Antônio Carlos Wolkmer - Pluralismo Jurídico

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BIBLIOTECA ALFA OMEGA DE CULTURA UNIVERSAL Série 2"-Volume 52 Coleção Atualidade Direção Fernando Mangarielo editor

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Pluralismo Jurídico

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  • BIBLIOTECA ALFA OMEGA DE CULTURA UNIVERSAL Srie 2" -Volume 52

    Coleo Atualidade

    Direo Fernando Mangarielo

    editor

  • Antonio Carlos Wolkmer

    PLURALISMO JURDICO Fundamentos de urna nova cultura no Direito

    y edio Revista e atualizada

    A EDITORA ALFA OMEGA

    So Paulo 2001

  • EDITORA ALFA OMEGA LTDA. 1994, 1998,2001

    Planejamento grfico e produo Alexandre Rehm

    Preparao do original Lia Rosa Leal

    Composio Estdio Alfa Omega (11) 3062.6400

    Editorao Eletrnica Sandro das Neves Maciel

    Reviso

    Alexandre Rehm

    Capa Marco Vogt

    Direitos reservados EDITORA ALFA OMEGA LTDA. 0 5 4 1 3 - 0 0 0 - Rua Lisboa, 489 - Tel.: (11) 3062.6400 Fax.: (11) 3083.0746 - So Paulo - SP www.alfaomega.com.br [email protected]

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • Tbua geral da matria

    Sobre o Autor. IX Agrade c imentos XI Nota do Autor 3" Edio XIII Introduo XV

    Questes preliminares XVI Questes metodolgicas XXI

    Captulo I ORIGEM, EVOLUO E DECLNIO DA CULTURA JURDICA ESTATAL....25

    1.1 Omonismo como projeto da modernidade buigus-c^italista. 25 1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e Estado

    moderno 27 1.1.2 Direito Estatal: formao, ciclos histricos e

    caracterizao 46 1.2 Crise de hegemonia e disfiines do paradigmajurdico....66

    Captulo II O ESPAO DA CRISE CONTEMPORNEA - A JUSTIA NO CAPITALISMO PERIFRICO BRASILEIRO 79

    Introduo 79 2.1 Trajetria da cultura jurdica no Brasil 84 2.2 Necessidades, direitos e a questo dos conflitos 90 2.3 O Poder Judicirio e sua ineficcia instrumental 96

  • VJ Tbua geral da matria

    2.4 Conflitos coletivos no Brasil: prticas sociais como marco histrico-poltico 104

    Captulo III As FONTES DE PRODUO NA NOVA CULTURA JURDICA 119

    Introduo 119 3.1 Os movimentos sociais como novos sujeitos

    coletivos 121 3.2 Representao, Estado e identidade dos atores

    coletivos 139 3.3 Os movimentos sociais como fonte de produo

    jurdica 151 3.4 Necessidades como fator de validade de "novos

    direitos" 158

    Captulo IV PLURALISMO JURDICO: PROJEO DE UM MARCO DE ALTERIDADE 169

    Introduo 169 4.1 Natureza e especificidade: o pluralismo em

    questo 171 4.2 Pluralismo jurdico: reviso histrica do problema 183

    4.2.1 Pluralismo jurdico na tradio europia 183 4.2.2 Pluralismo jurdico na Amrca Latina 203

    4.3 Pluralismo jurdico: possibilidades e limites 216 4.4 Fundamentos do pluralismo jurdico como novo

    paradigma... 232 4.4.1 Os novos sujeitos coletivos de

    jurdicidade 235 4.4.2 Sistema das necessidades humanas

    fiindamentais 241 4.4.3 Reordenao poltica do espao pblico:

    democracia, descentralizao e participao 248 4.4.4 tica concreta da alteridade 261 4.4.5 Racionalidade enquanto necessidade e

    emancipao 273

  • Tbua gera! da matria VII

    Captulo V PLURALISMO JURDICO NAS PRTICAS DE JUSTIA PARTICIPATIVA 285

    Introduo 285 5.1 Pluralidade alternativa no interior do Direito oficial ....286

    5.1.1 Convenes coletivas do trabalho 292 5.1.2 Aes propostas por sujeitos coletivos 294 5.1.3 Conciliao, mediao, arbitragem e juizados

    especiais 297 5.1.4 "Prtica" e "uso" alternativos do Direito 302

    5.2 Pluralidade alternativa no espao do Direito no-oficial 306 5.2.1 Resoluo dos conflitos por via

    no-institucionalizada 309 5.2.2 Fontes de produo legislativa

    no-institucionalizadas 314 5.2.2.1 Convenes coletivas de novo tipo 315 5.2.2.2 Acordos setoriais de interesse 317

    5.3 Cultura jurdica informal: formas perifricas de legitimao 321

    5.4 Pluralismo, movimentos sociais e os horizontes da justia participativa 335

    CONCLUSO 349

    Bibliografia 363 ndice onomstico 395 ndice analtico 401

  • Sobre o autor

    o autor professor titular de "Historia do Direito " e "Histo-ria das Instituies Jurdicas " no curso de Direito da Universi-dade Federal de Santa Catarina, onde leciona tambm no Pro-grama de Ps-Graduao em Direito ("Teoria Poltica ", "Fun-damentos de Direito Poltico ", "Estados Contemporneos ", "Pluralismo Jurdico ").

    Adquiriu, em seus estudos de ps-graduao, o ttulo de Espe-cialista em Metodologia do Ensino Superior (1979), Mestre em Cincia Poltica pela UFRGS (1983) e de Doutor em Filosofia do Direito e da Poltica pela UFSC (1992).

    Foi pesquisador e lecionou na faculdade de Direito da UNISINOS-RS, de 1978 a 1991, onde exerceu, ainda de 1984 a 1991, as funes de Coordenador do Curso de Ps-Graduao em Direito Poltico. Igualmente foi professor visitante de "Hermenutica Jurdica " na Escola Superior do Ministrio P-blico do RS, no perodo 1984-1987.

    E pesquisador do CNPq, bem como scio efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (Rio de Janeiro), do Instituto dos Advo-gados do RGS, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitu-cional e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia.

    Professor visitante dos cursos: Mestrado e Doutorado em His-tria Ibero-Americana (UNISINOS-RS); Ps-Graduao em Di-reito do Centro de Cincias Jurdicas da UNISINOS-RS; Mestrado em Criminologia, Direito e Processo Penal da Universidade

  • X Sobre o autor

    Cndido Mendes (Rio de Janeiro); Mestrado em Direito da UNISUL-SC; Mestrado em Direito do Convnio UFSC/IESA (San-to ngelo-RS) e UFSC/Universidade de Vila Velha (Espirito San-to); Ps-Graduao em Direito Pblico da UNIJU-RS; Ps-Gra-duao em Direito Processual do IBEJ (Curitiba-PR); Professor Convidado, em 1995, do Mestrado em "Derecho y Democracia en Iberoamrica " na Universidad Internacional de Andaluca (La Rbida) e do atual Programa de Doutorado em Derechos Huma-nos y Desarrollo da Universidad PABLO DE OLAVIDE de Sevi-lha (Espanha).

    Colaborador de revistas especializadas do pas e do exterior, com mais de meia centena de artigos publicados. Autor dos li-vros: "Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil" (So Paulo: Acadmica, 1989); "Elementospara urna Crtica do Esta-do " (Porto Alegre: Srgio A. Fabris, 1990); "O Terceiro Mundo e a Nova Ordem Internacional" (2 ed.. So Paulo: tica, 1994); "Introduo ao Pensamento Jurdico Crtico " (3" ed., So Pau-lo: Saraiva, 2001); "Fundamentos de Histria do Direito ". Org. e co-autor (Belo Horizonte: Del Rey, 1996); "Direito e Justia na Amrica Indgena: Da Conquista Colonizao ". Org. e co-autor (Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998); "Histria do Direito no Brasil" (2" ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1999); "Ideologia, Estado e Direito. " (3" ed.. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000).

  • Agradecimentos

    Originariamente, e de forma bem mais extensa, esta obra foi apresentada ao Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Santa Catarina, em abril de 1992, como tese de Doutoramento em Filosofia do Direito e da Politica. O intento de public-la levou-nos a inmeras modificaes e supresses, que deram maior clareza ao texto, sem, contudo, destituir seu estilo compactamente acadmico. Na elaborao inicial recebemos o apoio e a contribuio de mltiplas pessoas, para as quais no poderamos deixar de assinalar o profundo reconhecimento:

    ao professor Cesar Luiz Pasold (UFSC), exemplo de compe-tncia e seriedade, que, como orientador, contribuiu com inme-ras sugestes e transmitiu sua experincia nas questes metodolgicas;

    professora Luiza Helena M. Moll (UFRGS), que, pela sua amizade, dedicao e apoio decisivo, foi inestimvel estimuladora, com seus esclarecimentos valiosos e suas observaes sempre oportunas e atuais, quer aos rumos do projeto inicial, quer pr-pria redao final da obra;

    aos professores Ruy Ruben Ruschel (UNISINOS-RS), Jos Ribas Vieira (PUC/RJ), Osvaldo Ferreira de Melo (UFSC) e Olga M. de Aguiar (UFSC), membros da banca examinadora, que con-triburam com comentrios e crticas construtivas;

    ao professor Herbert E. Wetzel, pr-reitor de Ps-Graduao e Pesquisa da UNISINOS-RS, pelo apoio financeiro, bem como direo do Centro de Cincias Jurdicas, na pessoa de seus

  • XII Agradecimentos

    professores Antonio P. Cachapuz de Medeiros e Bruno J. Hammes, pelo apoio acadmico;

    a uma dezena de outros pesquisadores e colegas-professores, com os quais mantivemos contato, entre 1990 e 1991, recebendo idias e indicaes bibliogrficas sobre alguns dos tpicos de-senvolvidos no trabalho, devendo ser lembrados, dentre tantos: Celso F. Campilongo, Eduardo K. Carrion, Joaquim de A. Fal-co, Jacques Tvora Alfonsin, Paulo J. Krischke, Selvino Assmann, Claudio Souto, Jos M. Gomez, Jos Geraldo de Souza Jr., Antonio Sidekun e Edmundo de L. Arruda Jr.

    ao professor Lauro Dick (UNISINOS-RS), pela ateno, aux-lio e orientao nas correes; e

    enfim, a Ftima Wolkmer, companheira de todas as horas, pe-las reiteradas leituras, oportunas sugestes, imensurvel com-preenso e que, apesar do tempo e da ateno que lhe foram subtrados, premiou-nos, quando estvamos na redao final da obra, com o pequeno Stefan Gabriele.

  • Nota do autor 3" edio

    No obstante a presente edio manter a estrutura original das anteriores, deve-se assinalar que a obra passou por atento exame no estilo da forma e na apreciao de certos conceitos poltico-jurdicos. Aps decorrida quase uma dcada do texto inicial, o livro encontrava-se defasado no que tange a propos-tas legislativas, principalmente no Captulo V, em que j se plei-teava, no incio dos anos 90, a efetivao do juzo arbitrai e dos juizados de pequenas causas. Com o advento da Lei n" 9.099/ 1995 (regulamenta os Juizados Especiais Cveis e Criminais) e da Lei n"9.307/1996 (rege a arbitragem no pas), tornou-se obri-gatrio revisar a redao, fazendo os devidos ajustes relativos crescente valorizao dos mecanismos extra-oficiais de reso-luo dos conflitos.

