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    TTULO I

    CONSTITUI O E NORMAS CONSTITUCIONAIS

    CAPTULO I

    SENTIDO E ESTRUTURA DAS CONSTITUIES

    I - Introduo. II - Constituio em sentido sociolgico. III-Constituio em sentido poltica. IV- Constituio em sentidoju-ridico. V- Conceito estrutural de constituio. v1- Constituioem sentidoformal. VII- Constituio rigida e normas constitucio-nais.

    I - Introduo

    l. A constituio, como sistema de nonnas jurdicas, que cons-tituir o objeto nuclear de nossa preocupao, no como nonna pura,desvinculada da realidade social e vazia de contedo axiolgico, mascomo uma estrutura, considerada como uma conexo de sentido, o queenvolve um conjunto de valores. Pois, como assinala Herman Heller,se se prescinde da nonnalidade social positivamente valorada, a cons-tituio, como mera fonnao normativa de sentido, diz sempre muitopouco.2. Mas aqui mesmo j se vislumbra um campo de profundas di-

    vergncias doutrinrias: em que sentido se deve tomar a constituio:no sociolgico, no poltico ou no jurdico?,

    Para bem fixar os limites de nossa pesquisa e evitar perspectivaunilateral, mister se faz definamos nossa posio em torno dessa inda-gao, pois, embora pretendamos examinar a aplicabilidade das norn-asde uma constituio concreta - a Constituio da Repblica Federativado Brasil -, importa muito saber, para a compreenso da anlise, quesentido lhe damos, e isso s ser conseguido mediante uma perquiri-o terica e geral do problema.

    II - Constitaio em sentido sociolgico

    3. O direito constitucional manifesta-se rico de influncia da rea-lidade social e poltica. O sociologismo jurdico exacerba essa influn-cia ftica, concebendo a constituio comofato, antes que como norma."O conceito sociolgico de constituio" - adverte Garca-Pelayo

    - " a projeo do sociologismo no campo constitucional".34. O sociologismo, nas suas vrias tendncias, expriine uma posl-

    o jurdica que concebe o Direito como fato social, "apresentando-ocomo simples componente dos fenmenos sociais e suscetvel de serestudado segundo nexos de causalidade no diversos dos que orde-nam os fatos do mundo fsico".4Para ele, a fonte, a origem da ordem constitucional positiva, deve

    procurar-se na prpria realidade social, em seus estratos mais profun-

    dos. As constituies, assim, no so meros produtos da razo, comodiriam os racionalistas; algo inventado ou criado pelo homem, ou por

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    ele deduzido logicainente de certos princ.pios, como pretendem os for-malistas em geral. Ao contrrio, so resultados de algo que se encon-tra em relao concreta e viva com as foras sociais, em determinadolugar e em determinada conjuntura histrica, cabendo ao constituinte,se tanto, apenas reunir e sistematizar esses dados concretos num do-cumento formal, que s teria sentido na medida em que correspoudes-

    se quelas relaes materiais que representam a verdadeira e efetivaconstituio.'Ressalvadas as posies particulares, o sociologismo constitucio-

    nal fundamenta-se nas seguintes afirmaes: a) a constituio pri-mordialmente uma forma de ser, e no de dever-ser; b) a constituio imanncia das situaes e estruturas sociais do presente, que, parauma grande parte do pensamento do sculo XIX - e no somente paraMarx -, se identificam com situaes e relaes econmicas; c) aconstituio no se sustenta numa norma transcendente, pois a socie-dade tem sua prpria "legalidade", que rebelde pura normativida-de e no se deixa dominar por ela; o ser tem sua prpria estrutura, daqual emerge ou qual deve adaptar-se o dever-ser; d) enfim, se, noque respeita ao Direito, a concepo racionalista da constituio girasobre o momento de validez, a concepo sociolgica o faz sobre avigncia, considerada esta como praticidade e efetividade das normas,na verdade como eficcia social da regra jurdica.5. Lassalle exmio representante do sociologismo constitucio-

    nal. Indagando da verdadeira essncia do conceito de constituio,afirma que o conceito jurdico, normativo, apenas diz como se for-mam as constituies, o que fazem, mas no diz o que uma constitui-o ; no d critrios para reconhec-la exterior e juridicamente; nonos diz sequer onde est o conceito de toda constituio, a essnciaconstitucional. Para ele, constituio de um pais , em essncia, asorna dos fatores rais do poder que regem nesse pais,s e esses fato-res reais dopoder constituem a fora ativa e eficaz que informa todas

    as leis e instituies jurdicas da sociedade em questo, fazendo comque no possam ser em substncia, mais que tal e como so.9 Os fa-tores reais do poder convertem-se em fatoresjuridicos quando, obser-vados certos procedimentos, so transportados para "uma folha de pa-pel", recebem expresso escrita; ento, desde esse momento, incorpo-rados a um papel, j no so simples fatores reais de poder, mas trans-mudam-se em direito, em instituies jurdicas, e quem atentar contraeles atentar contra a lei, e ser castigado. Io Desse modo, segundo Las-salle, relacionam-se as duas constituies de um pas: a real e eJetiva,formada pela soma dos fatores reais e efetivos que regem na socieda-de, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denomina folha depapel. sta - a constituio escrita - s hoa e durvel quandocorresponde constituio real, quela que tem suas razes nos fatoresde poder que regem no pnis. Onde a constituio escritn no corres-ponde real, estala inevitavelmente um conflito que no h maneirade eludir e, cedo ou tarde, a constituio escrita, a "folha de papel",tem necessariamente que sucumbir ante o empuxo da constituio real,das verdadeiras foras vigentes no pas.ll Esse conflito irredutvel im-portar sempre o desrespeito e o descumprimento da constituio es-crita, e somente se resolver se esta for modificada para ajustar-se constituio real, ou, ento, mediante a transformao dos fatores reaisdo poder. I 'Os problemas constitucionais - afirma Lassalle - no so, prima-

    riamente, problemas de direito, mas de poder; a verdadeira constitui-

    o a real e efetiva; as constituies escritas no tm valor nemso

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    durveis, seno na medida eIn que do expresso fiel aos fatores depoder imperantes na realidade social.l3 Admite ele, contudo, que aproporo de foras efetivas, que comea sendo mero fato, acaba porconverter-se em normas,' mas no aceita a acusao, que se lhefez,de que professava a teoria de que o Poder deveria antepor-se ao Di-

    reito, de que o Poder prevalece sobre o Direito, pois, para ele, o Direi-to prima sobre o Poder, mas a teoria que estava sustentando no sedesenvolvia no plano do dever-ser, mas no plano do que real e verda-deiramente . I A teoria de Lassalle ressalta, inegavelmente, verdades que a

    experincia constitucional, da poca e de agora, confrma.Charles A. Beard, numa pesquisa sobre os interesses que h por

    trs da constituio, publicou uma obra em 1913 que causou enormeimpacto na literatura constitucional norte-americana.l6 Procede le auma interpretao econmica da Constituio dos Estados Unidos daAmrica, para demonstrar os interesses econmicos subjacentes a todaforma constitucional e para demonstrar "que inteiramente falso oconceito de que a Constituio uma pea de legislao abstrata, ondeno se reflete nenhum interese do grupo e no se reconhece nenhumantagonismo econmico. Pelo contrrio, foi um documento desta n-dole, feito com extraordinria destreza por homens que tinham, na ba-lana, seus direitos de propriedade, e que, em razo do mesmo, invo-caram, direta e certeiramente, os interesses anlogos do pas em ge-ral".I Nas concluses do seu livro, Beard destaca que estdocumen-tadamente comprovado que a Inaior parte dos membros da Convenode Filadlfia reconhecia que a propriedade tinha direito especial naConstituio, assim como esta no foi criada "por todo o povo", comoafirlriam os juristas, nem tampouco "pelos Estados", como sustenta-ram, por longo tempo, os que, no Sul, desejavam anul-la. Foi obra de

    um grupo compacto, cujos interesses no reconheciam fronteiras esta-duais e que eram realmente de mbito nacional.ls7. Laski de certo Inodo participa dessa opinio, quando sustenta

    que "a Constituio britnica, sob a forma que conhecemos, umasimples expresso, em termos polticos, de um paralelogramo particu-lar de foras econmicas".I9 Alis, noutro trabalho exprime ele a mes-ma concepo em termos gerais e mais profundos, ao admitir "quecada regime econmico cria, por sua vez, uma ordem poltica que re-presenta os interesses daqueles que dominam o regime, que possuemos instrumentos essenciais do poder econmico".zo Entre ns, PintoFerreira observa que evidente a atuao da realidade social (econ-mica e cultural) sobre os textos constitucionais e que o ideal de cons-tituio est condicionado historicamente, mediante a presso de fato-res scio-culturais e espirituais, como tambm da infra-estrutura eco-nmica das sociedades,'I e acha que os "textos legislativos constitucio-nais so uma fotografia em miniatura da paisagem social. Decalque ri-goroso das contradies dialticas da sociedade, que se consubstan-ciam numa frmula de compromisso e harmonia da sociedade, que aconstituio".22 O prprio Ruy Barbosa j dizia que as constituiesso conseqi.incias da irresistvel evoluo econmica do mundo.23&. Sociolgica tambm a concepo marxista da constituio.

    Para os marxistas, o Estado e o Direito so partes essenciais da supe-restrutura que se erige sobre as relaes de produo da sociedadedi-vidida em classes. So produto da diviso da sociedade em classes

    antagnicas e constituem um instrumento nas mos da classe domi-nnnte dentro do tipo dado de relaes de produo. Qualquer Estado

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    , antes de tudo, a organizao poltica da classe dominante, que ga-rante seus interesses de classe, enquanto todo Direito representa a von-tade desta classe, "constituda em lei" e determinada pelas condiesda existncia material.24 Guiando-se pelas teses do materialismo his-trico, que a aplicao do materialismo dialtico ao estudo da socie-dade, a teoria marxista-leninista do Estado e do Direito considera os

    fenmenos estatais e jurdicos, sobretudo, em sua interconexo com oregime econmico da sociedade dividida em classes. Estuda o Estadoe o Direito em seu desenvolvimento, sendo a origem deste nas contra-dies entre as relaes de produo e o desenvolvimento dasforasprodutivas, nas contradies entre as classes, na luta entre o novo eovelho, entre os elementos da vida social que nascem e se extinguem.A teoria marxista do Estado e do Direito considera a mudana revolu-cionria de um tipo histrico de Estado e de Direito, por outro lado,como um fenmeno sujeito a leis, como uma mudana qualitativa("salto") preparada pelas mudanas quantitativas anteriores, que sesucederam gradualmente. Da se pode concluir que, na concepomarxista, a constituio um produto das relaes de produo e visaa assegurar os interesses da classe dominante, representando a nonnasuprema da organizao estatal, determinada pelas condies da exis-tncia material.

