A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas

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João Pereira da Silva Neto A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas Dissertation Fakultät für Kultur- und Sozialwissen- schaften

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Joatildeo Pereira da Silva Neto

A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas

Dissertation

Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissen-schaften

JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO

A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DAS PERSPECTIVAS

FERNUNIVERSITAumlTHAGEN

JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO

A PERSPECTIVA DO VALOR

E O VALOR DAS PERSPECTIVAS

FORTALEZA

2019

Tese apresentada como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia junto

ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Instituto de Cultura e Arte - ICA

Universidade Federal do Cearaacute ndash UFC

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Conhecimento e

Linguagem

A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DASPERSPECTIVAS

DISSERTATION

zur Erlangung

des akademischen Grades eines Doktors der Philosophie (Dr phil) im Rahmen des FILORED-Doppelpromotionsprogramms

der Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissenschaften der FernUniversitaumlt in Hagen sowie der Universidade Federal do Cearaacute Instituto de Cultura e Arte

Programa de Poacutes-graduacatildeo em Filosofiacutea

vorgelegt von

Joatildeo Pereira da Silva Neto

aus Fortaleza

Betreuer Prof Dr Thomas Soumlren Hoffmann (Hagen)Prof Dr Fernando R de Moraes Barros (Fortaleza)

Promotionsfach Philosophie

RESUMO

A presente tese tem por objetivo uma investigaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas acerca da

verdade e do conhecimento tomando como eixos de investigaccedilatildeo o problema dos valores e

a relaccedilatildeo entre a perspectiva e a vida no pensamento nietzschiano Esta investigaccedilatildeo que

partindo dos textos de juventude nietzschianos chega ateacute seus uacuteltimos escritos poacutestumos

acompanha o entrelaccedilamento das conclusotildees nietzschianas acerca da concepccedilatildeo tradicional

de verdade e o niilismo Nesta leitura o conhecimento aparece como uma forma de

atividade humana que passa por uma reavaliaccedilatildeo a partir das conclusotildees nietzschianas

acerca da necessidade de se superar o niilismo Para Nietzsche a concepccedilatildeo de

conhecimento tradicional estaria fundada em valores que satildeo produzidos a partir da

necessidade de conservaccedilatildeo da espeacutecie humana entendidos pelo filoacutesofo como

ineficientes para sobrepujar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores Assim a menos que

a ciecircncia e a filosofia se libertassem das amarras de uma concepccedilatildeo de verdade e

conhecimento que culminaria na imobilizaccedilatildeo da vontade todo procedimento filosoacutefico e

cientiacutefico estaria fadado a uma corrupccedilatildeo inevitaacutevel de seus fundamentos e valor O

perspectivismo eacute entendido aqui como a caracteriacutestica fundamental de uma forma de se

fazer filosofia que afastando-se do dogmatismo da filosofia tradicional e da ciecircncia

aproxima-se de uma forma de arte Desta maneira o perspectivismo nietzschiano teria na

criaccedilatildeo dos valores seu objeto fundamental Assim com base na pressuposiccedilatildeo de uma

futura filosofia dos valores que tem seus fundamentos na compreensatildeo da perspectiva

como atitude comprometida com valores de fortalecimento da vida o filoacutesofo procura

contrapor-se agrave hegemonia da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento que tem seus

fundamentos em valores de decadecircncia

Palavras chave Verdade conhecimento perspectiva valor perspectivismo

ABSTRACT

The aim of this thesis is to investigate Nietzschersquos conceptions about truth and knowledge

taking the problem of values and the relation between perspective and life in Nietzschersquos

thinking as research axes This research starting from the Nietzschean texts of youth

reaches its last posthumous writings accompanying the interweaving of the Nietzschean

conclusions about the traditional conception of truth and nihilism In this reading

knowledge appears as a form of human activity that undergoes a reappraisal based on the

Nietzschean conclusions about the need to overcome nihilism For Nietzsche the

conception of traditional knowledge would be based on values that are produced from the

need of conservation of the human species that are understood by the philosopher as

inefficient to overcome the value devaluation process Thus unless science and philosophy

were freed from the bonds of a conception of truth and knowledge that would culminate in

the immobilization of the will every philosophical and scientific procedure would be

doomed to an unavoidable corruption of its foundations and value Perspectivism is

understood here as the fundamental characteristic of a way of making philosophy which

moving away from the dogmatism of traditional philosophy and science approaches itself

of an art form In this way the Nietzschean perspectivism would have in the creation of

values its fundamental object Thus based on the presupposition of a future philosophy of

values which has its foundations in the understanding of perspective as an attitude

committed to life-strengthening values the philosopher seeks to opposite itself to the

hegemony of the traditional conception of knowledge which has its foundations in values

of decadence

Keywords Truth knowledge perspective value perspectivism

Iacutendice

Introduccedilatildeo10

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia21

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica28

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia38

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica52

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana68

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral74

21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira78

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade92

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor108

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana113

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo124

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor143

31 O niilismo como crise dos valores morais146

32 Os niilismos nietzschianos150

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade162

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo177

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar192

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo203

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas215

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade219

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores228

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas238

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva245

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo250

5 Conclusatildeo262

6 BIBLIOGRAFIA274

Notas sobre as citaccedilotildees da obra de Nietzsche

Para a citaccedilatildeo das obras de Nietzsche adotamos a convenccedilatildeo proposta pela ediccedilatildeo

criacutetica das obras completas do filoacutesofo em NIETZSCHE Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari BerlimNew

York Walter de Gruyter 1988 doravante referida como KSA Os tiacutetulos das obras do autor

satildeo dados entre parecircnteses por meio de siglas em alematildeo seguidas de siglas em portuguecircs

para facilitar a leitura das referecircncias

GTNT ndash Die Geburt der Tragoumldie O Nascimento da Trageacutedia (1872)

PHGFT ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen A Filosofia na EacutepocaTraacutegica dos Gregos (1873)

WLVM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinne Sobre Verdade eMentira no Sentido Extra-moral (1873)

MAMHDH ndash Menschliches Allzumenschliches Band I Humano Demasiado HumanoVol I (1878)

MA ndash Morgenroumlte Aurora (18801881)

FWGC ndash Die froumlhliche Wissenschaft A Gaia Ciecircncia (188182 e 1886)

ZaZA ndash Also sprach Zarathustra Assim Falou Zaratustra (188385)

JGBABM ndash Jenseits von Gut und Boumlse Para Aleacutem de Bem e Mal (188586)

GMGM ndash Zur Genealogie der Moral Para a Genealogia da Moral (1887)

GDCI ndash Goumltzen-Daumlmmerung Crepuacutesculo dos Iacutedolos (1888)

ACAC ndash Der Antichrist O Anticristo (1888)

EHEH ndash Ecce Homo (1888)

As referecircncias seratildeo as usuais em estudos sobre Nietzsche 1) Na maioria delas o

algarismo araacutebico apoacutes o signo ldquosectrdquo indicaraacute o aforismo ou seccedilatildeo da obra 2) Na maioria

delas o algarismo romano anterior ao araacutebico remeteraacute ao livro podendo indicar um

capiacutetulo ou uma dissertaccedilatildeo a depender da forma escolhida por Nietzsche para a divisatildeo

da obra citada 3) Para as referecircncias aos fragmentos poacutestumos nos casos de citaccedilotildees da

ediccedilatildeo de estudo ColliMontinari o algarismo romano indicaraacute o volume da ediccedilatildeo KSA e

o araacutebico o nuacutemero do fragmento Quando ao inveacutes da ediccedilatildeo KSA for utilizada outra

ediccedilatildeo para a citaccedilatildeo dos fragmentos poacutestumos seraacute utilizada a notaccedilatildeo (NFFP ano do

fragmento grupo [nuacutemero do fragmento]) Exceccedilatildeo feita as citaccedilotildees referentes a partir da

ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas de juventude de Nietzsche organizadas por

METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a sigla BAW seguida do nuacutemero

do volume em algarismos hindu-araacutebicos e da indicaccedilatildeo da paacutegina em algarismos hindu-

araacutebicos Sempre que disponiacutevel seguimos as traduccedilotildees para o portuguecircs das obras de

Nietzsche jaacute publicadas a maioria por Paulo Ceacutesar de Sousa para a Editora Companhia das

Letras agraves quais fazemos referecircncia tambeacutem por meio de siglas Outras traduccedilotildees utilizadas

satildeo as seguintes

Obras incompletas Trad e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho seleccedilatildeo de textos de

Geacuterard Lebrun posfaacutecio de Antocircnio Candido Satildeo Paulo Abril Cultural 2ordf ed 1979 (col

Os Pensadores)

O nascimento da trageacutedia Trad de Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras

1999

Assim falou Zaratustra Trad de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-

Dumaraacute 2000

O Anticristo Trad de David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016

Para a citaccedilatildeo dos poacutestumos foram utilizadas as traduccedilotildees

Fragmentos poacutestumos 1885-1887 Vol VI Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova editora

Forense Universitaacuteria Rio de Janeiro 2013

Fragmentos do espoacutelio junho de 1882 a inverno de 18831884 Traduccedilatildeo de Flaacutevio R

Kothe Editora UNB Brasiacutelia 2004

Fragmentos poacutestumos 1885-1889 2ordf Edicioacuten Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego

Saacutenchez Meca traduccioacuten introduccioacuten y notas de Juan Luis Vermal y Joan B Llinares

editora Editorial Technos Madrid 2008

0

Introduccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano eacute frequentemente relacionado agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo Esta sentenccedila que apesar de natildeo ocorrer em nenhuma obra

publicada reuacutene concisatildeo e profundidade tiacutepicas da filosofia nietzschiana aparece

recorrentemente entre os poacutestumos de 1885-1886 Uma apariccedilatildeo importante desta

expressatildeo se daacute em (NFFP 1885-1886 2[131]) onde apoacutes refletir acerca da possibilidade

de se comparar a ldquoantiacutetese do mundo que veneramos e do mundo que vivemos que mdash

somosrdquo Nietzsche conclui que apenas restariam duas saiacutedas para o homem ldquoeliminar ou

bem nossas veneraccedilotildees ou bem a noacutes mesmosrdquo

Abdicar da alta estima que dedicamos agrave realidade nessa leitura significa tomar a

realidade como aquilo que ela de fato eacute apenas um resultado de nossa avaliaccedilatildeo Assim o

reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo aparece para Nietzsche como a aceitaccedilatildeo de que

nossa proacutepria realidade depende da avaliaccedilatildeo em um niacutevel fundamental como uma ilusatildeo

que podemos reconhecer como tal mas da qual natildeo poderiacuteamos nos desvencilhar Por outro

lado para o filoacutesofo a compreensatildeo da realidade como dependente de nossa forma de

compreender estaacute diretamente ligada agrave compreensatildeo do valor desta mesma realidade assim

como de nossa capacidade de criar uma realidade a partir de nossas necessidades Ou seja

na leitura do filoacutesofo dado que o mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo nossa veneraccedilatildeo

em nossa consideraccedilatildeo da realidade nos restaria abdicar da alta estima que dedicamos agrave

nossa avaliaccedilatildeo ou abdicar de nossa existecircncia o que seria exatamente o niilismo1 Nesta

leitura a abdicaccedilatildeo de si mesmo como ponto de valoraccedilatildeo de veneraccedilatildeo seria a forma

mais elevada de desvalorizaccedilatildeo dos valores necessaacuterios agrave vida comumente identificados

1 A etimologia nos diz que ldquoniilismordquo (Nihilismus em alematildeo) proveacutem do latim nihil que significaexatamente nada De onde se poderia deduzir que o niilismo diz respeito a afirmaccedilatildeo do nada ou em certosentido a negaccedilatildeo de tudo O significado do termo niilismo na atualidade estaacute ligado de forma irredutiacutevel agravefilosofia nietzschiana No entanto a compreensatildeo nietzschiana mesma do niilismo eacute profundamente marcadapela literatura russa de quem a maioria dos comentadores acredita que o autor teria tomado o termo Sabe-seque Dostoievski a quem Nietzsche leu bastante utilizou o termo e mais do que isso caracterizou muito desua obra pela permanecircncia de uma certa ausecircncia de Deus ausecircncia que em Nietzsche estaraacute ligada de formainextrincaacutevel com o niilismo No entanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que autiliza para caracterizar um de seus personagens em seu romance Pais e Filhos

1

pelo filoacutesofo como o caraacuteter aparente e perspectivo da proacutepria realidade Assim o filoacutesofo

conclui que a ausecircncia de fatos seria decorrecircncia da necessidade de avaliar

A reflexatildeo nietzschiana acerca da inexistecircncia de fatos puros como realidades em

si independentes de uma estrutura de avaliaccedilatildeo se torna uma constante no periacuteodo em que

Nietzsche elabora A Gaia Ciecircncia e Assim Falava Zaratustra2 Nesse sentido podemos

afirmar que a criacutetica aos fatos como consideraccedilatildeo contraacuteria ao caraacuteter interpretativo da

realidade se reconhece como uma ideia fundamental presente na filosofia nietzschiana em

um momento decisivo da evoluccedilatildeo do pensamento desse autor

Natildeo por acaso a apariccedilatildeo mais amplamente reconhecida desta expressatildeo eacute aquela

do fragmento poacutestumo 7[60] de final de 1886 e iniacutecio de 1887 em que Nietzsche diz

ldquoContra o positivismo que permanece no fenocircmeno lsquoapenas haacute fatosrsquo eu diria natildeo precisamente

natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) A compreensatildeo fundamental da

realidade como interpretaccedilatildeo traccedilo comum ao desenvolvimento da concepccedilatildeo nietzschiana

de conhecimento e que como os poacutestumos testemunham estaacute ligada agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatosrdquo eacute entendida aqui como a afirmaccedilatildeo de que natildeo haacute verdades fundamentais e que

portanto toda aproximaccedilatildeo do mundo apenas pode ser feita por meio de uma consideraccedilatildeo

perspectivista

A curiosa contraposiccedilatildeo nietzschiana entre fatos e hipoacuteteses contraposiccedilatildeo que estaacute

presente na citaccedilatildeo e que nela anuncia algo de fundamental acerca de seu posicionamento

com relaccedilatildeo ao conhecimento e sua relaccedilatildeo com a realidade revela um traccedilo fundamental

de seu pensamento que aparece jaacute em seus escritos de juventude e que em sua filosofia

madura eacute apresentada na forma da adoccedilatildeo de hipoacuteteses como fundamentos de sua

filosofia3 De maneira geral eacute possiacutevel compreender esta abordagem por meio da adoccedilatildeo

de hipoacuteteses como concepccedilotildees fundamentais em sua filosofia como um traccedilo caracteriacutestico

2 A expressatildeo ldquonatildeo haacute fatosrdquo volta a aparecer com um sentido aproximado do sentido expresso no fragmentocitado anteriormente no fragmento poacutestumo 2[175] em que Nietzsche reflete acerca da superioridade dascausas internas em relaccedilatildeo agraves causas externas para a nossa interpretaccedilatildeo da realidade3 Com isso apenas queremos dizer que diferentemente do que ocorre em uma concepccedilatildeo filosoacuteficaconvencional em que seus conceitos principais devem ser tomados de forma dogmaacutetica os conceitosfundamentais da filosofia nietzschiana seja o conceito de Vontade de Potecircncia seja o conceito de eternoretorno seja ateacute mesmo o proacuteprio perspectivismo assumem uma expressatildeo que se diferencia daapresentaccedilatildeo de uma verdade dogmaacutetica Por exemplo o conceito nietzschiano de Vontade de Potecircncia eacuteapresentado como hipoacutetese no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal o eterno retorno por meio de umavisatildeo em Zaratustra e de uma suposiccedilatildeo no aforismo 341 de A Gaia Ciecircncia o proacuteprio perspectivismo eacuteapresentado no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia como ldquoo perspectivismo como eu o entendordquo

2

de sua filosofia perspectivista Ou seja ao compreender e interpretar a realidade a seu

modo e ao estar ciente desta determinaccedilatildeo fundamental de suas ideias o filoacutesofo teria

adotado certas suposiccedilotildees como fundamento de suas concepccedilotildees mais iacutentimas posto que

percebe natildeo poder ir aleacutem de uma apresentaccedilatildeo de verdades com caraacuteter bastante limitado

na medida em que seu pensamento se fundamenta apenas em avaliaccedilotildees especiacuteficas

Nesse sentido quando o filoacutesofo afirma na continuaccedilatildeo do fragmento citado ldquona

medida em que a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outro modo natildeo tem um sentido por traacutes de si senatildeo inumeraacuteveis

sentidosrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) e finaliza com a palavra ldquoperspectivismordquo indicaria

que esta interpretaccedilatildeo deveria ser entendida como sendo uma espeacutecie de abordagem

perspectiva do conhecimento Com isso um problema fundamental se apresenta Seria

possiacutevel para Nietzsche efetuar a criacutetica das concepccedilotildees que rejeita sendo que sua filosofia

natildeo se entende como uma descriccedilatildeo de fatos mas apenas como mais uma interpretaccedilatildeo

Compreendemos o perspectivismo4 nietzschiano5 como um tema privilegiado da

obra deste filoacutesofo Apesar desta concepccedilatildeo natildeo haver recebido em sua obra o

desenvolvimento e acabamento que se esperaria de uma concepccedilatildeo fundamental Ateacute

mesmo por conta desta falta de um acabamento da compreensatildeo nietzschiana do

perspectivismo esta concepccedilatildeo conta em sua investigaccedilatildeo com dificuldades interpretativas

bastante especiacuteficas Entre estas dificuldades o problema de sua validade enquanto uma

teoria do conhecimento6 segundo a qual a tese perspectivista seria povoada de problemas

4 Por perspectivismo nietzschiano compreendemos uma noccedilatildeo vinculada agrave compreensatildeo do filoacutesofo de quenatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees Esta compreensatildeo relaciona-se a uma reflexatildeo acerca do caraacuteterperspectivo determinado de todo pretenso conhecimento sendo por isso mesmo frequentemente referidoentre os comentaacuterios da filosofia nietzschiana como uma espeacutecie de teoria do conhecimento Assim segundoCox por exemplo ldquo(hellip) o termo foi usado jaacute em 1906 pelos editores da Vontade de poder para descrever ateoria do conhecimento de Nietzsche e posteriormente foi retomado por Vaihinger em 1911 por Heideggerem 1930 por Morgan em 1940 por Danto na deacutecada de 1960 e em quase todos os comentaristas europeus eanglo-americano desde entatildeordquo (COX 1999 paacuteg 110) 5 Concepccedilatildeo inacabada que pertence de maneira necessaacuteria ao pensamento de maturidade de Nietzsche masque tem suas raiacutezes em suas primeiras incursotildees sobre o problema da verdade e do conhecimento6 O aparente paradoxo do perspectivismo se coloca na forma de sua autorreferecircncia que eacute expresso assim emA Companion to Epistemology no verbete Perspectivism ldquoEacute Frequentemente afirmado que o perspectivismose autorrefuta Se a tese de que todos os pontos de vista satildeo interpretaccedilotildees eacute verdadeira entatildeo argumenta-sehaacute ao menos um ponto de vista que natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Se por outro lado a tese eacute ela mesma umainterpretaccedilatildeo entatildeo natildeo haacute razatildeo para acreditar que ela eacute verdadeira e se segue novamente que nem todoponto de vista eacute uma interpretaccedilatildeordquo O conjunto de questotildees que se extrai da anaacutelise deste problemafundamental tem sido o tema de extensos trabalhos de autores como Maudemarie Clark Heidegger Derrida eKaufmann soacute para citar alguns comentadores da filosofia nietzschiana Mais ainda Reginster em Theparadox of Perspectivism assinala que os uacuteltimos vinte anos da pesquisa nietzschiana realizados em liacutengua

3

teoacutericos com base nos quais se costuma considerar agrave posiccedilatildeo nietzschiana acerca do

conhecimento como inescusavelmente paradoxal

Este problema pode ser resumido por meio da consideraccedilatildeo do modo como a

negaccedilatildeo da verdade proacutepria do perspectivismo nietzschiano parece condenar a proacutepria

consideraccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano como verdadeiro Neste sentido o

perspectivismo nietzschiano apareceria como uma versatildeo atualizada do paradoxo do

mentiroso Pois parece decorrer dos proacuteprios princiacutepios do perspectivismo nietzschiano

segundo os quais todas as formulaccedilotildees teoacutericas devem ser tomadas como meras

interpretaccedilotildees desprovidas de validade que o proacuteprio perspectivismo natildeo pode ter

validade Partindo desse tipo de princiacutepio como seria possiacutevel para Nietzsche validar suas

proacuteprias afirmaccedilotildees acerca da moral assim como da natureza constitutiva do mundo e da

proacutepria verdade se o filoacutesofo a partir de seu proacuteprio julgamento em relaccedilatildeo agraves teorias

filosoacuteficas e cientiacuteficas atribui a esse gecircnero de afirmaccedilotildees o caraacuteter meramente

interpretativo

Ao confrontar este problema Nehamas defende a reivindicaccedilatildeo nietzschiana pela

superioridade de suas posiccedilotildees com base em sua interpretaccedilatildeo do perspectivismo

nietzschiano como a negaccedilatildeo de que todas as afirmaccedilotildees seriam iguais Nesse sentido na

medida em que uma interpretaccedilatildeo se mostre mais afirmativa da vida em um determinado

contexto segundo a interpretaccedilatildeo de Nehamas esta interpretaccedilatildeo se tornaria uma

interpretaccedilatildeo superior Pois para o comentador o perspectivismo nietzschiano natildeo requer

que todas as perspectivas sejam igualmente vaacutelidas mas apenas que cada perspectiva

mereccedila consideraccedilatildeo

A posiccedilatildeo de Nehamas oferece uma forte resistecircncia agrave afirmaccedilatildeo da

autorreferencialidade7 na medida em que em sua leitura a proacutepria consideraccedilatildeo do

perspectivismo como sendo uma releitura do paradoxo do mentiroso seria errocircnea Dado

que esta identificaccedilatildeo decorreria de uma interpretaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo nietzschiana de que

todas as afirmaccedilotildees satildeo interpretaccedilotildees com a afirmaccedilatildeo de que toda interpretaccedilatildeo eacute falsa o

que nunca foi a intenccedilatildeo de Nietzsche De fato a tese nietzschiana implica apenas a

negaccedilatildeo de que qualquer afirmaccedilatildeo seja verdadeira e natildeo de que alguma interpretaccedilatildeo seja

inglesa foram dominados pelo paradoxo do perspectivismo7 A ideia de que o perspectivismo refutar-se-ia a si mesmo quando aplicado ao perspectivismo sua proacutepriaproibiccedilatildeo de que hajam verdades

4

falsa Assim em sua exposiccedilatildeo do problema do perspectivismo como sendo autorreferente

o autor oferece a seguinte exposiccedilatildeo

Suponhamos que caracterizemos o perspectivismo nietzschiano como a tese (P)de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Agora nos parece que se (P) eacuteverdadeira e se toda afirmaccedilatildeo eacute de fato uma interpretaccedilatildeo isto se aplicaria agraveproacutepria (P) Neste caso (P) tambeacutem torna-se uma interpretaccedilatildeo Mas se isto eacuteassim entatildeo nem toda afirmaccedilatildeo precisa ser uma interpretaccedilatildeo e (P) parecehaver se refutado (NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Esta exposiccedilatildeo do problema da autorreferencialidade natildeo ofereceria no entender de

Nehamas um problema especial para a posiccedilatildeo nietzschiana Isto porque o comentador

consegue oferecer uma distinccedilatildeo fundamental entre ser uma interpretaccedilatildeo e ser uma

afirmaccedilatildeo falsa Apenas com base em uma concepccedilatildeo de verdade que entende toda

afirmaccedilatildeo como possuindo um valor determinado se poderia pensar que admitir que uma

posiccedilatildeo natildeo eacute verdadeira significa afirmar sua falsidade Por outro lado a exposiccedilatildeo de

Nehamas do problema que acreditamos refletir fielmente a concepccedilatildeo nietzschiana nos

potildee diante da possibilidade de considerar uma afirmaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo

mantendo indeterminado seu valor de verdade

Ainda assim nosso argumento pode mostrar que (P) eacute verdadeiramente falsaapenas se assumirmos que sendo uma interpretaccedilatildeo (P) pode ser falsa e queportanto ela eacute de fato falsa Esta uacuteltima conclusatildeo verdadeiramente refutaria (P)pois se a tese de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo eacute de fato falsa entatildeo defato algumas afirmaccedilotildees verdadeiramente natildeo satildeo interpretaccedilotildees Mas aconclusatildeo de que (P) eacute de fato falsa natildeo se segue do fato de que (P) eacute ela mesmauma interpretaccedilatildeo Isto eacute alcanccedilado apenas por meio de uma inferecircncia invaacutelidaatraveacutes da equalizaccedilatildeo como acima do fato de que (P) eacute uma interpretaccedilatildeo eportanto possivelmente falsa com o fato de ela eacute verdadeiramente falsa(NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Por outro lado a afirmaccedilatildeo nietzschiana de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

decorre de uma falsificaccedilatildeo da realidade comporta outras dificuldades Segundo

Maudemarie Clark a defesa de Nehamas da posiccedilatildeo nietzschiana pretende mais do que o

autor admite Para a autora a posiccedilatildeo que Nehamas defende de que Nietzsche faz de sua

filosofia uma obra literaacuteria e que portanto ldquocomo todo outro escritor Nietzsche queria

