Capitalismo Dos Técnicos e Democracia

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 CAPITALISMO DOS TÉCNICOS E DEMOCRACIA Luiz Carlos Bresser-Pereira  Revista Brasileir a de Ciências Sociai s, 20 (59), outubro 2005: 133-148. O s!ulo "" #i!ar$ !o%&e!i'o %o #uturo or uitas u'a%*as iorta%tes: #oi o s!ulo 'o ro+resso te!%ol+i!o, 'as or+a%iza*es ais 'o ue 'as u%i'a'es 'e ro'u*/o #ailiares o s!ulo e ue o %ero 'e buro!ratas ou 'e t!%i!os aue%tou a o%to 'e ere!ere ser i'e%ti#i!a'os !oo ua !lasse so!ial a !lasse 'ia ro#issio%al. u%tae%te !o essas u'a%*as, #oi o s!ulo e ue o !o%&e!ie%to a!abou se tor%a%'o o #ator 'e ro'u*/o 'e!isio, e o !o%trole 'o !o%&e!ie%to te!%ol+i!o, or+a%iza!io%al e !ou%i!atio tor%ou-se estrat+i!o. o e%ta%to, #oi tab o s!ulo 'a 'eo!ra!ia, ue rerese%ta u #reio a esse %oo o'er, ao eso teo e ue !o%'i!io%a'a or ele. 6%ua%to o!orria u'a%*as %as es#eras so!ial e ol7ti!a, as e!o%oias eerie%tara e%ore !res!ie%to e toara-se uito ais !oleas. esse  ro!esso, os er!a'os assuira u ael iorta%te %a !oor'e%a*/o 'a e!o% oia  alo!a%'o #atores 'e ro'u*/o ere+a'os elas eresas !oer!iais , as, obiae%te, a !oor'e%a*/o 'e to'o o sistea ultraassou e uito suas ossibili'a'es.  a es#era ol7ti!a a!ro, o ael 'o 6sta'o e 'o sistea i%stitu!io%al ou le+al ue ele !ria e ie !res!eu etraor'i%ariae%te. o bito 'a so!ie'a'e !iil ('a so!ie'a'e  oliti!ae%te or+a%iza'a), as or+a%iza*es !ororatias e, e u s e+u%'o oe%to, as or+a%iza*es 'e reso%sabili'a'e so!ial !res!era e %ero e i%#lu%!ia, a+i%'o !oo e!a%isos 'e !o%trole 'os +oer%os. ;o eso teo, %a es#era e!o%<i!a, as +ra%'es !orora*es e to'os os outros tios 'e +ra%'es or+a%iza*es toara-se  re'oi%a%tes e to'a arte. ;s eresas ei+ia eres$rios, as or+a%iza*es  re!isaa 'e a'i%istra'ores ou t!%i!os ou ro#issio%ais abra%+e%'o u es e!tro !a'a ez aior 'e ese!iali'a'es. ;s or+a%iza*es !o%ti%ua a ei+ir a*/o eresarial ou i%oa'ora, as o es7rito eree%'e'or se tor%ou !a'a ez ais !oletio, e %/o i%'ii'ual. =e%tro 'e to'as as or+a%iza*es, !oe*a%'o elo aarel&o 'o 6sta'o e i%!lui%'o as or+a%iza*es 'e reso%sabili'a'e so!ial se #i%s lu!ratios, as +ra%'es eresas !oer!iais e as +ra%'es or+a%iza*es 'e seri*o se #i%s lu!ratios, as 'ea%'as 'e !o%&e!ie%to t!%i!o, a'i%istratio e !ou%i!atio tab !res!era 'raati!ae%te e o o'er 'os a'i%istra'ores ou t!%i!os aue%tou  roor!io%ale%te. o u%'o !o%teor%eo, i%stitui*es, or+a%iza*es e re'es s/o uito ais !oleas, %a e'i'a e ue i%!orora u ro+resso !ie%t7#i!o e te!%ol+i!o !a'a ez ais so#isti!a'o e ue li'a !o +ra%'es or+a%iza*es, re+ula%'o re'es 'e%sas. 6 19>?, @albrait& obserou ue o !o%&e!ie%to t!%i!o ti%&a se tor%a'o u #ator 'e ro'u*/o estrat+i!o. A ou!o ais tar'e, ua%'o es!rei eu e%saio  b$si!o sobre o aare!ie%to 'a te!%obu ro!ra!ia ou 'a !lasse 'ia ro#iss io%al, a!res!e%tei ao !o%&e!ie%to t!%i!o o !o%&e!ie%to or+a%iza!io%al ou a'i%istratio (Bresser-Pereira, 19?2) estou a+ora i%!lui%'o u ter!eiro elee%to, o !o%&e!ie%to !ou%i!atio, ara e%#atizar o %oo ael 'esee%&a'o ela te!%olo+ia 'a i%#ora*/o %a #ora*/o 'auilo ue a%uel Castells (199>) 'e%oi%ou, e a%alisou !o ta%ta a+u'eza, a so!ie'a'e 'as re'esD. C&aarei essas trs #oras 'e !o%&e!ie%to 'e !o%&e!ie%to oera!io%alD, %a e'i'a e ue elas s/o %e!ess$rias ara tor%ar oera!io%ais as o'er%as e !oleas so!ie'a'es e ue ieos. 134

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CAPITALISMO DOS TCNICOS E DEMOCRACIA

CAPITALISMO DOS TCNICOS E DEMOCRACIA

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Revista Brasileira de Cincias Sociais, 20 (59),

outubro 2005: 133-148.

O sculo XX ficar conhecido no futuro por muitas mudanas importantes: foi o

sculo do progresso tecnolgico, das organizaes mais do que das unidades de produo

familiares; o sculo em que o nmero de burocratas ou de tcnicos aumentou a ponto de

merecerem ser identificados como uma classe social a classe mdia profissional.

Juntamente com essas mudanas, foi o sculo em que o conhecimento acabou se tornando

o fator de produo decisivo, e o controle do conhecimento tecnolgico, organizacional e

comunicativo tornou-se estratgico. No entanto, foi tambm o sculo da democracia, que

representa um freio a esse novo poder, ao mesmo tempo em que condicionada por ele.

Enquanto ocorriam mudanas nas esferas social e poltica, as economias

experimentaram enorme crescimento e tomaram-se muito mais complexas. Nesse

processo, os mercados assumiram um papel importante na coordenao da economia

alocando fatores de produo empregados pelas empresas comerciais , mas,

obviamente, a coordenao de todo o sistema ultrapassou em muito suas possibilidades.

Na esfera poltica macro, o papel do Estado e do sistema institucional ou legal que ele cria e impe cresceu extraordinariamente. No mbito da sociedade civil (da sociedade

politicamente organizada), as organizaes corporativas e, em um segundo momento, as

organizaes de responsabilidade social cresceram em nmero e influncia, agindo como

mecanismos de controle dos governos. Ao mesmo tempo, na esfera econmica, as grandes corporaes e todos os outros tipos de grandes organizaes tomaram-se predominantes em toda parte. As empresas exigiam empresrios, as organizaes precisavam de administradores ou tcnicos ou profissionais abrangendo um espectro cada vez maior de especialidades. As organizaes continuam a exigir ao empresarial ou inovadora, mas o esprito empreendedor se tornou cada vez mais coletivo, e no individual. Dentro de todas as organizaes, comeando pelo aparelho do Estado e incluindo as organizaes de responsabilidade social sem fins lucrativos, as grandes empresas comerciais e as grandes organizaes de servio sem fins lucrativos, as demandas de conhecimento tcnico, administrativo e comunicativo tambm cresceram dramaticamente e o poder dos administradores ou tcnicos aumentou proporcionalmente. No mundo contemporneo, instituies, organizaes e redes so muito mais complexas, na medida em que incorporam um progresso cientfico e tecnolgico cada vez mais sofisticado e que lidam com grandes organizaes, regulando redes densas. Em 1967, Galbraith observou que o conhecimento tcnico tinha se tornado um fator de produo estratgico. Um pouco mais tarde, quando escrevi meu ensaio bsico sobre o aparecimento da tecnoburocracia ou da classe mdia profissional, acrescentei ao conhecimento tcnico o conhecimento organizacional ou administrativo (Bresser-Pereira, 1972); estou agora incluindo um terceiro elemento, o conhecimento comunicativo, para enfatizar o novo papel desempenhado pela tecnologia da informao na formao daquilo que Manuel Castells (1996) denominou, e analisou com tanta agudeza, a sociedade das redes. Chamarei essas trs formas de conhecimento de conhecimento operacional, na medida em que elas so necessrias para tornar operacionais as modernas e complexas sociedades em que vivemos.