    III - Constitaio em sentido politico

    9. No fundo, a concepo poltica da constituio revela certa fa-ceta do sociologismo, segundo a formulao de Carl Schmitt, que aconsidera como deciso politicafundamental.Para decantar esse conceito de constituio, Schmitt pesquisou,

    na literatura poltico-jurdica, todos os sentidos do vocbulo constitui-o, classificando-os em quatro grupos: a) sentido absoluto; b) senti-do relativo; c) sentidopositivo; d) sentido ideal.10. Em sentido absoluto, a constituio considerada como um

    todo unitrio, significando: o prprio Estado, o Estado a constitui-o, a qual a concreta situao de conjunto da unidade politica eordenno social de um certo Estndo;'6 a forma de governo, modoconcreto de supra e subordiriao, forma especial de dominio;' prin-cpio do vir a ser dinmico d unidade poltica, como formao reno-vada e ereo dessa unidade, a partir de uma fora e energia subja-cente ou operante na base;zs finalmente, dever-ser, regulao legalfundamental, isto , um sistema de normas supremas, normas de nor-mas, normao total da vida do Estado, lei das leis.29

    11. Em sentido relativo, a constituio aparece como uma plura-lidade de leis particulares; o conceito de constituio fixa-se, aqui,se-gundo caractersticas externas e acessrias, formais, correspondendoao conceito de lei constitucional concreta. Nesse caso, tem-se a cons-tituio eIn sentido formal, constituio escrita, igual a uma srie deleis constitucionais, identiflcada com o conceito de constituio rgi-da.3o12. Em sentido ideal, a constituio identiflca-se com certo con-

    tedo poltico e social, tido como ideal; nesse caso, s existir consti-

    tuio quando um documento escrito corresponder a certo ideal de or-ganizao poltica, adotando detenninadas ideologias e solues, con-

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    sideradas como as nicas legtimas. Para o constitucionalismo do s-culo passado, esse ideal era o da constituio liberal-democrticn: es-crita, rgida, que assegurasse um sistema de garantia da liberdade bur-guesa e a separao dos Poderes, conforme declarava o art.16 da De-clarao dos Direitos do Homem de 1789: "Toda sociedade onde noest assegurada a garantia dos direitos, nem determinada separao

    dos Poderes, no tem constituio".3i

    13. Em sentido positivo, a constituio considerada como deci-sopoliticafundamental, deciso concreta de conjunto sobre o modoeforma de existncia da unidadepolitica, s sendo possvel um con-ceito de constituio quando se distinguem constituio e lei constitu-cional. S entram no conceito de constituio aqueles dispositivosconstitucionais de grande relevncia poltica, que dizem respeito pr-pria existncia poltica concreta da nao: estrutura e rgos do Esta-do, direitos dos cidados, vida democrtica etc.; os outros, que nocontmessa importncia, embora fgurem no texto constitucional, sosimples leis constitucionais."Esse, para Schmitt, o nico e verdadeiro conceito de constitui-

    o, e a se revela, inequivocamente, um aspecto do sociologismo ju-rdico-constitucional. Por outro lado, teremos oportunidade de ver queesse um conceito de constituio em sentido material.14. A constituio em sentido positivo surge atravs de um nto

    do poder constituinte; nesse sentido, a constituio s contm a deter-minao consciente da concreta forma de conjunto pela qual se pro-nuncia ou decide a unidade poltica. A constituio no se d a si mes-ma, mas dada por uma unidade poltica concreta, anteriormente exis-tente, e ela vale em virtude dessa vontade poltica existencial daquele(poder constituinte) que a d.33 Nisso se caracterizam o decisionismoe o voluntarismo de Carl Schmitt: constituio como deciso polticafundamental, vlida somente em razo da vontade do poder que a es-

    tabelece.34 Todas as deinais normas so relativas e secundrias diantedaquelas decises fundamentais. Salvo estas, todas as demais disposi-es constitucionais so simples leis constitucionais, cuja validadepressupe uma constituio, pois toda lei, como regulao normativa,inclusive a lei constitucional, necessita, para a sua validade, em lti-ma instncia, de uma deciso poltica prvia, adotada por um poderou autoridade politicamente existente.15. De acordo com esses conceitos de Carl Schmitt, na Carta

    Magna do Brasil, constituio seriam apenas aqueles dispositivos quecontm o que ele chama de deciso poltica fundamental, ou seja, oart. IQ, onde se declara que o Brasil uma Repblica Federativa, for-mada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do DistritoFederal; o pargrafo nico do art. 1Q, onde se estatui Que todo podeiemana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente, fundamento da democracia representativa e participati-va; o art. 2Q, que consagra o princpio da diviso, harmonia e indepen-dncia dos Poderes (divis funcional ou horizontal dos Poderes),base da organizao do sistma presidencialista; bem como os arts.5g,12 e 14, que contm a declarao dos direitos democrticos e fun-damentais do homem; os dispositivos bsicos referentes ao Poder Le-gislativo, ao Poder Executivo e ao Poder Judicirio (arts. 44-125); osarts. 18 a 43 e 145 a 162, sobre organizao federal e repartio decompetncias entre as rbitas de governo da Federao (diviso terri-torial ou vertical dos Poderes). Assim mesmo, entre muitos dos dispo-sitivos mencionados h regras que, no conceito schmittiano, no po-

    dero ser consideradas como de constituio. Essas e os demais pre-ceitos de nossa Lei Maior seriam simples leis constitucionais, e foram

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    inscritos nela para ficarem ao abrigo de modificaes pelas leisordi-nrias.16. Em resumo, para Schmitt a essncia da constituio no se

    acha numa lei, ou norma, mas no fundo ou por detrs de toda normati-vidade est uma deciso politica do titular do poder constituinte, isto

    , do povo na democracia, e do monarca na monarquia autntica.3s

    IV- Constitaio em sentidojuridico

    17. Na concepo juridica, que interessa ao jurista como tal, aconstituio se apresenta essencialmente como norma juridica, nor-ina fundamental, ou lei fundamental de organizao do Estado e davida jurdica de um pas. A constituio ser, ento, "um complexonormativo estabelecido de uma s vez, na qual, de uma maneira total,exaustiva e sistemtica, se estabelecem as funes fundamentais doEstado e se regulam os rgos, o mbito de suas competncias e asrelaes entre eles. A constituio , pois, um sistema de normas".3618. Essa concepo nasceu com o constitucionalismo moderno e

    est vinculada idia de Estado liberal e ao racionalismo, para osquais a atividade jurdica , em maior ou menor gra,z, mero produtoda razo, algo deduzido de certos princpios mais ou menos imut-veis, capazes de moldar, disciplinar, modificar a realidade social, e aconstituio a garantia desses princpios. "Por conseqncia, tudoque assegura esses princpios constitucional e, por conseqncia,tambm, nada tein de constitucional aquilo que no os assegura."3 Sseria, pois, constituio aquilo que realizasse o ideal do Estado libe-ral, traduzido num documento escrito que contivesse a organizao do

    poder poltico, estruturado segundo a teoria da separao dos Pode-res, e uma declarao fonnal dos direitos fndamentais do homein.

    No se trata, to-s, de uma concepo fonnal, mas de uin conceitoideal de constituio.3s19. A concepo jurdica da constituio coloca-se em posio

    antagnica concepo sociolgica. Kelsen levou-a s ltiinas conse-Qncias. A constituio , ento, considerada como nonna, e nonnapura, ein coerncia com seu normativismo metodolgico, que conce-be o Direito apenas como direito positivo, como puro dever-ser, semqualquer pretenso a fundamentao sociolgica, poltica ou filos i-ca,39 no que bein claramente se ope aos conceitos sociolgico,poltico e ideal de constituio.Kelsen, porm, no desconhece que na base de todo Direito exis-

    tein dados sociais, isto , uma realidade social complexa, que o expli-ca e qual ele se destina, e tambm que o Direito inspirado por teo-rias e princpios filosficos, relacionados com a nonna positiva, masestes so problemas metajurdicos, segundo diz, e seu estudo no com-pete ao jurista como tal, mas ao socilogo e ao filsofo. Sua teoriapura do Direito visa a expurgar a cincia jurdica de toda classe dejuzo de valor moral ou poltico, social ou .filosfico.4o20. A palavra constituio tomada por Kelsen em dois seuidos:

    no lgico juridico e no juridico positivo.4l De acordo com o prnei-ro, constituio significa a norma fundamental hipottica, cuja fun-o servir de fundamento lgico transcendental da validade da cons-tituio jurdico-positiva.4' Para manter-se fiel ao seu normativisinopuro, Kelsen no pode adinitir como fundamento da constituio po-sitiva algo de real, qualquer dado ou elemento sociolgico, poltico

    ou filosfico, como a vontade popular, o direito natural ou o bem co-mum. Foi obrigado a procurar um fundamento tambm nonnativo para

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    a constituio, e, como esta j , por definio, norma positiva supre-ma, teve que cogitar de uma norma fundamental, nonna hipottica,meramente pensada, que existe apenas como um pressuposto lgicoda validade das normas constitucionais positivas, que consistiria nummandamento mais ou menos deste tipo: conduza-se naforma ordena-da pelo autor da primeira constituio .43

    21. A constituio jurdico positiva, na concepo kelseniana,equivale norma positiva suprema, conjunto de nonnas que regulama criao de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau; ou cer-to documento solene, conjunto de nonnas jurdicas que somente podemser alteradas observando-se certas prescries especiais 44 Conceitoquebem revela a preocupao normativista da teoria pura do Direito.22. A teoria de Kelsen teve o mrito de revelar a natureza de de-

    ver-ser da norma jurdica, mas caiu no exagero do nonnativismo, quereduz o objeto da cincia jurdica a pouco mais que uma lgica jurdi-ca. Seu formalismo no se compadece eom a experincia jurdica, es-pecialmente no campo do direito constitucional, onde se verifica tantainiluncia da realidade social, poltica e ideolgica, por sua vez exa-cerbada pelo sociologismo, conforme j expusemos.

    V- Conceito estrutural de canstituio

    23. Pecam pela unilateralidade as concepes sociolgica, polti-ca e normativa pura. Vrias tentativas tm sido feitas para superar esseparcialismo no configurar o conceito de constituio.24. Garca-Pelayo, desde logo, destaca que o direito constitucio-

    nal vigente, como todo Direito, no pura nonna, mas a sntese datenso entre norma e realidade com que se defronta,4 e concebe aconstituio como parte integrante da ordemjuridica, da ordem esta-

    tal e da estrutura politica. "Demais, toda constituio [adita) repre-senta, de maneira racional, ou transacional, absoluta ou de compro-misso, uma concreo de valores polticos, e, qualquer que seja a ex-presso de suas normas - legal ou consuetudinria, sistemtica ou as-

    sistemtica -, cabe descobrir em sua base uns "princpios" polticossustentadores".46 Adverte, em seguida, que no quer isso dizer que setrate de trs objetos independentes entre si; trata-se de trs momentosde uma Inesma realidade, que, como tais, no s se supem, mas con-dicionam-se mutuainente.4 Contesta a validade da teoria de Carl

    SchInitt Que limita a constituio a decises polticasfundarnentais, vistoQue tais decises no seriam nada se no se inserissem num sistema

    de nonnas e entidades concretas; e, se certo que tais normas e enti-dades carecem de sentido, se no se vinculam em relao teleolgicacom ditas decises, no menos certo que estas s tm sentido emsua vinculao com aquelas.4g25. Heller tambm perquire um conceito unitrio de constituio.