5

que sua audiecircncia aceitasse suas afirmaccedilotildeesrdquo (NEHAMAS 1999 Paacuteg 33) compromete a

defesa da filosofia nietzschiana com a tese da falsificaccedilatildeo

Segundo Clark se Nietzsche tem motivos para querer que sua audiecircncia aceite suas

posiccedilotildees isso apenas seria possiacutevel porque o autor acredita que sua interpretaccedilatildeo seria a

verdadeira e que todas as outras interpretaccedilotildees seriam uma versatildeo falsificada de uma

ldquorealidade verdadeirardquo Assim a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo de Nehamas para Clark nos

compromete com uma versatildeo do perspectivismo que o torna vulneraacutevel agraves proacuteprias

objeccedilotildees contra as quais o autor queria defendecirc-lo (CLARK 1990 Paacuteg 158) Ao assumir

que haacute um todo que incorpora todas as interpretaccedilotildees Nehamas assumiria que existe uma

verdade completa da qual as perspectivas seriam apenas uma imagem necessariamente

falsa Se este eacute o caso no entanto ele estaacute assumindo a posiccedilatildeo fundamentalista com a

qual ele discordou de que existem algumas visotildees que natildeo satildeo interpretaccedilotildees natildeo apenas

aquelas que podem existir

Em sua leitura do perspectivismo Clark acredita achar uma soluccedilatildeo para o

problema do conflito entre a negaccedilatildeo da existecircncia de uma posiccedilatildeo verdadeira e o valor de

verdade dessa negaccedilatildeo ela mesma Sua soluccedilatildeo consistiria na interpretaccedilatildeo da posiccedilatildeo

nietzschiana como sendo a defesa de que eacute possiacutevel afirmar verdadeiramente sem que com

isso se pretenda afirmar algo que seja verdadeiro para todos Segundo essa interpretaccedilatildeo a

tese da falsificaccedilatildeo ou seja a ideia de que o conhecimento eacute limitado e falsificado pela

perspectiva de onde ele parte eacute uma caracteriacutestica da filosofia nietzschiana de juventude

que o autor posteriormente abandona com o amadurecimento de sua concepccedilatildeo

perspectivista

Minha soluccedilatildeo para estes problemas tecircm sido remover a tese dafalsificaccedilatildeo para as obras nietzschianas de juventude e interpretar ametaacutefora da perspectiva como um instrumento retoacuterico desenvolvidopara ajudar-nos a superar a desvalorizaccedilatildeo do conhecimento humanoenvolvida na tese da falsificaccedilatildeo De acordo com minha interpretaccedilatildeo ocaraacuteter perspectivo do conhecimento eacute perfeitamente compatiacutevel comalgumas interpretaccedilotildees sendo verdadeiras e ela natildeo introduz nenhumparadoxo ou autorreferecircncia O Perspectivismo eacute obviamente umaverdade perspectiva mas isso natildeo implica que qualquer afirmaccedilatildeoconcorrente seja tambeacutem verdadeira (CLARK 1990 Paacuteg 158)

6

Com isso a autora acredita oferecer uma interpretaccedilatildeo do perspectivismo que natildeo

seria suscetiacutevel de nenhuma das criacuteticas que Nehamas aponta nem das criacuteticas que ela

mesma aponta na interpretaccedilatildeo de Nehamas Sua interpretaccedilatildeo da filosofia nietzschiana

pressupotildee que seu perspectivismo em sua apariccedilatildeo na obra de maturidade do filoacutesofo natildeo

recai na acusaccedilatildeo do conhecimento como falsificaccedilatildeo da realidade Em outras palavras

Clark sustenta que Nietzsche natildeo tem nenhum problema em fazer afirmaccedilotildees verdadeiras

e ao mesmo tempo natildeo dogmaacuteticas mas que se espera que sejam verdadeiras para todos

No entanto esta posiccedilatildeo parece colidir frontalmente com uma extensa quantidade de

testemunho textual8 Na medida em que passagens da obra de maturidade nietzschiana

refletem as mesmas ideias de sua filosofia de juventude a suposiccedilatildeo de Clark de que em

sua filosofia perspectivista Nietzsche rejeita a tese da falsificaccedilatildeo enfrenta seacuterias

dificuldades

O perspectivismo nietzschiano se ergue como uma estrateacutegia de combate contra

todo antropomorfismo da ciecircncia e nesse sentido ele reduz o que nos distancia das outras

espeacutecies e que permanece na tradiccedilatildeo como nosso elemento identificador agrave condiccedilatildeo de

mero oacutergatildeo natural Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela

exposiccedilatildeo do caraacuteter perspectivo de nossas verdades universais Nietzsche opotildee-se agrave

pretensatildeo de atingir a verdade absoluta por meio de um instrumento necessariamente

relativo Pretensatildeo que o filoacutesofo pensa representada pelas filosofias racionalistas que lhe

antecedem

Segundo esta compreensatildeo o caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da

realidade repousaria sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o

filoacutesofo realiza pensando opor assim a toda a tradiccedilatildeo racionalista que segundo

Nietzsche teria preferido voltar-se contra os oacutergatildeos dos sentidos na constataccedilatildeo dos

limites da consciecircncia Sua anaacutelise de tudo que ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro

submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo desdobramento do mundo em substacircncia

inteligiacutevel a anaacutelise de sua origem e desenvolvimento Atraveacutes de uma anaacutelise naturalista

da consciecircncia ele expotildee o processo de formaccedilatildeo da linguagem como a forma de

8 Leia-se sobretudo o aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal e oaforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral que seratildeo comentados mais a frente

7

apreender uma realidade sempre em mudanccedila atraveacutes de metaacuteforas que lhe confiram um

caraacuteter fixo e comunicaacutevel

A soluccedilatildeo do problema da autorreferencialidade apresentado por Nehamas nos

parece maios adequado aos objetivos deste trabalho Assim natildeo voltaremos a discutir este

problema nos capiacutetulos a seguir No entanto reconhecemos que o problema envolvido na

autorreferencialidade do perspectivismo nietzschiano tem rendido diversos comentaacuterios

importantes tornando-se assim um panorama privilegiado na investigaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana Maudemarie Clark parece concordar com esta interpretaccedilatildeo quando afirma

que o perspectivismo nietzschiano seria sua doutrina mais amplamente aceita aleacutem de ser

a contribuiccedilatildeo mais oacutebvia do pensamento nietzschiano para o cenaacuterio intelectual da

atualidade

ldquoperspectivismordquo eacute a afirmaccedilatildeo de que todo conhecimento eacute perspectivoNietzsche tambeacutem caracteriza valores como perspectivos mas eu devoestar preocupada aqui apenas com seu perspectivismo concernente aoconhecimento O uacuteltimo constitui sua contribuiccedilatildeo mais oacutebvia ao cenaacuteriointelectual da atualidade a doutrina nietzschiana mais amplamente aceita9

(CLARK 1995 Paacuteg 127)

Poreacutem seria necessaacuterio acrescentar que o perspectivismo nietzschiano natildeo se limita

a uma compreensatildeo do conhecimento como algo perspectivo mas diz respeito mais

propriamente ao problema dos valores A negaccedilatildeo nietzschiana da concepccedilatildeo tradicional de

verdade parte do pressuposto de que esta teria se tornado algo intimamente relacionado

aos valores e que com estes ela perde seu sentido na tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo que ignora este aspecto partindo de uma interpretaccedilatildeo do

perspectivismo nietzschiano apenas do ponto de vista de sua validade enquanto teoria

epistemoloacutegica perde de vista uma interpretaccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano

e torna tambeacutem menos rica de sentido essa importante contribuiccedilatildeo nietzschiana para o

cenaacuterio filosoacutefico contemporacircneo

9 No original ldquorsquoPerspectivismrsquo is the claim that all knowledge is perspectival Nietzsche also characterizesvalues as perspectival but I shall be concerned here only with his Perspectivism regarding knowledge Thelatter constitutes his most obvious contribution to the current intellectual scene the most widely acceptedNietzschean doctrinerdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) As traduccedilotildees de obras de comentadores seratildeo todas denossa responsabilidade exceto menccedilatildeo em contraacuterio

8

Ao se colocar em jogo o valor das perspetivas portanto natildeo se pode reduzir esta

questatildeo a uma investigaccedilatildeo da validade do perspectivismo como tese acerca do

conhecimento Como se o que estivesse em jogo fosse apenas a avaliaccedilatildeo do valor de

nossas formulaccedilotildees acerca da realidade Pelo contraacuterio desde que se compreende que estas

formulaccedilotildees natildeo se relacionam com algo como a verdade em sentido absoluto o valor das

perspectivas em relaccedilatildeo a uma suposta realidade em si estaacute desde sempre posto por

Nietzsche como sendo nenhum Assim considerada a questatildeo do ponto de vista de nossa

estimaccedilatildeo de nossa valoraccedilatildeo mesma de uma suposta realidade verdadeira como algo

superior entatildeo temos que o valor das perspectivas natildeo se potildee de forma independente

daquele que avalia

O perspectivismo nietzschiano neste sentido natildeo se reduz a uma anaacutelise do valor

de verdade das perspectivas Mais do que isso o que se potildee em questatildeo eacute o valor que

atribuiacutemos agraves nossas estimaccedilotildees em certo sentido ao valor que atribuiacutemos agrave proacutepria

verdade quando nos recusamos a compreender o proacuteprio homem como ponto de vista da

avaliaccedilatildeo Desta maneira se o filoacutesofo compreende que a realidade eacute um produto de nossa

avaliaccedilatildeo e que apenas seria possiacutevel para noacutes abdicar da avaliaccedilatildeo ou de noacutes mesmos de

nossa existecircncia10 entatildeo o processo de percepccedilatildeo da realidade que eacute inerente agrave sua

consideraccedilatildeo perspectiva do conhecimento estaacute estreitamente ligada com o papel do

homem enquanto criador de valor

Nesta leitura os problemas na investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

notadamente a questatildeo de sua autorreferecircncia podem ser entendidos como decorrentes de

se tratar este tema meramente do ponto de vista de uma anaacutelise do conhecimento e da

verdade sobretudo por se tratar de um autor reconhecido por sua atitude criacutetica em relaccedilatildeo

a ambos Mais do que pensarmos se o perspectivismo nietzschiano pode ser verdadeiro

sem se contradizer eacute preciso pensar que o tipo de ldquovalor de verdaderdquo que o filoacutesofo parece

assumir no interior de sua concepccedilatildeo perspectivista se potildee em um niacutevel superior de

reflexatildeo ao proacuteprio valor que a tradiccedilatildeo atribui agrave verdade

Com isso a afirmaccedilatildeo de Clark de que ldquoNietzsche tambeacutem caracteriza valores

como perspectivosrdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) ganha uma nova dimensatildeo e importacircncia

Pois a partir dessa reflexatildeo podemos pensar que sua menccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o

10 O que para Nietzsche seria exatamente niilismo conforme (NFFP 1885-1886 2[131])

9

perspectivismo e o valor pode apontar para a compreensatildeo de que Nietzsche caracteriza os

valores como perspectivos e que assim o faz porque parte de uma consideraccedilatildeo perspectiva

do conhecimento Ou seja se Nietzsche pensa os valores como perspectivos natildeo eacute absurdo

pensar que sua consideraccedilatildeo da moral seja forjada em meio a uma consideraccedilatildeo do

conhecimento como algo dependente da perspectividade Do mesmo modo natildeo seria

absurdo pensar que a fundamentaccedilatildeo de sua criacutetica agrave moral e ao niilismo natildeo dependeria de

um esclarecimento acerca da ldquoveracidaderdquo de suas proacuteprias concepccedilotildees mas de seu ldquovalorrdquo

em um sentido que jaacute entende a perspectividade de todo ldquovalorarrdquo

A criacutetica nietzschiana a uma certa compreensatildeo do conhecimento e da verdade esta

relacionada agrave compreensatildeo de que tais concepccedilotildees partem de uma consideraccedilatildeo moral

decadente Eacute neste sentido que em um fragmento poacutestumo de finais de 1885 e iniacutecio de

1886 o filoacutesofo compreende todo erro das ciecircncias como estando relacionados a um

pressuposto fundamental ldquoO pressuposto de que tudo ocorre tatildeo moralmente no fundo das

coisas que a razatildeo humana continua em seu direitordquo (NFFP 1885-1886 2[132]) Ou seja

para Nietzsche a crenccedila na ciecircncia como instrumento revelador da realidade estaria

relacionada a uma compreensatildeo da realidade como produto de uma razatildeo divina e que

portanto a razatildeo humana estaria ldquoem seu direitordquo quando tenta se aprofundar nessa

realidade Mas para o filoacutesofo esta seria apenas ldquouma ingenuidade e uma pressuposiccedilatildeo

pequeno-burguesa a ressonacircncia do efeito da crenccedila na veracidade divinardquo (NFFP 1885-

1886 2[132])

Partindo dessa compreensatildeo inicial nossa tese consiste na tentativa de oferecer uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano sob a oacutetica de uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre verdade conhecimento e valor A investigaccedilatildeo do valor das perspectivas que

entendemos como uma questatildeo que se sobrepotildee ao problema da verdade na filosofia

nietzschiana constitui-se por isso mesmo como ponto de originalidade do pensamento

nietzschiano em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo das investigaccedilotildees acerca da verdade ao estabelecer na

proacutepria perspectividade o valor das nossas aproximaccedilotildees da realidade

Neste sentido a tese passa por trecircs momentos Em um primeiro momento

pretendemos efetuar uma interpretaccedilatildeo criacutetica de duas obras nietzschianas de juventude as

notas preparatoacuterias Zur Teleologie e O Ensaio Sobre Verdade e Mentira em sentido Extra

10

Moral11 a fim de descortinar os elementos fundamentais da consideraccedilatildeo criacutetica

nietzschiana para com as concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento Em um

segundo momento o niilismo eacute analisado como ponto de ruptura na filosofia nietzschiana

que fornece o estiacutemulo para uma abordagem do conhecimento que torna mais expliacutecita a

relaccedilatildeo entre este e o valor Na medida em que a dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constrange a uma reavaliaccedilatildeo da verdade mesma como valor o niilismo conduz a uma

forma de avaliaccedilatildeo da realidade que se distingue da avaliaccedilatildeo tradicional por conta de sua

ecircnfase no caraacuteter criativo do conhecimento em contraposiccedilatildeo ao caraacuteter descritivo do

conhecimento na concepccedilatildeo tradicional Em um terceiro momento o perspectivismo eacute

avaliado como contraproposta agrave forma de conhecimento tradicional associada por

Nietzsche a uma tendecircncia niilista de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a

uma consideraccedilatildeo negativa da realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a

proacutepria perspectividade

11 Daqui para frente nomeado simplesmente ldquoEnsaio sobre Verdade e Mentirardquo

11

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia

Em uma carta de 03 de abril de 1868 dirigida a Erwin Rohde Nietzsche faz uma

declaraccedilatildeo a seu amigo acerca da possibilidade de doutorar-se em filosofia possibilidade

que embora natildeo levada a termo pelo autor legou agrave posteridade uma seacuterie de notas

preparatoacuterias cuja interpretaccedilatildeo traz importantes consequecircncias para o estudo do

perspectivismo nietzschiano como veremos a seguir Na carta em questatildeo nos deparamos

com a seguinte afirmaccedilatildeo do jovem Nietzsche ldquoAdemais tenho pensado que poderia

doutorar-me tambeacutem um dia em filosofia e assim justificar posteriormente minha carteira

de estudante em Bonn e Leipzig onde sempre perambulava como stud philosrdquo (KSB II p

265)12 Na carta em questatildeo observa-se o interesse do jovem estudante de filologia claacutessica

de Bonn em vir a doutorar-se futuramente em filosofia disciplina que haacute muito lhe

interessava profundamente especialmente apoacutes seu contato com a obra de Schopenhauer

A indicaccedilatildeo de que o jovem estudante realmente se interessava pelo tema e de que

jaacute realizara alguns preparativos em adiantamento volta a aparecer em uma menccedilatildeo a este

trabalho em outra correspondecircncia dessa vez em uma carta endereccedilada a Paul Deussen

(KSB II p 269) escrita alguns dias apoacutes a carta acima mencionada Com isso pode-se

deduzir que o que era apenas uma ideia vaga viera a tornar-se um projeto melhor

elaborado Nietzsche que desde haacute muito se achava interessado em questotildees filosoacuteficas e

que com a leitura de Schopenhauer e Lange se torna especialmente interessado na filosofia

de Kant anuncia seu interesse em questotildees especiacuteficas que relaciona com a filosofia

kantiana por forccedila das interpretaccedilotildees daqueles autores

Quando vocecirc a propoacutesito receber ao final deste ano minha tese dedoutorado perceberaacute que o problema dos limites do conhecimento seexplica em diversos pontos Meu tema eacute ldquoo conceito de orgacircnico desde

12 No original ldquoUumlbrigens hat mich dies auf den Einfall gebracht auch einmal philosophisch zu promovierenund so meiner Studentenkarte in Bonn und Leipzig noch nachtraumlglich zu ihrem Rechte zu verhelfen ich binnaumlmlich immer als stud philos spazieren gegangenrdquo (KSB II p 265) Curt Paul Janz naquela que eacutepossivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche comenta que nesta eacutepoca este cogitara abandonar osestudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzsche biographie Enfance JeunesseLes Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

12

Kantrdquo metade filosoacutefico metade ciecircncia da natureza (halbphilosophisch halb naturwissenschaftlich) Meus preparativos(Vorarbeiten) jaacute estatildeo quase concluiacutedos (KSB II p 269)13

Na carta a Deussen Nietzsche deixa entrever em seus planos para a dissertaccedilatildeo

elementos fundamentais de uma abordagem do problema do conhecimento Entre estes

elementos destaca-se o fato de que tal dissertaccedilatildeo partiria do ponto de vista de um estudo

dos limites dos oacutergatildeos da sensibilidade humana Com isso aleacutem de esclarecer o sentido de

sua interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana este trabalho tambeacutem possibilita uma compreensatildeo

precisa acerca de suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas naquele periacuteodo de seu pensamento

Motivo pelo qual alguns comentadores concordam que as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie14 ajudam a situar a filosofia do jovem Nietzsche no horizonte de uma ampla

discussatildeo filosoacutefica Marques por exemplo assevera que a discussatildeo sobre a teleologia

coloca Nietzsche em consonacircncia com o programa teoacuterico da modernidade por acercar-se

do grande embate entre as concepccedilotildees leibniziana e cartesiana ou seja do antagonismo

entre teleologia de proveniecircncia aristoteacutelica e o mecanicismo15

Para Marques a filosofia de Nietzsche sobretudo no que diz respeito a sua ldquoteoria

do conhecimentordquo estaria relacionada a um processo de radicalizaccedilatildeo da autoafirmaccedilatildeo do

sujeito moderno Neste sentido enquanto autor que leva ao aacutepice esse processo de

radicalizaccedilatildeo processo que teria se iniciado na modernidade sobretudo com Descartes

13 Apesar de declarar que seus preparativos encontravam-se jaacute bastante adiantados considerando-se arelaccedilatildeo de Nietzsche com Deussen seria plausiacutevel especular que o autor da carta estivesse contandovantagem de seus planos filosoacuteficos que na verdade encontravam-se ainda longe de ser concluiacutedos sendoque algumas de suas partes ainda encontravam-se em seus estaacutegios iniciais como demonstra o estado dasnotas que nos foram legadas Vale ainda ressaltar que esta correspondecircncia como jaacute foi discutido na seccedilatildeo234 desta tese denuncia um interesse fortiacutessimo de Nietzsche pelos resultados de sua leitura de A Histoacuteriado Materialismo de Albert Lange de cujas ideias a dissertaccedilatildeo planejada pelo filoacutesofo encontra-se fartamentepermeada14 A coletacircnea de notas estaacute registrada na ediccedilatildeo completa de Colli e Montinari nos apontamentos 1868 62[3] - 62 [57] Cf NIETZSCHE F Werke Kritische Gesamtausgabe (KGW) 36 Baumlnde Herausgeben GiorgioColli e Mazzino Montinari Berlim De Gruyter 1967-2001 Bd I 15 As concepccedilotildees da filosofia antiga na medida em que se distinguem por uma compreensatildeo racional darealidade satildeo marcadas pela ideia de uma finalidade intriacutenseca a esta mesma realidade sendo Aristoacuteteles esua concepccedilatildeo das causas finais um marco deste tipo de pensamento Por outro lado com a concepccedilatildeoatomiacutestica inaugura-se na antiguidade ainda uma forma de se conceber a realidade como um produto dasinteraccedilotildees mecacircnicas de seus primeiros elementos Surge assim o embate entre s concepccedilotildees teleoloacutegicas emecacircnicas da realidade Marques resume esse antagonismo no seguinte dilema ldquo[] ou o mundo eacuteconstituiacutedo por uma multiplicidade de espontaneidades absolutas que em si tecircm inscritas a finalidade de seuagir ou o mundo seraacute sempre a obra de um Deus criador de uma obra imperfeitardquo (Marques 2003 p 22)Dando continuidade a este embate filosoacutefico aparecem na modernidade as concepccedilotildees de Leibniz e suateoria de mundo como harmonia preestabelecida por Deus e Descartes que pensava o mundo das realidadesextensas como tendo sua formaccedilatildeo determinada de maneira mecacircnica

13

Nietzsche se inseriria na tradiccedilatildeo racionalista criacutetica Por meio de uma anaacutelise

eminentemente histoacuterica das assim chamadas ldquoteses teleoloacutegicas sobre a historicidaderdquo

(MARQUES 2003 Paacuteg 43) Marques realiza uma apresentaccedilatildeo da condiccedilatildeo antinocircmica da

razatildeo moderna em sua interioridade em que Nietzsche se inseriria ao questionar a validade

dos produtos que a razatildeo se apresenta como sua proacutepria realidade

Neste contexto se destacariam as notas preparatoacuterias para Zur Teleologie como

testemunho textual de que jaacute em sua obra de juventude Nietzsche entra em contato com

questotildees de suma importacircncia para o pensamento moderno Este contato com problemas de

primeira ordem da filosofia moderna para Marques tornam o autor das notas preparatoacuterias

natildeo apenas um herdeiro dos problemas do pensamento moderno mas um pensador

moderno que leva ao aacutepice questotildees fundamentais da filosofia moderna

Esta tese pelo que tomamos notiacutecia atraveacutes da leitura dos fragmentos que nos

foram legados caso tivesse sido concluiacuteda poderia vir a ser considerada como sua

primeira incursatildeo por alguns dos temas mais importantes de sua filosofia Nas notas em

questatildeo satildeo adiantadas muitas de suas concepccedilotildees fundamentais as quais seriam

amadurecidas e posteriormente reelaboradas de forma mais rigorosa adquirindo o estilo

caracteriacutestico dos escritos do filoacutesofo Por meio de um lento refinamento e preparaccedilatildeo no

sentido de conferir um apelo original a estas ideias elas viriam a se popularizar como um

conjunto de reflexotildees acerca da natureza dos limites do conhecimento humano Com isso

aquilo que apenas fora esboccedilado de modo precaacuterio nas notas preparatoacuterias viria a

constituir um fundamento seguro para o posterior desenvolvimento da reflexatildeo

nietzschiana em torno dos problemas com relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e

conhecimento

No entanto por vaacuterias razotildees dentre as quais destacam-se certamente sua

convocaccedilatildeo para o serviccedilo militar e o consequente ferimento que o deixa impossibilitado

por semanas Nietzsche natildeo conseguiraacute levar este plano agrave conclusatildeo Ciente da

impossibilidade de levar seus planos adiante o jovem professor declararaacute em uma carta

endereccedilada a Rohde ldquoAssim querido amigo repito nossas perspectivas natildeo deram certo

[]rdquo (KSB II p 272)16 Apesar do naufraacutegio de seus planos ficaram registrados em seus

16 No original ldquoAlso lieber Freund nochmals unsere Aussichten sind zu nichterdquo (KSB II p272) CurtPaul Janz (naquela que eacute possivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche) comenta que nesta eacutepocaeste cogitara abandonar os estudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzschebiographie Enfance Jeunesse Les Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

14

cadernos de notas o conjunto de rascunhos que comporiam sua tese acerca dos limites do

orgacircnico a partir de Kant

Os preparativos para a dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant

compotildeem-se de uma seacuterie de notas e indicativos de leitura Estas referecircncias agrupadas por

Nietzsche satildeo compostas de alguns paraacutegrafos extraiacutedos da literatura que o autor das notas

considera leitura baacutesica para sua exposiccedilatildeo aqui incluiacutedos trechos da Criacutetica da Faculdade

do Juiacutezo de Kant e alguns apontamentos de textos extraiacutedos de obras em que a filosofia se

relaciona com temas das ciecircncias naturais Este material variado dentre o qual destacam-se

algumas relaccedilotildees de ideias e conclusotildees a serem comprovadas pela exposiccedilatildeo foram

reunidas apenas muito tardiamente em um dos muitos esforccedilos de conservaccedilatildeo da obra

nietzschiana ficando entatildeo conhecidas pela criacutetica do pensamento nietzschiano sob o tiacutetulo

de Zur Teleologie

As notas constituem material fundamental para a compreensatildeo da imbricada relaccedilatildeo

de Nietzsche com as principais influecircncias de seu pensamento com as quais entra em

contato jaacute na juventude Dentre estas influecircncias destacam-se uma seacuterie de autores das

ciecircncias naturais pesquisadores materialistas com os quais Nietzsche estabelece contato

atraveacutes de sua leitura de Friedrich Albert Lange O proacuteprio Lange representa uma

influecircncia fundamental para Nietzsche naquele periacuteodo e suas ideias acerca da filosofia

kantiana assim como de sua relaccedilatildeo com as ciecircncias garantem o estiacutemulo para a tentativa

de dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico Esta eacute por exemplo a interpretaccedilatildeo de

Elisabeth Foumlrster-Nietzsche a qual relata

Existe (hellip) um resumo de um trabalho ldquoacerca do conceito de orgacircnicodesde Kantrdquo com que meu irmatildeo durante sua convalescenccedila em marccedilo eabril (1866) se ocupou Ele tinha provavelmente retirado o estiacutemulo paraesse trabalho da Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange oqual ele leu imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo e o qual ele estudounovamente em fevereiro de 186817

A obra de Lange a qual impactou fortemente Nietzsche representava uma espeacutecie

de reconstruccedilatildeo da histoacuteria do materialismo centrada na figura de Kant O fato de

Nietzsche pretender elaborar uma dissertaccedilatildeo acerca das relaccedilotildees entre a filosofia kantiana

17 Conforme Elisabeth Foumlrster-Nietzsche Das Leben Nietzsches Leipzig Verlag von C G Naumann 1895LN 1 269

15

e os estudos recentes acerca dos oacutergatildeos da sensibilidade humana logo apoacutes sua leitura da

obra de Lange natildeo poderia ser confundida como mera coincidecircncia Outra forte evidecircncia

de que Albert Lange foi uma forte inspiraccedilatildeo para esse trabalho encontra-se nas listas de

leituras a serem realizadas parte importante das notas que nos foram legadas Entre os

autores pertencentes a estas listas a serem pesquisadas praticamente todos satildeo cientistas e

filoacutesofos dos quais Nietzsche tomou conhecimento atraveacutes de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo de Albert Lange

