Cinema, antropofagia e transe Profa Regina...

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Cinema, antropofagia e transe Profa Regina Mota A adesão do Cinema Novo à teoria da antropofagia como fato histórico de interpretação da cultura brasileira encontra seus indícios não apenas em filmes explicitamente antropofágicos como Macunaíma, Como era gostoso o meu francês, Brasil ano 2000 ou O Homem do Pau Brasil mas está presente enquanto procedimento estético e conceitual. Entre as obras mais exemplares dessa evidência, Terra em Transe se destaca pela prática intencional de seus fundamentos, e demonstra a relação entre transe e antropofagia com a construção de novas categorias estéticas para o audiovisual. Em Di/Glauber, o procedimentto se explicita no ritual xamânico tupinambá, encenado pelo diretor. Em ambos os filmes, o eixo teórico da antropofagia é afirmado pelo conflito, estabelecido em todas as dimensões possíveis da linguagem cinematográfica 1 , assumindo a face politicamente incorreta da desigualdade social, ilustrada pelos protagonistas dos poderes em crise. A atitude anti-hierárquica, que afirma o lugar do atraso como ponto de partida e de chegada de uma consciência possível, conduz sem vacilo a trajetória do herói ao marco zero. Diferença e alteridade, conceitos centrais da antropofagia, são as utilizadas pelo diretor para manter também instável o vínculo com o espectador, sem guias ou marcas reconhecíveis para seguir a história. Manifestos A análise dos manifestos e textos teóricos modernistas e sua conexão com o Cinema novo brasileiro demonstrou a centralidade da Teoria da Antropofagia como base conceitual do movimento, bem como a importância do legado do seu marco histórico, o Manifesto Antropófago (ANDRADE, 1995). Os primeiros passos dessa polêmica teoria foram ensaiados nos procedimentos inovadores da linguagem literária que se distanciava da 1 O conflito em Terra em Transe é a constante que promove o estado de crise representada semióticamente na instabilidade entre som e som, entre som e imagem, entre imagem e imagem, entre os personagens, entre figura e fundo, entre luz e contra-luz, entre os objetos orquestrado pela violência das transições permitidas pelo movimento da câmera de mão.

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Cinema, antropofagia e transe

Profa Regina Mota

A adesão do Cinema Novo à teoria da antropofagia como fato histórico de interpretação

da cultura brasileira encontra seus indícios não apenas em filmes explicitamente

antropofágicos como Macunaíma, Como era gostoso o meu francês, Brasil ano 2000 ou

O Homem do Pau Brasil mas está presente enquanto procedimento estético e conceitual.

Entre as obras mais exemplares dessa evidência, Terra em Transe se destaca pela prática

intencional de seus fundamentos, e demonstra a relação entre transe e antropofagia com a

construção de novas categorias estéticas para o audiovisual. Em Di/Glauber, o

procedimentto se explicita no ritual xamânico tupinambá, encenado pelo diretor. Em

ambos os filmes, o eixo teórico da antropofagia é afirmado pelo conflito, estabelecido em

todas as dimensões possíveis da linguagem cinematográfica1, assumindo a face

politicamente incorreta da desigualdade social, ilustrada pelos protagonistas dos poderes

em crise. A atitude anti-hierárquica, que afirma o lugar do atraso como ponto de partida e

de chegada de uma consciência possível, conduz sem vacilo a trajetória do herói ao

marco zero.

Diferença e alteridade, conceitos centrais da antropofagia, são as utilizadas pelo diretor

para manter também instável o vínculo com o espectador, sem guias ou marcas

reconhecíveis para seguir a história.

Manifestos

A análise dos manifestos e textos teóricos modernistas e sua conexão com o Cinema novo

brasileiro demonstrou a centralidade da Teoria da Antropofagia como base conceitual do

movimento, bem como a importância do legado do seu marco histórico, o Manifesto

Antropófago (ANDRADE, 1995). Os primeiros passos dessa polêmica teoria foram

ensaiados nos procedimentos inovadores da linguagem literária que se distanciava da 1 O conflito em Terra em Transe é a constante que promove o estado de crise representada semióticamente na instabilidade entre som e som, entre som e imagem, entre imagem e imagem, entre os personagens, entre figura e fundo, entre luz e contra-luz, entre os objetos orquestrado pela violência das transições permitidas pelo movimento da câmera de mão.

escrita tradicional ao se aproximar do cinema ou do cinematógrafo, na utilização dos seus

recursos estilísticos e de sua linguagem.

É possível identificar uma transubstanciação antropofágica no texto modernista de Mário

e Oswald na produção de uma obra que projeta o cinema no literário, enquanto

montagem e imagem, simultaneidade, ritmo e polifonia já configurando um quase-cinema

(MOTA, 2007). Essa presença da linguagem cinematográfica, como elemento da

inovação literária na expressão das novas idéias na obra modernista, facilitou o seu

resgate pelos cinemanovistas, quase quarenta anos depois.

A conseqüência imediata da invenção modernista é a ocorrência de uma práxis estética

que coloca em relevo os aspectos filosóficos inerentes ao fazer artístico. Expressar na

tecitura da linguagem a multiplicidade própria do conflito enquanto procedimento

heterônimo, cujo efeito é o choque de alteridade - a descoberta do próprio. Mais do que

operar um ato rebelde de destruição do parnasianismo romântico, a nova escrita exibia

dotes pouco conhecidos da cultura erudita, mas comuns às manifestações populares da

cultura miscigenada da América. Sonoridade e ritmo apelando aos ouvidos para fazer o

chamamento da consciência recalcada e adormecida em bons costumes.

A renovação da língua incorpora o oral popular e sua “milionária contribuição de todos

os erros” (ANDRADE, 1995), deixando as marcas da diversidade e pluralidade de

processos de criação artísticos que trazem as colaborações de tradições ibéricas mouras e

judaicas e medievais européias que vão se constituir em formas orais literárias tais como

o repente e o cordel. As narrativas das danças dramáticas brasileiras, coletadas e

analisadas por Mário de Andrade, são complexos intertextos cuja principal característica

narrativa é a modulação da tradição e do contemporâneo, mostrando já na sua forma e

estrutura a abertura da obra, que se faz atemporal e antropofágica, absorvendo novidades

como elemento de atualidade.

A pesquisa de linguagem incluiu o circo, fonte de inspiração de alguns artistas

modernistas, que seguiam liturgicamente as apresentações do palhaço Piolim, em São

Paulo. Merece destaque nesse encontro com a linguagem popular circense, a presença do

cinema nas pantominas criadas pelo palhaço. Segundo Orna Messer Levin (1996:65)

“Piolim revelou terem sido na realidade as comédias cinematográficas de sua

época a maior e mais estimulante fonte de inspiração de tais pantominas.

Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd, aquelas figuras inocentes expostas ao

convívio permanente com uma ação violenta, na qual se mesclam os elementos de

agressão e frivolidade, serviram de modelo para as improvisações paródicas dos

nossos clowns. Em lugar da literatura, muitas vezes o ritmo acelerado dos filmes

realimentou a hilaridade do circo, promovendo a simpatia dos espectadores que

gargalhavam com a atmosfera brincalhona das novas farsas.”

Antônio de Alcântara Machado (1940) afirmava que o circo representava a única

expressão de fidelidade às nossas formas populares e aos elementos verdadeiramente

nacionais em comparação com o teatro profissional que ainda mantinha os trejeitos

franceses, o que visto pelo prisma Pau Brasil, parecia facultar a essa manifestação

popular, a redescoberta da improvisação espontânea, leve e pura.

A Oswald de Andrade, particularmente, não passou desapercebida a antropofagia inerente

ao processo de criação dessa farsa circense, que unia a expressão teatral popular e

tradicional ao cinema mudo internacional. Ela será apropriada como estrutura e

inspiração para a renovação dramatúrgica utilizada na peça O Rei da Vela, cujo

protagonista, Abelardo, tinha o mesmo nome do palhaço Piolim, e deveria ser encenada

pelo mesmo. “A peça toma de empréstimo a hilaridade dos pequenos esquetes e

entremezes circenses criados pelos palhaços Chincharrão, Harris, Chic-chic, Arrelia e

Piolim, cujas interpretações alcançaram enorme sucesso entre 1918 e 1938.” (LEVIN,

1996:65)

O Rei da Vela, peça encenada uma única vez no Brasil pelo Teatro Oficina em 1968, foi

dirigida por José Celso Martinez e se transformou, juntamente com o filme Terra em

Transe, em marco do movimento neo-antropofágico do Tropicalismo. Segundo Orna

Levin, a montagem era a imagem exemplar do diagnóstico da mesmice e de absoluta

estagnação estrutural do país apresentado entre quatro paredes aos espectadores que

também quisessem se bestificar com a percepção do escuro enorme que a peça iluminou.

Um manifesto da chacriníssima2 realidade nacional que reabilitava o poder de reinvenção

da arte, e da criatividade para combater a falta de história – síntese do nosso oportunismo.

No plano das idéias, Mário e Oswald assumem uma nova perspectiva para pensar a

cultura brasileira, que acentua o aspecto do conflito presente desde sempre no encontro

forçado das diferentes tradições que aqui tiveram que se encontrar, sobreviver e se

reinventar. Ao atribuir uma positividade ao estado de barbárie, o fato etnográfico inscrito

no ritual Tupinambá de morte e devoração do inimigo capturado servirá simultaneamente

de metáfora, diagnóstico e terapêutica, como analisa Benedito Nunes (ANDRADE,

1995). Essa atitude frente ao outro, o inimigo, se coloca de forma anti-hierárquica

restabelecendo uma positividade que emerge da situação do atraso.

Na violência desse golpe, o movimento modernista produz uma antinomia, ao valorizar o

que deveria ser destruído, superado e apagado da memória – a barbárie e o primitivo.

Reconhece nas relações estabelecidas pela miscigenação étnica e cultural e pela

dominação jesuítica e colonial a energia criativa que resulta da resistência às normas

civilizadas e às boas maneiras modernas. Oswald de Andrade avisa aos crentes: “Nunca

fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos foi Cristo

nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará” (ANDRADE, 1995:48).

Cinema e antropofagia

Nos anos 1960, alguns artistas realizaram a vingança dos seus parentes modernistas,

devorados e mal interpretados pela validação acadêmica, à maneira Tupinambá, ao

reeditarem as idéias, textos, imagens e sons de suas obras nas formas audiovisuais do

cinema, da música, do teatro e das artes plásticas. No cinema, Joaquim Pedro de Andrade

2 Referência a Chacrinha, por sua vez também palhaço e Abelardo, que já ocupava espaço no vídeo da televisão brasileira desde 1957, quando estreou na Tupi com sua Discoteca do Chacrinha, responsável pelo lançamento de vários e importantes talentos nacionais. Apesar do tom pejorativo utilizado pela autora, os tropicalistas, ao contrário, tinham na sua atuação, figurino e uso do corpo em cena, uma autêntica fonte de inspiração.

e Glauber Rocha são assumidamente seguidores dos precursores modernistas, e alguns de

seus filmes poderiam ser interpretados como ensaios neoantropofágicos.

As obras cinematográficas de Joaquim Pedro de Andrade são testemunhos da vitalidade

da teoria da antropofagia no plano cultural dos anos 1960. Macunaíma, o emblema da

renovação narrativa da literatura nos anos 1920, é recriada para o contexto político

cultural da ditadura pós AI-5. Joaquim, como um antropófago, não nega ao filme a

necessária violência destruidora do véu cordial, traçando a cadeia de valores que resulta

nas formas naturais de baixo canibalismo próprias das relações sociais presentes na vida

cotidiana brasileira – “o Brasil devora os seus cidadãos, os cidadãos devoram o Brasil e o

Brasil devora a si mesmo”3, diz o diretor. Essa fusão do erudito com o popular capaz de

sintetizar oposições e dissolver dualismos, como afirma Ivana Bentes, (1996:10)

propiciou a reaproximação do público com o cinema novo, nos seus mais de 2 milhões de

espectadores. O filme é propedêutico da antropofagia porque Joaquim Pedro interpreta

Mário pelos olhos radicais de Oswald, atualizados na sua própria visão desiludida mas

vigorosa e ainda crente no poder desestabilizador da obra de arte.

Pensar o brasileiro é destruir mitos e dessa ruína extrair o que nos é vital, essa a arte de

Macunaíma, anti-herói moldado com pedaços de lendas, raças, comidas, costumes e de

vária geografia. Capaz de ser e não-ser ao mesmo tempo ao afirmar aquilo que nega na

produção igual de solução e enganação. O país é refletido no espelho distorcido

construído com a fina ironia antropofágica dos autores modernistas e do próprio diretor.

Se em Macunaíma é possível assistir ao encontro entre os dois movimentos, modernismo

e cinema novo, por meio de uma obra emblemática, nos outros filmes de Joaquim Pedro

de Andrade, a antropofagia está subjacente às perspectivas adotadas com indícios em

profusão até o paroxismo de O Homem do Pau Brasil, homenagem explícita a Oswald de

Andrade. Quincas opta por assumir nesse filme outra visão do cinema:

Eu me interesso de um tempo para cá em coisas que aparentemente não dão um

filme. É uma provocação que a gente se faz para cair num terreno cheio de

3 acessado em http://www.filmesdoserro.com.br/film_hp.asp

obstáculos, mas divertido e criativo. Foi um pouco assim que fiz o Oswald. Não

estou mais interessado no cinema como instrumento, mas sim no cinema como

objetivo. E, como Oswald, mais aberto, desarmado e solto na maneira de compor

a conversa.

