Análise do discurso: lugar de enfrentamentos teóricos

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IN: FERNANDES, C.; SANTOS, J.B. (org.). Teorias lingüísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: UFU, 2003. ANÁLISE DO DISCURSO: LUGAR DE ENFRENTAMENTOS TEÓRICOS Maria do Rosário Valencise Gregolin 1 1. Da lingüística do enunciado à lingüística da enunciação Em seu livro História e Lingüística, Régine Robin (2) analisa as mudanças ocorridas no campo dos estudos da linguagem, no final da década de 1960, com a passagem de uma “lingüística da frase” para uma “lingüística do discurso”. Segundo a autora, a lingüística do discurso pretendeu ultrapassar a análise do enunciado e fazer estourar o espartilho que apertava o objeto da Lingüística (p. 88), levando-a a interessar-se por novos objetos - o universo conotativo da linguagem, o jogo das implicações e das pressuposições, o campo retórico-estilístico, as estratégias dos argumentos do discurso, etc. – e, conseqüentemente, desenvolvendo novas formas de encarar a configuração dos saberes. Essa mudança no olhar o seu objeto, fez que a Lingüística vivesse a hora das revisões fundamentais (p.88), que ela revisitasse a oposição entre a langue e a parole e que retomasse a discussão sobre as exclusões da Lingüística saussureana. Essas mudanças tornaram possível o desenvolvimento de uma teoria da enunciação e provocaram o aparecimento de uma Lingüística que se ocupará do discurso. No entanto, isso não se deu de forma abrupta, nem, muito 1 Docente da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Araraquara, SP. 2(?) Robin, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. 1

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IN: FERNANDES, C.; SANTOS, J.B. (org.). Teorias lingüísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: UFU, 2003

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IN: FERNANDES, C.; SANTOS, J.B. (org.). Teorias lingsticas: problemticas contemporneas. Uberlndia: UFU, 2003.

anlise do discurso: lugar de enfrentamentos tericos

Maria do Rosrio Valencise Gregolin

1. Da lingstica do enunciado lingstica da enunciao

Em seu livro Histria e Lingstica, Rgine Robin() analisa as mudanas ocorridas no campo dos estudos da linguagem, no final da dcada de 1960, com a passagem de uma lingstica da frase para uma lingstica do discurso. Segundo a autora, a lingstica do discurso pretendeu ultrapassar a anlise do enunciado e fazer estourar o espartilho que apertava o objeto da Lingstica (p. 88), levando-a a interessar-se por novos objetos - o universo conotativo da linguagem, o jogo das implicaes e das pressuposies, o campo retrico-estilstico, as estratgias dos argumentos do discurso, etc. e, conseqentemente, desenvolvendo novas formas de encarar a configurao dos saberes. Essa mudana no olhar o seu objeto, fez que a Lingstica vivesse a hora das revises fundamentais (p.88), que ela revisitasse a oposio entre a langue e a parole e que retomasse a discusso sobre as excluses da Lingstica saussureana. Essas mudanas tornaram possvel o desenvolvimento de uma teoria da enunciao e provocaram o aparecimento de uma Lingstica que se ocupar do discurso. No entanto, isso no se deu de forma abrupta, nem, muito menos, tranqila: a enunciao ora foi pensada em termos de processo, ora em termos de marcas em uma enunciao enunciada e, assim, os pesquisadores hesitaram entre uma concepo muito ampla e uma concepo muito restritiva dos elementos que haviam sido deixados em suspenso a partir das propostas de Saussure (o sujeito, a Histria, o discurso). A importncia e a centralidade que a enunciao assume no interior da lingstica do discurso evidencia que ela no um conceito j absolutamente consolidado, mas o signo de um problema.

2. A lingstica do discursoVrios autores, como Maingueneau (1976)(), propem que os formalistas russos foram precursores da lingstica do discurso, ressaltando, entretanto, que a perspectiva imanentista impediu que suas pesquisas fizessem avanar a discusso sobre a enunciao. Nos anos 1960, duas direes estavam desenhadas e delinearam o futuro dos trabalhos sobre o discurso: de um lado, o estruturalismo americano possibilitou a ampliao do escopo das abordagens e permitiu a anlise das relaes transfrsticas; de outro lado, os trabalhos de Benveniste e de Jakobson trouxeram as questes ligadas comunicao para o interior das anlises lingsticas. A preocupao com a enunciao separa, portanto, uma anlise do discurso europia de uma linha americana e, segundo Orlandi (1986, p. 16)(),