    A reviso geral implementada alcanou, assim, no apenas a ampliao e a recomendao de bibliografia especfica, mas tam-bm empreendeu o desdobramento do item 4.2 (Pluralismo Juri' dico: Reviso Histrica do Problema) em "Pluralismo jurdico na tradio europia " e "Pluralismo jurdico na Amrica Lati-na ". Neste largo perodo da primeira para a terceira edio (no houve mudanas na 2" edio), a experincia jurdica interna (no Brasil) tem comprovado, a cada ano, a importncia dos novos sujeitos sociais (movimentos sociais dos sem-terra, por exemplo), enquanto a prtica externa do Direito vem sentindo o forte im-pacto de fenmenos como o neoliberalismo e a globalizao.

  • XIV Nota do autor 3 edio

    Ao vir a lume esta 3" edio, importa expressar o reconheci-mento do autor ao meio acadmico (alunos e mestres) pela acei-tao da obra, bem como as correes lingsticas realizadas por Lia Rosa Leal e as sugestes sobre temas tratados no Captu-lo V, dadas pelos professores Paulo de Tarso Brando (UFSC) e Clerilei Bier (UDESC).

    Florianpolis (SC), 20 de Junho de 2000.

  • Introduo

    A temtica do pluralismo atravessa diferentes momentos da histria ocidental - mundos medieval, moderno e contem-porneo - inserindo-se numa rica e complexa multiplicidade de interpretaes, possibilitando enfoques marcados pela exis-tncia de mais de uma realidade, de amplas formas de ao e da diversidade de campos sociais com particularidade pr-pria. Se inmeras doutrinas podem ser identificadas no pluralismo de teor filosfico, socilogo ou poltico, o pluralismo jurdico no deixa por menos, pois compreende muitas tendncias com origens diferenciadas e caracteriza-es singulares, envolvendo o conjunto de fenmenos autno-mos e elementos heterogneos que no se reduzem entre si. No fcil consignar uma certa uniformidade de princpios essenciais, em razo da diversidade de modelos e de autores, aglutinando em sua defesa desde matizes conservadores, libe-rais, moderados e radicais at espiritualistas, sindicalistas, corporativistas, institucionalistas, socialistas etc.

    Esta situao de complexidade no impossibilita admitir que o principal ncleo para o qual converge o pluralismo jurdico a negao de que o Estado seja o centro nico do poder poltico e a fonte exclusiva de toda produo do Direito. Na verdade, trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmtica que plei-teia a supremacia de fundamentos tico-poltico-sociolgicos so-bre critrios tecno-formais positivistas.

  • Questes Preliminares

    Primeiramente, importa mencionar a formulao do proble-ma que foi levantado e examinado. Parte-se da percepo de cri-se e de esgotamento do modelo jurdico liberal-individualista, que no oferece respostas satisfatrias (eficazes) aos reclamos poltico-sociais de segurana e certeza no atual estgio de evolu-o das sociedades complexas e confiitivas de massa. Impe-se, como condio bsica, a demarcao de um novo fundamento de validade para o mundo jurdico, um paradigma que incida, inexoravelmente, no reconhecimento de novas formas de aes participativas, razo por que a problematizao do tema central do livro assim se coloca: como se estrutura, se instrumentaliza, se operacionaliza e se efetiva a contnua recriao do processo das prticas jurdicas informais/diferenciadas num amplo espa-o pblico de democratizao, descentralizao eparticipao? At que ponto, e em que medida, uma nova formulao prtico-

    Todavia, ainda que se descortine um amplo horizonte, cujo espao abriga uma gama de controvrsias tericas que sero muitas vezes excludas ou minimizadas, h que optar, obrigatori-amente, por uma variante interpretativa de pluralismo, fixando um recorte especifico, capaz de imprimir, dentro de certos limi-tes, um mnimo de objetividade, comprovao e justificao.

    Assim, a retomada do pluralismo como referencial de estudo e fundamentao implica, de um lado, superar as modalidades de cultura scio-poltica identificadas ao convencionalismo dos pluralismos "orgnico-corporativista" e "neoliberal-capitalis-ta ", e de outro, em avanar na determinao de um novo pluralismo, gerado pelas contradies de um modelo de produ-o da riqueza e pelo processo dialtico de necessidades ineren-tes aos agentes histricos recentes. Essas consideraes permi-tem designar a expresso "pluralismo jurdico" como a multiplicidade de manifestaes ou prticas normativas num mesmo espao scio-poltico, interagidas por confiitos ou con-sensos, podendo ser ou no oficiais e tendo sua razo de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.

  • terica do Direito, em sociedades instveis e conflituosas do Capitalismo perifrico, perpassa, presentemente, pela legitimi-dade especfica de um pluralismo jurdico calcado nas priva-es cotidianas de novos sujeitos coletivos? Certamente, o de-senvolvimento do contedo contemplar a especificidade desta resposta.

    Em termos de identificao no tempo e no espao, a temtica problematizada, ainda que possa ser captada difusamente na maioria dos sistemas jurdicos estatais do Ocidente, levar em considerao a particularidade da estrutura scio-poltica do Capitalismo perifrico latino-americano e os indcios da crise da cultura legal tradicional no Brasil (na legislao positiva e no Judicirio), retratada nas ltimas dcadas do sculo XX.

    Igualmente oportuno, assinalar a relevncia e as razes da escolha do pluralismo jurdico como o principal marco terico desta obra. A importncia da discusso sobre o pluralismo jur-dico enquanto expresso de um "novo " Direito plenamente justificada, porquanto o modelo de cientificidade que sustenta o aparato de regulamentao estatal liberal-positivista e a cultura normativista lgico-formal j no desempenha a sua funo pri-mordial, qual seja a de recuperar institucionalmente os conflitos do sistema, dando-lhes respostas que restaurem a estabilidade da ordem estabelecida. Na medida em que o aparato de modelos institucionais desta ordem apresenta-se insuficiente para dar conta de suas funes, tornando as relaes sociais previsveis e regu-lares, a srie de sintomas disfuncionais defiagra a crise desse aparato, da emergindo formas alternativas que todavia carecem de um conhecimento adequado. As atuais exigncias tico-polti-cas colocam a obrigatoriedade da busca de novos padres normativos, que possam melhor solucionar as demandas especi-ficas advindas da produo e concentrao do capital globalizado, das profundas contradies sociais, das permanentes crises institucionais e das ineficazes modalidades de controle e de apli-cao tradicional da justia. Da a relevncia do tema abordado, tendo em vista a prioridade, hoje, de se questionar, repensar e reconhecer as mais diversas e crescentes manifestaes normativas no-estatais/informais, reflexos de um fenmeno mai-or, que o pluralismo jurdico.

  • Ora, enquanto o pluralismo clssico da modernidade nasceu da contenda com o poder absoluto soberano e da negao radical a toda e qualquerforma de arbtrio ou monoplio estatal, torna-se significativo repensar, atualmente, tais proposies, em face das emergentes condies de vida associativa e das novas necessida-des humanas criadas pelo presente estgio alcanado pelo Capita-lismo e seus influxos sobre as estruturas dependentes.

    Evidentemente, o pluralismo desejado para fins do sculo XX e para o inicio do novo milnio no poder ser o pluralismo neo-liberal das elites econmicas e do livre mercado defendido na pri-meira metade do sculo XX, o qual foi rearticulado, entre os anos 80 e 90, como nova estratgia global de dominao dos pases centrais avanados. Logo, a discusso revela-se imperativa, prin-cipalmente, quando se pensa em novo pluralismo poltico e jurdi-co, adaptado s contingncias histricas perifricas como a lati-no-americana, dominada por uma tradio centralizadora, auto-ritria e dependente. Idealizar e propor uma alternativa pluralista, especificamente para a sociedade latino-americana e brasileira, obriga ao enfrentamento de uma cultura poltica fortemente im-pregnada do Estado. Nesse contexto, qualquer paradigma do pol-tico e do jurdico deve contemplar a "questo Estado ", suas trans-formaes e desdobramentos mais recentes e principalmente o pro-cesso de organizao da sociedade civil, num movimento que irrompe da base para o topo. Desta feita, a proposio de uma cultura jurdica pluralista para nossa historicidade deve ser retrabalhada, tendo presente a adequao entre determinados ar-qutipos ou padres arraigados forma de ser do latino-america-no e novos valores assimilados e cultivados como democracia, descentralizao e participao. Tais concepes, sustentadas por uma pluralidade de corpos societrios conscientes e autnomos, vm coexistir e conviver com o Estado transformado, controlado e ordenado pela sociedade democrtica. Certamente que tal dinmi-ca possibilita projetar um paradigma de pluralismo que retrate as especificidades da reproduo jurdica no Brasil - Estado do Ca-pitalismo Perifrico -, marcado por estruturas de igualdades pre-crias e composto por espaos sociais conflituosos, quer por lutas de matiz classista e interclassista, quer por contradies de teor scio-econmico e poltico-cultural.

  • Naturalmente, essas asseres levam imediata constatao dos objetivos principais da proposta "prtico-terica " que se apresenta como novo paradigma. O objetivo geral consiste em delinear, mediante uma apreciao indutivo-crtica, a existncia de um pluralismo jurdico fundado no espao de prticas sociais participativas, capaz de reconhecer e legitimar novas formas normativas extra-estatais/informais (institucionalizadas ou no), produzidas por novos atores titulares de carncias e necessida-des desejadas. Tais reivindicaes so originadas das contradi-es postas entre o que prometido no Direito objetivo do Estado e o que possvel pelas condies objetivas. H um desencontro radical entre a racionalidade formal oficial e a racionalidade material, esta que fruto ou resultado da correlao de foras de uma sociedade desigual, dividida com profundas diferenas de expectativas, dando margem a que, o que segurana para pou-cos, seja violncia para muitos etc. Os objetivos especficos aglutinam-se no sentido de reafirmar que a insuficincia do referencial lgico-formal da moderna cultura liberal-burguesa propicia condies para um certo tipo de pluralismo poltico e jurdico - de base comunitrio-participativa - que absorver as privaes e exigncias de estruturas societrias do Capitalismo perifrico na virada do sculo XXpara o novo milnio.

    Pretende-se assim demonstrar, tanto no nvel terico quanto prtico, que logicamente possvel, para alm dos meios de re-gulamentao institudos e at agora dominantes (normas costu-meiras, judiciais e legais), a existncia concorrente e paralela de expresses normativas no-estatais, no derivadas dos canais oficiais e formalizadas, mas emergentes das interaes e das flutuaes de um processo de auto-regulao em constante recri-ao.

    Tal proposta imperiosa acentua que a soluo/resposta para a crise e a ineficcia da legalidade monista em contexto de de-pendncia passa, obrigatoriamente, pela ruptura com esse apa-rato hegemnico, incidindo na constituio gradual e alternativa de um novo paradigma societrio de produo normativa. A con-dio bsica para a realizao concreta desse intento implica a retomada e construo de um pluralismo jurdico que se revele aberto, descentralizado e democrtico, bem como contemple a

  • transformao de carncias e necessidades na positivao de novos direitos. A opo por este novo pluralismo se distancia dos rumos das antigas formulaes plurais, pois no est mais vincu-lado representao individualista do mundo social, mas sn-tese de todos os interesses cotidianos individuais e coletivos. Tra-ta-se de uma proposta contrria e distinta do pluralismo produzi-do pela democracia liberal-burguesa, tradicionalmente elitista, conservadora e selvagem, que sempre privilegiou os intentos de setores exclusivistas e de minorias com poder de deciso em de-trimento de prioridades da vida comunitria.