    Contesta o normativismo kelseniano, que priva as normas de seu sen-tido serldever-ser e entende Que no cabe manter a usual rigidez en-tre as leis do ser e as do dever-ser, tanto que Kelsen no pde desen-volver sua teoria inteiramente, vendo-se imediatamente obrigado a prem relevo a importncia que tem o momento da "observncia ordin-ria" para a positividade, ou seja, para a validade e existncia das nor-mas jurdicas.49Procura mostrar tambm o erro oposto de Carl Schmitt, que su-

    bestima completamente a nonnatividade, exaltando, em contrrio, aexistencialidade, de modo que vem a conceber a constituio no

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    como norma, mas s como deciso. Acrescenta Heller que no existeconstituio que, cabalmente, como status real, no seja, ao mesmotempo, um ser fonnado por normas, isto , uma fonna de atividadenormada, alm de uma forma de atividade meramen:e normal.o26. Para Heller a constituio estatal forma um todo, no qual apa-

    recem, complementando-se reciprocamente, a nonnalidade e a norma-

    tividade, assim como a nonnatividade urdica e a extrajurdica.' 1Realmente, buscando superar aquelas concepes parciais, diz serpreciso "distinguir, em toda constituio estatal, e como contedosparciais da constituio poltica total"a constituio no normada e anorma-da; e, dentro desta, a nonnad extrajuridicamente e a que o juridica-mente".'No se pode separar (diz ele) a normalidade e a nonnatividade, o

    ser e o dever-ser, no conceito de constituio." A no normadn e anormada so contedos parciais da constituicco total. Nesta se inte-gram o ser e o dever-ser constitucional. A constiti

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    Em suma, para Heller h uma complexa conexo entre a consti-tuio e a realidade social total, sendo ela expresso das relaesdepoder, tanto fisicas como psquicas, mas desempenhando tambm umaflIno diretora e uma funo preceptiva, que tm carter autnomo eque, com freqncia, decidem contra o tradicional.64 Assim, a consti-

    tuio no normada (realidade scio-cultural)6' e a conslituio nor-mada (normativa, jurdica e extrajuridicamente)66 so contedos par-ciais da Constituio poltica total,6 configurando elementosestti-cos e dinmicos, normalidade e normatividade, ser e dever-ser.Exprime-se, a, sem dvida, um conceito estrutural de constitui-

    o. A verdade, porm, que o nosso autor no conseguiu auzlidadeconceitual perquirida, parecendo nada Inais ter feito que hipostasiaros vrios conceitos parciais de constituio, ficando sempre uma idiade camadas mais ou menos unidas, tanto que se podem notar, comclareza, em sua concepo, trs conceitos distintos de constituio:constituio politica como realidade social, constituiojurdica des-tncnda e constituio escritn.28. Entre ns, coube especialmente a Pinto Ferreira tentar a for-

    mulao de um conceito de constituio total, "tnediante o qual se pro-cessa a integrao dialtica dos vrios contedos da vida coletiva, naunidade de uma ordenao fundamental e suprema".6s"Seria, pois, de todo em todo oportuno [salienta] conceber uma

    viso compreensiva e sinttica da constituio total, intrnseca dosseus aspectos econmico, sociolgico,juridico efilosfico, a fim deabranQer o seu conceito eIn uma perspectiva unitria".69A partir da, o Inestre pernambucano concebe: "A constituio to-

    tal seria, assim, como uin edificio de quatro andares: ein baixo a infra-estrutura das relaes econmicas, a tcnica de produo e de traba-lho, como stnbolos de uma economia individualista ou coletivista;

    logo em seguida as representaes coletivas da sociedade, os senti-mentos e instituies dominantes da comunidade humana, cotno re-flexos da conscincia comunal; depois, o sistema de nonnas jurdicasque, se inspirando nos antecedentes econmicos e histrico-sociais,transluzem essa conscincia social, corporificando-a ein uma carta po-ltica; e, acima de tudo, os princpios da justia, direito natural esegu-rana coletiva, como o ideal do regime constitucional perfeito".oEsse conceito, fonnoso eIn sua expresso verbal e essencial, no

    nos d ainda uma viso unitria da constituio, mas apenas apresentaestratos ou camadas de natureza constitucional superpostos, do que bem caracterstica a idia de "andares de uIn edifcio", smile de quese serve o nclito constitlIcionalista.29. A constituio h de ser considerada no seu aspecto norinati-

    vo, no como norma pura, inas como norma na sua conexo com arealidade social, que lhe d o contedo ftico e o sentido axiolgico.Trata-se de um cotnplexo, no de partes que se adicionam ou se so-mam, mas de elementos e membros que se enlaam num todo unit-rio. O sentido jurdico de constitlIio no se obter se a considerar-mos desgarrada da totalidade da vida individual, sem conexo com oconjunto da comunidade como interferncia das condutas entre sujei-tos e instituies sociais e polticas. Pois bem, certosmodos de agireizi sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas histo-ricamente e constituem-se em fundamento do existir da comunidade,

    formando os elementos constitucionais do grupo social que o consti-tuinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais.'

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    ,Mas a constituio no se confunde com o regime poltico, coino

    certa corrente doutrinria pretende. Ela sempre normativa. Com-preende os elementos jurdicos estruturais da sociedade estatal. Podeoconer desajuste entre as regras escritas de uin documento constitucio-nal e uina projeo ideal de constituio. Mas naquele instante regein

    as norizias escritas como fonna de interpretao dos eleinentos estru-turais - quando nada, iinpondo e assegurando detenninado valor queo poder entende coino Inais adeQuado, embora no o inais justo.A constituio seria, pois, algo Que tein, coino fornla, uizi com-

    plexo de norinas (escritas ou costuineiras); coino contedo, a condutainotivada pelas relaes sociais (econmicas, polticas, religiosasetc.);coino fim, a realizao dos valores Que apontam para o existir da co-munidade; e, finalinente, coino causa criadora e recriadora, o poder.No pode ser coinpreendida e interpretada se no se tiver em menteessa estrutura, considerada coino conexcto de sentido, como tudoaquilo que integra uin conjunto de valores.' Isso no impede que oestudioso d preferncia a dada perspectiva. Pode estud-la sob ngulopredoininanteinente formal, ou do lado do contedo, ou dos valores as-segurados, ou da interferncia do poder.30. O teina desta monografia considerar a constituio segundo

    a perspectiva fonnal, buscando i-esponder questo jurdicaia atua-o de suas nonnas, de sua aplicabilidade. Probleina, como se perce-be, Que envolve vigncia e eficcia jurdica das norinas constitucio-nais, seu valor jurdico, seu significado na ordein jurdica presente;que no despreza a influncia dos fatores reais do poder, mas d preva-lncia a seu sentido fonnal como regras de conduta ein sua interfern-cia intersubjetiva, diante dos valores polticos e jurdicos que elasapontain para o viver e conviver social.VI - Constituio em sentido Jormal

    31. A perspectiva acima apontada circunscreve nosso campo deindagao constituioformal, no num sentido puramente concei-tual e abstrato, mas concreto - a Constituio Federal da RepblicaFederativa do Brasil, cujas ndrmas sero o objeto de nosso estudo.Precatemo-nos, porm, de uma possvel objeo. Se acna inani-

    festamos uma concepo unitria de constituio, parece imprpriofalar-se, agora, nuina constituio em sentido formal, que envolve oconceito contraposto de constituio em sentido material. Ver-se-,entretanto, no correr destas consideraes, que no existe tal incoe-rncia.

    32. Prevenida, assim, a objeo, reconhecemos que a teoria cons-titucional distingue os conceitos formal e material de constituio.A constituio ent sentido material concebida, em doutrina,

    numa acepo ampla e noutra restrita. No sentido amplo, identifica-secom a organizao do Estado, com regime poltico; significa a situa-o total da unidade e ordenao poltica, ou a concreta situao deconjunto da unidade poltica e ordenao social de detenninado Esta-do, para usarmos expresses de Carl Schmitt,4 que, nesse caso,apre-senta uin dos conceitos absolutos da constituio. Nesse sentido real que se diz que todo Estado tem uma constituio, "snbolizada nastradies, usos e costuines polticos, que regulam a transmisso dopoder, a criao e funcionamento dos seus rgos". Assim que

    Heller fala em constituio no norinada, o que equivale a dizerconstituio material, ou constituio real e efetiva, na tenninologia

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    de Lassalle.

    Em suma, se todo Estado existe de certo modo, sob certa forma,esse seu modo de existir, qualquer que seja, a sua constittlio.sSe o Estado se manifesta como unidade de poder, este deve ser exercidopor alguin, segundo certas regras, mtodos e lnites, visando a deter-

    minados fins. Esse inodo de existir do Estado que se chama consti-tttio no sentido material, na acepo ampla.33. Mais restritamente, a constituio material designa as normas

    constitttcionais escritas que regulam a estrutura do Estado, a organi-zao de seus rgos e os direitos fundainentais do homem, coino beinilustra o art. 178 da Constituio do linprio: " s constitilcional oque diz respeito aos lnites e atribuies respectivas dos poderespolticos, e aos direitos polticos e individuais dos cidados; tudo oque no constitucional pode ser alterado, sem as fonnalidadesreferidas, pelas legislaturas ordinrias".34. A distino de Carl Schinitt entre constituio e leis constitu-

    cionais, aparentemente original, nada mais diz do que constituio emsentido material e constituio em sentido fonnal, na forina admitidapela doutrina ein geral. Quando ele concebe a constituio como deci-so poltica fundamental, na realidade est se referindo quilo que adoutrina chama, em sentido estrito, de constituio material. Quandose refere a leis constitucionais, est concebendo a noo de constitui-o em sentido formal. Para ele, a constituio em sentido positivo,nico verdadeiro, surge de um ato do poder constituinte, que contina totalidade da unidade poltica considerada ein sua particular formade existncia; nesse caso, a constituio s consubstancia a determi-nao consciente da concreta forma de conjunto pela qual s ronun-cia ou decide a unidade poltica.9 Por conseguinte, somente as pres-cries constitucionais qile consagram essas decises polticasfunda-

    mentais entrain, para ele, no conceito de constituio. Isso, como assi-nalainos, equivale ao conceito de constituio em sentido material res-trito, ej o dissera a nossa Constituio imperial no seu art. 178. Paraele, ainda, as deinais normas das constituies escritas so simplesleis constitucionais. "Em todos os pases com Constituies escritas[con-cltli) se tem hoje, em realidade, s uma pluralidade de leis constitucio-nais escritas".go Assim, a constituio em sentido formal no outracoisa seno uma srie de leis constitucionais escritas, porque contmnumerosas prescries particulares que s foram inscritas nela paraficarem ao abrigo das cambiantes maiorias parlamentares, e porque ospartidos que determinam o contedo da constituio aproveitam o en-sejo para emprestar o carter de leis constitucionais a seus postula-dos.slSchmitt, no entanto, condena esse conceito formal de constitui-

    o, considerado relativo, pluralidade de leis particulares, leis consti-tucionais.35. No obstante isso, o conceitoformal de constituio de suma

    importncia para a fixao da eficcia jurdica das normas constitucio-nais. O conceito fonnal, aqui considerado, ope-se ao conceito decons-tituio ein sentido material, lato sensu. Constituio fonnal ser, por-tanto, a peculiar fonna de existir do Estado, reduzida, sob fonnaescrita,a uin ou inais docuinentos solenemente estabelecidos pelo poder consti-

    tuinte e somente modificveis por processos e fonnalidades especiaisprevistos no texto constitucional. Todas as nonnas insertas nesse docu-