essas duas direes vo marcar duas maneiras diferentes de pensar a teoria do discurso: uma que a entende como a extenso da Lingstica (que corresponderia perspectiva americana) e outra que considera o enveredar para a vertente do discurso o sintoma de uma crise interna da Lingstica, principalmente na rea da semntica. Assim, a tendncia europia , partindo de uma relao necessria entre o dizer e as condies de produo desse dizer coloca a exterioridade como marca fundamental e exige um deslocamento terico, de carter conflituoso, que vai recorrer a conceitos exteriores ao domnio de uma lingstica imanente para dar conta da anlise de unidades mais complexas da linguagem.A histria da lingstica do discurso pode, ento, ser visualizada, a partir dos anos 1960, por meio da relao que se vai estabelecer entre a Lingstica e outras disciplinas, na busca da interdisciplinaridade para a anlise de um objeto alm da frase, que exige a abordagem da articulao entre o lingstico e o seu exterior:

a) Esse o objetivo da sociolingstica. No entanto, ela no problematiza o estatuto da relao entre a ordem do discurso e a ordem scio-histrica. Por isso, ela no consegue solucionar a relao entre a anlise interna e a anlise externa, e passa da anlise lingstica busca de uma covarincia com o nvel social. Desde cedo evidenciou-se essa fragilidade das anlises, j que, para explicar o discurso, necessrio construir um objeto descritvel por processos lingsticos, mas que se integre a uma teoria geral das sociedades (Robin, 1977, p.92);

b) Algumas propostas, apesar de terem passado ao nvel alm da frase, permaneceram apenas internas (Lingstica Textual; gramticas de texto), ou tomaram a enunciao em sentido lgico (pragmtica, atos de fala, etc.);

c) Outras propostas so apenas conteudsticas e deixam de fora da anlise os aspectos lingsticos. o caso de trabalhos realizados no campo da pedagogia, da sociologia, da histria, da antropologia, etc. que aplicam conceitos de correntes da lingstica do discurso. O problema desses estudos a opo pela abordagem temtica, negligenciando-se aspectos lingsticos (por exemplo, a estrutura sinttica dos textos, o lxico especfico e as redes semnticas que se estabelecem entre os vocbulos). Da mesma maneira, no se trata do nvel propriamente discursivo, sua estrutura, sua retrica, os mecanismos de enunciao.

3. A fundao da Anlise do Discurso na FranaPara Maldidier (1990, traduzido em 1997)(), a histria da Anlise do Discurso na Frana pode ser lida atravs de uma dupla fundao, no final dos anos 60, nas figuras de Jean Dubois e de Michel Pcheux. Apesar das diferenas, os dois fundadores tinham como pano de fundo o panorama da Frana da poca.

Dubois e Pcheux eram ligados ao marxismo e poltica. Nesse final dos anos 60, Jean Dubois escreveu o texto que considerado como manifesto da AD e Michel Pcheux publicou Analyse Automatique du Discours, livro que inaugura uma abordagem transdisciplinar convocando uma teoria lingstica, uma teoria da histria e uma teoria do sujeito.

Nos dois autores, problematiza-se a relao entre o objeto (discurso) e o dispositivo de anlise, no entanto as diferenas entre as propostas desses dois fundadores explicam os rumos que a Anlise do Discurso vai tomar posteriormente. Dubois era j um lexiclogo famoso, um lingista ligado universidade, criador da revista Langages. Pcheux era filsofo, ligado a Althusser, preocupado em discutir a epistemologia das cincias naquele momento em que a Lingstica vivia sua crise epistemolgica ao mesmo tempo em que o estruturalismo triunfante pregava o sonho da cincia piloto. Pcheux j via, nesse discurso triunfante da Lingstica estrutural, as transferncias metafricas para outros campos, sua apropriao e banalizao. por isso que, j no livro de 1969, Pcheux questiona a cincia piloto por meio da crtica ao corte saussureano que operou a separao entre langue e parole e levou eleio da primeira como objeto de estudos da Lingstica. Assim, a Anlise do Discurso fundada por Pcheux foi pensada como uma negao e uma superao do gesto separador de Saussure (Chevalier, 1974, p. 132).

