Classicos Do Sobrenatural - Varios Autores

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    H.G. Wells - Rudyard Kipling

    Henry James - Edward Bulwer-Lytton

    W.W. Jacobs - Charles Dickens

    Edith Wharton - Bram Stoker

    Joseph Sheridan Le Fanu - M.R. James

    Robert Louis Stevenson - Sir Arthur Conan Doyle

    CLSSICOS DOSOBRENATURAL

    Prefcio, seleo e traduoEnid Abreu Dobrnszky

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    PREFCIO

    Enid Abreu Dobrnszky

    Foi nas trs ltimas dcadas do sculo XVIII que a explorao do sobrenaturaladquiriu os contornos precisos de um novo subgnero literrio: o romance gtico. De seunascimento participaram tanto o conflito entre o iderio racionalista do Iluminismo, deum lado, e as crenas religiosas e supersticiosas, de outro, quanto o aumento dos ndices dealfabetizao, que impulsionou a imprensa peridica e popular, na qual se explorava o

    gosto pelas emoes fortes. Nesse sentido, nada melhor do que as proporcionadas por nar-rativas ambientadas em cenrios sombrios de castelos mal-assombrados, cheios de passa-

    gens secretas, envoltos em brumas e cobertos por um cu tempestuoso. Criou-se um outromundo, no o de uma natureza melhorada, banhado de sol e coberto de flores, mas seunegativo, seu duplo: o Mundo das Trevas, o Outro, habitado por potncias terrveis, ame-aadoras, que, por vezes, encontram fendas pelas quais se insinuam no nosso mundo coti-diano e revelam aos mortais a existncia e a substncia do Mal neles ocultas. Certamenteno foi pequena aqui a contribuio de certos aspectos da primeira fase romntica, sobre-tudo o gosto pelo Sublime, assim como suas exploraes na pintura, com Piranesi (Pri-

    ses imaginrias, 1745), Fuseli (O pesadelo, 1782), Goya (O sono da razoengendra monstros, 1796-98), as vises mticas de William Blake.

    Dentre os pais do novo gnero contam-se principalmente aqueles que lhe deveram afama, como Horace Walpole (O castelo de Otranto, 1764), Ann Radclijfe (Osmistrios de Udolpho, 1794), Matthew Gregory Lewis(Ambrosio, ou o Monge,1796), Charles Robert Maturin (A vingana fatal, 1807) e principalmente MaryWollstonecraft Shelley (Frankenstein, 1818). Mas outros houve que nessa senda seaventuraram esporadicamente, como Walter Scott(The tapestried chamber). E assim

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    sucederam-se novos cultores das trevas, engendrando numerosa prole e novos ramos, comoa histria de mistrio, a histria de detetive. Ramos que se entrelaaram com outros maisantigos e estabelecidos: poemas comoA balada do velho marinheiro, de Coleridge, ou

    os poemas satnicos, na veia byroniana, mostram vestgios identificveis dessa contami-nao. E, para no falar das irms Bront principalmente de Emily a autora deOmorro dos ventos uivantes, em que a unio de erotismo e terror apresentada na sua

    forma mais intensa e elaborada , comparecem at mesmo autores como Jane Austen,

    cujo romance Northanger Abbey (1818) permite uma leitura enviesada, irnica dognero. E o que dizer para abreviar uma lista longa demais, interminvel mesmo

    das modernas histrias em quadrinhos? Batman, de preferncia nas sries desenhadas por

    Frank Miller, ou o da verso cinematogrfica de Tim Burton, primorosamentedark...Mas voltemos ao ncleo do sobrenatural, por assim dizer, literrio. A exploso

    de peridicos na era vitoriana foi acompanhada da rpida ascenso dasghost storiesuma ascenso provavelmente impulsionada pelo vivo interesse suscitado, nos vinte anosanteriores, pelo espiritualismo e pelo mesmerismo, os quais, de um lado, alimentaram acredulidade popular e, de outro, ao provocar esforos em provar a realidade objetiva dos

    fenmenos sobrenaturais, realimentou o gnero, caso, por exemplo, do famoso conto deConan Doyle, O co dos Baskervilles, em que Sherlock Holmes soluciona, com seusmtodos cientficos, um mistrio de origem aparentemente sobrenatural. Uma sntese per-

    feita, essa, de dois opostos: crenas supersticiosas e mtodo indicirio, adequado a um inte-lectual esclarecido. Mas no haveria aqui, tambm, algo de quase sobrenatural num

    personagem que se alimenta como um vampiro dos casos de crime, em suma, do

    mal?

    Mas a ambigidade, a bem dizer, est no cerne do gnero: talvez mais do que qual-quer outro, ele exige asuspenso da descrena. O jogo entre o verdico e o imaginadoou impossvel requer uma adeso incondicional do leitor e, portanto, uma grande mestriana tessitura narrativa, de que poucos so capazes. Uns, mais do que outros. Uns, maisingenuamente, diramos, dispostos a convencer o leitor da veracidade da histria medianterecursos a detalhes factuais e/ou fico de mero coletor de documentos encontrados poracaso. Outros, que preferem sublinhar sua indefinio quanto ao narrado, pontuando-o

    com talvez, parece-me que e expresses semelhantes. Ou seja, a hesitao que consti-

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    iniciando sua carreira de jornalista. Em 1861, tornou-se proprietrio daquele peridico,no qual vrias de suas obras foram publicadas em captulos. Embora tido como um dosmais populares escritores da era vitoriana, no mais to conhecido e lido atualmente,

    no obstante em 1923 o tambm escritor de contos fantsticos M.R. James tenha publi-cado uma coletnea dos contos de Le Fanu, sob o ttulo Madam Crowls ghost andother tales of mistery. A ltima coletnea de contos seus publicada foiCarmilla andother classic tales of mystery (1996), Leonard Wolf (ed.). Obras mais conhecidas:Uncle Silas (1864), uma histria de suspense, eThe house by the churchyard(1863). O Drcula de Bram Stoker, segundo dizem, foi fortemente influenciado peloconto Carmilla, de Le Fanu, do qual existem verses cinematogrficas.1

    Em alguns dos contos de Le Fanu, os acontecimentos estranhos esto envolvidosnuma aura religiosa por vezes anticlericalquase, diramos, um grau zero do gnero.Schalken, o pintorconstitui um dos raros exemplos de sobrenatural com ambientaohistrica e de explorao do tema da abduo, com sugesto adicional de violncia sexual.

    Junto com o An account of some strange disturbances in Aungier Street(1852), umdos seus contos mais conhecidos.

    Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873), de famlia abastada, erudito fre-qentador de crculos literrios foi amigo de Dickens e de Macaulay, iniciou suacarreira literria com a publicao de Ismael: an oriental tale with other poems(1820), que lhe rendeu elogios por parte de Sir Walter Scott. Entre suas obras, alm decontos fantsticos, encontram-se uma histria social da Inglaterra e uma histria de Ate-nas. Foi membro do Parlamento por duas vezes. O romancePelham; or the adventu-res of a gentleman (1828) inaugurou sua carreira de sucesso como escritor de fico.

    Atualmente, mais conhecido como o autor deOs ltimos dias de Pompia (1834).

    1Carmilla foi publicado na coletnea In a glass darkly (1872); o erotismo, principalmentelesbianismo, subjacente histria foi notado por muitos diretores de cinema, entre eles RogerVadim, que dirige a verso cinematogrficaEt mourir de plaisir(1960), com Mel Ferrer, AnnetteVadim e Elsa Martinelli. Outras verses cinematogrficas: Vampyr(1931, dirigido por Carl Dre-yer); Crypt of horror(1964, dirigido por Thomas Miller); The vampir lovers (1970, dirigido porRoy Ward);A filha de Drcula (1972, dirigido por Jesus Franco); Carmilla (srie de TV Showti-

    me's nightmare classics, 1989, dirigido por Gabrielle Beaumont).

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    Aps quase meio sculo de esquecimento, nos anos 1960 comearam a aparecer novasedies das obras de Bulwer-Lytton e biografias suas.

    Assombraes (The haunted and the haunters), publicado inicialmente no

    Blackwoods Magazine (1859), seu conto mais conhecido, um clssico sobre o temada casa mal-assombrada e, ao mesmo tempo, um timo exemplo das tentativas em provara realidade objetiva dos fenmenos sobrenaturais, que mencionamos anteriormenteumaespcie de cruzamento do iderio irracionalista romntico com o iderio cientificista vitori-ano.

    M.R. James (Montague Rhodes James, 1862-1936) foi lingista e erudito bri-lhante, estudou no colgio da elite inglesa, Eton, graduou-se em Cambridge, onde ocupou

    cargo importante, no departamento de arqueologia clssica do museu Fitzwilliam. Seuscontos fantsticos ainda so bastante lidos e apreciados e inspiraram muitos autores mo-dernos do gnero. O livro de recortes do cnego Alberic considerado por muitos o me-lhor deles, um exemplar quase supremo da preocupao com detalhes factuais, nos quaisse espera ancorar mais solidamente a suspenso da descrena. Foi publicado pela primeiravez naNational Review(maro de 1895) e depois na coletneaGhost stories of anantiquary(1904), qual se seguiram:More ghost stories of na antiquary(1911),

    A thin ghost and others (1919) eA warning to the curious (1925). Mais recen-temente publicaram-se selees de seus contos:The ghost stories of M.R. James(1986, Michael Cox [org.]) eGhost stories (1994, Penguin Popular Classics).

    W.W. Jacobs (William Wymark Jacobs, 1863-1943). Funcionrio do Correiobritnico, publicou seus primeiros contos na revista subvencionada por aquele rgo. Ou-tro conhecido cultor do gnero, Jerome K. Jerome, introduziu-o na revistaTo-Day, de

    maior importncia e circulao. Sua ascenso, desde ento, levou-o publicao na presti-giosaThe Strand Magazine, em que tambm colaborava freqentemente Conan Doyle.Apesar de seu sucesso inicial, morreu pobree annimo num asilo londrino. A pata domacaco, seu conto de maior sucessodentre seus admiradores, nada menos do que BioyCasares, publicado inicialmente emThe Lady of the Barge (1902), mescla terrorcom um certo humor. Outra fonte da qual beberam, e bebem talvez, muitos dos mestresatuais...

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    Os autores pertencentes ao cnone da literatura sria dispensam apresentaes.De Charles Dickens merece nota o fato de ter sido ele quem primeiramente farejou a opor-tunidade de lanamentos deghost stories na poca natalina. Quem no se lembra do

    famosssimo e sentimental Um conto de Natal (Christmas Carol), cujas verses,sempre renovadas, nos invadem as telinhas, em dezembro? Tanto Para ser lido com re-servas quanto O sinaleiro foram publicados inicialmente no peridico All the YearRound (ambos em dezembro, respectivamente 1865 e 1866), com olhos nesse mercadosazonal. Dados factuais no tratamento de um escritor estupendo...

