional (mas tenaz, a despeito do que ti-  nha de irracional), daquela convicão que se fazia cada vez mais opres-

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  siva e sufocante, de que tudo aquilo era, de alguma maneira insond vel,  culpa dela - que era uma punião, malvolamente infligida a outrem,  como expiaão de sua ofensa. Aprisionada na sua pr¢pria armadilha, mas  exclu¡da daquela em que se achava o pequeno, ela se deixou ficar ali, sen-  tada, segurando a mão pequenina como que atravs de grades, impossibi-  litada de ir em socorro do doente, esperando, durante os silncios ofegan-  tes e febris do menino, que se reproduzisse aqule grito horr¡vel, que se  repetisse outra vez mais a visão daquela face s£bitamente contorcida  daquele pequenino corpo convulso e atormentado por uma dor que, de  algum modo, tinha sido infligida por ela pr¢pria.  O doutor veio por Fim com os seus opiatos.  Philip chegou pelo trem do meio-dia e vinte. Não tinha tido pressa,  nem se levantara cedo para vir num trem mais matinal. Estava aborrecido  por se ver obrigado a deixar Londres. Sua chegada tardia tinha o car ter  dum protesto. Elinor devia realmente aprender a não fazer tanto barulho  cada vez que a criana tivesse uma c¢lica. Era absurdo.  Elinor o esperava ... porta, quando o marido desceu do auto; ela estava  tão branca, tão cansada, os olhos tão desesperados e com olheiras tão  escuras que, ao v-la, Philip sentiu um choque,  - Mas s tu que est s doente! - exclamou le com inquietude.  Que  que h ?# 

No primeiro momento ela não respondeu, mas ficou a abraar o mari-  do, o rosto escondido no seu ombro, t"dajungida a le.  - O D r. Crowther disse que  meningite -- murmurou ela por 

fim.  ·s 5 e meia chegou a enfermeira que a Sra. Bidlake chamara de manhã 

Ir 

- Creio que le est melhor esta manhã, doutor.  O Dr. Crowther apalpou a gravata para verificar se ela estava direit

a  ou não. Era um homem pequeno, ativo, vestido com uma impecabilidade  quase excessiva.  . Mais tranqilo, hein? Dormindo? - perguntou em estilo  telegr fico. Sua conversaão reduzia-se ao estritamente indispens vel.  Era simplesmente compreens¡vel e nada mais. Não desperdiava energia  em pronunciar palavras in£teis. O Dr. Crowther falava como são fabrica-  dos os autom¢veis Ford. Elinor votava-lhe uma aversão intensa, mas ti-  nha confiana no homem, precisamente por causa daquelas mesmas  qualidades de eficincia viva e de confiana em si mesmo que ela detesta-  va. 

Sim,  isso mesmo - confirmou ela. - Òle est dormindo.

  Natural. . . - disse o Dr. Crowther, fazendo com a cabea um si~  na] de aprovaão, como se tudo houvesse previsto - como de fato havia;  porque a molstia seguia seu curso invari vel.  Elinor o acompanhou at o segundo andar.  -  bom sinal? - perguntou ela com uma voz que implorava unia  resposta favor vel.  O Dr. Crowther espichou para a frente os l bios, atirou ligeiramente a  cabea para um lado e encolheu os ombros.  -- Bem. . . - disse le, sem se comprometer; calou-se. Tinha econo-

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  mizado pelo menos 1 p-libra de energia abstendo-se de explicar que, na  meningite, a fase inicial de excitamento  seguida por uma fase de depres-  são.  O menino passava agora os dias a dormitar numa espcie de estupor,# 

sem sofrer (Elinor deu graas ao cu), mas dando prova, da maneira mais  inquietante, duma falta total de intersse por tudo quanto se passava em  t¢rno, como se não estivesse inteiramente vivo. Quando le abria os  olhos, Elinor via as suas pupilas tão exageradamente dilatadas que nelas  qua ' se não havia mais ¡ris. O olhar azul e malicioso da criana se tinha  tornado dum negror inexpressivo. A luz, que o fizera sofrer atrozmente  nos primeiros dias da doena, j não o incomodava. Phil não se sobressal-  tava nem tremia mais a cada ru¡do. E mesmo parecia não ouvir quando  lhe falavam. Dois dias se passaram assim; de s£bito, com uma sensaão  horr¡vel de queda no v cuo, Elinor compreendeu que o filho estava quase  completamente surdo.  - Surdo? - repetiu o Dr. Crowther quando a mãe lhe deu conta da  descoberta espantosa. - Sintoma comum.  - Mas não se pode fazer nada contra isso? - perguntou Elinor. A  armadilha se tornava a fechar s"bre ela, a armadilha de que se julgara  liberta quando aqules gritos terr¡veis se haviam aquietado at o silncio.

  O Dr. Crowther sacudiu a cabea com energia, mas uma vez somente  em cada sentido. Não falou. Um p-libra economizado  1 p-libra ganho.  - Mas não podemos deix -lo surdo assim - disse Elinor quando o  mdico partiu, fazendo um aplo ao marido, numa espcie de desespro  incrdulo. - Não podemos deix -lo assim, surdo! - Ela sabia que Phi I-  ip não podia fazer nada; e, no entanto, esperava ... Percebia o horror,  mas recusava-se a acreditar nle.  - Mas se o doutor diz que não se pode fazer nada ...  - Mas ... surdo? - continuava ela a repetir, num tom interrogador.  Surdo? Phil? Surdo?  -- Talvez isso passe por si - sugeriu le para a consolar; e Ficou a  perguntar consigo, no momento mesmo em que pronunciava aquelas  palavras, se a mulher imaginava ainda que a criana ia sarar.

  No dia seguinte, cedo, quando, metida no seu roupão, subiu na ponta  dos ps para ouvir a enfermeira fazer-lhe o relat¢rio da noite, Elinor  achou o filho j acordado. Tinha le uma p lpebra escancarada e o ¢lho,  todo pupila, olhava verticalmente para o teto; o outro estava semicerrado,  numa piscadela permanente que dava ao rostinho Fino e descarnado uma  horr¡vel expressão de gaiatice.  - Òle não pode abri-lo - explicou a enfermeira. - O ¢lho est para-  lisado.  Entre aquies longos c¡lios crespos, que tantas vzes ela invejara, Eli-  nor pâde ver que o globo ocular tinha rolado para o canto externo da ¢r-  bita e olhava esgazeadamente para o lado, num estrabismo fixo e cego. 

- Por que diabo - perguntou Cuthbert Arkwright, no tom de 424

 algum que se sente pessoalmente lesado -, por que diabo Quarles não

  volta para Londres? - Esperava arrancar-lhe um pref cio para a sua no-  va edião ilustrada dos Mimos de Herondas.  A "rusticaão" de Philip, explicou Willie Waever polissiffibicamente,  não era volunt ria.  - O filho est doente - ajuntou, emitindo sua pequena tossezinha de