Esse pano de fundo evidencia que Marxismo e Lingstica presidiram o nascimento da Anlise do Discurso, na Frana do final dos anos sessenta. No entanto, os dois fundadores enxergavam de maneira distinta essa relao. Para Dubois, a AD seria uma continuao natural da Lingstica; tratava-se de colocar um modelo sociolgico para estender a anlise lingstica enunciao e o dispositivo de anlise tinha como objetivo o controle das variantes de um corpus contrastivo. Para Pcheux, tratava-se de criar um novo campo de investigao e suas preocupaes eram a epistemologia, o corte saussureano, a reformulao da parole. Ao propor esse novo campo do saber, ele interroga a metodologia, prope um dispositivo analtico a fim de integrar a anlise das condies de possibilidades do discurso, dos processos discursivos. O novo campo toma um novo objeto (que no o dado emprico, que diferente de enunciado, diferente de texto): o discurso, cuja espessura opera a articulao entre o lingstico e o histrico.

Uma outra grande diferena entre as duas propostas diz respeito ao conceito de enunciao. Em Dubois h a assuno explcita da categoria da enunciao, a partir dos trabalhos de Benveniste e de Jakobson, o que determinava a incorporao do conceito de sujeito do discurso por uma via idealista, sem problematizao. J Pcheux, adotando a base marxista, pela perspectiva de Althusser, prope uma teoria no subjetiva do discurso.

No panorama histrico posterior fundao, mudanas polticas e epistemolgicas levaram a AD francesa a uma incessante reconstruo e retificao. Inquieto, Pcheux re-elaborou suas propostas, tendo como base uma reflexo sobre os contextos epistemolgicos e as filosofias espontneas subjacentes Lingstica.

4. Referncias fundadoras da Anlise do Discurso

Os trabalhos de Michel Pcheux so fonte para inmeras pesquisas em Anlise do Discurso. O que caracteriza essas abordagens , principalmente, o fato de os pesquisadores colocarem-se como tarefa a problematizao permanente das suas bases epistemolgicas. Dessa problematizao permanente decorre que o objeto da AD o discurso seja um lugar de enfrentamentos terico - metodolgicos.

Quatro nomes, fundamentalmente, esto no horizonte da AD derivada de Pcheux e vo influenciar suas propostas: Althusser com sua releitura das teses marxistas; Foucault com a noo de formao discursiva, da qual derivam vrios outros conceitos (interdiscurso; memria discursiva; prticas discursivas; etc.); Lacan e sua leitura das teses de Freud sobre o inconsciente, com a formulao de que ele estruturado por uma linguagem; Bakhtin e o fundamento dialgico da linguagem, que leva a AD a tratar da heterogeneidade constitutiva do discurso.

A natureza complexa do objeto discurso no qual confluem a lngua, o sujeito, a histria exigiu que Michel Pcheux propusesse a constituio da AD como um campo de articulao entre diferentes teorias, um campo transdisciplinar. No artigo escrito em conjunto com C. Fuchs, publicado em 1975, Pcheux apresenta o quadro epistemolgico geral da AD que, segundo ele,

reside na articulao de trs regies de conhecimentos cientficos: (a) o materialismo histrico como teoria das formaes sociais e de suas transformaes, a compreendida a teoria das ideologias; b) a lingstica como teoria, ao mesmo tempo, dos mecanismos sintticos e dos processos de enunciao; c) a teoria do discurso como teoria da determinao histrica dos processos semnticos. (...) Essas trs regies so, de uma certa maneira, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanaltica. (1975, p. 8).

As contribuies de Althusser, Foucault, Lacan e Bakhtin vo operar essa articulao entre regies do conhecimento no alicerce da AD. Levando esses pilares para a reflexo sobre a articulao entre lngua, sujeito, discurso e histria, Michel Pcheux constituiu o edifcio da Anlise do Discurso em movimentos terico-analticos nos quais o seu pensamento se aproximou desses outros trs pensadores. Essas aproximaes no devem ser vistas de forma estanque pois, como prprio da natureza do fazer cientfico, cada um desses pensadores dedicou-se construo de saberes dentro das cincias humanas e, por isso, movimentaram-se, alargando e retificando conceitos, fazendo e refazendo rumos. Do mesmo modo, ao levar para a Anlise do Discurso idias elaboradas por esses pensadores, Michel Pcheux no operou apenas uma transferncia de conceitos fabricados em outros lugares; ao contrrio, ele os interpretou e re-elaborou, criando diferenas.