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    mento-ato do poder constituinte so constitucionais, pouco importan-do o seu contedo. Juridicamente, no h distino a ser feita entreprescries constitucionais escritas, para o fim de considerarem-seumas como de constituio e outras, no. verdade que muitas disposies que figurain nas constituies

    modernas no tin natureza estrita de regras constitucionais. Mas, pelo

    fato de constarein delas, recebem o conceito de nonnas constitucio-nais em razo do documento a que aderem.s'Por conseguinte, em nossas consideraes, nesta obra, todas as

    disposies da Constituio Federal, sein distino quanto ao conte-do especfico, sero concebidas coino constitucionais. Vale, pois, di-zer que o conceito, aqui adotado, de constituio formal correspondeao conceito de constituio escrita e rgida, constituio como normaobjetiva, legislada.

    VII - Constituio rigida e normas constitucionais

    36. O conceito de rigidez, consubstanciado na imutabilidade re-lativa da constituio, de fundainental importncia na teoria do di-reito constitucional contemporneo. Funciona coino pressuposto: n)do prprio conceito de constituio ein sentido formal; b) da distinoentre nonnas constitucionais e nonnas coinplementares e ordinrias;c) da supreinacia forinal das norinas constitucionais. Constitui, tain-bin, suporte da prpria eficcicinjuridica das nonnas constitucionais.Se estas pudessein ser inodificadas pela legislao ordinria, sua efi-ccia ficaria irremediavelinente coinproinetida.3 ? J verificamos que a constituio em sentidoformal um con-

    junto de nonnas e princpios contidos nuin documento solene estabe-lecido pelo poder constituinte e soinente inodificvel por processosespeciais previstos no seu prprio texto.s'

    Conceito, esse, coino desde logo se v, equivalente constitui-o legislada, escrita e rgida. Isso no exclui o reconhecnento denorinas constitucionais materiais, dentro como fora do documento su-preino.38. Repare-se, por outro lado, que no se est, aqui, confundindo

    constituio escrita coin constituio rgida, nein, ao inverso, consti-

    tuio no-escrita com constituio flexvel. Afirma-se, apenas, queuma constituio, no conceito formal, h que ser escritn e r-igida, e omximo que se pode extrair da que as constituies juridicamentergidas so necessariainente escritas. Mas nem toda constituio escri-ta rgida.Rigidez constitucional significa imutabilidade da constituio por

    processos ordinrios de elaborao legislativa. Sob esse aspecto, tra-ta-se de problema de natureza puramente formal, jurdica: s as cons-tituies escritas entrain nesse conceito.Mas h constituies escritas flexveis. Tem-se flexibilidade cons-

    titucional qliando nenhuma forina especial prevista para a sua revi-so, sein que se considere seu carter escrito ou costuineiro.s` Hexemplos de constituies escritas flexveis, como foram as Consti-tuies francesas de 1814 e 1830 e a imperial italiana (EstatutoAlber-tino) de 1848. A Constitzio do Iinprio brasileiro era partergida eparte flexvel, conforme estatua seli art. 178, j citado.

    39. Georges Burdeau sustenta que a constitio a lei suprema

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    do Estado, quer seja escrita, quer seja costuineira.s Do ponto devistasociolgico a assertiva procedente, e pode ser adinitida uina supre-macia material da constituio, coino o autor salienta, resultante dofato de que a ordein jlirdica repouse sobre ela, nela se origine e snela obtenha validade; do fato de ser a constituio que organiza as

    competncias resulta sua superioridade material; criando coinpetn-cias, ela necessariainente superior s autoridades naquelas investi-das, pelo qu essas autoridades no poderiain ir de encontro consti-tuio sein se despojarem, em conseqizncia, de seu ttulo jurdico.s6Essa doutrina de Blirdeau plenainente vlida no plano sociolgico.Mas, do ponto de vista formal, a supremacia da constituio est inti-mamente ligada ao conceito de sua rigidez jurdica.40. Herinan Finer chega inesmo a dizer que "a essncia de uma

    constituio sua rigidez em comparao com as leis ordinrias. Po-demos definir uma constituio como o processo de sua emenda, por-que emendar desconstituir ou reconstituir".g Considera a clusulade emendas to fundamental, "que quase diria que a prpria consti-tuio".ss Exagero, sem dvida, mas com muito de verdade, formal-mente falando, e avulta bem a importncia do assunto, especialmenteporque faz sobressair a eficcia superior das nonnas constitucionais.

    O prprio Burdeau, alis, reala que somente no caso de rigi-dez constitucional que se pode falar em supremacia formal da consti-tuio,s9 acrescentando que "a previso de uin modo especial de revi-so constitucional d nascimento distino de duas categorias de leis:as leis ordinrias e as leis constitucionais".9o41. , pois, do consenso geral da doutrina que as "regras consti-

    tucionais so dotadas de uma superioridade evidente com respeito sdeinais normas jurdicas da coletividade estatal".9i Suprioridade que corolrio da rigidez da constituio, conceituada como imutabilida-

    de relativa ou estabilidade das regras constitucionais. Disso deflui adistino entre normas constitucionais, normas compleinentares e nor-mas ordinrias, mas tal no nplica declarar que todas as normas cons-titucionais se acham inscritas num documento solene e rgido. Muitasexistem fora dele. Basta a observao, hoje admitida pela doutrinaunnime dos autores, da especial relevncia dos costumes e usos cons-titucionais, de eficcia bem inais acentuada do que a das norinas es-critas e, muitas vezes, a despeito, mesmo, das normas escritas.Mas a constituio rgida, por seu carter fundamentalinente sin-

    ttico, no pode descer a pormenores, a assuntos tidos como de menorrelevo, ou que devem constituir apenas desdobramentos de normas eprincpios constitucionais. No pode, nem deve, regular todos os as-suntos, todas as instities polticas; por isso, deixa muitos delessleis ordinrias, ou complementares. o que ocorre, por exerl.plo,comnormas fundamentais disciplinadoras dos direitos eleitorais e partidospolticos. Constituem contedo de leis ordinrias: o Cdigo Eleitorale o Estatuto dos Partidos. Delas a constituio apenas consigna osprincpios bsicos.Por outro lado, muitas matrias no-constitucionais por natureza,

    inas simplesmente matrias de direito civil, administrativo, processualetc., so includas numa constituio formal, como as que figuram nospargrafos do art. 226 da Constituio Federal sobre o casamento e amaioria das constantes dos arts. 37 a 42, sobre a Administrao e o

    funcionalismo pblico. Mas estas, porque inscritas na constituio,

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    adquirem a natureza de normas constitucionais, ein virtude do instru-mento a que aderem.Segundo Georges Burdeau, um erro considerar essas normas

    como estranhas ao contedo lgico da constituio, porque esta, emnossos dias, no se destina apenas a definir o estatuto orgnico do Es-tado, inas, tambm, a exprimir a idia de Direito coino diretiva da ati-

    vidade estatal.9' E Pontes de Miranda, salientando o carter social e arigidez das constituies contemporneas, onde as normas de carterprogramtico aparecein amide, refere o fracasso do liberalismo eco-nmico, que esvaziou de fins precisos o Estado, para concluir: a "di-reo nova refletiu-se na prpria tcnica constitucional, e as constitui-es contemporneas receberam a sugesto da necessidade, por todossentida, de se inserir nos textos constitucionais alguma coisa que dis-sessepara onde e como se vai",93 o que, ultima ratio, significa o mes-ino que aquela idia de Direito como diretiva da atividade estatal, afir-inada por Burdeau. Mas Pontes de Miranda no se esquece de acres-centar: "Longe esto, contudo, tais diplomas fundamentais dos Esta-dos de hoje da adoo de fins precisos, o que exigiria mais imperativi-dade na caracterizao dos fins do Estado do que a simples programa-ticidade de algumas regras, s vezes assaz obscuras e vagas, das suashesitantes constituies".9442. A questo fere, de cheio, o teina que pretendemos desenvolver

    nesta monografia. Apenas queremos deixar frisado, neste instante, Quepor normas constitucionais entendemos, ein sentido formal, todas as quese achain inscritas numa constituio rgida. Assim consideraremos to-das as disposies da Constituio Federal, que sero objetoparticularde nosso estudo.

    CAPTULO II

    :ATUREZA JURDIC4 DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

    I- Normas constitcionnis. II- Direito constitcicionnl econstitcino.III - Estrutc

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    iegra como gnero e rioimas como simples espcies daquelas.Nesse sentido, apalavra regra seria uma proposio lingstica destinada a dirigir,direta ou indi-retamente, a ao humana. Nessa perspectiva, as regras so de hs tipos:regrns nti-

    cns, que dizem respeito existncia de um campo prtico de atuao,assim as quedefinem a existncia do Estado, sua forma, seu poder; regras tcnicns oude pro-cedimento, que so as que assinalam meios necessrios para conseguir osfins pro-postos, como as regras de competncia e atribuies; regras denticasou normns,que so as que estabelecem pautas de comportamento, um preceito de dever-ser, es estas seriam normas, porque s elas exprimem dever-ser (cGregorio Robles,ms reglas del Derecho y las reglas de losjuegos, pp. 17 e 93 e ss.).

    Importa, pois, apenas o conceito de normas constitucionais for-mais, assim consideradas, como vimos, todas as que integram umaconstituio rgida, nada interessando seu contedo efetivo, porque selas constituem fundamento de validade do ordenamento jurdico. Mas preciso notar que as norms constitucionais, por natureza (normasconstitucionais materiais), qe aderem a tal documento tambm soconstitucionais, evidentemente, at porque se tornaram formais namedida em que nele foram inscritas, coincidindo, aqui, o material e oformal.2. Isso, que parece to claro, , todavia, motivo de larga contro-

    vrsia doutrinria, que, neste captulo, merecer nosso exame naquilo

    que interessa ao tema deste trabalho, comeando nossa discusso pe-las relaes entre direito constitucional e constituio.

    II - Direito constitucional e constituio

    3. Nos pases de constituio rgida, esta constitui a fonte primor-dial do direito constitucional, mas com este no se confunde,' poisexistem normas constitucionais fora da constituio, como se esclare-ceu acima.