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auto-aplauso; - le parece mui relutante, como se diria na Dinamarca, a  ausentar-se por mais tempo da bem-aventurana.  - Nesse caso, seria bom que le se aviasse - resmungou Arkwright.  Franziu o sobrolho. - Talvez convenha arranjar um outro para o meu  pref cio.  Em Gattenden os dias tinham sido como est dios sucessivos dum so-  nho horrendo e incr¡vel. Dois dias depois de ficar surdo, o pequeno Phil  cessou igualmente de ver. Os olhos vesgos cegaram por completo. Então,  ao cabo de quase uma semana de trgua, houve uma brusca volta da dor  dos primeiros dias; o menino se p"s a gritar. Mais tarde foi prsa, v rias  vzes, de violentas convulsões; dir-se-ia que um demânio lhe entrara no  corpo e ficara a tortur -lo interiormente. Depois, um laZio do rosto e  metade do corpo doente foram atacados de paralisia e a carne comeou a  se consumir de maneira quase percept¡vel s"bre os ossos, como cra que  se derrete ao calor dum fogo interno e invis¡vel. Prsa na armadilha de  sua impotncia e daquela horr¡vel sensaão de culpabilidade que a not¡cia  do assass¡nio de Everard Webley havia intensificado enormemente, Eli-  nor ficava sentada ... cabeceira do filho e observava as fases da molstia  que se sucediam uma ... outra - cada qual, parecia-lhe, pior do que a  anterior, e ainda mais atrozmente incr¡vel. Sim, incr¡vel. Porque coisas

  assim não podiam acontecer, não aconteciam. Pelo menos a ela. O filho  da gente não podia ficar assim sofrendo torturas e deformaões gratuitas  diante de nossos pr¢prios olhos ... O homem que nos amava e cujo amor  est vamos quase decididas a retribuir (mas, ah! de que maneira pecami-  nosa, criminosa e - como o tinham demonstrado os acontecimentos -  fatal !) não podia ser s£bita e misteriosamente assassinado ... Coisas co-  mo aquelas simplesmente não podiam acontecer. Eram uma impossibili-  dade. E mesmo assim, a despeito dessa impossibilidade, Everard estava  morto e para o pequeno Phil cada dia reservava um tormento nâvo e ain-  da mais cruciante. O imposs¡vel se tornava realidade, como num  pesadelo.  Exteriormente, Elinor andava muito calma, silenciosa e ativa. Quando  a enfermeira se queixou de que as refeiões que lhe mandavam ao quarto

  do doente vinham esfriando pelo caminho (não poderiam dar-lhe ch da  ¡ndia, em vez do ch da China que lhe perturbava a digestão?), Elinor  mandou buscar Lipton e tomou providncias, apesar das objeões apaixo-  nadas de Dobbs, para que o lanche e o jantar da enfermeira daquele  momento em diante f"ssem levados para cima nos pratos aquecidos a# 

ngua quente que se usavam na casa para o desjejurn. Tudo o que o Dr.  Crowther, em estilo telegr fico, lhe ordenava fazer, ela fazia  pontualmente - tudo, menos prolongar as suas horas de descanso. A  pr¢pria enfermeira tinha de reconhecer, embora de m vontade, que

  Elinor fazia as coisas duma maneira meticulosa e met¢dica. Mas  secundava o mdico no convite ao repouso, em parte porque queria Ficar  reinando szinha no quarto do doente, sem que ningum lhe disputasse a  realeza, em parte desinteressadamente, para o bem da pr¢pria Elinor.  Aquela calma, ela bem o via, era o resultado dum esf"ro; era a rigidez  duma tensão extrema. Philip e a Sra. Bidlake não insistiam menos para  que ela repousasse; mas Elinor não os queria ouvir.  - Mas eu estou perfeitamente bem - protestava, negando o,testemu-  nho da sua palidez e dos c¡rculos negros que tinha ao redor dos olhos.  Quisera, se fosse humanamente poss¡vel, nunca mais comer nem dor-

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  mir. Com Everard morto e o menino torturado diante de seus olhos,-pare-  cia-lhe quase um cinismo , comer e dormir. Mas o simples fato de possuir  um corpo  um coment rio c¡nico ... alma e a t"das as suas normas.  um  cinismo, entretanto, que a alma tem de aceitar, goste ou não goste. Elinor  ia, pois, deitar-se ...s 11 horas, e descia para as refeiões - para que ao  menos pudesse ter F"ra para suportar ainda mais desgraas. Sofrer era a  £nica coisa que ela podia fazer; queria sofrer o mais poss¡vel, tanto em  quantidade como em intensidade.  - Então, como vai o gar"to? -- perguntava-lhe o pai quando se viam  ao jantar. Fazia a pergunta negligentemente, enquanto atacava o seu  pedao de galinha. E quando Elinor dava qualquer resposta vaga, le pas-  sava depressa a outro assunto.  John Bidlake tinha recusado com obstinaão, desde o in¡cio da mols-  tia do neto, aproximar-se-lhe do quarto. Sempre detestara o espet culo do  sofrimento e da doena, de tudo o que lhe podia lembrar a dor e a morte  - coisas que le tão agorliadamente temia para si mesmo. E, no caso  presente, o velho tinha um fundamento especial para o seu terror. Porque,  com aqule talento de inventor de superstiões pessoais que o havia sem-  pre distinguido, chegara secretarriente ... conclusão de que sua pr¢pria sor-  . te estava ligada ... do pequeno. Se ste sarasse, le tambm sararia. Se  não ... Uma vez formulada, a superstião não podia mais ser ignorada.  " absurdo", procurava le tranqilizar-se, " completamente insensato,   idiota!" Mas cada boletim desfavor vel que vinha do quarto do menino o  fazia sentir calafrios. Se le entrasse naquele compartimento, era quase

  certo, haveria de descobrir, dum modo absolutamente gratuito, a confir-  maão horr¡bil¡ssima de seus pressentimentos. E talvez (quem sabe?) os  sofrimentos do menino, po:r algum processo misterioso, pudessem passar  para o corpo dle. John Bidlake não desejava nem mesmo ouvir falar do  garâto. * parte as perguntas formuladas ... hora do lanche, não fazia nun-  ca alusão ao neto, e, sempre que outra pessoa falava dste, ou o velho  426 

muda~a o rurvo da conversaão (tocando ac. mesmo tempo em, madeira.  furtivam-iae; ou enta(-) ~£gia para onde não pudesse ouvir. Ao cabo de  alguns dias. os outros aprenderam a compreender e a respeitar a sua  fraqueza. E. levados por sse sentimento que decreta que os criminosos  condenados sejam tratados com uma bondade especial, les tinham o cui-

dado de, na presena do velho Bidlake, evitar qualquer alusão ao que se  passava l em cima.  Enquanto isso, Philip, inquieto, errava pela casa. De tempos em tem-  pos subia ao quarto do filho; mas depois de ter feito uma tentativa, sem-  pre improficua, de persuadir Elinor a deixar o quarto, tornava a descer ao  cabo de alguns minutos. Não teria podido suportar aquie ambiente por  muito tempo. Estava apavorado diante da inutilidade das vig¡lias obstina-  das de Elinor; tivera sempre horror a ficar sem fazer nada e, em

  circunstncias daquela espcie, um longo per¡odo de desocupaão me * rital  lhe teria sido uma tortura. Nos intervalos de suas visitas ao quarto do  doente le lia, tentava escrever. Depois, havia aqule caso de Gladys  Helrnsley para resolver. A doena do pequeno lhe tinha tornado  imposs¡vel qualquer viagem a Londres, eximindo-o assim ... necessidade  de ter uma entrevista pessoal com Gladys. Foi a Willie Weaver - Willie,  que não s¢ era advogado mas tambm o mais leal dos amigos -que Phil-  ip delegou a tarefa de tratar do assunto. E com que intenso al¡vio! Ficara  realmente apavorado ... idia do encontro com Gladys. Willie, pelo  contr rio, parecia divertir-se com a coisa.

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 "Meu caro Philip ", escreveu le.