4.1. O primeiro pilar: Louis Althusser

Segundo as teses marxistas, o modo de produo da vida material domina o desenvolvimento da vida social, poltica, intelectual de uma sociedade. Assim, a economia determina em ltima instncia uma formao social. Dessa base econmica surgem as classes de uma sociedade, no interior das quais h sempre relaes de dominncia e de dominao. Por isso, do ponto de vista da concepo materialista da Histria, o fator determinante na Histria , em ltima instncia, a produo e a reproduo da vida material. Para Althusser, uma ideologia no uma falsa conscincia (sentido que Marx lhe atribura), mas a maneira pela qual os homens vivem as relaes com suas condies materiais de existncia. Quatro so os traos que parecem caracterizar a ideologia: elas no so arbitrrias, mas orgnicas e historicamente necessrias (Gramsci); elas tm uma funo especfica numa formao social - ocultam e deslocam as contradies reais de uma sociedade; elas so inconscientes de suas prprias determinaes, de seu lugar no campo das lutas de classes; elas tm uma existncia material em instituies (aparelhos ideolgicos).

Cada formao ideolgica constitui um complexo conjunto de atitudes e de representaes que no so nem individuais nem universais, mas que se reportam mais ou menos diretamente a posies de classes em conflito, umas em relao com as outras. As formaes ideolgicas comportam uma ou mais formaes discursivas, isto , o que pode e deve ser dito a partir de uma dada posio em uma dada conjuntura. As palavras mudam de sentido ao passar de uma formao discursiva para outra e no podem ser apreendidas seno em funo das condies de produo, das instituies que as implicam e das regras constitutivas do discurso. Por isso, no se diz uma coisa qualquer, num lugar qualquer, num momento qualquer.

A partir dessas idias althusserianas, Pcheux elaborou um conceito de condies de produo do discurso a partir das relaes entre lngua e ideologia. Para ele, h um pr-asserido que se impe ao sujeito e vai permitir o processo de produo do discurso. a tomada de posio do sujeito falante em relao s representaes de que suporte. O sujeito no considerado como um ser individual, que produz discursos com liberdade: ele tem a iluso de ser o dono do seu discurso, mas apenas um efeito do assujeitamento ideolgico. O discurso construdo sobre um inasserido, um pr-construdo (um j-l), que remete ao que todos sabem, aos contedos j colocados para o sujeito universal, aos contedos estabelecidos para a memria discursiva.

4.2 O segundo pilar: Michel Foucault

As idias expressas por Foucault em A Arqueologia do Saber, livro publicado em 1969, so determinantes para a construo da Anlise do Discurso. Nesse livro, de carter terico-metodolgico, Foucault reflete sobre os seus trabalhos anteriores e sistematiza uma srie de conceitos determinantes para a abordagem do discurso. Por ter esse carter de reviso terico-analtica, nesse livro Foucault desenha um vasto campo de questes no interior das quais pode-se pensar uma teoria do discurso, e que pode ser resumido nos seguintes pontos:

a) o discurso uma prtica que provm da formao dos saberes e que se articula com outras prticas no discursivas;

b) os dizeres e fazeres inserem-se em formaes discursivas, cujos elementos so regidos por determinadas regras de formao;

c) como uma dessas regras, h a distino entre enunciao (jogos enunciativos que singularizam o discurso) e enunciado (unidade lingstica bsica);

d) o discurso um jogo estratgico e polmico, por meio dos quais constituem-se os saberes de um momento histrico;

e) o discurso o espao em que saber e poder se articulam (quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente);

f) a produo do discurso gerador de poder controlada, selecionada, organizada e redistribuda por procedimentos que visam a eliminar toda e qualquer ameaa a esse poder.

A partir dessas propostas, pode-se perceber que Foucault est interessado, ao propor uma arqueologia do saber, em analisar as condies de possibilidade dos discursos, o campo problemtico que lhes assinala um certo modo de existncia e que faz com que , em determinada poca, em determinado lugar, no se diga, no se diga absolutamente qualquer coisa. Essas condies de possibilidade esto inscritas no discurso elas delineiam a inscrio dos discursos em formaes discursivas. Foucault j havia analisado, nos trabalhos anteriores a maneira pela qual se tinham modificado, no fim do sculo XVIII e comeo do XIX, as formas de enunciao do discurso, o conjunto dos enunciados no mbito da formao discursiva que sustentava os saberes nessa poca. Por meio dessa anlise, Foucault estabelece explicitamente as relaes entre os dizeres e os fazeres (as prticas discursivas e as aes dos sujeitos na histria dos saberes) apontando a no-autonomia das prticas discursivas.