Nosso interesse nessa coleccedilatildeo de apontamentos para a dissertaccedilatildeo de Nietzsche se

justifica por vaacuterias razotildees Para aleacutem da importacircncia de rever escritos que ajudam a

descortinar um pouco de seu pensamento de juventude essas notas ajudam a descortinar o

caraacuteter prematuro do posicionamento filosoacutefico desse autor com relaccedilatildeo agrave temas

fundamentais para seu pensamento maduro Percebe-se em boa parte da argumentaccedilatildeo

sustentada nessas notas assim como no material que o autor escolhe para suportar esta

argumentaccedilatildeo que o filoacutesofo jaacute naquela eacutepoca demonstrou certa preocupaccedilatildeo com temas

fundamentais elaborados em profundidade em sua filosofia madura Por outro lado a

discussatildeo do tema da teleologia o potildee em contato com uma temaacutetica fundamental da

filosofia de todos os tempos

Do mesmo modo quando anuncia a Deussen sua intenccedilatildeo de escrever uma

dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant o jovem estudante insinua a

disposiccedilatildeo em trabalhar com um conjunto de questotildees que jaacute compotildeem suas preocupaccedilotildees

fundamentais acerca da natureza do conhecimento Estas questotildees estatildeo intimamente

relacionadas com a criacutetica ao conhecimento expressa em sua obra de maturidade como

testemunho de que Nietzsche natildeo consegue resolver estas questotildees mesmo muitos anos

apoacutes suas primeiras incursotildees no tema

O aspecto epistemoloacutegico da investigaccedilatildeo a ser empreendida jaacute desponta nos

trechos de correspondecircncia citados em que Nietzsche se refere agrave questatildeo dos ldquolimites do

conhecimentordquo e sua relaccedilatildeo com a ldquosensibilidade humanardquo Estas questotildees implicam uma

anaacutelise do papel dos sentidos na constituiccedilatildeo do conhecimento do mesmo modo que

conduzem a uma consideraccedilatildeo do necessaacuterio condicionamento do que pode ser conhecido

pelas limitaccedilotildees da proacutepria sensibilidade humana Nesse sentido a reflexatildeo nietzschiana

expressa nestas notas aponta claramente para uma concepccedilatildeo de conhecimento como algo

determinado pelo aparato fisioloacutegico humano Tendo em vista estes aspectos fundamentais

16

do trabalho em questatildeo eacute possiacutevel identificar traccedilos precursores da compreensatildeo

nietzschiana acerca do conhecimento notadamente na questatildeo da determinaccedilatildeo do que

pode ser conhecido pelo homem segundo a natureza de sua constituiccedilatildeo natural18

De que estes fragmentos comportam informaccedilotildees importantes acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de conhecimento de seu juiacutezo acerca da metafiacutesica das relaccedilotildees entre a

linguagem e a conceitualidade temos o relato de Crawford para quem uma leitura atenta

das notas preparatoacuterias oferece um contato indispensaacutevel com todas estas concepccedilotildees tais

como elas aparecem no pensamento nietzschiano de juventude

Um olhar atento nessas notas acerca da teleologia eacute essencial para minhaposterior discussatildeo porque elas demonstram quatildeo fundamentalmente aepistemologia de Nietzsche eacute baseada em sua teoria da linguagem Nelasnoacutes encontramos a contiacutenua criacutetica de Nietzsche agrave metafiacutesica na qual eleusa como principal ferramenta sua compreensatildeo dos limites da linguageme conceptualidade Nietzsche equaciona pensamento teleoloacutegico compensamento metafiacutesico Em sua carta a Deussen o proacuteprio Nietzscheenfatiza natildeo exatamente o orgacircnico ou o teleoloacutegico mas acima distoele explora a ldquorelatividade consciente do conhecimentordquo e o ldquoponto doslimites do conhecimentordquo Veremos ateacute que ponto Nietzsche se apropriada ideia langeana de que qualquer que seja nossa abordagem dos limitesdo conhecimento o que resta para aleacutem satildeo palavras expressotildees e ummundo de relaccedilotildees mas nunca a verdade em si (CRAWFORD 1988Paacuteg 106)

Para aleacutem destas questotildees no entanto as notas sobre teleologia trazem informaccedilotildees

fundamentais acerca da relaccedilatildeo de Nietzsche com as concepccedilotildees otimista e pessimista sua

consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a toda presunccedilatildeo de racionalidade na natureza e sua ideia

de que esta racionalidade seria antes o resultado de nossa atuaccedilatildeo no mundo do que uma

caracteriacutestica da natureza ela mesma Como se vecirc estes satildeo temas que prenunciam os

caminhos percorridos pelo autor no desenvolvimento de sua filosofia resumidos nos

aspectos de caraacuteter filosoacutefico do trabalho pretendido

18 A limitaccedilatildeo da sensibilidade humana como um traccedilo determinante daquilo que pode ser conhecido pelohomem eacute uma conclusatildeo fundamental das notas a qual percorre uma longa trajetoacuteria ateacute se tornar um aspectofundamental da compreensatildeo nietzschiana do caraacuteter perspectivo de todo conhecimento Isto eacute na medida emque se considera que o perspectivismo nietzschiano estaria ligado agrave sugestatildeo fundamental de que cada umconhece do mundo segundo sua perspectiva a qual eacute determinada fundamentalmente pela sua constituiccedilatildeofisioloacutegica Como fundamento dessa compreensatildeo na filosofia nietzschiana de maturidade observe-se o queeacute dito no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia onde Nietzsche reflete acerca do desenvolvimento dos estudos dafisiologia e dos animais e de como esses estudos nos aproximam da ldquopremonitoacuteria suspeita de Leibnizrdquo ouseja do fato de que cada indiviacuteduo pode conhecer apenas a partir de sua perspectiva

17

Por outro lado a curiosa escolha de fontes para a tese sinaliza o interesse de

Nietzsche mesmo naquele periacuteodo prematuro de seu pensamento em temas das ciecircncias

naturais ou antes para as respostas das ciecircncias naturais para problemas filosoacuteficos

bastante de acordo com o espiacuterito que animou o renascimento do materialismo em sua

eacutepoca Aparentemente cansado do idealismo que reinava nas concepccedilotildees filosoacuteficas

daquele periacuteodo e ainda sob a influecircncia de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Nietzsche enxerga nas ciecircncias naturais um caminho seguro para livrar a filosofia de sua

maacute compreensatildeo acerca de questotildees fundamentais acerca da natureza

Se considerarmos a concepccedilatildeo kantiana acerca dos juiacutezos teleoloacutegicos como o

objeto principal das nota preparatoacuterias que serviraacute como mote para a criacutetica nietzschiana agrave

proacutepria concepccedilatildeo de Teleologia temos aqui uma antecipaccedilatildeo de uma criacutetica fundamental

que o filoacutesofo desenvolveraacute em sua filosofia madura Nesta preacutevia de sua criacutetica agrave

concepccedilatildeo teleoloacutegica que como Crawford aponta eacute associada por Nietzsche a uma

concepccedilatildeo metafiacutesica nos deparamos com noccedilotildees fundamentais que seriam posteriormente

conformadas em modos proacuteprios da filosofia nietzschiana Nesse sentido as notas servem

como um primeiro esboccedilo um primeiro deparar-se de Nietzsche com questotildees as quais o

filoacutesofo ofereceraacute como resposta em sua filosofia madura seu perspectivismo No entanto

na medida em que o projeto de Zur Teleologie foi abandonado com a mesma intensidade

com que fora elaborado as notas que compotildeem o que nos foi legado deste projeto nos

fornecem apenas um indicativo de como jaacute em 1868 Nietzsche compreendia o problema

dos limites do conhecimento

A nosso ver nas notas em questatildeo o autor ensaia uma espeacutecie de protoacutetipo do

perspectivismo na medida em que considera que o orgacircnico seria apenas uma noccedilatildeo

ficcional forjada pelo intelecto e que portanto os produtos subjetivos da razatildeo natildeo

passariam de ficccedilotildees de produtos esteacuteticos forjados a partir da capacidade criativa inerente

a tudo que vive Ou seja apesar de ser questionaacutevel por conta sobretudo da leitura

enviesada e de segunda matildeo da obra kantiana leitura que eacute fundamentada com base nas

interpretaccedilotildees de Kuno Fischer Albert Lange e Schopenhauer entre outros Zur Teleologie

apresenta alguns pontos de vista de grande relevacircncia para o aprofundamento das questotildees

acerca da compreensatildeo nietzschiana dos problemas com a concepccedilatildeo tradicional de

conhecimento

18

Vaacuterias satildeo os problemas apresentados nas notas que mais tarde seriam elaborados

de forma mais apropriada por Nietzsche Primeiramente temos nestas notas preparatoacuterias a

apresentaccedilatildeo de uma noccedilatildeo de organismo como multiplicidade noccedilatildeo que tambeacutem no

periacuteodo maduro de seu pensamento se relacionaraacute com seu perspectivismo Em segundo

lugar em Zur Teleologie eacute realizada a denuacutencia da natureza ficcional e utilitaacuteria da

concepccedilatildeo de teleologia que como outras concepccedilotildees tomadas por Nietzsche como

oriundas de uma consideraccedilatildeo metafiacutesica um conceito de caraacuteter universal que a tradiccedilatildeo

acredita se circunscrever no acircmbito puramente cognitivo eacute considerada naquele texto

como o produto de uma perspectiva limitada

A discussatildeo desenvolvida em Zur Teleologie sobre a finalidade da natureza colocara

Nietzsche diante de um dos principais problemas que sua filosofia precisara administrar o

problema do valor dos produtos subjetivos da razatildeo Toda a argumentaccedilatildeo nietzschiana em

torno das concepccedilotildees de teleologia e mecanicismo se justifica quase que exclusivamente

por apontar para esse problema A resposta para esse problema passa pela questatildeo do

niilismo discutida mais a frente e pela consideraccedilatildeo do perspectivismo como uma forma

de pensar os produtos da razatildeo como tendo valor a partir de uma consideraccedilatildeo de seu valor

bioloacutegico mas tambeacutem como expressatildeo da forccedila vital inerente a criaccedilatildeo de valor objetos

do capiacutetulo final deste trabalho

Estes elementos fazem de Zur Teleologie um objeto de interesse fundamental para

nossa investigaccedilatildeo Pois na medida em que o autor investiga a possibilidade de se rejeitar

concepccedilotildees tais como o juiacutezo teleoloacutegico sem que em seu lugar seja necessaacuterio recorrer a

outra qualquer concepccedilatildeo de cunho metafiacutesico percorre hipoacuteteses que em sua filosofia

madura se relacionaram ao questionamento acerca do embate entre valor vital e valor de

verdade de determinadas concepccedilotildees Esta forma de conceber o problema do valor de

concepccedilotildees metafiacutesicas antecipa a discussatildeo em torno da validade dos produtos da

atividade criativa humana como objetos de valor vital e os problemas oriundos de se tomar

este valor como estando vinculado a um valor de verdade absoluto

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica

19

Para a elaboraccedilatildeo de sua criacutetica da questatildeo teleoloacutegica no conjunto de notas que

comentaremos a seguir Nietzsche parte de uma leitura particular das filosofias de Kant

Albert Lange e Schopenhauer Mais especificamente sua argumentaccedilatildeo em torno da

concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo que constitui-se em um tema de importacircncia significativa

para ao desenvolvimento posterior de sua concepccedilatildeo de conhecimento eacute fundamentada em

uma releitura das posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer a partir de uma fundamentaccedilatildeo

cientiacutefica que o autor retira de sua leitura da obra de Lange Assim considerada a tradiccedilatildeo

filosoacutefica em torno do problema do qual Nietzsche pretende se aproximar a relevacircncia da

tentativa nietzschiana de se inserir na questatildeo acerca da teleologia eacute condicionada pelo

aspecto semifilosoacutefico e semi- cientiacutefico de seus argumentos

Para resumir uma questatildeo maior do que o espaccedilo que temos para apresentaacute-la

diriacuteamos que pelo menos desde a modernidade19 partidos disputam acerca da organizaccedilatildeo

da realidade no sentido de interpretar essa realidade ou bem como o resultado da

interaccedilatildeo dos aacutetomos ou bem de maneira teleoloacutegica ou seja como se esta se dispusesse

segundo uma finalidade uacuteltima Eacute neste embate teoacuterico que as colocaccedilotildees de Nietzsche

pretendem se situar De modo geral os fundamentos para a compreensatildeo nietzschiana do

problema da teleologia naquele momento de sua produccedilatildeo seriam as conclusotildees

apresentadas por Kant na segunda seccedilatildeo de sua Criacutetica do Juiacutezo acerca do Juiacutezo

Teleoloacutegico e as criacuteticas de Schopenhauer e Albert Lange a essas conclusotildees

No entanto se sua reflexatildeo se prendesse a estas referecircncias teoacutericas o conjunto de

fragmentos em questatildeo teria pouco interesse em nossa investigaccedilatildeo O que nos importa

aqui aleacutem da opiniatildeo nietzschiana acerca desses temas eacute sua interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees

mencionadas Motivo pelo qual necessitamos reconstruir minimamente as concepccedilotildees que

inspiraram Nietzsche na tentativa de entender como sua reflexatildeo pode ser tomada como

uma novidade em relaccedilatildeo ao problema da teleologia Neste sentido talvez natildeo seja absurdo

retomar a apresentaccedilatildeo schopenhaueriana do problema

No apecircndice para sua obra maacutexima em que concentra sua criacutetica da filosofia

kantiana Schopenhauer define o problema da teleologia como a disputa entre uma posiccedilatildeo

materialista e uma posiccedilatildeo teiacutesta acerca da produccedilatildeo do mundo Com essa apresentaccedilatildeo do

19 Propriamente falando a questatildeo remonta agrave antiguidade com a concepccedilatildeo aristoteacutelica das causas finaisassumindo na idade meacutedia uma feiccedilatildeo teoloacutegica por meio da ideia de um ser criador da realidade conformeuma inteligecircncia a semelhanccedila da humana Mas na criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica emboraestes ancestrais da questatildeo natildeo sejam ignorados ocupam papel secundaacuterio se comparados com os autoresque precedem imediatamente Kant

20

problema o autor prepara o terreno para a inclusatildeo de Kant na discussatildeo a partir de sua

concepccedilatildeo teleoloacutegica como um ponto de virada que torna sem sentido as posiccedilotildees dos

partidos em disputa Diz Schopenhauer

Ateacute Kant havia-se estabelecido para si o verdadeiro dilema entrematerialismo e teiacutesmo vale dizer entre a assunccedilatildeo de que um acaso cegoou uma inteligecircncia ordenadora de fora segundo fins e conceitos tenhaproduzido o mundo neque dabatur tertium (Natildeo havia terceirapossibilidade) Por isso ateiacutesmo e materialismo eram a mesma coisa Daiacutea duacutevida se poderia existir um ateu isto eacute uma pessoa que pudesserealmente confiar ao acaso cego a tatildeo extraordinaacuteria ordenaccedilatildeo finaliacutesticada natureza em especial a orgacircnica (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg637)

O problema acerca da produccedilatildeo do mundo eacute apresentada aqui como estando

diretamente relacionada agrave pergunta pelos princiacutepios ou fins norteadores de uma tal

produccedilatildeo Se concordamos com Schopenhauer entatildeo seria necessaacuterio admitir que natildeo

haveriam diferenccedilas fundamentais entre o ateiacutesmo e o materialismo na medida em que o

materialismo seria a explicaccedilatildeo da origem do mundo por meio de causas meramente

fiacutesicas sem a intercessatildeo divina Ou seja ambas interpretaccedilotildees rejeitam a ideia de que

Deus estaria reduzido a agente criador do mundo conforme um plano sumamente

inteligente Do mesmo modo em ambas as leituras parece subsistir a ideia de que o mundo

eacute tal como se nos apresenta

O problema da criaccedilatildeo do mundo tal como eacute posto por Schopenhauer implica na

compreensatildeo do modo como o mundo fora ordenado Nessa leitura ou bem esta ordenaccedilatildeo

se deu por acaso ou bem cumpria os ditames de uma inteligecircncia superior guiada por

finalidades a que se devia tal ordenaccedilatildeo A questatildeo mesma da natureza desta ordenaccedilatildeo natildeo

eacute posta em duacutevida jaacute que para ambos os partidos em disputa ela pareceria evidente na

contemplaccedilatildeo do mundo Teria sido em meio a essa disputa que Kant teria surgido e

mudado o foco da questatildeo por meio da distinccedilatildeo entre fenocircmenos e coisas em si

A validade daquela premissa maior disjuntiva daquele dilema entrematerialismo e teiacutesmo assenta-se na assertiva de que o mundo existentediante de noacutes eacute o das coisas em si por conseguinte natildeo existiria outraordem de coisas senatildeo empiacuterica Poreacutem depois que o mundo e suaordenaccedilatildeo se tornou via Kant mero fenocircmeno cujas leis se encontram

21

principalmente nas formas de nosso intelecto a existecircncia e a essecircnciadas coisas e do mundo natildeo precisam mais ser explanadas conformeanalogia das mudanccedilas percebidas ou efetuadas por noacutes NO mundo Nemaquilo que apreendemos como meio e fim teria nascido em consequecircnciade um tal conhecimento Portanto Kant privando o teiacutesmo de seufundamento mediante a importante distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa emsi abriu por outro flanco o caminho para as explanaccedilotildees completamentediversas e mais profundas sobre a existecircncia (SCHOPENHAUER 1966paacuteg 638)

Para Schopenhauer portanto ateacute Kant apenas se podia discutir a questatildeo da

produccedilatildeo do mundo de duas formas ou bem o mundo eacute produto de uma criaccedilatildeo divina ou

obra do acaso Isto porque o modelo para a compreensatildeo da criaccedilatildeo das coisas era a

atuaccedilatildeo do homem em uma realidade que se considerava a realidade ela mesma Por outro

lado a partir da compreensatildeo de que o mundo que estaacute a disposiccedilatildeo para a criaccedilatildeo por

parte da inteligecircncia eacute justamente o mundo dos fenocircmenos torna-se sem sentido a

analogia entre a inteligecircncia divina e a humana

As duas uacutenicas alternativas ateacute entatildeo ou bem o mundo teria sido constituiacutedo

segundo uma inteligecircncia exterior ou bem seria o resultado de causas mecacircnicas pareciam

insuficientes para dar conta do problema da produccedilatildeo do mundo tanto assim que a questatildeo

natildeo chegava a uma soluccedilatildeo Ao apresentar assim o problema o autor potildee em relevo a

filosofia kantiana como um ponto de ruptura com as correntes de pensamento anteriores

que discerniam apenas de forma dualiacutestica o problema

A inserccedilatildeo de Kant nessa disputa deu-se por meio da compreensatildeo segundo a qual

os seres orgacircnicos natildeo seriam passiacuteveis de compreensatildeo apenas segundo modelos

mecacircnicos porque em sua natureza estaria incluiacuteda uma espeacutecie de necessidade

inexplicaacutevel segundo a necessidade mecacircnica tradicional Ou seja no reino inorgacircnico

diferentemente do reino orgacircnico tudo se reduziria agrave relaccedilatildeo de causas e efeitos segundo a

qual os processos de originaccedilatildeo e desenvolvimento seriam passiacuteveis de serem

compreendidos Para salientar esta questatildeo o filoacutesofo utiliza o caso da cristalizaccedilatildeo a qual

considera uma espeacutecie de crescimento no reino do inorgacircnico

A formaccedilatildeo ocorre pois por uma uniatildeo repentina isto eacute por umasolidificaccedilatildeo raacutepida e natildeo por uma passagem progressiva do estado fluido

22

ao soacutelido mas como que por um salto cuja passagem tambeacutem eacutedenominada cristalizaccedilatildeo (KANT 2016 Paacuteg 211)

A referecircncia kantiana ao processo de cristalizaccedilatildeo eacute pensada como meio de

contrastar o desenvolvimento e relaccedilatildeo entre as partes nos seres inorgacircnicos em relaccedilatildeo ao

mesmo processo nos seres orgacircnicos Para Kant a cristalizaccedilatildeo que nos seres inorgacircnicos

diz respeito ao processo de passagem do estado fluido para o soacutelido e que poderia ser

compreendido como uma forma de crescimento e desenvolvimento no reino inorgacircnico

natildeo seria correlato ao crescimento e desenvolvimento dos seres do reino orgacircnico Posto

que no reino orgacircnico ocorreria uma troca de causaccedilotildees entre o todo e as partes e vice-

versa que natildeo se observa no reino inorgacircnico Segundo o exemplo kantiano haveria uma

muacutetua dependecircncia na geraccedilatildeo das folhas de uma aacutervore em relaccedilatildeo agrave proacutepria aacutervore

contrariamente ao que se observa na realidade inorgacircnica O crescimento das folhas

depende da aacutervore mas o desenvolvimento das aacutervores igualmente depende do

desenvolvimento das folhas

Assim no entender de Kant a causalidade tradicional segundo a qual para cada

efeito deveria haver uma causa determinante natildeo corresponderia ao tipo de necessidade

que se observa na formaccedilatildeo e crescimento de seres organizados Os seres orgacircnicos em

sua leitura seriam determinados por um princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproco que apenas

poderia ser compreendida em conformidade com uma ideia de fim natural Eacute com base

nesse princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproca que no paraacutegrafo 65 da Criacutetica da faculdade do

juiacutezo que parece ter inspirado especialmente as concepccedilotildees criticadas por Nietzsche em

suas notas preparatoacuterias Kant prepara o caminho para sua definiccedilatildeo de um fim natural

Por isso para um corpo dever ser ajuizado em si e segundo a uma formainterna eacute necessaacuterio que as partes do mesmo se produzam umas agraves outrasreciprocamente em conjunto tanto segundo a sua forma como na sualigaccedilatildeo e assim produzam um todo a partir da sua proacutepria causalidadecujo conceito por sua vez e inversamente (num ser que possuiacutesse acausalidade adequada a um tal produto) poderia ser causa dele mesmosegundo um princiacutepio e em consequecircncia a conexatildeo das causaseficientes poderia ser ajuizada simultaneamente como efeito mediantecausas finais (KANT 2016 Paacuteg 239)

23

A explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos assim requer um elemento estranho agrave explicaccedilatildeo

dos seres inorgacircnicos Para a explicaccedilatildeo do desenvolvimento das plantas que eacute o exemplo

preferido pelo filoacutesofo nosso entendimento requer uma concepccedilatildeo de fim natural que

contrasta com a causalidade mecacircnica na medida em que causas eficientes devem ser

tomadas tambeacutem como ldquoefeitos mediante causas finaisrdquo logo a uma concepccedilatildeo de fim

natural das partes em relaccedilatildeo ao todo Nesse sentido ldquoEste princiacutepio que eacute ao mesmo

tempo a definiccedilatildeo dos seres organizados eacute o seguinte um produto organizado da natureza

eacute aquele em que tudo eacute fim e reciprocamente meio Nele nada eacute em vatildeo sem fim ou

atribuiacutevel a um mecanismo natural cegordquo (KANT 2016 Paacuteg 242) Diferentemente do

reino inorgacircnico em que se observa que para cada causa corresponde um efeito que se

torna independente da causa originaacuteria no sentido de que natildeo seria retroativo em relaccedilatildeo a

essa causa cada parte de um ser organizado eacute causa e fim do ser organizado enquanto

totalidade

O exemplo escolhido por Kant o de uma planta de cujas folhas eacute ao mesmo

tempo fim e meio expressa claramente a ideia de necessidade de uma causa final diretora

das causas em jogo nas partes e no todo Posto que o desenvolvimento das folhas eacute efeito

da planta mas como o desenvolvimento da proacutepria planta depende do desenvolvimento

das folhas o desenvolvimento das folhas tambeacutem seria causa do desenvolvimento da

planta Esta concepccedilatildeo de uma coisa como fim de si mesma segundo Kant possuiacutea apenas

uma analogia com a causalidade enquanto ldquoconceito constitutivo de nosso entendimentordquo

ou seja enquanto forma de nosso entendimento Pois no tipo de causalidade que se

observaria no reino orgacircnico na reciprocidade de causaccedilatildeo que se observa na relaccedilatildeo entre

os seres orgacircnicos e suas partes teriacuteamos um residuum um fragmento natildeo explicado do

fenocircmeno sempre que o pensaacutessemos segundo o conceito inteligiacutevel de causalidade

O problema da teleologia natural surge quando considerado o tipo de ldquocausalidaderdquo

atuante no reino orgacircnico em que parece atuar uma espeacutecie de finalidade que apenas seria

compreensiacutevel segundo a analogia de uma inteligecircncia superior Para esta finalidade

superior a ldquocausalidaderdquo corresponderia como categoria superior Assim ao menos

metodologicamente pareceria viaacutevel a suposiccedilatildeo de uma inteligecircncia superior como forma

de se compreender a causalidade atuante na natureza orgacircnica

Por outro lado enquanto a concepccedilatildeo de uma inteligecircncia formativa exterior esteja

para muito aleacutem de nossa capacidade de conhecimento posto que a sua universalidade a

24

colocaria para aleacutem dos limites do conhecimento empiacuterico recai sob a concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza o mesmo veto jaacute estabelecido na primeira criacutetica kantiana para as

ideias de Deus Liberdade e Alma Desta forma explica-se de que maneira a faculdade do

juiacutezo eacute aproximada por Kant da razatildeo teoacuterica e da razatildeo praacutetica Por meio de um uso

regulativo da concepccedilatildeo de conveniecircncia a fins que deve diferenciaacute-la do uso constitutivo

que o intelecto faz de seus conceitos Kant estabelece o uso do princiacutepio teleoloacutegico como

meacutetodo analoacutegico e acessoacuterio para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

O conceito de uma coisa enquanto fim natural em si natildeo eacute por isso umconceito constitutivo do entendimento ou da razatildeo No entanto pode serum conceito regulativo para a faculdade de juiacutezo reflexiva para orientar ainvestigaccedilatildeo sobre objetos desta espeacutecie segundo uma analogia remotacom nossa causalidade segundo fins em geral refletir sobre o seu maisalto fundamento o que natildeo serviria para o conhecimento da natureza oude seu fundamento originaacuterio mas muito mais do conhecimento daquelanossa faculdade racional praacutetica com a qual por analogia noacutesconsideraacutevamos a causa daquela conformidade a fins (KANT 2016 Paacuteg241-242)

O propoacutesito de Kant assim natildeo se confunde com a descriccedilatildeo da finalidade natural