 "Tenho feito o poss¡vel em prol do Autor de teus dias; mas mesmo sse

  poss¡vel promete ser um tanto caro, apesar dos pesares. A dama tem to-  dos os seducentes encantos da juventude (s¢ a etiquta proji'ssional impe-  diu que eu tentasse por conta pr¢pria uma pequena superfetaão brinca-  lhona); mas  tambm mulher de neg¢cios. Ademais, seus sentimentos  com relaão a teu Velho P. estão saturados de fer¢cia. Vejo-me  compelido a confessar, ap¢s o que dela ouvi, que lhes achojustia. Sabes  onde le d de comer ...s suas beldades? Chez Lyons. O homem deve ser  um louco barmcida*, conforme expliquei ... jovem dama depois que ela  me descreveu esta particularidade. (Desnecess rio ser dizer que a cria-  tura não compreendeu o aticismo da imagem; de sorte que eu te ofereo  esta, ... base de uma comissão de 5 por cento s"bre todos os direitos de au-  tor correspondentes ...s vendas de qualquer obra ou obras na qual ou tias 

* A lusão aos Barmcidas, fam¡lia de pr¡ncipes persas que reinou em Bagd . Um d. de  acârdo com um conto das Mil e uma Noites, convidou certa vez um mendigo para uni ban-  quete em que So eram servidos praios vazios, com iguarias imagin rias. (N. do T.)

quais queiras introduzir a supradita imagem) Dize a teu Venerando que,  p ima vez, procure gastar um poucochinho mais nos seus entreteni  mentos; ser prov...velmente mais econ"mico, nofinal de contas. Aconse-  lha-o a satisfazer a gula ao mesmo passo que a lubricidade; pede-lhe que  refreie a economia e a temperana. Rei de voltar ao ataque amanhã, espe-  rando poderformular, prto no branco, os trmos do tratado de paz. Sin-  to muito em saber que tuaprogenitura não vai bem. 

da r¢x

  "Teu W. W. " 

Philip sorriu ao ler aquela carta e pensou: "Graas a Deus, o caso est 

ajustado". Mas a £ltima frase lhe deu vergonha da sua satisfaão e da sua  sensaão de al¡vio. "Que ego¡smo incomensur vel!", pensou le numa  autocensura. E, como para se penitenc¡ar, subiu coxeando at o quarto do  doente e sentou-se por um instante ao lado de Elinor. O pequeno Phil ja~  zia num estado de estupor. Seu rosto estava quase irreconhecivelmente  descarnado e sumido, o lado paralisado retorcia-se numa espcie de esgar  assimtrico. Suas mãozinhas crispavam-se continuamente, agarrando as  cobertas da cama. Respirava ora muito depressa, ora com tanta lentidão

  que levava a indagar se respirava ainda.  A enfermeira tinha ido dar um cochilo; porque suas noites eram passa-  das metade em claro. Os pais se deixaram ficar ali sentados em silncio.  Philip tomou da mão da mulher e a reteve na sua. Medido por aquela leve  respiraão irregular que vinha do leito, o tempo passava lentamente.  No jardim, John Bidlake pintava - a mulher conseguira enfim que le  fizesse uma experincia - pela primeira vez depois de sua chegada a  Gattenden. E pela primeira vez, esquecendo-se de si mesmo e de sua  molstia, o pintor se sentia feliz. "Que encantamento!", pensava le. A

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  paisagem era t¢da curva, bojos e concavidades arredondados, como um  corpo humano. O orbismo, bom Deus, o orbismo! As nuvens eram  traseiros de querubins; aquela colina lisa era um ventre glauco de nereida;  a "Poncheira" de Gattenden era um enorme umbigo; cada um daqueles  elmos no plano mdio era um grande Sileno panudo, recm-sa¡do dum  Jordaens; e aquelas absurdas moitas arredondadas de sempre-verdes no  primeiro plano eram as ttas m£ltiplas duma Diana verde de fieso. Pos-  tas inteiras de anatomia em folhagem, em bruma e em terra t£rgida.  Maravilhoso! E, santo Deus, o que se podia tirar daquilo! Aquelas  n degas de serafins deviam ser os reflexos celestes das ttas de Diana; um  s¢ tema ¢rbico, com variaões; as n degas inclinadas para o lado de fora,  atravessando obliquamente a tela na direão da superficie do quadro; os  seios, inclinados para o centro e obliquando rumo do interior. E o ventre  polido seria uma reconciliaão transversal e horizontal dos dois movi-  mentos diagonais, com os grandes Silenos, dispostos diante dle num  ziguezague leve. E no primeiro plano, ... esquerda, ficaria o cont"rno  silhuetado da wellingt"nia, transplantada para aqule lugar pela imagi- 

i# 

naão, a fim de fazer cessar os movimentos e impedi-los de correr para  fora da tela; e o grifo de pedra estaria muito bem ... direita - porque  aquela era uma coniposião fechada, um pequeno universo, com limites  alm dos quais a imaginaão não tinha permissão de se aventurar. E o  "lho devia conte-~npl -la como que atravs dum t£nel imagin rio, sem  poder se afastar do ponto focal, centro do vasto umbigo da "Poncheira"  de Gattenden, em târno da qual todos os outros fragmentos de anatomia  divina seriam harmoniosamente agrupados. - Por Deus! - disse John  BidIake de si para si, blasfemando em voz alta de pura satisfaão espiri-  tual. - Por Deus! - E se pos a pintar com uma espcie de f£ria.

  Errando pelojardim, na sua cruzada sem fim contra as ervas daninhas,  a Sra. Bidlake parou um instante atr s dle e olhou por cima de seu  ombro.  - Admir vel - disse ela; e ste coment rio se aplicava tanto ... ativi-  dade mesma do marido como a seus resultados pict¢ricos.  Afastou-se e, tendo arrancado um dente-de-leão, deteve-se e p"s-se,  com os olhos fechados, a repetir o seu nome: - Janet Bidlake, Janet  Bidlake, Janet Bidlake - indefinidamente, at que as s¡labas tivessem  perdido t"da significaão para ela -- se tornassem tão misteriosas, tão  vazias de sentido e tão arbitrarias como as palavras do sortilgio dum  necromante ... Abracadabra, Janet Bidlake - seria ela realmente? Ela  existia mesmo? e as rvores? e as pessoas? aqule momento e o passado?

  e tudo ... ?  Entrementes, no quarto do menino, havia acontecido uma coisa  extraordin ria. De repente, sem aviso prvio, o pequeno Phil abriu os  olhos e olhou em târno. Seu olhar encontrou o da mãe.Tanto quanto lhe  permitia o rosto retorcido, o menino sorriu.  - Mas le enxerga! - gritou Elinor. E, ajoelhando-se ao p do leito,  envolveu o filho com os braos e comeou a beij -lo com um amor que  era avivado por um acesso de gratidão apaixonada. Ap¢s tantos dias de  estrabismo cego, ela lhe ficava reconhecida, profundamente reconhecida,  por aqule olhar de inteligncia, que tinha respondido ao seu, por aquela

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  pobre tentativa crispada de sorriso. -- Meu querido! - repetia Elinor; e,  pela primeira vez depois de muitos dias, desatou a chorar. Voltou o rosto,  a fim de que o Filho não lhe visse as l grimas, ergueu-se e afastou-se da  cama. - Que tolice, a minha! - disse ao marido ... guisa de desculpa,  enquanto enxugava os olhos. - Mas não posso evitar ...  - Estou com fome - falou de s£bito o pequeno Phil.  Elinor de n¢vo se ajoelhou ao p do leito.  - Que  que queres comer, meu querido?  Mas o pequeno não ouviu a pergunta.  - Estou com fome repetiu.  - Est surdo ainda disse Philip.  - Mas enxerga, fala! - Elinor tinha o rosto transfigurado. Estivera 

429# 

 

convencida todo o tempo, a despeito de tudo, de que era imposs¡vel que o

  filho não sarasse. Absolutamente imposs¡vel. E agora iam ver que ela ti-  nh a razão. . . - Fica quietinho. Vou correndo buscar um pouco de leite.  E precipitou-se para fora do quarto.  Philip ficou ao lado da cama. Acariciou a mão do Filho e sorriu. O  menino sorriu em retribuião. E o novelista comeava a crer tambm que  se podia produzir um milagre.  - Desenha pra mim alguma coisa pediu o pequeno.  Philip tirou a caneta-tinteiro do b61so e, nas costas duma carta velha,  rabiscou uma dessas paisagens cheias de elefantes e de dirig¡veis, de trens,  de porcos que voam e de barcos a vapor - coisas pelas quais olilho ti-  nha um fraco particular. Um elefante colidiu com um trem. Dbilmente,

  mas com uma alegria manifesta, o pequeno Phil co¡neou a rir. Não po-  dia haver d£vida; o milagre se tinha efetivamente operado.  Elinor voltou com leite e um prato de gelia. Tinha as faces rosadas,os  olhos lhe brilhavam, e o rosto, que durante os £ltimos dias andara sempre  contra¡do numa expressão fixa de rigidez, havia recobrado num momento  t"da a sua mobilidade de expressão. Dir-se^ia que ela acabava de ressus-  citar. 