    Outrossim, a configurao do pluralismo presente nos proce-dimentos instituintes de um Direito Comunitrio no prioriza mais as regras tcnico-formais e as ordenaes genrico-abstratas, mas inspira-se na praxis da vida cotidiana e na auto-regulao com-prometida com a dignidade do outro injustiada. Uma cultura jurdica - pluralista, descentralizada e solidara - constri-se, no a partir da razo metafsica ou do sujeito enquanto essncia em si, mas de um "sujeito histrico-em-relao " e de uma outra forma de ver o mundo e os valores: parte-se de um espao marca-do no s pela exigncia de direitos e pela justa satisfao de interesses desejados, como, sobretudo, pela superao dos con-flitos de classes e grupos, pela erradicao das formas de opres-so, espoliao, sofrmento e injustia.

    Contrariamente ao insuficiente paradigma estatal predomi-nante, representado pelo dogmatismo jurdico convencional, o Direito Comunitrio, por estar inserido nas prticas sociais plu-rais, das quais produto, transcende aos rgos estatais, emer-gindo de vrios e diversos centros de produo normativa e ad-quirindo um carter mltiplo e heterogneo. As revelaes de pluralismo jurdico comunitro-participativo que no se sujei-tam ao formalismo a-histrco das fontes convencionais esto assentadas no espao conflituoso e de confronto social, causadas por privaes, excluses e necessidades de foras societrias agregadoras de reivindicaes, mas, dado o processo, eficazes e legtimas.

    Na verdade, o novo pluralismo jurdico, como referencial cul-tural de ordenao compartilhada, constri-se por meio de con-dies "materiais " e "formais " que englobam a legitimidade de

  • Questes Metodolgicas

    Os pressupostos e as categorias que permitem a transposio gradual do velho paradigma jurdico (monismo estatal centralizador) para o novo modelo jurdico de fundamentao "prtico-terica " (pluralismo comunitrio participativo), proje-tando uma cultura alternativa do Direito, so atravessados por um vis metodolgico de cunho indutivo-crtico.

    No detalhamento tcnico, cabe esclarecer que se utilizou o mtodo de abordagem indutivo, pois parte-se de experincias cotidianas, crises paradigmticas, conflitos sociais (no campo e na periferia urbana), e de necessidades especficas (realidade gerada pelo modelo econmico em pases do Capitalismo perif-rico, como o Brasil), para se chegar generalizao terico-prtica dos fundamentos "materiais" e "formais" do novo paradigma.

    Por outro lado, a amplitude das questes aventadas e a din-mica de sua interao determinam o direcionamento por um pro-cedimento que prioriza o enfoque crtico-interdisciplinar

    O significado da crtica no mbito do Direito nada mais do que a tentativa de se buscar outra direo ou outro referencial epistemolgico comprometido com as mudanas e com a cons-truo de um novo poder de auto-regulao societria. Depreende-se, ento, que a perspectiva da crtica torna-se extremamente re-levante, pois, no contexto hegemnico de um discurso e de um procedimento dogmtico, formal e excludente, redimensiona o fe-nmeno jurdico no s colocando-o a servio dos reais interes-ses das formas da vida cotidiana e das prticas sociais plurais, como, sobretudo, constituindo-o instrumento normativo de implementao das transformaes paradigmticas, erigidas nas rupturas.

    novos sujeitos coletivos, a implementao de um sistema justo de satisfao das necessidades, a democratizao e descentralizao de um espao pblico participativo, o desenvolvimento pedag-gico para uma tica concreta da alteridade e a consolidao de processos conducentes a uma racionalidade emancipatria.

  • Quanto preocupao por um enfoque interdisciplinar de-corre da percepo de que: primeiramente, o pluralismo uma categoria interdisciplinar, pois expressa dimenses histricas, sociolgicas, polticas, filosficas, econmicas etc. Em segundo lugar, porque a interdisciplinaridade impede a delimitao es-tanque e rgida dos diferentes saberes na anlise do referencial terico nuclear. Ou seja, com a interao e a articulao interdisciplinar, evita-se o monoplio ou a apropriao unilate-ral do tema estudado por qualquer uma das reas do conheci-mento. Exemplificao disto a constatao de que nem todo pluralismo se reduz a uma manifestao legal (o pluralismo no propriedade exclusiva do Direito), pois subsistem outras prti-cas pluralistas no mbito da poltica, da economia, do social, da religio etc. Idntica situao aplica-se ao campo da Teoria Po-ltica: nem todo pluralismo deve ser confundido com o liberal-democrtico.

    Por conseguinte, a preocupao tcnica transposta na obra est relacionada com uma investigao indutivo-crtica de car-ter interdisciplinar, pois resulta de sua forma de articulao en-quanto processo de efetivao prtico-terico nos horizontes interativos do Direito (pluralidade de fontes informais da produ-o social normativa), da Poltica (aumento do poder societrio e seu controle sobre o Estado, tendncia progressiva para a descentralizao e participao de base), da Sociologia (espa-os de lutas e de prticas confiitivas interagidas por sujeitos so-ciais com o novo fluxo do poder) e da Filosofia (interpretao dos valores ticos da alteridade com as aes de racionalidade emancipatria).

    Por fim, assinala-se que a estruturao do livro compreende-r a sistematizao de um roteiro que seguir cinco captulos.

    O primeiro contempla, especificamente, a formao, evolu-o e traos caractersticos do modelo jurdico na modernidade burgus-capitalista. Trata-se do esforo em descrever e delimitar os principais postulados epistemolgicos fundadores da "enge-nharia " institucionalizada do monismo jurdico estatal clssico. Avanando, ps-se em evidncia a ideologia tecno-formal do "centralismo legal" que encontra sua dinmica histrica entrelaada numa viso racional do mundo, permanentemente

  • traduzida por processos de "estatalidade", "unicidade", "positivao " e "sistematizao ". No segundo captulo, buscou-se situar a crise da legalidade liberal-burguesa e os limites do Direito Estatal no espao territorial conflitivo de um pas do Ca-pitalismo perifrico latino-americano (Brasil). Tal comprovao constatada em dois nveis de atuao: na legislao positiva (Cdigos Civil e de Processo Civil) e na resoluo dos conflitos (Poder Judicirio). Privilegindose, nesta conjuntura, o direito terra e moradia, arrolaram-se algumas experincias empricas que demonstram conflitos coletivos, reivindicaes e privaes bsicas.

    O captulo terceiro procurou explicitar que, diante da insufi-cincia das fontes clssicas do monismo jurdico (assentado na dinmica dos trs poderes da democracia representativa), os no-vos movimentos sociais tornam-se autnticos titulares de um paradigma pluralista que nasce das lutas em tomo de carncias e necessidades por direitos. Deste modo, os movimentos sociais, enquanto sujeitos coletivos de jurdicidade, so capazes de criar no s uma legitimidade diferenciada ao "institudo ", como, so-bretudo, outros procedimentos de produo jurdica informais e extra-estatais. Ao apontar os novos movimentos sociais como agentes privilegiados da nova cultura poltico-jurdica, atribuiu-se-lhes um conjunto de caractersticas relacionadas a "conte-do ", "valores ", "formas de ao " e "atores sociais ".

    Configurou-se, no captulo seguinte, a construo do espao pblico e do saber cultural que ordenam o novo referencial gera-dor de um Direito Comunitrio. Desta feita, tentou-se contrapor cultura legal-estatal, um projeto de pluralismo poltico e jurdi-co comunitro-participativo, composto por elementos de efetividade material (sujeitos coletivos, satisfao das neces-sidades, participao e reordenao descentralizadora do espa-o pblico) e efetividade formal (tica da alteridade e racionalidade emancipatria).

    No ltimo captulo, examinam-se, concretamente, algumas expresses normativas informais de cunho legislativo e jurisdicional "dentro " (admitidas inclusive pela prpria legisla-o oficial) e "fora" do sistema estatal, consagrando a obrigatoriedade de se reconhecer, de uma vez por todas, a

  • materialidade e a institucionalizao do j existente pluralismo legal "subjacente ". Disso, advm as implicaes da cultura jur-dica informal com temas essenciais, como legitimidade, redefinio da sano, transformao do Estado, pedagogia libertria, integrao e interdisciplinaridade.

    Eis, portanto, os intentos desta obra: a proposta histrico-social de um pluralismo comunitro-participativo como novo modelo poltico e jurdico de legitimidade, caracterizado por for-mas mltiplas de produo de jurdicidade e por modalidades democrticas e emancipatrias de prticas sociais.

  • Captulo I Origem, evoluo e declnio da cultura jurdica estatal

    1.1 o Monismo como Projeto da Modernidade Burgus-Capi-talista

    A real compreenso do processo de conhecimento, das cons-trues e das ordenaes valorativas no se ftmdamenta em es-quemas interpretativos ideais a priori e em proposies tcnicas lgico-formais, mas, essencialmente, na praxis cotidiana interativa de um todo concreto que se organiza para produzir a vida social. A totalidade das estruturas de uma dada organizao social refle-tir sempre a globalidade das relaes de foras, o grau de desen-volvimento de sua riqueza material e os interesses e necessidades humanas fundamentais. No se pode captar a plena dimenso de um sistema, de uma sociedade e de uma cultura, sem a constatao mltipla de fatores causais inerentes historicidade humana. Pri-vilegiar, na anlise, uma dada instncia ou elemento fenomnico (Estado, Direito etc.) como expresses da vida produtiva organi-zada implica refletir sobre a especificidade da formao social (sociedade corporativo-estamental, organizao representativa bur-guesa e tc) , o modo de produo da riqueza (sistema econmico feudal, capitalista e t c ) , a ideologia como doutrina/crena unificadora e justificadora de mundo (liberalismo, individualis-mo) e finalmente, sobre a configurao do modelo de organiza-o poltico-institucional, ou seja, a instncia maior de poder (pluralidade de centros de poder, descentralizao administrativa e/ou centralizao estatal etc) .

  • 26 OlUOTM, EVOLUO E DECNIO OA CULTURA JUIUDKA ESIMAL

    Parece claro, assim, que no sc pode ter uma viso ampla de uma determinada forma positivada dc Direito (o caso particular, aqui, do Direito Estatal ocidental) se no for identificado a que tipo dc organizao stKial est vinculado e que espcie de relaes es-truturais de poder, de valores e de interesses reproduz. Cada con-texto cultural de poca que abrange a integrao dos fatores soci-ais, econmicos, polticos e jurdicos envolve, igualmente, um pro-cesso cclico dc emergncia, desenvolvimento, crise e rupturas. Os modelos culturais, que constituem paradigmas no tempo c no espa-o, permeados pela experincia humana na historicidade e sistema-tizados por processos de racionalizao, refletem concepes, sig-nificados c valores especficos de mundo. Esta percepo que abar-ca realidades momentneas evolutivas corretamente identificada quando se examina a transposio do Feudalismo para o modelo cultural representado pela sociedade moderna.