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A alegao de Galbraith de que o capital estava deixando de ser o fator estratgico de produo, sendo gradualmente substitudo pelo conhecimento tecnolgico, apareceu em seu livro clssico O novo estado industrial (1979 [1967]). Hoje em dia h poucas dvidas sobre o acerto de sua previso. Vivemos no capitalismo dos tcnicos ou na sociedade do conhecimento em um sistema social que continua sendo capitalista, mas cada vez mais controlado pelo conhecimento, e no pelo capital. As caractersticas centrais do sistema capitalista a coordenao do mercado, o lucro como motivao bsica e a acumulao de capital com progresso tcnico incorporado como o meio bsico de atingir resultados continuam sendo vlidas, mas o conhecimento se tornou mais estratgico do que a propriedade do capital. No processo produtivo, os bens de capital continuam sendo um fator central de produo e sua propriedade, uma importante fonte de receita e poder, contudo so hoje relativamente menos escassos do que o conhecimento, do que a capacidade de dominar a tecnologia, de administrar as modernas organizaes e de comunicar-se atravs dos vrios tipos de mdia. No mbito poltico, o conhecimento sempre foi estratgico, mas ele se tornar estratgico na esfera econmica um importante fato histrico novo que est necessariamente afetando a democracia.

A maior e mais bvia conseqncia social dessa mudana foi o surgimento da classe

mdia profissional, ou da tecnoburocracia, que, atualmente, divide a renda e a riqueza com a classe capitalista, tanto nas organizaes privadas como nas organizaes pblicas

estatais e no estatais, enquanto compete por influncia e poder.1 A conseqncia poltica

mais importante que o surgimento dessa nova classe favoreceu a consolidao da

democracia. A democracia s se consolida quando a sociedade respectiva conta com uma

nova classe mdia profissional ampla e uma antiga classe mdia de homens de

negcio de pequeno e mdio porte. Durante algum tempo, porm, os analistas resistiram a

essa idia do surgimento de uma nova classe social. Primeiro, porque a classe mdia

profissional, que inclui polticos e intelectuais, no gosta de ser chamada de nova classe

social, e se esconde; segundo, porque aceitar a idia de uma nova classe social

emergente poderia acarretar uma perda de poder para a classe capitalista algo que

especialmente a esquerda no estava preparada para aceitar, salvo se essa mudana

apontasse na direo do socialismo; e terceiro, porque a teoria de uma nova classe social,

que estava surgindo nos pases capitalistas e havia se tornado predominante na Unio

Sovitica, contradizia a anlise padro dos cientistas sociais acerca do poder poltico.

No entanto, o crescimento da nova classe mdia foi to extraordinrio que ficou

impossvel no reconhecer sua existncia e sua nova importncia. Assim, partirei do

pressuposto de que o conhecimento operacional o novo fator estratgico de produo, e

de que a classe mdia profissional divide renda e disputa poder com a classe capitalista.

Quais so as conseqncias dessas novas realidades? Podemos falar de um capitalismo dos tcnicos, ou do conhecimento? Podemos ter um capitalismo no qual o poder e uma nova renda derivariam principalmente do conhecimento e no do capital? Em caso afirmativo, isso significaria que a classe mdia profissional ganhou sua luta por poder, ou que a classe capitalista ainda mantm no apenas a riqueza, mas o poder poltico? Seria o conceito de capital ainda o mesmo ou, dada a existncia da organizao, deveria ele ser revisto? Pode a democracia ter-se tornado uma efetiva fora compensatria, no sentido que Galbraith d a essa expresso? Como aproveitar as vantagens derivadas do fato de o conhecimento se tornar o fator estratgico de produo sem incorrer em suas

desvantagens? Neste trabalho, proporei algumas respostas a essas questes.

O tcnico e a organizao

Sempre que possvel, a cincia social convencional evita o uso da palavra

capitalismo, preferindo expresses mais gerais como sociedade de mercado ou

economia de mercado. Apesar disso, capitalismo uma palavra forte e no pode ser

evitada. O capitalismo tem recebido muitos adjetivos, medida que vai se modificando

com o tempo. Capitalismo liberal ou clssico, capitalismo monopolista, capitalismo

organizado, capitalismo industrial, capitalismo informacional, capitalismo global, cada um enfatizando um determinado aspecto. Ou, em lugar de adjetivos, algumas expresses

tentam sugerir que o capitalismo foi ultrapassado, tendo em vista seu prprio sucesso.

Viveramos agora em sociedades ps-capitalistas, ou em sociedades ps-industriais, ou na

sociedade global. O fato de que o conhecimento operacional est gradualmente

substituindo o capital como o fator estratgico de produo parece corroborar esta ltima

abordagem. No entanto, embora relevante, a varivel fator estratgico no define por si s

a natureza social e econmica do sistema capitalista. O capitalismo no precisa

necessariamente ser o capitalismo burgus; pode bem ser o capitalismo dos tcnicos ou,

mais diretamente, o capitalismo do conhecimento.

O capitalismo foi originalmente definido por Marx como o sistema econmico e

social no qual os meios de produo esto historicamente separados dos trabalhadores,

dando origem a uma classe capitalista ou burguesia, que detm o capital (a propriedade

privada dos meios de produo), e a uma classe assalariada de trabalhadores ou

proletrios. Os capitalistas so motivados pelo lucro ou pela mais-valia, que realizada no mercado por meio de uma troca de valores equivalentes. Para auferir lucros, os

empresrios acumulam capital e inovam, incorporando o progresso tcnico ao processo

produtivo, e contratam trabalhadores que vendem sua fora de trabalho no mercado como

qualquer outra mercadoria. Definidas nesses termos gerais, as sociedades do sculo XXI

continuam sendo capitalistas, apesar da enorme mudana que sofreram. A economia

continua a ser essencialmente coordenada pela competio de mercado. A motivao do

lucro ainda primordial, e a acumulao de capital com incorporao do progresso tcnico continua sendo o meio por excelncia de obter lucros.

No entanto, na medida em que as organizaes substituram as empresas familiares

como a unidade bsica de produo, e na medida em que o conhecimento operacional se

tornou o novo fator estratgico de produo, o controle da produo mudou de mos. O

capitalismo clssico foi obviamente o capitalismo do capital; o capitalismo dos tcnicos,

porm, ocorre quando capital e organizao se associam. Como Berle e Means (1932)

observaram h muito tempo, a separao entre o controle e a propriedade das grandes

empresas ocorreu no capitalismo moderno. Em toda parte, administradores ou tcnicos

substituram os acionistas ou os capitalistas na direo das organizaes produtivas. J

utilizei tecnoburocrata em lugar de tcnico, mas uma palavra comprida com

conotaes negativas. Burocrata seria uma alternativa, mas geralmente se limita ao setor pblico. Apesar de suas deficincias, usarei de preferncia a expresso tcnico a

administrador como a expresso moderna para burocrata, inclusive burocratas privados.

O termo administrador tambm seria adequado, na medida em que o administrador

controla diretamente as organizaes. Mas nosso ator social pode ser um profissional que

domina problemas tcnicos ou que trabalha em redes de comunicao. Se ele trabalhar

para organizaes comerciais, ser um administrador ou um tcnico privado; se trabalhar

diretamente para o Estado ou para organizaes sem fins lucrativos, ser um tcnico

pblico ou um funcionrio pblico tcnicos pblicos incluem os que trabalham para

organizaes sem fins lucrativos, enquanto funcionrios pblicos trabalham para o Estado, como polticos eleitos ou como servidores pblicos no eleitos. Intelectuais e cientistas tambm esto na ampla categoria de tcnicos ou profissionais. Os tcnicos, como as outras classes sociais, esto organizados em estratos (Bresser-Pereira, 1981b): embora eu fale de uma classe mdia profissional, porque a grande maioria dos tcnicos pertence classe mdia, existem tambm executivos com altos salrios, que fazem parte mais adequadamente dos estratos superiores, assim como burocratas de nvel inferior que se situam mais adequadamente na classe baixa. O tcnico toma decises, define instituies, organiza a produo, cria redes, desenvolve novos conhecimentos, propaga ou questiona valores e crenas, tendo como legitimidade no a tradio nem o capital, mas o conhecimento.