- Vem olhar os elefantes - disse o pequeno Ph¡l. - Tão engraado!  - E entre cada gole de leite, cada colherada de gelia, Philip tinha de  mostrar-lhe as £ltimas adiões ... sua paisagem povoad¡ssima: baleias no  mar, mergulhadores beliscados por lagostas, dois submarinos em comba-

  te e um hipop¢tamo num balão; um vulcão em erupão, canhões., um fa-  rol e todo um exrcito de porcos.  -- Por que não dizes nada? - perguntou s£bitamente o pequeno.  Marido e mulher se entreolharam.  - Òle não nos pode ouvir - disse Philip.  A expressão de flicidadede Elinor senublou por um instante.  -- Talvez ainanhã - disse ela. -- Se a cegueira desapareceu hoje, por  que não h de desaparecer tambm a surdez amanhã?~  - Por que estão cochichando? - perguntou o pequeno.  A £nica resposta que Elinor p"de dar foi beij -lo e acariciar-lhe a testa.

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  - Não devemos cans -lo -- disse por fim Elinor. - Acho bom le  dormir.  Bateu no travesseiro do doente, alisou as cobertas e inclinou-se s"bre  le.  - At logo, meu queridinho!  O pequeno Phil pâde responder pelo menos ao seu sorriso.  Elinor puxou as cortinas e sa¡ram, ambos nas pontas dos ps. No corre-  dor ela se voltou e esperou que o marido viesse. Philip enlaou-a com o  brao e Elinor se encostou nle, soltando um grande suspiro.  - Eu estava comeando a ficar com mcio - confessou - de que o  pesadelo durasse para sempre. At o fim.  430 # 

Naquele dia o lanche foi como um festival de ressurreião, um sacra-  mento da P scoa. Elinor tinha degelado, era de n"vo uma mulher de car-  ne e não de pedra. E a pobre Srta. Fulkes, em quem os sintomas de abati-  mento tinham sido idnticos aos de um mui violento resfriado acompa-  nhado duma erupão de espinhas, retomou uma aparncia quase humana  e foi movida a um riso histrico pelas brincadeiras e anedotas do tambm

  ressuscitado John B¡dlake. O velho entrara esfregando as mãos.  - Que paisagem! - exclamou le, sentando-se ... mesa. - Tão sucu-  lenta, tão sumarenta - não sei se compreendem o que quero dizer -, tão  carnuda. . . não h outra palavra. S¢ de olhar nos vem gua ... b"ca.   talvez por isso que trago uma fome de lâbo.  - Aqui est o teu caldo -- disse-lhe a mulher.  - Mas não podes esperar que eu pinte t¢da a manhã ingerindo apenas  estas guas de lavagem . . . - E, a despeito dos protestos, o pintor insis-  tiu em comer um pedao de carne.  A not¡cia de que o pequeno Phil ia melhor aumentou-lhe a satisfaão.  (John Bidlake tocou em madeira trs vzes, com as duas mãos ao mesmo  tempo.) De resto, para falar a verdade, le gostava muito do neto.

  Comeou a conversar, e foi o velho Bidiake gargantuesco quem falou. A  Srta. Fulkes riu tão violentamente de uma das anedotas s¢bre Whistler  que se engasgou e foi obrigada a esconder o rosto no guardanapo. At na  vaga benevolncia do sorriso da Sra. Bidlake havia a sugestão de qual-  quer coisa que se assemelhava ... hilaridade.  Perto das trs horas John Bidlake comeou a sentir um mal-estar que  lhe era familiar, mas que se tornava de momento para momento mais agu-  do, na região do diafragma. Foi sacudido de soluos espasm¢dicos. Ten-  tou continuar seu quadro; mas todo o prazer que le tinha sentido no tra-  balho se evaporara. As ttas de Diana e os traseiros de anjos tinham  perdido todo o encanto para le. "Uma ligeira obstruão no piloro. . . "  As frases mdicas de Sir Herbert lhe voltaram ... mem¢ria. "O conte£do  do estâmago ... Uma certa dificuldade em passar para o duodeno. . . "

  Depois de um soluo mais violento que os outros, le largou dos pincis  e tornou a entrar em casa para se deitar.  -- Onde est papai? -- perguntou Elinor quando desceu para o ch .  A Sra. Bidlake sacudiu a cabea.  - Òle não est se sentindo muito bem outra vez.  - Oh!  Houve um silncio e foi como se, de repente, a morte se achasse ali no  quarto com les. Mas, no fim de contas, refletiu Elinor, le era velho;  aquilo era inevit vel. O pai podia estar pior, mas o pequeno Phil estava  melhor; e era isso a £nica coisa que importava verdadeiramente.

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  Comeou a falar com a mãe a respeito do jardim. Philip acendeu um  cigarro.  Bateram ... porta. Era a criada de quarto, que vinha da parte da enfer 

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meira; que o senhor e a senhora fizessem o favor de subir imediatamente.  As convulsões tinham sido muito violentas; o corpo gasto se encon-  trava sem f"ras. Quando les entraram na nursery o pequeno Phil estava  morto. 

CAPITULO XXXVI 

O "Mistrio Webley", como os jornais o batizaram sem perder um  momento, era completo. Não havia nenhum ind¡cio. Na sede dos Inglses  Livres ningum sabia nada. Webley tinha sa¡do ... hora habitual, tinha  tomado seu meio de locomoão habitual. Como não tinha o costume de  falar aos subordinados s¢bre os seus assuntos pessoais, não dissera a nin-  gum aonde ia. E, fora do escrit¢rio, ningum tinha observado o carro a  partir do momento em que Webley despachara o chofer at aqule em que  o agente de pol¡cia de Saint-James Square comeara a perguntar consigo,

  l pela meia-noite, quanto tempo ainda o autom¢vel ia ficar estacionado  ali. Ningum tinha notado o ve¡culo quando le parou naquele ponto, nin-  gum tinha observado o condutor quando ste deixou o carro. As £nicas  impressões digitais s¢bre o esmalte da carroceria e no volante eram as do  morto. A pessoa que tinha conduzido o ve¡culo depois do crime trazia  evidentemente luvas. Não, não havia nenhum ind¡cio. Faltavam ind¡cios  diretos. A pol¡cia fazia o que podia com os indiretos. O fato de não ter  havido roubo parecia indicar manifestamente o m¢vel pol¡tico (to crime.  Nos arquivos dos Inglses Livres conservava-se t"da uma coleão de car-  tas ameaadoras. Webley recebia duas ou trs por semana. *'São a minha  leitura favorita. . . ", gostava le de dizer. Procuraram-se os autores. Dois  judeus russos de Houridsditch~ um datil¢grafo de Nottingham e um jovem

  e ardente estudante de Balliol foram ider¡tificados como autores das car-  tas mais ameaadoras, e presos, mas as prisões tiveram de ser relaxadas  quase imediatamente. Os dias passaram. Os assassinos permaneciam em  liberdade. Não se permitiu que o intersse p£blico em t¢rno do crime  diminu¡sse. A imprensa conservadora afirmava abertamente que e  govrno liberal-trabalhista tinha dado instruões ... pol¡cia para que o ca-  so não f"sse examinado demasiadamente de perto. "ACOBERTA.NDO  OS ASSASSINOS." "OS SOCIALISTAS TEMEM A LUZ." ---A  POLÖTICA DIANTE DOS DEZ MANDAMENTOS." Os cabealhos  eram fortes, vivos. Aqule crime era uma d diva do cu para a oposião.  O Daily Mail ofereceu uma recompensa de 10 O00 libras a quem desse  informaões que levassem ... prisão dos assassinos de Webley. Enquanto  isso, os Inglses Livres viam o seu efetivo quase duplicado numa semana.