Menos ainda com a proposiccedilatildeo da existecircncia de uma causalidade superior Por meio da

suposiccedilatildeo de uma finalidade natural o filoacutesofo da criacutetica apenas pensava constituir o

intelecto com mais um instrumento para a compreensatildeo da natureza o que fica claro no

paraacutegrafo 68 da Criacutetica da faculdade do juiacutezo em que o autor trata da teleologia como um

princiacutepio interno da natureza

Neste paraacutegrafo Kant parte da definiccedilatildeo na constituiccedilatildeo das ciecircncias de seus

princiacutepios internos ou princiacutepios constitutivos e os princiacutepios externos aqueles que

encontram sua fundamentaccedilatildeo em outras ciecircncias Com essa distinccedilatildeo o autor pretende

considerar o princiacutepio teleoloacutegico como princiacutepio externo agrave ciecircncia da natureza como um

princiacutepio assessoacuterio agrave ciecircncia da fiacutesica tal qual as ciecircncias matemaacuteticas Ou seja mais do

que traccedilar consideraccedilotildees epistemoloacutegicas Kant procura afastar-se da concepccedilatildeo de fim na

natureza como produto de uma inteligecircncia externa

A distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si aparece aqui como elemento fundamental

dessa compreensatildeo Pois eacute atraveacutes de seu posicionamento transcendental que o autor busca

separar a teleologia da teologia e assim abrir caminho para um uso cientiacutefico do princiacutepio

25

teleoloacutegico no estudo da natureza Este uso cientiacutefico meramente metodoloacutegico distingue-

se completamente das explicaccedilotildees teiacutestas da natureza

Diferentemente da compreensatildeo teoloacutegica que parte da pressuposiccedilatildeo de uma

inteligecircncia superior como fonte da finalidade natural o autor entende que apesar de nosso

entendimento carecer de um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

conceber uma inteligecircncia exterior como causa da finalidade natural estaacute muito aleacutem da

capacidade cognitiva humana Por conta das limitaccedilotildees tiacutepicas de nossa forma de

considerar a realidade natildeo se pode saber se haacute um ser sumamente inteligente que criou a

natureza posto que tal existecircncia por definiccedilatildeo natildeo pode ser objeto de entendimento Do

mesmo modo seria impossiacutevel saber se caso um tal ser sumamente inteligente existisse

teria constituiacutedo a realidade segundo os princiacutepios de uma inteligecircncia anaacuteloga agrave

inteligecircncia humana Schopenhauer compreendeu bem essa distinccedilatildeo kantiana e natildeo

deixou de prestar sua homenagem a Kant pela sabedoria de suas conclusotildees

Kant tem plena razatildeo no assunto tambeacutem era necessaacuterio que apoacutes tersido mostrado que o conceito de causa e efeito natildeo se aplica ao todo danatureza em geral segundo sua existecircncia tambeacutem fosse mostrado queconforme sua iacutendole a natureza natildeo pode ser pensada como efeito deuma causa guiada por motivos (conceito de finalidade) Caso se pense nagrande plausibilidade da prova fisico-teoloacutegica que ateacute mesmoVOLTAIRE considerava irrefutaacutevel era da maior importacircncia mostrarque o subjetivo de nossa apreensatildeo para o qual Kant reivindicou espaccedilotempo e causalidade estende-se tambeacutem ao nosso julgamento dos corposnaturais e por conseguinte a necessidade que sentimos em pensaacute-loscomo surgidos premeditadamente segundo conceitos de finalidade logopor uma via ONDE A REPRESENTACcedilAtildeO DOS MESMOS TERIAPRECEDIDO SUA EXISTEcircNCIA eacute de origem tatildeo subjetiva quanto aintuiccedilatildeo do espaccedilo a expor-se objetivamente a qual entretanto natildeo podevaler como verdade objetiva (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 661)

Conforme o entendimento de Schopenhauer ao limitar o alcance do conceito de

finalidade agrave esfera da compreensatildeo humana Kant teria posto termo a credibilidade da

prova fiacutesico-teoloacutegica segundo a qual todo existente dependia de uma inteligecircncia

criadora Kant teria alcanccedilado esta vitoacuteria ao pressupor apenas de modo metodoloacutegico a

existecircncia de uma finalidade superior como uma exigecircncia do entendimento humano que

natildeo se sabe se pode obter um equivalente na realidade Nietzsche no entanto parece natildeo

26

ter tomado como suficiente o papel regulativo que Kant confere ao princiacutepio de fim

natural

A discordacircncia nietzschiana da compreensatildeo kantiana do problema natildeo eacute incidental

Pelo contraacuterio a forma como Kant reproduz o problema da teleologia apresenta-se ao autor

das notas preparatoacuterias como modelo da teoria a ser criticada Assim jaacute nas primeiras

linhas de Zur Teleologie o autor enuncia sua discordacircncia com o pensamento kantiano

ldquoKant tenta provar lsquoque haacute uma necessidade para pensar organismos como premeditados

quer dizer pensaacute-los em termos de conceitos de conformidade a finsrsquo apenas posso aceitar

que isto eacute uma forma de explicar-se a teleologiardquo (BAW 3 paacuteg 130)20 O que indica que o

filoacutesofo por seus proacuteprios motivos certamente apropria-se de forma inovadora da

distinccedilatildeo kantiana entre constitutivo e regulativo

Na medida em que se propotildee a efetuar uma reduccedilatildeo do conceito de explicaccedilatildeo a

uma concepccedilatildeo interpretativa entendimento que jaacute antecipa uma compreensatildeo

perspectivista Nietzsche pensa o conceito de finalidade natural como uma

antropomorfizaccedilatildeo desnecessaacuteria Nesse sentido tambeacutem o conceito de conveniecircncia a

fins para o autor das notas preparatoacuterias deveria ser compreendido como um aspecto

interpretativo mais do que um aspecto descritivo da natureza Um fato marcante para o

jovem Nietzsche eacute que em sua leitura o proacuteprio Kant deveria ter realizado a criacutetica das

concepccedilotildees reguladoras

O autor das notas preparatoacuterias compreende que se Kant natildeo o fez seria porque se

deixou levar por uma consideraccedilatildeo da concepccedilatildeo teleoloacutegica como expressatildeo de um

conhecimento do qual o autor da criacutetica sabia desde o princiacutepio natildeo ter direito Assim o

autor das notas preparatoacuterias engloba Kant em sua criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como

um antropomorfismo ingecircnuo embora seja muito provaacutevel que o proacuteprio Kant tenha

criticado as mesmas concepccedilotildees sob a mesma alegaccedilatildeo

De fato na medida em que considera sem sentido o recurso kantiano aos juiacutezos

explicativos Nietzsche enxerga no caraacuteter indeterminado do modo humano de

compreensatildeo da natureza a ausecircncia de um princiacutepio que justifique a admissatildeo dos

produtos de nossa consideraccedilatildeo da realidade como verdades inquestionaacuteveis A

conveniecircncia a fins na natureza eacute entatildeo reduzido elo autor a uma expressatildeo do modo

20 As notas Zur Teleologie satildeo citadas a partir do terceiro volume da ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas dejuventude de Nietzsche organizadas por METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a siglaldquoBAW 3rdquo e conforme sua paginaccedilatildeo As traduccedilotildees satildeo de nossa responsabilidade

27

humano de compreensatildeo do reino do orgacircnico Compreendida pelo autor das notas

preparatoacuterias como uma criaccedilatildeo do intelecto condicionada pelo proacuteprio aparelho conceitual

e perceptivo do homem a finalidade na natureza natildeo passaria de uma ficccedilatildeo que cumpre

um papel na ordenaccedilatildeo humana da realidade mas que fora desta ordenaccedilatildeo poderia natildeo ter

nenhum significado

Em Zur Telelologie A disposiccedilatildeo do reino orgacircnico segundo a ideia de uma

conveniecircncia a fins eacute tomada como produto de uma ldquoimaginaccedilatildeo estendidardquo uma ficccedilatildeo

criada pelo homem para poder regular seu conhecimento e suas accedilotildees Desde que para o

autor das notas preparatoacuterias o conceito de conformidade a fins eacute considerado um produto

esteacutetico esta concepccedilatildeo passa a ser a expressatildeo de um poder inconsciente que cria e se

serve do conhecimento para as funccedilotildees vitais como fortalecimento crescimento

preservaccedilatildeo Esta interpretaccedilatildeo diverge significativamente da interpretaccedilatildeo kantiana na

qual a noccedilatildeo de uma teleologia natural eacute pensada como um conceito subjetivo fundamental

para o uso da razatildeo

Nas notas preparatoacuterias Nietzsche ainda natildeo adianta a tese que nortearaacute seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira de que este tipo de ordenaccedilatildeo da natureza cumpre um papel

fundamental na conservaccedilatildeo do gecircnero humano A ideia fundamental nas notas eacute que uma

finalidade na natureza apenas eacute vista como uma forma especial de finalidade porque

tomamos a conservaccedilatildeo da vida como uma finalidade especial Assim o autor afirma no

apontamento 62[29] ldquoAqui verifica-se que acabamos de chamar proposital o que eacute viaacutevel

O segredo eacute apenas lsquovidarsquordquo(BAW 3 Paacuteg 380) Ao comentar as notas em questatildeo Lopes

identifica nesta concepccedilatildeo um certo pendor para a teoria de Lange na medida em que o

autor das notas preparatoacuterias amplia o escopo dos juiacutezos reflexivos tornando-os uma

questatildeo de utilidade bioloacutegica

Tambeacutem aqui Nietzsche deve ser visto como um herdeiro do programa deLange ao problematizar a distinccedilatildeo kantiana entre uso regulativo edeterminante dos juiacutezos Nietzsche daacute um passo decisivo rumo a umacompreensatildeo ficcional generalizada dos processos de assimilaccedilatildeo humanado mundo Os conceitos mobilizados pelos juiacutezos determinantes(Nietzsche fornece uma lista algo aleatoacuteria destes conceitos na passagemacima) satildeo igualmente regulativos e pertencem agrave mesma estrateacutegiaantropomoacuterfica de apropriaccedilatildeo do mundo (LOPES 2008 Paacuteg 153)

28

Assim a compreensatildeo de base de que os conceitos satildeo criaccedilotildees humanas

condicionadas pela organizaccedilatildeo humana que eacute um traccedilo comum a ambas obras de

juventude nietzschianas tanto seu Ensaio sobre Verdade e Mentira quanto as notas

preparatoacuterias representaria uma releitura de uma conclusatildeo fundamental da filosofia de

Albert Lange Ou seja a apropriaccedilatildeo da concepccedilatildeo kantiana de uso regulativo dos

conceitos na forma de uma consideraccedilatildeo bioloacutegica uma apropriaccedilatildeo em que os interesses

para a vida entram em jogo representaria uma interpretaccedilatildeo nietzschiana das

consideraccedilotildees de Albert Lange o qual para Lopes ldquorestringe a fantasia especulativa ao

acircmbito do discurso edificante e da ficccedilatildeo conceitualrdquo (LOPES 2008 Paacuteg 152)

O que estaacute sendo dito aqui eacute que tanto para Albert Lange quanto para o jovem

autor das notas preparatoacuterias conceitos como o conceito de finalidade natural cumpririam

um importante papel na apropriaccedilatildeo humana da realidade Com o amadurecimento da

reflexatildeo nietzschiana uma consequecircncia mais geral desta forma de compreensatildeo do

problema conduziraacute agrave ideia de que natildeo haacute conhecimento no sentido tradicional mas

somente interpretaccedilatildeo criaccedilatildeo de ilusotildees segundo a determinaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo e

conforme a necessidade humana de dominaccedilatildeo da natureza Os juiacutezos explicativos

pressupostos por Kant em sua criacutetica do juiacutezo tornam-se sem sentido na reflexatildeo do jovem

Nietzsche devendo ser substituiacutedos pela categoria de interpretaccedilatildeo Esta compreensatildeo do

papel da interpretaccedilatildeo como uma afirmaccedilatildeo dos limites da compreensatildeo humana antecipa

os traccedilos fundamentais da madura compreensatildeo nietzschiana do conhecimento

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia

Como apresentamos na seccedilatildeo anterior a redaccedilatildeo das notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie tem nas reflexotildees de Kant e Schopenhauer uma inspiraccedilatildeo contiacutenua No entanto

em sua investigaccedilatildeo do problema teleoloacutegico o autor das notas busca conferir uma

abordagem diferenciada ao problema Esta abordagem diferenciada em parte se deveria a

uma constante reflexatildeo em torno das descobertas das ciecircncias naturais Ou seja a novidade

da abordagem nietzschiana se explica em parte no caraacuteter semicientiacutefico que o autor

29

pretendia conferir a sua tese No entanto no plano filosoacutefico qual seria a natureza das

divergecircncias de Nietzsche com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer

Na medida em que a criacutetica nietzschiana a toda forma de teleologia baseia-se em

uma consideraccedilatildeo do caraacuteter antropomoacuterfico da proacutepria ideia de conveniecircncia a fins21 a

interpretaccedilatildeo kantiana apareceria como modelo de uma forma ingecircnua de interpretaccedilatildeo

teleoloacutegica por desconsiderar a atuaccedilatildeo do intelecto na formaccedilatildeo daquilo que

compreendemos como a ideia de organismo Nessa criacutetica o autor acompanha de perto a

Schopenhauer a quem se refere ao apontar que ldquoA simples ideia eacute distribuiacuteda na

multiplicidade de partes e condiccedilotildees do organismo mas resta intacta na junccedilatildeo necessaacuteria

das partes e funccedilotildeesrdquo (BAW 3 paacuteg 372)

A divergecircncia do autor das notas com relaccedilatildeo agrave Kant portanto eacute posta nos

primeiros momentos de sua reflexatildeo sua abordagem do problema entende-se como um

afastamento de Kant na medida em que o autor das notas pretende efetuar a reduccedilatildeo da

ideia de finalidade natural a um traccedilo da proacutepria constituiccedilatildeo humana A afirmaccedilatildeo

nietzschiana de que Kant deveria ser compreendido como um filoacutesofo filiado a uma

corrente teleoloacutegica em filosofia (BAW Paacuteg 372) estaacute diretamente ligada a esta forma de

compreensatildeo do problema Para Nietzsche a defesa de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica como

necessaacuteria para a compreensatildeo da natureza tal como esta noccedilatildeo apareceria na Criacutetica do

Juiacutezo soacute poderia ser admitida como uma maneira de definir o conceito de teleologia

A denuacutencia da filosofia kantiana como uma forma de defesa da teleologia parte da

compreensatildeo de que Kant chega em sua investigaccedilatildeo da finalidade natural a uma

conclusatildeo natildeo fundamentada Em sua anaacutelise das conclusotildees da Criacutetica do Juiacutezo

Nietzsche identifica uma transposiccedilatildeo indevida da anaacutelise da realidade fenomecircnica para

21 Crawford observa o caraacuteter antropomoacuterfico por traacutes da proacutepria consideraccedilatildeo da ideia de conveniecircncia afins tal como Nietzsche entende essa ideia ldquoAo levarmos em consideraccedilatildeo o primeiro ponto nos planos daobra de Nietzsche lsquoconceito de conveniecircncia a finsrdquo (Begriff der Zweckmaumlssigkeit BAW 3 Paacuteg 392) noteque ele qualifica a palavra conveniecircncia a fins (Zweckmaumlssigkeit Crawford traduz este termo por expedience)como o conceito de conveniecircncia a fins Nietzsche cita Kant duas vezes a partir da Criacutetica do Juiacutezo acerca dopapel fundamental dos conceitos lsquoNoacutes temos completa ideia apenas do que podemos fazer e cumprir deacordo com nossos conceitosrsquo A isso Nietzsche responde lsquoo que se encontra aleacutem dos conceitos eacutecompletamente incompreensiacutevelrsquo Tendo em vista superar o fato de que os seres humanos se potildee diante dodesconhecido eles inventam lsquoconceitos os quais apenas reuacutenem uma soma de caracteriacutesticas aparentes asquais poreacutem natildeo conseguem apreender as coisasrsquo Nietzsche entatildeo enfatiza a natureza provisional daconceitualidade com relaccedilatildeo aos elementos baacutesicos de uma consideraccedilatildeo teleoloacutegica ao escrever lsquoEntre estesestatildeo forccedila mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causa final Estes natildeo satildeo partes mas apenas juiacutezosreflexivosrsquordquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 110)

30

uma realidade superior apartada do mundo orgacircnico o que representaria um salto loacutegico

com base na pressuposiccedilatildeo da necessidade de se considerar fins na natureza Para o autor

das notas preparatoacuterias portanto Kant natildeo teria conseguido superar a interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica do problema teleoloacutegico

O tratamento do problema da teleologia nas notas preparatoacuterias que se oferece

como a transiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica para uma interpretaccedilatildeo eminentemente

epistemoloacutegica converge para uma forma de reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento

e dos limites da capacidade de compreensatildeo humana Assim em sua leitura Nietzsche

concebe a origem da ideia de finalidade exterior como uma superexaltaccedilatildeo da

racionalidade humana que por meio da analogia entre a inteligecircncia constituidora da

natureza com a nossa organizaccedilatildeo conduz a uma compreensatildeo da realidade segundo

princiacutepios finaliacutesticos

Para o jovem Nietzsche a suposiccedilatildeo de uma realidade organizada mediante uma

inteligecircncia exterior seria um antropomorfismo ingecircnuo Tal antropomorfismo que faz

com que se conceba a ideia de finalidade como um traccedilo ineliminaacutevel da realidade

conduziria inevitavelmente a uma concepccedilatildeo teleoloacutegica da realidade Competiria agrave criacutetica

da concepccedilatildeo teleoloacutegica desvelar este antropomorfismo por meio da fundamentaccedilatildeo da

compreensatildeo desta ideia como uma forma humana de compreensatildeo da realidade Nesse

sentido na medida em que a concepccedilatildeo teleoloacutegica diria respeito a nosso modo de

enxergar a realidade e natildeo agrave realidade tal como ela poderia ser em si mesma Nietzsche

trata do problema mediante um tratamento segundo uma anaacutelise das condiccedilotildees de

percepccedilatildeo das finalidades e natildeo de sua realidade necessaacuteria que seria a pretensatildeo por traacutes

das aproximaccedilotildees racionalistas

Segundo a leitura apresentada por Nietzsche nas notas preparatoacuterias a explicaccedilatildeo

kantiana do mundo orgacircnico parece reclamar um recurso agraves coisas em si para sua

justificaccedilatildeo Nesse sentido o jovem autor das notas preparatoacuterias se volta contra Kant e a

favor de Schopenhauer quando afirma ldquoA ideia expandida acima confere a explicaccedilatildeo da

conveniecircncia a fins externa A coisa em si deve lsquomostrar sua unidade na aceitaccedilatildeo de todas

as partesrsquordquo (BAW 3 paacuteg 373) O filoacutesofo compreende que se a natureza apenas nos pode

ser compreensiacutevel mediante a ideia de uma necessidade ou uma propensatildeo natural a fins

31

isto deveria ser creditado a uma caracteriacutestica de nossa forma de compreender o mundo e

natildeo agrave realidade ela mesma

A ideia de uma finalidade natural ideia na qual Kant teria se baseado para sua

defesa da adoccedilatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico norteador da investigaccedilatildeo da natureza

aparece nessa leitura como a transposiccedilatildeo de um elemento da consideraccedilatildeo humana da

natureza para a proacutepria natureza A criacutetica nietzschiana a interpretaccedilatildeo teleoloacutegica kantiana

portanto baseia-se na ideia de que a referecircncia ou o pressuposto da experiecircncia humana

como condiccedilatildeo de constituiccedilatildeo da natureza natildeo pode ser entendido senatildeo como a

radicalizaccedilatildeo de um caraacuteter aleatoacuterio como uma antropomorfizaccedilatildeo da natureza Esta

criacutetica no entanto apenas pode ser adiantada por Nietzsche na medida em que o autor

julga insuficiente o recurso kantiano agrave distinccedilatildeo entre conceito explicativo e conceito

regulativo Ou seja Nietzsche pensa que a admissatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico ainda que

meramente como uma ferramenta auxiliar no estudo da natureza torna a concepccedilatildeo

kantiana como modelo de toda forma de defesa ingecircnua do princiacutepio de finalidade externa

Mas como compreender a relaccedilatildeo intriacutenseca entre as partes e o todo em um

organismo senatildeo por meio de uma ideia de finalidade Assim como na leitura

schopenhaueriana Nietzsche entende que esta accedilatildeo de junccedilatildeo seria uma accedilatildeo realizada

pelo intelecto e natildeo uma caracteriacutestica dos organismos Deste modo o autor das notas

afirma ldquoA conveniecircncia a fins do orgacircnico a regularidade do inorgacircnico satildeo acrescentadas

agrave natureza atraveacutes de nossa compreensatildeordquo (BAW 3 paacuteg 373) Nesse sentido a

conveniecircncia a fins identificada por Kant na realidade orgacircnica corresponderia apenas a

uma transposiccedilatildeo do modo humano de compreensatildeo da natureza agrave proacutepria natureza

A conformidade de opiniatildeo entre Nietzsche e Schopenhauer natildeo eacute total Esta

concordacircncia com Schopenhauer aparece nas notas preparatoacuterias quase que de forma

instrumental especialmente para a criacutetica da posiccedilatildeo kantiana Por outro lado o

desenvolvimento da reflexatildeo nietzschiana conduz a uma criacutetica ao recurso

schopenhaueriano agrave vontade como instacircncia em que a ideia de unidade se fundamentaria

Nessa leitura a compreensatildeo schopenhaueriana da ideia de conflito na natureza como uma

reflexo da atuaccedilatildeo do intelecto que se resolveria na ideia uacutenica de vontade eacute apresentada

como implicando em dificuldades teoacutericas incontornaacuteveis que apenas por meio do recurso

a uma vontade ao mesmo tempo muacuteltipla e una seria solucionaacutevel

32

A interpretaccedilatildeo schopenhaueriana da conformaccedilatildeo das partes ao todo aparece em

sua filosofia como resposta ao problema da adequaccedilatildeo dos organismos em relaccedilatildeo agraves preacute-

condiccedilotildees de sua existecircncia Nesta abordagem tambeacutem eacute levada em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo

entre as partes do organismo em relaccedilatildeo ao organismo como um todo tal como esta relaccedilatildeo

eacute expressa por Kant na Criacutetica do Juiacutezo e que seria justamente o que fundamenta a

concepccedilatildeo teleoloacutegica expressa naquela obra22 Para Schopenhauer o instinto animal seria

a perfeita representaccedilatildeo da figuraccedilatildeo da finalidade na natureza Pois os animais embora

natildeo possam se figurar uma finalidade por natildeo serem racionais parecem agir segundo uma

finalidade sua manutenccedilatildeo

De maneira geral o instinto dos animais nos fornece o melhoresclarecimento para a restante teleologia da natureza Pois se o instinto eacutecomo se fosse um agir conforme um conceito de fim no entantocompletamente destituiacutedo dele assim tambeacutem todos os quadros danatureza se assemelham aos feitos conforme a um conceito de fim e noentanto completamente destituiacutedos dele Em realidade tanto nateleologia externa quanto na interna da natureza aquilo que temos depensar como meio e fim eacute em toda parte apenas o FENOcircMENO DAUNIDADE DA VONTADE UNA EM CONCORDAcircNCIA CONSIGOMESMA que apareceu no espaccedilo e no tempo para o nosso modo deconhecimento (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Como se explica esta correlaccedilatildeo temporal assim como sua reciprocidade A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta finalidade natural se daacute por meio da conformidade dos

fenocircmenos em relaccedilatildeo a uma objetividade originaacuteria da Vontade Una Como a passagem

deixa claro toda teleologia natural seria apenas o reflexo de uma harmonia da Vontade Una

que aparece no fenocircmeno segundo os ditames do intelecto Pois se toda ideia de fim na

natureza seria apenas manifestaccedilatildeo da Vontade Una no tempo e espaccedilo para nosso

conhecimento isto significa que a teleologia natildeo corresponde ao modo de ser da realidade

mas apenas ao modo humano de interpretar esta Vontade Una enquanto fenocircmeno A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta relaccedilatildeo aprofunda a suposiccedilatildeo kantiana de uma

finalidade natural que faria convergir as necessidades das partes de um organismo agraves

necessidades do organismo propriamente

22 Conforme jaacute analisado em seccedilatildeo anterior deste capiacutetulo

33

Se Kant enxerga nos organismos uma relaccedilatildeo reciacuteproca de causaccedilatildeo finaliacutestica uma

muacutetua dependecircncia e conformaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo e vice-versa

Schopenhauer entende essa relaccedilatildeo como reflexo da objetivaccedilatildeo dos fenocircmenos no tempo

segundo uma mesma Ideia diretora na Vontade Una De tal forma que a conformidade

entre as exigecircncias para o surgimento e manutenccedilatildeo de cada espeacutecie em seu ambiente

assim como entre as espeacutecies mesmas apareceria como a expressatildeo de uma objetivaccedilatildeo da

vontade segundo o tempo que natildeo eacute uma categoria da Vontade Una ela mesma eterna e

imutaacutevel mas do entendimento humano

Por conseguinte tendo em mente nossa presente consideraccedilatildeo sobre omodo como a objetivaccedilatildeo da Vontade se distribui em Ideias o curso dotempo eacute totalmente sem significaccedilatildeo e as Ideias cujos FENOcircMENOSapareceram mais cedo no tempo segundo a lei da causalidade agrave qualestatildeo submetidas como fenocircmenos natildeo possuem nenhum direito preacutevioem face daquelas Ideias cujos fenocircmenos apareceram mais tarde e quesatildeo a bem-dizer justamente as objetivaccedilotildees mais perfeitas da Vontade eque tecircm de se adaptar agraves objetivaccedilotildees anteriores tanto quanto estas a elas(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em outros termos se a sucessatildeo temporal corresponde apenas a um modo do

intelecto representar entatildeo natildeo haacute que se espantar a perfeita correlaccedilatildeo entre o

aparecimento de uma espeacutecie e as condiccedilotildees de seu aparecimento Mais ainda esta relaccedilatildeo

de acomodaccedilatildeo natildeo apenas se expressaria na relaccedilatildeo entre o fenocircmeno precedente e o que

lhe sucede mas tambeacutem de forma retrospectiva

Nesse sentido a explanaccedilatildeo dada tambeacutem tem de ser usadaretrospectivamente e devemos natildeo apenas assumir que cada espeacutecie seadapta agraves circunstacircncias encontradas previamente mas tambeacutem estasprecedendo as espeacutecies no tempo levam igualmente em conta os seresque ainda estatildeo por vir Pois se trata de uma uacutenica e mesma Vontade quese objetiva no mundo Esta natildeo conhece tempo algum visto que a figuratemporal do princiacutepio de razatildeo natildeo pertence a ela nem agrave sua objetividadeoriginaacuteria as Ideias mas soacute agrave maneira como estas satildeo conhecidas pelosindiviacuteduos ndash eles mesmos transitoacuterios ndash isto eacute aos fenocircmenos das Ideias(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em sua interpretaccedilatildeo Schopenhauer pensa a relaccedilatildeo de reciprocidade entre

organismo e ambiente como algo que deve ser posto em antecipaccedilatildeo ao surgimento do