Esta distino entre capitalistas e tcnicos pode ser sempre questionada com o

argumento de que do moderno empresrio capitalista se exige no apenas capital e a

capacidade de assumir riscos, mas tambm o conhecimento, do qual deriva a inovao. No entanto, a legitimidade mxima do capitalista deriva do capital, no do conhecimento. verdade tambm que a clssica definio do empresrio feita por Schumpeter diz que

capital no a propriedade dos meios de produo, mas o crdito a capacidade de

financiar a inovao. Contudo, ao formular essa definio de empresrio, Schumpeter

(1961 [1911]) estava prevendo a histria, estava sugerindo o tipo de esprito empreendedor individual que, juntamente com o esprito empreendedor coletivo nas grandes organizaes, constituiria o tpico capitalismo dos tcnicos.2 verdade que, como um resultado final de seu esprito empreendedor, o tcnico, o detentor de conhecimento, tambm se tornar um capitalista. Mas isso no muda a fonte bsica da qual ele obteve ariqueza.

No capitalismo clssico tnhamos apenas duas classes sociais, se ignorarmos a

aristocracia ou os proprietrios de terra, cujo papel foi desaparecendo com a ascenso do

capitalismo. Nas sociedades modernas temos trs classes sociais a classe capitalista, a

classe mdia profissional e a classe trabalhadora. Ter duas classes sociais dominantes no

faz sentido quando se adota uma abordagem marxista ortodoxa. No sendo um marxista,

no entanto, em meus escritos anteriores sobre o assunto apresentei uma soluo a esse

problema. Em primeiro lugar, opus capitalismo puro ao modo de produo estatal ou

tecnoburocrtico puro, que teria a organizao como a forma especfica de

propriedade. Em segundo, sendo provavelmente mais fiel a Marx do que os marxistas

oficiais, defini o capitalismo moderno como um sistema social misto, como uma formao social que era predominantemente capitalista, mas secundariamente tecnoburocrtica (Bresser-Pereira, 1977, 1981a). No modo de produo estatal, o capital deixa de existir, uma vez que a propriedade privada dos meios de produo desaparece, e substitudo pela organizao, isto , pelo controle coletivo das organizaes burocrticas por parte da classe mdia profissional. Ela no detm a propriedade legal da empresa e de todas as outras formas de organizao, mas a propriedade efetiva. Enquanto no capitalismo a propriedade privada, individual, no estatismo ela coletiva. Enquanto no capitalismo cada capitalista ou possui diretamente os meios de produo ou uma parte proporcional deles na forma de aes, o administrador ou tcnico no pode dizer que possui uma empresa ou mesmo uma determinada parte dela. Ele possui a organizao burocrtica, na medida em que ocupa um cargo executivo ou de assessoria na hierarquia organizacional, participa da administrao da organizao e muitas vezes utiliza seus recursos em benefcio prprio.No capitalismo dos tcnicos, os altos executivos no Estado e nas grandes empresas

comerciais so capazes de definir sua prpria remunerao. Nas empresas comerciais,

teoricamente isso feito pelo conselho de administrao, mas muitas vezes esses

conselhos so controlados por administradores e no por acionistas. No Estado, os

funcionrios pblicos mais graduados, eleitos e no eleitos, muitas vezes tm um poder

semelhante, mas sua remunerao consideravelmente menor. O fato de os

administradores no deterem a propriedade legal, mas, em vez disso, a propriedade

coletiva da organizao evidentemente reduz sua capacidade de definir seus proventos de

modo pleno. Eles precisam constantemente justificar suas aes ou explicar sua

remunerao em termos de mercado, enquanto o capitalista est livre para fazer uso de sua propriedade em seu prprio benefcio e no de sua famlia; mesmo a nomenclatura nas formaes sociais predominantemente controladas pelo Estado, como a Unio Sovitica, tinha uma limitao precisa em sua tentativa de se apropriar do excedente econmico. A propriedade dos tcnicos no herdada, ao contrrio da propriedade capitalista e prcapitalista.

A nova classe mdia profissional precisa adotar vrias estratgias para

transmitir suas posies de classe a seus filhos e filhas, enquanto esse processo

relativamente automtico no caso das classes capitalistas e, sobretudo, aristocrticas. Isso

significa que a propriedade organizacional menos definida e menos autoritria do que a

propriedade capitalista. Significa que a organizao uma relao de produo que

oferece menos estabilidade a seus proprietrios do que o capital. E explica por que a

mobilidade social tende a ser maior no capitalismo dos tcnicos do que no capitalismo

liberal.

No capitalismo dos tcnicos, o ideal meritocrtico, que era o sonho de um certo tipo

de liberalismo ingnuo norte-americano, transformou-se em uma realidade no to ideal.3

A remunerao dentro da organizao depende da posio relativamente instvel ocupada

pelo indivduo. A posio, por sua vez, deriva do monoplio sobre o conhecimento

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tcnico, organizacional e comunicativo que o tcnico tem ou alega ter. Origina-se do

conhecimento tcnico e cientfico real ou presumido do burocrata, de sua competncia

para administrar organizaes burocrticas e de sua capacidade de criar redes e transmitir

valores e idias. Em termos de justia social, h um aperfeioamento meritocrtico mas esse aperfeioamento est longe de ser ideal, pelo fato de que a remunerao dos altos executivos se torna extremamente elevada, e a renda no fica igualitria, mas

freqentemente acaba se concentrando. Mrito e poder organizacional tornam-se to inter-relacionados que fica difcil saber qual critrio prevalece.

Entretanto, apesar de todas essas mudanas, o sistema continua sendo capitalista, uma

vez que se trata um sistema de mercado, em que o lucro a motivao, a taxa de lucro ou

o retorno sobre o investimento calculado de acordo com o fluxo de caixa descontado o

critrio de sucesso, e a acumulao de capital com incorporao do progresso tcnico o

meio para atingir o lucro. Peter Drucker (1993, p. 8), que cunhou a expresso sociedade

do conhecimento, insiste que a era do capitalismo acabou e que a nova sociedade uma

sociedade ps-capitalista. Repetindo Galbraith, mas usando uma nova expresso, ele diz

que os meios de produo no so mais o capital ou os recursos naturais (a terra dos

economistas), nem a mo-de-obra. e ser o conhecimento []. O valor ser criado

pela produtividade e pela inovao. Drucker est certo em enfatizar o novo papel do

conhecimento, mas errado em no compreender que a caracterstica essencial e

surpreendente do capitalismo contemporneo que ele deixou de ser o capitalismo dos

capitalistas para se tornar o capitalismo dos tcnicos. Poder e privilgio, que nas

sociedades aristocrticas eram atribudos de acordo com a linhagem e a fora militar, e no

capitalismo liberal, alocados de acordo com a riqueza e o esprito empreendedor, so hoje

em dia cada vez mais distribudos de acordo com o conhecimento. A riqueza e

principalmente o esprito empreendedor continuam a desempenhar papis importantes,

mas hoje este ltimo j depende mais do conhecimento do que da propriedade do capital

fsico. O esprito empreendedor sempre dependeu de ambos os fatores, alm do bsico

o carter inovador e a orientao do empresrio para a necessidade de realizao , mas

hoje cada vez mais improvvel que pessoas no dotadas de conhecimento tcnico,

organizacional e comunicativo venham a ser grandes empresrios. O tpico empresrio

capitalista ou o jovem que sai da universidade com uma idia brilhante, ou o

administrador experiente de uma grande empresa que comea seu prprio negcio.

Resumindo, o sistema social continua sendo capitalista, porm se trata de um capitalismo

dos tcnicos ou do conhecimento.