  "ESTAIS DO LADO DO ASSASSÖNIO? SE NÇO FSTAIS, ADERI  AOS INGLÒSES LIVRES", berravam os cartazes em todos os tapumes  de construão. Tropas de Inglses Livres, uniformizadas ou em traje civil, 

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percorriam as ruas de Londres, recrutando. fazendo demonstraões

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  patri¢ticas e trabalho de detetives amadores. Aproveitaram tambm a  oportunidade para espancar um certo n£mero de pessoas de cujas  opiniões discordavam. Em Tottenham e em East Ham travaram batalhas  caniriais com mulii(l¢es hostis e feriram numerosos agentes de pol¡cia.  Nas exquias de Everard Webley, uma procissão verde de 5 quilmetros  de comprimento seguiu o esquife at a sepultura.  Spandrell lia todos os jornais, t"das as manhãs. Os di rios o divertiam.  Que farsa! Que comdia de pancadaria! Que idiotice incompar vel! Man-  dou a Ill¡dge, que tinha ido passai algum tempo com sua mãe,em Lanca-  shire, um cartão postal ilustrado em que se via Everard fardado em cima  de seu cavalo branco; as lojas estavam cheias de cartões idnticos; vende-  dores ambulantes ofereciam~nos nas ruas.  "O leão morto est com jeito de causar mais danos do que o cão vivo",  escreveu le nas costas do cartão. "Deus sempre foi um brincalhão."  A melhor brincadeira de Deus, na sua opinião pessoal, era a de não  existir. Simplesmente não existir ... Nem Deus nem o Diabo. Porque, se  o Diabo existisse, Deus tambm existiria. A £nica coisa que existia era a  recordaão de uma estupidez s¢rdida e repugnante, e agora uma  formid vel comdia de pancadaria. A princ¡pio, uma coisa para a lata do  lixo, e depois uma farsa. Mas talvez o Diabo fâsse na verdade aquilo mes-  mo: o esp¡rito das latas de lixo. E Deus? Deus, naquele caso, seria  simplesmente,a ausncia de latas de lixo.  11 Deus não est ... parte, não est acima, não est fora." Sparidrell se

  lembrou de que Rampion tinha dito isso um dia. "Pelo menos nenhum  aspecto humanamente importante ou conseqente de Deus est acima ou  fora de n¢s. Deus não est tambm dentro de n¢s, no sentido que os  protestantes atribuem a essa expressão -- escondido em lugar seguro na  nossa imaginaão, nos noss~os sentimentos e no nosso intelecto, na nossa  alma. Deus est em n¢s, naturalmente, como est em muitos outros luga-  res. Mas le est em n¢s no mesmo sentido que um pedao de pão est em  n¢s quando o comemos. Deus est no nosso corpo mesmo, no nosso san-  gue e nos nossos intestinos, no nosso coraão, na nossa pele, nos nossos  rins. Deus  a rcsultante total, espiritual e r¡sica de todo pensamento, de  t"da aão que signifique vida, de t"da relaão vital com o mundo. Deus   uma qualidade de nossas aões e de nossas relaões, uma qualidade sen-  tida, experimentada. Pelo menos le  isso em tudo o que nos diz respeito,

  a n¢s e ...s nossas vidas. Porque, naturalmente, no que diz respeito ... sabe-  doria e ... especulaão, le pode ser do mesmo modo d£zias de outras coi-  sas. Pode ser uma Rocha das Idades; pode ser o Jeov do Velho Testa-  mento, pode ser tudo o que se quiser. Mas que relaão tem le conosco,  sres vivos corporais? Nenhuma - pelo menos nenhuma que não seja  prejudicial. Desde o instante em que permitimos que a verdade 

434 

especulativa tomasse, como guia da vida., o lugar da verdade  instintivamente sentida. condenamos t"das as coisas ... ru¡na.5'  Spandrell lanara o seu protesto. Os homens devem ter absolutos, de-

  vem ter, para sua orientaão, sinais exteriores fixos. "A m£sica existe",  dissera le em conclusão, "ainda que voc pessoalmente não tenha ouvido# 

musical. Somos obrigados a admitir a existncia dela, duma maneira  absoluta, distinta da nossa capacidade pessoal de escut -la e apreci ~la."  "Especulativamente, te¢ricamente,  assim. Aceita-o at o ponto que te

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  aprouver. Mas não permitas que o teu conhecimento te¢rico influencie a  tua vida pr tica. Duma maneira abstrata sabes que a m£sica existe, e que   bela; mas não partas da¡ para fingir, ao escutar Mozart, que est s num  arrebatamento que não sentes. Se procedes assim, transformas-te num  dsses esnobes musicais idiotas que se encontram na casa de Lady  Edward Tantamourit. Incapazes de distinguir Bach de Wagner, mas  babando-se de xtase quando os violinos se fazem ouvir. O mesmo se pas-  sa exatamente com Deus. O mundo est cheio de esnobes religiosos  perfeitamente rid¡culos. Pessoas que não estão verdadeiramente vivas,  que nunca praticaram um ato verdadeiramente vital, que não tm relaão  viva com coisa alguma; criaturas que não tm o menor conhecimento pes-  soal ou pr tico do que  Deus. Mas andam pelas igrejas, rosnam as suas  oraoes, pervertem e destroem a totalidade de sua existncia sem brilho,  agindo de ac¢rdo com a vontade duma abstraão arbitr...riamente imagi-  nada a que resolveram dar o nome de Deus. Òstes são tão grotescos e  desprez¡veis como os esnobes musicais da casa de Lady Edward. Mas  ningum tem o bom senso de lhes dizer isso. Os esnobes de Deus são  admirados porque são tão bons, tão piedosos, tão cristãos ... No  entanto, não passam de criaturas mortas, simplesmente mortas.  Mereciam levar uns bons pontaps no traseiro e uns puxões de orelhas,  para se alertarem e voltarem ... vida."  Spandrell relembrava agora o di logo, enquanto escrevia o endero no  cartão postal que ia mandar a Illidge. Deus não existia, o Diabo não exis-  tia; o que havia era apenas a recordaão de uma farsa miser vel no meio

  de latas de lixo, de um epis¢dio das infectas atividades dum escaravelho  bosteiro. Um esnobe de Deus - eis como Rampion lhe chamaria ... Um  homem que se portava como um escaravelho bosteiro, ... procura dum  Deus que não existia. Mas não, não, Deus existia exteriormente, absoluto.  Sem isso, como explicar a providncia e o destino? Deus existia, mas  escondido. Escondia-se de prop¢sito. Tratava-se Ömicamente de f"r -lo a  sair de seu covil, de seu covil abstrato e absoluto, de compeli-lo a encar-  nar-se como uma qualidade sentida e experimentada das aões pessoais  Era o caso de arranc -lo violentamente do "fora" e do "acima" e traz-lo  para "dentro". Mas Deus era um pilhrico. Spandrell o havia conjurado  com violncia a aparecer; e do vapor sangrento do sacrif¡cio, m gica- 

43-5# 

mente, tinha sa¡do apenas uma lata de lixo. Mas o malgro mesmo da  encantaão havia sido uma prova de que Deus l estava, ele que Deus  existia,fora. Nada acontece a um homem que não seja semelhante a sse  homem. Lata de lixo para lata de lixo; estrume para estrume. Òle f¢ra mal  sucedido no tentar fazer que Deus passasse de fora paxa dentro. Mas o  aparecimento da lata de lixo confirmara a realidade de Deus como uma  providncia; de Deus conio um destino; de Deus como dispensador ou  como detentor avarento da graa; de Deus como salvador ou destruidor

  predestinado. A sua sorte predestinada tinha sido aquela - latas de  lixo... Dando-lhe latas de lixo mais uma vez ainda, o galhofeiro  providencial se mostrava apenas coerente consigo mesmo.  Um dia, na London Library, Spandrell encontrou Philip Quarles.  - Senti muito ao saber da noticia a respeito de teu filho -- disse le.  Phili p resmungou algumas palavras, dando a impressão de que sentia um  leve mal-estar, como um homem que se acha metido numa situaão  embaraosa. Era-lhe intoler yel que um terceiro se inclinasse s¢bre sua  dor - dor pessoal, secreta, sagrada. Era-lhe doloroso exp"-la. Dava-lhe