34

organismo de tal maneira que ldquoEm conformidade com tudo isso cada fenocircmeno teve de

se adaptar ao ambiente no qual apareceu e este por seu turno teve de adaptar-se agravequele

embora cada fenocircmeno ocupe muito mais tardiamente uma posiccedilatildeo no tempordquo

(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 226) Nesta leitura a finalidade natural eacute representada

pelo autor como exigecircncia necessaacuteria nesta adequaccedilatildeo reciacuteproca entre organismo e

ambiente De tal maneira que ou se pressupotildee uma finalidade natural a guiar o surgimento

dos organismos ou seriacuteamos levados a pensar que cada fenocircmeno natural anteciparia no

tempo as necessidades dos fenocircmenos que lhe sucedem e estes reciprocamente agravequeles

Ora se a Vontade Una natildeo estaacute sujeita ao curso do tempo a sucessatildeo temporal

embora seja fundamental na compreensatildeo dos fenocircmenos natildeo lhe diz respeito Na Vontade

Una natildeo haveria reflexo para a aparente adequaccedilatildeo entre os fenocircmenos que se sucedem

porque o tempo natildeo tem realidade na Vontade Se natildeo haacute sucessatildeo temporal na Vontade

natildeo pode haver uma pressuposiccedilatildeo de adequaccedilatildeo entre a ordem dos fenocircmenos Seria

assim o intelecto que conferiria aos fenocircmenos os aspectos antecipatoacuterios que conferimos

a toda coincidecircncia entre um determinado conjunto de caracteriacutesticas necessaacuterias e o

surgimento da espeacutecie mesma dependente destas caracteriacutesticas

O princiacutepio de razatildeo norteador do surgimento dos fenocircmenos no tempo segundo

Schopenhauer garante o surgimento dos fenocircmenos enquanto conformidade a uma

predeterminaccedilatildeo antecipada na unidade da Vontade Com isso o filoacutesofo parece adiantar

uma ideia de harmonia dos fenocircmenos enquanto objetivaccedilatildeo da Vontade Pois em sua

leitura ldquoTodas as partes da natureza se encaixam pois eacute uma Vontade UNA que aparece

em todas elasrdquo (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227) A explicaccedilatildeo da adequaccedilatildeo das

espeacutecies ao ambiente portanto pressupotildee a harmonia preestabelecida na unidade da

Vontade que se apresentaria para os princiacutepios da razatildeo segundo o aspecto subjetivo de

uma teleologia natural

Nietzsche seraacute certamente influenciado por esta compreensatildeo do problema da

teleologia embora com ressalvas A manutenccedilatildeo da vida de um animal como princiacutepio de

finalidade seraacute por exemplo problematizado por Nietzsche Em sua leitura o autor das

notas preparatoacuterias questiona a superioridade da manutenccedilatildeo da vida de um organismo em

relaccedilatildeo agrave manutenccedilatildeo de uma substacircncia inorgacircnica Seria necessaacuterio pensar que a

manutenccedilatildeo de um ser vivo requer maior conveniecircncia a fins do que a manutenccedilatildeo de uma

rocha em unidade consigo mesma ou a finalidade neste caso como em tantos outros

35

apareceria aqui apenas como resultado de uma antropomorfizaccedilatildeo e de uma

supervalorizaccedilatildeo da complexidade envolvida com tudo que diz respeito agrave vida O autor das

notas tende para a segunda resposta

Para Nietzsche que parece enxergar nas consideraccedilotildees de Kant e Schopenhauer

apenas a passagem de um modo necessaacuterio de compreensatildeo da realidade para uma

suposiccedilatildeo da proacutepria realidade com que se daria uma improcedente antropomorfizaccedilatildeo da

natureza A diferenccedila de posicionamento aqui diz respeito agrave radicalidade da interpretaccedilatildeo

nietzschiana que problematiza tanto a suposiccedilatildeo kantiana da necessidade de uma

teleologia natural como modo de explicaccedilatildeo da natureza quanto a suposiccedilatildeo

schopenhaueriana de uma unidade da vontade como modo de justificaccedilatildeo da correlaccedilatildeo

entre os fenocircmenos no tempo Por outro lado Nietzsche julga problemaacutetica a conciliaccedilatildeo

schopenhaueriana da ideia de conflito e a pressuposiccedilatildeo de uma unidade na Vontade

Na leitura do autor das notas preparatoacuterias o grande problema da interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana diria respeito agrave tentativa do filoacutesofo em conciliar a unidade da vontade

com a ideia de conflito na natureza Schopenhauer pensa natildeo apenas a harmonia derivada

da unidade da vontade mas o proacuteprio conflito como necessaacuterios para a manutenccedilatildeo das

espeacutecies Nesse sentido nem mesmo a adaptaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo dos fenocircmenos destroem o

conflito que eacute essencial agrave vontade seria ainda a fonte das guerras interminaacuteveis de

extermiacutenio dos indiviacuteduos

No entanto a adaptaccedilatildeo e a acomodaccedilatildeo reciacuteproca dos fenocircmenos quesurgem dessa unidade natildeo podem anular o conflito intriacutensecoanteriormente exposto o qual aparece na luta geral da natureza e eacuteessencial agrave Vontade Aquela harmonia vai soacute ateacute onde torna possiacutevel aCONSERVACcedilAtildeO do mundo e de seus seres os quais sem ela haacute muitotempo teriam se extinguido Em consequecircncia se em virtude daquelaharmonia e acomodaccedilatildeo as ESPEacuteCIES no reino orgacircnico e as FORCcedilASUNIVERSAIS DA NATUREZA no reino inorgacircnico se conservam lado alado e ateacute se apoiam reciprocamente por outro lado o conflito interno agraveVontade que se objetiva por meio de todas aquelas ideias mostra-senuma guerra interminaacutevel de extermiacutenio dos INDIVIacuteDUOS de cadaespeacutecie e na luta constante dos FENOcircMENOS das forccedilas da naturezaentre si como abordamos antes O cenaacuterio e o objeto dessa batalha eacute amateacuteria que eles se empenham por arrebatar uns dos outros bem como oespaccedilo e o tempo cuja uniatildeo pela forma da causalidade eacute propriamentea mateacuteria como foi exposto no primeiro livro (SCHOPENHAUER2005 paacuteg 227-228)

36

Na leitura nietzschiana a suposiccedilatildeo do mundo orgacircnico entendido na acepccedilatildeo

schopenhaueriana como representaccedilatildeo de uma unidade harmocircnica em que a proacutepria luta

pela existecircncia desempenharia um papel importante eacute rejeitada na consideraccedilatildeo da

impropriedade em se considerar uma ideia de luta dos indiviacuteduos como compatiacutevel com a

ideia de uma unidade da vontade Com isso a justificaccedilatildeo para a ideia de unidade que se

daria na concepccedilatildeo schopenhaueriana de vontade resumida por Nietzsche na citaccedilatildeo

ldquotodas as partes da natureza encontram umas as outras por que haacute uma vontaderdquo (BAW 3

paacuteg 373) eacute contraposta a uma concepccedilatildeo da realidade como sendo inerentemente

muacuteltipla

A soluccedilatildeo schopenhaueriana aparece para o autor das notas como a tentativa de

deslocar a questatildeo acerca da finalidade natural em vez de resolver o problema

propriamente Nessa leitura criacutetica Schopenhauer teria atraveacutes da pressuposiccedilatildeo de uma

unidade da vontade transferido o problema da teleologia para outra realidade em que a

ideia de finalidade natural acabaria por ocasionar mais problemas Esta divergecircncia criacutetica

pode ser tomada como um exemplo da complexidade da influecircncia schopenhaueriana sobre

a filosofia nietzschiana de juventude

Naquele momento de sua trajetoacuteria intelectual apesar do que se toma conhecimento

atraveacutes da leitura de O Nascimento da Trageacutedia23 Nietzsche jaacute se encontrava em um

patamar criacutetico em relaccedilatildeo agrave filosofia schopenhaueriana Para o jovem leitor de Albert

Lange autor que influenciou de maneira profunda sua interpretaccedilatildeo da filosofia

schopenhaueriana a sentenccedila que resume esta filosofia seria a seguinte ldquoA vontade sem

fundamento e sem conhecimento se revela por meio de um aparato de representaccedilatildeo como

mundordquo24 Na concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana esta sentenccedila enquanto resumo da filosofia

schopenhaueriana carregaria todos os viacutecios daquele sistema Assim em sua criacutetica agrave

23 Sabe-se que a obra de estreia do filoacutesofo foi composta a luz das influecircncias de Schopenhauer e Wagnertambeacutem um schopenhaueriano Esta influecircncia aparece ali de modo expliacutecito e natildeo questionado ou sejaacriacutetico O que levaria a supor que naquele momento Nietzsche ainda natildeo houvera enxergado os problemascom a filosofia schopenhaueriana No entanto a publicaccedilatildeo dos poacutestumos daquele periacuteodo nos descortinamum filoacutesofo jaacute bastante ciente das contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano Testemunhos desta tomada deconsciecircncia nietzschiana dos problemas da filosofia schopenhaueriana satildeo o texto em estudo assim comoZur Schopenhauer do mesmo periacuteodo e que foi publicado na mesma ediccedilatildeo dos fragmentos poacutestumosnietzschianos de seu periacuteodo de juventude que estamos estudando24 Conforme a seguinte passagem em Zur Schopenhauer ldquoDer grundlose erkenntnisslose Wille offenbartsich unter einen Vorstellungsapparat gebracht als Weltrdquo (BAW Paacuteg 353) As notas Zur Schopenhauer satildeonotas remanescentes de um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana que Nietzsche elaborou na mesmaeacutepoca de redaccedilatildeo das notas Zur Teleologie Todas as vezes que este texto for citado seraacute acompanhado dapaginaccedilatildeo da ediccedilatildeo BAW da qual jaacute vinhamos extraindo passagens de Zur Teleologie e como as citaccedilotildeesdesse todas as traduccedilotildees daquele seratildeo de nossa responsabilidade

37

Schopenhauer Nietzsche procura desvelar as contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano

por meio da anaacutelise desta sentenccedila agrave luz da obra do filoacutesofo

Em sua investigaccedilatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana Nietzsche toma o

empreendimento filosoacutefico de Schopenhauer como ldquouma tentativa de explicar o mundo por

meio de um fator aceitordquo (BAW Paacuteg 352) em que ldquoa coisa em si mesma se torna uma de

suas possiacuteveis formasrdquo (BAW Paacuteg 352) Ou seja tratava-se sobretudo de uma

interpretaccedilatildeo da realidade que toma as coisas em si como ao menos uma de suas

expressotildees possiacuteveis Isto apesar de para o autor das notas criacuteticas o empreendimento

filosoacutefico schopenhaueriano natildeo ter sido encarado por Schopenhauer como uma tentativa

(BAW Paacuteg 352) na medida em que este julgou a coisa em si como estando aberta para si

(BAW Paacuteg 352) A falha do autor de O Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em

encarar seu empreendimento como uma tentativa se deveria ao fato deste ldquonatildeo ter querido

perceber as negras contraditoriedades na regiatildeo onde a individualidade cessardquo (BAW Paacuteg

352)

Na medida em que tenta descrever a realidade em termos de ldquoVontaderdquo e

ldquoRepresentaccedilatildeordquo Schopenhauer natildeo se daacute conta de que ldquoO impulso de obscurecimento

produzido pelo mecanismo de representaccedilatildeo revela-se como mundordquo (BAW Paacuteg 352)

uacutenica forma pela qual o mundo da Vontade poderia permanecer velado para o homem

posto que ldquoEsta unidade natildeo estaacute incluiacuteda sob o principium individuationisrdquo (BAW Paacuteg

352) Assim se o traccedilo fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute sua descriccedilatildeo do

mundo como representaccedilatildeo e como tal algo passiacutevel de conhecimento esta hipoacutetese

repousaria fortemente na impossibilidade de se desvelar o mundo como Vontade

Por estas dificuldades assim como sua imbricaccedilatildeo com o proacuteprio nuacutecleo das

consideraccedilotildees schopenhauerianas Nietzsche considera este conjunto de consideraccedilotildees na

medida em que se considerava como sistema como estando ldquocheio de furosrdquo25 Para o

autor das notas sobre Schopenhauer estas falhas poderiam ser exploradas com sucesso

fundamentalmente de quatro diferentes formas Primeiramente em que Schopenhauer natildeo

supera Kant onde pretende superaacute-lo e conserva uma concepccedilatildeo do em si da qual natildeo tinha

direito pois tal como o proacuteprio Schopenhauer havia apontado com relaccedilatildeo ao sistema

kantiano por conta das proacuteprias implicaccedilotildees de seu sistema tal concepccedilatildeo deveria ser

25 Diante da pretensatildeo schopenhaueriana em ter posto termo ao sistema kantiano com seu proacuteprio sistemaNietzsche se questiona ldquo(hellip) wie in aller Welt ein Mensch mit einem so durchloumlcherten System zu solchenPraumltensionen komm[e]rdquo (BAW Paacuteg 354)

38

abandonada Em segundo lugar ao permanecer assim tatildeo proacuteximo a Kant Schopenhauer

apenas substitui as coisas em si daquele pela categoria de Vontade o que segundo

Nietzsche apenas pocircde ser realizado por meio de uma ldquointuiccedilatildeo poeacuteticardquo (BAW Paacuteg 354)

cuja derivaccedilatildeo natildeo possuiacutea provas loacutegicas que pudessem satisfazer o proacuteprio

Schopenhauer posto que este natildeo fora convencido no caso da filosofia kantiana Em

terceiro lugar Nietzsche acusa Schopenhauer de derivar os predicados de sua coisa em si

de uma oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos predicados das representaccedilotildees Assim se as

representaccedilotildees tecircm como sua marca a temporalidade a espacialidade e a multiplicidade a

Vontade deveria ser Una indeterminada espacialmente e eterna Mas como poderia

Schopenhauer reclamar uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre as representaccedilotildees e a Vontade sem

declarar tal oposiccedilatildeo agraves representaccedilotildees como predicado daquela A quarta criacutetica que eacute

uma consequecircncia das trecircs anteriores seria mais complexa Nietzsche a descreve do

seguinte modo

No entanto pode-se postular para o creacutedito de Schopenhauer contra astrecircs objeccedilotildees uma possibilidade de poder triacuteplice pode haver uma coisaem si de todo modo apenas no sentido de que na aacuterea de transcendecircnciatudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute possiacutevel Essapossiacutevel coisa em si pode ser a vontade uma possibilidade que por surgirda junccedilatildeo de duas possibilidades nada mais eacute do que o poder negativo daprimeira possibilidade ou seja jaacute um bom passo em direccedilatildeo ao outropolo o que significa impossibilidade Elevamos este conceito de umapossibilidade sempre decrescente uma vez mais ao admitirmos ospredicados da vontade que Schopenhauer tomava como pertencentes agraveela apenas porque uma oposiccedilatildeo eacute improvaacutevel entre coisa em si eaparecircncia mas ainda pode ser pensada Contra tal noacute de possibilidadestodo pensamento eacutetico poderia explicar-se mas mesmo contra essepretexto eacutetico ainda se poderia objetar que o pensador que estaacute diante doenigma do mundo natildeo tem outro meio senatildeo oferecer palpites naesperanccedila de que um momento de elevada consciecircncia poraacute a palavra emseus laacutebios Uma palavra que oferece a chave para esse texto que repousaainda natildeo lido diante de todos os olhos o qual chamamos de mundoSeria este mundo vontade - Aqui estaacute o ponto em que devemos fazernosso quarto ataque A urdidura e a trama schopenhauerianas seemaranham em suas matildeos na menor parte como resultado de certa faltade taacutetica de seu autor mas principalmente porque o mundo natildeo se deixaprender tatildeo facilmente ao sistema como Schopenhauer havia esperado naprimeira inspiraccedilatildeo da descoberta Na sua velhice ele se queixou de queo problema mais difiacutecil da filosofia natildeo havia sido resolvido em suaproacutepria filosofia Ele quis dizer a questatildeo referente agraves fronteiras daindividuaccedilatildeo (BAW Paacuteg 354-355)

39

O autor de Zur Schopenhauer conclui que o sistema schopenhaueriano estaria

sujeito aos mesmos argumentos que Schopenhauer teria utilizado contra Kant segundo o

qual o que eacute predicado de um objeto segundo o princiacutepio de atuaccedilatildeo do sujeito natildeo poderia

ser predicado da coisa em si Como Nietzsche sugere no proacuteprio caso de Schopenhauer os

atributos de atemporalidade unidade e a falta de causa atributos que o autor de O mundo

como Vontade e como Representaccedilatildeo atribui agrave Vontade mostram-se improacuteprios da

realidade da Vontade se ela eacute como Nietzsche pensa a traduccedilatildeo schopenhaueriana do em

si kantiano

As criacuteticas apontadas por Nietzsche ao sistema schopenhaueriano e que tomam

parte ainda em suas notas Zur Teleologie datildeo testemunho de um profundo

amadurecimento de sua opiniatildeo para com Schopenhauer Como resultado deste

amadurecimento surge a rejeiccedilatildeo das tentativas de Schopenhauer de descrever o sentido

dos predicados da vontade como completamente inapreensiacuteveis e transcendentes Na

medida em que Nietzsche entra em contato com a criacutetica de Albert Lange agrave filosofia

kantiana e que absorve a ideia de que os predicados dos objetos aparecem na realidade

como resultado da nossa organizaccedilatildeo o autor passa a rejeitar o uso de formas gramaticais

como prova da atualidade de qualquer sistema filosoacutefico Assim na medida em que as leis

da existecircncia da Vontade schopenhaueriana natildeo se submetem agraves mesmas leis de formaccedilatildeo

dos fenocircmenos a ela natildeo poderiam ser atribuiacutedos predicados tais como unidade e

atemporalidade que natildeo tem sentido fora da esfera dos fenocircmenos

Como exemplo desta abordagem criacutetica Nietzsche oferece uma interpretaccedilatildeo de O

Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em que certas passagens entrariam em

conflito com a delimitaccedilatildeo schopenhaueriana das fronteiras da individuaccedilatildeo tal como estes

limites aparecem definidos em passagens como a seguinte ldquoA unidade daquela Vontade

(hellip) em que temos reconhecido o ser interior do mundo fenomecircnico eacute uma unidade

metafiacutesica Consequentemente o conhecimento deste eacute transcendente o que significa

dizer ele natildeo repousa sobre as funccedilotildees de nosso intelecto e natildeo eacute portanto passiacutevel de

compreensatildeo por elesrdquo (BAW Paacuteg 357) Assim natildeo faz sentido em falar-se em unidade

fora de nossa esfera de compreensatildeo da realidade natildeo podendo este atributo ser relegado agrave

esfera da vontade

Com base nessa interpretaccedilatildeo em suas notas criacuteticas sobre a filosofia

schopenhaueriana Nietzsche escreve ldquoSchopenhauer estaacute completamente correto quando

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ele mesmo sustenta contra esta operaccedilatildeo em geral mas aparentemente natildeo em seu proacuteprio

caso que lsquode fora natildeo se possa nunca chegar agrave essecircncia das coisas natildeo importa como se

busque vencer sobre imagens e nomesrsquordquo (BAW Paacuteg 358) Para Nietzsche a atribuiccedilatildeo

schopenhaueriana dos predicados de unidade eternidade e liberdade que satildeo os trecircs

predicados que Schopenhauer atribui agrave Vontade natildeo seria senatildeo retoacuterica vazia Pois estes

predicados seriam no fundo indivisiacuteveis e alinhados uns com os outros e com nossa

organizaccedilatildeo Sendo assim sempre se poderia perguntar qual o sentido destes predicados

fora de nossa esfera de organizaccedilatildeo qual sua validade na esfera da vontade

Em sua leitura portanto Nietzsche permanece fortemente criacutetico da concepccedilatildeo

schopenhaueriana das fronteiras da representaccedilatildeo assim como de toda tentativa de

expressatildeo linguiacutestica do que se encontraria para aleacutem desta fronteira26 Com isso seu

julgamento final sobre a atribuiccedilatildeo de predicados proacuteprios da realidade fenomecircnica agrave

Vontade levada a cabo por Schopenhauer baseia-se fortemente na interpretaccedilatildeo da

linguagem como algo que surge e se desenvolve em unidade com as exigecircncias do homem

vivendo em um determinado contexto social assim como em uma realidade determinada

por sua organizaccedilatildeo e suas necessidades fisioloacutegicas O escopo desta criacutetica cujo cerne

pode ser tambeacutem vislumbrado em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira e que diria respeito

ao veto de conhecimento e atribuiccedilatildeo de predicados agrave realidade que se potildee para aleacutem da

experiecircncia compotildee o essencial de sua compreensatildeo perspectivista do conhecimento em

sua filosofia madura

Retornando agraves notas preparatoacuterias veremos que a interpretaccedilatildeo criacutetica nietzschiana

das concepccedilotildees de Kant e Schopenhauer aproxima-se de uma consideraccedilatildeo perspectivista

da teleologia Isto porque nessa leitura a finalidade natural passa a ser interpretada natildeo

como um aspecto da natureza mas apenas como um modo de se considerar uma realidade

inapreensiacutevel de acordo com os ditames de nossa capacidade de conhecer que eacute

fundamentalmente determinada pelo esquema de nossa sensibilidade Ao fim e ao cabo

26 Como Crawford aponta Nietzsche obteacutem este argumento linguiacutestico contra a noccedilatildeo de um primeiropensamento transcendental do mundo de Lange Stack por sua vez escreve sobre este argumentoldquoLinguagens humanas (para Lange e Nietzsche) se desenvolveram primeiramente para efeitos de relaccedilotildees einteraccedilotildees sociais satildeo perpassadas por lsquopersonificaccedilotildeesrsquo e antropomorfismos e evoluiacuteram para efeitos dedescriccedilatildeo e designaccedilatildeo de objetos e eventos encontrados na experiecircncia A linguagem entatildeo eacute projetada paraefeitos de necessidade praacutetica em um mundo fenomecircnico da experiecircncia O uso de tal linguagem para referir-se agrave ou lsquofiguraccedilatildeorsquo de entidades transcendentais ou um mundo transcendental natildeo supera sua associaccedilatildeoproacutexima com a realidade fenomecircnicardquo (STACK Lange and Nietzsche Paacuteg 66) Apud (CRAWFORD 1988Paacuteg 99)

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natildeo se trata de uma abordagem totalmente original uma divergecircncia verdadeira com

relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees que Nietzsche critica Muito desta abordagem se deve ao modo como

Kant principia a conversatildeo do problema teleoloacutegico de uma reflexatildeo sobre a constituiccedilatildeo

da realidade em um problema acerca de nossa necessidade de compreensatildeo da realidade

segundo a ideia de uma finalidade natural Do mesmo modo como uma grande parte das

criacuteticas apresentadas pelo autor das notas depende de sua leitura de Schopenhauer Em

contraposiccedilatildeo a estes autores no entanto Nietzsche compreende a permanecircncia da ideia de

uma finalidade natural nas respectivas abordagens criticadas como um uacuteltimo resquiacutecio de

dependecircncia da concepccedilatildeo teleoloacutegica metafiacutesica

A critica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica portanto parte do pressuposto de

que esta teria tomado a finalidade natural como uma realidade objetiva que cumpria

explicar e cuja explicaccedilatildeo mais plausiacutevel seria a ideia de uma inteligecircncia superior

criadora Tendo em vista superar as dificuldades apontadas nas abordagens de Kant e

Schopenhauer Nietzsche se apropria do problema teleoloacutegico de maneira eminentemente

criacutetica para com qualquer suposiccedilatildeo de uma realidade exterior agrave realidade da experiecircncia

Neste sentido o autor apoia-se fortemente nas ciecircncias naturais sempre que julga

necessaacuterio mantendo o lado filosoacutefico da discussatildeo nos limites de uma compreensatildeo

epistemoloacutegica do problema Assim quando comparada ao modo como o problema da

teleologia eacute tratado nas filosofias de Schopenhauer e Kant onde eacute praticamente reduzido agrave

questatildeo sobre a finalidade em seres orgacircnicos27 nas notas preparatoacuterias vemos que

27 A ideia de uma consideraccedilatildeo epistemoloacutegica jaacute apareceria nas consideraccedilotildees de Schopenhauer da criacuteticado juiacutezo kantiana mas Nietzsche parece natildeo se aperceber dessa consideraccedilatildeo Na Criacutetica da faculdade doJuiacutezo em um paraacutegrafo sobre o qual Nietzsche parece ter se detido longamente Kant afirma ldquoPor isso osseres organizados satildeo os uacutenicos na natureza que ainda que tambeacutem soacute se considerem por si e sem umarelaccedilatildeo com outras coisas tecircm poreacutem de ser pensados como possiacuteveis enquanto fins daquela mesmanatureza e por isso como aqueles que primeiramente proporcionam uma realidade objetiva ao conceito deum fim que natildeo eacute um fim praacutetico mas sim um fim da natureza e desse modo agrave ciecircncia da natureza ofundamento para uma teleologia isto eacute um modo de ajuizamento dos seus objetos segundo um princiacutepioparticular que doutro modo natildeo estariacuteamos autorizados a nela introduzir (porque natildeo se pode de maneiranenhuma compreender a priori a possibilidade de uma tal espeacutecie de causalidade)rdquo (KANT 2016 Paacuteg 242)Por sua vez Schopenhauer na parte de sua criacutetica da filosofia kantiana em que se volta para a Criacutetica doJuiacutezo mais especificamente a criacutetica do juiacutezo teleoloacutegico escreve ldquoTodo a Criacutetica da Faculdade de Juiacutezoquer dizer apenas uma coisa embora os corpos organizados necessariamente apareccedilam a noacutes como se fossemcompostos segundo um conceito preacutevio de finalidade de modo algum temos a autorizaccedilatildeo de assumir istoobjetivamente Pois nosso intelecto ao qual as coisas satildeo dadas de fora e que portanto jamais conhece ointerior delas (mediante o qual nascem e existem) mas soacute o seu lado exterior natildeo pode tornar apreensiacuteveluma certa iacutendole proacutepria aos produtos orgacircnicos da natureza a natildeo ser por analogia na medida em que oscompara com as obras humanas produzidas intencionalmente cuja iacutendole eacute determinada por um conceito definalidade Essa analogia eacute suficiente para nos tornar compreensiacutevel a concordacircncia de todas as suas partescom o todo e assim serve como fio condutor para sua investigaccedilatildeo mas de maneira alguma a analogia podeser tomada como fundamento de explanaccedilatildeo da origem e da existecircncia de tais corpos A necessidade de assim