O conceito de capital

A definio clssica da ao capitalista, que definiu a revoluo comercial, foi a

acumulao de capital. Com a revoluo industrial, a acumulao de capital com

incorporao do progresso tcnico tornou-se a caracterstica definidora do sistema

econmico. Atualmente, essas duas atividades continuam sendo cruciais, e a segunda o progresso tcnico tambm parte essencial do capitalismo do conhecimento, mas um terceiro elemento importante est includo, qual seja, a expanso das organizaes

burocrticas e das redes por meio das quais elas amam. Se o capitalista acumula capital, a

classe mdia profissional acumula organizaes e redes. O objetivo expandir a

organizao burocrtica, criar novos cargos burocrticos, acumular poder organizacional

que depende do nmero e do carter dos cargos subordinados na organizao hierrquica,

ou dos ns nas redes pessoais e organizacionais. O tcnico, diferentemente do capitalista,

no est to preocupado em se tornar rico, mas em subir na hierarquia organizacional, e

em expandi-la.Para atingir suas metas, o detentor de conhecimento precisa trazer maior eficincia ou

produtividade a sua organizao. Esse o critrio bsico que legitima sua posio. assim que ele ser julgado por seus superiores, seus pares e seus subordinados. A legitimidade da classe mdia profissional depende da capacidade, real ou presumida, de aumentar 138 continuamente a produtividade, bem como do monoplio que ela detm sobre a competncia tcnica, organizacional e comunicativa. Em um mundo cada vez mais voltado para o desenvolvimento econmico, onde a remunerao dos trabalhadores e tcnicos depende da produtividade global da economia, aqueles que demonstram capacidade de administrar organizaes burocrticas e redes assumiro o poder e detero uma parcela importante da renda nacional.

Assim, a organizao agora um fator central nas sociedades capitalistas, lado a lado

com o capital. Nas sociedades modernas o controle da organizao to importante

quanto o capital. Poder e renda dependem do controle do capital e da organizao, e o

conhecimento operacional a ferramenta mais importante nesse sentido. Estou chamando

essa nova forma que o capitalismo assumiu de capitalismo do conhecimento ou

capitalismo dos tcnicos, mas poderia tambm cham-la de capitalismo organizacional.

Nesse mar de mudanas a que o sistema capitalista est sendo submetido, o prprio

conceito de capital se modificou, assim como a forma de medir o capital. O capital,

obviamente, no deve ser confundido com os meios de produo, ou com os bens de

capital. O capital a propriedade dos meios de produo. Dentro dessa definio ampla,

porm, o conceito de capital vem mudando com o tempo. Para os primeiros economistas

clssicos, o capital era o capital circulante, era essencialmente a capacidade de contratar

trabalhadores, pagando-os antes que o resultado de seu trabalho pudesse ser vendido no

mercado. Para Marx, assim como para os economistas neoclssicos e keynesianos, que

viveram em uma poca na qual o capital fixo tinha se tornado o fator dominante, enquanto os trabalhadores podiam cada vez mais dispensar o pagamento prvio de seus salrios, o capital era principalmente a propriedade de instalaes e equipamentos. Mais

recentemente, quando o software prevalece sobre o hardware, ou quando o conhecimento

operacional torna-se o fator estratgico de produo, tomando o lugar dos bens de capital,

o capital a capacidade de derivar lucros das organizaes de comando e do

conhecimento a elas incorporado. O aspecto curioso e significativo dessa definio de

capital que ela inclui o conceito de organizao. O capital s realmente capital quando

seus proprietrios so tambm proprietrios ou capazes de controlar a organizao. Ora, a organizao no apenas a organizao burocrtica, tambm a propriedade coletiva dos meios de produo por parte dos tcnicos. A organizao para o tcnico ou o profissional o que o capital para o capitalista.

Observemos que quando Galbraith afirmou que o conhecimento tcnico estava

substituindo o capital como o fator estratgico de produo, ele estava se referindo ao

objeto da propriedade do capital, no ao prprio capital. Ele no estava definindo o capital como a propriedade dos meios de produo, mas adotando o sentido mais habitual da palavra o sentido que identifica o capital com os meios de produo, ou com o capital fsico.

Concomitantemente com a transformao do conceito de capital na capacidade da

organizao de gerar lucros ou fluxos financeiros positivos, a forma de medir o capital

tambm mudou. No estou me referindo complexa e inconclusiva discusso dos anos de

1960 entre as duas Cambridges sobre o valor do capital. A teoria econmica, nesses

debates, aproxima-se da metafsica, uma abordagem que no se coaduna com minhas

preocupaes mais pragmticas. Refiro-me ao valor financeiro do capital, ao valor das

empresas comerciais. Na poca do capitalismo industrial, at meados do sculo XX, o

capital de uma empresa era medido por seu patrimnio lquido, tal como identificado no

balano patrimonial. Algumas correes poderiam ser feitas, o valor dos ativos intangveis poderia ser considerado, a avaliao contbil de certos bens de capital poderia ser ajustada, mas, no final, o valor da empresa era a soma dos ativos totais menos o passivo. Enquanto o capital fsico era o fator estratgico de produo, medir o valor de uma empresa por seu patrimnio lquido contbil ou pelo retorno sobre o fluxo de caixa no fazia muita diferena. Ambas as medidas eram relativamente equivalentes, uma vez que se podia presumir que, em condies normais e data a tendncia equalizao das taxas de lucro (provavelmente aliada lei da oferta e da procura, os dois fundamentos da teoria econmica, seja qual for a escola de pensamento), o resultado seria quase o mesmo.

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Hoje no h mais essa viso, e o valor de uma empresa dado pelo valor descontado

de seu fluxo de caixa. Nenhum avaliador srio levar em conta o antigo sistema. O que

est por trs de tal mudana? Seria apenas um aperfeioamento dos mtodos de anlise,

como presume a teoria econmica no histrica, ou existe algum fato histrico novo que

tenha provocado essa mudana metodolgica? A relao entre essa mudana na forma de

medir o capital e o novo fator estratgico de produo de Galbraith bastante bvia, e

dupla. Em primeiro lugar o conhecimento incorporado ao pessoal da organizao, ao

software e prpria organizao atualmente o bem mais importante de muitas empresas, e um bem importante para todas. Portanto, no faz sentido medir o valor de uma empresa por seu patrimnio lquido. Em segundo, depois que o conhecimento operacional se tornou estratgico, os analistas do mercado financeiro confirmam diariamente que o valor de uma empresa varia de modo dramtico de acordo com a qualidade de sua gesto. Um novo diretor-presidente e um grupo de executivos incompetente ou mais competente na direo de uma empresa podero mudar seu fluxo de caixa e seus lucros em um perodo relativamente curto. Nesse caso, o antigo conceito de patrimnio lquido deixa de fazer sentido, enquanto a medida do valor do capital com base no fluxo de caixa se torna a nica possibilidade racional. Assim, na medida em que o fluxo de caixa de uma empresa depende fortemente da qualidade de sua alta direo, o valor do capital depende do conhecimento tcnico, organizacional e comunicativo detido por esses administradores.

Isso explica por que a alta direo v sua renda e seu poder aumentarem diariamente.

Explica tambm por que a influncia dos acionistas est sendo sistematicamente reduzida.Explica tambm de maneira perversa por que o abuso e a corrupo, em especial sob a

forma de falsos demonstrativos contbeis, como aconteceu com a Enron, tornaram-se to

comuns no capitalismo dos tcnicos contemporneo, levando Galbraith a falar

ironicamente sobre a a economia das fraudes inocentes ttulo de seu ltimo livro

(2004). A extraordinria remunerao dos altos executivos, sob a forma de bnus e opes sobre aes, depende do desempenho do executivo. Assim, forjar bons resultados uma tentao a que muitos so incapazes de resistir. Esse papel estratgico da alta direo, somado a uma oferta ainda limitada de administradores ou, mais amplamente, de tcnicos, apesar da enorme expanso dos cursos de mestrado em administrao de negcios e reas correlatas, e a surpreendente acelerao do progresso tcnico incorporado na tecnologia da informao digital tambm explicam a concentrao de renda que caracteriza as economias capitalistas contemporneas desde meados dos anos de 1970.