    4. Certa doutrina sustenta que existem, na constituio, regras queno tm natureza de direito constitucional. H at quem negue nature-za jurdica a algilmas disposies das constituiescontemporneas,como seriam exemplos aquelas dos arts. 215 da Constituio Federale seus pargrafos, tais como: a) o Estado garantir a todos o plenoexercicio dos direitos culturais e o acesso sfontes da cultura nacio-nal, e apoiar e incentivar a valorizao e a dfuso das matzfesta-es culturais; b) o Estado proteger as manifestaes dasculturaspopulares, indigenas e afro-brasileiras, e das de outros gr-upos parti-cipantes do processo civilizatrio nacional. Diz=se que disposiescomo essas no so sequer nonnas jurdicas, mas s um programa denormas jurdicas futuras, e s tm valor poltico ou tico.3

    Essa posio assenta-se numa distino muito radical entre direi-

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    to constitucional material e direito constitucional formal e numa inter-pretao errnea da imperatividade das nonnas jurdicas.5. Para essa concepo, so normas de direito constitucional mate-

    rial aQuelas Que versain sobre a estrutura do Estado, funcionamentode seus rgos, direitos e deveres dos cidados; e so normas de direi-to constitucionalformal todas as prescries Que o poder constituinte

    inseriu numa constituio rgida, pouco nportando sua natureza ma-terial.De ceito inodo, j examinamos esse problema ao cuidarmos dos

    vrios conceitos de constituio. Embora, ein doutrina, se possa dis-tinguir normas constitucionais por natureza e em sentido substancial,no ser lcito recusar juridicidade constitucional quelas no subs-tancialmente desse carter, constantes do texto de uma constituiorgida. Uma das conseqncias da rigidez exatamente transformarein constitucionais todas as disposies Que integrain aconstituio.As nonnas materialmente constitucionais transmudain-se ein normasde direito constitucional forinal, iguais s demais, uma vez inscritasnuina constituio rgida. De onde nos parecer sem cabnento a dis-tino doutrinria segundo a qual h nas cartas polticas norinas noconstitucionais; e menos razo cabe Queles que recusatn juridicidadea certas prescries de tal documento.6. Essa Questo foi ainplamente debatida na doutrina italiana, ten-

    do Saverio de Simone sustentado a natureza de nonnas jurdicas detodas as que figurem na constituio, concluindo "que, se se pode fa-lar de uma variada destinao das nossas disposies - e nesse senti-do, mas .somente nesse sentido, de sua diversidade de posio nonna-tiva; porque algumas disposies se refiram, em particular aolegisla-dor; outras aos cidados; outras a cidados e a rgos do Estado; ou-tras ainda a todos aqueles que se encontrem residindo no Estado, te-

    nham ou no a Qualidade de cidados; e assim por diante -, no sepode falar, por isso, de diferente fora cogente das disposies;poisQue todas so, de inodo unvoco, cotzstitucionalmente cogentes paraseus destinatrios; e a possibilidade de uma aplicao direta ou mediata relao social no pode levar a pensar na existncia de disposiesque no sejam normativas, ou que sejam, mais ou inenos, diversamen-te normativas. Todas so normativas, mesmo aQuelas Que, a um sum-rio exame, inenos paream tais".4

    7. Ora, nossa Constituio ainda de natureza rgida, desde que,nos termos de seu art. 60, s pode ser modificada por processo legis-lativo diverso do previsto para a formao das outras leis (arts. 61-69). Significa isso que todas as disposies que a integram so for-malmente constitucionais, s pelo fato de estarein nela.

    Ill - Estrutura lgica e natureza das normas constitucionais

    8. No s deve ficar firmada a natureza jurdica de todas as nor-inas das constituies rgidas, como sua natureza de direitoconstitu-cional. Nossa Constituio, como a maioria das cartas pollticas con-temporneas, contm regras de diversos tipos, funo e natureza, porpostularem finalidades diferentes, mas coordenadas e inter-relaciona-

    das entre si, fonnando um sistema de normas que se condicionam re-ciprocamente. Algumas delas so plenamente eficazes e de aplicabili-

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    dade imediata; outras so de eficcia reduzida, dependem de legisla-o que lhes integre o sentido e atue sua incidncia; no so de apli-cabilidade nediata, inas so aplicveis at onde possam. "NenhumaConstituio perfeita, [diz bein Meuccio Ruini] e qualquer uina dlugar a speras contendas; mas, quando aprovada, torna-se a Consti-tuio e, se se pode pleitear-Ihe a reviso, necessrio, no entanto, res-

    peit-la e atu-la".' Toda constituio nasce para ser aplicada, mas s aplicvel na inedida em Que corresponde s aspiraes scio-cultu-rais da coinunidade a Que se destina. Nenhuina, porm, pode sair com-pleta da autoridade constituinte, de uina vez e toda arinada. Muitasde suas nonnas precisam ser regulamentadas por uina legislao inte-grativa ulterior Que lhes d execuo e aplicabilidade plena. Mas issono significa que haja em seu texto regras no-jurdicas, como a jmencionada corrente doutrinria sustenta, especialinente em relaos programticas, nas quais v snples indicao ao legislador futuro,Que pode segui-las ou no, ou pode at dispor de inodo divergente,negando-lhes, assim, a mnima eficcia jurdica.9. Nossa tese situa-se precisamente nesse terreno rduo da cin-

    cia do Direito ein geral e da cincia do direito constitucional em par-ticular. Queremos demonstrar a improcedncia daquela posio nega-tivista, no s reafirmando a eficcia jurdica, maior ou menor, de to-das as disposies constitucionais, e especialmente destacando o im-portante papel que as chamadas nonnas programticas exercem na or-dem jurdica e no regime poltico do pas.10. Azzariti, distinguindo as normas constitucionais em diretivas

    e preceptlvns, afmnou que aquelas se limitam a indicar uma direoao legislador futuro, as quais no so verdadeiramente normas jurdi-cas e poderiam ser desobedecidas pelo legislador, sem violar a consti-tuio. Adiciona, em seguida, que nonnas desse gnero existem eIntodas as constituies, parecendo-lhe infundada a opinio de que oca-

    rter rgido da constituio exclua semelhantes normas.s Expressa oponto de vista de Pierandrei, que observa que os princpios constitucio-nais de carter diretivo, mesmo numa ordenao rgida, "permanecemdiretivos e as leis deles divergentes no se tornam, somente por isso.invlidas"; assim, "dizer que uma ordenao rgida no significa di-zer que suas disposies so, da primeira ltitna, absolutamentein-derrogveis". 9Essa doutrina guarda certa semelhana com a tese de Duguit, que

    estabeleceu a distino entre regras normativas e regras constnztivasou tcnicas. As normativas, regras jurdicas propriamente ditas, so asque impem ao homem determinada ao ou absteno; contm umpreceito jurdico, sendo, por excelncia, itnperativas, constituindo oestatuto social, condio Inesma da Inanuteno da vida social.io Asregras construtivas ou tcnicas so estabelecidas para assegurar, namedida do possvel, a aplicao e o respeito das regras nonnativas;organizam tnedidas; fixam competncias; constituem-se regra orgni-ca; so imperativas apenas na medida em que Iigam uma regrjurdi-ca; no seriam propriamente jurdicas.il Poucas seriam, para ele, asnormas jurdicas. Quase todas as normas da ordem jurdica so de na-tureza tcnica. Da sua doutrina de que o Direito um conjunto deregras tcnicas de carter meramente hipottico e indicativo; no obri-ga a coisa alguma, Inas se lizpita a indicar certas conseqncias, todavez que se verificarem determinadas hipteses.' Assim, tambm, asnormas constitucionais direiivas no seriam normas jurdicas, mas

    simples regras indicativas da legislao futura; no sendo normas im-perativas - no entendimento da doutrina que estamos expondo -, os

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    legisladores no estariam obrigados a seguir-Ihes a orientao, poisno impem ao nem otnisso, e poderiam desrespeit-las sem con-seqncia.11. A doutrina de Duguit foi seriamente contestada,3 e hoje no

    tem Inais prestgio.I4 Do mesmo modo, aqlIela distino das normasem diretivas e preceptivas vem sofrendo o embate dos constituciona-

    listas.l' Seria mesmo de estranhar houvesse nonnas no jurdicas-meramente indicativas - numa ordenao constitucional. Se umaconstituio um documento jurdico, uIn sistema normativo, e fun-damentalmente jurdico, no forma sentido admitir que nesse conjun-to normativo existam disposies no-jurdicas, meramente diretivase indicativas, como se sustenta para as normas programticas.i12. O problema est ligado controvertida questo da estrutura

    lgica das normas jurdicas. Para a concepo tradicional, a "regra ju-rdica traduz um imperativo, a obrigatoriedade de um comportamento,uma exigncia de ao ou de omisso".1 freqente ler-se que Kel-sen concebe as nonnas jurdicas como juzos hipotticos, e no comocomandos ou imperativos. Is Pode ter sido assim o Kelsen dos primei-ros escritos; mas nas reedies de seus trabalhos fundamentais suapo-sio outra, e hoje ele diz, sem rebuos, que as normas jurdicas noso juzos, isto , enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento;so, antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos, e, como tais,comandos, imperativos.I9 Assim mesmo, acrescenta que no so ape-nas comandos, pois tambm so permisses e atribuies depoder ecompetncia,2o o que nos parece irrelevante, porque as normas per-missivas e atributivas de poder ou competncia tambm contm co-Inandos e imperativos no sentido de um dever-ser que impe (dadoscertos pressupostos) uma conduta prevista. Na doutrina kelseniana asproposies jurdicas que so juzos hipotticos;'I no soimperati-

    vos, mas juzos, isto , afirmaes sobre um objeto dado ao conheci-mento." O que ele refuta a tese de Austin, para quem as regras jur-dicas so mandados ou ordens, no sentido psicolgico de um ato devontade, que tm como objeto a conduta de outra pessoa, e a expres-so do mesmo ato por meio de palavras, gestos ou outros signos.'3Carlos Cossio, concebendo a norma jurdica como juzo disjuntivo,'4tece vigorosa crtica ao imperativismo." Sente-se, contudo, que eleest interpretando a imperatividade como ordem ou mandado. Ora, aconcepo da norma como imperativo no encerra o conceito de or-dem nem de mandado, mas de uma regra que impe determinado com-portamento, sob a conseqncia de, no sendo espontaneamente ob-servado, incidir eventualmente uma sano.13. Todas as disposies constitucionais tm a estrutura lgica e

    o sentido das normas jurdicas. So imperativos que enlaam dois oumais sujeitos de uma relao, atribuindo direitos e obrigaesrecpro-cas; quando nada, atribuindo situaes de vantagem e de vnculo oudesvantagem, como demonsraremos com mais vagar. errneo pretender que certas disposies constitucionais, s

    porque no tm uma eficcia positiva direta e imediata, no sejam nor-mas jurdicas, e nonnas jurdicas constitucionais, desde que a prpriaconstituio no tenha estabelecido distines expressas, cotno faziaa de 1824, em seu art.178.