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  vergonha.  - Foi um horror particularmente gratuito - comentou le, para le-  var a conversaão, do que ela tinha de particular e de pessoal, para o  dom¡nio do geral.  - Todos os horrores são gratuitos -- volveu Spandreli. - E Elinor,  como vai suportando o golpe?  A pergunta era direta, Philip tinha de lhe dar resposta.  - Mal - disse sacudindo a cabea. - Est profundamente abatida.  Por que, refletiu le, por que a sua voz tinha um som tão irreal e, de certo  modo tão vazio?  - Que vais fazer agora?  - Partimos para o estrangeiro dentro de alguns dias, se Elinor se jul-  lar capaz de suportar a viagem. Pensei em Siena. E depois iremos talvez  para a beira do mar, em qualquer parte da Maremma. - Era-lhe um  al¡vio poder entrar assim nesses detalhes geogr ficos.  - Renunciaste definitivamente a esta vida domstica inglsa, hein?--  disse Spandrell ao cabo de pequeno silncio.  - A razão de ser disso j desapareceu.  Spandrell sacudiu lentamente a cabea.  -- Lembras-te da conversaão que tivemos no clube, com Illidge e  Walter Bidlake? Nunca acontece nada a um homem que não seja seme-  lhante a sse homem. Morar no campo, na Inglaterra - não era coisa  que se parecesse contigo. Não se realizou. Foi impedida. Com que cruel-

  dade, santo Deus! Mas a providncia lana mão de todos os meios, tanto  dos justos como dos injustos ... Viajar, não se fixarde maneira estabele-  cida, ser espectador - eis a tua feião. E s constrangido a agir ... tua 

436 

semelhana. - Houve um silncio. -- E viver numa espcie de monturo  - acrescentou Spandrell -, eis o meu gnero. Por mais que faa, por  mais que tente fugir, continuo sempre no monturo. Acho que sempre hei  de continuar ...  Sim, sempre, continuou le a pensar. Tinha jogado a £ltima cartada e# 

perdera. Não, não f"ra a £ltima cartada; porque havia ainda uma  outra ... F"ra a pen£ltima. Perderia tanibm a derradeira? 

417# 

dk 

- A m quina não ... mas eu sim ... Talvez j me tenha ido depois

  de amanhã... vais?

 CAPITULO XXXVII

 Spandrell insistiu muit¡ssimo para que les f"ssem ... sua casa sem

  -demora. O Hediger Dankgesang eines Genesenen an die Gottheit, in der  lydischen Tonart* simplesmente não podia deixar de ser ouvido. ,  - Não se pode compreender coisa alguma antes de o ter ouvido -

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  declarou Maurice. - le prova tâdas as espcies de coisas - Deus, a al-  ma, a bondade -, e de maneira irrefut vel.  a £nica prova verdadeira  que existe; a £nica, porque Beethoven foi o £nico homem que soube dar  expressão ao seu conhecimento. Vocs tm mesmo de ir.  -- De muito boa vontade - disse Rampion---, mas ...  Spandrell lhe cortou a palavra.  - Ouvi dizer ontem, por acaso, que o Quarteto em L Menor existia  em gravaão. Fui correndo comprar um aparelho e os discos, expressa-  mente para voc.  Para mim? Mas por que essa generosidade?  Não  generosidade - respondeu Spandrell rindo. -  ego¡smo.  Quero que vocs ouam, e que confirmem. a minha opiniãd.  - Mas porqu?  - Porque tenho confiana em vocs e, se vocs confirmarem, hei de  ter confiana em mim mesmo.  - Que homem! - zombou Rampion. - Tu devias entrar na Igreja  de Roma e tomar um confessor.  - Mas vocs não podem deixar de ir!  Spandrell falava com um ardor srio.  Mas não agora -- disse Mary.  Não hoje - repetiu o marido, perguntando a si mesmo, enquanto  falava, por que Spandrell mostrava uma insistncia tão estranha. Que  havia, pois? Aquela maneira de se mover e de falar, aqule olhar, aquela  excitaão. . . - Tenho in£meras coisas a fazer esta tarde.

  - Amanhã, então.  "Parece que est embriagado", pensava Rampion.  - Por que não depois de amanhã? - disse depois, em voz alta.  Seria muito mais f cil para mim. E a m quina não bater asas at l ...  Spandrell emitiu o seu riso af¢nico. 

* " O Santo Cmico de Agradecimento de um Convalescente ... Divinaaae, em ionali-  dade l¡dia. "(.N. do E.i 

438 

Mas não nos disseste que ias

  viajar - estranhou Mary. - Aonde# 

- Quem sabe? - respondeu Spandrell, rindo de nvo. - Eu s¢ sei  que não estarei mais aqui ...  - Est bem -- disse Rampion, que o havia observado com curiosi-  dade. - Eu vou amanhã.  E continuou a pensar: "Por que estar le tão teatral?"  Spandrell abalou.

  -- Que haver de anormal com le? -- perguntou Rampion quando o  outro desapareceu.  -- Não lhe notei nada de particularmente anormal - respondeu  Mary.  Rampion teve um gesto de impacincia.  - Ora, tu. . . tu não darias nem pelo Juizo Final! Não viste que  Spandrell estava excitado e fazia o poss¡vel para se conter? Como quem  segura a tampa de uma panela de gua em ebulião ... E aquela maneira  melodram tica de rir! Tal qual o c¡nico consciente das peas de teatro ...  - Mas le estava representando? - inquiriu Mary. - Estava a

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  fazer-se de b"bo para nos divertir?  - Não, não. Fazia tudo aquilo com absoluta sinceridade. Mas, quan  do nos achamos na situaão autntica do vilão consciente dum melodra-  ma, acabamos inevit...velmente por nos portar como vilões conscientes.  Representamos um papel, a despeito de n¢s mesmos.  Mas por que fazia le sse papel?  Como diabo queres tu que eu saiba? - disse Rampion com  impacincia. Mary esperava sempre que o marido soubesse tudo, por  alguma intuião misteriosa e m gica. Aquela f que ela tinha em Mark o  divertia e o lisonjeava por vzes, mas noutros momentos tambm o irrita-  va. - Tu me tornas pelo padre confessor de Spandrell?  Não h razão para te zangares ...  Pelo contr rio, não h quase nada que não possa dar motivo ...  c¢lera. Se nos contemos  porque a metade do tempo vivemos de olhos  fechados. meio adormecidos. Se estivssemos sempre acordados, meu  Deus! Não ficaria muita loua intata! - E, dizendo isso, se foi com  dignidade para o seu est£dio.  Deixando Chelsea, Spandrell rumou a p para o lado de leste, ao longo  do Tmisa, caminhando devagar e assobiando para si mesmo, de quando  em quando, as primeiras frases da melodia l¡dia do Heifiger Dankgesang.  E continuava a assobiar mais e mais ... O rio se estendia a perder de vis-  ta, fundindo-se, longe, na bruma sca. A m£sica era como gua numa ter-  ra ressequida. Depois de tantos dias de estiagem, uma fonte, uma verten~

  te! Um carro de irrigaão passou estrondeando, arrastando a cauda de 439

seu aguace,ro artificial. Sentiu-se um cheiro de terra molhada. Aquela  m£sica era uma prova, como le havia dito a Rampion. Na sarjeta, uma  pequena torrente impelia r pido, para o esg¢*o, um inv¢lucro de cigarros  todo amarrotado e um pedao de casca de laranja. Spandrell parou de  assobiar. O horror essencial. . . O mesmo que carregar lixo; era o que  aquilo tinha sido. Uma coisa simplesmente suja e desagrad vel - como

  limpar uma latrina. Uma coisa que não chegava a ser tão terr¡vel quanto  era est£pida, ind esc ritiveim ente est£pida. A m£sica era uma prova: Deus  existia. Mas s¢rriente enquanto os violinos estavam tocando. Uma vez  suspensos os arcos das cordas - que acontecia? O lixo, a estupidez, a  aridez impiedosa!  Em Vauxha11 Bridge Road Spandreli comprou por 1 xelim um mao de  papis de cartas e envelopes. Pelo preo duma taa de caf e dum brioche,  alugou uma mesa numa casa de ch . Escreveu com um t¢co de l pis: "Ao  Secret rio Geral da Confraria dos Inglses Livres. - Senhor, amanhã,  quarta-feira, ...s 5 horas da tarde, o assassino de Everard Webley se  encontrar no n£mero 37 da Catski11 Street, S. W. 7. O apartamento fica  no segundo andar. O homem. prov...velmente vir abrir a porta em pessoa.  Estar armado e disposto a tudo".