    EmNo fim da passagem(publicada inicialmente no Lippincotts Magazine,1890, e depois na coletneaLifes Handicap, 1891) eEles(Traffics and Disco-

    veries, 1904, e depois separadamente, 1910), de Rudyard Kipling, outro vitoriano ilus-tre, muitos leitores reconhecero a mo do autor deO homem que queria ser rei. Dic-kens e Kipling constituem exemplos do tratamento do tema por romancistas mestres eexperientes. J em O quarto vermelho(The Plattner story and others, 1897), deH.G. Wells, um dos criadores da fico cientfica, temos quase uma desconstruodo

    gnero.Outros aspectos menos explorados comumente encontram-se emA coisa verdadei-

    ramente certa, de Henry James, e nos dois contos de Edith Wharton includos nestacoletnea: DepoiseOs olhos. O tema deA deciso correta(emThe soft side,1900) mais propriamente o mesmo que encontramos emO desenho do tapete2oevasivo significado de uma obra literria e, nesse sentido, constitui um contraponto aThe Turn of the Screw, uma narrativa mais convencional no gnero. Edith Wharton,sua discpula sob muitos aspectos, conduz a ambigidade e a sutileza de James a um novo

    patamar, entrelaando-as com os pressupostos e cdigos sociais da aristocracia norte-americana emOs olhose com as ambies e percalos da camada ascendente burguesaemDepois. Ambos os contos fazem parte da coletneaTales of men and ghosts(1910).

    O ladro de corpos, de Robert Louis Stevenson, apareceu no nmero de dezem-bro de 1884 do Pall Mall Magazine e posteriormente no livro Tales and fantasies

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    JAMES, Henry. O desenho do tapete, traduo e apresentao de Ondia Clia Pereira deQueiroz, em H. James,A vida privada e outras histrias, So Paulo: Nova Alexandria, 2002.

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    (1905). A casa do juiz, de Bram Stoker, s foi publicado postumamente, no volumeDraculas guest and other weird stories (1914), organizado por sua viva, Floren-ce Bram Stoker.

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    ASSOMBRAES

    Edward Bulwer-Lytton

    Um amigo meu, homem de letras e filsofo, disse-me um dia, meiozombeteiro, meio srio: Adivinhe! Desde que nos vimos pela ltima vez,descobri uma casa assombrada no meio de Londres.

    Assombrada de verdade? E pelo qu? Fantasmas?Bem, no sei; tudo que sei o seguinte: seis semanas atrs, minha mu-

    lher e eu estvamos procura de um apartamento mobiliado. Ao passar poruma rua tranqila, vimos na janela de uma das casas: Apartamentos mobili-

    ados. O lugar nos convinha; entramos na casa, gostamos dos aposentos,mudamos para eles na semana seguinte... e os abandonamos no terceiro dia.Nada no mundo poderia ter convencido minha mulher a permanecer maistempo; e no me surpreende.

    E o que vocs viram?Perdo; no quero ser ridicularizado como um visionrio supersticio-

    so, nem, por outro lado, poderia pedir-lhe aceitar, sob minha palavra, aquilo

    que voc considerasse inacreditvel a menos que seus sentidos o compro-vassem. A nica coisa que posso lhe dizer que no foi tanto o que vimosou ouvimos (pois voc poderia muito bem imaginar que framos ludibria-dos por nossa prpria imaginao vivida ou vtimas da impostura de ou-trem) que nos expulsou quanto um terror indefinvel que nos tomava sem-pre que passvamos pela porta de um determinado quarto vazio, no qualnada vamos nem ouvamos. E o mais espantoso de tudo foi que, pela pri-

    meira vez em minha vida, concordei com minha mulher, por tola que ela

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    seja, e admiti, aps a terceira noite, ser impossvel ficar mais um dia naquelacasa. Assim, na quarta manh, chamei a mulher que cuidava da casa e nosassistia e disse-lhe que os aposentos no nos serviam e que provavelmente

    no ficaramos ali no restante da semana. Ela disse secamente: Sei por qu:vocs ficaram mais tempo do que os outros inquilinos. Poucos ficam almda segunda noite; ningum antes de vocs ficou at uma terceira. Mas supo-nho que eles foram muito gentis com vocs.

    Eles quem?, perguntei, tentando sorrir.Ora, os que assombram a casa, sejam quem forem. Eles no me in-

    comodam; lembro-me deles h muitos anos, quando morei nesta casa, no

    como criada; mas sei que me mataro algum dia. No me importo. Sou ve-lha e morrerei logo, mesmo; e ento estarei com eles e ainda nesta casa.

    A mulher falava com sombria tranqilidade, mas uma espcie de te-mor me impeliu a interromper a conversao. Paguei a semana de aluguel, eminha mulher e eu nos sentimos afortunados por pagarmos s pela estadia.

    Voc despertou minha curiosidade, disse eu. Nada me agradariamais do que dormir em uma casa assombrada. Por favor, d-me o endereodaquela que voc abandonou to vergonhosamente.

    Meu amigo deu o endereo e, quando nos despedimos, fui imediata-mente para a casa indicada.

    Ela est situada na parte norte da Oxford Street (em uma travessa semmovimento, porm respeitvel). Encontrei a casa fechada, sem nenhum car-taz na janela, e ningum respondeu s minhas batidas na porta. Quando es-

    tava me afastando, um desses meninos que recolhem garrafas nas vizinhan-as disse-me: O senhor quer falar com algum daquela casa?Sim, soube que ela estava para alugar.Alugar! Ora, a mulher que cuidava dela est morta. Morreu h trs

    semanas e no h ningum l, embora o sr. J. a tenha oferecido a tanta gente.Ele ofereceu-a minha me, que lhe traz carvo, na semana passada, apenasem troca de abrir e fechar as janelas, mas ela no quis.

    No quis! E por qu?

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    A casa mal-assombrada; e a velha que cuidava dela foi encontradamorta na cama, com os olhos arregalados. Dizem que o diabo a estrangu-lou.

    Bobagem! Voc falou sobre o sr. J. Ele o dono da casa?.Onde ele mora? Quem ele? O que faz?Nada em particular, senhor; solteiro.Dei ao menino uma gorjeta em paga de suas informaes generosas e

    dirigi-me ao sr. J, na rua G, que ficava perto da rua da famosa casa mal-assombrada. Tive a sorte de encontrar o sr. J. em casa, um homem de idade,

    com uma fisionomia inteligente e maneiras agradveis.Imediatamente disse-lhe meu nome e minha profisso. Contei que ou-

    vira dizer que a casa era assombrada, que queria muito examinar uma casacom uma reputao to estranha, que ficaria imensamente agradecido se mepermitisse alug-la, embora somente por uma noite. Estava disposto a pagaro que ele pedisse por essa concesso. Senhor, disse o sr. J., com grandecortesia, a casa est a sua disposio, pelo tempo, curto ou longo, que osenhor desejar. Alug-la est fora de questo. O favor o senhor quem meprestar, se puder descobrir a causa dos estranhos fenmenos que at agoraa privou de todo o seu valor. No posso alug-la, por que no consigo se-quer um criado para mant-la em ordem ou atender porta. Infelizmente acasa assombrada, se me permite usar essa expresso, no apenas noite,mas tambm de dia, embora noite as perturbaes sejam mais desagrad-

    veis e por vezes mais amedrontadoras. A pobre velha que nela morreu htrs semanas era pobre e eu a tinha tirado de um asilo, pois, em sua infncia,fora conhecida por algum de minha famlia e, em dias melhores, alugaraaquela casa de meu tio. Era bem educada e equilibrada a nica pessoaque pude jamais convencer a ficar na casa. De fato, desde sua morte, que foisbita, e a autpsia, que chamou a ateno nas vizinhanas, perdi de tal mo-do as esperanas de encontrar uma pessoa para tomar conta da casa, e mui-

    to menos um inquilino, que de bom grado a cederia por um ano, sem paga-mento de aluguel, a qualquer um que pagasse seus impostos e taxas.

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    H quanto tempo a casa adquiriu essa caracterstica sinistra?Sei muito pouco sobre isso, mas h muitos anos. A velha senhora de

    quem lhe falei disse que ela era assombrada quando alugou-a trinta ou qua-

    renta anos atrs. Acontece que passei minha vida nas ndias Orientais, comofuncionrio pblico da Companhia. Retornei Inglaterra no ano passado,ao herdar a fortuna de um tio, na qual se inclui a casa em questo. Encon-trei-a lacrada e desabitada. Disseram-me que era mal-assombrada, que nin-gum queria morar nela. No levei a srio uma histria to tola. Gastei al-gum dinheiro em sua recuperao, acrescentei sua moblia antiquada al-gumas peas modernas, anunciei-a e consegui alug-la por um ano. Era um

    coronel aposentado a meio-soldo. Ele entrou com sua famlia, um filho euma filha e quatro ou cinco criados; todos eles deixaram a casa no dia se-guinte, e embora cada um deles declarasse ter visto algo diferente do queassustara os outros, havia algo de igualmente terrvel para todos. No pudeem s conscincia processar, nem mesmo censurar o coronel por sua quebrade contrato. Coloquei ento a velha senhora de quem lhe falei e dei-lhe li-cena para alugar aposentos da casa. Nunca tive um inquilino que ficassemais de trs dias. No lhe conto suas histriasno houve dois inquilinosque tenham presenciado exatamente o mesmo fenmeno. melhor o se-nhor julgar por si mesmo do que entrar na casa com a imaginao influenci-ada por narrativas anteriores; esteja somente preparado para ver e ouvir al-guma coisa e tome as precaues que desejar.

    O senhor nunca teve a curiosidade de passar uma noite naquela ca-

    sa? Tive. Passei no uma noite, mas trs horas em plena luz do dia naque-la casa. Minha curiosidade no est satisfeita, mas reprimida. No tenho ne-nhum desejo de repetir a experincia. O senhor no pode, compreenda,queixar-se de que no sou suficientemente franco; e a menos que seu inte-resse seja extremo e seus nervos excepcionalmente fortes, com toda sinceri-dade aconselho-o a no passar uma noite naquela casa.

    Meu interesse muito grande, disse-lhe eu, e embora somente umcovarde possa vangloriar-se de seus nervos em situaes inteiramente des-

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    conhecidas para si, os meus tm sido temperados em tantos tipos diferentesde perigo que tenho o direito de confiar neles at mesmo em uma casamal-assombrada.

    O sr. J. no disse muito mais; pegou de sua escrivaninha as chaves dacasa, deu-as para mim e eu, agradecendo-lhe vivamente sua franqueza e cor-ts assentimento a meu desejo, fui embora com meu trofu.

    Impaciente por iniciar a experincia, assim que cheguei a minha casachamei meu criado de confianaum jovem de esprito alegre, destemidoe to isento de supersties quanto se possa conceber.

    F., disse eu, voc est lembrado de como ficamos desapontados

    por no encontrar um fantasma naquele velho castelo na Alemanha, quediziam ser assombrado por um fantasma sem cabea? Bem, eu soube deuma casa em Londres que, segundo espero, assombrada de verdade. Pre-tendo dormir l hoje noite. Pelo que ouvi, no h dvida de que algo sefar ver ou ouviralgo, talvez, terrivelmente aterrorizante. Voc no achaque, se eu levar voc comigo, poderei contar com sua presena de esprito,acontea o que for?

    Sem dvida, senhor! Conte comigo, respondeu F., dando um sorri-sinho de prazer.

    Muito bem; ento aqui esto as chaves da casa, e este o endereo.V agora; escolha para mim o quarto que achar melhor; e, uma vez que acasa h semanas permanece desabitada, acenda um bom fogo na lareira, are-je a cama, verifique, claro, se h velas e tambm combustvel. Leve consi-

    go meu revlver e minha adaga so armas suficientes para mim; provi-dencie tambm armas para si. E, se no formos preo para uma dzia defantasmas, seremos apenas uma dupla de ingleses patticos.

