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    ELEMENTOS DA POTICA DE HAMILTON MACHADO

    Vanessa Costa da Rosa

    Mestranda em Artes Visuais na linha de Teoria e Histria da Arte na Universidade do Estado deSanta Catarina. especialista em Histria da Arte (2013) e graduada em Artes Visuais (2011) pelaUniversidade da regio de Joinville.

    Resumo: O presente texto expe apontamentos acerca da obra do artista joinvilense HamiltonMachado (24/03/1949 26/08/1992). Para tanto apresentaremos consideraes relativas a umapequena compilao de obras e ao percurso artstico de Machado, com a finalidade de construiruma perspectivasobre sua potica. Este artigo fruto de um levantamento de dados inicial dapesquisa em andamento: Um captulo da arte em Joinville: Hamilton Machado, atravs doPrograma de Ps-graduao em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade do Estado de SantaCatarina (UDESC), com orientao da Prof Dr Sandra Makowiecky. Por conseguinte, podemser encontrados nesse trabalho alguns pontos que carecem de maior aprofundamento ouembasamento terico, problema que buscaremos sanar com o desenvolvimento da pesquisa.Palavras-chave: Hamilton Machado, potica, trajetria artstica.

    ELEMENTS OF THE POETIC OF HAMILTON MACHADO

    Abstract: The present text exposes notes about the work of the artist joinvilense HamiltonMachado (03.24.1949 08.26.1992). We will present considerations relating to a smallselection of works and on the artistic trajectory of Machado, with the purpose to build aperspective on his poetic. This article is the result of a survey of initial data from research inprogress: A chapter of art in Joinville: Hamilton Machado, through the Programa de Ps-graduao em Artes Visuais (PPGAV) from the Universidade do Estado de Santa Catarina(UDESC), with guidance the Prof Dr Sandra Makowiecky. Therefore, can be found in this

    work some points that need to larger further deepening or theoretical foundation, problem thatwe seek solve with the development of the research.Keywords: Hamilton Machado, poetic, artistic trajectory.

    A margem da praia encontra-se um barco a velas que flutua na superfcie das guas

    calmas do mar. Essa paisagem, desenhada a bico de pena e com uma preciso clssica,

    ganha aspecto surreal quando, ao observ-la, percebemos que paira sob a cabea de um

    homem. Deste modo, preenchendo a fronte do homem, a paisagem ocupa tambm a

    parte superior do desenho. O personagem de olhos fechados parece absorto pela

    imagem que supomos ser fruto de sua imaginao ou memria. Seus lbios no

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    escondem a satisfao de desfrutar de tal pensamento e imagem, um sorriso marca seu

    semblante. Essa imagem que descrevemos est expressa na obra Sem ttulo (1987), (Fig.

    1), do artista joinvilense Hamilton Machado.

    As dcadas de 1970 e 1980 marcaram um perodo de efervescncia e articulao

    cultural para o desenvolvimento do campo das artes visuais na cidade de Joinville, em

    Santa Catarina. Jovens artistas organizados promoveram e incentivaram aes que

    mudaram e ampliaram a visibilidade da produo artstica local. Cravando novos rumos

    para as artes visuais e modificando ostatus quoprovinciano da cidade, no que se refere

    ao campo artstico, esses jovens artistas do origem a Coletiva de Artistas de Joinville

    no ano de 1971. A mostra que completa sua 44 edio neste ano, tornou-se um espao

    de referncia para a construo de um sistema de arte na cidade. O Museu de artes de

    JoinvilleMAJ, inaugurado em 1976, igualmente fruto das reivindicaes feitas pelos

    artistas. Em meio a estes artistas estava Hamilton Machado, que alm de fazer parte do

    grupo de 11 artistas que criaram a Coletiva, na dcada seguinte esteve envolvido na

    criar da Associao de Artistas Plsticos de Joinville (AAPLAJ) em 1982.