Alm de mudar a maneira de avaliar o capital, o capitalismo do conhecimento sugeriu

a definio de um novo tipo de capital o capital humano. Os dois economistas

neoclssicos que formularam essa teoria (Schultz, 1961, 1980; Becker, 1962,1993)

garantiram para si prprios o Prmio Nobel de Economia. E eles o mereceram porque, em

lugar de apenas usarem o mtodo hipottico-dedutivo, reconheceram a existncia de um

novo fato histrico: que o conhecimento tinha se tornado semelhante ao capital fsico, e

que o investimento em educao o modo pelo qual os indivduos acumulam esse

patrimnio e dele derivam ganhos ou rendimentos. O que eles no enfatizaram foi que a

educao de muitos indivduos, a generalizao da educao para toda a sociedade,

acarreta externalidades positivas, acarreta desdobramentos e cruzamentos que abrem

caminho para a inovao e o aumento da eficincia em nvel social, de tal modo que o

capital humano total criado maior do que a soma dos capitais acumulados por cada

indivduo.

A democracia como um poder compensatrio

Nas sees precedentes vimos que, dentro das organizaes, a ascenso ao poder e o

prestgio de homens e mulheres dotados de conhecimento operacional estratgico teve

importantes conseqncias econmicas, inclusive uma mudana no conceito e na medida

do capital. No entanto, suas conseqncias polticas no so to claras. Em relao aos

capitalistas, os tecnoburocratas perderam ou ganharam poder? E em relao ao povo, ou a

coletividade de cidados? A classe mdia profissional certamente ganhou poder, mas est

longe de ter alcanado mais poder poltico do que a capitalista, isto apenas aconteceu no

sistema econmico estatista, mas sabemos que o prprio estatismo foi um fenmeno

temporrio, efmero. No capitalismo do conhecimento, a classe mdia profissional

basicamente associada aristocracia. Mas certo que a classe capitalista teme o

surgimento da classe mdia profissional, particularmente quando isto acontece no nvel do aparelho do Estado, de organizaes do Estado, e de organizaes sem fins lucrativos. A ideologia neoliberal, que surgiu nos anos de 1970 nos pases capitalistas desenvolvidos, como uma reao queda da taxa de lucro e da taxa de crescimento do PIB, no foi direcionada reduo do salrio direto ou indireto dos trabalhadores: seu objetivo era tambm reduzir o salrio e a influncia poltica da classe mdia profissional. Esta ideologia, que contou com a cooperao ativa de intelectuais orgnicos (Gramsci, 1971 [1934]), e de outros profissionais representantes da classe mdia profissional (o que

mostra que esta classe est longe de ser coesa), obteve sucesso em alcanar seus objetivos, mas isto apenas um captulo no longo processo de conflito e cooperao entre as duas classes sociais.

No entanto, no sculo XX, com a consolidao da democracia como o regime poltico

dominante, os capitalistas, assim como a classe mdia profissional, perderam poder

poltico, enquanto os polticos e, at certo ponto, os cidados por eles representados,

ganharam. Polticos, entretanto, so essencialmente profissionais, oficiais eleitos

recebendo salrio do Estado. Na sua maioria, pertencem classe mdia profissional. Mas,

diferentemente dos servidores civis no eleitos, eles dependem dos cidados, dos eleitores, para conseguir poder poltico. No Estado absolutista, servindo como auxiliares de prncipes ou monarcas, os burocratas patrimoniais tiveram mais poder do que no sculo XIX, quando seus sucessores, os servidores pblicos profissionais, colaboraram com os polticos liberais. A democracia no sculo XX implicou uma demanda cada vez maior de responsabilidade dos funcionrios pblicos eleitos e no eleitos, envolvendo uma reduo do poder poltico dos burocratas, mas aumentou o poder dos polticos. Apesar de divididos entre polticos de direita e esquerda, os primeiros representando principalmente os interesses de capital, e os ltimos o do conhecimento, a classe capitalista sempre v a classe poltica com desconfiana, e sempre que pode acusa seus membros de incidirem no populismo e no nepotismo, seno na corrupo, para, dessa forma, limitarem seu poder.4

O crescimento da organizao do Estado em tamanho e complexidade tomou

estratgico seu conhecimento operacional e aumentou seu poder poltico. A criao de

agncias reguladoras e executivas autnomas e o aparecimento da reforma da gesto

pblica depois dos anos de 1980 refletiram essa nova realidade. Mas, ao mesmo tempo,

como saliento em um livro recente (Bresser-Pereira, 2004a), o crescimento dessa

autonomia exigiu dos funcionrios pblicos graduados uma maior responsabilidade e deu

origem a uma mirade de organizaes de responsabilidade social que somente puderam

florescer em um ambiente democrtico. Ao mesmo tempo em que fica claro que os altos

executivos das organizaes privadas viram seu poder e prestgio dispararem no sculo

XX com a transformao do conhecimento no fator estratgico de produo, com o

crescimento paralelo da democracia difcil dizer se, no final, os funcionrios pblicos

graduados viram aumentar seu poder e influncia. Certamente aumentaram dentro do

aparelho do Estado e das organizaes pblicas no estatais, mas duvidoso que o mesmo tenha ocorrido em termos polticos quando os funcionrios pblicos graduados fizeram uso do poder extroverso o poder sobre os cidados fora da organizao do Estado , na medida em que o controle democrtico exercido sobre eles por mecanismos internos de responsabilizao, pela mdia e pelas organizaes de responsabilidade social no deixou de aumentar. Em comparao, os polticos tm hoje em dia mais poder do que tinham no passado, mas esse poder no tem origem apenas no fato de que as necessidades de conhecimento para eles so maiores do que no passado (isso tambm verdade para todas as outras profisses), deriva principalmente de sua capacidade de jogar o jogo

democrtico. Os polticos, como os funcionrios pblicos graduados, so tambm cada vez mais responsabilizados pelos mecanismos democrticos, mas, diferentemente de

servidores civis regulares, a legitimidade de seu poder vem das eleies e do apoio

contnuo da opinio pblica. Usando o conceito de Galbraith, a democracia funcionou

como um poder compensatrio ao poder dos tcnicos e dos capitalistas, sobretudo ao

poder capitalista, porque os polticos, que esto no cerne das democracias, so uma

espcie particular de tcnico ou profissional.Este o segundo caso, neste trabalho, em que observamos uma falta de

correspondncia entre duas variveis histricas que presumivelmente deveriam ser

compatveis. Primeiro vimos que o capitalismo, embora mantendo suas caractersticas

essenciais, est se tornando um sistema social que no basicamente controlado pelos

capitalistas, mas pelos tcnicos ou profissionais. Agora vemos que os detentores do

conhecimento podem ver seu poder aumentar dentro das empresas comerciais e de outras

organizaes, mas possivelmente decair na esfera poltica. Por qu? Porque o sculo XX,

alm de ser o sculo da organizao, foi tambm o sculo da democracia. Porque foi

apenas nesse sculo que a democracia se tornou o regime preferido dos filsofos e dos

polticos. Porque somente no sculo XX, as sociedades mais avanadas em primeiro lugar

e depois um grande nmero de sociedades em desenvolvimento tornaram-se efetivamente

democrticas.O fato histrico novo que provocou essa mudana foi a revoluo capitalista, que

mudou a forma de apropriao do excedente econmico, das violentas formas da poca

pr-capitalista para o lucro alcanado no mercado. A partir desse momento a nova classe

dirigente deixou de impor um veto absoluto democracia. Mas, depois dessa revoluo,

foi necessrio um sculo o sculo XIX liberal para convencer os capitalistas de que

o sufrgio universal no acarretaria a expropriao dos ricos pelos pobres.5

Dado o surgimento da democracia, esta segunda inconsistncia no to

surpreendente. A correspondncia clssica entre as esferas econmica e poltica, que Marx to agudamente detectou no sculo XIX, e que est implcita na maior parte do

pensamento social contemporneo no marxista, perdeu parte de sua validade. O fator

estratgico de produo uma fonte de poder, mas principalmente de poder direto o

poder oriundo do processo produtivo. O marxismo estabeleceu uma relao quase direta

entre o controle do fator estratgico de produo e o poder poltico. Nas sociedades prcapitalistas foi a terra; nas capitalistas, o capital. Contudo essa relao nunca foi to direta. A terra era uma fonte de poder, mas era tambm o poder militar. No capitalismo clssico, o controle do capital foi chave para o poder poltico, mas uma simplificao acreditar que os funcionrios governamentais fossem apenas seus representantes. No capitalismo do conhecimento, tcnicos de todos os tipos conquistaram poder e influncia, mas o aparecimento da democracia imps limites a seu poder discricionrio. A revoluo

democrtica envolveu a autonomia da poltica em relao economia, e do poder poltico

em relao ao controle do fator estratgico de produo. Os interesses econmicos e a

propriedade do capital e do conhecimento continuam a desempenhar um importante papel

poltico, no entanto a relativa autonomia da esfera poltica um fato novo e auspicioso.