  Releu a carta; esta lhe lembrou as comunicaões (escritas com tinta  vermelha, para simular sangue, e sob a influncia das hist¢rias em sries  dos seman rios infantis, Chums e B. O. P.) com as quais, em colaboraão  com o Pokinghorrie Caula, le esperara, ... idade de nove anos, causar  sobressalto e terror ... Srta. Veal, a ec"noma da escol preparat¢ria que  ambos freqentavam então. Tinham sido descobertos e denunciados ao  diretor. O velho Nariguete deu em cada um dles trs varadas nas n de-  gas. "Ele est armado e disposto a tudo." Aquilo era puro Pokinghorne.  Mas, se le não se expressasse assim, os homens de Webley não trariam  rev¢lveres. E, então, a coisa não aconteceria. Nada aconteceria. Que o

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  bilhete fosse assim mesmo ... Spandrell dobrou o papel e p-lo dentro  dum envelope. Havia uma tolice essencial, bem como uma vilania e uma  estupidez essenciais. Rabiscou o endero.  - Bem, c estamos - disse Rampion, quando Spandrell abriu a por-  ta para o casal na tarde do dia seguinte. - Onde est Beethoven? Onde  est a famosa prova da existncia de Deus e da superioridade da moral de  Jesus? 

- Por aqui. . . - Spandrell guiou-os at a sala de estar. O gramo-  fone se achava s¢bre a mesa. Quatro ou cinco discos estavam espalhados  ao lado dle. - Aqui est o in¡cio do movimento lento - continuou  Spandrelt, apanhando um dles. - Não quero aborrecer vocs com o res-  to do quarteto.  magn¡fico. Mas o Heifiger Dankgesang  a parte decisi-  va.. - P"s a m quina em movimento, o disco girou; Spandrell abaixou a  agulha s"bre a superf¡cie estriada. Um violino isolado emitiu uma nota  longa, depois mais outra, uma sexta acima; caiu para a quinta (enquanto 

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o segundo violino comeava onde tinha partido o primeiro), depois saltou  para a oitava, e ficou pendurado nela, suspenso durante dois longos  compassos.# 

Mais de cem anos atr s, Beethoven, surdo como uma porta, tinha ouvi-  do a m£sica imagin ria de instrumentos de corda que exprimiam os seus  pensamentos e sentimentos mais ¡ntimos. Traara sinais com tinta em pa-  pel pautado. Um sculo mais tarde quatro h£ngaros haviarri tocado, dian-  te da reproduão impressa das garatujas de Beethoven, aquela m£sica que  Beethoven nunca ouvira a não ser em imaginaão. Ranhuras em espiral  s"bre uma superficie de goma-laca se lembravam agora do que les  haviam tocado. Aquela mem¢ria artificial girava, uma agulha viajava pe-  las ranhuras e, por entre o chiado leve e os roncos abafados que imitavam  os ru¡dos da surdez mesma de Beethoven, os s¡mbolos percept¡veis das  convicões e emoões de Beethoven vibravam no ar. Lentamente, lenta

  mente, a melodia se desenrolou. As arcaicas harmonias l¡dias ficaram  suspensas no ar. Era uma m£sica sem paixão, transparente, pura e crista  lina, como um mar tropical, como um lago alpino. µgua s"bre a gua,  calma --deslizando s"bre calma; um ac¢rdo de horizontes unidos e de  espaos sem ondulaões; um contraponto de serenidade. E tudo era claro  e brilhante; nada de brumas, nada de crep£sculos vagos. Eira a calma da  contemplaão tranqila e ext tica, e não do torpor e do sorio. Era a sere-  nidade do convalescente que acorda da sua febre e se descobre a renascer  num reino de beleza. Mas a febre era "aquela febre que se chama vida",  e o renascimento não ocorria dentro dste mundo; aquela beleza era  extraterrena; a serenidade convalescente era a paz de Deus. O entre-  laamento de melodias l¡dias era o cu.  Trinta compassos lentos tinham construido o cu, quando o car ter da

  m£sica se modificou de s£bito. Depois de ter sido remotaniente arcaica,  tornou-se moderna. As harmonias l¡dias foram substitu¡das pelas do tom  maior correspondente. O ritmo se fez mais r pido. Uma nova melodia  pulou, saltou - mas por cima das montanhas terrestres, não no meio das  montanhas do para¡so.  - "Neue KraftfiiVend cochichou Spandrefi, lendo a partitura.  Òle est se sentindo mais forte; mas não  j tão celestial.  A nova melodia continuou a saltar durante uns cinqenta compassos e  expirou num chiado. Spandrell ergueu a agulha e fez parar o prato do

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  aparelho.  - O motivo l¡dio comea de n"vo no outro lado - explicou le,  enquanto dava mais corda ao gramofone. - E depois h uim ret"mo da  maneira mais viva em l maior. A partir da¡, a coisa segue no modo l¡dio  at o fim, e vai ficando cada vez mais e mais bonita. Não achas isto  maravilhoso? - Spandrell voltou-separa Rampion. - Nãto  uma pro-  va? 

* "Sentindo novaf¢ra. "(N. do E)# 

Ci outro meneou a cabea.  -- Maravilhoso. Mas a £nia ~:oi~,a que isso prova - pelo menos  segundo percebo -  que os doentes costumam ficar muito fracos.  a  aTte dum homem que perdeu o corpo.  - Mas que descobriu a alma.  - Oh ! eu te garanto que os homens doentes são muito espiritual istas.  Mas isso  porque les não são integralmente homens. Os eurnicos são  amantes muito espirituais pela mesma razão.  - Mas Beethoven não era um etinuco.  - Eu sei. Mas por que então procurou ser eunuco? Por que fez da  castraão e da ausncia do corpo o seu ideal? Que  esta m£sica? Apenas

  um hino de louvor ao eunuquismo. Muito bela, reconheo. Mas le não te-  ria podido escolher alguma coisa mais humana do que a castraão para  celebrar no seu canto?  Spandrell suspirou.  - Para mim  a visão da beatitude,  o cu.  - Não  da terra. Eis precisamente de que me queixo.  - Mas um homem não pode então imaginar o cu, se isso lhe apraz?  perguntou Mary.  - Certamente, desde que não pretenda que sua imaginaão seja a £lti-  ma palavra da verdade, da beleza, da sabedoria, da virtude e de todo o  resto ... Spandrell quer fazer~nos aceitar o euntiquismo incorp¢reo como  £ltima palavra. Não vou nisso. Absolutamente, não vou nisso.  - Escuta então o movimento antes de julgar.

