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  • coordenação editorialAugusto Massi Júlio Castañon GuimarãesMurilo Marcondes de Moura

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  • MuriloMendes

    A idade do serrote

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  • Copyright © 1972 by herdeiros de Murilo Mendes Copyright “A nova face de Murilo Mendes”, de Paulo Rónai, publicado no Jornal do Brasil de 15 nov. 1969 © by herdeiras de Paulo Rónai

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    capa e projeto gráficoCelso Longo e Luisa Prat (assistente)

    cronologiaÉrico Melo

    preparaçãoMárcia Copola

    revisãoIsabel CuryHuendel Viana

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Mendes, Murilo, 1901-1975.A idade do serrote / Murilo Mendes. — 1ª ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2018.isBn 978-85-359-3159-4

    1. Memórias autobiográficas 2. Mendes, Murilo, 1901-1975 3. Poetas brasileiros — Biografia.

    18-18904 cdd-869.803

    Índice para catálogo sistemático:1. Poetas : Reminiscências : Literatura brasileira 869.803Maria Paula C. Riyuso — Bibliotecária — crB–8/7639

    [2018]Todos os direitos desta edição reservados àeditora scHWarcZ s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone: (11) 3707-3500www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brfacebook.com/companhiadasletrasinstagram.com/companhiadasletrastwitter.com/cialetras

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  • Capa da primeira edição de A idade do serrote, lançada em 1968, com reprodução da obra de Farnese de Andrade.

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  • Quarta capa da primeira edição de A idade do serrote.

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  • 9 Origem, memória, contacto, iniciação

    15 Etelvina17 A rainha do sabão19 Isidoro da flauta21 Sebastiana24 Analu26 Amanajós29 Marruzko33 Dudu35 Dona Coló37 Belmiro Braga40 Júlio Maria43 Tio Chicó47 Religião49 Primo Alfredo54 Cláudia60 Momentos & frases63 Primo Nélson68 Dona Custódia71 Desdêmona72 Margui76 Prima Julieta79 Tio Lucas82 Florinda e Florentina85 Confissões88 Adelaide91 Asta Nielsen93 Lindolfo Gomes95 A lagartixa98 Carmem

    102 Sinhá Leonor108 Abigail112 Hortênsia115 Mariana e Alfanor119 A rua Halfeld126 Teresa129 Almeida Queirós136 O tribunal de Vênus139 O professor Aguiar143 Meu pai147 O olho precoce

    151 Notas do autor153 Sobre esta edição155 Murilo Mendes,

    temponauta Carlos Drummond

    de Andrade158 Uma carta para

    Drummond Murilo Mendes159 A nova face de

    Murilo Mendes Paulo Rónai162 O humor e o serrote

    na janela do caos Reinaldo Moraes171 Cronologia198 Sugestões de leitura199 Créditos das imagens

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  • 9

    Origem, memória, contacto, iniciação

    1.

    O dia, a noite.

    Adão e Eva — complementares e adversativos.

    Meus pais: Onofre e Elisa Valentina, Adão e Eva descendentes.

    A multiplicação dos pais. A multiplicação dos peitos. A multipli-cação dos pães. A multiplicação dos pianos.

    O jardim-pomar da casa paterna, limite traçado ao meu incipien-te saber. O sabor das frutas. A árvore da ciência do bem e do mal ao meu alcance. Um esboço de serpente pronta a armar o bote. Outros jardins-pomares da casa de tias e primas.

    Meus irmãos, com um charme que subsiste até hoje. Tangência e contaminação do afeto.

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    As babás. A noite obscura do corpo. Histórias, parlendas, orações. Etelvina. Sebastiana.

    Lili de Oliveira senta-me nos seus joelhos. O fogo sobe no meu corpo.

    Temporal sobre a cidade. Chuva de granizos. O arco-íris no morro do Imperador. O padre Matias, redentorista alemão de alta esta-tura, arregaça a batina para vir à casa do meu pai na rua alagada.

    “Aussitôt que l’idée du Déluge se fut rassise.”

    O circo. Amanajós. O balão. O quarto escuro. O canto do Magnificat. Ciranda cirandinha. O bicho-papão. A mula sem cabeça. Os nomes do demônio. As meninas. A roda do arco. Pianolas. Quindum-sererê.

    Os primeiros Carnavais: Os mascarados. Driblar a vigilância pa-terna. As batalhas de confete e lança-perfume. Começo da vida

    “autre”.

    Pique. Piorra. Gude. Chicote queimado. Bilboquê.

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    Sarampo. Caxumba. Catapora. Coqueluche.

    As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio uma serraria.

    Primeiros instrumentos hostis: serra, serrote, machado, martelo, tesoura, torquês: via-os por toda a parte, símbolos torcionários.