    Machado iniciou seu percurso artstico ainda muito jovem e com apenas 16 anos de

    idade realizou sua primeira exposio na Biblioteca Pblica da cidade de Joinville, no

    ano de 1965. Consolidada em prticas voltada para o desenho, a pintura e a gravura emmetal, ao todo, sua potica contempla um vasto nmero de mais de 200 obras. Estas

    obras encontram-se hoje, em sua maioria, em acervos particulares e algumas poucas em

    acervos dos museus, como o Museu de Arte de Joinville (MAJ) e o Museu de Arte de

    Santa Catarina (MASC) em Florianpolis.

    O domnio e dedicao tcnica do desenho e da pintura o levaram a elaborar, ao longo

    da vida, projetos grficos de ilustraes de livros, jornais, convites de exposies epainis para canais televisivos que o ajudavam a manter uma renda mensal.

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    Em sua trajetria artista passou alguns anos em Curitiba, dividindo um ateli com outro

    artista. Na cidade paranaense teve contato com Museus, Galerias e as mais diversas

    exposies de arte ampliando seu repertrio visual. De Curitiba mudou-se para o Rio

    de Janeiro, onde se revezava entre o trabalho de elaborao de painis de pinturas para

    redes de TV e a sua produo artstica. No Rio, passou 10 anos de sua vida, expondo em

    diversas cidades do Brasil e tendo contato direto com a produo artstica do eixo

    Rio/So Paulo. Depois disso retorna a cidade natal.

    J em Joinville Hamilton Machado passa a sustentar-se dando aulas de desenho e

    pintura na Casa da Cultura, desenvolvendo projetos grficos, vendendo algumas de suas

    obras e elaborando retratos sob encomenda. Com relao aos retratos, o artista tornou-se

    conhecido como bom retratista, mas apesar do reconhecimento e reputao, Hamilton

    parecia no gostar dessa tarefa e segundo Marina Mosimann1(ApudGroth, 2002, n.p.)

    este era um dom que fazia questo de omitir.

    Da poitica e do arquivo

    Como artista Hamilton Machado preocupando-se com o desenvolvimento da tcnica e

    igualmente com conhecimentos e estudos da cultura em geral. Algumas referncias do

    conjunto de interesses intelectuais do artista so constatadas em jornais onde ele, ementrevistas, comenta sobre influncias de outros artistas como Pablo Picasso, de

    cineastas como Luis Buuel, de escritores como Jlio Cortazar e Jorge Luis Borges.

    Esses referenciais do universo particular de Hamilton Machado do corpo ao arquivo

    pessoal do artista e influenciam sua obra, evidenciam a carga conceitual de suas

    potica.

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    Na obra descrita no inicio desse artigo, Fig. 1, encontramos alguns elementos e

    procedimentos que so recorrentes na potica de Hamilton Machado. Pretendemos falar

    sobre estes aspectos buscando compreender a obra e o arsenal arquivstico do artista.

    Figura 1Hamilton Machado. Sem ttulo, 1987. Bico de pena. 43x33cm. Acervo particular Dr. ArthurSava.Fonte da imagem: OLSEN, Margit e MACHADO, Isabel Cristina. (Org) Catalogao de obras do

    artista (1992). Casa da Cultura, Joinville, 1992.A tcnica

    A preciso no trao e o domnio tcnico do artista ficam evidentes na Fig.1, e em outras

    de suas obras. Devotado ao estudo e a realizao de esboos, o artista preocupava-se

    com cada detalhe dos desenhos que elaborava. Uma possvel influncia clssica vista

    nessa e em outras obras, atravs da presena de conceitos operacionais do classicismo

    como a preocupao com equilbrio, a serenidade e a harmonia.

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    Desde pequeno, com ainda seis anos de idade, seu pai reconheceu a propenso do

    menino ao desenho, graas a um episdio singular. Nesse evento, o pai de Hamilton lhe

    deu um pedao de papel e caneta, a fim de entreter o menino, eis que terminado o

    desenho o filho lhe mostrou o que havia feito e este era um desenho de grande

    qualidade de um posto de gasolina. A partir da o pai passou a incentivar o filho em seu

    talento. A habilidade com o desenho lhe rendeu tambm o apelido de mestre2.