Os filmes de Glauber Rocha adicionam a essa visão um desenvolvimento teórico,

enunciado pelo cineasta no seu Manifesto Estética da Fome, no qual reinterpreta Oswald

de Andrade para o contexto cinematográfico, afirmando o seu caráter de topos da

antropofagia nos anos 1960.

De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou,

analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens

comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para

comer, personagens fugindo para comer...(ROCHA, 2004:65)

Ao assumir a violência como única expressão legítima da fome, incorpora e valoriza o

primitivo como revolucionário, restabelecendo a metáfora canibal ao apontar para o

inimigo (interno e externo), que é incapaz de compreender a força da cultura que ele nega

ou explora. Essa violência, que não incorpora o ódio, reconhece a necessidade do outro

como margem e fronteira de sua existência e autonomia, representada em Deus e o diabo

na terra do sol pelo amor brutal de Rosa, que ao destruir o mito (Sebastião), permite

entrever o devir. Sara, movida pela mesma energia amorosa, abandona Paulo em sua

agonia, e volta pela mesma estrada, apontada no gesto de Rosa.

Mais que um filme, Terra em Transe é um acontecimento, um fato que marcou a cultura

brasileira e cinematográfica, no final dos anos 1960. No contexto da ditadura, foi alvo da

censura que tentou sem sucesso compreender a mensagem subversiva do filme e acabou

convencida de que o cineasta não sabia fazer direito um filme4. No cenário internacional,

teve o reconhecimento no festival de Cannes e foi ovacionado pela crítica francesa e

européia, garantindo ao diretor um lugar de autor cinematográfico. Foi mal digerido pela

maioria da inteligência brasileira, à esquerda e à direita confirmando a tese de Darcy

4 Essa aparente ironia, vem sendo repetida pelos críticos contemporâneos de Glauber Rocha, que como o censor citado, também afirmam a incompetência técnica e narrativa presentes nos filmes do diretor. Visão que sugere uma forma de resistência ao embate proposto pelo mau comportamento dos procedimentos cinematográficos adotados por ele e que, a meu ver, apenas atestam a atualidade do autor e de sua obra.

Ribeiro sobre a “difícil tomada de consciência de si” (1995:132) que marca desde sempre

a relação da sociedade brasileira com a imagem bárbara do país.

Alex Viany atenta para isso, ao relativizar a importância do filme ter tido um público

restrito enfatizando no entanto o seu papel na cultura, comparando-o à Semana de Arte

Moderna, “cuja influência se foi espalhando em círculos excêntricos, influindo primeiro

naqueles que estavam mais preparados e que por sua vez trataram de passar a mensagem

a terceiros e quartos, num movimento sempre mais amplo e mais profundo.”

(CINEMAIS, 2005:73-74) Para o crítico e cineasta, Glauber criou em Terra em Transe

um compêndio das dores e mazelas da América Latina, se tornando um profeta do

subdesenvolvimento.

A fortuna crítica publicada na ocasião permite dimensionar o incômodo gerado pela obra,

que como disse Nelson Rodrigues, ficava agarrada em quem a ela se expunha. A

metáfora do vômito foi usada tanto para criar a imagem provocada pela película como

para definir a sensação diante de prato tão desagradável - o Brasil cordial sendo

atravessado e massacrado pela anamorfose da verdadeira barbárie. Segundo o

dramaturgo, o que acontecia é que

“estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil.

Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver

uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma

impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os

Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte,

para ter sentido no Brasil precisa ser esta golfada hedionda!” (CINEMAIS,

2005:80-81)

A metafísica bárbara

Oswald de Andrade dizia no Manifesto Antropófago que “O espírito recusa-se a

conceber o espírito sem o corpo” (ANDRADE, 1995:?), sendo essa marca física uma

característica do próprio modo de conceber o mundo para o eu americano. Glauber

transfere para a câmera o sentido desse aforismo, que se comportará dando substância

corporal às imagens. Por sua vez, os corpos serão o objeto privilegiado na composição do

quadro, transformados em esculturas vivas (FAVARETO, 1995:30).

Pensar com o corpo e “atender ao mundo orecular (sic!)” são os pressupostos do percurso

na consciência agônica do protagonista de Terra em Transe - nossa própria saga rumo ao

vazio constituído pelas ilusões modernistas, que o filme destrói ao optar pela perspectiva

do transe, que conduz o olhar do espectador. Corpos em transformação, imagens

instáveis, mudança contínua, apontam para a impossibilidade de redução das inúmeras

faces dos conflitos apresentados.

A produção desta inquietação, uma constante do barroquismo glauberiano, não nos

permite extrair de suas parábolas e construções alegóricas qualquer interpretação dualísta,

maniqueísta, realista ou panfletária.

O filme é um ensaio político e poético, situado num terreno em que o onírico nasce do

real. Toda a linguagem é distorcida por falas literárias, textos projetados, repetições,

discursos tipificados que no seu conjunto estão a serviço da destruição dos significados

prévios e estereotipados das interpretações da nossa história política. É na violência

antropofágica que Glauber Rocha acorda o espectador que busca um líder, ou um

caminho a seguir para compreensão do filme.

Aqui também não há redenção possível como anuncia o melancólico e antropofágico fim

de Macunaíma, ao som da marchinha patriótica embalando a bandeira verde

ensangüentada, resto da devoração do herói pela Uiara. O intelectual, poeta, jornalista e

político Paulo Martins é um emblema para significar toda uma classe social que se

mobilizava para pensar mudanças no Brasil dos anos 1960.

O retrato criado dos caudilhos delirantes, dos populistas autoritários, e da herança

colonial determina o lugar e função do povo que só aparece no último plano, compondo o

quadro da elite e de seu apetite insaciável. Os fatos concretos são pretextos para a

encenação do conflito, da luta que é travada na alma do moribundo que revê e dá sentido

aos momentos de sua vida que se esvai. O fracasso e a fraqueza de um percurso que se dá

no transe entre dois senhores, entre duas mulheres e entre a política e a poesia.

Glauber produz uma crítica atroz aos messianismos populistas e seus voluntarismos

românticos, construindo uma visão supra-real, na qual o continuum da devoração de

fracos e fortes é produzido pelo movimento do transe, proposto ora pela imagem, ora pelo

som ou pela montagem. Esse texto, escrito com um uso original do dispositivo

cinematográfico, não se entrega fácil ao espectador, obrigado ele mesmo, a se deslocar e

perder sua própria consciência, ao entrar em contato direto com a obra, como desejava o

diretor.