    Meu pai, grande coração comunicante. Servidor público. Do pró-ximo. Escrivão do registro de títulos e hipotecas da cidade de Juiz de Fora. Minha mãe, afeiçoada ao canto e ao piano, morre de parto com vinte e oito anos. Torna-se constelação. Minha se-gunda mãe, Maria José, grande dama de cozinha e salão, resume a ternura brasileira. Risquei do vocabulário a palavra “madrasta”.

    Cedo, a iniciação às Parcas: vejo morrer um primo na casa paterna.

    Desdêmona e Ipólita, as ídolas deitadas. De origem europeia.

    O voyeur precoce, o curioso. Sempre que podia, espiando formas no buraco da fechadura. Que horizonte!

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    Captava com o ar mais sonso do mundo notícias de Eros.

    O grande sonho: ir do Brasil à China a cavalo.

    Desde menino queria descoroar os imperadores, alguns deles de resto já abolidos.

    Passagem do cometa de Halley. A subversão da vista. A primeira ideia do cosmo.

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    2.

    Nasci oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês e ano, isto é da competência do registro civil. Não me vi nascer, não me recordo de nada que se passou naquele tempo. Na verdade, nas-cemos a posteriori. No mínimo uns dois anos depois. Mesmo por-que, antes era o dilúvio.

    Nasci às margens de um rio-afluente de águas pardas, o Paraibuna, que fazia muita força para atingir os pés do pai Paraíba. Dediquei-

    -lhe na adolescência um minúsculo epigrama.“Eu tenho uma pena do rio Paraibuna.”

    … Superadas pianolas, minhas avós de carne e osso, ó vós, ovas sem ovações, mulheres-avós que eu nunca vi, desovadas em rios dioscuros da obscura, difícil Minas de pedra, que me fazia doer o peito por falta de mar; vindas de vulvas montanhosas e de falos insapientes da importância da futura inflação humana e financei-ra do Brasil; bisavós remotas casadas com gigantones cabezudos; deixando cair as fazendas em usucapião, abolindo os domínios Paraopeba e Congonhas.

    No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que não devorava livros — e os livros não são homens, não contêm a substância, o próprio sangue do homem? — no tempo em que não era antropófago, isto é, no meu primeiro tempo de criança,

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    as têmporas de Antonieta me tentavam e me alienavam, a mim o atento: que tento tenho, e quanto.

    As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia.As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da hortelã.

    As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As têmporas do tempo. O tempo da onça.

    As têmporas da onça. O tampão do tempo.

    O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres temporãs.

    O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, e que não é aquele tempo. Temporizemos.

    O filme dinamarquês, o italiano e o francês ilustraram minha in-fância. Asta Nielsen, “alma”, corpo suplente, gargantilha de velu-do negro, amada sem reserva. Pina Menichelli: profunda cabelei-ra a base de duas pernas. Gabrielle Robinne, proustianamente, o charme irreversível de Paris.

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    Etelvina

    Aparentemente tudo principiou com Etelvina, ama de leite dos meninos mais velhos, precursora de Sebastiana. O nome Etelvina pertence a uma eternidadezinha anterior à minha primeira no-tícia de Deus, do cosmo; Etelvina, placa recebendo nossas mais remotas impressões digitais; excluída do elenco das mulheres diademadas. De suas profundezas trouxe-nos a primeira ideia da cor preta, a noite e adjacências. Fazia escuro, fazia medo no corpo de Etelvina. Seu leite trouxe-nos a primeira ideia da cor branca. Etelvina implicava síntese da cor e ausência da cor. Penso mes-mo que Etelvina trouxe-nos o fogo, a mais remota imagem que tenho dele: vejo-a que acende no quadrado da cozinha uma lasca do brinquedo subversivo furtado aos deuses. Etelvina era enig-mática, sentada em silêncios duros, abrindo-se somente quando empurrada; mesmo assim foi-nos ajudante da palavra, recordo-

    -me que mencionava geringonça ou antes giringonça, papão, cocô, mula sem cabeça, brabuleta. Etelvina serviu-nos de primi-tiva toca e santuário; aqueles peitos aliciantes, beiços vermelhos, olhos de terror, isto é, do nosso terror, faziam de emblemas.

    Etelvina foi a primeira a cantar para nós o tristíssimo “Quindum sererê”:

    Fui na fonte de meu pai, Quindum sererê,

    Fui lavar meu rosarinho,Quindum sererê,

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    Lá o bicho me pegou, Quindum sererê,

    Me pôs dentro dum surrão, Quindum sererê.

    Canta canta meu surrãoQue eu te dou com o meu bordão.

    (bis)

    Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começava; era uma vez, e será para todo o sempre.

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