  Spandrell Fez girar o disco e abaixou a agulha. O cu claro da m£sica  l¡dia vibrou no ar.  - Lindo, lindo! - disse Rampion, quando o disco findou. - Tu tens  razão.  realmente o cu;  bem a vida da alma.  a mais perfeita  abstraão da realidade que j encontrei. Mas por que quis le fazer essa  abstraão? Por que não se contentou com ser um homem e não uma alma  abstrata? Por que, por qu? - P"s-se a caminhar dum lado para outro  no quarto. - Essa maldita alma - continuou le -, essa maldita alma  abstrata, dir-se-ia uma espcie de cancro que devora a realidade verda-  deira, humana, natural, um cancro que se alastra sempre e sempre ... custa  dela. Por que não se p"de contentar com a realidade, sse velho imbecil  do teu Beethoven? Por que sentiu a necessidade de substituir a coisa

  verdadeira, quente, natural, por sse cancro abstrato da alma? Pode ser  que o cancro tenha uma forma muito bonita, mas, no fim de contas, com  mil dem"nios! o corpo  mais belo! Não quero saber do teu cancro espiri-  tual. 

- Não discutirei contigo - disse Spandrell. Sentiu-se de repente  extraordin...riamente cansado e deprimido. Sua tentativa falhara. Ram-  pion recusara deixar-se convencer. A prova não era então uma prova, no  fun de contas? Aquela m£sica não se referia então a nada, a nada que 

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estivesse fora dela mesma e das idiossincrasias de wu inventor? SpandreH  o  olhou para o rel¢gio; eram quase 5 horas. - Escuta pelo menos o fim d'# 

movimento - pediu le. -  a parte melhor. - Deu corda ao gramofo-  ne. "Mesmo que isto seja desprovido de significaão", pensou le. "  bonito enquanto dura. E talvez não seja destitu¡do de sentido. No flir. de  contas, Rampion não  infal¡vel." - Escutem ...  A m£sica recomeou. Mas qualquer coisa de n¢vo e de maravilhoso se  havia passado no cu l¡dio. Redobrara a rapidez da melodia lenta; os  contornos se lhe tinham tornado mais n¡tidos e mais definidos; uma parte  interna voltava a repisar com insistncia uma frase palpitante. Dir-se-ia  que o cu se tornara s£bitamente, imposs¡velmente mais celeste, passando  da perfeião realizada para uma perfeião ainda mais profunda e mais  absoluta. A paz inef vel persistia; mas não era a paz da convalescena e  da passividade. Ela vibrava, era viva, parecia crescer e intensificar-se,  transformava-se numa calma ativa, numa serenidade quase apaixonada.  O paradoxo milagroso da vida exterior e do repouso eterno estava  musicalmente realizado.

  Òles escutavam, retendo quase a respiraão. Spandrell contemplou o  seu convidado com um ar de triunfo. Suas d£vidas se haviam dissipado.  Como se podia deixar de crer numa coisa que existia, que existia manifes-  tamente? Mark Rampion inclinou a cabea.  - Sim, quase chegas a me convei)cer - murmurou le. - Mas isto   bom demais ...  - Como pode uma coisa ser boa demais?  - Quando não  humana. Se ela durasse  Morrer¡amos.  Calaram-se de n¢vo. A m£sica continuava, levando dum cu para  outro, da felicidade para a felicidade mais profunda. Spandrell suspiroue  fechou os olhos. Seu rosto estava grave e sereno, como se tivesse sido al

i~  sado pelo sono ou pela morte. "Sim, morto", pensou Rampion, olhando  para le. "Spandrell se recusa a ser homem. Não  um homem, mas sim  um dem"nio ou um anjo morto. Agora est morto." Uma suspeita de  dissonncia nas harmonias l¡dias deu ... beatitude uma nota pungente,  quase insuport vel. Spandreli suspirou de n¢vo. Bateram ... porta. Òle  ergueu os olhos. As rugas de esc rnio lhe voltaram ao rosto, as comissu-  ras de seus l bios mais uma vez se tornaram ir"nicas.  "Pronto, voltou o dem"nio", pensou Rampion. "Spandrell voltou ... vi-  da, e  o dem"nio."  - A¡ estão les! - exclamou Maurice; e, sem responder ... pergunta  de Mary, "Quem?", saiu do compartimento.

  Rampion e a mulher ficaram ao lado do gramofone, escutando a reve-  laão do cu ... Uma explosão ensurdecedora, um grito, outra explosão  e mais outra fizeram s£bitamente em pedaos o para¡so de som.  Ambos se ergueram num pincho e se precipitaram para a porta. No 

¡amos de ser homens.  cessar 

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corredor, trs homens vestidos com o uniforme verde dos Inglses Livres  contemplavam o corpo de Spandrell quejazia por terra. Cada um dles ti-  nha um rev¢lver na mão. Um quarto rev¢lver se -achava s"bre o soalho,  ao lado do moribundo. Via-se um buraco no lado do crnio de Spandrell  e uma mancha de sangue na camisa. Suas mãos abriam-se e fechavam-se,  abriam-se e fechavam-se de n¢vo, arranhando as t buas do soalho.  - Que foi que. . . - comeou Rampion.  - Foi le que atirou primeiro - interrompeu~o um dos homens.  Houve um pequeno silncio. Pela porta aberta chegava o som da m£si-  ca. A paixão tinha comeado a se evaporar da melodia celestial. O cu,  naquelas notas prolongadas e puras, voltou a ser o lugar do repouso abso-  luto, da convalescena calma e feliz. Notas longas, um acorde, repetido,  prolongado, brilhante e puro, suspenso, flutuante, voando sem esf¢ro, al-  to, muito alto, infinitamente ... Depois, de s£bito, se acabou a m£sica; fi-  cou apenas o arranhar da agulha s"bre o disco que girava. 

A tarde estava bonita. Burlap caminhava para casa. Estava contente  consigo mesmo e com o mundo em geral. "Eu aceito o Universo" - f¢ra  assim que, havia apenas uma hora, le conclu¡ra o seu artigo de fundo pa-  ra a pr¢xima semana. "Eu aceito o Universo." E tinha tâdas as razões pa-  ra aceit -lo. A Sra. Betterton lhe proporcionara excelente lanche e muita

s  palavras lisonjeiras. O Broad Christian ~ Month1y, de Chicago, lhe ofere-  cera 3 O00 d¢lares pelo direito de publicar em suas colunas o seu São  Francisco e a Psique Moderna. Òle respondeu por cabograma, pedindo  3 500. A resposta do Broad Christians chegara aquela tarde; as  condiões tinham sido aceitas. Depois, a proposta das Sociedades ticas  Unidas do Norte da Inglaterra, que o haviam convidado para fazer quatro  conferncias, uma em Manchester, uma em Bradford, uma em Leeds e a  £ltima em Sheff ield. Os honor rios seriam de 15 guinus por conferncia.  Coisa que, para a Inglaterra, não era de todo m . E haveria pouco traba~  lho a fazer. Seria apenas questão de repisar alguns de seus editoriais do  World. Duzentos e quarenta guinus, mais 3 500 d¢lares. Perto de 1000  libras. Fz planos de ir procurar o seu corretor e conversar com le s¢bre

  a situaão e o futuro da borracha. E se colocasse o dinheiro num daqueles  sindicatos de emprgo de capital? Òles davam, de maneira perfeitamente  segura, 6 ou 7 por cento.  Burlap assobiava baixinho enquanto caminhava. A melodia era Nas  Asas da Canão, de Mendelssohn. O Broad Christians e as Sociedades  ticas o haviam tomado espiritualmente musical. Burlap assobiou com  não menor satisfaão ao pensar no segundo triunfo daquele dia. -Tinha-se  desembaraado definitivamente de Ethel Cobbett. Aproveitara o momen-  to prop¡cio. A Srta. Cobbett tinha partido para gozar as suas frias 

anuais.  mais f cil tritar de neg¢cios Jaquela espcie por corres- 

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  pondncia do que cara a---ara. O Sr. Chivers, o diretor comercial, escre-  vera a secretaria uma carta comercial. Por motivos de ordem financeira,  tornava-se necess rio, de maneira urgente, reduzir o pessoal do Literarv  World. Ôle lamentava muito, mas ... De ac"rdo com a lei, a notificaão  com um ms de antecedncia era suficiente. Mas como testemunha do#