Para Glauber Rocha, a problemática da consciência presente em todos os seus filmes, não

é abordada como programa didático, mas na forma cinematográfica do transe que não

visa alcançar nem a boa, nem a má consciência, mas a possibilidade do movimento e da

mudança. Por isso impede qualquer tipo de proselitismo, ou mensagem política explícita

não deixando os personagens escaparem da sua análise crítica, que se faz pela distorção e

exagero, operadores estéticos da arte barroca.

Ao escolher a agonia do intelectual para narrar a epopéia de Eldorado, Glauber Rocha

denuncia o abismo que separa os que pensam serem os donos da consciência, como os

intelectuais pensadores brasileiros e a realidade do país. O filme é um espelho

multifacetado cuja imagem polimorfa não coincide mais com qualquer referente,

impedindo a identificação em nível temporal ou espacial e na qual as sonoridades, a trilha

e a fala poética é que constroem o sentido.

Glauber incorpora ao método antropofágico uma outra forma presente nas culturas

tradicionais indígena e africana, que é a de tomar posse do outro pela alteração do estado

de consciência, como ocorre no transe místico, estabelecendo um novo pacto com o

espectador. A começar por reconhecer que todos têm o direito a sua própria consciência,

no estágio em que ela estiver, pertencente à classe social, política ou cultural a que

pertencer, boa ou má, à esquerda ou à direita, a favor ou contra os poderosos, a favor ou

contra o povo, ou aos menos favorecidos, inclusive da própria consciência.

Alteração de si

O filme anuncia o transe logo na primeira cena onde vemos o mar e o continente do país

interno – Eldorado, embalado por um canto africano, o mesmo som do candomblé de

Barravento, primeiro filme de Glauber, onde ele denunciava a alienação das crenças

africanas as quais estavam submetidos os pescadores e a comunidade de Buraquinho,

praia do litoral da Bahia. No segundo momento, entramos no transe por meio de dois

dispositivos: a câmera de mão de Dib Lutfi, e o som quase histérico de uma bateria que

simula tambores militares e coreografa os inúmeros deslocamentos dos personagens no

terraço de Vieira, vivendo a crise da deposição do governador.

Não há como resistir, e somos tomados por essa onda de ritmo e movimento que nos

levará de um lado ao outro até o fim do filme. É como se na primeira cena o espectador

fosse vítima de um passe mediúnico no qual baixaria o santo obrigando-o a atravessar

junto a agonia do narrador póstumo, e fio condutor da epopéia. Isso se dá porque o

particular nessa história é o Brasil de ontem e sempre, mas também a América Latina e

suas relações colonialistas e de poder com os países externos,(Europa e os Estados

Unidos). Na sua reversibilidade (externo-interno), oprimidos, opressores, oprimidos

opressores, opressores oprimidos, a saga de Paulo Martins, além de ser a nossa, diz

respeito a todos os seres humanos e atinge aí o universal.

Esse fluxo de imagem e som que se segue propõe mais do que a fruição ou a reflexão

(como em Eisenstein e Rossellini), mas uma experiência real, um contato com o ser

Brasil, construído e reconstituído em alegorias pela combinação cuidadosa e detalhada de

seus emblemas. Em cada quadro, está assegurado o lugar para o representante das elites,

das forças armadas, da militância política, do poder executivo, das forças populares, da

santa igreja católica, signo esse proliferado na evocação da cruz e da fé. Não há no

entanto, qualquer figuração naturalista, o que impediria a ampliação dos sentidos e a

compreensão das parábolas dentro da visão de cada espectador.

As formas criadas não buscam parâmetros, padrões que permitam qualquer mensagem

explícita, porque tudo, absolutamente tudo, leva ao conflito, a um estado de instabilidade.

Não há um instante em que o movimento cesse, sempre proposto em mais de um registro.

O quadro enquanto dispositivo da construção metafórica do país é arruinado a cada

momento por um movimento brusco da câmera de mão ou por uma fala ou gesto

violento. O constante estado alterado de consciência do moribundo narrador produz a fala

delirante e poética do personagem, nos conduzindo sempre ao simbólico, ao abstrato, em

choque com a dureza realista das imagens, com as quais temos que nos identificar.

Tudo aqui está em excesso. A floresta, a floresta, a floresta. O sol, o sol, o sol. A

exuberância tropical é sufocante em contraposição a todos os estados de carência e de

falta presentes nas situações apresentadas. Na falta de terra para os pobres, na falta de

sinceridade dos políticos, na falta de coerência dos intelectuais, na falta de visão das

esquerdas, na falta de compaixão das direitas, na falta de coragem dos oprimidos, na falta

de saída para o pais. O ceticismo da elite e dos brasileiros é ilustrado pela fala do

magnata Júlio Fuentes, que ao ouvir de Paulo Martins a afirmação de que o país tinha

outra saida que não a dos caudilhos Fernandes ou Diaz, pergunta, para onde?

Apesar de uma aparente marcação que estrutura o papel desempenhado pelas

representações dos personagens no grande quadro brasileiro, no qual o povo é fundo, ator

coadjuvante ou mera figuração a não ser quando é folclorizado, ou incitado a falar, as

situações são quase sempre cambiantes, tendendo a desordem, ao descontrole. Nos

diversos eventos onde o povo está presente, a dialética homem – massa, passivo –

revolucionário é posta violentamente em questão. Uma interpretação afirmando que

Glauber quer mostrar a passividade, a fragilidade do povo brasileiro diante dos

poderosos, ou a incoerência dos intelectuais, comprometidos com a própria visão da

classe a que pertencem, seria reduzir a movimentação das consciências internas e

externas ao filme, ali expostas na crueldade das falas e das imagens implacáveis, sem

qualquer traço paternalista ou de boa consciência. A estética da fome é radicalizada no

intuito de captar o invisível do visível, de fazer ouvir o que não é audível e que só cabe

no drama, que a todo momento nos remete às formas polivalentes do barroco.

A principal delas é a polifonia composta entre as falas, trilha sonora e sons incidentais,

quase sempre percussivos, sem qualquer relação imediata com as imagens. Daí o adjetivo

operístico utilizado de forma apropriada em várias análises do filme, já que ele funciona

como uma ópera orquestrada ao som dos brasileiros Carlos Gomes, Villa Lobos e Sérgio

Ricardo e do compositor italiano, Verdi. Sobre esse último, Sérgio Magnani descreve os

elementos da sua ópera realçando o papel do coro, como o do povo, do anseio coletivo,

da paixão pela pátria e da terra e da angústia de luta e de libertação. Segundo ele,

“Em tal atmosfera incandescente, pouco importa a palavra em si, interessa um

teatro de situações, marcado por uma tensão ética rumo à catarse final, com

personagens de todos os relevos, verdadeiras apenas no sentido de uma humanidade

ideal, absolutamente boa ou absolutamente má, incapaz de concessões hipócritas ou de

arrependimentos.” (MAGNANI, 1996:183)

Todas essas afirmações serviriam para caracterizar analogamente o tratamento do filme

como um todo e demonstra a intensidade de significados da trilha para a expressão

fílmica, nos variados momentos em que a misé-en-scénè é coreografada e regida pela

música e pelo som.