    Em face dessas premissas liminares, pretende-se assinalar, nes-te primeiro captulo, que o fenmeno jurdico que florescer na moderna cultura europia ocidental, a partir do sculo XVII e XVllI, corresponder viso de mundo predominante no mbito da for-mao social burguesa, do modo de produo capitalista, da ideo-logia liberal-individualista e da centralizao poltica, atravs da figura de um Estado Nacional Soberano. Ao se conceber o Direito como produto da vida humana organizada e como expresso das relaes sociais provenientes de necessidades, constatar-sc- que, em cada perodo histrico da civilizao ocidental, domina um cer-to tipo de ordenao jurdica. Nessa perspectiva, buscar-sc-, inici-almente, descrever c caracterizar, em linhas gerais, o Direito da sociedade moderna, realando sua adequao cora o tipo de socie-dade emergente (sociedade burguesa), com o modo de produo material (economia capitalista), com a hegemonia ideolgica (libe-ral-individualista) e com a forma de organizao institucional de poder (Estado Soberano) que passa a ser configurada na domina-o racional-legal (burocracia). H que se constatar, assim, num primeiro momento, como essas diferentes estruturas compatibilizaram-se na constituio de um paradigma jurdico, marcado pelos princpios do monismo (univocidade), da estatalidade, da racionalidade formal, da certeza e da segurana jurdica. Posteriormente, tentar-se- demonstrar de que forma, em

  • .I. Capitalismo, sociedade burguesa e estado moderno

    O Feudalismo surgiu como resultado da combinao de dois significativos eventos: a decadencia da sociedade escravista ro-mana e a fragmentao da sociedade gentlica dominante entre povos nrdicQfida Europa',

    Tratava-aSehma sociedade estamental, fundada na posse da terra e na produo econmica agrria, profundamente marcada por relaes sociais de servido (laos de subordinao pessoal entre suserania e vassalagem) e por uma hierarquia de privilgi-os. Os Umites da politica e da jurdicidade se definem tendo por base a propriedade da terra, a forte relao de dependncia c os estreitos vnculos comunitrios. J no que tange organizao do poder senhorial, o sistema feudal compreende tanto uma descentralizao administrativa, quanto uma fragmentao e pluralismo de centros de decises. O pluralismo poltico medie-val se d mediante a infinita multiplicidade de centros internos de poder poltico, distribudos a nobres, bispos, universidades, rei-nos, entidades intermedirias, estamentos, organizaes e corporaes de oficio. Distintamente da sociedade moderna, centrada no interesse do espao privado e na tica da racionalidade liberal-individualista, o pensamento ideolgico medieval calca-do na concepo "corporativa" da vida social, valorizando os fe-nmenos coletivos e os mltiplos corpos sociais, cada qual com sua autonomia interna para as funes polticas e juridicas, mas dispostos a colaborar com o conjunto e dele participar solidaria-

    ' Cf. C O N T t , Giuliano Da crise do feuaUxma ao nascimento o capitalhmo. Lisboa: Editonal Presena. 1979. p, 7-10; OHLWLILER. Ono Alcides Moterialismo histrica e crise cantempornta. 2. e d , Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 93-121.

    fins do sculo XX, essa cultura jurdica entra em compasso de es-gotamento e de crisc estrutural, no suportando as proftindas trans-formaes econmicas e poUticas geradas pela complexidade dos conflitos coletivos, as demandas sociais c as novas necessidades criadas pela globalizao do Capitalismo e sua insero determinante nas estruturas scio-politicas dependentes c perifricas.

  • 2 8 O W O B M , EVOLJCAD E DECIJNIO DA CULTURA JURDKA ESTATAL

    mente. Entretanto, o corporativismo social e a descentralizao poltica no eram apenas os traos gerais do espectro poltico institucional, pois deve-se reconhecer a presena e a prtica de um sistema jurdico mltiplo e consuetudinrio, cmbasado na hi-erarquia dc privilgios e nas regalias nobilirquicas. Ainda que se conceba o Direito Medieval como uma estrutura difusa, assistemtica e pluralista, pois cada reino e cada feudo regia-se por um "Direito prprio, baseado nos usos locais, nos preceden-tes dos juzes da terra, nas cartas de privilgio concedidas pelo senhor"^, no se pode minimizar o carter supletivo e doutrinrio do Direito Cannico, do Direito Visigtico e, essencialmente, do Direito Romano. Trata-se de um Direito que, por reconhecer a de-sigualdade e os interesses estamentais, define-se como estatuto ju-rdico no abrangente, pois produzido para legitimar a especificidade de uma hierarquia social claramente estabelecida nas distines entre clero, nobreza e campesinato. fo t dvida de que se deve reconhecer, quanto produo jurdica, num primeiro momento, a existncia do pluralismo normativo das corporaes cm cujos marcos ocorre uma justia administrada em tribunais cri-ados pelo senhor feudal e pelo proprietrio nominal da terra. Poste-riormente, em face das exigncias de regulamentao e controle da nova ordem econmica mercantilista e de proteo aos intentos imediatos da nascente burguesia comercial, a antiga estrutura des-centralizada de produo juridica sucedida pela consolidao mais genrica sistemtica e unitria de um Direito Mercantil,

    Sem a pretenso de oferecer aqui uma sntese exaustiva do modelo feudal, dir-se-, to somente, que entre os sculos XI e XV comea na Europa Ocidental a lenta desagregao do Feuda-lismo, motivada por sucessivas crises na esfera da formao soci-al, do modo de produo da riqueza e da organizao poltico-institucional. Tais manifestaes so predominantes na transio da economia agrrio-senhorial para uma economia mercantil-as-salariada. A crise da economia agrrio-senhorial implica o despo-voamento dos campos, a queda da produo agrcola, a desinte-

    ' HESPANHA, Antonio Msnuel. Hixtria das instituies. pocas medieval e mo-derna. Coimbra: Almedina, 1982. p, 179; WOLKMER, Antonio C^arios. Elementos paru ama critica do Estado. Porto Alegre; Srgio A. Fabris. 1990. p. 24,

  • ' Cf. DOBB. MauricE. A evoluo do capitalismo. 6. ed. RJo de Janeiro: Zahar, 1977. p. 54 e segs.: CATANl. Alinio Mendes. O que i capilalismo. 7. ed., So Paulo: Brasiliense, 19B1. p. 49-50. Observar ainda: MACFARLANE, Alan. La cultura dei capi-talismo. Mxico: Fondo Econmico dc Cultura. IW3 .

    grao das comunidades de pequenos produtores autnomos e a emergncia de um setor social organizado que sobrepe a nobre-za decadente, atravs dos lucros e do enriquecimento mediante o comrcio mercantil. Neste perodo de transformao, como ensi-na Maurice Dobb, so decisivos, na passagem para o novo modo dc produo, o processo da crise e a ruptura do feudalismo, o esfacelamento social da comunidade dos pequenos produtores locais, o desenvolvimento de uma economia de mercado urbano, a acumulao de um pequeno capital e o crescimento das trocas de mercadorias em base monetria\ Uma das conseqncias re-fere-se aos pequenos produtores, subordinados parcial e/ou total-mente ao senhorio, que no s conseguem a emancipao dessas obr igaes feudais, mas tambm e sobre tudo acabam, gradativamente, por depender, para sua subsistncia, de uma ou-tra forma de subordinao, qual seja, do trabalho assalariado.

    A medida que se esgota o Feudalismo, instaura-se o Capitalis-mo como nov modelo de desenvolvimento econmico e social em que o capital o instrumento fundamental da produo material, O avano dessas transformaes d-se, principalmente, nos horizon-tes de modificaes originadas pelo grande impulso das atividades comerciais de algumas cidades europias com o Oriente (principal-mente aps as grandes Cruzadas), pela substituio das relaes sociais servs e da produo artesanal dos pequenos trabalhadores independentes (donos de suas ferramentas, matria-prima e ofici-na), pela fora de trabalho assalariada, pela passagem das peque-nas oficinas autnomas paia as manufaturas, e, finalmente, pela constante busca do lucro, pela implementao da produtividade econmica de mercado livre e pela sistematizao do comrcio atra-vs das trocas monetrias. Assim, o Capitalismo ir constituir-se paulatinamente, durante o final da Idade Mdia e alcanar quase toda a Europa depois dos sculos XVT e XVII.

    Em face desses novos fatores fundantes representados pelo modo de produo capitalista, pela sociedade burguesa, pela ideologia

  • 30 O W Q E M , EVOLUO E DECLNIO DA CULTURA JURDICA ESTATAL

    liberal-individualista e pelo moderno Estado Soberano, qual o padro de jurdicidade a ser produzido e que atingir a hegemonia? Ora, a resposta a essa indagao ser dada gradativamente median-te a racionalidade lgico-formal centralizadora do Direito produzi-do unicamente pelo Estado e seus rgos (doutrina do monismo jurdico), enquanto referencial normativo da modema sociedade ocidental, a partir dos sculos XVII e XVIII. Mas, como se deu essa relao e qual a razo de a legalidade estatal se tomar o projeto da modemidade capitalista burguesa? Para responder a isso, impe-se consignar, primeiramente, o significado do CapitaUsmo, a legitimao dos interesses burgueses e a necessidade de um po-der centralizado e burocrtico.

    Por no se tratar, aqui, de uma anlise sistematicamente rgo-rosa e acabada sob o prsma econmico, mas to-somente da constatao de alguns traos genricos que so importantes para compreender a ordem jurdica, no se contemplar a evoluo, a caracterzao e a classificao dos diversos nveis e estgios do Capitalismo. Descarta-se, assim, aperodizao que ora consagra a linearidade de um Capitalismo comercial, ndustral e financei-ro, ora define a dinmica que atravessa o Capitalismo mercantil, o concorrencial e o monopolista. Acima de sua compreenso, quer como modo de produo, quer como especificidade de uma for-ma histrca de ao econmica, o Capitalismo enquanto "(...) conjunto de comportamentos individuais e coletivos, atinentes produo, distribuio e consumo de bens'"', deve ser diferencia-do de outros modelos histricos de produo da riqueza. Alguns desses pressupostos so, no entender de Gian R. Rusconi, essen-ciais, como: "a) propriedade privada dos meios de produo, para cuja ativao necessria a presena do trabalho assalariado for-malmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e na empresa privada, no necessariamente pessoal; c) processos de racionalizao dos meios e mtodos diretos e indiretos para a va-lorizao do capital e a explorao das oportunidades de mercado para efeito de lucro"^

    " RUSCONI, Gian R. Capitalismo. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionrio de pol-tica. Braslia: UnB, 1986. p. 141.

    ' RUSCONI, Gian R. op. ciL, p. 141.

  • ' FROMM, Erich. Psicanlise da sociedade contempornea. 9. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 91 .

    ' Cf. DOBB, Maurice. op. c i t , p. 18-19; CATANl, Afi-ro M. op. cit., p. 8-9 e 19-48; MANDEL, Ernest. Introduo ao marxismo. 4. ed.. Porto Alegre: Movimento, 1982. p. 27-42. Constatar: MARX, Karl. O CapitaL Edio resumida por Julin Borchardt. 7. ed., Rio de Janeiro; Zahar, 1982. p. 24-41, 138-151 e 190-192.

    Ainda traos especficos do primeiro perodo do sistema eco-nmico capitalista, predominantes entre os sculos XVll e XVIII, so tambm apontados por Erich Fromm: "1) a existncia de ho-mens polticos e juridicamente livres; 2) o fato de os homens li-vres (...) venderem o seu trabalho ao proprietrio de capital no mercado de trabalho, mediante um contrato; 3) a existncia do mercado de bens como mecanismo determinante dos preos e re-gulador da alterao na produo social; e 4) o princpio de que cada indivduo atua com o objetivo de conseguir uma utilidade para si mesmo, supondo-se, contudo, que, por causa da ao com-petitiva de muitos, resulte a maior vantagem possvel para todos"*.