    Uma influncia Surrealista

    Na obra de Hamilton Machado a influncia surrealista frequentemente considerada

    pela crtica. Esta influncia reconhecida por autores que escreveram sobre o artista,

    como o caso da monografia de Sandro Everton Nascimento O surreal na obra do

    mestre Hamilton Machado(2012) e do comentrio do crtico de arte Harry Laus (1922-

    1992):

    Como se estivesse tentando reconstruir um sonho na mente, o artistafotografa alguns detalhes que ficaram mais ntidos na memria,deixando outras zonas do desenho apenas com a parte grfica, semprepreocupado com a correo do trao. Na parte fotografada, entra acor e o detalhe (um rosto de mulher, por exemplo). O maisimportante que esse procedimento no quebra a estrutura dacomposio, voluntariamente decomposta por elementosgeomtricos, onde o artista vai trabalhar com a cor. (Laus, 1979, n.p.)

    Deste modo, atravs de consideraes sobre as caractersticas fantasmais, onricas, de

    relao direta com o sonho e o inconsciente, a crtica de arte contempornea de

    Hamilton apresentou diversas vezes o trabalho do artista como um exemplo de obra

    surrealista.

    Articulando smbolos e objetos que parecem no conter nenhuma relao aparente, asobras ditas surrealistas de Hamilton Machado, buscam a ateno do espectador para

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    refletir sobre o que se passa na tela e quia desvendar os mistrios existentes nas

    relaes entre figuras e smbolos que elas carregam. Nas obras os smbolos, temas,

    objetos, influncias do arquivo particular do artista ganham espao e um repertrio que

    nos parece vincular-se muito mais aos estudos claramente intelectuais dispendiosos do

    artista por ele traduzido em suas obras.

    O Homem, a ironia, o sarcasmo

    A preocupao com o homem e sua relao com o mundo uma constante nos

    comentrios do artista sobre sua obra. Esta reflexo sobre o homem igualmente

    reafirmada por amigos, pesquisadores e crticos de arte que tiveram acesso a potica de

    Hamilton Machado. Segundo Artioli (2004, p.04) o Seu trabalho enfoca a realidade

    humana como um todo. Segundo ele prprio, o ser humano em todos os sentidos, tanto

    no aspecto social e individual, como suas manias, paixes e anseios.

    Desta forma, perceptvel um repertorio de personagens humanos representados nas obras

    de Machado. As expresses e as relaes desses personagens com os objetos que os

    acompanham do vazo a angustias e satisfaes que se conectam diretamente com as

    reflexes mais caras ao homem.

    Voltamos a olhar a obra Sem ttulo (1987), (Fig. 1) e podemos analisar que nela a

    relao do homem com o mundo apresentada atravs de um conceito caro aos

    romnticos, o sublime. O sublime est associado diretamente aquilo que no podemos

    representar. Como j atentou Cludia Vallado de Mattos (2013, p.14): As

    representaes das ideias de Deus, de infinito ou de morte, por exemplo, poderiam ser

    associadas a essa categoria sendo capazes de gerar um sentimento sublime. Associado

    a parcela do irrepresentvel e do indizvel, o sublime aparece nas obras de arte

    romnticas como uma presena da ausncia, despertando no espectador a reflexo sobre

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    o misterioso, a imensido da natureza, a solido, podendo inflamar a percepo da

    finitude humana, bem como uma relao harmnica ou desarmnica entre o homem e

    natureza, o homem e a f.

    Na obra de Hamilton Machado, a relao do homem com a natureza apresentada de

    forma harmnica. O homem ali encarnado rememora a natureza atravs da lembrana

    de sua presena. A contemplao da natureza se d atravs da memria, da lembrana

    de um sonho ou de um episdio vivido pelo personagem. uma lembrana boa que

    extrapola a memria interior e se manifesta no sorriso do homem, que transmite um

    semblante de serenidade. Deste modo a relao do homem com a natureza se d pela

    continuidade, pela complementao um do outro e no atravs do confronto ou da ironia

    como acontece em outras obras, ao questionar a postura humana sobre o mundo.