Enquanto um elemento fundamental do transe místico do camdomblé, da Umbanda e dos

rituais indígenas, as músicas, a percussão e as metralhadoras como os atabaques dos

terreiros prefaciam e finalizam os diversos momentos de ocorrência do transe no filme.

Em quase todas as sequências, há um desenvolvimento rumo ao transe, num crescendo

que no lugar de distender a tensão, amplia e aprofunda o conflito, o choque encenado

pela câmera anímica que coloca o corpo do próprio diretor em cena. Câmera tátil que toca

pele e osso, e quase sempre sangra junto com os personagens, aviltados, assassinados,

violentados ou ensandecidos.

Por uma postura e escolha brechtiana, Glauber não faz melodrama, produzindo

estranhamento e distanciamento no lugar de identificação, com a penúria distorcida das

ações e reações dos personagens, em nada agradáveis. O filme toca sonoramente os

nervos dos espectadores convidados ao contato quase físico com tudo o que constitui a

essência do drama social e político do país. As elites decaídas e desumanas, a sede de

poder, o interesse privado acima do interesse público, as ilusões esquerdistas, o

caudilhismo, o peleguismo, a exploração da imagem de um povo chucro sem qualquer

autodeterminação, e sobretudo com a incipiência da consciência representada pelo

protagonista vacilante, romântico, anarquista e irremediavelmente vencido.

A densidade do transe é também construída no iconográfico, no pictórico ou cenográfico

num desfile de formas compostas entre a luz natural e o barroco tropical das plantas,

árvores, jardins luxuriantes, quadros naturalistas, esculturas de Aleijadinho, compondo e

ornamentando os personagens. Esse aspecto, também comum à cinematografia brasileira,

foi responsável pelo grande clichê da bonomia tropical registrada em signos de cartão

postal (bananas, abacaxis, coqueiros, corpos nus, pão de acúcar etc).

Aqui a matéria é outra. Eldorado era o sonho dos colonizadores, uma terra mítica, rica em

metais preciosos, florestas, pássaros e animais raros que contagiaram o imaginário dos

exploradores europeus. A atmosfera do filme produz um efeito de ressonância no espaço

ampliado, como se as ações pudessem reverberar no cenário da floresta, ou na luz tropical

estourada. Tomadas aéreas e planos gerais nos dão a dimensão das áreas verdes e mesmo

do chão (filmadas no Parque Lage) tomamos contato com as plantas da floresta da Tijuca,

com seus excertos de mata atlântica.

O personagem Porfírio Diaz é a constante do transe, apresentado sempre em tom de

desvario, trazendo para o primeiro plano as imagens da tradição cristã, do arcaico e da

herança colonial, esculpidas em alegorias carnavalescas onde o luxo é acentuado. Nas

cenas de interior da sua casa, locadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com seus

vitrais franceses, colunas e corrimões dourados completam o perfil do personagem

solitário e poderoso. A figuração de Diaz é criada em contraposição a qualquer tipo de

racionalidade ou explicação, o que acaba por produzir uma estranha verossimilhança com

a cena nacional em qualquer momento histórico ou histérico do Brasil. Impossível

reconhecer nele apenas uma referência como a do insano e popular Jânio Quadros ou de

Carlos Lacerda. Na sua verve barroca, caberia uma galeria de homens públicos que

encenaram e encenam a tragicomédia da política brasileira.

A montagem é metalinguagem do transe. Algo que se dá entre as coisas, que cria ou

rompe os elos possíveis, transformando os estados pré-existentes. Segundo os registros

do filme, o primeiro montador pediu demissão porque Glauber quebrava todas as regras

de edição fílmica. É aí que se revela o seu intuito e digamos, o seu método. Segundo o

diretor, a montagem era parabólica, em curva e não em linha reta, e como nas parábolas

da Bíblia, deveria falar de uma coisa para dizer outra, como nas construções alegóricas,

cujo sentido nasce da destruição, da ruína da coisa representada. Apesar de ser narrado

em flash-back, o que justifica os saltos, trafegamos na memória do protagonista, sem que

a narrativa busque uma coerência do ponto de vista da linearidade. Os quadros são

montados de maneira a aprofundar o conflito que ocorre internamente a ele, acentuado

pela movimentação, pela representação emblemática, pela rigidez ou fluidez da relação

fundo figura.

O transe da consciência Narrado em flash-back, por um moribundo, o filme reconstitui a memória de Paulo

Martins, poeta que se encontra à morte e recupera todo o processo político e pessoal que

aspirava uma articulação entre sua poesia e a política. Segundo Picado (1991:54),

“essa é uma visão privilegiada do autor, como constituição de sua consciência –

que se desdobra em formulações precisas, ainda que não denotadas, sobre a

questão da nacionalidade como fundada numa filosofia da consciência (grifo

meu).”

Como é característico da obra de Glauber, não há a figura do herói já que o próprio poeta

encontra-se emaranhado nesse processo, frustrando a nossa tendência natural em idealizar

o protagonista, que é visto pelo diretor de maneira crítica. Para Robert Stam (1981;41-2),

isso caracteriza uma recusa das convenções do realismo dramático, na criação de um

narrador póstumo, como em Brás Cubas de Machado de Assis. Assim, a memória de

Paulo Martins se constitui numa auto-análise implacável de onde surge o passado de

Eldorado, sem qualquer encantamento. Picado (1990:57) chama atenção para a forma

como essa memória vai ser erigida caracterizando uma reflexividade do olhar e uma

recusa de Glauber em fazer coincidir o pensamento com a realidade. Para ele,

“A imagem virtualizada da memória do poeta em Terra em Transe é uma unidade

entre um modelo não atualizado de lembrança e uma imagem conceitual, produto

de uma intelectualização do processo de articulação das imagens.”

A imagem de Diaz condensa de forma alegórica todos os signos das nossas tradições

étnicas, religiosas e culturais que, segundo Picado, faz com que vejamos “esses seus

traços constituidores atribuídos pela imagem, de uma forma quase instantânea – seria

quase que uma atribuição sem narração”(1990:60).