    IV - Condies de aplicabilidade das normas constitucionais

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    14. Firmada, assim, a tese de que todas as disposies da consti-tuio rgida tm estrutura e natureza jurdico-constitucionais, cabe,agora, indagar das condies de sua aplicabilidade. As nonnas jurdi-cas, inclusive as constitucionais, so criadas para reger relaesso-ciais, condutas humanas; enfim, para serem aplicadas. Aplicabilidade

    exprime uma possibilidade de aplicao. Esta consiste na atuao con-creta da norma, "no enquadrar um caso concreto em a norma jurdicaadequada. Submete s prescries da lei uma relao da vida real;pro-cura e' indica o dispositivo adaptvel a um fato determinado. Por ou=tras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de ampararjuridicamente uin interesse humano".'6 "Aplicao de uma norma,contudo, [adverte Kelsen] ainda o juzo atravs do qual exprimiinosque um indivduo se conduz, ou se no conduz, tal como uma normalho prescreve ou positivamente consente; ou que ele age, ou no age,de acordo com o poder ou competncia que uma nortna lhe atribui".'I5. Aplica-se a lei, interpretando, diz Cossio.zs Mas uma norina

    s aplicvel plenamente se estiver aparelhada para incidir, o que sus-cita vrias questes, alm da interpretao, como: Estar em vigor?Ser vlida ou legtima? Ser apta para produzir os efeitos pretendi-dos, ou precisar de outras normas que lhe desenvolvam o sentido?Em outras palavras: tem, ou no tem, eficcia?

    16. Sociologicamente, pode-se dizer que as normas constitilcio-nais, como outras, so eficazes e aplicveis na inedida em que so efe-tivamente observadas e cumpridas. Juridicamente, no entanto, a apli-cabilidade das normas constitucionais (tambm de outras) depende es-pecialmente de saber se esto vigentes, se so legtnas, se tm efic-cia. A ocoirncia desses dados constitui condio geral para a aplica-bilidade das normas constitucionais. Isso, ein sntese, o que vereinos

    nos pargrafos que seguem.

    V - Vigncia

    17. A vigtlcia, aqui, tomada no seu sentido tcnico-formal denorma que foi regularmente promulgada e publicada, coin a condiode entrar em vigor em data deterininada.18. Tigneia (do verbo viger, do latim vigere) , no sentido indi-

    cado, a qualidade da norizia que a faz existir juridicamente e a tornade observncia obrigatria, isto , que a faz exigvel, sob certas condi-es. Vigncia, pois, o modo especfico da existncia da normajur-dica.'9 Vigncia no se confunde com eficcia, como veremos maisembaixo; mas para que a eficcia se verifique necessrio que a nor-ina coinece a vigorar. A vigncia condio de efetivao da eficcia,ainda que a plenitude desta, tratando-se de norma constitucional, noraro, dependa de outras normas integrativas, como justamente se pre-tende inostrar nesta monografia. A constituio - e assim as leis emgeral - contin uma clusula de vigncia; clusula que determina omomento em que ela coinear a vigorar e, com isso, toroar-se apta aproduzir os efeitos prprios de seu contedo.19. A Constituio do Brasil de 1967, por exemplo, foi protnul-

    gada em 24 dejaneiro de 1967 mas determinou, no seu art. 189, queentraria em vigor no dia 15 de maro do mesmo ano. A Constituio

    de 1969, promulgada como Einenda Constitucional 1, quela, em 17de outubro de 1969, entrara em vigor no dia 30 do inesmo ins e ano.

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    Essa Emenda tinha dois artigos. O art.1 Q deu nova redao totalida-de da Constituio de 1967; na verdade, elaborou nova Constituio ea outorgou ao povo brasileiro autoritariamente. O art. 2 continha aclusula de vigncia que, pondo-a a vigorar ("A presente Emenda en-trar ein vigor no dia 30 de outubro de 1969 '), na realidade, deterini-nou a entrada ein vigor da nova Carta Poltica que nela se continha, a

    qual, alis, sofrera depois mais 26 Emendas. A atual Constituio de1988 no trouxe clusula de vigncia e de promulgao. Mas vriosde seus dispositivos, especialmente das Disposies Transitrias, es-tabelecem prazos de realizao de situaes a partir de sua promulga-o, de sorte que coin esta que ela entrou em vigor, salvo casos ex-pressamente mencionados nas Disposies Transitrias. Vale dizer,enfn, que todas as suas disposies entraram no mundo jurdico compretenso de reger os fatos nelas previstos, e passaram a constituir fun-damento de validade ou de invalidade, desde sua entrada em vigor comsua promulgao no dia 5 de outubro de I988.

    VI - Vacatio constitntionis "

    20. A teoria jurdica conhece a vacatio legis, que o perodo Quevai da publicao do ato promulgatrio at a efetiva entrada da lei emvigor, "e por duas razes se justifica: porque faz a lei mais emelhorconhecida e porque proporciona, s autoridades incumbidas de faz-la executar e s pessoas por ela atingidas, a oportunidade de se prepa-rarem para a sua aplicao".3o Durante a vacatio legis continuam emvigor as nonnas anteriores reguladoras da mesma matria e interesses,sendo, portanto, vlidos os atos praticados na sua conforinidade.3

    21. A Constituio do Brasil de 1967 foi promulgada e publicada

    no dia 24 de janeiro de 1967, para entrar em vigor no dia 15 de marode 1967. A Constituio Federal de 1969 foi promulgada no dia 17 deoutubro de I969 e entrou em vigor no dia 30 do mesmo ms. Houve,pois, em ambos os casos, um perodo de vacatio. No caso, vacatiolegis corzstitutionalis, ou simplesmente vacatio constitutionis.Na primeira oportunidade estranhou-se o procedimento, que Que-

    brou uma tradio do constitucionalismo brasileiro, qual seja: a de aConstituio entrar em vigor na data de sua publicao. No se temverificado vacatio constitutionis no constitucionalismo universal. Noso de grande valia os casos da Itlia e de Mnaco. O inciso XVIIIdas Disposies Finais e Provisrias da Constituio italianaestatuiu:"A presente Constituio ser promulgada pelo Chefe provisrio doEstado nos cinco dias seguintes sua aprovao pela AssembliaConstituinte, e entrar em vigor no dia IQ dejaneiro de l948". Nodia 27 de dezembro de 1947, o Chefe de Estado, Enrico De Nicola, apromulgou, de sorte que houve uma vacatio constitutionis de Quatrodias, vez que estava determinado que entraria em vigor no dia 1Q dejaneiro de 1948.A Constituio monegasca, numa disposio transitria, estabe-

    leceu: "A presente Constituio entrar em vigor logo aps as elei-es do Conselho Nacional e do Conselho Comunal. Essas eleiesrealizar-se-o, no mais tardar, no ms de abril de 1911". Como a Cons-tituio foi dada em Paris a 5 de janeiro de 1911, verificou-se um pe-rodo de vacatio, que no pudemos determinar, visto que no conse-

    guimos apurar Quando se deram as eleies mencionadas no te'to.No , pois, comum a vacatio constitutionis, mas sua natureza

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    mento da validade da constituio os fatores reais do poder; busca,pois, um fundamento de validade nos fatos, nas relaes sociais.O nonnativismo puro de Kelsen sustenta que a constituio en-

    contra o fundamento de sua validade na normafundamental, pressu-posta e hipottica.3 E Carl Schmitt diz que a constituio vale emvir-

    tude da vontade poltica existeneial daquele que a d, pois toda esp-cie de normao jurdica - tambm a normao constitucional - pres-supe tal vontade como existente.3626. Essas posies prescindem ora do poder, ora do Direito, na

    justificativa da legitimidade das normas constitucionais. Heller, criti-cando especialmente Kelsen e Schmitt, demonstra que toda teoria queprescinda da alternativa Direito ou poder, norma ou vontade, objetivi-dade ou subjetividade, desconhece a construo dialtica da realidadeestatal e , por isso, falsa j de sada, e acrescenta que o carter decriador de poder, que tem o Direito, no nos permite conceber a cons-tituio como "deciso" de um poder sem norma (posio de Lassallee Schmitt); mas, por outra parte, devido ao carter criador de Direitoque o poder tem, h que recusar a concepo de que a constituiorecebe sua validade jurdica de uma norma com validade meramentelgica e desprovida de poder (posio de Kelsen).' "Eficcia e vali-dade, ser e dever ser da Constituio, [conclui] ho de manter-se logi-camente separados, sem dvida, mas aparecem relacionados, na mes-ma realidade constitucional na qual um aparece sempre junt'eom ooutro".3sSe a crtica de Heller procedente, sua tese no nos parece mere-

    cer acolhida, especialmente porque subordina a existncia do poderconstituinte a uma idia de normao.'9 Por outro lado, a criao deuma constituio obra do poder. atravs do poder constituinte quese manifesta, primariamente, aquela "insero do poder no processoInesmo da normatividade jurdica", de que, genericamente, nos fala

    Miguel Reale.4oA tese de Kelsen inaceitvel exatamente porque repele a inter-

    ferncia do poder na fundamentao da legitimidade das normas cons-titucionais. verdade que ele. no nega a competncia de uma autori-dade constituinte na formao constitucional, mas esta autoridade j, no seu sistema, uma autoridade normada, ainda que hipoteticamen-te, pela norma fundamental pressuposta. Curioso notar que Heller,contestando a validade da teoria kelseniana, acaba por, em ltima ins-tncia, sustentar a mesma coisa, quando diz que a questo da legitimi-dade de uma constituio no pode, naturalmente, ser respondida re-ferindo-se a seu nascimento segundo quaisquer preceitos juridicospositivos, vlidos com antecedncia. Mas, ao contrrio (prossegueele), uma constituio necessita, para ser constituio (isto , algomaisque uma relao ftica e instvel de dominao, para valer como or-denao conforme com o Direito), de umajustificao segundo prin-cipios ticos de Direito.4l Isso no muito diferente de uma Grnd-norm, mesmo porque, como j vimos, Heller no admite a concepode constituio como "deciso" sem norma, no que se encontra impl-cita uma idia de norma, "no quaisquer preceitos jurdicos positivos,vlidos com antecedncia", mas como "princpios ticos de Direito".27. O erro est em conceber o poder como mera situao ftica,

    confundido com a fora. Miguel Reale j destacou o engano em queincide o decisionismo (de que Carl Schmitt representante conspcuono plano constitucional), porque toma a deciso como um ato isolado

    do conjunto das circunstncias sociais e dos motivos axiolgicos quecercam quem deve decidir.4' Mas tambm condena aquela tendncia