    Em um comentrio a imprensa Hamilton Machado argumenta que seu trabalho faz

    crtica forma como o homem age sobre o mundo: O homem como personagem do

    dia-a-dia egosta, ambicioso, vem destruindo a todo instante nossa fauna e flora. Por

    isso que meu trabalho uma crtica cida e feroz a esse posicionamento do homem

    (MACHADO, 1980, p.17). Na mesma direo caminha a argumentao da crtica de

    arte Adalice Arajo (1931-2012), ao salientar que o artista evidencia em suas obras o

    lado que ns humanos tentamos esconder:

    Usando um grafismo ao mesmo tempo sutil, vigoroso e preciso, elemostra a mscara oficial que as pessoas usam desnudando porm oseu outro lado. Na fase atual destaca foto realisticamente certospormenores de um cotidiano simblico, para transform-los emchaves de enigmas, atravs dos quais crtica a sociedadecontempornea. Hamilton Machado impe-se hoje como um dosmais criativos desenhistas do sul do pas. (Arajo, 1979, n.p.)

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    Obras com abordagens sarcsticas, como a obra Sem ttulo(1976), (Fig. 2),fazem parte

    do repertrio de Hamilton Machado. A obra vislumbra a crtica ao homem e seu

    comportamento ambicioso e egosta como comentou o artista. A figura do mdico

    apenas reconhecvel pelo espelho de mdico que fica na cabea do personagem, uma

    vez que ele no veste roupas brancas ou algum tipo de jaleco do ofcio. Talvez essa

    figura esteja mais prxima desse outro lado desnudado por Machado, para usar o

    argumento de Adalice Arajo. Um lado antes oculto do mdico que ganha espao na

    obra do artista. A figura veste um traje excntrico, entre seus elementos um colete de

    ferro e em uma das mangas um espcie de algema. Ambos os braos tem posies

    incomuns, enquanto o direito (esquerdo para ns espectadores) aparenta ser do

    personagem, o outro brao que fica a esquerda (nossa direita) est mal posicionado e

    no constri relao com o antebrao da figura. Talvez esse brao esquerdo seja de

    outro personagem. Esse outro personagem, por sua vez, coloca diante do mdico alguns

    documentos.

    O mdico com sua expresso e gesticulao nos aparece irnico e sarcstico. O

    personagem em gesto irreverente nos mostra a lngua. Essa tem na ponta uma

    bifurcao que a divide em duas parte que nos remete imediatamente a imagem da

    lngua de uma cobra. A forma como est posicionado o brao esquerdo e o movimento

    que esse sugere apresentar, deixa o personagem ainda mais sinistro.

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    Figura 2Hamilton Machado. Sem ttulo, 1976. leo sobre Eucatex. 100x60cm. Acervo particular Dr.Gilberto Bayer Martins.Fonte da imagem: OLSEN, Margit e MACHADO, Isabel Cristina. (Org)

    Catalogao de obras do artista (1992). Casa da Cultura, Joinville, 1992.

    A obra enseja do pblico a criao de narrativas e a crtica a figura humana. Irnica,

    sarcstica e amedrontadora, ela fomenta hipteses e estrias possveis que nos levam a

    refletir sobre o personagem. Seja atravs da crtica ao homem e suas aes sobre o

    mundo, ou do universo onrico de um sonho inventado, essa e tantas outras obras do

    artista insistem em nos provocar.

    Do repertrio a obra

    Foram poucas as situaes em que Hamilton Machado comentou sobre seus interesses

    filosficos e culturais, sobre o seu arquivo pessoal de influncias, contudo, suas obras

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    apresentam referncias e citaes de temticas s vezes mitolgicas, teolgicas,

    filosficas e simblicas. Como j argimos previamente, essas referncias so oriundas

    de diversas fontes, sejam elas livros, msicas, escritores, artistas, filmes, cineastas,

    disciplinas (como antropologia, sociologia, arqueologia, filosofia).