A categoria estética do transe assume abertamente a impossibilidade de se falar o Brasil

de uma forma coerente, lógica numa perspectiva lúcida. Então resta ao diretor a

possibilidade de fazer mover as consciências sem que isso se apresente como uma

direção, um foco, uma “boa consciência”. Os heróis glauberianos são fracos, indecisos, se

alternando entre aquilo que idealizam para si e para o país e aquilo a que se submetem,

num transe contínuo, onde a consciência oscila entre o delírio e a realidade, submetido a

uma tortura, como protagoniza Paulo Martins. Mas também os outros personagens estão

entre o estado de lucidez e de inconsciência, e assim o espectador não tem a quem seguir,

estranhando a cada movimento do pensamento a condição de sua própria consciência: o

que eu penso diante da afirmação de que o povo é imbecil e analfabeto?

Entre a boa e a má consciência, Glauber produz em nós uma consciência em transe,

fazendo com que o público se identifique não com o filme, mas com o país, e assim tome

consciência da sua própria existência.

Sua propedêutica diz respeito aos elementos para a construção também de uma

linguagem em transe, que elege o gênero da epopéia como narrativa, elevando a

representação de personagens à generalidade do humano. A épica, que para Glauber é

uma prática poética que do ponto de vista estético projeta o ético, narra uma determinada

saga dos povos da América Latina e do terceiro mundo, e daí a importância de marcar

com elementos da realidade o seu caráter. Criar emblemas que facilitam e ampliam o

significado de cada personagem, sempre sugerindo uma galeria de tipos de tal forma bem

construídos que podem resistir ao tempo e às mudanças que ocorreram na sociedade

brasileira por que refletem os mitos estruturantes dessa realidade.

Glauber reconhece o potencial ideogramático do audiovisual que se justifica porque

sendo o mito um ideograma primário, ele serviria para nos auto-reconhecermos. Aliando

isso ao traço fundamental de uma cultura historicamente ligada à saga, ao épico, onde a

língua e o mito materializam as tradições, as crenças e principalmente as relações

arcaicas de dominação. O ideograma se prestaria à criação de um cinema que não se

pretendia enquanto discurso mas enquanto experiência.

Em Terra em Transe, as alegorias são o procedimento que permite a transição entre essas

imagens esculpidas no movimento entre mostrar e mascarar, até que se cumpra a

significação, que é resultado dos contínuos massacres e ruínas processadas ora na

imagem, ora nas falas ou no som, ampliadas pela eficiência simbólica que regula a

montagem.

No filme Di/Glauber, quase dez anos depois da realização de Terra em Transe, Glauber

retoma o tema da morte e do transe, experimentando um formato que incorpora o

documentário, a videoarte e a televisão.

Di e a manducação glauberiana.

“Di foi pra sempre embalsamado, como um faraó, num documentário de

Glauber que constitui, na minha opinião, a mais eloqüente negação da

morte em toda a história das Artes no Brasil.. filme que transformou um

velório no MAM na mais pertubadora obra de arte jamais exibida num

museu...Glauber tinha aprontado Di para a eternidade. Além dos quadros

e desenhos, Di ia durar ele próprio.” (Antônio Calado in: FINKELSTEIN,

1986: p8-9)

O enterrro de Di Cavalcanti serve a Glauber para reavivar a memória dos seus

antepassados, recalcada pela “catequese e pela repressão colonial”, e libertar suas

imagens e sons, aprisionados por um trauma secular.

O filme se baseia no confronto das forças que fabricam e marginalizam a cultura

brasileira, que jaz no caixão. Mote inicial do rito funerário poético que será construído ao

longo dos seus 18 minutos, sem perder nunca de vista a ambigüidade que potencia o

canibalismo que ali será praticado como dispositivo retórico, aspecto esse nem sempre

bem compreendido pela intelectualidade crítica de Oswald de Andrade e pelos analistas

dos filmes de Glauber.

O filme é um ato de vingança. Vingança no estilo Tupinambá, vingança dos parentes

devorados pelos contrários e também anúncio da futura vítima, que é o próprio diretor. A

vingança como instituição que produz a memória do grupo, já que ela não é outra coisa

que essa relação com o inimigo, que permite que uma morte individual dê vida longa ao

corpo social (CASTRO, 2002:233-234). Isso filia o filme ao modernismo e se realiza

como neo manifesto antropofágico5, em que operam as palavras desordenadas, o conflito

entre as imagens e o choque harmônico musical.

Na vingança antropofágica só existem iguais6. Por isso a atitude fundamental da

antropofagia oswaldiana é a anti-hierárquica, contrária à noção naturalizada de atraso

5 Aqui é a forma que está em questão, já que a antropofagia é um pressuposto assumido pelo diretor em toda sua obra. 6Para Rubens Caixeta “o princípio antropofágico tal como praticado pelos índios americanos pressupunha grupos sociais distintos partilhando em pé de igualdade de um mesmo universo cultural, no qual nenhum era ou se considerava superior ao outro.” In CAIXETA, 1999. p.41. Segundo ele, a antropofagia não poderia se dar entre modernistas e vanguardistas europeus porque não haveria pé de igualdade entre eles. A meu ver, o autor não compreende o seguinte: 1.A antropofagia Oswaldiana modernista é uma metáfora que simboliza a recuperação da força ancestral para combater o trauma cultural herdeiro da repressão jesuítica que instituiu essa diferença que não existia entre os tupis da Costa e os europeus que aqui chegaram. Esses grupos, como demonstram os relatos de viajantes e padres, tinham desejos mútuos de absorção de valores

devida a decalagem de tempo e espaço que os povos da periferia mundial estariam

condenados, já que por origem habitam as margens do centro. A perspectiva

antropofágica é crítica e produtiva ao estabelecer a troca com os outros desejados, e para

determinar o lugar do significado cultural inscrito nas próprias obras.7

Na antropofagia modernista o outro é uma heteronomia necessária para a constituição de

autonomia, o que inverte e supera tanto a sua assimilação hierárquica quanto qualquer

idéia de atraso ou de descompasso. Na antropofagia ritual Tupinambá, a devoração do

outro é constante por duas razões fundamentais - para manter as relações de troca que

produzem o movimento e para garantir a mudança e a permanência do mundo. Essa é a

herança Tupinambá que Oswald de Andrade soube capturar na sua essência, muito antes

de Lévy-Strauss escrever suas Mitologias. Portanto, a carência do outro na cultura

brasileira não se deve a uma falta contingente (pobreza, atraso, indigências de qualquer

tipo), mas por um desejo sempre irrealizado de transformação, que estava pré-figurado na

filosofia dos habitantes da costa brasileira do século XVI. Aqui a morte é concebida

como positividade necessária para a fabricação do futuro (CAIXETA, 1999:42).