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    abstratista, que visa a criar um "reino ideal do Direito", sem os peri-gos e riscos que seriam representados pelo poder, confundido facil-mente com a fora e o arbtrio.4'28. Ora, o poder interfere continuamente na formulao das nor-

    mas jurdicas. Dele parte a deciso definidora de uma das vias norma-tivas possveis conaturais da contextura social. Mas as normas consti-

    tucionais, por serem informadoras e condicionadoras da ordem jurdi-ca total, surgem da deciso de um poder especial dimanado da prpriasoberania do povo, e o poder constituinte, enquanto as demais nor-mas inferiores, condicionadas, surgem da deciso dos poderes consti-tuidos e derivados. Estas ltimas tm sua validade fundada nos dita-mes das regras constitucionais, e estas so legtimas na medida em quea deciso promane de um titular legtimo do poder constituinte.Quando se trata de estabelecer uma constituio nova, a deciso

    provm de um poder constituinte originrio, no limitado juridica-mente; se, no entanto, se cuida de modificar uma constituio existen-te, a deciso, para tanto, pode ser atribuda prpria legislatura ordi-nria, revestida, ento, do poder de reformar ou emend-la. Nos Esta-dos Democrticos o poder constituinte pertence ao povo. Alis, sem-pre pertence ao povo; e, se uma constituio vem de outra fonte, queocorreu usurpao. S o povo legtimo para determinar, por si oupor seus representantes, o estabelecimento de uma constituio, oupara reform-la nos limites por ela Inesma estatudos.Falando-se em deciso, no se est concebendo um novo decisio-

    nismo. Deciso, aqui, interferncia dopoder, como fenmeno scio-cultural, na determinao de uma via normativa possvel, das que jconstituem um modo de ser social. As normas assim criadas no va-lem s porque promanaram de uma deciso, mas porque correspon-dem a um querer social predominante no momento.29. Paulo Sarasate, vista das crticas e impugnaes legitimi-

    dade da Constituio do Brasil de 1967, ergueu a teoria dopoder cons-

    tituinte delegado, isto , uIn poder constituinte cujo titular o delega aoutro rgo, com o fim de votar uma constituio. Segundo firmara,aquela Constituio era legtima, porque proviera do exerccio do po-der conslituinte delegado ao Congresso Nacional pelo titular do po-der revolucionrio.44Essa criao artificial era inteiramente dispensvel, mesmo por-

    que contm, em si, uma contradio implcita. Realmente, se o Con-gresso Nacional estava em funcionamento, ele era e o representantedo povo, nico titular do poder constituinte. Aquele Congresso foraeleito pelo povo, e s isso lhe dava legitimidade. No certo que oAto Institucional 1 o tenha mantido. O que se pode dizer que no odestruiu. No o fez porque no pde, no teve fora para tanto. Noque as Foras Armadas no o pudessem fazer, mas porque o Golpe,talvez por receio de criar situaes insustentveis, no tenha podidodestru-lo. Nessas situaes, as foras psicolgicas tambm contam, emuito, e parece que elas prevaleceram em favor do Congresso Nacio-nal, como instituio e representao popular, o qual se manteve comos mesmos fundamentos que,o garantiam antes do Movimento, embo-ra mutilado pelos expurgos.Ora, no poderia haver,ao mesmo tempo, dois representantes da

    soberania popular: o Congresso e o grupo dito revolucionrio. Se oCongresso existia e de fato perdurou, s ele encarnava a vontade po-pular e s ele, nos limites da Constituio de 1946, poderia legitima-mente reform-la. Outra constituio somente poderia legitimamenteser estabelecida por uma assemblia constituinte originria, para tanto

    convocada.A verdade, no entanto, que a questo da ilegitimidade da cons-

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    tituio estabelecida se torna matria acadmica, valendo, a propsi-to, a assertiva de Barile: "A nova ordem, que nasce do exerccio ileg-timo da funo de reviso, no poderia ser considerada ilegtima, se-no pela ordem que cessou, e que, por ter cessado, incapaz de for-mular tal valorao"4 - embora se deva dizer tambm que h algunsprincpios universalmente aceitos, decorrentes dos sistemas normati-

    vos existentes e predominantes, que orientam a questo de legitimida-de das constituies independendo da ordem que cessou. Com baseneles possvel concluir pela ilegitimidade de uma constituio aindaque ela esteja sendo obedecida, cumprida e aplicada. Pois para issopode ser que a fora arbitrria que a sustente. Aquela Constituiode 1967 no resistiu ao embate das foras do arbtrio, que acabarampondo-a abaixo, primeiro rompendo-a pelo malfadado Ato Institucio-nal 5, de 13.12.68, que, sem sombra de dvida, constituiu o instru-mento mais brutal que a ordem jurdica do Pas conheceu, desde suaindependncia; depois, pela Emenda Constitucional 1/69, outorgadapela Junta Militar que empolgara ditatorialmente o poder, cnferindo cidadania uma Carta ainda mais ilegtima, causa e base dos conflitospolticos que dominaram o Pas por tanto tempo, que, por isso mes-mo, clamou por uma Assemblia Constituinte que reconstitucionali-zasse o Estado, legitimando o exerccio do poder com a adoo denova idia de Direito, que se traduziu, finalmente, na Constituio Fe-deral de 1988.

    VIII - Eficccia

    30. Uma norma s aplicvel na medida em que eficaz. Porconseguinte, eficcia e aplicabilidade das normas constitucionais cons-tituem fenmenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenmeno, en-carados por prismas diferentes: aquela como potencialidade; esta

    como realizabilidade, praticidade.31. Se a norma no dispe de todos os requisitos para sua aplica-

    o aos casos concretos, falta-lhe eficcia, no dispe deaplicabilida-de. Esta se revela, assim, como possibilidade de aplicao. Para quehaja essa possibilidade, a norma h que ser capaz de produzir efeitosjurdicos.No insistiremos no tema aqui, porque a eficcia das normas

    constitucionais ser o objeto de cogitao no ttulo seguinte.

    TTULO II

    EFICCIA JURDICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

    Cnrrui.o INORMAS CONSTITUCIONAIS QUANTO EFICCIA

    I - O problema da eficcia das normas constitucionais. II - Nor-mas constitucionais mandatrias e normas constitucionais dire-trias. I11- Normas constitucionais "selfexecuting" e "not selfexecuting". IP- Concepo moderna sobre a eficcia e aplicabili-dade das normas constitucionais: o problema terminolgio. V-A triplice caracterstica das normas constitucionais quanto eji-

    ccia e aplicabilidade.

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    I - O problema da eficcia das normas constitucionais

    1. O problema da eficcia e aplicabilidade das normas constitucio-nais comea com as incertezas terminolgicas, o que dificulta aindamais sua soluo e at mesmo sua formulao cientfica.

    2. A questo, alis, no particular da teoria do direito constitu-cional, mas da cincia jurdica em geral. Carlos Cossio bem acentuaas discrepncias doutrinrias quando diz que, para aludir existnciado Direito, os juristas recorrem a diversas palavras, como positivida-de, vigricia, eficcia, observncia, facticidade e efetividade do Di-reito.1 A teoria egolgica do D-eito, do mesino Cossio, resolve a difi-culdade fazendo desaparecer o problema, no que tange existnciado Direito; fala unicamente da validez e da vigncia do Direito, "re-conhecendo que positividade, vigncia, eficcia, observncia, factici-dade e efetividade do Direito so, todos, termos existenciais que alu-dem mesma coisa e que se podem usar como vocbulos sinnimos".2Eliminar o problema por essa forma no nos parece, em absoluto, re-solv-lo, pois, se verdade que a positividade no se pode desligar davigncia e da eficcia,3 tais termos tm conotaes prprias e no seconfundem numa sinonmia jurdica.3. O sociologismo jurdico reduz o problema da vigncia ao da

    eficcia. Vigente "o Direito que obtm, em realidade, aplicao efi-caz, o que se imiscui na conduta dos homens ein sociedade e no oque simplesmente se contin na letra da lei, sem ter conseguido forareal suficiente para impor-se aos indivduos e grupos sociais".4 Sobessa perspectiva que se costuina dizer que muitas nonnas constitucio-nais, especialinente as chainadas programticas, no adQuirem vign-cia enquanto uma lei ordinria ou complementar no as atuar efetiva-mente.4. O norinativisino distingue, com preciso, a vigncia da efic-

    cia. A lio de Kelsen bastante clara a esse respeito. A vigncia danorma, para ele, pertence ordem do dever-ser, e no ordein do ser.Vigncia significa a existncia especfica da norma; ejiccia o fatode que a norma efetivamente aplicada e seguida; a circunstncia deque uma conduta huinana conforme norma se verifica na ordein dosfatos.' "Dizer que uina norina vale ( vigente) traduz algo diferentedo que se diz quando se afirina Que ela efetivainente aplicada e res-peitada, se bem que entre vigncia e eficcia possa existir uina certaconexo."6 Kelsen d ntida prevalncia vigncia, desde Que enten-de que esta pertence ordem do dever-ser, isto , da norma como ob-jeto do Direito, enquanto a eficcia pertence ordein do ser, dos fa-tos; mas acha que um mnimo de eficcia condio de vigncia danorma. Uma norina jurdica, no entanto, entra em vigor antes de tor-nar-se eficaz, isto , antes de ser seguida e aplicada.s5 A positividade do Direito no se confunde com sua vigncia

    nem coin sua eficcia. Direit positivo se ope a direito natural;po-sitividade significa, como nta Cossio, a realidade emprica da ex-perincia, "existncia cotno presena do Direito".9 inais do Que vi-gncia e eficcia, mais, portanto, Que a aludida "existncia como pre-sena do Direito", "porque [como nota Miguel Reale] podemos con-ceber trs modalidades de direito positivo: o dotado atualinente de vi-gncia; o Que j a perdeu; e o que est ein vias de obt-la". o6. Em resumo:

    I - Positividade do Direito exprime a caracterstica de um Direitoque rege, in concreto, a conduta humana, mediante normas bilaterais

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    e atributivas, socialmente postas; pode ser histrico, como atual; ope-se a direito natural.II - Vigncia do Direito, ou Direito vigente, caracteriza o Direito

    que rege, agui e agorn, "hic et nunc "; as relaes sociais; refere-se ao

    Direito presente; designa a existncia especfica de uina norma, opondo-se ao direito histr-ico.III - Eficcia do Direito: toma-se a expresso ein dois sentidos.