Sugere que os desenvolvimentos econmico e poltico so fenmenos complementares,

mas cada vez mais independentes.A aliana entre tcnicos e capitalistas

Apesar do avano da democracia, no podemos facilmente descartar o controle do

conhecimento como uma fonte de poder. Em algumas reas, o poder deriva

essencialmente disso. E se torna particularmente perigoso quando os tcnicos se associam

aos capitalistas. Tomemos, por exemplo, a poltica macroeconmica, que desempenha um

papel estratgico em todas as sociedades contemporneas, uma vez que a estabilidade

econmica e tambm o crescimento dependem fortemente dela. Embora essa poltica afete a todos em uma sociedade moderna, o setor financeiro tem hoje um papel privilegiado em sua determinao. Em princpio, esse poder prerrogativa dos bancos centrais e ministrios da fazenda, mas, em termos prticos, as instituies financeiras privadas tm uma voz decisiva sobre o assunto. Por qu? Seria porque o capital financeiro de Hilferding todo-poderoso? Certamente que no. De acordo com Hilferding (1910), o capital financeiro foi o produto da fuso do capital bancrio com o capital industrial sob o comando do primeiro. No incio do sculo XX esse fenmeno estava ocorrendo na Alemanha, mas no se reproduziu nos outros pases, e mesmo na Alemanha sofreu uma interrupo. Um marxista moderno como Franois Chesnais (1994, 1997) afirma que o setor financeiro a ponta de lana da globalizao ou mundializao do capital. E, emprestando um conceito da teoria da regulao, acrescenta que o capitalismo mundial hoje caracterizado por um regime de acumulao predominantemente financeiro.6 Nessa linha de pensamento, o setor financeiro, servindo o capital rentista que vive de juros, , tambm, a ponta de lana do capitalismo internacional em seu processo de desorganizao (no deliberada mas efetiva) das economias nacionais dos pases em desenvolvimento.Mediante a abertura financeira, que ocorreu em um grande nmero de pases a partir do

incio dos anos de 1990, Washington e Nova York levam os pases a perder o controle de

sua taxa de cmbio, os quais, sob o influxo de grandes fluxos de capital (poupanas

externas), apreciam a taxa de cmbio local, elevam artificialmente os salrios e o

consumo, e, afinal levam crise de balano de pagamentos.7 Entretanto, essas anlises no explicam o poder poltico desse setor na definio das polticas macroeconmicas, e,

particularmente, de um nvel de taxa de juros (que no deve ser confundido com as

variaes dessa taxa necessrias para a poltica monetria). Uma explicao alternativa

estaria no fato de que principalmente os bancos comerciais tm um papel estratgico nas

sociedades modernas, nas quais o dinheiro perdeu sua conexo clssica com a riqueza

fsica e se tornou uma conveno, totalmente dependente do crdito de que dispe cada

moeda nacional. Esta uma boa explicao, mas lhe falta o carter de fato histrico novo

que ofereceria um motivo para o aumento do poder do setor financeiro. Desde o

surgimento do capitalismo o sistema financeiro sempre desempenhou um papel estratgico na coordenao do sistema econmico. O ponto que quero salientar aqui, e que constitui fato novo, a idia de que as instituies financeiras detm hoje grande parte do conhecimento tcnico macroeconmico, e isto aumenta de forma substancial sua

capacidade de influenciar a poltica macroeconmica. Detm mais conhecimento sobre o

tema do que os outros setores da economia, uma vez que empregam um grande nmero de macroeconomistas competentes. Essas organizaes incluem esse custo em suas operaes porque a poltica macroeconmica e as decises que o governo toma sobre a taxa de juros, a taxa de cmbio, a base monetria e a poltica fiscal so o ganha-po das instituies financeiras. Para investir com competncia seus prprios recursos ou o patrimnio de seus clientes, elas precisam fazer previses dirias sobre tais questes. Se compararmos o nmero de macroeconomistas capazes de expressar opinies sobre poltica macroeconmica contratados pelo setor financeiro com outros setores da economia, inclusive o governo, veremos que o conhecimento macroeconmico convencional est concentrado ali. muitas vezes um conhecimento viciado, organizado de acordo com os interesses dos rentistas e do setor financeiro, mas um conhecimento efetivo. Assim, no difcil compreender o poder desproporcional que o setor financeiro tem sobre assuntos macroeconmicos desproporcional em relao ao capital total que as empresas comerciais detm nesse setor, mas proporcional a seu conhecimento especializado e muitas vezes viciado.

Este exemplo ilustra no apenas como o poder poltico pode ter origem no

conhecimento, mas mostra tambm como este poder pode ser aumentado quando capital e conhecimento, capitalistas e tcnicos, esto associados. No setor financeiro, essa

associao clarssima. Os grandes bancos de investimento so hoje, e cada vez mais,

empresas de scios profissionais, e cada vez menos empresas de capital. Os grandes

bancos de varejo continuam a depender de seu estoque de capital. Os bancos de

investimento, porm, e os setores correspondentes nos grandes bancos, lucram ou no

medida que dispem de tcnicos financeiros com os quais os acionistas so obrigados a

dividir os resultados econmicos realizados. O setor financeiro , portanto, cada vez mais

estratgico no capitalismo que vivemos, mas tambm uma demonstrao da emergncia

do capitalismo dos tcnicos. So cada vez mais os profissionais das finanas que

comandam as organizaes financeiras, e exercem, associados ao capital, a dominao no

plano interno e no internacional.143

Grupos conservadores dentro de cada Estado-nao participam dessa associao para

exercer poder em termos do controle das polticas pblicas. Como no podem exercer

diretamente a dominao baseada no capital, eles usam o conhecimento, que rapidamente

rotulam de raciocnio cientfico, para legitimar suas vises e interesses. Esse

conhecimento ideolgico, mas freqentemente visto como mais razovel do que as

vises crticas oriundas dos setores a esquerda ou progressistas da sociedade, porque

produto de uma sofisticada teorizao por parte de economistas inseridos no sistema de

dominao. Esse conhecimento geralmente privilegia os rentistas e o setor financeiro s

custas dos setores reais da economia, mas como as crticas oriundas dos grupos opositores so freqentemente desprovidas do conhecimento tcnico necessrio, ou tm origem em um grupo de conhecimento competente mas muito pequeno, a probabilidade de que as vises do setor financeiro prevaleam grande. No Brasil, onde a poltica

macroeconmica particularmente estratgica, na medida em que o pas tem enfrentado

instabilidade macroeconmica crnica nos ltimos 25 anos, o poder do setor financeiro

particularmente grande. E os erros de poltica feitos com seu apoio ativo so

impressionantes. Entre 1995 e 1998, por exemplo, ele apoiou uma taxa de cmbio

sobrevalorizada, que se mostrou desastrosa para a economia brasileira. Atualmente, apia

a adoo pelo Banco Central de uma taxa bsica de juros extremamente elevada, que s

beneficia os rentistas.

Em princpio, um regime democrtico deveria ser capaz de controlar os bancos

centrais e outras agncias reguladoras, cujas decises tm importantes conseqncias

sobre a sociedade e a economia. At o presente, no entanto, no prevaleceu um processo

democrtico nesses assuntos, porque tanto eles so altamente tcnicos como

perigosamente estratgicos. Assim, os polticos e os eleitores que eles representam

abdicam de exercer controle sobre tais agncias em nome da falta do conhecimento

especializado. Na verdade, esses assuntos so freqentemente menos complexos do que se diz. As polticas de taxa de juro e de cambio podem ser baseadas em modelos matemticos muito sofisticados, no entanto raciocnios simples e pragmticos se mostram mais compatveis com a estabilidade econmica e o crescimento. As agncias reguladoras, inclusive os bancos centrais, so com freqncia controladas pelo respectivo setor regulador, mas sua independncia dos polticos ser mantida enquanto o conhecimento continuar concentrado neste setor. Os prprios polticos sentem-se mais seguros ao outorgar essa independncia quando a agncia realmente estratgica, como os bancos centrais.