    No se pode, no entanto, desprezar o fato de que no existe, nas discusses clssicas, luna imiformidade do que seja o Capita-lismo. Assim, toma-se relevante destacar duas interpretaes que marcaram, indiscutivelmente, a maior parte dos trabalhos escri-tos sobre o tema: a de Karl Marx e a de Max Weber.

    A anlise crtica de teor histrco-econmico do Capitalismo, feita por Karl Marx na sua obra O Capital, tem presente o estgio e as condies em que se encontrava o Capitalismo em fins do sculo XIX. Para Marx, o Capitalismo concebido como determinado modo de produo de mercadorias, constitudo no princpio da Era Modema e chegando plenitude com o advento da Revoluo In-dustrial, principalmente na Inglaterra. Como explicita Maurice Dobb, o modo de produo implica, para Marx, um conjunto de fatores que abrangem tanto o estado das foras produtivas e as for-mas de apropriao dos meios de produo quanto as relaes soci-ais que se estabelecem entre os homens, resultantes de suas media-es com o processo de produo. Nesta linha de raciocnio, o Ca-pitalismo no corporifica somente um sistema de produo de mer-cadorias, mas engloba um sistema social no qual a fora de traba-lho se transforma em mercadoria e se toma objeto de troca como qualquer outro que se vende e se compra no mercado'.

  • * Cf. WEBER, Max. A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. 4. ed., So Paulo: Pioneira, 1985. p. 19-51, 65-90 e 110-132; FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, [s.d.]. p. 148-158; RUSCONI, Gian R. op. cit., p . 142-144; CATANl, Aftnio M. op. cit., p. 12-19; DOBB, Maurice. op. cit. Consul-tar tambm: SOMBART, Werner. Lujo y capitalismo. Buenos Aires: G. Davalos, 1958.

    viso dialtica e histrico-econmica de Marx, centralizada na relao "capital-trabalho", contrape-se a interpretao "fustica e empresarial", "psico-religiosa" e "culturalista" de au-tores como Werner Sombart e Max Weber. A essncia do Capita-lismo, para Werner Sombart, transcende os meros fatores econ-micos, pois suas razes se prendem ao "estado de esprito", ao "comportamento humano", enfim, ao conjunto de "atitudes psi-colgicas e culturais" que subsistem na sociedade modema. Na esteira idealista de Sombart, mas com enfoques prprios, Max Weber, tratando desta questo em A tica Protestante e o Espri-to do Capitalismo, vem acentuar que o Capitalismo produto histrico do modo racional de pensar as relaes sociais no con-texto do mundo moderno ocidenta l , forma par t icular e determinante de racionalidade que no se faz presente nas demais civilizaes. Conferindo relevncia aos fatores culturais, Weber buscou priorizar a "racionalidade" como expresso fundamental do mundo moderno europeu. Todo esse processo de racionaliza-o da vida ocidental teria, no Capitalismo, o momento econmi-co por excelncia. Esta racionalizao seria o fio condutor de um nexo interativo entre a crena religiosa (salvao pela criao da riqueza), a coerncia tica da existncia (valorizao individual do trabalho) e a atividade econmica disciplinada. Para Weber, os fundamentos deste tipo racional de "mentalidade", ou seja, desse ethos do Capitalismo modemo, provinham de certas convices, crenas e valores, propiciados pela Reforma Protestante (sculo XVI), mais especificamente das condies histrico-culturais advindas da tica calvinista. Ao contrrio da concepo catlica medieval, que condenava toda espcie de lucro e apelava para o desprendimento dos bens materiais mundanos, os princpios ti-co-teolgicos do Protestantismo asctico atribuiu todo mrito natural vocao humana para o trabalho e para um esforo fsico capaz de levar riqueza e conquista da salvao individuai.

  • ' Cf. BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual Braslia: UnB, 1986. p. 66-99; LOEWITH, Karl. Racionalizao e liberdade: o sentido da ao social. In: FORACCHl, M. M. & MARTINS, J. S. [Orgs.]. Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1977. p. 145-162; WEBER, Max. Ensaios de sociologia. H. Gerth e C. Wright Nills. [Orgs.]. 5 ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 84-89.

    RUSCONI, Gian R. op. cit., p. 143. " Cf. AVINERI, Shlomo. O pensamento politico e social de Karl Marx. Coimbra:

    Coimbra Ed., 1978. p. 190; FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 8. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 50-61 e 89-102.

    Tais configuraes permitem assinalar que Weber buscou com-preender o Capitalismo, tanto como culminncia de um processo de racionalidade da vida organizada, quanto como ethos civilizatrio da modema sociedade ocidental europia'.

    Mesmo sendo inegveis e amplamente reconhecidas as contri-buies de Karl Marx e Max Weber ao Capitalismo, no se deve omitir algumas observaes crticas. Em meio a um amplo deba-te, cabe razo a Gian R. Rusconi, quando assinala que a interpre-tao crtica efetivada por Marx tem "(...) um valor exemplar pela perspiccia com que so anunciados os elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, contraditros do Capitalismo (contradies acerca do trabalho, mercadora e dinheiro). Todavia, essa perspi-ccia crtica no se traduz imediatamente em prognose da efetiva dinmica da evoluo do Capitalismo'"". Ainda que subsista "um hiato entre a fora da anlise crtica e a incapacidade preditiva" dos avanos do Capi ta l ismo, no se pode minimizar as desmitificaes que Marx realizou sobre um modelo econmico eficiente na explorao e na alienao do homem trabalhador Nos Manuscritos econmicos-filosficos, Marx aponta, com nitidez, no s as condies em que, no sistema econmico capitalista, o trabalho humano direcionado para circunstncias alienantes e coisificantes, como tambm aquelas em que a atividade criadora do homem acaba transformando-se num processo de automao e de desumanizao". Por outro lado, alm de destacar aspectos vitais da economia racional capitalista, Weber tem o mrito de assinalar que o aspecto primordial da "crise interna ao capitalis-mo no consiste em uma presumida contraditoriedade de seus ele-mentos, mas na virtual extino de sua dinmica por obra de um poder burocrtico. Weber no almeja a abolio do mercado, que

  • RUSCONI, Gian R. op. cit., p. 144. " Cf. LASKI, Harold. O liberalismo europeu. So Paulo: Mestre Jou, 1973. p. 17

    (El liberalismo europeo. 2 ed., Mxico - Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 1953); RUGIERO, Guido de. Historia dei liberalismo europeo. Trad.: C. G. Posada. Madrid, 1944; MANDEL, Ernest, op. cit., p. 33.

    " LASKI, Harold. op. cit., p. 9. Consultar sobre o "pensamento burgus": CUEVA, Mario de la. o Wcfl rfc/fistorfo. Mxico: UNAM, 1980. p. 116-124.

    para ele garantia de clculo racional e de autonomia dos sujei-tos: extino do mercado sucederia somente o despostismo puro e simples do poder burocrtico'"^ Certamente assiste razo a ana-listas, como Harold Laski, para os quais o triunfo da filosofia econmica capitalista s pode realmente ser explicado quando se percebe que as crescentes potencialidades de produo realmente no podiam continuar sendo exploradas dentro dos estreitos limi-tes da velha cultura medieval".

    O florescimento do Capitalismo, como pice de toda estrutura econmica da sociedade modema - resultante, como j foi visto, da perda de autonomia por parte dos pequenos produtores e da separao de seus instrumentos de produo e de subsistncia, e da transformao da fora de trabalho em mercadoria - , criar possibilidades para a concomitante formao de uma nova classe social proprietria que monopolizar os meios de produo. Es-tes novos agentes, edificadores da chamada sociedade burguesa, vo forjar seus direitos com uma plena participao no controle das novas formas de organizao do poder. A conseqncia desse deslocamento nas relaes sociais aponta para um quadro em que o controle poltico-econmico, assentado na autoridade de uma aristocracia proprietria da terra, passa a ser compartilhado por "homens cuja influncia provinha unicamente da propriedade de bens mveis. O banqueiro, o mercador, o fabricante comearam substituindo o latifundirio, o eclesistico e o guerreiro como os tipos de influncia social predominante"'''.

    No que tange a esses novos atores para a poca (os "burgue-ses"), cabe sublinhar, preliminarmente, que o conceito de burgue-sia, quer como classe social, quer como categoria tico-espiritu-al, est ampla e estreitamente identificado com a modemidade da cultura econmico-capitalista. Desse modo, toma-se adequado ca-racterizar a formao social burguesa pelo estgio de evoluo

  • " BRAVO, Gian M. In: BOBBIO, Norberto et ai, op. cit., p. 119-120. Para um aprofundamento, vide: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia, op. cit., p . 211-228; SOMBART, Werner Le Bourgeois. Paris: Petite Bibliothque Payot, 1966.

    em que se encontra o modo de produo assentado na proprieda-de privada, na diviso social do trabalho e na competio lucrati-va. Em cada momento do sistema capitalista ocidental firma-se uma viso social de poca e uma concepo comum de vida, mol-dadas por interesses especficos do segmento burgus ou setor produtivo, que atravessam o espao econmico, poltico, religio-so, filosfico etc. Outrossim, nas formas de organizaes produ-tivas centralizadas nas relaes "capital-trabalho", os agentes so-ciais dominantes revestem-se de caractersticas peculiares, trans-postas desde a pequena burguesia e a burguesia mercantil at a burguesia industrial e financeira. Examinar a burguesia no incio da Idade Modema pressupe admiti-la como segmento insurgen-te, dinmico e implementador de mudanas das estruturas feudais em crise, bem como compreend-la como parcela social interme-diria, entre a nobreza e o clero - detentores do poder e da rique-za - e o campesinato e as classes populares. J na sociedade de fins do sculo XIX e meados do sculo XX, a burguesia represen-taria o setor social proprietrio dos meios de produo, deposit-ria da riqueza e do poder poltico, edificadora da cultura oficial, que nem sempre a das massas urbanas assalariadas.

    De acordo com autores como W. Sombart e M. Weber, a bur-guesia deve ser visualizada como camada social historicamente coesa e racionalmente interligada por "formas de agir" ou "modo de ser" que matizam identidades culturais comuns. Alm de ser um "modo de vida" ou de um "comportamento econmico-soci-al", trata-se, como descreve G. M. Bravo, de "(...) um determina-do tipo de mentalidade religiosa, de f em alguns 'valores' tpi-cos, tais como a parcimnia, o esprito de grupo, mesmo na defe-sa de um slido individualismo, o rgido puritanismo e o estrito cumprimento de normas ticas e comerciais, no tanto por esta-rem escritas e sim por terem entrado nas convenes"'^

    Na verdade, de todas as apreciaes sobre a burguesia, a que tal-vez tenha sido mais discutida foi aquela desenvolvida por Marx e Engels. Situando a luta de classe como ncleo essencial de todo o

  • " MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: FERNANDES, Florestan [Org.]. Marx/Engels: histria. 2. ed., So Paulo: tica, 1984. p. 366.