Di/Glauber é um efeito demonstração da antropofagia no qual Glauber reedita as

principais características do ritual de captura, morte e devoração do inimigo, resgatando a

memória dos seus antepassados modernistas. O filme marca na obra de Glauber uma

transformação como a operada pelos guerreiros Tupinambá, que depois do ritual

mudavam de status dentro da tribo, ganhando um novo nome, escarifações, mulheres e

principalmente, o poder de falar em público, ampliando o grau de autonomia frente ao

grupo (ALMEIDA, 2002). Glauber fecha um ciclo do seu trabalho nesse filme, criando

uns dos outros. No Manifesto Antropófago, Oswald inverte a hierarquia da absorção dos valores eurocêntricos demonstrando que esses dependeram em muitos casos da descoberta do outro americano. Diz ele, “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” 2.A antropofagia modernista vai permitir o diagnóstico dessa situação produzindo pela linguagem ou metáfora poética, a sua superação. 7Isso vem se materializando hoje nos movimentos das periferias dos grandes centros urbanos como atesta a neo antropofagia proposta pela Semana de Arte Moderna 2007 conceituada em seu Manifesto da Antropofagia Periférica. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG79089-6014-487,00.html

novas possibilidades de interação entre a obra, o real e o espectador o que será

posteriormente desenvolvido na sua atuação para o Programa Abertura e levado ao cabo

em A Idade da Terra. Essa liberdade de absorver a heteronomia adquirida na devoração

de toda e qualquer diferença é transubstanciada na afirmação de uma autonomia frente a

linguagem cinematográfica.

Sobre o cadáver de DI Cavalcanti

O trabalho de Glauber em Di é decalcar, como faz o restaurador de imagens ao retirar as

camadas de tinta que escondem o veio da madeira, que será depois lixada e encerada para

ser vista nua.

Para realizar essa transformação, o filme toma como objeto a morte, a morte no cinema, a

morte do ciclo modernista, a morte enquanto impossibilidade de realização de um projeto

autônomo da cultura nacional, para questioná-la. Di/Glauber, representa tanto o

movimento das idéias e da cultura, condensados na obra e vida do pintor Di Cavalcanti

como a própria situação do cineasta, nesse mesmo cenário. Fundido ao ilustre cadáver,

Glauber vai utilizar os recursos do cinema para encenar a devoração ritualística do artista,

ou nas suas palavras, para vencer o dragão, entidade que representa a dimensão mítica

das forças contrárias e poderosas que impedem a afirmação e o reconhecimento de uma

cultura genuína e vigorosa. É o dragão da maldade em sua eterna luta contra o santo

guerreiro, São Jorge, que Glauber também encarna como seu próprio personagem no

filme (ROCHA, 198?).

Para comer Di, Glauber vai incluir na sua desnarração todas as formas literárias e

midiáticas de produção de notícias, de fatos, de eventos da televisão, do rádio ou do

cinema. A página policial, o fait-divers, a crítica especializada, a narração de futebol são

utilizadas como formas iconoclastas que operam a dessacralização do ritual católico,

transformando-o em ato xamânico antropofágico (FONSECA, 1999: 50-57). Glauber

assume a figura do afim incumbido de levar Di do mundo dos vivos ao mundo dos

mortos, utilizando personagens e aspectos narrativos do mito de Orfeu e Eurídice. Essa

operação crítica que funde fato e mito causa imediato estranhamento no espectador que

não sabe mais sob qual registro deve acompanhar o desenrolar do funeral.

O documentário foi realizado entre o período da ditadura e a abertura política que

começava a ser tramada nos gabinetes do poder. Glauber politiza sua estética: ressuscita

JK e Jango, retirando o Brasil do caixão. No mito órfico, mote da narrativa, Orfeu desce

aos infernos para resgatar a alma de Eurídice, ousando ver o invisível. O cinema se presta

a essa operação – fazer ver o invisível. Portanto, o que vemos é a construção de um ritual,

de uma celebração que tenta pela intensa movimentação, pela música e pela dança fazer

jus à cor, a forma e intensidade da pintura viva de Di.

Logomaquia glauberiana

Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. (Jornal do Brasil, quinta-feira, 28/10/1976. Primeiro Caderno, página 15.) Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12. Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul marinho, casaco azul claro... Corta! (...) Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12. Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons.

Um ritual antropofágico cinematográfico modernista do cinema novo. Glauber opta nesse

filme por uma elaboração audiovisual estrito senso. Não escrever ou dizer com imagens e

sons, baseando-se ainda nas referências textuais ou da palavra dita. Produzir ideogramas

copulativos como queria Eisenstein, mas a partir da destruição da matéria fílmica. Morte

das formas pré-existentes para sua recriação.

O conflito de imagem e som tem origem no trauma repressor simbolizado pelo funeral

católico, que faz da morte uma tragédia e ato de constrição, opondo violentamente a ele a

vitalidade da obra de Emiliano Di Cavalcanti, orquestrada pelo ritmo do corpo de Pitanga

ao som de Lamartine Babo, ambos parentes do morto. A despeito do valor atribuído pela

crítica cultural, as imagens resgatam aos nossos olhos, o vigor, a beleza e espontaneidade

registradas nos quadros, animados pela dança da câmera e do ator Antônio Pitanga.

Os índios Tupinambá tinham pavor de apodrecer e de serem enterrados e comidos pelos

vermes, daí preferirem ser devorados pelos inimigos ou por seus afins. É o que Glauber

Rocha tenta evitar que aconteça ao cunhado. Ao unir-se ao corpo do artista, Glauber leva

ao paroxismo uma das dimensões da antropofagia enquanto devoração, que é seu poder

curativo e terapêutico, capaz de “libertar o morto de sua hipócrita-trágica condição”

(GLAUBER, 198?).

Mas é o debate final entre o executor e o cativo que é exemplarmente metaforizado no

filme, na produção de uma verdadeira logomaquia, gênero que o diretor inventou e

desenvolveu com absoluta maestria. Nesse acerto final de contas, entre o que vai matar e

o que vai morrer se dá todo o sentido da cultura Tupinambá. A arenga que acusa o outro

de ter devorado os parentes é o signo da vingança que ali se completa, e se mantém na

réplica do cativo prometendo que os seus o vingarão e confessando que aquela carne que

será comida é também a daqueles contrários já alterados em si. Essa é a revelação do

significado do tempo e da memória contidos nessa guerra de palavras.(CASTRO, 2002).

Em Di, o conflito se dá entre as vozes que se multiplicam acionadas pelo próprio

narrador, variando pelo tom, pela contrariação das afirmações, pela violência explícita:

A palavra do Di Cavalcanti! A palavra do Di Cavalcanti! Di por Di! As vozes do túmulo: “sou um gênio, um velho, uma gloria nacional! Não encham o meu saco!”

Tacapeando valores estéticos, destruindo a noção de discurso e promovendo uma

mudança perceptiva no espectador, Glauber tira seu canto novo, como dizia Mário de

Andrade (1982), explicando a formulação da disputa que ocorre no interior do repente

nordestino, utilizado como forma narrativa pelo diretor.