    No Boletim Informativo do Museu Arqueolgico de Sambaqui de Joinville MASJ

    (1991, p.28-29), o artista argumenta sobre os assuntos que vinha estudando e o que lhe

    interessavam ttulo de conhecimento sobre o mundo. Dado seu envolvimento na

    elaborao de painis de pintura sobre o modo de vida dos sambaquianos, o artista foi

    entrevistado e no Boletim do museu argumenta sobre a experincia desse trabalho e, ao

    mesmo tempo, comenta sobre os campos do saber que se dedicava a estudar e conhecer.

    Eu me interesso por Pr-histria desde 1971-72, quero dizer, euconheo a pr-histria desde menino, na escola, mas de maneirasuperficial. Porm, o interesse pela cincia comeou a nascerdentro de mim desde que me afastei das igrejas evanglicas ondefui criado. Acho que o nico grilo que tenho contra a religio essacoisa de eles cercearem o esprito cientfico. Acho que ainda hoje,se o Galileu ressuscitasse ele no teria grande apoio. Desta formaquando descobri a Astronomia, a Arqueologia, a Antropologia, essacoisa toda da evoluo, a histria, a pr-histria, isso tudo pra mimfoi uma grande descoberta que aumentou meu interesse e quandopassei a comprar livros e visitar museus, quando apareceu estaoportunidade aqui, aps esses anos todos de leitura e interesse poresse assunto [...]. (MachadoApudNascimento, 2012, p.47.)

    No podemos afirmar que todas as obras do artista so construdas com base nessas

    referncias, e nem mesmo acreditar que todas elas so traduzidas pelo artista em suas

    obras de forma intencional. Podemos supor e compreender que essas referncias fazem

    parte de um arquivo que o rodeia e que em determinados momentos ganharam espao

    em sua potica.

    O arquivo como considera Michel Foucault em seu texto A Arqueologia do Saber(1995) uma espcie de acumulado de questes que se entrecruzam, se sobrepem, de

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    forma no linear. Esse acumulado estaria em volta do artista, uma vez ou outra,

    cintilando como lampejos em sua potica.

    O arquivo , de incio, a lei do que pode ser dito, o sistema querege o aparecimento dos enunciados como acontecimentossingulares. Mas o arquivo , tambm, o que faz com que todas as

    coisas ditas [...]. [...] se agrupem em figuras distintas, secomponham umas com as outras segundo relaes mltiplas, semantenham ou se esfumem segundo regularidades especficas; ele o que faz com que no recuem no mesmo ritmo que o tempo, masque as que brilham muito forte como estrelas prximas venham atns, na verdade de muito longe, quando outras contemporneas jesto extremamente plidas. (Foucault, 1995, p.149)

    Um vasto repertrio arquivistico que vai desde assuntos cientficos at elementos da

    cultura geral podem ser encontrados na potica de Hamilton Machado. Os vislumbres

    culturais presentes nas obras unidos ao trao prprio e a uma influncia notadamente

    surrealista, do potica do artista uma atmosfera enigmtica. Poderamos supor que

    atravs de histrias inventadas, sonhadas e calcadas na realidade humana, as obras

    constroem um ambiente onde a realidade e a fico se confundem em uma mesma

    imagem. Seus personagens e suas histrias nos instigam a refletir sobre a relao e ao

    do homem sobre o mundo. Seja esse mundo o mundo real, do aqui e agora, ou um

    mundo, de tempos anacrnicos, ou que fantasiamos, e que construmos calcados ou no

    sobre a racionalidade do real.

    Do inconsciente a conscincia

    A obra Sem ttulo(1980) ( Fig. 3),destaca alguns dos assuntos de interesse do artista.

    Na analise desta obra possvel deparar-se com ideias que aparentemente so prximas

    do conceito de sublimaoque Sigmund Freud (1856-1939) defendeu sobre o artista e

    seu fazer.