    " MARX, Karl; ENGELS, E op. cit., p. 366-367 e 414.

    processo histrico produtivo, Marx apresenta a burguesia como a verdadeira classe capitalista, possuidora que da propriedade priva-da dos meios de produo na modema civilizao industrial. Ao lon-go de seu Manifesto do Partido Comunista (1848), Marx deixa claro o papel, inicialmente revolucionrio, que a burguesia desempenhou na histria, pois, impulsionada pela busca de novos mercados, a bur-guesia invade e explora o mercado mtemacional, impondo em todos os pases um ritmo cosmopolita de produo e de consumo. A bur-guesia como novo sujeito histrico que emergiu no incio da modemidade seria resultado de um "longo processo de desenvolvi-mento, de uma srie de revolues no modo de produo e de troca (...). Dos servos da Idade Mdia nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; desta populao municipal, saram os primeiros elementos da burguesia". Mas a modema organizao burguesa, "que brotou das runas da sociedade feudal, no abou os antagonismos de classe. No fez seno substituir novas classes, novas condies de opresso, novas formas de luta s que existiram no passado"'*. Ainda que reconhea na sociedade burguesa a organizao histrico-produ-tiva mais desenvolvida e diferenciada, Marx no deixa de criticar o preo desse progresso, suas incoerncias e seus intentos imediatos. Significa dizer que a burguesia dilacerou, sem compaixo, "todos os complexos e variados laos que prendiam o homem feudal a seus superiores naturais (...), para s deixar subsistir, de homem para ho-mem, o lao do frio interesse, as duras exigncias do 'pagamento vista'. Afogou os fervores sagrados do xtase religioso, do entusias-mo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burgus nas guas geladas do clculo egosta. Fez da dignidade pessoal um simples va-lor de troca; substituiu as inmeras liberdades, conquistadas com tanto esforo, pela nica e implacvel liberdade de comrcio. Em uma palavra, em lugar de explorao velada por iluses religiosas e poU-ticas, a burguesia colocou uma explorao aberta, cnica, direta e bmtal"''. Por fim, Marx alerta para o fato de que, em sua poca (se-gunda metade do sculo XIX), a sociedade caminhava para uma estratificao cada vez mais ntida entre dois vastos campos antag-

  • "* MARX, Karl; ENGELS, F, op. cit., p. 366, 373-375. " LASKI, Harold. op. cit., p. 9, 14-15. Cf. RUSSEL, Bertrand. Histria da filosofia ocidental 3. ed.. So Paulo: Cia. Ed.

    Nacional, 1977, v. 3. p. 125. MATTEUCCI, Nicola. In: BOBBIO, Norberto et al op. cit., p. 699-700. Observar

    igualmente sobre a caracterizao do "liberalismo" e sua trajetria na experincia histri-

    nicos, ou seja, em duas classes sistematicamente contrrias: a bur-guesia e o proletariado. Ademais, nessa fase, somente o proletariado uma classe autenticamente revolucionria, pois as outras classes, com o desenvolvimento da grande indstria, ao enfrentarem a bur-guesia, acabam degenerando e perecendo. natural, portanto, que, com o crescimento e a organizao do proletariado, a classe burgue-sa tome-se incapaz de "continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor sociedade, como lei suprema, as condies de existncia de sua classe'"^

    Atinente ao amplo processo de racionalizao tico-flosfico e tcnico-produtivo que contextualiza a modemidade capitalista e bur-guesa, emerge, concomitante, uma cultura liberal-individualista. Uma cultura que define a ntima relao entre o sistema econmico capita-lista, a nova classe social burguesa e os princpios diretivos da doutrina liberal. Essa filosofia, caracterizada como Liberalismo e surgida com as condies materiais emergentes e as novas relaes sociais, tomou-se, no dizer de Harold Laski, uma viso ideolgica "para ajustar-se s necessidades de um novo mundo. (...) Eram necessrias novas concep-es que legitimassem as novas potencialidades de riqueza que os ho-mens haviam descoberto, pouco a pouco, nas eras precedentes. (...) e, em funo disso, desenvolveu-se uma nova filosofia para pennitir uma justificao racional do novo mundo que assim nascera"'^.

    O aparecimento histrico do Liberalismo deu-se a partir do desenvolvimento do comrcio, do favorecimento de uma classe mdia individualista e produtiva e, em particular, do clima de to-lerncia que varreu a Inglaterra e a Holanda, aps os conflitos religiosos gerados pela Reforma^". Ao contrrio da doutrina pre-dominante, autores como Nicola Matteucci buscam encontrar as razes do Liberalismo no na burguesia propriamente dita, mas na reivindicao de liberdade poltica advinda da aristocracia (caso ingls) em sua luta contra o poder absoluto do prncipe^'.

  • ca de diversos pases da Europa: VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Poltico. 2. ed., Madrid: Tecnos, 1976, v. 1. p. 221-230; BELLAMY, Richard. Liberalismo e Socie-dade Moderna. So Paulo: EDUSP, 1994; RAWLS, John. Liberalismo Poltico. Mxico: Fondo de Cultura Econmica. 1995.

    2^ Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, p. 92-93, 1989.

    " Cf. WOLKMER, Antonio Carlos, op. cit., p. 93; LANZONI, Augusto. Iniciao s ideologias politicas. So Paulo: cone, 1986. p. 17 e 19; LASKI, Harold. op. cit.

    Longe de uma constatao mais pormenorizada, fica mencio-nado, como j se examinou em outro momento^^ que o Liberalis-mo surgiu como nova viso global do mundo, constituda pelos valores, crenas e interesses de uma classe social burguesa na sua luta histrica contra a dominao do Feudalismo aristocrtico-fiindirio, entre os sculos XVII e XVIII, no continente europeu. Assim, o Liberalismo toma-se a expresso de uma tica individu-alista voltada basicamente para a noo de liberdade total que est presente em todos os aspectos da realidade, desde o filosfi-co at o social, o econmico, o poltico, o religioso etc. Em seus princpios, o Liberalismo se constituiu na bandeira revolucion-ria que a burguesia capitalista (apoiada pelos camponeses e pelas camadas sociais exploradas) utiliza contra o Antigo Regime Ab-solutista. Acontece que, no incio, o Liberalismo assumiu uma forma revolucionria, marcada pela "liberdade, igualdade e fratemidade", que favorecia tanto os interesses individuais da burguesia enriquecida quanto os de seus aliados economicamente menos favorecidos. Mais tarde, contudo, quando o Capitalismo comea a passar fase industrial, a burguesia (a elite burguesa), assumindo o poder poltico e consolidando seu controle econ-mico, comea a "aplicar na prtica somente os aspectos da teoria liberal" que mais lhe interessam, denegando a distribuio social da riqueza e excluindo o povo do acesso ao govemo^l

    Ademais, como menciona Lanzoni, o Liberalismo oferece "si-tuaes ambguas, em quase todos os seus aspectos. Se, de um lado, ele prega a liberdade, como bem supremo do homem, de outro, limita a ao daqueles que no possuem dinheiro. Se se apresenta como revolucionrio e progressista, em relao ao Antigo Regime, (...), no entanto, conservador em relao s reivindicaes popu-lares. Portanto, (...) revolucionrio e ao mesmo tempo conserva-

  • ^' Cf. WOLKMER, Antonio Carlos, op. cit., p. 93; LANZONI, Augusto, op. cit., p. 20. Cf WOLKMER, Antonio Carlos, op. cit., p. 93-94; MAGRIDIS, Roy C. Ideologi-

    as polticas contemporneas. Braslia: UnB, 1982. p. 38 e 4 1 . Cf BURDEAU, Georges. O liberalismo. Pvoa de Varzim: Publicaes Europa-

    Amrica, s/d. p. 81-84.

    dor". Enquanto que, no sculo XIX, "luta contra a monarquia abso-luta e, no sculo XX, contra as ditaduras e regimes totalitrios", em ambos os momentos volta-se contra "as autoridades populares e sobretudo contra a democracia e o socialismo"^'*.

    O exame de seu contedo conduz ao reconhecimento neces-srio de alguns traos essenciais que passam pelo "ncleo econ-mico" (livre iniciativa empresarial, propriedade privada, econo-mia de mercado), pelo "ncleo poltico-jurdico" (Estado de Di-reito, soberania popular, supremacia constitucional, separao dos poderes, representao poltica, direitos civis e polticos) e pelo "ncleo tico-flosfico" (liberdade pessoal, tolerncia, crena e otimismo na vida, individualismo)^^

    De todas as expresses valorativas, a que mais direta e comumente se integra ao Liberalismo o individualismo. Ain-da que se admitam outras experincias de cunho individualis-ta, como o individualismo cristo, naturalista, racionalista ou anarquista, nenhuma tem um alcance to rico e coerente quan-to o individualismo liberal que faz do ser individual um "valor em si" e um "valor absoluto"^*. A defesa extrema do indivduo no se d somente contra o Estado, mas tambm em relao a toda e qualquer organizao institucional. A construo da or-dem no fruto da autoridade externa, ou de uma imposio especial, pois a sociedade a soma das vontades individuais, vontade coletiva soberanamente livre e autnoma. Destarte, pressupondo a associao espontnea de indivduos iguais com interesses comuns, a sociedade possibilita a constituio de um espao pblico, cujas particularidades pessoais so eleva-das como categorias-padres que coexistem como intentos ge-rais. O individualismo, enquanto aspecto nuclear da modema ideologia liberal e enquanto expresso da moralidade social burguesa, prioriza o homem como centro autnomo de deci-ses econmicas, polticas e racionais. A ao justifica-se no pela afirmao interativa com o social, mas por uma subjetivi-

  • " GUTIRREZ, Gustavo. A fora histrica dos pobres. Petrpolis: Vozes, 1984. p. 253-255.

    2 MARX, Karl; ENGELS, F. op. c i t , p. 368; LASKI, Harold. op. c i t , p. 59-61.

    dade em que o sujeito racional "se conhece e se afirma como individualidade"^'.

    Uma vez configurados os primrdios da sociedade modema eu-ropia no contexto da economia capitalista, da hegemonia social burguesa e dos indamentos ideolgico-filosficos liberal-indivi-dualistas, ver-se- que tipo de estratura poltico-institucional re-produziu e assegurou a especificidade desses novos interesses. Trata-se da modema organizao estatal de poder, revestida pelo mono-plio da fora soberana, da centralizao, da secularizao e da burocracia administrativa. Nesse aspecto, assiste inteira razo a Marx quando pondera que a nascente burguesia necessitava de forte au-toridade central que protegesse seus bens, favorecesse seu progres-so material e resguardasse sua sobrevivncia como classe domi-nante, reconhecendo o carter imperioso dessa autoridade. Para tan-to, ensina Marx, a burguesia "(...) suprime cada vez mais a disper-so dos meios de produo, da propriedade e da populao. Aglo-merou as populaes, centralizou os meios de produo e concen-trou a propriedade em poucas mos. A conseqncia necessria dessas transformaes foi a centralizao poltica. Provncias inde-pendentes, apenas ligadas por dbeis laos federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reu-nidas em uma s nao, com um s governo, uma s lei, um s interesse nacional de classe, uma s barreira alfandegria"^*.

    necessrio destacar, na passagem da estrutura pluralista, policntrica e complexa "dos senhorios de origem feudal" para uma instncia "territorial concentrada, unitria e exclusiva", todo um pro-cesso de racionalizao da gesto do poder, decorrente das "condi-es histricas materiais" e da secularizao utilitria que desloca o controle scio-poltico da Igreja para a autoridade laica soberana. Naturalmente, essa transposio evidencia, para a nova cultura pol-tica, que o Estado corporifica o "projeto 'racional' da humanidade em tomo do prprio destino terreno: o contrato social, que assinala simbolicamente a passagem do Estado de natureza ao Estado civil, no mais do que a tomada de conscincia por parte do homem dos

  • 2 ' SCHIERA, Pierangelo. In: BOBBIO, Norberto et al, op. cit., p. 426 e 428. M NISBET, Robert. Os filsofos sociais. Braslia: UnB, 1982. p. 144; LASKI, Harold.

    op. cit., p. 34; BODIN, Jean. Los Seis Libros de la Republica. Trad.: Pedro Bravo. Madrid: Aguilar, 1973. p . 46; MAQUIAVEL, Niccol. O prncipe. So Paulo: Cultrix, 1976.