Transe e barroco

Pelo transe entre imagem e som é criada a polifonia e polimorfia barroca, explicitada na

menção feita por Glauber, da influência dessa arte na obra de Di. O diretor nos mostra a

percepção de uma série de percepções que conformam e deformam a visão da arte

brasileira. No centro, a arte popular, as manifestações da cultura popular, as

representações da imagem e dos sons do país animados ao ritmo de sambas e cantos

tradicionais e de Villa-Lobos. Os modernistas redescobriram o país e inventariaram suas

formas folclóricas que Glauber ali exprime em tons fortes, revelando o traço vigoroso

dessa multiplicidade.

“Dorival Gomes Machado, diz que a pintura de Di Cavalcanti é uma

expressão que apanhou, em sua tecitura vital, a realidade brasileira. E

com tal identidade e essência, que faz lembrar a milagrosa

correspondência entre o barroco seco de Minas Gerais e a feição desta

província misteriosa. Talvez, se pudesse ir mais longe, há algo de

semelhante entre a mulatização de Nossa Senhora nos céus da capela

franciscana de Ouro Preto, levada a cabo por Ataíde, e a madonização da

mulata na pintura de Di Cavalcanti.”

Um Brasil lusitano, africano, indígena, massarábico (sic)!

Na cinematografia de Glauber é possível identificar o traço barroco como uma marca da

sua concepção imagética e da produção de formas plurais e polifônicas. Numa busca

constante de produção do descontrole, de maneira a propor a prevalência do acaso sobre

o roteiro criando momentos únicos decorrentes ou que evoluem para o transe.

O transe como categoria estética plurívoca permite a passagem entre estados emocionais,

que leva a momentos de crise e aponta para o que ainda não há. Essa escolha sempre

arriscada revela o desejo irresistível de libertar o espectador da imobilidade da

consciência, forçado a entrar na dança das imagens, palavras e sons.

Com poderes mágicos de um pagé, o diretor homenageia o Quarup, festa indígena de

celebração dos mortos e ressuscita Di. A morte em Di, como afirma Glauber, é um

massacre dialético que se autodefine na síntese fílmica e “é do expurgo que sobram as

metáforas vitais.” Glauber descreve aqui o procedimento alegórico, recorrente na

elaboração parabólica de suas obras, onde a destruição e a violência operam a

consciência. Para o autor, filmar a morte de Di além de ser um o ato de humor

modernista-surrealista era uma forma de resistência. Fênix Glauber, morto e renascido, se

identifica com o defunto, com a morte de um ciclo (o dos modernistas brasileiros) que se

encerra naquele caixão. Como prato de um banquete antropofágico, Glauber oferece aos

espectadores o debate vivo da cultura brasileira que suscita as “grandes indagações

metafísicas”, como ironiza o diretor.

Transe – um operador estético da antropofagia

No seu livro Diários Índios, Darcy Ribeiro (1996) anota aspectos cotidianos dos grupos

Urubu e Kaapor, do alto-xingú narrando seu cotidiano. Segundo o antropólogo, um

desses grupos costumava acordar diariamente com um choro de criança em torno das

3:30 da manhã, e então começava uma intensa movimentação em torno do fogo para

fazer o chimbé, seguido do entoamento de cantos e danças que contaminavam toda a tribo

e se transformava numa animada cerimônia, antes mesmo do galo cantar. Assim ficavam,

por quase duas horas quando então voltavam às suas redes para descansar, principalmente

em dias de chuva.

Essa disposição natural para a alteração do estado de consciência de maneira coletiva é

algo que podemos testemunhar em todas as tardes de domingo nas diversas fases dos

campeonatos nacionais de futebol. Rumores, gritos, tensão, chingatórios ou gritos de

alegria sem fim, culminados em foguetório. O seu paroxismo é atingido na festa máxima

da nação – o carnaval, expressão absoluta do transe, em que a alteração pode ser vivida

sem qualquer repressão. Também os rituais religiosos brasileiros, de maneira mais

regrada, são lugares para sua expressão, incluindo igrejas pentecostais, o catolicismo

carismático que parecem necessitar da energia liberada no transe para fazer face aos

rituais dos inúmeros espiritismos, da umbanda, do candomblé e xamanismos. A vivência

do transe numa sociedade cuja constância é a crise nos é familiar e necessária. Ela parte

de um princípio simples e acessível a todos de que se há um lado, há também outro que

se pode sempre atravessar. O movimento inscrito no transe une vida e morte, o visível e o

invisível criando um lugar que só existe no seu próprio fluxo. Aquilo que Rosa chamou a

terceira margem do rio, do qual foi o seu maior mestre. O transe antropofágico poético

modernista, cinemanovista ou tropicalista que se dá na linguagem, ou na produção de

uma língua que recria a memória e inventa o mundo.

Portanto, o que Glauber produz como um marcador do seu pensamento audiovisual, na

operação do transe presente nos dois filmes analisados é ao mesmo tempo uma expressão

de um modo de ser de uma sociedade, fruto ela mesma de um intenso trânsito étnico e

cultural, sempre atravessado de violência, conflito e perigo. A matéria fluida do transe é

metáfora da incerteza, da instabilidade, de transformação e mudança sempre colocando

em risco os estados pré-existentes. Por isso sua propedêutica incluía a excitação, a contra-

informação para a produção do acaso, encarnado na crise dos personagens. São inúmeros

os depoimentos de atores e técnicos que trabalharam com o diretor e sofreram com o seu

método implacável.

Se nada fica intocado pela metralhadora implacável do diretor, é desse arruinamento que

surge a obra de arte, nesse fluxo de dor e sangue, declarando na morte insignificante do

protagonista de Terra em Transe, o triunfo da beleza e da justiça. O princípio estético é

indagado a todo momento e colocado às vistas para a nossa perplexidade ao mesmo

tempo que nele reconhecemos algo que nos é próprio e que diz respeito a nossa

originalidade. Para Stam (1981:38), no entanto, há nesse filme uma espécie de exorcismo

artístico no qual Glauber Rocha purga seu próprio romantismo. O filme mostraria que

atitudes românticas não teriam mais lugar num mundo sujeito ao transe, o que ele mesmo

levou a cabo, provando com a sua morte prematura que a poesia e a política eram demais

para um só homem.

Terra em Transe se representa e reitera a contradição da alma brasileira, entre o que

espera que o país seja e aquilo que é, propõe que essa impossibilidade se transforme em

trunfo, em base para uma futura sociedade humana mundial, como sugere Jarbas

Medeiros (1987). Ou nas palavras de Glauber, “Construir uma civilização na América

Latina a partir de sua realidade mesma de dor, de podridão, do circo.” (MEDEIROS,

1987).