    Passei o resto do dia to ocupado em negcios to urgentes que nohouve tempo para pensar muito na aventura noturna na qual empenharaminha honra. Jantei sozinho e muito tarde e, enquanto jantava, li, como dehbito. Selecionei um dos volumes dos Ensaiosde Macaulay. Pensei com

    meus botes que poderia levar o livro comigo; seu estilo to direto e os

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    assuntos to relacionados com o cotidiano que poderia servir como um an-tdoto contra a influncia de fantasias supersticiosas.

    E assim, s nove e trinta da noite, mais ou menos, pus o livro no bolso

    e caminhei despreocupadamente at a casa assombrada. Levei comigo meuco favorito um bull-terrier muito inteligente, corajoso e alerta, um coque gosta muito de farejar cantos e corredores estranhos e obscuros noite,em busca de ratos, enfim, o melhor dos ces para um fantasma.

    Era uma noite de vero, mas muito fria, o cu algo sombrio e toldado.Havia lua, esmaecida e doentia, ainda assim uma lua. E, se as nuvens permi-tissem, aps a meia-noite, ela estaria mais brilhante.

    Cheguei a casa, bati e meu criado abriu-a com um sorriso animado.Est tudo arranjado, senhor, e muito confortvel.Ah!, disse eu, um tanto desapontado; voc no viu ou ouviu nada

    fora do comum?Bem, senhor, devo reconhecer que ouvi algo estranho.O qu? O qu?O som de passos atrs de mim; e uma ou duas vezes rudos curtos

    como sussurros junto ao meu ouvido, nada mais.Voc no est assustado?Eu? Nem um pouco, senhor, e seu olhar corajoso tranqilizou-me

    quanto a um ponto, isto , que, acontecesse o que acontecesse, ele no meabandonaria.

    Estvamos no saguo, a porta de entrada fechou-se e observei ento

    meu co. Inicialmente ele entrara correndo, mas recuara sorrateiramentepara a porta e estava arranhando e gemendo para sair. Aps eu acariciar suacabea e dirigir-lhe palavras de estmulo, o co pareceu resignar-se e acom-panhou-nos pela casa, mas mantendo-se junto a meus calcanhares em vezde correr curioso frente, como era seu hbito usual e normal em todos oslugares estranhos. Percorremos primeiramente os aposentos subterrneos, acozinha e outras dependncias, especialmente a adega, na qual havia duas ou

    trs garrafas de vinho em uma caixa, cobertas de teias de aranha e eviden-temente intocadas h muitos anos. Os fantasmas decididamente no gosta-

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    vam de vinho. Quanto ao resto, nada descobrimos de notvel. Havia umquintalzinho sombrio com muros muito altos. As pedras desse quintal erammuito midas, e em virtude quer da umidade, quer da poeira e da fuligem

    no pavimento, nossos passos deixaram pegadas leves por onde passamos.E ento apareceu o primeiro fenmeno estranho testemunhado por

    mim naquela estranha habitao. Vi, bem minha frente, a impresso de ump como que subitamente formar-se. Parei, segurei meu criado e aponteipara ela. Diante daquela pegada, to subitamente quanto antes, fez-se umaoutra. Ns dois a vimos. Avancei rapidamente para o lugar; a pegada conti-nuava a me anteceder, uma pegada pequena o p de uma criana; a im-

    presso era leve demais para que se pudesse distinguir sua forma, mas a am-bos pareceu-nos que era a impresso de um p descalo. Esse fenmenocessou quando chegamos ao muro oposto, mas no se repetiu ao retornar-mos. Voltamos escada e entramos nos aposentos no andar trreo, umasala de jantar, uma saleta pequena e um terceiro cmodo ainda menor, quefora provavelmente ocupado por um lacaiotodos em um silncio mortal.Ento percorremos as salas de estar, que pareciam ter sido recentementereformadas. Na sala da frente, sentei-me em uma poltrona. F. colocou sobrea mesa o candelabro que acendera para ns. Mandei-o fechar a porta.Quando ele se virou para faz-lo, uma cadeira minha frente moveu-se daparede rpida e ruidosamente e postou-se a cerca de uma jarda de minhaprpria cadeira, de frente para ela.

    Ora, isto melhor do que mesas que viram, disse eu, meio sorrindo;

    e quando ri meu co ergueu a cabea e uivou.F, voltando, no notara o movimento da cadeira. Ele tratava agora deacalmar o co. Continuei a fitar a cadeira e imaginei nela ver, em uma nvoaazulada, o contorno de uma figura humana, mas to vaga que no permitiacerteza. O co agora estava quieto.

    Ponha essa cadeira minha frente, disse eu a F., de volta junto parede.

    F. obedeceu. Foi o senhor?, disse ele, voltando-se abruptamente.Eu o qu?

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    Ora, algo me golpeou. Senti-o nitidamente no ombro, exatamente a-qui.

    No, disse eu. Mas h ilusionistas aqui, e embora no consigamos

    descobrir seus truques, ns os pegaremos antes que nos assustem.No permanecemos muito tempo nas salas de estarna verdade, elas

    eram to midas e geladas que foi um alvio chegar ao aquecido andar supe-rior. Trancamos as portas das salas de estar uma precauo que, devodizer, tnhamos tomado com todos os aposentos que vasculhramos no an-dar abaixo. O quarto de dormir que meu criado escolhera para mim era omelhor, naquele andar um quarto grande, com duas janelas que davam

    para a rua. A cama de dossel, que ocupava um espao considervel, estavaem frente ao fogo, que queimava alto e reluzente; uma porta na parede esquerda, entre a cama e a janela, comunicava-se com o quarto que ele esco-lhera para si. Este era pequeno, com um sof-cama e no tinha nenhumacomunicao com o corredor nenhuma porta seno a que levava aoquarto que eu ocuparia. De cada lado da lareira havia um armrio, sem fe-chaduras, encostado parede e coberto com o mesmo papel de parede mar-rom apagado. Examinamos esses armrios apenas ganchos para pendu-rar vestidos femininos e nada mais; auscultamos as paredes decididamen-te slidasexternas da casa. Terminado o exame desses aposentos, aqueci-me por uns instantes e acendi um charuto; depois, ainda acompanhado porF., dei continuidade vistoria. No corredor, havia uma outra porta; estavaemperrada. Senhor, disse meu criado, surpreso, destranquei esta porta

    juntamente com todas as outras quando vim pela primeira vez; ela no podeter-se trancado por dentro, pois...Antes que ele terminasse a frase, a porta, que nenhum de ns estava

    ento tocando, abriu-se silenciosamente sozinha. Trocamos um olhar porum instante. O mesmo pensamento nos tomou: alguma mo humana podiaser detectada aqui. Precipitei-me porta adentro, seguido de meu criado. Umpequeno quarto sombrio e vazio: poucas caixas e cestos em um canto, uma

    pequena janela com as venezianas fechadas, nem mesmo uma lareira, ne-nhuma outra porta seno aquela pela qual entrramos; nenhum tapete, e o

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    soalho parecia muito velho, irregular e rodo, remendado aqui e ali, como sepodia ver pelos remendos mais claros na madeira; mas nenhum ser vivo enenhum lugar visvel no qual um ser vivo pudesse ter-se escondido. En-

    quanto olhvamos em volta, a porta pela qual entrramos fechou-se to si-lenciosamente quanto se abrira antes: estvamos presos.

    Pela primeira vez senti um arrepio de indefinvel terror. Mas no meucriado. Ora, eles no pretendem nos armar uma cilada, senhor; eu conse-guiria quebrar a porta ordinria com um pontap.

    Tente primeiro abri-la com a mo, disse eu, afastando a vaga apreen-so que me tomara, enquanto abro as venezianas para ver o que h l fora.

    Destranquei as venezianasa janela dava para o quintalzinho descri-to anteriormente; fora no havia nenhuma salincia nada que interrom-pesse o plano vertical da parede. Ningum que sasse por aquela janela en-contraria onde pr os ps: ele cairia nas pedras abaixo.

    F., nesse nterim, tentava em vo abrir a porta. Virou-se ento paramim e pediu-me permisso para usar da fora. E eu devo aqui fazer justiaao criado, que, longe de dar mostras de qualquer terror supersticioso, comsua coragem, equilbrio e at mesmo jovialidade em meio a circunstnciasto extraordinrias, conquistaram minha admirao e me fizeram congratu-lar-me pela segurana de uma companhia to altura da ocasio. Dei-lhe debom grado a permisso solicitada. Porm, no obstante ele fosse extraordi-nariamente forte, sua fora foi to intil quanto seus esforos menos violen-tos; a porta sequer mexeu com seu pontap mais vigoroso. Sem flego e

    ofegante, ele desistiu. Eu ento tambm forcei a porta, igualmente em vo.Quando desisti, fui novamente tomado daquele arrepio de terror; mas destavez mais frio e persistente. Senti como se algo terrvel emanasse das frestasdaquele soalho corrodo e enchesse a atmosfera de uma influncia nefasta ehostil vida humana. A porta ento, muito lenta e silenciosamente, abriu-secomo que por sua prpria vontade. Precipitamo-nos no corredor. Vimosuma luz fraca e volumosa do tamanho de um corpo humano, mas in-

    forme e transparentemover-se nossa frente e subir a escada que levavaao sto. Segui a luz, meu criado acompanhou-me. Ela entrou, direita do

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    corredor, em um pequeno sto, cuja porta estava aberta. Entrei no mesmoinstante. A luz ento se transformou em um pequeno globo, extremamentebrilhante e ntido; pousou por um momento sobre uma cama no canto,

    tremeu e desapareceu.Aproximamo-nos da cama e a examinamosuma cama estreita, co-

    mo as que comumente se encontram em stos reservados aos criados. So-bre a cmoda prxima a ela vimos um xale velho de seda desbotada, com aagulha ainda no remendo inacabado de um rasgo. O xale estava coberto dep; provavelmente pertencera velha senhora que morrera naquela casa, eeste devia ter sido seu quarto de dormir. Tive a curiosidade de abrir as gave-

    tas: havia alguns poucos artigos de roupas femininas e duas cartas amarradascom uma fita estreita de um amarelo desbotado. Tomei a liberdade de pegaras cartas. Nada mais encontramos na sala digno de nota, nem houve outraapario da luz; mas ouvimos distintamente, quando nos viramos para sair,um som de passos apressados no soalho, exatamente nossa frente. Percor-remos os outros stos (eram quatro), com os passos ainda a nos precede-rem. Nada se via, nada havia exceto os passos. As cartas estavam em minhamo; justamente quando eu estava descendo a escada, senti claramente quepegavam meu pulso e um fraco e suave esforo para tiradas de mim. O ni-co gesto que fiz foi apert-las ainda mais, e o esforo cessou.

    Retornamos ao quarto de dormir que me fora destinado, e ento ob-servei que meu co no nos seguira quando dali havamos sado. Ele se pos-tara junto ao fogo, tremendo. Eu estava impaciente para examinar as cartas

    e enquanto as lia meu criado abriu uma pequena caixa na qual depositara asarmas que eu lhe ordenara trazer; tirou-as, colocou-as sobre a mesa junto cabeceira de minha cama e ento ps-se a acalmar o co, que, contudo, pa-receu quase no not-lo.