    " LINDSAY, A. D. O Estado democrtico moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. p.

    condicionamentos naturais a que est sujeita sua vida em sociedade e das capacidades de que dispe para controlar, organizar, gerir e utili-zar esses condicionamentos para sua sobrevivncia (...)"^'.

    Os fundamentos tericos de teor poltico-filosfico dessa es-trutura unitria e centralizada de poder podem ser encontrados em doutrinadores do absolutismo da poca, como Maquiavel, Bodin e Hobbes. Sem deixar de reconhecer em Maquiavel o fiin-dador da modema cincia poltica e precursor da unidade estatal italiana, particularmente interessa, aqui, assinalar a relevncia da obra de Bodin por ter introduzido e vinculado, pela primeira vez, o conceito de "soberania poltica" ao Estado absoluto. Assim, a autoridade do Estado absoluto era caracterizada pelo "mais alto, absoluto e perptuo poder sobre os sditos e cidados numa co-munidade"^". Ficava patenteada, em ma Repblica, a referncia a uma ordem estatal secularizada, com autoridade suprema e com vontade ilimitada, habilitada a promulgar leis para todos e no podendo ter seu poder dividido e/ou restringido, como no dualismo medieval entre papado e imprio. Ainda h que se mencionar que a doutrina da soberania, fundada no Direito divino dos reis e uma das mais fortes referncias do Estado absolutista, foi, no comeo, uma contestao contrria s "(...) tentativas de limitar os pode-res desses Estados, um protesto contra as pretenses do Imprio e contra as pretenses polticas da Igreja Catlica Romana. (...) Tal como surgiu, a teoria era admiravelmente adequada realidade do Estado absolutista e sua suposio fundamental da autorida-de do rei. (...) Quando, porm, o absolutismo deixou de ser acei-tvel, os homens conservaram a linguagem da doutrina de sobe-rania e falaram da soberania do Estado ou da Nao, trocando um soberano pessoal por outro impessoal"^'. Entretanto, para alm de Bodin, ningum mais do que Hobbes contribuiu para a justifi-cao e a sistematizao da modema comunidade poltica absolu-ta, alicerada na "soberania ilimitada" e na "total obedincia do

  • " Cf. NISBET, Robert. op. cit., p. 146, 148-149. HOBBES, Thomas. Leviat. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 105-107 e 122. Cf WOLKMER, Antonio Carlos. 1990. p. 24-25. Ver ainda: ELIAS, Norbert. O

    processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2 [Formao do Estado e Civiliza-o]; ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Porto: Afrontamento, 1984; POGGI, Gianfranco. A evoluo do Estado moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

    indivduo ao soberano". Numa ordem estvel no se concebia a multiplicidade, a diviso interna e o pluralismo social dos gmpos intermedirios, pois toda a autoridade estaria concentrada no Es-tado unitrio e soberano. Neste sentido, como percebeu Nisbet, no houve outro autor que colaborasse mais do que Hobbes para o aperfeioamento da teoria do modemo Estado centralizado oci-dentaPl Esta conceituao da comunidade poltica absoluta hobbesiana aparecer, na Inglaterra do sculo XVII, idealizada na obra o Leviat. neste clebre texto poltico que Hobbes pro-clama que a essncia do Estado est concentrada numa s pessoa que possui o poder soberano e que capaz de "usar a fora e os recursos de todos, da maneira que considere conveniente para assegurar a paz e a defesa comum". H duas modalidades de ad-quirir este poder soberano que se constitui no Estado: "Estado por aquisio" e "Estado por instituio". O "Estado por aquisi-o" aquele em que o poder soberano foi adquirido pela fora natural, originada da coao, do medo, e da subordinao. J o "Estado por instituio", ou o chamado "Estado Poltico" aque-le em que os homens pactuam e "concordam entre si em se sub-meterem a um homem, ou a uma assemblia de homens"".

    Parece claro, por conseguinte, que ao lado das concepes te-ricas de Maquiavel, Bodin e, sobretudo, Hobbes - de inegvel in-fluncia na formulao do modemo Estado ocidental - , h sempre que reconhecer as condies histricas materiais e as mudanas estmturais favorveis solidificao do "novo ethos ". Somente a partir desta abrangncia que corretamente se configura a dinmi-ca da formao de uma instncia unitria, soberana e centralizada, processo que, na verdade, comeou entre os sculos XIII e XIV e se estendeu at fms do sculo XVIII, expressando a combinao de fatores internos e externos das formaes sociais ocidentais, bem como o impacto de promdas transformaes estmturais, de natu-reza scio-econmica, poltico-juridica e tico-culturaP'*.

  • " Cf. WEBER, Max. Economia y sociedad. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1984. p. 1047-1060; BENDIX, Reinhard. op. cit., p. 298-299; FREUND, Julien. op. c i t , p. 159.

    Para tal efeito e almejando melhorar a exemplificao do modelo emergente, recorre-se, uma vez mais, a Max Weber para apontar a conjugao de determinados fatores simultneos como pr-condi-es para o Estado modemo ocidental, ou seja: a existncia de uma comunidade humana que em determinado territrio advoga para si o "monoplio da coao fsica legtima"; a materializao de um direi-to laicizado, produto da generahdade e da racionalizao burguesa; a criao de uma fora militar permanente e dirigida por autoridade central; a organizao de um corpo administrativo racional, central-mente conduzida, baseada em regulamentos e padres explcitos; e enfim, a monopolizao dos meios de dominao administrativa e o estabelecimento de um sistema contnuo de taxao^^

    A necessria vinculao da estmtura poltico-institucional com os c ic los do modo de produo capi ta l is ta (mercant i l , concorrencial/industrial, monopolista) permite certa periodizao do modemo Estado burgus ocidental. Explicitando melhor, veri-fica-se que a organizao poltica que surge sob a forma de um Estado absolutista - soberana, monrquica e secularizada - tem sua base de sustentao na produo econmica mercantilista, evoluindo, posteriormente, para um tipo de Estado que priorizar as leis do mercado e o liberalismo econmico, tendo como "tra-os" poltico-juridicos a soberania nacional, separao dos pode-res, supremacia constitucional, democracia representativa formal, direitos civis e polticos etc. Ora, se o Estado liberal clssico (s-culo XVIII e XIX) se identifica com a etapa concorrencial e in-dustrial do Capitalismo, a emergncia do Estado intervencionista, que acompanha a passagem para a "reproduo ampliada" e "im-perialista" do sistema produtivo, nas primeiras dcadas do sculo XX, coincidir com a etapa "organizada" do Capitalismo monopolista/financeiro. Tal delineamento tecnocrtico do Esta-do burgus contemporneo desenvolve-se no crescente espao de insero e acumulao do capital, da existncia de novas neces-sidades especficas geradas pela sociedade industrial de massa, da progressiva burocratizao da administrao pblica e do per-

  • Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. 1990, op. cit., p. 25-26.

    manente "assistencialismo" estatal no s na regulao dos con-flitos entre capital e trabalho, como ainda na institucionalizao das polticas previdenciria e sndicaP*. Entretanto, este primeiro momento monopolista do Capitalismo marcado pela constitui-o, evoluo e crise do Estado do Bem-Estar, cujo escopo mediatiza maior conciliao entre os interesses do capital e as demandas sociais. Segue-se que, entre os anos 70/90, o Capitalis-mo monopolista alcana nova etapa de complexidade e avano, caracterizado por um processo de desorganizao, reordenao e flexibilizao global do capital intemacional. E a fase da grande concentrao de corporaes internacionais, da formao de blo-cos econmicos e da integrao dos mercados (Capitalismo monopolista globalizado). Tendo em conta esta trajetria mais recente que cabe visualizar tambm as transformaes que atra-vessaram o Estado Capitalista, as formas de descentralizao do poder, a crescente presena de novos sujeitos participantes e a especificidade de plos normativos insurgentes e informais que expressam a retomada de certas prticas pluralistas. Preocupa-es estas que sero examinadas mais adiante.

    Por outra parte, sem deixar de raciocinar em cima da perspec-tiva central da proposta deste captulo, importa chamar a ateno para o fato de que a estmtura econmica, social e poltica da soci-edade unitria burgus-capitalista se fixndamenta num processo de rac iona l izao formal, burocr t ica e individual is ta , minimizando determinados valores que foram realados na Idade Mdia, como a descentralizao, os corpos intermedirios, o corporativismo associativo e o pluralismo, que sero retomados e repesados ao longo do sculo XX (numa perspectiva secular e p rogress i s ta ) , por grupos sociais marg ina is , l ideranas contestatrias e movimentos utpicos radicais.

    Uma vez exposto o quadro da cultura europia, trata-se de com-por, agora, o tipo de estatuto jurdico que dele dimana e que re-produz as condies daquelas relaes histrco-sociais. Da a relevncia de se apontar para a ntima relao e as implicaes poltico-ideolgicas de um sistema jurdico que no existe por si s, como instncia autnoma e acabada, mas que realiza, num

  • " WECKM ANN, Luis. El pensamiento poltico medieval y los orgenes del derecho internacional Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993. Sobre o Direito como con-dio da realidade estatal, observar tambm: HELLER, Hermann. Teoria do Estado. So Paulo: Mestre Jou, 1961. p. 221-239.

    alto grau de racionalizao, as condies de produo econmica capitalista, da sociedade liberal-individualista e da estmtura esta-tal burocrtica centralizada. Levando em considerao as origens histricas, as tradies especificas nacionais e a incorporao ou no do Direito Romano, o fenmeno jurdico na sociedade mo-dema ocidental expressou-se mediante dois grandes sistemas ju-diciais, representados pela Civil Law (Direito escrito produzido diretamente pelo Estado) e pela Commom Law (Direito dos Juzes, expresso indireta da vontade estatal). Tanto o "Direito Estatal" legislado diretamente por um poder unitrio e soberano, quanto o "Direito dos Juzes", resuhante dos precedentes e prticas costu-meiras institucionalizadas, reconhecidas pela ordem estatal, iro gerar as bases racionais de uma tradio jurdica lgico-formalista. Das diferentes expresses instmmentais de produo normativa (leis, precedentes, jurspmdncia, doutrina etc.) que tem revelado e sustentado o princpio do monismo jurdico na modemidade burgus-capitalista, doravante h de se privilegiar e se ater to-somente mais significativa formalizao normativa da organi-zao poltica modema: o Direito Estatal. Entretanto, ainda que se admita a hegemonia do projeto jurdico imitro, particular-mente do Direito Estatal, no se pode deixar de reconhecer a exis-tncia, concomitante, do pluralismo jurdico e de uma tradio bem mais antiga de formulaes jurdicas comunitrias. Destarte, a indiscutvel prevalncia do monismo juridico no consegue evitar a fora e a manuteno de ordenamentos jurdicos independentes do Estado e de seus rgos institucionais (Parlamento e Judici-rio), dentre os quais merecem destaque o Direito Eclesistico e o Direito Internacional".