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Nietzsche traduz o problema da teleologia em termos de um problema do conhecimento na

medida em que reduz toda teleologia a uma forma de conceber a natureza em vez de

pensaacute-la como uma caracteriacutestica da natureza

O autor entende que a uacutenica soluccedilatildeo satisfatoacuteria para a compreensatildeo do problema

teleoloacutegico seria a reduccedilatildeo do conceito de finalidade natural uma concepccedilatildeo de fundo

ontoloacutegico em uma categoria do entendimento humano uma realidade eminentemente

epistemoloacutegica de cuja existecircncia objetiva natildeo se teria a menor necessidade nem direito de

supor Assim o autor das notas preparatoacuterias pensa adiantar uma interpretaccedilatildeo original do

problema quando opera a reduccedilatildeo do conceito de finalidade a uma forma de compreensatildeo

da realidade Essa diferenccedila fundamental o tratamento eminentemente epistemoloacutegico de

um problema de fundo ontoloacutegico prenuncia uma importante virada no pensamento

nietzschiano A abordagem nietzschiana em que toda forma de explicaccedilatildeo idealista eacute posta

em suspeita conduz agrave conclusotildees teoacutericas que apenas em sua filosofia de maturidade

assumiraacute total importacircncia Nesta reavaliaccedilatildeo do problema entram em jogo a confrontaccedilatildeo

da realidade como produccedilatildeo humana com as concepccedilotildees racionalistas que satildeo tomadas

pelo autor das notas preparatoacuterias como soluccedilotildees ingecircnuas justamente por

desconsiderarem o quanto de humano haacute nelas

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica

Um problema fundamental decorrente da concepccedilatildeo teleoloacutegica da natureza o qual

Nietzsche apresenta como uma dificuldade essencial de toda concepccedilatildeo teleoloacutegica seria a

dificuldade em atingir uma compreensatildeo que unifica o real para aleacutem da distinccedilatildeo

artificial e arbitraacuteria entre o que se apresenta de forma teleoloacutegica e o que se apresenta de

forma natildeo teleoloacutegica Este problema eacute apresentado pelo autor nas notas do seguinte

modo ldquoA maior dificuldade eacute a unificaccedilatildeo da teleologia e do mundo natildeo teleoloacutegicordquo

(BAW 3 paacuteg 373) Com a apresentaccedilatildeo do problema nesses termos o autor busca

evidenciar de que modo com base em uma concepccedilatildeo teleoloacutegica se poderia explicar a

os conceber eacute de origem subjetivardquo (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 660) Schopenhauer leva a cabo assimuma interpretaccedilatildeo subjetiva da teleologia kantiana da qual Nietzsche parece natildeo ter se apercebido comoveremos na anaacutelise das notas Zur Teleologie

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existecircncia de objetos que natildeo parecem justificar-se segundo nenhuma finalidade Nesse

sentido a existecircncia de realidades natildeo convenientes a fins seria o ponto aleacutem do qual

nenhuma concepccedilatildeo teleoloacutegica ateacute entatildeo teria conseguido ir Em Zur Teleologie

Nietzsche concebe esse problema como tendo certa similaridade com o problema referente

agrave relaccedilatildeo entre a causalidade natural e a questatildeo da liberdade humana como o proacuteprio Kant

houvera observado

O espaccedilo de que dispomos nesse trabalho natildeo possibilita um estudo exaustivo da

teoria do gosto kantiana Desta forma o que se segue agrave guisa de resumo e introduccedilatildeo agrave

compreensatildeo kantiana da concepccedilatildeo de teleologia apenas pretende uma breve

consideraccedilatildeo dos problemas abordados por Kant na terceira Criacutetica assim como uma breve

reflexatildeo acerca do lugar dos juiacutezos teleoloacutegicos naquela discussatildeo Uma comparaccedilatildeo entre

a primeira e a segunda criacutetica mostra que a determinaccedilatildeo dos limites da experiecircncia

humana em comparaccedilatildeo agraves exigecircncias do agir praacutetico acentua um abismo insuperaacutevel

entre o domiacutenio praacutetico e o teoacuterico em filosofia A Criacutetica do Juiacutezo representa assim o

esforccedilo kantiano pela conciliaccedilatildeo entre os acircmbitos praacutetico e teoacuterico por meio da anaacutelise do

juiacutezo do belo

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

Este abismo aparece ao autor da terceira criacutetica como uma lacuna teoacuterica a ser

superada mediante o estudo do juiacutezo de gosto Nesse sentido tendo em vista a integraccedilatildeo

dos dois saberes o filoacutesofo de Koumlnigsberg elabora um meio de superaccedilatildeo da distacircncia que

separa os dois acircmbitos da investigaccedilatildeo filosoacutefica o acircmbito do teoacuterico e do praacutetico A

constituiccedilatildeo da ponte de ligaccedilatildeo entre os dois acircmbitos do saber humano poreacutem depende

de uma compreensatildeo profunda dos elementos do saber humano como sendo limitados pela

fenomenalidade que contrasta com o acircmbito da liberdade

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Toda a nossa faculdade de conhecimento possui dois domiacutenios o dosconceitos da natureza e o do conceito de liberdade na verdade nos doisela eacute legisladora a priori Ora de acordo com isto tambeacutem a Filosofia sedivide em teoacuterica e praacutetica mas o territoacuterio em que o seu domiacutenio eacuteerigido e a sua legislaccedilatildeo exercida eacute sempre soacute a globalidade dos objetosde toda a experiecircncia possiacutevel na medida em que forem tomadossimplesmente como simples fenocircmenos eacute que sem isso natildeo poderia serpensada qualquer legislaccedilatildeo do entendimento relativamente agravequeles(KANT 2016 Paacuteg 05)

Na passagem citada em que a faculdade de julgar eacute apresentada pelo autor como

legislaccedilatildeo a priori cuja esfera de atuaccedilatildeo se distingue tanto da legislaccedilatildeo do entendimento

quanto da razatildeo praacutetica a esfera de atuaccedilatildeo da razatildeo teoacuterica assim como a da accedilatildeo praacutetica

satildeo determinantes O juiacutezo de gosto por sua vez seria apenas reflexivo Na medida em que

a esfera de validade de sua legislaccedilatildeo abrangeria apenas o contingente e as leis empiacutericas

particulares

Ora toda a contradiccedilatildeo poreacutem desaparece se eu digo o juiacutezo de gostofunda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral daconformidade a fins subjetiva da natureza para a faculdade do juiacutezo) apartir do qual poreacutem nada pode ser conhecido e provado acerca doobjeto porque este conceito eacute em si indeterminaacutevel e inadequado para oconhecimento mas o juiacutezo ao mesmo tempo alcanccedila justamente por esseconceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juiacutezosingular que acompanha imediatamente a intuiccedilatildeo) porque o seuprinciacutepio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode serconsiderado como o substrato suprassensiacutevel da humanidade (KANT2016 Paacuteg 201-202)

Na segunda parte da terceira criacutetica a parte da obra referente agrave analiacutetica do belo a

legalidade do contingente eacute encontrada no conceito aacuterido de conformidade a fins que faz

do objeto belo apreciado um exemplo e natildeo uma lei geral Dado que a conformidade a fins

eacute vista na Natureza apenas do ponto de vista artiacutestico A conformidade a fins eacute aqui

entendida por Kant como o caraacuteter proacuteprio do orgacircnico sem o qual nenhum organismo

poderia ser compreendido Na medida em que o filoacutesofo distingue o produto das relaccedilotildees

dos elementos inorgacircnicos como o resultado das interaccedilotildees mecacircnicas de seus elementos

ele enfatiza o caraacuteter finaliacutestico dos elementos da natureza orgacircnica Posto que o belo eacute um

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produto da natureza e que toda criaccedilatildeo artiacutestica eacute dita bela na medida em que nela se

reconhece uma familiaridade com a natureza se poderia entender em que sentido uma obra

artiacutestica natildeo pode ser o produto de interaccedilotildees mecacircnicas mas apenas o resultado da accedilatildeo

humana consciente que pretende um fim

Por isso o filoacutesofo define o gecircnio como aquele dotado de uma faculdade produtora

cuja obra eacute a arte bela A arte bela como foi dito eacute para Kant uma analogia com a

Natureza cuja beleza o gecircnio procura penetrar A obra de arte bela parece ser assim objeto

da natureza que por meio da razatildeo se insere no reino das produccedilotildees humanas Neste

sentido a analogia entre a bela produccedilatildeo artiacutestica e a natureza apenas eacute possiacutevel se se

pensa a natureza como uma produccedilatildeo do aparato categorial humano cuja legalidade estaacute

no contingente e no exemplo

A anaacutelise esteacutetica kantiana que desemboca na questatildeo do gosto ou uma faculdade

de apreciaccedilatildeo esteacutetica reconhecida faz com que Kant entre em contato com um juiacutezo

esteacutetico fundamentado na sensaccedilatildeo de prazer Algo subjetivo mas que ao mesmo tempo

seria passiacutevel de ser reproduzido Assim a anaacutelise kantiana do gosto conduz a duas

conclusotildees aparentemente verdadeiras embora contraditoacuterias segundo as quais o gosto

seria subjetivo e ao mesmo tempo objetivo A objetividade do juiacutezo de gosto porquanto

tal juiacutezo pertenccedila a esfera subjetiva natildeo seria passiacutevel de determinaccedilatildeo objetiva

A forccedila do argumento kantiano repousa na sugestatildeo de que para que o gosto

pudesse vir a ser objeto de discussatildeo o que implica uma possiacutevel concordacircncia este deve

fundar-se em conceitos Desta forma com base na suposiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre coisas

em si e fenocircmenos suposiccedilatildeo que surge como conclusatildeo da primeira criacutetica kantiana o

filoacutesofo teria procurado superar a dificuldade envolvida na determinaccedilatildeo de uma certa

objetividade do juiacutezo de gosto Para o autor da terceira criacutetica a possibilidade de

determinaccedilatildeo da objetividade de um juiacutezo subjetivo tanto na questatildeo da filosofia praacutetica

quanto na questatildeo dos juiacutezos esteacuteticos apenas pode se dar com base na suposiccedilatildeo da

existecircncia de objetos necessaacuterios para a justificaccedilatildeo destes juiacutezos Suposiccedilatildeo que aqui

assume um caraacuteter apenas hipoteacutetico na medida em que o filoacutesofo compreende que destes

natildeo podemos ter conhecimento objetivo28

28 Este raacutepido resumo do problema justamente pela brevidade carece de muitos esclarecimentos eaprofundamentos No entanto aqui pretendemos apenas oferecer uma breve apreciaccedilatildeo dos problemasenfrentados por Kant na terceira criacutetica sobretudo do ponto de vista da consideraccedilatildeo nietzschiana destes

46

Por outro lado a hipoacutetese de uma possiacutevel objetividade dos juiacutezos de gosto contaria

com uma hipoacutetese contraacuteria aleacutem de bastante plausiacutevel de que aquilo que agrada natildeo

agrada universalmente natildeo se podendo chegar a um consenso absoluto em termos de

gosto Esta antinomia aparentemente insoluacutevel na medida em que aponta para uma tese e

uma antiacutetese igualmente plausiacuteveis eacute resumida por Kant na possibilidade de se fundar o

gosto em conceitos Pois fica provado na esfera da anaacutelise esteacutetica que se o gosto deve ser

tomado como algo que se funda em conceitos ele poderia ser determinado segundo

demonstraccedilotildees e assim natildeo seria passiacutevel de disputa Por outro lado se este natildeo se funda

em conceitos natildeo eacute passiacutevel de disputa igualmente pois natildeo seria possiacutevel alcanccedilar uma

concordacircncia Assim segundo o autor da Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo essa saiacuteda deveria

ser considerada ainda que a contragosto como uma forma de libertar o juiacutezo do gosto de

sua antinomia

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

A soluccedilatildeo para as antinomias do juiacutezo de gosto encontrar-se-ia portanto para aleacutem

dos limites do sensiacutevel Do mesmo modo na medida em que os juiacutezos teleoloacutegicos se

fundamentariam no ldquoconceito de um fim na naturezardquo a ele tambeacutem estaria ligado a

necessidade de um recurso esfera do suprassensiacutevel da qual segundo Kant embora natildeo se

possa ter um conceito exato deve-se admitir a existecircncia Este recurso agrave esfera do

suprassensiacutevel natildeo escaparaacute ao autor das notas sobre teleologia o qual rejeitaraacute este tipo de

soluccedilatildeo como um tipo de antropomorfizaccedilatildeo infundada Em sua leitura que eacute perpassada

por uma atitude de franca hostilidade a todo recurso ao suprassensiacutevel a soluccedilatildeo para o

problema da finalidade na natureza apenas poderia ser contemplada na compreensatildeo dos

limites do conhecimento humano Limites segundo as notas preparatoacuterias muito

rigidamente demarcados e que se restringiriam agrave esfera da causalidade mecacircnica

problemas

47

Em sua compreensatildeo do problema da conformidade a fins no reino orgacircnico

compreensatildeo que o autor das notas determina como sendo ao mesmo tempo semifilosoacutefica

e semicientiacutefica a suposiccedilatildeo mesma da finalidade natural estaria ligada a uma maacute

compreensatildeo da realidade Maacute compreensatildeo que teria sido motivada por uma

desconsideraccedilatildeo do papel da razatildeo na organizaccedilatildeo dos elementos que compotildeem nossa

forma de conceber o mundo

Nietzsche pensa naquele momento que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel

como forma de justificar a existecircncia de uma finalidade na natureza estaria ligada a uma

recusa em aceitar o mecanicismo como meacutetodo adequado para a investigaccedilatildeo do orgacircnico

Esta recusa por sua vez seria decorrecircncia de um preconceito em favor do que vive

considerado nessa leitura como algo mais complexo do que o pertencente ao reino

inorgacircnico Mais ainda Nietzsche considera a suposiccedilatildeo de fins na natureza uma

decorrecircncia de uma transgressatildeo do princiacutepio de razatildeo miacutenima Estaacute transgressatildeo se daria

no recurso o qual o autor das notas pensa que teria sido utilizado pelos defensores da ideia

de uma finalidade natural a uma razatildeo superior Para o autor das notas este recurso natildeo se

justificaria pois tal problema poderia ser satisfatoriamente resolvida com base em um

princiacutepio mais simples

Conformidade interna a fins Vemos uma maacutequina complicada que semantecircm a si mesma e natildeo podemos vislumbrar outra estrutura quepudesse constituir-se de modo mais simples isto significa apenas amaacutequina se manteacutem por si mesma assim ela eacute conforme a umafinalidade Um julgamento acerca de ldquouma finalidade superiorrdquo natildeopodemos fazer Podemos no melhor das hipoacuteteses decidir acerca de umarazatildeo mas natildeo temos direito a indicar se eacute uma razatildeo superior ou inferior(BAW 3 paacuteg 373)

A ideia kantiana de que a forma de causalidade reciacuteproca atuante nos seres

orgacircnicos apenas poderia ser compreendida por meio do recurso a uma razatildeo superior eacute

rejeitada por Nietzsche por meio da compreensatildeo de que nessa leitura a ideia de finalidade

sofre uma supervalorizaccedilatildeo indevida Para dar sentido a esta rejeiccedilatildeo o autor das notas

preparatoacuterias faz uso de uma espeacutecie de princiacutepio de Ockham29 segundo o qual a

29 Para Guilherme de Ockham o Princiacutepio da Parcimocircnia o que ficou conhecido na tradiccedilatildeo como Navalhade Ockham significava que ldquoeacute desperdiacutecio fazer com mais o que pode ser feito com menosrdquo Embora natildeo

48

atribuiccedilatildeo de um princiacutepio exterior no caso em questatildeo uma razatildeo superior que pensa uma

finalidade superior agravequela que o homem pode compreender natildeo procede de uma conclusatildeo

loacutegica mas de uma ilusatildeo que atua por forccedila de um grosseiro antropomorfismo Este

antropomorfismo consistiria na defesa de uma razatildeo superior defesa por meio da qual o

defensor da finalidade natural nada mais faria do que pocircr em praacutetica uma exaltaccedilatildeo da

razatildeo

Segundo a compreensatildeo do autor das notas preparatoacuterias no entanto este tipo de

afirmaccedilatildeo de uma finalidade externa superior natildeo se sustenta em uma anaacutelise da razatildeo

porque ldquoapenas temos experiecircncia do meacutetodo da naturezardquo (BAW 3 paacuteg 374) e nunca de

finalidades Desta maneira quando nos confrontamos com um produto da natureza a sua

finalidade apenas nos aparece como o produto de um meacutetodo sem sentido nunca como

uma necessidade loacutegica Por outro lado a ideia de uma finalidade superior apenas nos

aparece quando somos confrontados com a vida Para Nietzsche esta deduccedilatildeo de uma

finalidade superior na manutenccedilatildeo da vida natildeo obedeceria qualquer loacutegica mas talvez

uma certa arrogacircncia de espeacutecie Pois na medida em que pertencemos ao grupo dos

ldquoviventesrdquo possuiacutemos um preconceito com relaccedilatildeo ao que eacute vivo

Segundo a compreensatildeo nietzschiana a vida seria o grande segredo que reclamaria

em sua explicaccedilatildeo a ideia de uma finalidade natural Isto na medida em que ao nos

depararmos com um ser vivo como noacutes somos cegados pelo orgulho e queremos enxergar

na nossa existecircncia algo mais do que a pura atuaccedilatildeo de causas e efeitos Assim este

comportamento natildeo encontraria nenhum suporte loacutegico e a vida poderia como os demais

tenha sido inventado por Ockham o princiacutepio da Navalha teve seu nome ligado em especiacutefico a este filoacutesofopor sua larga utilizaccedilatildeo no sistema que desenvolveu (JUNGES 2005 Paacuteg 03) Conforme nota cinco doartigo Deus e a metafiacutesica em Ockham e Nietzsche ldquoA expressatildeo lsquoNavalha de Ockhamrsquo surgiu no seacuteculoXVI sugerindo que mediante tal Navalha Ockham lsquoencurtava as barbas de Platatildeorsquo numa referecircncia direta aodualismo que ele suprimia com sua negaccedilatildeo da existecircncia dos universais Com essa concepccedilatildeo as essecircnciaspassavam a ser apenas elucubraccedilotildees deslocando o eixo da metafiacutesica para um empirismo nominalista jaacute queOckham dizia serem os universais apenas nomes dados agraves coisas criados pela mente de seu autor e o querealmente havia eram as singularidades e o que poderia ser experimentado pelos sentidos humanosrdquo(JUNGES 2005 Paacuteg 16)Com relaccedilatildeo agrave proximidade entre as filosofias de Ockham e Nietzsche Jungesafirma ldquoAqui apenas podemos comparar entre nossos dois filoacutesofos em questatildeo o fato de que ambosapontavam a concretude da vida como indiscutiacutevel fundamental renegando a metafiacutesica como expedientepara um entendimento do mundo em si A mentira do outro mundo era paralisante desnecessaacuteria O vieacutesantimetafiacutesico de Ockham e Nietzsche denota a importacircncia da criacutetica do mundo ocidental em seus escritos(hellip) Quanto agrave existecircncia dos universais amplamente negada por Ockham acreditamos ser seuposicionamento bastante proacuteximo ao de Nietzsche Isso porque Ockham num vieacutes de declarado cunhoaristoteacutelico pensava os universais como impossiacuteveis sob uma justificativa loacutegica natildeo passando de palavrasque denominavam sentidos por noacutes criados abstraccedilotildees ou ficccedilotildees da mente humanardquo (JUNGES 2005Paacuteg 14)

49

eventos naturais ser explicado sem o recurso a uma finalidade natural Pois aiacute natildeo operaria

nenhuma ideia de conveniecircncia a fins apenas uma supervalorizaccedilatildeo do fenocircmeno vida

Ficamos impressionados entatildeo com a complexidade e conjecturamos (pormeio de uma analogia humana) uma sabedoria especial nisto O querealmente eacute maravilhoso para noacutes realmente satildeo os viventes orgacircnicos etodos os meios para mantecirc-los chamamos conforme a fins Por quesuspendemos o conceito de conformidade a fins no mundo inorgacircnicoPorque temos aqui apenas unidades natildeo partes correlacionadas atuandoumas com as outras (BAW 3 paacuteg 374)

Em outras palavras a proacutepria distinccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico nada mais

seria do que o produto de nosso preconceito para com o que vive sem o qual suas partes

assim como as partes dos elementos do reino inorgacircnico tambeacutem seriam vistas como

unidades e natildeo oacutergatildeos Nossa ideia de uma finalidade superior adveacutem de uma

incompreensatildeo fundamental acerca do fenocircmeno vida por conta de nosso preconceito para

com o que vive Sendo que apenas por esse motivo natildeo nos vemos na necessidade de um

recurso a uma finalidade para a explicaccedilatildeo do reino inorgacircnico Posto que entre os

produtos possiacuteveis da atuaccedilatildeo das partes da natureza tambeacutem os organismos seriam uma

possibilidade Isso independente da complexidade envolvida desde que para o autor

ldquoAcaso pode encontrar a mais bela melodiardquo (BAW 3 paacuteg 374) Disso decorre a hipoacutetese

nietzschiana de que a vida mesma pudesse ser compreendida como o produto de forccedilas

atuando ao acaso segundo uma causalidade mecacircnica Ou seja independente da

complexidade envolvida tudo poderia ser obra do acaso

Nesta suposiccedilatildeo encontramos o surgimento de uma concepccedilatildeo fundamental

segundo a qual toda realidade que se nos apresenta de forma orgacircnica poderia ser produto

da atuaccedilatildeo de forccedilas ao acaso Assim com a alusatildeo ao acaso associada agrave ideia da atuaccedilatildeo

de relaccedilotildees causais Nietzsche opera uma explicaccedilatildeo do surgimento do orgacircnico sem

recorrer a qualquer instacircncia externa ao orgacircnico sem nenhum recurso a uma finalidade

externa Solucionada assim a questatildeo do surgimento da realidade orgacircnica por meio do

recurso a uma associaccedilatildeo entre causalidade mecacircnica e acaso restaria explicar como um

ser orgacircnico poderia sustentar-se sem uma finalidade interna

50

Respondida a questatildeo do surgimento do orgacircnico para o autor a ideia por traacutes de

sua manutenccedilatildeo parece uma questatildeo friacutevola que apenas poderia ser despertada no interior

de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica que sempre suscita muitas questotildees sem sentido30 A

resposta adequada para este problema livre de um preconceito tendencioso a enxergar uma

explicaccedilatildeo finaliacutestica onde este tipo de explicaccedilatildeo natildeo teria lugar se daacute por meio do

recurso agrave ideia de que a finalidade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto

Recorrendo novamente agrave filosofia schopenhaueriana Nietzsche sustenta a

identificaccedilatildeo de uma finalidade por traacutes da manutenccedilatildeo dos seres orgacircnicos como

consequecircncia da atuaccedilatildeo do intelecto Eacute nesse sentido que o autor das notas sobre

teleologia afirma ldquovemos um meacutetodo para alcanccedilar um objetivo ou mais exatamente

vemos a existecircncia e seus meios e decidimos que esses meios satildeo conformes a fins O

reconhecimento de uma razatildeo elevada certamente natildeo a de uma razatildeo superior ainda natildeo

se potildee aquirdquo (BAW 3 paacuteg 374) Ou seja o fato de que organismos se mantenham

conforme a sua proacutepria manutenccedilatildeo natildeo implica a ideia de uma finalidade superior porque

a manutenccedilatildeo do organismo eacute um fim apenas para o organismo e natildeo um fim superior

O tipo de explicaccedilatildeo adotada por Nietzsche neste ponto de sua exposiccedilatildeo que toma

como base uma explicaccedilatildeo natildeo teleoloacutegica do reino orgacircnico teria como interesse mais

profundo lanccedilar as bases para uma investigaccedilatildeo das questotildees naturais sem o recurso a uma

realidade ideal apartada das relaccedilotildees de necessidade Esta compreensatildeo do problema

portanto natildeo pode ser desvinculado de um interesse praacutetico fundamental Ou seja com a

eliminaccedilatildeo da teleologia e a consequente restituiccedilatildeo das questotildees orgacircnicas ao reino do

orgacircnico surgiria a possibilidade de se eliminar o mundo das ideias que como vimos

aparece como fundamento para a soluccedilatildeo da questatildeo teleoloacutegica no procedimento kantiano

na Criacutetica do Juiacutezo Nesse sentido o autor das notas sobre teleologia afirma ldquoo colocar de

lado da teleologia tem um valor praacutetico Eacute apenas uma questatildeo de recusar o conceito de

uma razatildeo superior assim jaacute nos satisfazemosrdquo (BAW 3 paacuteg 374) Por interesse praacutetico

o autor soacute poderia compreender uma compreensatildeo da liberdade que natildeo implique o recurso

a uma realidade suprassensiacutevel

Nos parece que o ponto fundamental a ser considerado aqui eacute que em Zur

Teleologie Nietzsche parece reconhecer a atuaccedilatildeo de um princiacutepio metafiacutesico na tendecircncia

30 Tais questotildees seriam por exemplo a compreensatildeo do mundo como um organismo vivo e da origem domal questotildees cuja rejeiccedilatildeo ecoara na obra madura de Nietzsche