Em A ordem do discurso (aula inaugural proferida no College de France em 1970), Foucault prope analisar conjuntos de discursos (literrios, religiosos, ticos, mdicos, jurdicos) para neles investigar os dispositivos de interdies e controles que vigiam o aparecimento e a circulao dos sentidos na sociedade - da a idia de descontinuidade, de pluralidade de sries, de disperso dos sujeitos. Foucault assinala vrias questes que sero incorporadas Anlise do Discurso, principalmente a necessidade de pensar as relaes entre prtica discursiva e prticas no-discursivas por meio da anlise do entrelaamento de sries discursivas e da interdiscursividade. Um conceito foucaultiano que ser capital para a AD o de acontecimento discursivo: o mtodo arqueolgico prope a anlise da irrupo histrica dos conjuntos de enunciados na descontinuidade da histria. O que se pretende analisar essa emergncia de enunciados como acontecimentos que nem a lngua nem o sentido podem esgotar inteiramente (Foucault, 1986, p.32). Foucault prope buscar as regularidades para descrever jogos de relaes entre enunciados, entre grupos de enunciados, entre acontecimentos, pois o enunciado, de um lado um gesto; de outro liga-se a uma memria, tem uma materialidade; nico mas est aberto repetio e se liga ao passado e ao futuro. (1986, p.32)

Apesar de as idias da Arqueologia do Saber estarem presentes na obra inicial de Pcheux, as diferenas tericas e ideolgicas faro com que ele seja recusado por algum tempo. Sero os trabalhos de J.J. Courtine, no incio dos anos 80, que levaro Foucault definitivamente para o grupo em torno de M. Pcheux. Em artigo no qual faz um balano dessa construo da anlise do discurso fundada por Michel Pcheux, Courtine analisa as mudanas epistemolgicas e sociais ocorridas a partir dos anos 80, que levaram a AD necessidade de profundas retificaes. Para esse terico, que foi um integrante do grupo de estudos de Michel Pcheux, as idias de Foucault continuam sendo fundamentais para os rumos da AD a ser feita atualmente. Segundo Courtine, as pesquisas devem devolver discursividade sua espessura histrica e isso s possvel se elas descreverem a maneira como se entrecruzam historicamente regimes de prticas e sries de enunciados, rearticulando o lingstico e o histrico na direo apontada por Michel Foucault.

4.3 O terceiro pilar: Mikahil Bakhtin

Para Brait (2001), a obra de Bakhtin ainda se d a conhecer no ocidente. Tendo sido produzida na Rssia nas dcadas de 1930 a 1970, alm de textos dessa obra ainda no terem sido traduzidos, aqueles que foram publicados no ocidente no seguiram a cronologia do seu pensamento. A essa problemtica acrescenta-se, ainda, a forma como foi realizada a recepo da obra de Bakhtin em diferentes momentos.

Nas dcadas de 1960-1970, momento da primeira recepo de Bakhtin na Europa, as obras traduzidas incidem sobre problemas da literatura, razo pela qual ele vai ser uma referncia fundamental para os estudiosos da teoria da literatura. Uma obra de grande interesse para os estudos lingsticos que Marxismo e filosofia da linguagem, datada de 1929 e traduzida no final da dcada de 60, na verdade ter realmente repercusso na dcada de 80, quando aparece como uma forma de incorporar aos estudos lingsticos uma concepo de linguagem diferente da lingstica da imanncia, na medida em que inclua a histria e o sujeito. Assim, Bakhtin, nesse primeiro momento de sua recepo e repercusso, nos anos sessenta e setenta, tem um impacto muito mais forte sobre os estudos literrios do que sobre os estudos lingsticos. Hoje, livros de Bakhtin como Problemas da potica de Dostoivski e A obra de Franois Rabelais e a Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento, mesmo tendo a literatura como objeto principal, tomado por lingistas como fonte para a reflexo sobre gnero, polifonia, cronotopo, carnavalizao, formas de incorporao do outro linguagem, definio do "outro" bakhtiniano, vozes, etc.

Segundo Brait (2001), Marxismo e filosofia da linguagem a obra que chama a ateno dos lingistas e que realmente representa um marco, uma mudana de paradigma. A partir da concepo de signo como arena de luta de classes que recupera para os lingistas a dimenso histrica, social e cultural da linguagem nesse livro h captulos sobre a sintaxe enunciativa das formas de citao, das formas de incorporao do outro, da alteridade constitutiva da linguagem, bem como os germens do conceito de gnero, aspecto que bem mais tarde chamar a ateno desses mesmos lingistas.