    As cartas eram curtas e estavam datadas de exatamente trinta e cincoanos atrs. Eram visivelmente de um amante a sua amada, ou de um maridoa uma jovem esposa. No somente os termos, mas uma clara referncia a

    uma viagem anterior indicavam que o escritor fora um homem do mar. Aortografia e a letra eram as de um homem de pouca instruo, mas mesmo

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    assim a linguagem era eloqente. Nas expresses carinhosas havia uma es-pcie de amor rstico, porm ardente; mas aqui e ali se liam aluses sombri-as e vagas de algum segredo no amoroso algum segredo aparentemente

    com relao a um crime. Devemos amar um ao outro, era uma das frasesde que me lembro, porque todos nos censurariam se soubessem de tudo.E tambm: No deixe ningum ficar no mesmo quarto que voc noite

    voc fala durante o sono. Ou: O que est feito est feito; e eu lhe assegu-ro que no existe nada contra ns, a menos que o morto voltasse vida.

    Aqui havia um comentrio em uma caligrafia melhor (feminina): Eles sa-bem! No fim da carta da data mais recente de todas, a mesma caligrafia

    feminina escrevera estas palavras: Desaparecido no mar em 4 de junho, nomesmo dia em que...

    Depus as cartas e comecei a refletir sobre seu teor.Temendo, contudo que o curso de meus pensamentos pudesse abalar

    meus nervos, resolvi firmemente manter meu esprito em um estado maisapropriado para lidar com os fenmenos extraordinrios que a noite aindapoderia trazer. Levantei-me, coloquei as cartas sobre a mesa, aticei o fogo,que ainda estava alto e reconfortante, e abri meu Macaulay. Li bastantetranqilo at s onze e trinta. Ento me atirei vestido na cama e disse a meucriado que ele podia ir para seu quarto, mas permanecer acordado. Pedi-lheque deixasse aberta a porta entre os dois aposentos. Sozinho no quartomantive duas velas acesas sobre a mesa ao lado de minha cabeceira. Colo-quei meu relgio junto s armas e calmamente retomei meu Macaulay. A

    minha frente, o lume estava alto e, no tapete da lareira, provavelmente a-dormecido, jazia o co. Cerca de vinte minutos depois, senti um ar extre-mamente frio passar pelo rosto, como uma brisa sbita. Imaginei que a por-ta minha direita, que dava para o corredor, se abrira; mas no, ela estavafechada. Voltei ento os olhos minha esquerda e vi as chamas das velasbalanarem com fora, como que sob a ao de uma golfada de vento. Nomesmo instante, o relgio ao lado do revlver deslizou suavemente da mesa

    muito lentamente, sem que qualquer mo o tocasse e desapareceu.Pulei da cama, agarrando o revlver com uma mo e o punhal com a outra:

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    eu no estava disposto a deixar que minhas armas tivessem o mesmo desti-no do relgio. Assim armado, olhei o cho em torno: nenhum sinal do rel-gio. Trs batidas lentas e ntidas ouviram-se cabeceira da cama; meu criado

    disse em voz alta: O senhor chamou?No; fique atento.O co ento levantou e sentou-se, movendo rapidamente as orelhas

    para trs e para frente. Ele mantinha os olhos fixos em mim com um olharto estranho que no pude afastar dele os meus. Levantou-se devagar, osplos eriados, e ficou totalmente imvel e com o mesmo olhar fixo e feroz.No tive tempo, contudo, de observar atentamente o co, pois meu criado

    surgiu porta; se vi alguma vez o terror estampado em um rosto humano,foi essa. Eu no o teria reconhecido, caso nos encontrssemos na rua, toalteradas estavam suas feies. Ele passou por mim rapidamente, dizendoem um sussurro que mal me chegou aos ouvidos: Corra, corra! Ele estatrs de mim! Ele ganhou a porta para o corredor, abriu-a e precipitou-sepor ela. Segui-o at o corredor sem pensar, pedindo-lhe que parasse; mas,sem me dar ateno, dirigiu-se escada, agarrando-se ao balastre e pulando

    vrios degraus de cada vez. Ouvi, de onde estava, a porta da rua abrir-se etambm se fechar. Eu estava s na casa assombrada.

    Apenas por um instante fiquei indeciso quanto a seguir ou no meucriado; orgulho e curiosidade, ao mesmo tempo, impediram-me de fugircovardemente. Retornei ao meu quarto, fechando atrs de mim a porta, eexaminei cautelosamente o aposento. Nada encontrei que justificasse o ter-

    ror de meu criado. Examinei-o novamente com todo cuidado, para ver sehavia alguma porta oculta. No encontrei nenhum indcio disso nemmesmo uma costura no papel de parede marrom desbotado com o qual ocmodo estava revestido. Como, ento, a COISA, ou seja l o que fosse,que tanto o assustara, conseguira entrar, exceto pelo meu prprio aposento?

    Retornei ao meu quarto, fechei e tranquei a porta que abria para o inte-rior da casa e postei-me prximo lareira, expectante e alerta. Percebi ento

    que o co se atirara a um ngulo da parede e colara-se a ela, como se esti-vesse se esforando por abrir caminho atravs dela. Aproximei-me dele e

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    dirigi-lhe algumas palavras; o pobre animal estava visivelmente fora de sipelo terror. Ele mostrava todos os seus dentes, a mandbula gotejava saliva ecertamente teria me mordido se eu o tocasse. Ele no pareceu me reconhe-

    cer. Quem quer que tenha visto no jardim zoolgico um coelho fascinadopor uma serpente, agachado em um canto, pode fazer uma idia da angstiaque o co mostrava. Procurando por todos os meios e em vo acalmar oanimal e temendo que sua mordida pudesse ser venenosa naquele estado,tanto quanto na raiva hidrofbica, afastei-me dele, coloquei minhas armassobre a mesa ao lado do fogo, sentei-me e retomei meu Macaulay.

    Talvez, para no parecer em busca de crdito por coragem, ou antes

    frieza, que o leitor possa julgar exagerada, eu possa ser perdoado se fizeruma pausa para, em meu favor, fazer uma ou duas observaes de cunhopessoal.

    Como julgo que a presena de esprito, ou aquilo que chamam de co-ragem, seja exatamente proporcional familiaridade com as circunstnciasque levaram a ela, tambm devo dizer que h muito tempo conhecia todosos experimentos que dizem respeito ao Excepcional. Eu testemunhara mui-tos fenmenos extraordinrios em diversas partes do mundofenmenosa que no se daria absolutamente nenhum crdito se eu os contasse, ou seri-am atribudos a entes sobrenaturais. Ora, minha teoria que o sobrenatural impossvel, e que aquilo que chamam de sobrenatural somente algo nasleis da natureza que at ento ignorvamos. Portanto, se um fantasma surge minha frente, no tenho o direito de dizer: Ento, o sobrenatural pode

    existir, mas antes, Ento, a apario de um fantasma, ao contrrio da opi-nio corrente, est conforme as leis da natureza isto , no sobrenatu-ral.

    Ora, em tudo que at ento eu havia testemunhado, e na verdade emtodos os prodgios que os diletantes do mistrio em nossa poca registramcomo fatos, sempre se faz necessria a interveno material pela qual, em

    virtude de algumas caractersticas constitutivas, certos fenmenos estranhos

    so percebidos pelos sentidos naturais.

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    Alm disso, at mesmo o fato de se admitirem como verdadeiras asnarrativas de manifestao espiritual na Amrica sob a forma de msicaou outros sons, registros em papel, produzidos por nenhuma mo visvel,

    peas de moblia que se movem sem uma interveno humana visvel, ou aviso ou toque de mos concretos, aos quais no parecem pertencer quais-quer corposexige que se encontre o MEIO ou ser vivo, com caracters-ticas constitutivas capazes de produzir tais sinais. Enfim, em todos essescasos extraordinrios, at mesmo na suposio de que no se trata de im-postura, deve haver um ser humano como ns pelos quais, ou por meio dosquais, os efeitos apresentados a seres humanos so produzidos. assim

    com o agora familiar fenmeno mesmerismo1, ou eletrobiologia: a mente dapessoa atingida influenciada por um agente vivo material. Nem, supondo

    verdade que um paciente mesmerizado possa responder vontade ou passede um mesmerizador uma centena de quilmetros distante, a resposta me-nos ocasionada por um fluido material chame-o Eltrico, chame-o di-co2, ou o que sejaque tem o poder de atravessar o espao e obstculos,que o efeito material comunicado de um para o outro. Conseqentemente,eu acreditava que tudo quanto at aquele instante testemunhara, ou esperavatestemunhar naquela estranha casa, era criado mediante alguma intervenoou meio to mortal quanto eu prprio. E essa idia necessariamente me li-

    vrara de ser tomado pelo assombroem razo das aventuras daquela noiteextraordinriaao qual esto sujeitos aqueles que consideram sobrenatu-rais coisas que no se conformam s foras da natureza.

    1Mesmerismo, Magnetismo, Magnetismo Animal, Eletrobiologia: termos que foram cunhados

    por Franz Anton Mesmer (1734-1815), mdico, criador da teoria do Mesmerismo ou MagnetismoAnimal. De todos os corpos da Natureza, o prprio homem que com maior eficcia atua sobreo homem, afirma. Apesar de muito combatido em sua poca, registrou desde 1773 inmerascuras e experincias com a movimentao de objetos inanimados. O magnetismo aceita a existn-cia de um fluido especial, que projetado pelo magnetizador influenciando a pessoa que o recebe.De certa forma, precursor do moderno Hipnotismo e de grande influncia na vulgarizao doKardecismo. (N.E.)

    2dicforce: denominao dada em meados do sculo XIX para uma hipottica energia-vital oufora da vida pelo Baro Carl von Reichenbach (1788-1869), famoso qumico. (N.E.)

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    Como, ento, minha conjectura era de que tudo que se mostrara, ouseria mostrado aos meus sentidos, devia ter origem em algum ser humano,dotado por constituio do poder para faz-lo e tendo algum motivo para

    tal, senti um interesse em minha teoria que, ao seu modo, era antes filosfi-ca do que supersticiosa. E posso sinceramente dizer que meu nimo estavato calmo e propcio observao quanto o de qualquer verdadeiro experi-menta-lista, a aguardar o resultado de alguma combinao qumica rara, em-bora talvez perigosa. claro que, quanto mais impassvel e distante da fan-tasia eu mantinha minha mente, quanto mais apropriado observao fica-ria meu estado de esprito; portanto fixei olhos e pensamentos no forte teor

    cotidiano das pginas do meu Macaulay.Ento percebi que algo se interpunha entre a pgina e a luz uma

    sombra toldava a pgina. Levantei os olhos e vi o que encontro muita difi-culdadee talvez me seja impossvel faz-lodescrever.