A empresa moderna, cujo principal papel na sociedade contempornea foi discutido

com tanta clareza por Galbraith, essencialmente a eptome da associao entre capital e

organizao, entre capitalistas e tcnicos, e provavelmente por essa razo to forte. Em

geral, tcnicos privados tendem a ser intimamente associados aos capitalistas nas grandes

empresas. por isso que, em termos polticos, os tcnicos pblicos so mais dignos de

nota. Eles tambm se associam aos capitalistas, mas em grau menor. Tm uma autonomia

que falta aos tcnicos privados. Sua ideologia tecnocrtica, baseada na alegao de uma

eficincia superior, mais coerente do que a dos tcnicos privados. Por outro lado, o fato

de trabalharem diretamente para a organizao do Estado permite-lhes um etos pblico

mais simples e direto. Eles no dependem da mo invisvel de Adam Smith para trabalhar

no interesse pblico; fazem isso, ou supe-se que o faam.

Assim, quando dizemos que temos trs classes sociais bsicas no capitalismo

moderno, e que elas estabelecem entre si relaes de associao e conflito, referimo-nos

classe capitalista, classe trabalhadora e principalmente classe dos tcnicos pblicos.

Esta ltima age como uma espcie de intermedirio entre as outras duas classes, ao mesmo tempo em que mantm muito claros seus prprios interesses. Enquanto a classe mdia profissional privada est sempre associada dos capitalistas, a classe mdia profissional pblica associa-se a uma ou a outra, ou a ambas, de vrias maneiras. Aps a Segunda Guerra Mundial, os tcnicos pblicos associaram-se principalmente a trabalhos relativos construo do Estado de bem-estar social. Desse modo, nos anos de 1970, quando a taxa de lucro e a taxa de crescimento econmico declinaram, a resposta neoliberal que visava a restabelecer ambas as taxas foi dirigida contra essa associao. O objetivo era reduzir o tamanho do Estado, os ordenados dos tcnicos e os salrios dos trabalhadores. Nos anos de 1930, Keynes percebeu que havia uma alternativa menos conflitante expandir a economia por meio da poltica fiscal , mas essa alternativa no estava realmente disponvel na dcada de 1970, tendo em vista que, diferentemente dos anos de 1930, os Estados nacionais estavam enfrentando uma grave crise fiscal. A teoria macroeconmica de Keynes foi um avano geral no pensamento econmico, porm envolvia polticas para restaurar a taxa de lucro e de emprego que dependiam de finanas saudveis do setor pblico.

Ideologias

Ao mesmo tempo em que existe uma ideologia capitalista, baseada no liberalismo

econmico e no papel empreendedor do capitalista, existe uma ideologia dos tcnicos

baseada na racionalidade instrumental e na alegao da superior eficincia das

organizaes burocrticas, ou da coordenao administrativa do sistema econmico. Em

certas ocasies, essas ideologias, apoiadas respectivamente pelo pensamento econmico

neoclssico e pela teoria burocrtica ou estatista da economia planejada, esto em conflito.

Nunca estiveram mais em conflito do que durante a Guerra Fria, quando o capitalismo

liberal esteve em confronto com o burocratismo ou estatismo da Unio Sovitica. Quando

ambos os grupos e suas respectivas ideologias se associaram estrategicamente, como

aconteceu no mundo desenvolvido durante os anos de 1970, quando o capital e o

conhecimento se uniram, pudemos observar, na fase ascendente da onda econmica longa, um crescimento econmico que interessou a todos ou, na fase declinante, um processo de reforma estrutural para restaurar a taxa de lucro e retomar o crescimento. A ideologia neoliberal, que surgiu na dcada de 1970, juntamente com o globalismo, foi a expresso desse conflito em nvel nacional. Enquanto o objetivo do globalismo, no plano

internacional, foi neutralizar os NICs (newly industrialized countries [pases de

industrializao recente, tambm chamados de tigres asiticos]), enfraquecendo os

respectivos Estados-nao, o neoliberalismo foi uma resposta domstica queda das taxas de lucro e de crescimento que ocorreu nos anos de 1970, e seu objetivo era reduzir os salrios reais diretos e indiretos enfraquecendo a organizao interna do Estado que dava suporte mo-de-obra e ao Estado de bem-estar social.

A globalizao um fenmeno histrico real envolvendo aspectos tecnolgicos,

econmicos, culturais e jurdicos. Mas interessante observar, nos pases desenvolvidos e

particularmente nos Estados Unidos, como a associao entre os capitalistas e a classe dos tcnicos foi instrumental em proteger seus interesses nacionais com relao ameaa

representada pelos NICs. Como os interesses econmicos envolvidos eram enormes, a

poltica e a ideologia tiveram um papel importante. A globalizao tornou-se evidente

naqueles anos, em que tambm surgiram os NICs, exportando bens relativamente

sofisticados produzidos com mo-de-obra barata. Como os pases ricos e, em particular,

Washington e Nova York, responderam a essa ameaa? Internamente responderam

queda da taxa de Lucro com o neoliberalismo; internacionalmente, com a ideologia

globalista. Essa ideologia tornou os Estados-nao de tal modo interdependentes que

eles ficaram irrelevantes. Agora, neste mundo competitivo e sem fronteiras, os Estados

nacionais enfrentariam, na expresso de um de seus mais brilhantes idelogos, Thomas

Friedman (2000), uma camisa de fora, de tal forma que no tm alternativa seno

copiar o modelo norte-americano de crescimento.

Ao exportarem com sucesso essa ideologia, que era o produto combinado da

engenhosidade das classes capitalista e tcnica, os pases desenvolvidos, sob a liderana

dos Estados Unidos, foram capazes de enfraquecer os pases de industrializao recente

latino-americanos. No foram to bem-sucedidos na sia, onde o comprometimento dos

governos com os interesses nacionais demonstrou ser mais resistente nova verdade

oriunda dos pases desenvolvidos. Na verdade, com a globalizao os pases ficaram mais

interdependentes, e as organizaes comerciais passaram a competir em nvel mundial. No entanto, o que os globalistas se esqueceram de mencionar que a globalizao uma

145 competio generalizada, em nvel mundial, de empresas comerciais apoiadas por seus respectivos Estados nacionais. Assim, o Estado-nao continua sendo bastante estratgico e relevante, dado seu papel de apoiar as corporaes nacionais. No entanto, em lugar de desafiar essa alegao altamente ideolgica de que o Estado-nao tinha perdido importncia, muitos intelectuais progressistas limitaram-se a lamentar esse fato, ou a atacar a globalizao. Este , mais uma vez, um exemplo de como o conhecimento

insuficiente ou incompetente de parte dos grupos progressistas impede a necessria crtica das alegaes ideolgicas emitidas pelos grupos conservadores associados aos tcnicos de classe mdia.