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    O que nos leva a fazer as leituras que seguem, so motivadas pela presena da palavra

    id na obra. Esta aparece na parte inferior do quadro ao lado do personagem,

    evidenciando a preocupao com o inconsciente e, portanto, fazendo referncia clara a

    influncia de princpios surrealistas.

    Sem Ttulo(1980). Dimenso: 69x99cm. Tcnica: Bico de pena e lpis de cor. Acervo particular de IsabelCristina Machado. Fonte da imagem: OLSEN, Margit e MACHADO, Isabel Cristina. (Org) Catalogao

    de obras do artista (1992). Casa da Cultura, Joinville, 1992.

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    Segundo Arnold Hauser, para Freud:

    O artista um introvertido que, devido a impulsos instintivosexcessivos, incapaz de se adaptar s necessidades da realidadeprtica, que, em busca de compensao, se volta para o mundo dafantasia a encontrando um substituto para a satisfao direta dos

    seus desejos, ele consegue a converso das suas exigncias norealsticas em propsito que so realizveis, pelo menosespiritualmente atravs do que Freud denomina de poder dasublimao. (Hauser, 1988, p.53)

    A sublimao seria ento o trajeto de retorno ao real seria, pois Consiste

    essencialmente no desvio de um impulso do seu objetivo direto mas censurvel para

    uma satisfao indireta e socialmente mais aceitvel (Hauser, 1988, p.55). Esta

    satisfao indireta e socialmente aceitvel seria a obra de arte, onde o artista expressa

    seu impulso j sublimado e aceitvel sociedade. O desvio da sublimao que afasta oartista do neurtico e tambm do decalque de seus impulsos. Deste modo a arte pode ser

    vista como uma forma convertida dos impulsos da libido ou de outros impulsos do

    instinto (Hauser, 1988, p.56).

    A sublimao prova ter muitas caractersticas em comum com umsintoma neurtico; cada um representa um compromisso no qual oprincpio do prazer no , de modo algum, abandonado; a nicadiferena que a neurose uma derrota do egono seu conflito como id, a sublimao uma vitria do ego, em conjunto com o id, sobreosuperego, embora no sendo certamente uma vitria dosuperego,o que conduziria necessariamente ao recalque. (Hauser, 1988, p.57)

    Visto que a Sublimao a vitria do egojunto ao idsobre osuperego, percebemos que

    a obra carrega em si as pulses e prazeres presentes no id, mas de forma moderada

    uma vez que tratasse de uma unidade com o ego que media esses impulsos com a

    realidade.

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    Na obra de Hamilton Machado reconhecemos a referncia ao processo de sublimao

    de Freud. Especialmente na parte superior da obra todos os elementos constroem uma

    seqncia de transformao que se aproxima da ideia de sublimao. Nesta seqncia

    de modificao da ma penetrada pela faca que transforma-se em pssaro, visvel a

    referncia a transformao do desejo (simbolizado pela ma) e que em livre associao

    diz respeito ao id, que penetrado pela influncia do ego(simbolizado pela faca), e que

    se transforma em pssaro atravs da unio entre ambos (id e ego) e pelo desvio

    provocado pela sublimao, que por fim trs a sociedade o desejo em forma aceitvel de

    obra de arte.

    A ma, enquanto fruto do desejo, pode encontra na obra de Hamilton uma razo

    teolgica (vinculada ao pecado original bblico), assim como outros smbolos utilizados

    recorrentemente pelo artista em suas obras, como a Torre de Babel. A faca aparece

    como um elemento de corte do desejo exacerbado provocado pelo id. J o pssaro,

    como resultado final do processo parece nos falar da liberdade de prazeres que antes

    estavam mergulhados no inconsciente do artista. Por mais que esse pssaro fale de uma

    liberdade mediada, ainda assim ele carrega consigo elementos do desejo do idmediado

    com o ego em posio diferenciada do recalque que seria a perda dos impulsos e desejos

    pelo controle do superego. A liberdade reaparece fortemente na obra atravs do vo

    livre da gaivota que sobrevoa o homem. Contudo, o homem que aparece no desenho trado pela prpria sombra que mira em outra direo.