    Eram as prprias Trevas a tomar forma no ar, em um contorno bas-tante vago. No posso dizer que era humana, contudo parecia ter formahumana, ou antes uma sombra de um ser humano, do que qualquer outracoisa. Assim parada, completamente separada e distinta do ar e da luz a sua

    volta, suas dimenses pareciam gigantescas e seu topo chegava ao teto. En-quanto eu a fitava, uma sensao de frio intenso invadiu-me. Um icebergdi-ante de mim no poderia ter-me enregelado mais; nem poderia o frio de umicebergter sido mais material. Estou convicto de que no era o frio causadopelo medo. Enquanto ainda estava a fit-la, julguei mas no posso afir-

    m-lo com preciso distinguir dois olhos olhando-me do alto. Por ummomento, imaginei distingui-los claramente; no seguinte, pareceram desfa-zer-se; mas mesmo ento dois raios de luz azul clara luziram em meio strevas, como que da altura em que eu meio acreditara, meio duvidara ter

    visto os olhos.Tentei falar, minha voz emudecera completamente; eu conseguia ape-

    nas pensar com meus botes: Isso medo? Isso no medo! Tentei le-

    vantar-me, em vo; senti como se uma fora irresistvel me empurrasse parabaixo. Na verdade, minha impresso era a de um imenso e supremo Poder a

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    se opor a qualquer ato voluntrio aquela sensao de total impotnciapara lidar com uma fora superior de qualquer homem, que se pode sentirfisicamente em uma tempestade no mar, em uma conflagrao ou at mes-

    mo quando nos deparamos com algum animal feroz, ou antes, talvez, comum tubaro no oceano era esse o sentimento moral que me tornara. O-posta minha vontade havia uma outra, to superior minha quanto somaterialmente superiores fora humana uma tempestade, um incndio ouum tubaro.

    E ento, enquanto essa impresso crescia em mim veio, por fim, oterror um terror tal que nenhuma palavra pode descrever. Ainda assim

    mantive meu orgulho, se no coragem; e em minha prpria mente dizia: Is-so terror, mas no medo; se eu no sentir medo, ele no poder me fazermal; minha razo rejeita essa coisa, trata-se de uma iluso no sinto me-do. Com um esforo violento consegui por fim estender a mo para a armasobre a mesa; quando o fiz, recebi no brao e no ombro um estranho golpe,e meu brao caiu ao lado, inerte. E ento, para aumentar meu terror, a luzcomeou a diminuir lentamente nas velas; elas no foram, por assim dizer,apagadas, mas sua chama parecia recuar gradualmente; o mesmo ocorreucom o fogoa luz era extrada das labaredas; em poucos minutos, o quar-to estava em completa escurido.

    O pavor que se abateu sobre mim, pavor de estar assim na escuridocom aquela Coisa escura, cujo poder era sentido de modo to intenso, pro-

    vocou uma reao de coragem. Na verdade, o terror alcanara aquele clmax

    no qual todas as minhas faculdades me abandonariam ou eu romperia o en-cantamento. Eu o rompi. Consegui finalmente emitir um som, no obstanteeste fosse um grito. Lembro-me de ter jorrado de minha boca algo como:No tenho medo, minha alma no teme; e ao mesmo tempo encontreiforas para levantar-me. Ainda naquelas densas trevas, corri para uma dasjanelas, com um repelo abri a cortina e empurrei as venezianas; meu pri-meiro pensamento foi: LUZ. E quando vi a luz no alto, clara e calma, senti

    uma alegria que quase contrabalanou o terror anterior. Havia lua, haviatambm a luz dos lampies de gs na rua deserta e silenciosa. Voltei-me pa-

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    ra olhar o quarto; o luar penetrava sua sombra de modo muito fraco e par-cial mas ainda assim havia luz. A Coisa escura, fosse o que fosse, dissi-pou-sesalvo pelo fato de que eu ainda conseguia ver uma sombra vaga,

    que parecia uma sombra daquela nuvem escura, junto parede oposta.Meus olhos ento pousaram na mesa, e debaixo dela (que no estava

    coberta por toalha ou cobertura uma velha mesa redonda de mogno)levantou-se uma mo, visvel somente at o punho. Era, aparentemente, decarne e osso como a minha, mas a mo de uma pessoa velha magra, en-rugada e pequena, tambm; a mo de uma mulher. Aquela mo muito sua-

    vemente fechou-se em volta das duas cartas que jaziam sobre a mesa; mo e

    cartas desaparecem. Soaram ento as mesmas trs batidas fortes que eu ou-vira na cabeceira, antes do incio daquela extraordinria cena. Quando aque-les sons lentamente cessaram, senti que o quarto todo vibrava; e na extremi-dade do quarto levantaram-se, como que do cho, centelhas e glbulos co-mo bolhas multicores de luz verdes, amarelas, rubras, azuis. Para cima epara baixo, para c e para l, aqui e ali, aparentando fogos-ftuos, as cente-lhas moviam-se aleatoriamente, ora lentas, ora rpidas. Uma cadeira (repe-tindo o ocorrido com a da sala de estar no andar debaixo) moveu-se de jun-to parede, sem qualquer interveno material visvel e colocou-se no ladooposto da mesa. Subitamente, da cadeira brotou uma forma uma formafeminina. Era to ntida quanto um ser vivente espectral como uma for-ma morta. O rosto era de uma jovem, com uma estranha beleza enlutada; opescoo e os ombros estavam nus, o resto vestia um manto largo de um

    branco nebuloso. Ela comeou a alisar seus longos cabelos dourados, quelhe caam aos ombros; seus olhos no estavam voltados para mim, mas paraa porta; pareciam tentar ouvir, observar, esperar. A sombra da nvoa escurano fundo tornou-se mais intensa; e novamente julguei ver os olhos brilhan-do do alto da sombraolhos que miravam fixamente aquela forma.

    Como que da porta, embora ela no estivesse aberta, brotou uma outraapario, igualmente ntida, igualmente espectrala forma de um homem,

    um homem jovem. Estava vestido moda do sculo passado, ou antes deum modo semelhante (pois tanto a forma masculina quanto a feminina, em-

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    bora ntidas, eram obviamente imateriais, impalpveis, simulacros, fantas-mas); e havia algo de incongruente, grotesco, at mesmo amedrontador nocontraste entre o requinte elaborado, a preciso gentil daquela vestimenta

    fora de moda, com seus franzidos, suas rendas e fivelas, e o aspecto cadav-rico e a imobilidade espectral de seu portador flutuante. Exatamente quandoa forma masculina aproximava-se da feminina, a sombra escura avanou dejunto parede, todas trs, por um momento, envoltas em escurido. Quan-do a luz plida retornou, os dois fantasmas que estavam ocultos na sombrasurgiram lado a lado; e, no peito da viso feminina, via-se uma mancha desangue; o fantasma masculino apoiou-se em sua espada espectral, o sangue a

    gotejar rapidamente dos franzidos, da renda; e o negrume da Forma inter-mediria engoliu a ambos e desapareceram. E novamente as bolhas deluz moveram-se rapidamente, adejaram e flutuaram, tornando-se cada vezmais densas e, seus movimentos, mais desordenados.

    A porta do mvel direita da lareira abriu-se ento e da fresta surgiu afigura de uma mulher idosa. Ela portava cartas na mo as mesmas cartassobre as quais eu vira a Mo se fechar; e atrs dela ouvi passos. Ela virou-secomo se a ouvir e ento abriu as cartas e pareceu l-las; e sobre seu ombro

    vi um rosto lvido, o rosto semelhante a um homem h muito tempo afoga-do inchado, esbranquiado, com algas entrelaadas em seus cabelos en-sopados; e a seus ps jazia uma forma semelhante a um cadver, e atrs docadver escondia-se uma criana, uma criana terrivelmente esqulida, derosto encovado e olhos amedrontados. E enquanto eu olhava para o rosto

    da mulher idosa, as rugas e as linhas desapareceram e ele transformou-se emum rosto jovem de olhos duros, opacos, mas ainda assim jovens; e aSombra precipitou-se e envolveu em escurido aqueles fantasmas, comohavia feito com os anteriores.

    Ento, nada restou seno a Sombra, e sobre ela meus olhos fixaram-seat que novamente os olhos brotaram da Sombra olhos maus, olhos deserpente. E as bolhas de luz novamente surgiram e caram, e em seus mo-

    vimentos desordenados, irregulares, turbulentos, fundiram-se com o plidoluar. E ento, desses mesmos glbulos, como que da casca de um ovo, jor-

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    raram coisas monstruosas; o ar encheu-se delas; larvas to exangues e tohorrendas que no consigo absolutamente descrev-las, exceto para lembraro leitor da vida fervilhante que o microscpio solar pe diante de seus olhos

    em uma gota dguacoisas transparentes, flexveis, geis, caando-se mu-tuamente, devorando-se mutuamente formas nunca antes contempladasa olho nu. Assim como as formas eram assimtricas, tambm seus movi-mentos eram desordenados. Em suas errncias nada havia de jovial; contor-navam-se incessantemente, cada vez mais densas e velozes, pululando sobreminha cabea, rastejavam sobre meu brao direito, distendido em uma or-dem involuntria contra todos os seres vis. Por vezes eu sentia um toque,

    no da Sombra, mas de mos invisveis. Senti uma vez o aperto como dededos frios e macios em meu pescoo. Eu ainda estava igualmente consci-ente de que, se cedesse ao medo, correria perigo fsico e concentrei todas asminhas faculdades unicamente na vontade obstinada de resistncia. E desvi-ei meus olhos da Sombrasobretudo daqueles estranhos olhos de serpen-teolhos que agora haviam se tornado totalmente visveis. Pois ali, e emnada mais do que me rodeava, eu sabia existir uma VONTADE, e uma

    vontade do mal em ao, intenso, original, que poderia esmagar a minha.A atmosfera opaca do quarto comeou ento a avermelhar-se, como

    que aproximao de uma conflagrao. As larvas tornaram-se vividas co-mo as coisas que vivem no fogo. O quarto novamente vibrava; novamenteouviram-se as trs batidas espaadas; e novamente todas as coisas foramengolidas pelas trevas da Sombra escura, como se daquela escurido tudo

    surgira e a ela tudo retornasse.Quando a penumbra diminuiu, a Sombra desapareceu completamente.To lentamente quanto seu recuo, as chamas levantaram-se de novo nasvelas sobre a mesa e tambm na lareira. O quarto todo se tornou, uma vezmais, calmo e sadiamente visvel.

    As duas portas ainda estavam fechadas, e a porta que se comunicavacom o quarto do criado, ainda trancada. No canto da parede ao qual ele to

    convulsivamente se colara, jazia o co. Chamei-o; ele no se moveu. Apro-ximei-me. O animal estava morto, os olhos proeminentes, a lngua de fora,

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    as mandbulas espumantes. Peguei-o nos braos, levei-o para junto da lareira.Eu estava desolado pela perda de meu predileto e censurei-me severamente;sentia-me culpado por sua morte. Supus que ele morrera de pavor. Mas qual

    foi minha surpresa ao descobrir que, na verdade, seu pescoo estava que-brado. Isso fora feito no escuro? No teria isso sido feito por uma mo tohumana quanto a minha? No haveria necessariamente uma intervenohumana durante todo o tempo naquele quarto? Havia bons motivos paraachar que sim. No tinha certeza. Posso apenas registrar fielmente o fato; oleitor tirar suas prprias concluses.

    Uma outra circunstncia surpreendente: meu relgio de pulso fora de-

    volvido mesa da qual fora retirado to misteriosamente; mas parar nomesmo instante em que desaparecera e, a despeito dos esforos do fabrican-te, desde ento no voltou a funcionar normalmente. Isto , funciona demodo errtico por algumas horas e depois pra. Ficou inutilizado.