No entanto, o neoliberalismo j est desaparecendo nos pases desenvolvidos. Ele teve

sucesso em limitar a excessiva interveno do Estado e em restaurar as taxas de lucro e de crescimento, que foram perigosamente reduzidas nos anos de 1970, mas foi incapaz de

oferecer uma alternativa sensata a duas grandes realizaes das democracias modernas: o

planejamento macroeconmico e o Estado de bem-estar social. Essa a razo pela qual,

no levando em conta a privatizao, mas somente, o aparelho do Estado no sentido

estrito, as reformas neoliberais foram incapazes de reduzir a carga tributria e, portanto, o

tamanho da organizao do Estado. Por outro lado, o globalismo est sendo cada vez mais criticado nos pases em desenvolvimento, particularmente na Amrica Latina, onde se tornou dominante desde o incio da dcada de 1980, na medida em que fracassou

dramaticamente em promover o crescimento econmico. verdade que o nico caminho

para o crescimento econmico o capitalista, mas sabemos que existem muitas variedades de capitalismo alm daquela baseada na poupana externa imposta aos pases que abriram sua conta de capital e continuam cronicamente vulnerveis em termos financeiros.8 Uma demonstrao desse fato so os dinmicos pases asiticos que h dcadas continuam a crescer rapidamente sem abrir suas contas de capital, mantendo suas taxas de cmbio sob controle, relativamente desvalorizadas, e combinando competio de mercado no mbito externo com uma eficaz coordenao administrativa e de mercado da economia, no interno. Na verdade, o capitalismo do conhecimento eficaz em proteger a taxa de lucro, porque sem ela a estabilidade e o crescimento no so possveis, mas no far isso desnecessariamente, destruindo algumas grandes conquistas institucionais, tais como o Estado de bem-estar social e a poltica macroeconmica. O Estado de bem-estar social garante estabilidade social e legitimidade poltica. As polticas econmicas complementam a coordenao da economia pelo mercado, de um lado defendendo a competio de mercado e corrigindo a alocao de recursos; de outro, suavizando o ciclo e estimulando o investimento e o crescimento.

Concluso

Em concluso, a previso de Galbraith em 1967 de que o conhecimento estava substituindo o capital como o fator estratgico de produo foi corroborada pelos fatos.

Essa mudana, juntamente com a substituio das empresas familiares pelas organizaes como as unidades bsicas de produo, deu origem a uma nova classe social a classe mdia profissional , caracterizada pela propriedade coletiva das organizaes. No entanto, o surgimento da classe dos tcnicos no implicou o aparecimento de um novo sistema social, nem envolveu a concentrao de poder poltico nas mos da nova classe. A economia continuou sendo controlada pelo mercado e orientada para o lucro, portanto, capitalista. No entanto, em vez do capitalismo clssico, o que temos um capitalismo dos tcnicos em que a nova classe divide simultaneamente renda e poder com os capitalistas, ao mesmo tempo em que disputa particularmente por poder. A tentativa da

nova classe de implantar uma economia planificada teve xito em obter poupana forada

e em promover ou consolidar a industrializao inicial, mas o arranjo puramente estatal

fracassou na Unio Sovitica. Por outro lado, a ascenso da democracia no sculo XX

representou um importante freio s tendncias autoritrias da nova classe e ao poder de

ambas as classes, capitalista e classe mdia profissional. Hoje em dia, as modernas

economias capitalistas so mistas, no apenas porque capitalistas e tcnicos ou detentores

do conhecimento dividem poder e renda, mas tambm porque a coordenao do sistema

econmico no se baseia em um mercado forte e em um Estado mnimo, como sonhavam

os neoliberais, nem em um Estado forte e um mercado fraco, como almejavam os

estatistas. Ao contrrio, fundada em um mercado forte, porque competitivo e baseado

numa classe capitalista empresarial, e num Estado forte, onde representantes eleitos e no

eleitos da classe mdia profissional so capazes de organizar a ao coletiva de modo

democrtico e eficiente. Esse mercado nunca to competitivo, e o Estado nunca to

eficiente e democrtico quanto gostaramos, mas so o bastante para manter em

movimento o desenvolvimento econmico e poltico.

O capitalismo do conhecimento parte do processo de desenvolvimento que as

sociedades modernas esto vivendo desde a revoluo capitalista. Esse processo

econmico, social e poltico complexo, contraditrio, s vezes dispendioso,

freqentemente injusto, mas, de qualquer modo, avana. Apesar de todas as desvantagens, o capitalismo dos tcnicos representou um avano em relao ao capitalismo clssico ou liberal. No apenas porque essa forma de capitalismo mais eficiente do que a anterior mas tambm porque mais compatvel com a democracia e com uma distribuio de renda mais igualitria. A razo essencial para isso provavelmente reside no fato de que o conhecimento mais acessvel s classes mais baixas do que o capital. Embora o conhecimento tambm possa ser herdado e, em momentos de progresso tecnolgico,

extremamente rpido, e ainda possa implicar concentrao de renda como demonstraram

os ltimos trinta anos, mais difcil para os ricos transferirem conhecimento a seus filhos

do que capital. Com o capitalismo dos tcnicos, a mobilidade social maior e a igualdade

de oportunidades um objetivo menos utpico no capitalismo do conhecimento do que no capitalismo clssico. Sei que esta uma viso otimista que no se mostrou verdadeira

durante os ltimos trinta anos em termos de distribuio de renda, uma vez que a oferta de pessoas dotadas de conhecimento foi inferior ao que exigiam os mercados, e os ordenados cresceram mais do que os salrios. Mas a garantia de educao bsica para todos e o enorme aumento de estudantes inscritos nas universidades sugerem que este otimismo de longo prazo no desprovido de realismo.

Esta crena nas qualidades positivas das economias mistas, e a viso crtica da

opinio comumente aceita, expresso que John Galbraith criou, est presente na maior

parte de seu trabalho, desde American capitalism: the concept of countervaling power

(1957) e The affluent society (1958) at Tbe good society (1996) e The economics of

innocent fraud (2004). Ele sempre esteve mais interessado na empresa do que no Estado,

no administrador de negcios do que no burocrata estatal, mas sempre deixou claro que a

chave para compreender o capitalismo contemporneo est na interao entre essas duas

entidades e seus respectivos agentes. Alm disso, est sempre pronto para apresentar uma

viso inovadora. Em seu ltimo livro, por exemplo, afirma: Uma parte grande e cada vez maior do que chamado de setor pblico est, para todos os efeitos prticos, no setor

privado [...]. O gasto com armas no ocorre aps uma anlise imparcial pelo setor pblico, como se pensa comumente (Galbraith, 2004, p. 34).

Por ser uma classe social, a maior fraqueza da classe mdia profissional a falta de

um ntido engajamento poltico. Os interesses de seus membros so diversificados, suas

associaes dependem fortemente de para quem eles trabalham. Se falarmos de tcnicos

que trabalham para organizaes privadas, eles estaro facilmente associados classe

capitalista. Se trabalharem para o Estado, quer como polticos, quer como servidores civis, ou para organizaes pblicas no estatais, podero ser mais autnomos. Nos regimes democrticos, os membros da classe mdia profissional, em lugar de simplesmente se aliarem aos capitalistas, como muitas vezes fazem, ou de tentarem se tornar totalmente autnomos, como aconteceu na Unio Sovitica, podem tambm se aliar aos trabalhadores e aos pobres ou ter uma atitude republicana em direo aos direitos bsicos de cidadania e ao interesse pblico. Se esta tendncia se confirmar, seu poder poltico continuar muito provavelmente a crescer no futuro s custas dos capitalistas, mas, em compensao, tero que compartilh-lo com o povo.

147

Notas

1 - Uso como sinnimos, para identificar a nova classe, as expresses classe mdia

profissional, tecnoburocracia, classe dos tcnicos, nova classe mdia, da mesma maneira

que uso de forma intercambivel classe capitalista e burguesia.

2 - Identifiquei pela primeira vez o esprito empreendedor coletivo como a forma central

por meio da qual a inovao e o desenvolvimento econmico ocorrem no capitalismo

moderno em Bresser-Pereira, 1962.

3 - Lloyd Warner (1953) identifica a mobilidade social, essencialmente baseada no esprito empreendedor capitalista, como o sonho norte-americano.

4 - interessante notar que os economistas ortodoxos que, por seu liberalismo econmico, so quase sempre associados aos capitalistas, esto particularmente propensos a acusar os polticos. significativo, tambm, que a acusao mais grave, a de corrupo, geralmente tem origem na prpria classe capitalista, que em certos casos pode ser vtima de chantagem, mas que mais freqentemente corruptora.

5 - Este tema discutido em profundidade em Bresser-Pereira (2002, 2004a).

6 - Chesnais, porm, tambm subscreve a teoria do capitalismo financeiro, que,

conforme j vimos, no se confirmou historicamente.

7 - Desde 2001, venho fazendo a crtica dessa prtica a crtica do crescimento com

poupana externa. Ver, especialmente, Bresser-Pereira (2004b).

8 - Sobre o tema, ver, em particular, Bresser-Pereira (2004b).

BIBLIOGRAFIA

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