51

para a soluccedilatildeo das questotildees teleoloacutegicas por meio das coisas em si Assim ao afastar a

questatildeo de uma razatildeo superior o autor entende que a soluccedilatildeo do problema teleoloacutegico sem

o recurso a uma realidade suprassensiacutevel tornaria possiacutevel a anaacutelise de questotildees referentes

agrave liberdade sem o recurso a uma concepccedilatildeo idealista Mesmo se o alvo de sua criacutetica eacute a

ideia de uma finalidade natural a tendecircncia a uma explicaccedilatildeo idealista desta finalidade natildeo

seria menos questionaacutevel

Enfatizamos este ponto porque embora a negaccedilatildeo de uma realidade ideal apenas se

torne atuante na filosofia madura nietzschiana jaacute nas notas preparatoacuterias esta rejeiccedilatildeo

encontra plena expressatildeo na ideia de que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel para a

soluccedilatildeo de problemas teoacutericos repousa em uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel Tendecircncia

que mais do que uma explicaccedilatildeo teoacuterica seria oriunda de questotildees praacuteticas na medida em

que estaria relacionada agrave concepccedilatildeo kantiana da necessidade de se reservar um espaccedilo para

a liberdade em uma realidade para aleacutem dos fenocircmenos De tal maneira que se a soluccedilatildeo

kantiana para o problema da teleologia interna repousa no mesmo tipo de distinccedilatildeo entre o

mundo dos fenocircmenos e o mundo das coisas em si em que Kant faz repousar sua soluccedilatildeo

do problema da liberdade entatildeo a soluccedilatildeo meramente mecacircnica do problema da teleologia

poderia apontar para uma soluccedilatildeo mecacircnica tambeacutem para o problema da liberdade

Por outros termos o reconhecimento do combate agraves coisas em si como uma parte

fundamental do combate a uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel do ponto de vista teoacuterico

tem suas primeiras origens jaacute entre as obras do periacuteodo de juventude da filosofia

nietzschiana31 Podemos ver assim que Nietzsche jaacute na primeira fase de seu pensamento

potildee em accedilatildeo uma estrateacutegia de combate agrave metafiacutesica que precede em algumas deacutecadas a

sua rejeiccedilatildeo do niilismo que o filoacutesofo considera um traccedilo inerente a toda consideraccedilatildeo

idealista No entanto naquele periacuteodo de sua reflexatildeo o autor ainda natildeo chega a confrontar

todos os riscos inerentes a sua posterior consideraccedilatildeo do niilismo propriamente

Se eacute certo que tatildeo cedo quanto em suas notas preparatoacuterias o autor jaacute confronta o

problema da finalidade e o associa com a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente

mecacircnica destas entatildeo podemos dizer que jaacute nesse momento o autor contrapotildee

fortemente o recurso a toda realidade em si como uma forma equivocada de explicaccedilatildeo

Logo em suas primeiras incursotildees pela questatildeo teleoloacutegica podemos enxergar uma

31 Como atestaria tambeacutem o texto criacutetico Zur Schopenhauer jaacute referido na seccedilatildeo anterior

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antecipaccedilatildeo dessa temaacutetica que mais tarde se transformaraacute no questionamento acerca do

valor de concepccedilotildees idealistas para a vida Ou seja jaacute naquele periacuteodo de sua reflexatildeo

filosoacutefica Nietzsche interpreta o mundo das ideias como uma criaccedilatildeo humana

fundamentada em uma supervalorizaccedilatildeo da razatildeo

Contraacuterio ao posicionamento metafiacutesico que faz repousar ldquoA valorizaccedilatildeo da

teleologia em sua avaliaccedilatildeo do humano mundo das ideiasrdquo (BAW 3 paacuteg 375) o autor

parte para uma consideraccedilatildeo esteacutetica da teleologia ldquoTeleologia eacute como otimismo um

produto esteacuteticordquo (BAW 3 paacuteg 375) Esta compreensatildeo implica que tanto a teleologia

quanto o otimismo seriam criaccedilotildees humanas segundo um impulso poeacutetico fundamental

Fica claro entatildeo que jaacute em seu ensaio sobre a teleologia em Kant Nietzsche estaacute de posse

da ideia de que o mundo das ideias corresponderia apenas a um produto esteacutetico um

produto da atuaccedilatildeo do potencial criativo humano e que essa ideia fundamental estaria

ligada a um otimismo na contemplaccedilatildeo da realidade Da mesma forma o autor das notas jaacute

parece estar de posse de uma compreensatildeo apurada do caraacuteter interpretativo dessa forma

de se considerar a realidade

Partindo de uma avaliaccedilatildeo criacutetica da questatildeo teleoloacutegica que toma a compreensatildeo

kantiana expressa na criacutetica do juiacutezo como modelo Nietzsche estabelece uma forte

oposiccedilatildeo agrave tendecircncia idealista que faz ver nos problemas referentes agrave vida uma explicaccedilatildeo

extra-fenomecircnica Ao opor-se a este tipo de explicaccedilatildeo o autor entende que tanto a

regularidade observada no reino inorgacircnico como a conveniecircncia a fins que se observa no

reino orgacircnico seriam produtos da apropriaccedilatildeo da razatildeo e natildeo caracteriacutesticas da realidade

mesma Pois para o autor das notas preparatoacuterias ldquoNatildeo temos direito a qualquer

julgamento sobre a intencionalidade maiorrdquo (BAW 3 paacuteg 375) e ldquoA teleologia assim como

o otimismo satildeo produtos esteacuteticosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) Com este tipo de afirmaccedilatildeo o autor

das notas Zur Telelologie pretende dizer que nem uma intencionalidade superior nem uma

consideraccedilatildeo otimista da realidade teriam fundamentos em elementos objetivos da

realidade Pelo contraacuterio tanto a consideraccedilatildeo otimista quanto a consideraccedilatildeo da realidade

segundo a pressuposiccedilatildeo de uma finalidade seriam produtos de uma apropriaccedilatildeo da

realidade segundo os modos da organizaccedilatildeo intelectual humana32

32 O termo ldquoperspectivismordquo natildeo aparece nas notas propriamente No entanto eacute possiacutevel perceber que seNietzsche naquela eacutepoca natildeo utiliza o termo perspectivismo para caracterizar uma apropriaccedilatildeo da realidadesegundo as instacircncias racionais o que corresponderia a uma falsificaccedilatildeo da realidade o termo eacute

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Para o autor das notas preparatoacuterias afastada a hipoacutetese da superioridade da vida

em relaccedilatildeo agrave natureza inorgacircnica a suposiccedilatildeo de uma finalidade como explicaccedilatildeo do

orgacircnico em nada pareceria superior a uma explicaccedilatildeo mecacircnica De fato qual a diferenccedila

entre uma explicaccedilatildeo mecacircnica e uma explicaccedilatildeo finaliacutestica da natureza quando afastada a

hipoacutetese de uma verdade superior agrave que toda explicaccedilatildeo da natureza deve-se se reportar O

que estaacute sendo colocado em duacutevida por Nietzsche aqui de fato seria a proacutepria validade de

um juiacutezo reflexivo teleoloacutegico Neste sentido como Lopes afirma o autor das notas

preparatoacuteria se colocaria em direta confrontaccedilatildeo agrave compreensatildeo kantiana da distinccedilatildeo entre

juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos

O caraacuteter indeterminado desta categorizaccedilatildeo permite a Nietzschequestionar um dos grandes dogmas do kantismo a antiacutetese entremecanismo e teleologia ou melhor entre juiacutezo determinante e juiacutezoreflexivo Ao longo de boa parte das notas preparatoacuterias Nietzscheparece aderir agrave concepccedilatildeo dicotocircmica de Kant que restringe o conceitode explicaccedilatildeo ao emprego da causalidade mecacircnica expressa no juiacutezodeterminante Contudo na progressatildeo das notas Nietzsche toma umadireccedilatildeo inversa e sugere uma reduccedilatildeo das causas mecacircnicas a causasfinais e do uso constitutivo ao uso reflexivo da faculdade de julgar(LOPES 2008 paacuteg 150)

O que Lopes sugere eacute que a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos determinantes e juiacutezos

reflexivos passa a ser questionada por Nietzsche em sua rejeiccedilatildeo de que se possa explicar

a natureza orgacircnica por meio de uma concepccedilatildeo finaliacutestica Paras compreensatildeo desse

problema torna-se necessaacuteria um retorno agrave terceira criacutetica kantiana A Criacutetica da

Faculdade do Juiacutezo de Kant pode ser entendida fundamentalmente como uma

investigaccedilatildeo criacutetica acerca de uma certa classe de juiacutezos chamados reflexionantes Os

juiacutezos reflexivos satildeo pesados por Kant em oposiccedilatildeo aos juiacutezos determinantes ou juiacutezos

cientiacuteficos

praticamente a uacutenica coisa que falta para efetuar uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento expresso nas notaspreparatoacuterias e seu posterior perspectivismo Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo desconsiderar que naquele periacuteodo daobra nietzschiana a atribuiccedilatildeo de uma perspectividade em consideraccedilatildeo da apropriaccedilatildeo da realidade segundoos ditames da razatildeo corresponde a um anacronismo Mas os argumentos que o autor apresenta nas notaspreparatoacuterias conduzem a uma conclusatildeo fundamental que sem duacutevida seraacute retomada em seuperspectivismo a ideia de que toda ordem que se observa na realidade corresponde apenas a uma apropriaccedilatildeoracional da realidade e natildeo agrave realidade ela mesma

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Tal princiacutepio natildeo pode ser senatildeo este como leis universais da naturezatecircm seu fundamento em nosso entendimento que as prescreve agrave natureza(ainda que somente segundo o conceito universal dela como natureza) asleis empiacutericas particulares no que diz respeito agravequilo que nelas eacute deixadoindeterminado pelas leis universais da natureza precisam serconsideradas segundo uma tal unidade [nach einer solchen Einheitbetrachtet werden muumlssen] como se [als ob] um entendimento (aindaque natildeo o nosso) as tivesse dado com vistas agrave [zum Behuf] nossafaculdade de conhecimento para tornar possiacutevel um sistema daexperiecircncia segundo leis da natureza particulares Natildeo que desse modoum tal entendimento tivesse realmente que ser admitido (KANT 2016Paacuteg 11)

Os juiacutezos determinantes se diferenciariam dos juiacutezos reflexivos na medida em que

satildeo orientados por um universal Nesse sentido a terceira criacutetica kantiana que parte da

constataccedilatildeo de que um certo uso judicativo supotildee determinadas condiccedilotildees que natildeo satildeo as

mesmas que fundam nossos juiacutezos objetivos e a maioria dos nossos juiacutezos subjetivos33 Na

continuaccedilatildeo do texto do qual eacute extraiacutedo a citaccedilatildeo acima Kant refere-se aos juiacutezos e ao

33 Conforme Pedro Costa Rego a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos objetivos e juiacutezos subjetivos diria respeitofundamentalmente a validade universal de certos juiacutezos em comparaccedilatildeo agrave validade meramente subjetiva deoutros ldquoPor juiacutezos objetivos entende Kant ateacute sua investigaccedilatildeo na terceira Criacutetica juiacutezos de validadeuniversal Objetividade e universalidade se confundem na medida em que 1) um juiacutezo objetivo eacute um juiacutezofundado em conceitos do entendimento ou da razatildeo 2) as categorias como formas de conceitos empiacutericos eas ideias da razatildeo satildeo elementos pertencentes agrave subjetividade como tal 3) juiacutezos que tecircm como fundamentode determinaccedilatildeo princiacutepios pertencentes a priori agrave subjetividade satildeo vaacutelidos para todos os sujeitos Que todojuiacutezo objetivo seja universal isso jamais seraacute problema para Kant O que entretanto a anaacutelise do gostorevelaraacute impreciso seraacute a formulaccedilatildeo completa ateacute entatildeo vaacutelida para a relaccedilatildeo entre a objetividade e auniversalidade do juiacutezo a saber que universalidade seja condiccedilatildeo necessaacuteria e suficiente para a objetividadede um juiacutezordquo (REGO 2006 Paacuteg 217) Em outras palavras Rego entende que a criacutetica do Juiacutezo se torna ummarco na filosofia kantiana na medida em que nesta criacutetica a distinccedilatildeo entre objetivo e subjetivo eacute elevada aum novo patamar ldquoFundamentar a pretensatildeo de universalidade erguida pelo uso habitual do predicado lsquobelorsquoeacute indicar no elemento da subjetividade como tal o fundamento de determinaccedilatildeo natildeo-objetivo de tal usojudicativo Se isso natildeo for possiacutevel o juiacutezo de gosto natildeo se diferencia do juiacutezo de agradabilidade privada enatildeo haacute argumento contra a tese do empirismo esteacutetico Se for possiacutevel natildeo eacute mais preciso aderir agrave insensatezracionalista de um gosto loacutegico e demonstraacutevel para mostrar que os prazeres esteacuteticos natildeo satildeo todos iguaisEm suma a relaccedilatildeo entre universalidade subjetiva e juiacutezo de gosto eacute uma relaccedilatildeo reivindicada A lsquoAnaliacuteticada Faculdade do Juiacutezo Esteacuteticarsquo eacute uma exposiccedilatildeo da reivindicaccedilatildeo de universalidade subjetiva que apenas ojuiacutezo de gosto ergue e uma deduccedilatildeo do direito do uso dessa reivindicaccedilatildeordquo (REGO 2006 Paacuteg 218) Emoutras palavras com base na sugestatildeo de que o juiacutezo de belo eacute comumente relacionado natildeo a um gostoparticular e nesse sentido subjetivo mas a uma certa universalidade entatildeo Kantpensa a possibilidade de seanalisar juiacutezos que apesar de natildeo poderem reclamar um caraacuteter universal posto que natildeo seriam vinculados aum universal nem tivessem fundamentos na constituiccedilatildeo transcendental ainda assim parecem se relacionarcom algum tipo de objetividade A criacutetica da faculdade de julgar assim se constituiria enquanto estudopropriamente desta objetividade tal como Rego afirma ldquo(hellip) a universalidade de um juiacutezo que tem comofundamento de determinaccedilatildeo natildeo um conceito mas o poder de julgar enquanto tal Sendo esse juiacutezojustamente o juiacutezo de gosto sobre o belo fica explicada a relaccedilatildeo entre lsquouniversalidade subjetivarsquo lsquojuiacutezo degostorsquo e lsquofaculdade do juiacutezorsquo e compreende-se no mesmo movimento por que a Esteacutetica de Kant eacute a parteprincipal de uma obra chamada lsquocriacutetica da faculdade de julgarrsquordquo (REGO 2006 Paacuteg 219)

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nosso poder de produzi-los como se aqui se trata-se de uma definiccedilatildeo que aqui eacute chamada

de subsunccedilatildeo O juiacutezo como subsunccedilatildeo apresenta-se ainda segundo a introduccedilatildeo da

terceira criacutetica em dois modos baacutesicos o determinante e o reflexionante Para Kant os

juiacutezos reflexionantes natildeo tecircm todos a mesma natureza e os mesmos fins Essa diversidade

permite a Kant classificaacute-los em dois grupos o dos esteacuteticos que tem por finalidade o

belo e o dos teleoloacutegicos que tem por finalidade o telos da natureza

Certamente satildeo estes uacuteltimos que interessam mais prontamente a Nietzsche em

Zur Telelologie Os juiacutezos teleoloacutegicos na medida em que se distinguem dos juiacutezos

esteacuteticos por seu objeto e por uma certa objetividade que se fundamentaria na natureza satildeo

definidos por Kant como juiacutezos cientiacuteficos ldquoA faculdade de juiacutezo teleoloacutegica [] procede

como sempre acontece no conhecimento teoacuterico segundo conceitos [] Por isso segundo

a sua aplicaccedilatildeo pertence agrave parte teoacuterica da filosofiardquo (KANT 2016 Paacuteg 27) Assim na

medida em que a condiccedilatildeo de reflexionante e por conseguinte a presenccedila do princiacutepio da

Zweckmaumlssigkeit e a conformidade a uma intenccedilatildeo cognoscitiva satildeo considerados traccedilos

distintivos do juiacutezo reflexionante teleoloacutegico em relaccedilatildeo aos juiacutezos reflexionantes esteacuteticos

estes satildeo tomados por Kant o juiacutezo de conhecimento de um telos na natureza e portanto

um juiacutezo conceitual A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica kantiana rejeita

justamente a possibilidade de que juiacutezos reflexionantes teleoloacutegicos sejam tomados como

juiacutezos determinantes como juiacutezos cientiacuteficos Isto porque em sua leitura apenas

explicaccedilotildees mecacircnicas da natureza corresponderiam a um tratamento verdadeiramente

cientiacutefico da natureza

Nietzsche compreende jaacute em Zur Teleologie que apenas podemos compreender do

mundo aquilo que criamos que incluiacutemos no mundo De tal maneira que nosso

conhecimento natildeo se confunde com uma estrateacutegia de traduccedilatildeo da natureza como se esta

se tratasse de um texto dado que a noacutes competiria decifrar Em sua leitura conhecimento

tem muito ais a ver com criaccedilatildeo do que com explicaccedilatildeo Eacute nesse sentido por exemplo que

em um fragmento poacutestumo em que o filoacutesofo reflete acerca de um texto kantiano acerca da

distinccedilatildeo entre juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos Nietzsche escreve

(hellip) soacute podemos compreender plenamente aquilo que noacutes mesmospodemos construir e trazer agrave existecircncia segundo conceitos Deste modo

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apenas o matemaacutetico pode ser plenamente compreendido (ou sejacompreensatildeo formal) Estamos de resto face ao desconhecido Paraadministraacute-lo o homem inventa conceitos que apenas unificam umasomatoacuteria de propriedades que se manifestam mas natildeo tocam a coisa Aeles pertencem fora mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causafinal Eles natildeo satildeo juiacutezos constitutivos mas tatildeo somente juiacutezos reflexivos(KGW I4 paacuteg 565)

Neste fragmento o que estaacute sendo posto eacute a possibilidade de reduccedilatildeo dos juiacutezos

determinantes Para o filoacutesofo na medida em que o homem em sua investigaccedilatildeo da

natureza nunca toca o acircmago das coisas mas pelo contraacuterio sempre trabalha no interior de

realidades por ele criadas tais como aacutetomos sujeitos objetos e todas as categorias com

que se tencione descrever agrave natureza a proacutepria razatildeo sempre estaria atuando de maneira

reflexiva sobre seus proacuteprios produtos Com isso a classe kantiana dos juiacutezos

determinantes a qual dependeria da admissatildeo ainda que apenas metodoloacutegica de uma

realidade extrafenocircmenica estaria de fato esvaziada de objetos Isto natildeo se confunde no

entanto com um alargamento do conceito de explicaccedilatildeo Natildeo se trata de propor que juiacutezos

explicativos deem conta de juiacutezos de finalidade mas o contraacuterio Nietzsche compreende

que juiacutezos explicativos de fato natildeo satildeo possiacuteveis

Retornando agrave anaacutelise levada a cabo pelo autor em Zur Teleologie em que esta

compreensatildeo se mostra presente a conveniecircncia a fins na natureza tal como estaacute foi

imposta ao reino orgacircnico natildeo passaria do produto de um juiacutezo reflexivo uma

consideraccedilatildeo subjetiva que confere leis agrave natureza sem as retirar dela Isto por que

Nietzsche rejeita a ideia de uma inteligecircncia superior como algo que deva ser aceito como

necessaacuterio para a compreensatildeo da natureza desde que para o autor eliminada a distinccedilatildeo

infundada entre realidade orgacircnica e realidade inorgacircnica esta poderia ser compreendida

em sua inteireza por meio da admissatildeo de causas meramente mecacircnicas Assim a

suposiccedilatildeo de uma finalidade na natureza tal como Kant a concebe natildeo diria respeito senatildeo

a uma investigaccedilatildeo da razatildeo com base em seus proacuteprios produtos

Como se pode ver o projeto de investigaccedilatildeo do conceito de orgacircnico a partir de

Kant potildee Nietzsche jaacute em 1868 em contato com uma postura proacutexima agravequela que

caracterizaraacute o periacuteodo maduro de seu pensamento34 Esta postura seria determinada pela

34 Notadamente com as ideias expressas pelo autor no aforismo 14 Aleacutem do Bem e do Mal ldquoComeccedila adespontar em cinco seis ceacuterebros talvez a ideia de que tambeacutem a fiacutesica eacute apenas uma interpretaccedilatildeo e

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compreensatildeo de que as leis da natureza ou conceitos gerais como o de ldquoorgacircnicordquo natildeo satildeo

mais do que ilusotildees produzidas pelo intelecto Na rejeiccedilatildeo nietzschiana das concepccedilotildees

kantianas entram em accedilatildeo ideias contundentes de A Histoacuteria do Materialismo que teratildeo

um longo amadurecimento na reflexatildeo nietzschiana e que acabaratildeo por fundamentar sua

concepccedilatildeo madura acerca do conhecimento assim como da relaccedilatildeo do conhecimento com

a metafiacutesica O fato de o autor das notas referir-se diversas vezes a passagens do texto

langeano para reforccedilar suas posiccedilotildees como por exemplo ao afirmar que ldquoOrdem e

desordem natildeo se encontram na naturezardquo (BAW 3 paacuteg 375) e que ldquoAtribuiacutemos efeitos agrave

causalidade dos quais as causas relacionadas natildeo vemosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) apenas

reforccedila a compreensatildeo de que Nietzsche reflete longamente sobre as concepccedilotildees de Albert

Lange Dessa reflexatildeo a ideia de que toda atribuiccedilatildeo de finalidade na realidade seria um

produto da atuaccedilatildeo poeacutetica humana eacute o resultado mais importante para o texto em estudo

A rejeiccedilatildeo da vida como elemento especial da realidade aparece nessa

compreensatildeo como exemplo da profundidade da influecircncia do materialismo de Lange na

reflexatildeo nietzschiana No lugar de uma concepccedilatildeo otimista em relaccedilatildeo agrave realidade o autor

sustenta uma posiccedilatildeo segundo a qual o acaso seria a uacuteltima fundamentaccedilatildeo da existecircncia

de tudo o que aparece Assim ao considerar que das inuacutemeras possibilidades de

combinaccedilatildeo dos elementos naturais tambeacutem o orgacircnico aparece como possiacutevel o autor das

notas estaacute rejeitando toda necessidade de uma finalidade superior como forma de

explicaccedilatildeo para a vida No lugar de finalidade a vida aparece como tendo seu surgimento e

manutenccedilatildeo condicionados por causas puramente materiais

Para o autor das notas sobre teleologia tudo que existe deve existir posto que deve

ter as condiccedilotildees de sua existecircncia impressas em seu surgimento A apariccedilatildeo do orgacircnico

natildeo representaria nesse sentido nenhum milagre mas apenas uma apariccedilatildeo natural de algo

de cujas causas se desconhece em todo ou em parte Por outro lado o desconhecimento das

causas que ocasionam o seu surgimento natildeo correspondem a um milagre mas apenas a

uma limitaccedilatildeo no conhecimento destas causas

disposiccedilatildeo do mundo (nisso nos acompanhando permitam lembrar) e natildeo uma explicaccedilatildeo do mundoporeacutem na medida em que se apoia na crenccedila nos sentidos ela passa e deveraacute passar durante muito tempopor algo mais isto eacute por explicaccedilatildeordquo (JGBABM I sect14)

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Coisas existem entatildeo elas devem existir o que significa que elas devemter as condiccedilotildees para a existecircncia Quando o homem faz algo estes meiosfazem este algo capaz de existecircncia ele pensa acerca das condiccedilotildees sobas quais isto pode se dar Ele chama as condiccedilotildees para a existecircncia daobra acabada conveniente a fins apoacutes o fato Portanto ele tambeacutem chamaas condiccedilotildees de existecircncia das coisas convenientes a fins o que querdizer apenas com a pressuposiccedilatildeo de que eles surgem do mesmo modoque as obras humanas Quando um homem sorteia um nuacutemero de umacaixa e este natildeo eacute seu nuacutemero ele natildeo eacute nem conforme a fins e neminconforme a fins mas como se diz acaso (zufaumlllig) o que quer dizersem pensamento precedente Poreacutem as condiccedilotildees dessa existecircncia satildeodadas (BAW 3 paacutegs 375-376)

Tudo que surge no reino do orgacircnico pertence agrave realidade porque causa mecacircnicas

determinam seu surgimento e natildeo por conta de um intelecto superior que determina sua

existecircncia Esta suposiccedilatildeo confronta diretamente a concepccedilatildeo kantiana segundo a qual a

causalidade mecacircnica natildeo poderia explicar o reino do orgacircnico Assim ao citar Kant

quando diz ldquoA organizaccedilatildeo da natureza natildeo tem nenhuma analogia com qualquer

causalidade que conheccedilamosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) e ldquoUm organismo eacute aquilo em que tudo

eacute intercambiaacutevel tanto o fim quanto os meiosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) Nietzsche jaacute estaacute em

condiccedilotildees de negar estas exigecircncias Ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo aceitaacutevel para a origem

do orgacircnico o autor das notas preparatoacuterias vecirc em Kant apenas uma supervalorizaccedilatildeo do

racional fundamentada em uma concepccedilatildeo infundada do orgacircnico como algo superior agrave

natureza inorgacircnica

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana

O autor das notas sobre teleologia apresenta em sua leitura do problema do

orgacircnico assim como sua relaccedilatildeo com o inorgacircnico uma interpretaccedilatildeo em que nem a

realidade mecacircnica nem a orgacircnica pertenceriam agrave realidade em si Para o jovem

Nietzsche ambas aproximaccedilotildees do problema tanto a teleoloacutegica quanto a mecacircnica

representariam apenas reflexos de nosso ponto de vista seriam assim produtos de nossa

organizaccedilatildeo Com isso eacute possiacutevel ver que nesta concepccedilatildeo intercalam-se aspectos da

rejeiccedilatildeo nietzschiana das realidades em si e de sua concepccedilatildeo do conhecimento como

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tendo suas limitaccedilotildees em nossa organizaccedilatildeo Estas satildeo ideias caras a Nietzsche que

decorrem sobretudo de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Agravequela altura o autor estaacute certo de que a partir de nosso ponto de referecircncia do

ponto de vista da natureza humana apenas somos capazes de conhecer por meio de

relaccedilotildees causais ou seja ldquoapenas conhecemos mecanismosrdquo e natildeo organismos Com isso

Nietzsche adianta sua conclusatildeo final para o caso dos organismos e da teleologia portanto

uma rejeiccedilatildeo da posiccedilatildeo kantiana e uma reafirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo langeana

O que Kant afirma ele afirma com base em uma maacute analogia que deacordo com essa ideia natildeo haacute nada similar agraves relaccedilotildees de conveniecircncia afins dos organismos A conveniecircncia a fins surge como um caso especialdo possiacutevel formas sem fim surgem o que quer dizer por meio de junccedilatildeomecacircnica entre estas incontaacuteveis formas poderia haver tambeacutem algumascapazes de vida (BAW 3 paacuteg 378-379)