    Nada mais aconteceu no resto da noite. Na verdade, logo amanheceu.Deixei a casa somente quando j ia adiantado o dia. Antes disso, inspecioneia pequena sala vazia na qual meu criado e eu havamos sido aprisionadospor algum tempo. Eu tinha uma forte impressono sei explicar por qu

    de que nela se originara o mecanismo dos fenmenos por assim dizerque vivenciara em meu quarto. E embora eu entrasse nele agora, em ple-na luz do dia, com o sol a penetrar pela janela embaada, ainda sentia subirpelos ps o terror que sentira pela primeira vez na noite anterior e que forato exacerbado pelo que se passara em meu prprio quarto. No consegui,

    com efeito, permanecer mais do que meio minuto dentro daquelas paredes.Desci a escada e novamente ouvi um passo minha frente; e quando abri aporta da rua julguei ouvir distintamente uma risada bem baixa. Fui at mi-nha casa, contando em encontrar l meu criado fujo. Mas ele no aparecerae por trs dias no deu notcias, quando ento recebi uma carta sua, datadade Liverpool e que dizia:

    Prezado Senhor, humildemente peo desculpas, embora poucas espe-

    ranas tenha de que o senhor me julgar merecedor delas, a menos Deusno permitaque o senhor tenha visto o mesmo que eu. Sinto que anos se

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    passaro antes que eu me recupere, e acho que no conseguirei trabalharnunca mais. Portanto, vou ficar com meu cunhado em Melbourne. O navioparte amanh. Talvez a longa viagem me cure. Fico assustado e tremo o

    tempo todo, pensando que AQUILO est me perseguindo. Humildementelhe peo, prezado senhor, que envie minhas roupas e o salrio a que fao jus casa de minha me, em Walworth. O John sabe meu endereo.

    A carta terminava com outros tantos pedidos de desculpas, um tantoincoerentes, e detalhes quanto aos objetos de uso sob a custdia do missi-

    vista.Essa fuga talvez d margem a suspeita de que ele queria ir para a Aus-

    trlia e de que matreiramente usara o pretexto dos acontecimentos da noitepara isso. No tenho como refutar essa conjectura; ao contrrio, consideroque essa seja uma soluo que pareceria a muitas pessoas a mais provvelpara acontecimentos improvveis. A crena em minha prpria teoria per-manece inabalada. Retornei a casa na noite seguinte para trazer em uma car-ruagem de aluguel as coisas que l deixara e o corpo de meu pobre co. Nofui perturbado, nem qualquer incidente digno de nota me ocorreu, excetoque ainda, ao subir e ao descer a escada, ouvi o mesmo som de passos frente. Ao deixar o local, dirigi-me casa do sr. J. Ele estava l. Devolvi-lheas chaves, disse-lhe que minha curiosidade fora plenamente satisfeita e,quando estava para relatar rapidamente o que se passara, ele me interrom-peu e disse, embora com muita delicadeza, que no tinha mais nenhum inte-resse por um mistrio que ningum jamais solucionara.

    Eu estava decidido a inform-lo pelo menos das duas cartas que lera,assim como do modo extraordinrio pelo qual haviam desaparecido, e entoindaguei se ele julgava que elas haviam sido endereadas mulher que mor-rera na casa e se havia algo em seu passado que pudesse confirmar as sus-peitas sombrias que elas haviam levantado. O sr. J. pareceu assustado e, a-ps ponderar por alguns momentos, respondeu: No sei muito a respeitodo passado da mulher, salvo, como lhe disse anteriormente, que sua famlia

    era conhecida da minha. Mas o senhor reaviva algumas vagas reminiscnciasdesfavorveis a ela. Farei algumas investigaes e o informarei do resultado.

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    Mesmo assim, ainda que pudssemos aceitar a superstio popular de queuma pessoa que fora ou o criminoso ou a vtima de crimes terrveis em vidaconseguisse revisitar, como um esprito inquieto, opalco no qual esses cri-

    mes haviam sido cometidos, preciso observar que a casa estava infestadade estranhas aparies e sons antes da morte da velha senhora... O senhorsorri! O que o senhor diz?

    Eu diria o seguinte: que estou convencido de que, se consegussemoschegar ao fundo desses mistrios, encontraramos uma interveno huma-na.

    O qu! O senhor cr que seja tudo uma fraude? Com que finalidade?

    No uma fraude no sentido comum da palavra. Se eu subitamente ca-sse em um sono profundo, do qual o senhor no pudesse me acordar, masnesse sono pudesse responder a perguntas com uma exatido que no pode-ria fingir quando acordado, dizer-lhe quanto em dinheiro o senhor tem nobolso; mais ainda, descrever seus prprios pensamentos; isso no necessa-riamente uma fraude, tanto quanto no necessariamente algo sobrenatural.Eu estaria, inconscientemente, sob a mesma influncia hipnotizante, que mefoi comunicada distncia por um ser humano que havia adquirido podersobre mim mediante uma ligao anterior.

    Mas se um hipnotizador pudesse causar um efeito assim sobre umoutro ser vivo, o senhor pode imaginar que um hipnotizador conseguiriaafetar tambm objetos inanimados, mover cadeiras, abrir e fechar portas?

    Ou provocar em nossos sentidos a crena em tais efeitos, embora

    nunca tivssemos tido uma ligao com a pessoa que age sobre ns? No. Oque comumente chamado hipnotismo no conseguiria faz-lo; mas podehaver um poder afim ao hipnotismo e mais forte do que ele: o poder queem pocas passadas era chamado de Mgico. Se esse poder pode se estendera todos os objetos materiais inanimados, no sei dizer; mas se assim fosseno seria contrrio natureza. Seria apenas um poder raro na natureza quepode-ria ser dado a constituies com certas peculiaridades e desenvolvido a

    um grau extraordinrio mediante a prtica. Que esse poder possa ser esten-dido sobre os mortosisto , sobre certos pensamentos e memrias que o

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    morto ainda possa conservare obrigar, no aquilo que deveria mais pro-priamente ser chamado ALMA e que est muito alm do alcance humano,mas antes um fantasma do que foi mais terreno neste mundo, a se tornar

    visvel aos nossos sentidos, uma teoria muito antiga, embora obsoleta, so-bre a qual eu no me arriscaria a emitir opinio. Mas no creio que o poderseja sobrenatural. Permita-me exemplificar o que quero dizer com um expe-rimento que Paracelso descreve como mais ou menos fcil e que o autor dasCuriosidades da Literaturacita como crvel. Uma flor perece; incinerada. Se-jam quais forem os elementos daquela flor quando viva, eles desaparecem,dispersam-se, no se sabe para onde; no se consegue nunca encontr-los

    ou reuni-los. Mas pode-se, por meios qumicos, das cinzas dessa flor criarum espectro dela, com a aparncia que ela possua quando viva. O mesmopode ocorrer com o ser humano. A alma saiu dele tanto quanto a essnciaou os elementos da flor. Ainda assim possvel obter um espectro dela.

    E esse fantasma, embora na superstio popular seja considerado aalma daquele que partiu, no deve ser confundido com a verdadeira alma;trata-se apenas de um eidolonda forma morta. Por conseguinte, como as his-trias mais bem confirmadas de fantasmas ou espritos, o que mais nos im-pressiona a ausncia do que consideramos alma; isto , da inteligncia su-perior e liberta de preconceitos. Essas aparies surgem com pouco ou ne-nhum objetivo; elas raramente falam quando surgem; se falassem, no co-municariam idias acima das de uma pessoa comum na terra. Os videntesnorte-americanos publicaram muitos livros sobre comunicaes em prosa e

    em verso, que afirmam ter sido dados sob os nomes dos mortos mais ilus-tres Shakespeare, Bacon e sabe-se l mais quem. Essas comunicaes,mesmo as melhores, de forma alguma so superiores s que se obtm dos

    vivos de grande talento e educao; so imensamente inferiores ao que Ba-con, Shakespeare e Plato disseram ou escreveram quando na Terra. Tam-pouco o que mais notvel elas jamais contm uma idia que nohouvesse na Terra antes. Por espantosos, portanto, que tais fenmenos pos-

    sam ser (a crer que sejam verdadeiros), admito que muito possa ser questio-nado pela filosofia, mas nada que cabe filosofia negar, isto , nada que seja

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    sobrenatural. Trata-se apenas de idias manifestadas de um modo ou de ou-tro (ainda no descobrimos como) de um crebro mortal para outro. Se, aofaz-lo, mesas movem-se sozinhas, ou formas malignas aparecem em um

    crculo mgico, ou mos sem corpos levantam e escondem objetos materiais,ou uma Filha das Trevas, como a que me apareceu, gela nosso sangue ainda assim estou convencido de que so apenas intervenes comunicadas,como que por fios eltricos, ao meu prprio crebro pelo crebro de umoutro. Em algumas constituies h uma qumica natural, e essas constitui-es podem produzir prodgios qumicos; em outras, um fluido natural ou eletricidade, e estes podem produzir prodgios eltricos.

    Mas os prodgios diferem da Cincia Normal nisto: so igualmentesem objetivo, sem finalidade, pueris, incoerentes. No conduzem a resulta-dos grandiosos; e portanto o mundo no os nota, e os verdadeiros sbiosno refletiram sobre eles. Mas estou certo, de tudo que vi ou ouvi, que umhomem, to humano quanto eu, foi sua origem primeira; e acredito que semconscincia dos efeitos pontuais produzidos, pelo seguinte motivo: o senhordisse que duas pessoas jamais vivenciaram a mesma coisa. Ora, veja bem;nunca houve duas pessoas que vivenciassem exatamente o mesmo sonho.Em uma fraude comum, o mecanismo funcionaria com vistas a efeitos qua-se semelhantes; em uma interveno sobrenatural concedida por Deus To-do-Poderoso, eles certamente teriam um motivo definido. Esses fenmenosno pertencem a nenhuma dessas categorias; na minha opinio, eles provmde algum crebro agora distante; que esse crebro no produziu voluntaria-

    mente nada do que ocorreu; que o que realmente ocorre reflete apenas seuspensamentos errantes, heterogneos, mutveis, incompletos; em suma, quese trata de sonhos que esse crebro ps em ao e dotou de uma semi-substncia. Que esse crebro possui um poder imenso, que pode mover ob-jetos materiais, que maligno e destrutivonisso eu acredito. Alguma for-a material deve ter matado meu co; a mesma fora poderia, pelo que sei,ser suficiente para me matar, tivesse eu sido subjugado pelo terror como o

    co, no tivesse meu intelecto ou meu esprito apresentado uma resistnciacompensadora em minha vontade.

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    Ele matou seu co! Que coisa terrvel! De fato, estranho que no sepossa obrigar animal algum a ficar naquela casa; nem mesmo um gato. Nose acham nem ratos nem camundongos l.

    Os instintos das criaturas irracionais detectam ameaas letais a sua e-xistncia. A razo humana tem uma percepo menos sutil, porque possuium poder de resistncia muito superior. Mas basta. O senhor compreendeminha teoria?