    O que torna a obra intrigante a procura do artista em apresentar a leitura de um

    procedimento que daria origem s obras de arte. Em uma abordagem claramente

    conceitual, Hamilton Machado constri uma obra que expe o processo de surgimento

    das obras de arte, segundo a teoria freudiana.

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    Consideraes finais

    Neste texto tentamos apresentar alguns apontamentos acerca das obras de Hamilton

    Machado. Nos debruando sobre o seu percurso artstico e consideramos referncias e

    vestgios que permeiam o seu universo pessoal e arquivistico. Como fruto de uma

    pesquisa inicial de compilao e fichamento de dados coletados em diversas fontes e

    instituies culturais como museus, galerias e arquivos histricos, nossa contribuio

    nesse trabalho ainda embrionria e por isso em nenhum momento procuramos

    deslindar meticulosamente todos os elementos da produo artstica de Hamilton

    Machado. Buscamos unicamente esboar algumas consideraes que construmos a

    partir da leitura das obras e dos materiais compilados.

    Conclumos este texto, e o incio dos avanos de nossa pesquisa, cientes de que h um

    vasto repertrio de referenciais tericos, arquivsticas e artsticas que nos instigam a

    seguir adiante e escrever sobre o que eles nos provocam e anunciam.

    Referncias

    ARAJO, Adalice. Comentrio crtico sobre Hamilton Machado. Curitiba, nov., 1979. In:ARQUIVO do artista Hamilton Machado do Museu de Arte de Joinville. Biblioteca doMuseu de Arte de Joinville (MAJ), Joinville, visitado em dezembro de 2014.

    ARTIOLI, Ana Cludia M. Moreira. Atividade sobre o artista joinvilense HamiltonMachado. Trabalho de Concluso do curso de Histria da Arte da Casa da Cultura FaustoRocha Jnior. Professora Berenice Mokross. Joinville: s.n., 2004.

    FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995.

    GROTH, Marlise. Um lbum para Hamilton MachadoArtista de grande importncia para umagerao de jovens talentos de Joinville tem vida e obra resgatadas. Jornal A Notcia, Joinville,26 de fevereiro de 2002, Caderno AN Segunda, n.p.

    HAUSER, Arnold. Teorias da arte. Trad. F. E. G. Quintanilha. Lisboa: Editorial Presena,1988.

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    LAUS, Harry. Um equvoco crtico. So Jos, outubro de 1979. In: CATLOGO, Convite daexposio de Desenhos de Hamilton Machado Situaes Humanas. Galeria de arte SH316,Curitiba, 9 a 24 de novembro de 1979.

    MACHADO, Hamilton J. In: AS CRTICAS e os enigmas de machado em exposiono Masc. Jornal O Estado, Florianpolis, 14 de nov. de 1980, p.17.

    MATTOS, Claudia Vallado. Expressionismo alemo, arte e vida. In: BADER, Wolfgang;ALMEIDA, Jorge de (Orgs). Pensamento alemo no sculo XX: Grandes protagonistas erecepo das obras no Brasil, vol.II. So Paulo: Cosac Naify, 2013.

    1Personagem influente da cena artstica de Joinville, em especial nos anos 1970 2000, Marina HeloisaMedeiros Mosimann foi marchand, proprietria da Galeria de Arte Lascaux (1976), diretora do Museu deArte de Joinville (MAJ) de 1989 a 1993 e novamente de 2003 a 2008. Foi coordenadora da Casa daCultura de Joinville de 2000 a 2003. Presidiu o Instituto Schwanke de at 2012, hoje vice-presidente domesmo.2O apelido de mestre surge a partir de uma brincadeira que este realizava com os alunos em sala de aula,na Casa da Cultura de Joinville. Ao terminar algum desenho com preciso e em tempo rpido o professorHamilton Machado brincava com os alunos mostrando as mos e falando Mos de mestre!. Essa

    brincadeira repercutiu e em pouco tempo Hamilton Machado passava a ser chamado de mestre.