    A eficcia social designa uma efetiva conduta acorde coin a previstapela norma;i' refere-se ao fato de que a norma realinente obedecidae aplicada;' nesse sentido, a eficcia da nonna diz respeito, coinodizKelsen, ao "fato real de que ela efetivamente aplicada e seguida, dacircunstncia de uma conduta huinana confonne norma se verificarna ordem dos fatos".4 o que tecnicamente se chama efetividade danonna.l Eficcia a capacidade de atingir objetivos previamente fi-xados coino metas. Tratando-se de nonnas jurdicas, a eficcia consis-te na capacidade de atingir os objetivos nela traduzidos, que vm aser, em ltna anlise, realizar os ditames jurdicos objetivados pelolegislador. Por isso que se diz que a eficciajuridica da nonna de-signa a qualidade de produzir; em maior- ou menor gr-au, efeitosjuri-dicos, ao regular desde logo, as situaes, relaes e compor-tamen-tos de que cogita;6 nesse sentido, a eficcia diz respeito aplicabili-dade, exigibilidade ou executoriedade da nonna, coino possibilidadede sua aplicao jurdica. O alcance dos objetivos da norina constituia efetividade. Esta , portanto, a medida da extenso em que o objeti-

    vo alcanado, relacionando-se ao produto final. Por isso que, tra-tando-se de nonnas jurdicas, se fala em eficcia social em relao efetividade, porque o produto final objetivado pela norma se consubs-tancia no controle socizl que ela pretende, enquanto a eficcia jurdi-ca apenas a possibilidade de que isso venha a acontecer.Os dois sentidos da palavra eficcia, acima apontados, so, pois,

    diversos. Uina norina pode ter eficcia jurdica sem ser socialinenteeficaz, isto , pode gerar certos efeitos jurdicos, coino, por exeinplo,o de revogar nonnas anteriores, e no ser efetivainente cuinprida noplano social. Mas percebe-se que, apesar disso, os sentidos so cone-xos, coino j anotamos antes.

    II - Normas constitucionais mandatrias e normas constitucionaisdiretrias

    7. No plano da eficcia jurdica - que o que nos interessa nestetrabalho -, a cincia do Direito enfrenta o probleina da classificaodasnonnas, "para explicar a inaneira como o imperativo se manifesta".iEssa questo, embora seja de teoria geral do Direito, e no puramentede direito constitucional, deve, no entanto, ser examinada aqui, paraverificar-se at que ponto as nonnas constitucionais se ajustam a ela.8. O carter imperativo das normas jurdicas revela-se no deter-

    minar uma conduta positiva ou uma omisso, um agir ou um no-agir;

    da distinguirem-se as normas jurdicas ein preceptivas - as que im-pem uma conduta positiva ,.e em proibitivas - as que impem uma

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    omisso, uma conduta omissjva, um no-atuar, no-fazer. As normasconstitucionais so, em grand poro, desses dois tipos, bastandoci-tar os exemplos seguintes, bein caractersticos: a) preceptivas:1) "To-dos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza" (art.5Q, caput); 2) "O Poder Legislativo exercido pelo Congresso Nacio-

    nal" (art. 44); 3) "A competncia da Unio para einitir moeda serexercida exclusivamente pelo banco central" (art.164); b) proibitivas:1) "ningum ser submetido a tortura nem a tratamento desumano oudegradante" (art. SQ, III); 2) "nenhuma pena passar da pessoa do con-denado" (art. 5, XLU); 3) "no haver juzo ou tribunal de exceo"(art. SQ, XXXVII); 4) "a casa asilo inviolvel do indivduo" (art. 5,XI), " inviolvel o sigilo da correspondncia (art. 5, XII); 5)"Nopodem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o perodo doservio militar obrigatrio, os conscritos" (art.14, 2); 6) "vedadaa utilizao pelos partidos polticos de organizao paramilitar" (art.17, 4); 7) "Ao militar so proibidas a sindicalizao e a greve" (art.142, 3, IV). s vezes, num snples dispositivo, encontramos umanorma preceptiva e outra negativa: " livre a manifestao do pensa-mento, [norma preceptiva) sendo vedado o anonimato [norma proibi-tiva)" (art. 5Q, IV).Essa distino de pouca importncia, como nota Del Vecchio,

    por se reduzir, muitas vezes, a uma significao ilosfica, visto queum mesmo comando pode traduzir-se sob forma preceptiva ou proibi-tiva,is o que palpvel em direito constitucional, especialmente nocaptulo dos direitos e garantias fundamentais, onde a afirmativa dedireitos subjetivos em favor dos indivduosimporta a negativa da aodo Poder Pblico. Exemplo tpico de uma nonna proibitiva que temreal significao preceptiva a do inciso II do art. SQ da Constituio,

    ao estatuir que ningum ser obrigado afazer ou deixar defazer al-guma coisa seno em virtude de lei - valendo dizer, em termos pre-ceptivos: s a lei pode obrigar algum a fazer ou deixar de fazer algu-ma coisa. As duas formas, como se v, fornecem a base constitucionaldas normas juridicas preceptivas (obrigar algum a fazer - determi-nar uma conduta positiva) e das normasjuridicas proibitivas (obrigaralgum a deixar de fazer - impor uma omisso). Assim, tambm: "inviolvel o sigilo da correspondncia" significa, em termos precepti-vos: " garantido o sigilo da correspondncia"; ou "ningum ser con-siderado culpado at o trnsito em julgado de sentena condenatria"equivale, em termos preceptivos: "todos so considerados inocentesat o trnsito em julgado de sentena condenatria".9. Para Del Vecchio essas duas espcies de normas so primnrias,

    porque so suficientes por si mesmas, isto , exprimem diretamenteuma regra obrigatria do agir; outras nonnas so chamadas secund-rias, visto que no so bastantes por si mesmas, mas dependem deoutras, a que devemos reportar-nos para compreender aquelas exata-mente.19Essa classificao pode induzir a pensar que a ela pertencem as

    chamadas normas constitucionais ciuto-aplicveis e as no auto-npli-cveis, aquelas bastantes em si e estas no-bastantes em si.'o As pri-meiras seriam as pi'imr-ias, por suficientes por si mesmas, e as noato-aplicveis seriam secundrias, por dependerem de outras normasque lhes completem a eficcia. Seria, porm, errneo pensar assim,pois por normas secundrias Del Vecchio entende as regras declarati-

    vas, ou explicativas;'I mas achamos que as interpretativas e as per-missivas tambm poderiam ser consideradas da mesma natureza.

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    As declarativas ou explicativas contm definies de vocbulosou de conceitos;" as interpretativas tambm definem e conceituam osentido de outras normas. Podem admitir-se normas constitucionaisexplicativas e interpretativas, como exemplo famoso, entre ns, a leiconstitucional (Lei 105, de 12.5.1840) interpretativa do Atd Adicio-nal Constituio de 25 de maro de 1824; assim parece-nos lcito

    classificartambm a Lei Constitucional 8, de 12.10.42, como demons-tram seus "considerandos".

    Nonnas permissivns (ou facultativas) so as que atribuem umapermisso, sem determinar a obrigatoriedade de uma conduta positiva

    ou omissiva. A existncia dessas normas induziu parte da doutrina aafirmar que nem todo Direito imperativo. Del Vecchio demonstrou ocontrrio, mas partiu de premissa inaceitvel para o caso - qual seja, ade que " juridicamente penzltido tudo aquilo que juridicamente no proibido";' da dizer que as nonnas pennissivas no tm, por simes-mas, razo de ser, visto que a permisso, em si, no precisa ser dadapelo Direito.' Equvoco manifesto, porque as normas permissivasconstituem, em princpio, excees a regras proibitivas existentes naordem jurdica. Melhor, pois, diria se afirmasse que seu carter impe-rativo decorre do fato de, por via de regra, abrirem exceo a normasproibitivas, o que ocorre, com freqncia, no direito constitucional,como so os casos do art. 18, 3,'' do pargrafo nico do art.22,'6do art. 25, 3Q,' do art. 60,'s do art. 154, I,'9 do art. 182, 4,'o e

    23. Ob. cit., p. 288; mas a foi cauteloso ao indicar que tal ocorre emgeral.

    24. Ob. eit., p. 288.25. "Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou

    desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ouTerritrios Federais, mediante aprovao da populao diretamenteinteressada, atravs de plebiscito, e do Congresso Nacional por leicomplementar" - exceo ao princpio da indissolubilidade dos Estadosconfigurado no art. 1 e tambm ao princpio da autonomiados Estados. Sem essa regra permissiva no haveria possibilidade dasmodi'ica s indicadas.26. "Lei complementar poder autorizar os Estados a legislar sobre

    questesespecficas das matrias relacionadas neste artigo" - exceo competncia pri-vativa da Unio, ao princpio da indelegabilidade de atribuies e rigidez darepartio de competncias constitucionais.27. Permite aos Estados instituir regies metropolitanas, aglomeraes urba-nas e microrregies constitudas por agrupamentos de Municpioslimtrofes, paraintegrar a organizao, o planejamento e a execuo de funes pblicasde inte-resse comum - como exceo ao princpio da autonomia municipal quer paraseorganizarem em consrcio, quer para a realizao de servios locais de

    competn-cia dos Municpios autnomos.

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    direito de propriedade, que limita a ao do Poder Pblico, eespecialmente parasujeitar o proprietrio s sanes constantes dos incisos dodispositivo.

    Il. As normas constitucionais penencem essencialmente ao iuscogens. Isso ponto pacfico. Controvertida , no entanto, a questorelativa existncia, ou no, de nonnas constitucionais dispositivas.As relaes de direito constitucional so relaes de poderes en-

    tre si e entre estes e sujeitos privados (indivduos, grupos etc.), esta-belecendo direitos, obrigaes e deveres de natureza pblica, median-te normas que, por princpio, no deixam margem atuao da vonta-de dos agentes constitucionais. Nonnas que so, por isso, irrenunci-veis ou inderrogveis, embora, como veremos, haja possibilidade deuso do poder discricionrio, com base eIn nonnas de aplicao facul-tativa, tais as que admitem a celebrao de convnios para certos fins(art. 155, 2, VI e XII, "g", por exemplo) e as que outorgam certascompetncias sem obrigar o seu exerccio.3 Mas essas nonnas noso facultativas no sentido das pennisses do direito privado, pois,aofacultarem um modo de agir, excluem qualquer outro (assim, os Esta-dos no so obrigados a decretar os impostos de slIa competncia, masesto impedidos de criar outros) ou vedam a obteno dos fins nelasprevistos de outro modo que no na fonna, limites e condies queautorizam (assim, s facultado a Estados e Distrito Federal deliberarsobre iseno, incentivos e beneficios fiscais na fonna estabelecidaem lei complementar, conforme os incisos VI e XII, "g"). No fundo,portanto, essas nonnas facultativas afguram-se to vinculantes comoas demais. E um ato ou lei que estatua de outro jeito ser fulminadode inconstitucionalidade.

    12. No h no direito constitucional nonnas supletivas no sentidoem que essa expresso usada no direito privado. certo que a juris-pnzdncia none-americana pretendeu distinguir as nonnas constitucio-nais em duas categorias: cz) as mandatoryprovisions (prescries man-datrias), que seriam clusulas constitucionais essenciais ou ma-teriais cujo cumprimento obrigatrio e inescusvel; b) as directoryprovisions (prescries diretrias), de carter regulamentar, podendoo legislador comum dispor de outro modo, sem que isso importasseinconstitucionalidade de seu ato.Cooley criticou severamente essa doutrina dos tribunais. "As

    Constituies [diz ele] normalmente no contm normas de procedi-Inento, salvo se as consideram necessrias prtica de algum ato,quando, ento, devem ser tidas como limitativas do poder a cujo exer-ccio se aplicam. No podemos esper