    Sim, embora no inteiramente e aceito qualquer extravagncia(com perdo da palavra), embora esquisita, de preferncia a aceitar de pron-to a idia de fantasmas e duendes que absorvemos em nossos beros. Ainda

    assim o mal feito a minha casa continua. Que diabos posso fazer com a ca-sa?

    Direi o que eu faria. Estou intimamente convencido de que o peque-no quarto vazio contguo porta do quarto que ocupei forma um ponto departida ou receptculo para as influncias que assombram a casa; e aconse-lho-o a que derrube as paredes e remova o soalho. Mais do que isso: derru-be o quarto todo. Observei que ele est separado do corpo da casa e estconstrudo sobre o pequeno quintal e poderia ser removido sem prejuzo doresto do edifcio.

    E o senhor julga que, se eu o fizesse...O senhor cortaria os fios do telgrafo. Tente. Estou convencido de

    que estou certo, que quase valer as despesas, se o senhor permitir que co-mande os trabalhos.

    No importa, posso arcar com os custos; quanto ao resto, permita-meque o comunique por escrito. Cerca de dez dias depois, recebi uma cartado sr. J., dizendo que havia visitado a casa desde minha visita a ele; que en-contrara as duas cartas que eu dissera ter recolocado na gaveta de onde astirara; que ele as lera com pressentimentos semelhantes aos meus; que pro-cedera a uma investigao cuidadosa sobre a mulher a quem eu acertada-mente imaginara terem elas sido escritas. Ao que parece, trinta e seis anos

    atrs (um ano antes da data das cartas) ela se casara, contra a vontade deseus parentes, com um americano de carter suspeito na verdade, acredi-

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    tava-se que ele era um pirata. Ela, por sua vez, era filha de comerciantesmuito respeitveis e servira como bab antes de casar-se. Tinha um irmo

    vivo, que era tido por rico, com um filho de cerca de seis anos. Um ms

    antes do casamento, o corpo desse irmo foi encontrado no Tmisa, pertoda Ponte de Londres; havia, ao que parece, algumas marcas de violncia emsua garganta, mas elas no foram julgadas suficientes para se instaurar uminqurito e o caso foi encerrado com uma declarao de encontrado afoga-do.

    O americano e sua mulher ficaram responsveis pelo garoto, em virtu-de de ter o falecido deixado sua irm a guarda de seu nico filhoe se a

    criana morresse a irm seria a herdeira. A criana morreu cerca de seis me-ses depois; houve suspeitas de negligncia e maus-tratos. Os vizinhos teste-munharam hav-la ouvido gritar a noite toda. O mdico legal que fez o e-xamepost-mortemdisse que a criana estava emaciada, como se estivesse mal-nutrida, e o corpo estava coberto de contuses lvidas. Parece que, em umanoite de inverno, a criana tentou fugir arrastou-se at o quintal, tentouescalar o muro, caiu exausta e foi encontrada sobre as pedras pela manh,agonizante. Porm, no obstante houvesse algumas provas de crueldade,no se pde alegar assassinato; e a tia e seu marido procuraram dissimular acrueldade pela alegao de extrema teimosia e mau gnio da criana, que sedeclarou ser retardada. Seja como for, com a morte do rfo, a tia herdou afortuna do irmo. Antes de um ano de casados, o americano deixou subita-mente a Inglaterra e nunca mais retornou. Ele adquiriu uns navios cruzeiros,

    que se perderam no Atlntico dois anos depois. A viva ficou rica; mas re-veses de diversos tipos lhe sobrevieram; um banco faliu, um investimentodeu prejuzo, ela envolveu-se em um negcio de pouca monta e ficou insol-

    vente. Ento, buscou empregos, afundando-se cada vez mais, de governantaa faxineira, nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar, emboranada se tenha jamais alegado contra seu carter. Apesar de considerada equi-librada, honesta e particularmente tranqila em suas atividades, nada dava

    certo para ela. Assim foi que acabou no asilo, do qual o sr. J. a tirara, para

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    com uma agulha que girava rapidamente; mas em vez dos pontos usuais deuma bssola havia sete caracteres estranhos, no muito diferentes dos usa-dos por astrlogos para indicar planetas.

    Um odor singular, mas no forte nem desagradvel, veio dessa gaveta,que estava forrada de uma madeira que depois descobrimos ser aveleira.Esse odor, qualquer que fosse sua origem, produziu um grande efeito sobreos nervos. Todos ns o sentimos, at mesmo os dois operrios que estavamno quarto uma sensao de formigamento e de arrepio que subia daspontas dos dedos da mo at as razes do cabelo. Impaciente por examinaro bloco, removi o pires. Quando o fiz, a agulha da bssola girou com ex-

    trema rapidez, e eu senti um choque que percorreu todo meu corpo e mefez deixar cair ao cho o pires. O lquido derramou-se, o pires quebrou, abssola rolou pelo quarto e naquele instante as paredes oscilaram para fren-te e para trs, como se um gigante as balanasse e agitasse. Os dois oper-rios ficaram to apavorados que subiram a escada pela qual havamos desci-do do alapo; mas, vendo que nada mais acontecia, foram facilmente con-

    vencidos a retornar.Entrementes, eu abrira o bloco: ele estava encadernado de pele verme-

    lha lisa, com um fecho de prata; continha apenas uma folha de velino espes-so, e nessa folha estavam escritas dentro de um pentagrama duplo palavrasem antigo latim monacal, que poderiam ser traduzidas literalmente como sesegue: Sobre todos aqueles que adentrarem estas paredes sensveis ouinanimados, vivos ou mortose moverem a agulha, ser exercida a minha

    vontade! Maldita seja a casa e desinquietos sejam os seus habitantes.Nada mais encontramos. O sr. J. queimou o bloco e seu antema. Eledemoliu a parte do edifcio que continha o quarto secreto e o compartimen-to sobre ele. Teve ento a coragem de habitar ele prprio a casa durante umms, e casa mais tranqila e mais saudvel no havia em toda Londres. Pou-co tempo depois, ele a alugou bem, e seu inquilino no fez quaisquer quei-xas.

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    apoiava em uma nica muleta, seus olhos estavam cobertos por uma som-bra e seu lbio inferior, meio repuxado, pendia plido e estriado de rosa deseus dentes estragados e amarelados. Ele dirigiu-se imediatamente para uma

    poltrona no lado oposto da mesa, sentou-se desajeitadamente e comeou atossir. O homem do brao mirrado lanou ao recm-chegado um breve o-lhar de total averso; a velha ignorou sua chegada e permaneceu com os o-lhos fixos no fogo.

    Eu disse: a escolha sua, disse o homem do brao mirrado, quandoo outro velho parou de tossir por um momento.

    A escolha minha, respondi.

    O homem da sombra pela primeira vez deu-se conta de minha presen-a e pendeu momentaneamente sua cabea para trs e para os lados, paraobservar-me. Pude ver, por um instante, os seus olhos, pequenos, brilhantese avermelhados. Ento ele comeou a tossir e a cuspir novamente.

    Ora, por que voc no bebe alguma coisa?, disse o homem do braomirrado, empurrando a cerveja em direo ao outro. O homem da sombraencheu um copo com um brao trmulo que derramou a metade do lquidona mesa de pinho. Uma sombra monstruosa dele rastejava na parede e faziatroa de seus gestos enquanto se servia e bebia. Devo confessar que noimaginava encontrar esses curadores grotescos. Para mim, existe algo deinumano na senilidade, algo de rastejante e atvico; as qualidades humanasparecem abandonar imperceptivelmente os velhos, dia aps dia. Aquelestrs fizeram-me sentir pouco vontade, com seus silncios sombrios, seus

    corpos encurvados, sua clara hostilidade tanto com relao a mim quantoentre si.Se, disse eu, vocs me levarem ao seu quarto mal-assombrado, eu

    me instalarei confortavelmente l.O velho da tosse atirou a cabea para trs, to subitamente, que dei um

    salto, e lanou-me um outro olhar de seus olhos inflamados por debaixo dasombra; mas ningum me respondeu. Esperei um minuto, fitando-os um a

    um.

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    Se, disse eu, um pouco mais alto, se vocs me levarem a esse seuquarto mal-assombrado, eu os livrarei do trabalho de me fazerem sala.

    H um candeeiro na prancha do lado de fora da porta, disse o ho-

    mem do brao mirrado, olhando para meus ps enquanto falava. Mas sevoc for ao quarto vermelho esta noite...

    Justamente esta noite!, disse a velha.Voc ir sozinho.Muito bem, respondi. E onde fica?V pelo corredor, disse ele, at chegar a uma porta, e alm dela h

    uma escada em caracol e na metade dela h uma plataforma e outra porta

    coberta com uma baeta. Atravesse-a e siga pelo corredor at o fim. O quartovermelho fica esquerda, logo adiante.

    Entendi direito?, disse eu, repetindo as instrues. Ele me corrigiuem um ponto.

    E voc vai mesmo?, disse o homem da sombra, olhando novamentepara mim, pela terceira vez, com aquele estranho, bizarro repuxo no rosto.

    (Justamente esta noite!, disse a velha.)Foi para isso que vim, disse eu e me dirigi para a porta. Enquanto o

    fazia, o velho da sombra levantou-se e cambaleou em volta da mesa, paraaproximar-se dos outros e do fogo. Na porta, virei-me, olhei para eles e vique haviam se juntado, escuros, contra o fogo da lareira, encarando-me so-bre seus ombros, com uma expresso concentrada em seus rostos envelhe-cidos.

    Boa noite, disse eu, abrindo a porta.A escolha sua, disse o homem do brao mirrado.Deixei a porta aberta at que a chama da vela ficasse bem acesa e ento

    a fechei e caminhei pelo corredor gelado e ressonante.Devo confessar que a singularidade desses trs velhos pensionistas a

    quem a proprietria encarregara de cuidar do castelo e a moblia antiquadada sala do zelador na qual eles haviam anteriormente se reunido afetou-me,

    a despeito de meus esforos em manter minha frieza de esprito. Eles pare-ciam pertencer a uma outra era, uma era remota, quando as coisas espirituais

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    A porta do quarto vermelho e os degraus que levavam at ele estavamem um canto envolto na sombra. Movi minha vela de um lado para outro,para ver claramente em que tipo de nicho me encontrava antes de abrir a

    porta. Fora aqui, pensei, que encontraram meu predecessor, e a lembranadaquela histria provocou em mim uma sbita pontada de apreenso. Olheide relance sobre meu ombro para o Ganimedes ao luar e abri a porta doquarto vermelho com certa pressa, com o rosto meio virado para o silnciodescorado do patamar.