No interior do grupo de Michel Pcheux, as discusses sobre as propostas de Bakhtin ocorreram no final dos anos 70, e ele foi visto, pela maioria dos integrantes, como um pensador que trazia uma grande contribuio aos estudos de anlise do discurso. Michel Pcheux, no entanto, no concordava com a crtica que Bakhtin faz a Saussure, por meio da idia de objetivismo-abstrato. Para Pcheux, Bakhtin tende a anular a dimenso prpria da lngua: opondo ao sistema abstrato de formas lingsticas o fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao e dos enunciadores, ele conduz fuso da lingstica em uma vasta semiologia (Maldidier, 1990). Pcheux entendia que Saussure deveria ser considerado como o inaugurador da cincia da linguagem e, por isso, em torno das propostas saussureanas deveriam continuar a serem gestadas as grandes questes do formalismo e do sujeito, a possibilidade de pensar a singularidade do sujeito na lngua, assim como a articulao entre a lngua e o inconsciente. O ponto terico fundamental, em torno do qual se assentam as crticas de Pcheux a Bakhtin, o modelo bakhtiniano da interindividualidade, que tem na sua base a idia de interao scio-comunicativa. Para Pcheux, a produo do sentido no pode ser pensada na esfera das relaes interindividuais; do mesmo modo, ela no pode ser tomada em relaes sociais pensadas como interao entre grupos humanos.

Apesar das ressalvas de Pcheux, a partir dos anos 80, as propostas bakhtinianas sero incorporadas pelo grupo. Essa incorporao vir atravs dos trabalhos de J. Authier-Revuz e trar para a AD a idia de heterogeneidade do discurso, indicando uma via para a anlise das relaes entre o fio do discurso (intradiscurso) e o interdiscurso, na anlise das no-coincidncias do dizer.

4.4. Um atravessamento constitutivo: Lacan

Alm desses trs pilares (Althusser, Foucault, Bakhtin) que, a seu tempo e de maneiras diversas contriburam para o desenvolvimento da AD, desde o incio, a obra de M. Pcheux atravessada constitutivamente pelas formulaes da psicanlise, pela releitura que Lacan faz da obra de Freud. Encontramos, desde o livro de 1969, os conceitos de formaes imaginrias, de simblico, de inconsciente. A presena da psicanlise especialmente visvel no livro escrito por Pcheux juntamente com F. Gadet (La langue introuvable), no qual h a referncia fundamental a J.C. Milner e a seu livro O amor da lngua.

5. A Anlise do Discurso no Brasil

O que se entende, hoje, por anlise do discurso, no Brasil, bastante amplo. No que respeita aos trabalhos filiados AD francesa ou, como prefervel, AD derivada de Michel Pcheux eles vm-se desenvolvendo desde o final dos anos 70. Eni Orlandi uma referncia obrigatria, responsvel pela introduo dessa linha no Brasil, pela formao de inmeros pesquisadores, pela divulgao de trabalhos filiados tradio de Pcheux. Evidentemente, os trabalhos brasileiros tm aproximaes e distanciamentos em relao queles produzidos pelo grupo de M. Pcheux, pelo motivo nada simples de que as movimentaes tericas so determinadas pela Histria. O Brasil tem outra Histria e, por isso, outra Anlise do Discurso Uma razo para essa diferena temporal: trazida para o Brasil nos anos 80, quando na Frana a AD j superara muitos dos seus conceitos iniciais e j atravessara as trs pocas, os trabalhos brasileiros tm aportes dos vrios momentos da constituio da AD. Outra caracterstica da Anlise do Discurso brasileira derivada da forma como ela, historicamente, se relacionou com a Lingstica brasileira: tendo crescido e germinado em um solo em que a Lingstica era dominada pelas tendncias que Pcheux chamou de logicistas, a AD brasileira criou um campo de resistncias e de confrontos. A partir dos anos 90, com a superao do paradigma logicista, muitos estudos, dentro da Lingstica, tomaram objetos diferenciados, que passaram a ter em comum a denominao de discurso (o texto oral ou escrito, a conversao, a interao sociolingstica, etc.). Essa denominao comum fez que as abordagens do discurso se tornassem dominantes e quase tudo passou a ser rotulado de anlise do discurso. A indicar o campo polmico que sempre caracterizou a AD derivada de Pcheux, essa mudana de paradigma, no entanto, no ajudou na compreenso nem da histria nem da epistemologia dos trabalhos filiados a essa tradio. Pelo contrrio, entre os lingistas que afirmam fazer anlise do discurso, acirrou-se a luta pelas demarcaes territoriais. Enquanto isso, os lingistas que afirmam no trabalhar com anlise do discurso entendem-na como moda passageira. Essa hegemonia dos trabalhos de anlise do discurso na Lingstica traz conseqncias muito interessantes s representaes atuais sobre o campo dos estudos da linguagem que sempre se recobriu pela Lingstica. Uma delas o fato de persistir a idia de que AD no lingstica num momento em que a maioria dos pesquisadores, afirma, ao mesmo tempo, seu pertencimento ao campo da Lingstica e rotula seus trabalhos de anlise do discurso. E isso, surpreendentemente, convive com a idia de que AD moda.