    Feitas as delimitaes histricas, toma-se indispensvel rea-firmar que o projeto de legalidade que acaba se impondo, aque-le criado, validado e aplicado pelo prprio Estado, centralizado no exerccio de sua soberania nacional. A assero de que a cons-tmo do modemo Direito ocidental est indissoluvelmente vin-

  • 1.1.2 Direito estatal: formao, ciclos histricos e caracteri-zao

    Iniciando, dir-se-ia que a ntima conexo entre a suprema raci-onalizao do poder soberano e a positividade formal do Direito conduz coesa e predominante doutrina do monismo. Tal con-cepo atribui ao Estado Modemo o monoplio exclusivo da pro-duo das normas juridicas, ou seja, o Estado o nico agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de relaes sociais que se vo impondo. Esta assero indica que, na dinmica histrica, o "princpio da estatalidade do Direito desen-volveu-se concomitantemente com a doutrina poltica da sobera-nia, elevada esta condio de caracteristica essencial do Estado. Com efeito, o Estado Modemo define-se em fiino de sua com-petncia de produzir o Direito e a ele submeter-se, ao mesmo tempo em que submete as ordens normativas setoriais da vida social"^*.

    COELHO, Luiz Fernando. Teoria critica do Direito. Curitiba: HDV, 1986. p. 258.

    culada a uma organizao burocrtica, a uma legitimidade jurdi-co-racional e a determinadas condies scio-econmicas espe-cficas, permite configurar que os pressupostos da nova dogmtica jurdica, enquanto estatuto de representao burgus-capitalista, estaro assentados nos princpios da estatalidade, unicidade, positivao e racionalizao.

    Certamente por essa razo que se ho de mencionar, primei-ramente, as causas que propiciaram a constituio e a evoluo do Direito na sociedade modema, o alcance de sua supremacia formal com as codificaes e, posteriormente, os surtos de inefi-ccia e esgotamento do monismo normativista no final do sculo XX. Para facilitar a correta apreenso da juridicidade estatal como paradigma nuclear da presente modemidade, destacar-se- a globaUdade de um processo que passa: a) pela formao do prin-cpio unitrio no Direito; b) pelos principais momentos ou etapas do monismo juridico; e, fmalmente, c) pelos pressupostos e ca-racterizao da dogmtica jurdica centralizadora.

  • ^' Consultar, a respeito: TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascen-so do capitalismo. Rio de Janeiro; Zahar, 1978. p. 60-61 e 67-69; BERMAN, Harold J. La formacin de la tradicin jurdica dei occidente. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996. p. 355-373; BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e societ moderna. Napoli: Jovene Editore, 1996; MOREIRA, Vital. A ordem jurdica do capitalismo. Coimbra: Cen-telha, 1978.

    "O LASK.1, Harold. op. cit., p. 39-40.

    Na verdade, a burguesia mercantil, ao suplantar a nobreza e o clero como nova classe social detentora dos meios de produo, busca adequar aos seus interesses uma ordem estatal fortalecida, apta a legitimar um sistema de normatividade. Esta ordenao, firmada na logicidade de regras genricas, abstratas e racionali-zadas, disciplina, com segurana e coerncia, questes do comr-cio, da propriedade privada, da herana, dos contratos etc. No sem razo, inmeros pesquisadores insistem em proclamar que a primeira manifestao do modemo Direito burgus deve ser as-sociada ao Direito Comercial em fins da Idade Mdia, preceden-do ao Direito Civil e ao Direito Pblico^'.

    Neste sentido, Harold Laski pondera que o sculo XVI foi um tempo "em que se forjaram novos princpios jiu-dicos para satis-fazer s necessidades de uma nova sociedade""". Para Laski, es-ses princpios jurdicos emergentes, interligados s acepes do poder nacional soberano, alm de ampliarem os espaos do Direi-to Pblico, possibilitam, igualmente, o florescimento de um Di-reito Intemacional que regular a especificidade das relaes po-ltico-comerciis entre as novas Naes-Estados. Na perspectiva de contextualizao da Reforma e do processo de secularizao, efetiva-se gradualmente o declnio do Direito Cannico e o aco-lhimento, ainda maior, de um corpo de princpios extrados do Direito Romano que se incorpora no s nas instituies legais de tradio latina, mas tambm e sobretudo, nas prticas judiciais dos Pases Baixos, marcados por seculares experincias consue-tudinrias. O avano crescente e o amplo reconhecimento do le-gado jurdico romano demonstram que suas preceituaes, mais do que as difiisas e mltiplas prticas legais medievais, eram mais adequadas para um perodo que se instaurava sob o prsma da centralizao poltica, da administrao burocrtica e da raciona-lizao do poder. Antes de tudo, preciso admitir que o perfil

  • Cf. LASKI, Harold. op. cit., p. 41 . A propsito, consultar: WIEACKER, Franz. Histria do direito privado modemo. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980. p. 15-95; CAENEGEM, R. C. Van. Uma introduo histrica do direito privado. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 17-73.

    " Cf POGGI, Gianfranco. A evoluo do Estado Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 110-115 e 139-140; GLEIZAL, Jean-Jacques. Le dropolitique de VEtaU Paris: PUF, 1980. p. 17.

    irrecusvel e imperioso no se explicava to-somente pelo suces-so e respeitabilidade de suas instituies, mas tambm pelo modo como seus estatutos consagravam a inconteste autoridade legal do poder governante, identificado, agora, com a prpria encamao do Estado absolutista"'.

    Em semelhante contexto, o Direito modemo no s se revela como produo de uma dada formao social e econmica, como, principalmente, edifica-se na dinmica da juno histrica entre a legalidade estatal e a centralizao burocrtica. O Estado Modemo atribui a seus rgos, legalmente constitudos, a deciso de legislar (Poder Legislativo) e de julgar (Poder Judicirio) atravs de leis gerais e abstratas, sistematizadas formalmente num corpo denomi-nado Direito Positivo. A validade dessas normas se d no pela eficcia e aceitao espontneas da comunidade de indivduos, mas por terem sido produzidas em conformidade com os mecanismos processuais oficiais, revestidos de coao punitiva, provenientes do poder pblico. Distintamente das formas pr-modemas e pr-capitalistas, dominadas pela legitimidade tradicional e legitimida-de carismtica, o Estado Modemo consagra agora a legitimidade juridico-racional, calcada na despersonalizao do poder, na racio-nalizao dos procedimentos normativos e na convico de uma "obedincia moralmente motivada", associada a uma conduta cor-reta"^. Neste processo de legitimao, a ordem jurdica, alm de seu carter de generalizao e abstrao, adquire representao formal mediante a legalidade escrta. A lei projeta-se como o limite de um espao prvilegiado, onde se materializa o controle, a defesa dos interesses e os acordos entre os segmentos sociais hegemnicos. Ocorre que, ao criar as leis, o Estado obriga-se, diante da comuni-dade, a aplicar e a resguardar tais preceituaes. Ao respeitar cer-tos direitos dos indivduos e ao limitar-se sua prpria legislao, o Estado Modemo oficializa uma de suas retricas mais aclama-

  • DELLA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. El derecho que nace del pueblo. M-xico: CIRA, 1986. p. 26-34.

    das: o "Estado de Direito". A permanente condio do "Estado de Direito" permite e justifica uma certa administrao, ftmdada na pretensa neutralidade de legalidade. O Estado que se legitima na situao de "Estado de Direito" garante-se como um poder sobera-no mximo, controlado e regulado pelo Direito. Naturabnente, o modemo Direito Capitalista, enquanto produo normativa de uma estmtura poltica unitria, tende a ocultar o comprometimento e os interesses econmicos da burguesia enriquecida, atravs de suas caractersticas de generalizao, abstrao e impessoalidade. Sua estmtura formalista e suas regras tcnicas dissimulam as contradi-es sociais e as condies materais concretas. Em consonncia com tais premissas. De la Torre Rangel adverte que esse Direito Modemo, "pretendendo ser um Direito igual e supondo a igualda-de dos homens sem ter em conta os condicionamentos sociais con-cretos, produz uma lei abstrata, geral e impessoal. 'Ao estabelecer uma norma igual e um igual tratamento para uns e outros, o Direito Positivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos os homens, consagra na realidade as desigualdades concretas"'"^

    Uma vez definidos os traos especficos da formao histrca do modemo Direito Estatal e a conseqente supremacia doutrn-ria do centralismo jurdico, passa-se a examinar os prncipais mo-mentos desse processo no Ocidente. Essa evoluo do monismo ju r d ico ocidental compreender " e t apas" ou "fases" , consubstanciadas em quatro grandes "ciclos", correspondentes formao, sistematizao, apogeu e crise do paradigma. Cada gran-de "ciclo monstico" ser inter-relacionado com as condies que perfazem a estmtura de poder poltico e o modo de produo s-cio-econmico.

    O primeiro grande "ciclo", que representa a prpria formao do monismo juridico, irrompe ao longo de uma confluncia hist-rica associada ao Estado absolutista, ao Capitalismo mercantil, ao fortalecimento do poder aristocrtico e ao declnio da Igreja e do pluralismo corporativista medieval. Entre os sculos XVI e XVII, os soberanos absolutistas no s procuram fundamentar o exerccio de sua irrestrita dominao em critrios racionais

  • Ver: HESPANHA, Antonio M. Panorama histrico da cultura juridica europia. Mira-Sintra: Publicaes Europa - Amrica, 1997. p . 66-165; TARELLO, Giovanni. Storia delta cultura giuridica moderna. Bologna: Mulino, 1976. p . 15-41.

    Cf. BOBBIO, Norberto et al. op. cit., p. 350-351. Verificar igualmente: ZARKA, Ivs Charles. Hobbes y el pensamiento poltico moderno. Barcelona: Herder, 1997.

    REALE, Miguel. Teora do Direito e do Estado. 4. ed., So Paulo: s.ed., 1984. p. 208-209.

    embasados na doutrina do Jusnaturalismo, como, simultaneamente, subordinam as fontes de produo jurdica vontade daquele que detm o poder poltico"". D-se, com isso, o processo de conver-gncia de que fala Norberto Bobbio: o poder poltico e as estmtu-ras jurdicas reduzem o Direito ao Direito Estatal, protegido pela coao. Para Bobbio, o pice dessa convergncia entre o ordenamento jurdico e o poder estatal, inaugiu-ando a passagem do Estado de natureza para o Estado civil, se concretiza com a filosofia poltica de Thomas Hobbes"^

    A mesma preocupao encontra-se em Miguel Reale, para quem " em Hobbes que se devem procurar os prmeiros elementos da doutrina que reduziu o Direito ao Direito Positivo e, mais ainda, o Direito a uma crao do Estado""*. Ora, enquanto Maquiavel dis-tinguiu a poltica da moral e da religio, Hobbes pe a poltica aci-ma da moral, redefinindo o exerccio da autoridade atravs do prin-cpio do absolutismo. Pode-se afirmar que Hobbes no s um dos mdadores do modemo Estado absolutista, como, sobretudo, o prin-cipal terico da formao do monismo jurdico ocidental, ou seja, um dos primeiros a identificar o Direito com o Direito do soberano e, igualmente, o Direito Estatal com o Direito Legislativo. Esse tema fica claramente expresso no Leviat, no captulo dedicado s leis civis, em cujo texto define que toda lei "consiste na declarao ou manifestao da vontade de quem ordena". Toda lei uma or-dem que no pode ser contrara razo. Ao distinguir a lei civil, que escrta, da lei natural, que no escrita, Hobbes procl