    Entrei, fechei imediatamente a porta atrs de mim, girei a chave queencontrara na parte de dentro da fechadura e detive-me, a vela levantada

    acima de minha cabea, a examinar o cenrio de minha viglia, o grandequarto vermelho do Castelo Lorraine, no qual morrera o jovem duque. Ouantes, no qual ele comeara a morrer, pois abrira a porta e cara de ponta-cabea nos degraus que eu acabara de galgar. Fora esse o fim de sua viglia,de sua galante tentativa de vencer a tradio espectral do lugar; e nunca,pensei, a apoplexia se prestara melhor aos objetivos da superstio. E haviaoutras histrias mais antigas ligadas ao quarto, at o incio duvidoso de tudo,a histria da esposa medrosa e o trgico fim que sobreveio brincadeira deseu marido, que pretendia assust-la. E, ao olhar volta do quarto amplo epenumbroso, com suas janelas de sacada envoltas em sombras, seus nichose alcovas, era fcil entender as lendas que brotavam de seus cantos negros,suas trevas seminais. Minha vela era apenas uma pequena chama na sua vas-tido, insuficiente para penetrar no extremo oposto do quarto e deixava um

    mar de mistrio e insinuaes para alm de sua ilha de luz. Decidi fazer i-mediatamente um exame sistemtico do lugar e dissipar as insinuaes fan-tasiosas de sua obscuridade antes que tomassem conta de mim. Aps verifi-car se a porta estava realmente fechada, comecei a caminhar pelo quarto,examinando em volta de cada pea de moblia, enrolando os cortinados dacama e abrindo totalmente as cortinas. Empurrei as persianas e examinei osferrolhos de vrias janelas, antes de fechar as folhas, abaixei-me e olhei o

    negrume da grande chamin e bati de leve nos lambris de carvalho escuroem busca de alguma passagem secreta. Havia dois espelhos grandes no

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    quarto, cada um com um par de arandelas com velas, e sobre o aparadortambm havia mais velas em candeeiros de loua. Acendi todos eles, um aum. Havia lenha na lareira, uma inesperada gentileza da velha criada, e eu a

    acendi, para reprimir qualquer tendncia a arrepios, e quando o fogo pegou,fiquei de p, de costas para ele e observei novamente o quarto. Eu empurra-ra uma poltrona coberta de chintz e uma mesa, para formar uma espcie debarricada diante de mim e sobre esta depositei meu revlver, logo mo.Meu exame minucioso fizera-me bem, mas ainda achei as penumbras maisdistantes do lugar e sua absoluta quietude demasiado estimulantes para aimaginao. Os ecos dos chiados e estalidos do fogo no eram de molde a

    me confortar. A sombra no extremo da alcova, especialmente, possua aque-la indefinvel qualidade de uma presena, daquela estranha impresso deuma coisa viva e espreita, que brota to facilmente do silncio e da solido.Por fim, para me acalmar, dirigi-me para ela com uma vela e convenci-mede que no havia nada material l. Coloquei a vela no soalho da alcova edeixei-a nessa posio.

    A essa altura eu j estava em um estado de grande tenso nervosa, em-bora racionalmente no houvesse nenhum motivo para isso. Minha mente,contudo, estava perfeitamente lcida. Convenci-me de que nada de sobrena-tural poderia acontecer e, para passar o tempo, comecei a costurar alguns

    versos, moda de Ingoldsby2, da lenda original local. Uns poucos eu disseem voz alta, mas os ecos no eram agradveis. Pelo mesmo motivo tambmabandonei, depois de algum tempo, um dilogo comigo mesmo sobre a im-

    possibilidade de fantasmas e de assombraes. Minha mente retrocedeu strs pessoas envelhecidas e contorcidas l embaixo e tentei mant-la ocupa-da com isso. Os vermelhos escuros e os negrumes do quarto me preocupa-

    vam; at mesmo com as sete velas o lugar estava apenas vagamente ilumina-do. A da alcova tremeluziu com um golpe de vento, e o bruxuleio do fogofazia com que as sombras e a penumbra mudassem e se agitassem incessan-

    2The Ingoldsby legends. Coleo de ghost stories, mitos, lendas e poemas, supostamente es-

    critas por Thomas Ingoldsby, pseudnimo de Richard Harris Barham. Publicadas pela primeiravez em 1837, sendo as mais conhecidas: The Jackdaw of Rheims e The Hand of Glory (N.T.).

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    ar provocado pelo meu movimento sbito, e imediatamente as duas velasrestantes a acompanharam. Mas ainda havia luz na sala, uma luz vermelhaque afastava de mim as sombras. O fogo! claro que eu ainda podia apro-

    ximar minha vela das toras e reacend-la!Fui at onde as chamas ainda danavam entre os pedaos de carvo re-

    luzentes e difundiam reflexos rubros sobre a moblia, dei dois passos emdireo grelha e nesse exato instante as chamas bruxulearam e se apagaram,e, enquanto eu enfiava a vela entre as toras, a escurido fechou-se sobremim como o baixar de plpebras, envolvendo-me num abrao apertado,selando minha viso e esmagando os ltimos vestgios de razo no meu c-

    rebro. A vela caiu-me da mo. Estiquei os braos em um vo esforo paraarremessar para longe de mim aquela escurido poderosa e, levantando a

    voz, gritei com toda forauma, duas, trs vezes. Depois, acho que devoter me levantado, cambaleando. Lembro-me de ter pensado subitamente nocorredor iluminado da luz do luar e, com a cabea pendida e os braos so-bre o rosto, consegui correr para a porta.

    Mas eu esquecera a posio exata da porta, e bati com fora contra ocanto da cama. Zonzo, recuei, virei e ou fui golpeado ou dei de encontrocom alguma outra pea volumosa de moblia. Tenho uma vaga lembranade ter-me debatido assim, para c e para l na escurido, de uma luta con-

    vulsiva e de meu prprio grito desvairado enquanto corria para c e para l,de um golpe forte, finalmente, em minha testa, uma horrvel sensao decair que durou sculos, de meu ltimo esforo frentico para manter-me em

    p, e de mais nada depois disso.Abri os olhos com a luz do dia. Minha cabea estava toscamente enfai-xada, e o homem do brao mirrado observava meu rosto. Olhei a minha

    volta, tentando lembrar o que acontecera, e por um tempo no consegui.Girei os olhos e vi a velha, no mais absorta, derramando algumas gotas deremdio de um frasco azul para um copo. Onde estou?, perguntei, achoque me lembro de vocs, mas no consigo lembrar quem so.

  • 7/28/2019 Classicos Do Sobrenatural - Varios Autores

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    NO FIM DA PASSAGEM

    Rudyard Kipling

    O cu plmbeo e nossas faces, vermelhas,

    E os portais do Inferno esto abertos e violados,

    E os ventos do Inferno esto soltos e impelidos,

    E o p fustiga a face dos Cus,E as nuvens descem num sudrio em chamas,

    Pesado demais para subir e slido demais para se espalhar.

    E a alma do homem tirada de sua carne,

    Desprega-se das futilidades pelas quais lutou

    O corpo doente e o corao opresso,

    E sua alma ala vo como o p de um sudrio

    Desprega-se de sua carne, despede-se e vai embora,

    Como os sons que se tiram das trompas da clera.1

    Kipling, Himalaio

    Quatro homens, cada um deles com direito vida, liberdade e busca

    da felicidade, 2 estavam sentados mesa, jogando uste. 3 O termmetro

    1Collery-Horn, cholera horn (trompa da clera). Longo instrumento de metal trombeta decorno que produz um som horripilante geralmente usada pelos nativos indus em funerais(N.E.).

    2Life, liberty, and the pursuit of happiness. Referncia Declarao da Independncia dos E-E.UU. (N.E.).

    3Whist, jogo de cartas de raciocnio, muito popular na Inglaterra nos sculos XVIII e XIX; utili-

    za um baralho comum de 52 cartas, e jogado por quatro jogadores divididos em duas duplas. jogado ainda hoje na Inglaterra, e considerado o ancestral do bridge. Em portugus, uste (N.E.).

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    marcava para eles cento e um graus de calor [38,3C]. O aposentoestava to escuro que era possvel distinguir apenas as figuras das cartas e asfaces muito brancas dos jogadores. Umpunkah4esfarrapado e podre de chi-

    ta esbranquiada polua o ar quente e gemia lamurientamente a cada movi-mento. L fora, pairavam as sombras nubladas de um dia londrino de no-

    vembro. No havia nem cu, nem sol, nem horizonte nada seno ummormao pardacento e violceo. Era como se a Terra estivesse morrendode apoplexia.

    De tempos em tempos, nuvens de p fulvo levantavam-se do chosem vento ou prenuncio, atiravam-se como toalhas por entre as copas das

    rvores ressecadas e depois desciam novamente. Ento, um redemoinhocorria atravs da campina por umas duas milhas, desfazia-se e caa, emboranada houvesse para deter seu vo exceto uma pilha longa e baixa de dor-mentes de estrada de ferro esbranquiados pela poeira, um amontoado debarracas feitas de barro, trilhos descartados e lona, e um bangal de quatrocmodos abandonado, que pertencera ao engenheiro assistente responsvelpor uma seo da linha Gaudhari State, ento em construo.

    Os quatro, quase despidos, cobertos apenas de seus pijamas mais leves,jogavam uste rabugentamente, com altercaes acerca das mos e reconhe-cimento de cartas. No era o melhor tipo de uste, mas eles tinham se esfor-ado para jog-lo. Mottram, da Inspetoria Indiana, havia cavalgado trintamilhas e viajado de trem por outras tantas cem de seu posto solitrio no de-serto desde a noite anterior; Lowndes, do Servio Civil, em cargo especial

    no departamento poltico, viera de longe para fugir por um instante s mes-quinhas intrigas de um Estado nativo empobrecido, cujo rei alternadamentebajulava e vociferava por mais dinheiro a ser retirado de impostos mingua-dos, pagos por camponeses exauridos pelo trabalho e desalentados criadoresde camelos; Spurstow, o mdico da linha, deixara um campo de trabalhado-res devastado pelo clera para cuidar de si durante quarenta e oito horas, no

    4Punkah. Um grande leque, consistindo numa armao recoberta de tecido que posicionada

    sob o teto e movimentada geralmente por um servial. Usado na ndia para a circulao de ar emum aposento (N.E.).

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    convvio renovado com outros homens brancos. Hummil, o engenheiroassistente, era o anfitrio. Ele era estacionrio e recebia seus amigos, assim,todo domingo, sempre que conseguiam vir. Quando um deles deixava de

    comparecer, ele mandava um telegrama para o seu ltimo endereo, com afinalidade de saber se o ausente estava morto ou vivo. Existem muitas regi-es no Leste em que no bom nem gentil perder de vista os conhecidos,nem mesmo por uma breve semana.

    Os jogadores no estavam conscientes de qualquer afeio mtua es-pecial. Brigavam toda vez que se encontravam; mas desejavam ardentemen-te se encontrarem, como homens sedentos desejam beber gua. Eram pes-

    soas solitrias, que compreendiam o terrvel significado da solido. Tinhamtodos cerca de trinta anoscedo demais para que se possa saber disso.

    Pilsener?, disse Spurstow, aps a primeira negra, enxugando a testa.Sinto muito, mas a cerveja acabou, e h muito pouca gua gasosa para

    esta noite, disse Hummil.Que porcaria de estabelecimento!, rosnou Spurstow.A culpa no minha. Escrevi e telegrafei; mas os trens ainda no che-

    gam regularmente. Na ltima semana o gelo acabou como Lowndes sa-be.

    Ainda bem que eu no vim. Mas eu poderia ter-lhe mandado algumas,se tivesse sabido. Ufa! Est quente demais para continuar jogando bumble-

    puppy, disse, lanando um olhar feroz para Lowndes, que apenas sorriu. Eleera um agressor inveterado.

    Mottram levantou-se da mesa e olhou por uma fenda nas venezianas.Bonito dia!, disse ele.Os companheiros bocejaram, todos juntos, e lanaram-se a uma inves-

    tigao intil sobre todos os bens de Hummil armas, romances