Esses discursos evidenciam, no mnimo, que a escrita da histria da AD no Brasil um fascinante campo de confrontos terico-metodolgicos. Um trabalho de investigao sobre a AD feita no Brasil, que se debruce sobre esse campo e tente enxergar a sua textura histrica, um desafio permanente, que ainda est por ser feito. Por ora, prudente fugir dos lugares comuns.

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PCHEUX, M. Sur les contextes pistemologiques de lanalyse de discours. In: Mots 9. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1984. Trad. bras. Em Escritos 4. Campinas: Labeurbe/Nudecri, 1999.

ROBIN, R. Histria e Lingstica. So Paulo: Cultrix, 1977.

Docente da Universidade Estadual Paulista UNESP, campus de Araraquara, SP.

() Robin, Regine. Histria e Lingstica. So Paulo: Cultrix, 1977.

() Maingueneau, Dominique. Iniciao aos mtodos de anlise do discurso. Paris: Hachette, 1976.

() Orlandi, E. A anlise do discurso: algumas observaes. Em: DELTA, vol. 2, n 1, 1986.

Segundo Robin, h, evidentemente, excees. Alguns historiadores no trabalharam com sries temticas, mas com uma tipologia de texto; neles a estrutura lingstica do texto levada em considerao: pela mudana do tipo de discurso que o pesquisador vai inferir as grandes rupturas da sensibilidade de uma certa poca. Vovelle, por exemplo, analisou testamentos e verificou que na poca barroca eles eram pomposos, o sujeito fazia splicas aos santos de devoo. A partir de 1760 houve uma laicizao (despovoou-se o panteo dos intercessores) e uma individualizao do discurso que apontam para uma descristianizao da idia da morte expressa discursivamente nos testamentos.

() MALDIDIER, D. Elementos para uma histria da AD na Frana. Em: Orlandi, E. (org.). Gestos de Leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

Trata-se do artigo Lexicologia e anlise de enunciado, traduzido em Orlandi, E. (org). Gestos de Leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

A partir da clssica discusso althusseriana sobre os aparelhos ideolgicos do Estado, Pcheux desenvolve uma teoria do sujeito e da sua interpelao pela ideologia. No h sujeitos individuais, no discurso, h formas-sujeito produzidas pelo assujeitamento ideologia.

Principalmente a problematizao do conceito de histria, memria, interpretao (com Courtine, principalmente) e a aproximao com J. Authier-Revuz (cujo trabalho permite pensar as relaes entre o intradiscurso e o interdiscurso).

H vrios textos de Michel Pcheux nos quais ele discute as filiaes, as vizinhanas, os contextos epistemolgicos da Anlise do Discurso. Traduzidos para o portugus h, por exemplo, os seguintes textos: Os contextos epistemolgicos da Anlise do Discurso; H uma via para a Lingstica fora do logicismo e do sociologismo?; A desconstruo das teorias lingsticas.

Um balano dessa construo pode ser lida no texto escrito por Pcheux em 1983 e traduzido para o portugus: PCHEUX, M. AAD: trs pocas. In: GADET, F. e HAK, F. (org.). Por uma anlise automtica do discurso. Uma introduo obra de M. Pcheux. Campinas: Pontes, 1990.

PCHEUX, M. & FUCHS, C. Mises aux points et perspectives propos de lAAD. In: Langages 37. Paris: Larousse, maro de 1975.

Analisando as relaes entre o fazer da cincia e os movimentos histricos, afirma de Certeau (1975, p. 72): aqueles que acreditam que a cincia autnoma (...) consideram como no pertinente a anlise das determinaes sociais, e como estranhas ou acessrias as imposies que ela desvela. Essas imposies no so acidentais. Elas fazem parte da pesquisa. Bem longe de representarem a intromisso de um estranho no Santo dos Santos da vida intelectual, formam a textura dos procedimentos cientficos.

Uma discusso mais extendida dessas aproximaes, distanciamentos e re-elaboraes operadas por Pcheux pode ser lida em GREGOLIN, M. R. O sentido e suas movncias. In:___ (org). Anlise do Discurso: entornos do sentido. So Paulo, Araraquara: Acadmica/FCL-UNESP, 2001.

Foucault j analisara a constituio do saber sobre a medicina e a loucura (A Histria da Loucura e O Nascimento da Clnica) e em As Palavras e as Coisas ele analisara a mudana dos saberes da episteme clssica para a episteme moderna (passagem do sculo XVIII ao sculo XIX) com relao aos temas da vida, da linguagem e do trabalho.

Essas propostas de Foucault foram criticadas pelos marxistas althusserianos e motivou a recusa inicial de Pcheux em tomar os conceitos foucaultianos. Para os marxistas, a anlise de Foucault feita em termos de justaposio: ele justape elementos da infra-estrutura (processo econmico, trabalho industrial), que colocam em jogo elementos de classe (processos sociais), elementos da superestrutura jurdica (regras da jurisprudncia), elementos da superestrutura ideolgica (sistemas de normas, formas de comportamento). Como se hierarquizam esses diversos nveis para funcionarem na prtica discursiva? Perguntavam os althusserianos. Evidentemente, Foucault no ficar indiferente a essas crticas, e sua obra posterior ir voltar-se para a discusso dessa problemtica apontada pelos althusserianos e a muitas outras.

Foucault, M. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de A Sampaio. So Paulo: Ed. Loyola, 1996.

E, explicitamente, Pcheux ir referir-se ao emprstimo do conceito de formao discursiva em vrios de seus textos.

Principalmente o trabalho desenvolvido em Courtine, J.J. Le discours communiste adres aux chrtiens. In: Langages,

COURTINE, J.J. O discurso intangvel: marxismo e lingstica (1965-1975). Trad. rs. De Heloisa M. Rosrio. In: Cadernos de Traduo 6. Porto Alegre: UFRGS, 1999.

Brait, B. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: Gregolin, M.R. (org.). Anlise do discurso: as materialidades do sentido. So Carlos: Claraluz, 2001.

BAKHTIN,M. (VOLOCHINOV) (1929/1997) Marxismo e filosofia da linguagem Trad. M. Lahud e Yara F. Vieira. 8 ed. So Paulo, Hucitec.

Segundo Maldidier (1990), foi em 1968, em um artigo intitulado Le mot, le dialogue, le roman, que Julia Kristeva introduziu Bakhtin na Frana. Essa primeira recepo concerne essencialmente a literatura, o terreno da semitica literria e das prticas significantes mltiplas. Os lingistas puderam ler, no n 12 de Langages (preparado por Roland Barthes, 1968) um artigo de Bakhtin chamado O enunciado no romance. Nos anos 1980 comea um segundo perodo de descoberta de Bakhtin, marcada pela multiplicao das tradues e dos estudos e a generalizao das referncias em todos os campos, notadamente na lingstica. Um pandialogismo parece, ento, se instalar, no qual as correntes as mais diversas se apropriam dele. Remeto, para aprofundamento dessa questo, leitura que Jacqueline Authier props em DRLAV, 26 em 1982.

Se h um descompasso entre a produo bakhtiniana em russo e sua traduo na Europa dos anos 60, no Brasil esse descompasso ser ainda mais marcante. A ditadura militar no permitiu que sua obra aqui circulasse antes da abertura poltica e ela s vai ser traduzida nos final dos setenta e incio dos anos 80. Como na Europa, num primeiro momento, Bakhtin ser referncia para os estudos literrios. A descoberta de Bakhtin pela lingstica brasileira ocorrer a partir dos anos 90.

GADET, F. e PCHEUX, M. La lengua de nunca acabar. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1986.

MILNER, J.C. O amor da lngua. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1987.

Chamar os trabalhos derivados do grupo em torno de Pcheux de AD francesa aplicar um rtulo que apaga a heterogeneidade dos estudos realizados na Frana entre os anos 60 e 80. Emprega-se, na expresso AD francesa, uma metonmia pois, na Frana, nessa poca, havia outros pesquisadores que pensavam em analisar o discurso. Entre eles, pode-se citar Barthes, Todorov, Greimas, Kristeva e outros. Cada um pensou essa anlise do discurso de maneira diferente.

A AD Lingstica? Essa pergunta, no Brasil, no uma tautologia. Ela deriva da histria da Lingstica no Brasil, de sua institucionalizao como disciplina. Ela sempre colocou em causa a legitimidade da Anlise do Discurso, sua insero no campo dos estudos da linguagem dominado pela idia de autonomia da Lingstica. Tomando a autonomia como critrio de cientificidade, essa pergunta indagou, sempre, as vizinhanas e as filiaes da AD brasileira.

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