Na citaccedilatildeo fica expliacutecita a compreensatildeo nietzschiana segundo a qual apenas por

meio de uma analogia improcedente entre o modo como o homem cria com a forma como

as coisas satildeo criadas na natureza Kant teria podido sustentar sua concepccedilatildeo teleoloacutegica35

Assim a uacutenica forma de rejeitar o surgimento dos organismos por meios mecacircnicos seria a

suposiccedilatildeo de uma conformidade a fins incoerente como Nietzsche estaacute convencido de

haver demonstrado

Na compreensatildeo nietzschiana Kant teria recorrido a uma realidade extrafenomecircnica

como modo de justificar a existecircncia de uma inteligecircncia diretora por conta de sua rejeiccedilatildeo

de que organismos complexos pudessem surgir por meios mecacircnicos Mas como o autor da

Criacutetica do Juiacutezo poderia sustentar este recurso a uma realidade superior se em sua filosofia

teoacuterica teria negado a possibilidade de conhecimento de qualquer coisa que se pusesse para

aleacutem dos fenocircmenos Assim ao oferecer uma rejeiccedilatildeo sistemaacutetica das concepccedilotildees

kantianas acerca do orgacircnico Nietzsche pensava sustentar aquilo que considerava ser uma

posiccedilatildeo eminentemente kantiana Posiccedilatildeo segundo a qual ldquoo que se encontra para aleacutem de

nossos conceitos eacute completamente impossiacutevel de conhecerrdquo (BAW 3 paacuteg 378-379)

35 A analogia eacute bastante conhecida na histoacuteria da defesa de concepccedilotildees teleoloacutegicas na forma de umaconcepccedilatildeo de design inteligente segundo a qual toda criaccedilatildeo complexa implica a existecircncia de um criadorinteligente

60

Vimos em seccedilatildeo anterior que naquele periacuteodo de seu pensamento Nietzsche

escreve um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana em que ataca justamente este

ponto Assim negada a possibilidade de acesso cognitivo a uma realidade superior o que

restaria seria a afirmaccedilatildeo de que o conceito de orgacircnico eacute apenas um conceito humano que

natildeo encontra reflexos na realidade objetiva Assim Nietzsche afirma ldquoa ideia de totalidade

eacute obra nossa Aqui repousa a fonte de nossa representaccedilatildeo de finalidadesrdquo (BAW 3 paacuteg

379) A totalidade da natureza orgacircnica agrave qual Kant pensava que as partes se referiam de

forma finaliacutestica seria apenas um produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo

De fato para o autor das notas preparatoacuterias a proacutepria constituiccedilatildeo do orgacircnico

passa por categorias humanas como a categoria de unidade e de totalidade Sem a ideia de

totalidade tambeacutem a ideia kantiana de finalidade orgacircnica cairia por terra Mas se a

finalidade natural natildeo tem sua explicaccedilatildeo em uma realidade extrafenomecircnica porque natildeo

temos acesso a uma tal realidade isto natildeo quer dizer que o orgacircnico natildeo possa ter sua

origem explicada Esta explicaccedilatildeo no entanto natildeo poderia ser dada de forma definitiva

posto que se fundamentaria em nossa organizaccedilatildeo Assim Para Nietzsche a origem do

orgacircnico apenas pode ser dada de forma hipoteacutetica36 e a hipoacutetese defendida pelo autor das

notas seria uma combinaccedilatildeo de mecanicismo e causalismo A ideia da origem do orgacircnico

por meio da atuaccedilatildeo de relaccedilotildees causais que se dariam ao acaso eacute formulada pelo autor das

notas com base em sua rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo de uma inteligecircncia diretora por traacutes da

criaccedilatildeo da realidade

A origem do orgacircnico eacute uma origem hipoteacutetica em que noacutes imaginamosum entendimento humano como presente Agora o conceito de orgacircnicoeacute tambeacutem apenas humano deve-se apontar a analogia de que o que eacute

36 Na adoccedilatildeo nietzschiana de uma hipoacutetese como resposta agrave suposiccedilatildeo contraacuteria que no caso das notas sobreteleologia eacute a hipoacutetese teleoloacutegica eacute possiacutevel perceber traccedilos de semelhanccedila com a madura concepccedilatildeonietzschiana de vontade de potecircncia e sua defesa hipoteacutetica no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do MalCertamente que a defesa de hipoacuteteses natildeo constitui elemento original na filosofia de um autor comoNietzsche o qual sempre apresenta em seus escritos mais questionamentos do que respostas Mas o fato dofiloacutesofo natildeo defender posiccedilotildees dogmaacuteticas pode ser um elemento mais significativo do que parece a primeiravista podendo significar uma resoluta renuacutencia agrave defesa de posiccedilotildees dogmaacuteticas Atitude que a partir deAleacutem do Bem e do Mal se torna expliacutecita Chama a nossa atenccedilatildeo sobretudo o fato de Nietzsche apresentaresta concepccedilatildeo de maneira hipoteacutetica nessa passagem o que remete agrave forma como o autor apresenta a suaconcepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia como hipoacutetese adversaacuteria da concepccedilatildeo mecanicista dos fiacutesicos No casoem questatildeo a hipoacutetese resumida por Nietzsche como a hipoacutetese acerca da origem do orgacircnico segundo aqual o mesmo princiacutepio diretor que atua na manutenccedilatildeo do orgacircnico atuaria em sua criaccedilatildeo eacute contraposta aideia de uma associaccedilatildeo de mecanicismo e acaso que o autor entende como capaz de originar mesmo asformas mais complexas do orgacircnico

61

capaz de vida surge dentre uma multiplicidade daquelas possibilidadesincapazes de vida Com o quecirc nos aproximamos da soluccedilatildeo doorganismo Vemos o tanto quanto eacute capaz de vida surgir e se manter evemos o meacutetodo Suposto que a forccedila que opera para tornar a vida capazde existecircncia a traz para a existecircncia e a manteacutem do mesmo modo isto eacutemuito irracional Mas esta eacute a pressuposiccedilatildeo da teleologia (BAW 3 paacuteg379)

Diante do absurdo da suposiccedilatildeo de que um mesmo princiacutepio guiado pelas mesmas

premissas atuaria na origem e na manutenccedilatildeo de um ente orgacircnico o autor apresenta a

concepccedilatildeo segundo a qual apenas nossa forma de compreender o orgacircnico poderia

justificar esta distorccedilatildeo fundamental A partir dessa rejeiccedilatildeo fundamental da ideia de uma

inteligecircncia diretora e da hipoacutetese de que um mesmo princiacutepio atuasse na origem e na

manutenccedilatildeo dos seres vivos Nietzsche passa a levar em consideraccedilatildeo o problema

epistemoloacutegico fundamental apresentado na Criacutetica do Juiacutezo Assim na continuidade do

conjunto de fragmentos poacutestumos que compotildeem as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie o autor pretende estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas

categorias de causa e efeito

Atraveacutes do recurso agrave categoria de causalidade e a propriedade do meacutetodo de

investigaccedilatildeo mecanicista Nietzsche rejeita a oposiccedilatildeo entre as categorias de unidade e

multiplicidade Esta oposiccedilatildeo com base na qual a explicaccedilatildeo kantiana da necessidade de

um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos se fundamentaria seria de

fato o rela motivo pelo qual o autor das notas preparatoacuterias teria inserido Kant entre os

defensores da teleologia Na leitura do autor das notas preparatoacuterias apesar da ideia

simples do organismo se apresentar a noacutes como o proacuteprio organismo esta ideia se potildee para

aleacutem da multiplicidade de partes e estados que compotildeem o organismo sem que com isso

se perca a sua identidade

Por isso o filoacutesofo cita uma passagem de A Histoacuteria do Materialismo em que

Lange discute as concepccedilotildees naturalistas de Goethe ldquolsquoToda coisa vivarsquo nos diz Goethe lsquoeacute

natildeo uma singularidade mas uma pluralidade mesmo se no entanto ela aparece a noacutes

como um indiviacuteduo ela permanece uma coleccedilatildeo de seres vivos independentesrsquordquo (BAW 3

Paacuteg 376) Com base nessa interpretaccedilatildeo Nietzsche argumenta que tal natildeo se daria se o

organismo natildeo fosse um elemento estrutural da natureza mas ao contraacuterio a unidade

62

estrutural do orgacircnico fosse um produto de nosso intelecto e natildeo uma caracteriacutestica da

natureza

Este seria o real motivo porque o foco da criacutetica nietzschiana agrave teleologia naquele

momento recaia sobre a concepccedilatildeo tradicional de orgacircnico Pois na medida em que a

tradiccedilatildeo representava a visatildeo da natureza como sendo formada por unidades independentes

que se organizariam para constituir um todo complexo a dicotomia entre a multiplicidade

das partes e a unidade do organismo seria fundamental para a compreensatildeo do mundo

orgacircnico Portanto a verdadeira oposiccedilatildeo natildeo se daria entre uma concepccedilatildeo mecacircnica e

uma concepccedilatildeo teleoloacutegica dos organismos mas entre uma concepccedilatildeo que se baseia na

ideia tradicional de organismos aqueles que pretendem um esclarecimento da natureza

mediante a elucidaccedilatildeo da categoria de orgacircnico e as concepccedilotildees mecacircnicas que

pretendem estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas categorias de causa e

efeito (BAW 3 paacuteg 130)

Acompanhando a interpretaccedilatildeo de Fischer para quem ldquoO que a razatildeo conhece da

natureza atraveacutes de seus conceitos natildeo eacute nada mais do que o efeito de forccedilas em

movimento ou seja seu mecanismordquo(BAW 3 paacuteg 377) Nietzsche adianta uma

explicaccedilatildeo do mundo orgacircnico que pressupotildee apenas uma forma de causalidade mecacircnica

retomando assim a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente mecacircnica dos

organismos Nesse sentido o autor chega a admitir apenas a explicaccedilatildeo mecacircnica como

explicaccedilatildeo cientiacutefica como demonstra a citaccedilatildeo de Fischer que encontramos como

fundamento de sua posterior argumentaccedilatildeo ldquoO que natildeo pode ser conhecido por meio de

um ponto de vista meramente mecacircnico natildeo pertence agrave ciecircncia naturalrdquo (BAW 3 paacuteg

377) Com base na suposiccedilatildeo apenas de princiacutepios mecacircnicos na explicaccedilatildeo da realidade

orgacircnica Nietzsche desqualifica toda forma de explicaccedilatildeo teleoloacutegica da natureza como

sendo uma explicaccedilatildeo natildeo cientiacutefica

Ainda em conformidade com Fischer e Lange Nietzsche escreve ldquoexplicar

mecanicamente significa explicar a partir de causas externasrdquo (BAW 3 paacuteg 377) Desta

maneira o autor das notas preparatoacuterias reforccedila a ideia de que toda suposiccedilatildeo de uma

teleologia interna repousa apenas em um preconceito ocasionado por uma super-

valorizaccedilatildeo da razatildeo Esta interpretaccedilatildeo do problema teleoloacutegico eacute contraposta agrave

interpretaccedilatildeo apresentada por Kant na criacutetica do Juiacutezo segundo a qual ldquoA especificaccedilatildeo

63

(da natureza) natildeo pode ser explicada atraveacutes de causas naturaisrdquo (BAW 3 paacuteg 377)

Nietzsche conclui que as causas internas as quais Kant necessariamente precisa recorrer

em sua explicaccedilatildeo dos organismos na figura da finalidade seriam o mesmo que

representaccedilotildees ideias as quais se recorre para atribuir uma explicaccedilatildeo ao que natildeo eacute

passiacutevel de conhecimento

No entanto desde que a elas corresponderia apenas um ldquoponto de vistardquo e um

ponto de vista natildeo pode ser confundido com um conhecimento objetivo a explicaccedilatildeo dos

seres orgacircnicos por meio da ideia de conveniecircncia a fins corresponderia apenas agrave uma

perspectiva limitada Se como Nietzsche nesse ponto chega a afirmar ldquoo princiacutepio de um

tal ponto de vista necessaacuterio deve ser um conceito da razatildeordquo (BAW 3 paacuteg 377) entatildeo

toda forma de explicaccedilatildeo da natureza corresponderia apenas a sua sujeiccedilatildeo ao mecanismo

representacional humano Logo toda explicaccedilatildeo da natureza repousaria em uma forma de

representaccedilatildeo mais ou menos subjetiva ocasionada pelo modo mesmo como a razatildeo

constitui seus produtos Por outro lado a proacutepria compreensatildeo das coisas mediante uma

explicaccedilatildeo causal seria ainda uma limitaccedilatildeo relativa apenas ao nosso modo de

compreensatildeo porque ldquoDevido a nossa organizaccedilatildeo apenas podemos compreender uma

origem mecacircnica das coisasrdquo (BAW 3 paacuteg 378)

As notas preparatoacuterias para a tese sobre teleologia assim parece apresentar como

seu resultado final uma compreensatildeo do caraacuteter limitado de toda forma de compreensatildeo da

realidade Posto que todo conhecimento da realidade apenas pode ser tomado como uma

representaccedilatildeo segundo a forma humana de apreensatildeo desta realidade entatildeo ou bem o

conhecimento propriamente natildeo eacute possiacutevel ou apenas pode ser tomado como

conhecimento uma forma humana de representaccedilatildeo da realidade Em um outro texto do

periacuteodo de juventude Nietzsche se voltaraacute para os problemas referentes agrave verdade e ao

conhecimento mas agora entraram em cena novas variaacuteveis tais como a linguagem e o

valor moral das nossa representaccedilotildees da realidade Desta forma na medida em que

compreendemos que a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do conhecimento diz respeito a

uma avaliaccedilatildeo do valor do conhecimento entatildeo o Ensaio sobre Verdade e Mentira

apresentaraacute em relaccedilatildeo agrave Zur Teleologie elementos que atestam um progresso

consideraacutevel no caminho da formulaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

64

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral

O Ensaio sobre Verdade e Mentira escrito poacutestumo ditado por Nietzsche a um

amigo em 1873 portanto um ano apoacutes a publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia

testemunha a preocupaccedilatildeo do jovem filoacutesofo com temas relacionados aos problemas do

conhecimento e da verdade Nesse sentido como um primeiro exemplo da abordagem

destes problemas na filosofia nietzschiana pretendemos interpretar este ensaio como o

ponto de partida para diversas concepccedilotildees acerca da natureza do conhecimento Como a

leitura do ensaio deixa claro o autor retira estas concepccedilotildees de seu contato com as ciecircncias

naturais de sua eacutepoca O que significa que assim como no caso das notas Zur Teleologie o

Ensaio sobre Verdade e Mentira assume um aspecto que se poderia qualificar

parafraseando Nietzsche como semifilosoacutefico e semicientiacutefico

Tanto nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie quanto no Ensaio sobre Verdade

e Mentira Nietzsche demonstra um profundo interesse pelas disputas em torno de temas

comuns agraves ciecircncias naturais Se nas notas sobre teleologia o autor se relaciona intimamente

com diversas teorias acerca da natureza do orgacircnico no ensaio aparecem representadas

teses sobre evoluccedilatildeo das espeacutecies e sobre a funccedilatildeo bioloacutegica de determinadas estruturas do

aparato humano De tal forma estes textos demonstram a preponderacircncia de questotildees

relacionadas ao conhecimento em uma interpretaccedilatildeo que aproxima essa temaacutetica dos

estudos bioloacutegicos que natildeo se pode deixar de relacionaacute-los aos desdobramentos que o

autor apresenta no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

No aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia encontramos os traccedilos centrais da teoria do

conhecimento suportada por Nietzsche no periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento

Nesses traccedilos natildeo encontraremos a meu ver mudanccedilas significativas em relaccedilatildeo ao modo

como o conhecimento eacute tratado em sua filosofia de juventude notadamente em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira O objeto do aforismo eacute a criacutetica agrave concepccedilatildeo de consciecircncia

apresentado aqui discretamente como o problema do tornar-se consciente desde que

Nietzsche rejeita a ideia de uma consciecircncia independente do ldquotornar-se conscienterdquo Uma

65

resultante desse problema como se pode notar facilmente eacute a concepccedilatildeo de consciecircncia

como objeto de um conhecimento absolutamente certo de si mesma37

O perspectivismo e o fenomenalismo aparecem aqui como a indicaccedilatildeo de que

apenas como fenocircmeno apenas no seu aparecer enquanto o nosso tornar-se consciente a

consciecircncia pode ser objeto de conhecimento38 E como fenocircmeno que eacute nos diz

Nietzsche39 esta seria passiacutevel de uma anaacutelise apenas parcial posto que apenas pode ser

reconhecida por noacutes como um produto de nossa organizaccedilatildeo A anaacutelise do processo de

formaccedilatildeo da consciecircncia tal como estaacute se daraacute aqui tal como se deu a anaacutelise do intelecto

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira passa pelo questionamento acerca da utilidade do

aparato cognitivo humano

Os textos em questatildeo representariam sobretudo um posicionamento criacutetico de

Nietzsche com relaccedilatildeo agrave concepccedilotildees tradicionais de conhecimento Do mesmo modo estes

textos se utilizam amplamente de concepccedilotildees derivadas das ciecircncias naturais como forma

de se contrapor a tais concepccedilotildees tradicionais Em sua abordagem evolutiva ou seja que

toma como referecircncia a evoluccedilatildeo bioloacutegica da espeacutecie humana a consciecircncia eacute tomada

como um oacutergatildeo cuja principal funccedilatildeo estaria relacionada agrave criaccedilatildeo da linguagem A

linguagem por sua vez seria compreendida como uma peccedila fundamental na estrateacutegia de

sobrevivecircncia que se tornou mais eficiente para os homens Assim encontraremos no

aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o questionamento ldquopara quecirc precisamente consciecircnciardquo

37 Como se sabe o conceito de consciecircncia assim como a possibilidade de seu conhecimento certocompotildee o argumento central da filosofia cartesiana a qual influenciou fortemente toda a filosofia moderna Acriacutetica agrave modernidade e sua concepccedilatildeo racionalista portanto comeccedila em Nietzsche pela criacutetica da concepccedilatildeoracionalista de consciecircncia e com a apresentaccedilatildeo dos elementos inconscientes por traacutes da formaccedilatildeo daconsciecircncia que ele apresenta no aforismo em questatildeo38 Eacute importante notar que estes termos satildeo utilizados aqui por Nietzsche com a maacutexima precauccedilatildeo comobem observa Stegmaier ldquoEs ist einer der seltenen Faumllle in denen er im veroumlffentlichten Werk solche Terminibenutzt und er umstellt sie denn auch sogleich mit deutlichen Einschraumlnkungen bdquoDies ist der eigentlichePhaumlnomenalismus und Perspektivismus wie ich ihn versteherdquo (STEGMAIER Werner NietzschesBefreiung der Philosophie Kontextuelle Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo IIUrsprungsfragen zur Aufloumlsung von scheinbar letztem Halt De Gruyter (Berlin Boston) 2012 Paacuteg 280)Como Stegmaier tambeacutem nos diz essa eacute uma das poucas passagens onde podemos contemplar a utilizaccedilatildeodestes termo por Nietzsche

39 Como explica Stegmaier ldquoDer Begriff sbquoPhaumlnomenalismuslsquo war vor allem auf Kants Lehre gemuumlnzt dasswir es niemals mit sbquoDingen an sichlsquo sondern immer nur mit sbquoErscheinungenlsquo sbquoPhaumlnomenenlsquo zu tun haumlttenauch dieser sbquo-ismuslsquo wurde wie viele andere zunaumlchst von Kritikern jener Lehre aufgebracht und dann auchzu ihrer Verteidigung und Fortbildung benutztrdquo Idem

66

Este questionamento que de certo modo jaacute encontra fora respondido no Ensaio sobre

Verdade e Mentira tem no aforismo em questatildeo uma resposta hipoteacutetica ldquoPara fins de

comunicaccedilatildeordquo

Consideramos que a concepccedilatildeo presente no ensaio de uma evoluccedilatildeo do intelecto

com base na necessidade de uma vida coletiva a qual por sua vez torna-se cada vez mais

dependente de uma linguagem pode ser lida aqui como uma variaccedilatildeo do questionamento

suportado por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia A similaridade de objetos assim como da

resposta torna possiacutevel estabelecer uma certa continuidade entre o periacuteodo de juventude e

o periacuteodo intermediaacuterio da reflexatildeo nietzschiana Continuidade que se natildeo pode se

confundir com a supressatildeo das discordacircncias pode servir de base para a ideia de que

apesar de uma certa variaccedilatildeo na abordagem as ideias acerca das relaccedilotildees entre o

conhecimento e a linguagem permanecem praticamente intocadas com o desenvolvimento

do pensamento nietzschiano

A primeira dificuldade que se nos apresenta no estudo do ensaio em questatildeo eacute o

uso ambiacuteguo de verdade a que este daacute lugar40 A originalidade do ensaio que como o tiacutetulo

40 No capiacutetulo de seu livro dedicado ao estudo do ensaio sobre verdade e mentira Bornedal se daacute conta dessaconhecida dificuldade e identifica trecircs (ou quatro) sentidos de verdade no ensaio em questatildeo ldquolsquoverdadersquo eacuteuma bem conhecida pedra no caminho para os comentadores do ensaio de juventude de Nietzsche Muitoscomentadores veem Nietzsche se contradizendo porque ele introduz muitos conceitos diferentes eincompatiacuteveis de verdade Concordamos que Nietzsche realmente introduz diferentes noccedilotildees de lsquoverdadersquo eestamos aptos a numerar no ensaio exatamente trecircs (ou quatro dependendo de como se conta) destas taisnoccedilotildees de verdade verdade como veracidade (truthfulness) verdade como ilusatildeo (que se divide em duasformas porque a verdade pode ser uma ilusatildeo devida agrave percepccedilatildeo ou uma ilusatildeo devida aos conceitos) everdade como a coisa em si Poreacutem ao introduzir estes trecircs ou quatro conceitos de verdade natildeo percebemosuma contradiccedilatildeo em Nietzsche desde que as noccedilotildees tecircm diferentes definiccedilotildees aplicaccedilotildees e contextosrdquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 32-33) No entanto apresentamos uma versatildeo um pouco diferente dasconcepccedilotildees de verdade segundo Bornedal porque este associa uma concepccedilatildeo de coisas em si com umaconcepccedilatildeo de verdade segundo Nietzsche quando nos parece que o autor do ensaio nega esta relaccedilatildeo emtodos os momentos que se refere agraves coisas em si Bornedal parece incorrer em uma interpretaccedilatildeo corriqueirada filosofia de juventude de Nietzsche a qual nos contrapomos de que nesta fase o filoacutesofo postula-se aexistecircncia de coisas em si como um elemento necessaacuterio de sua negaccedilatildeo do conhecimento verdadeiro Com oadendo de que Bornedal faz observaccedilotildees fundamentais no sentido de esclarecer que na reflexatildeo nietzschianadaquele periacuteodo este jaacute se relacionaria com uma versatildeo criacutetica da coisa em si de acordo com asinterpretaccedilotildees de Lange e Hemholtz da filosofia kantiana Versatildeo criacutetica em que o que se potildee para aleacutem dosfenocircmenos natildeo teria relaccedilotildees com uma realidade transcendente mas apenas com o complexo bruto natildeotraduzido de estiacutemulos nervosos Em resumo a coisa em si a qual Nietzsche faria referecircncia no ensaio teriamais a ver com os estiacutemulos nervosos por traacutes das percepccedilotildees humanas ou ldquoNesta reformulaccedilatildeoepistemoloacutegico-cientiacutefica do pensamento kantiano a coisa em si eacute mais do que simplesmente o enigmaacuteticolsquoXrsquo de Kant ele ainda eacute certamente enigmaacutetico mas agora ele eacute compreendido como impressotildees sensiacuteveisimpressas em noacutes lsquosob a pelersquo como diria Schopenhauer A coisa em si eacute tatildeo incompreensiacutevel e inacessiacutevelcomo sempre mas agora sua incompreensibilidade tinha uma explicaccedilatildeo fisioloacutegico-cientiacuteficardquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 41)

67

anuncia tem como tema a verdade e a mentira vistas de um ponto de vista extramoral

residiria no fato de que a anaacutelise destes temas em contraposiccedilatildeo agraves abordagens

tradicionais buscaria situar-se em um patamar de exterior agrave moral A primeira denuacutencia do

texto portanto denuacutencia que jaacute se encontra em seu tiacutetulo diz respeito a insinuaccedilatildeo da

moral em questotildees relativas agrave verdade e a mentira Para o autor do ensaio o

questionamento pela forma como a moral se confunde com a verdade e a mentira jaacute

representaria um passo fundamental na determinaccedilatildeo do que sejam de fato verdade e

mentira

Seu posicionamento distingue-se aos estudos anteriores dessas concepccedilotildees

filosoacuteficas que o autor julga terem sido analisados dentro de uma apreciaccedilatildeo estritamente

moral Assim o autor do ensaio procura qualificar tanto a verdade quanto a mentira como

instacircncias cuja a origem natildeo se relacionaria com algum reino moral Seria somente a partir

das consequecircncias negativas deste uso que surgiria o impulso moral agrave verdade Pois para o

autor do ensaio a verdade em uma primeira acepccedilatildeo estaria relacionada agrave veracidade ou

o uso correto de designaccedilotildees produzidas pelo intelecto a partir de metaacuteforas Em outro

sentido a verdade seria uma ilusatildeo decorrente de se tomar por verdadeiro uma percepccedilatildeo

ou um conceito de algo Por fim a verdade estaria relacionada ao uso dos termos

acordados em uma comunidade tornando-se aquilo que a tradiccedilatildeo entendeu como verdade

com todo o peso moral que esta concepccedilatildeo assume a partir de um haacutebito de interiorizaccedilatildeo

das consequecircncias do uso incorreto dos termos acordados Eacute assim que para o autor a

mentira poderia a princiacutepio ser tomada como o uso incorreto de designaccedilotildees acordadas

em sociedade

Poderia ser dito entatildeo que a originalidade do texto em questatildeo reside no

questionamento do julgamento moral positivo acerca da verdade e o correlato julgamento

negativo com relaccedilatildeo agrave mentira que encontramos nas abordagens tradicionais dos

problemas da verdade Se a verdade eacute universalmente e objetivamente preferiacutevel agrave

mentira e o autor estaacute bem longe de acreditar nisso sua preferecircncia deve ser dada por algo

estranho agrave moral que ao contraacuterio do que se imagina natildeo eacute eterna e portanto anterior agrave

criaccedilatildeo da verdade e da mentira Para o autor do ensaio pelo contraacuterio a moral seria uma

decorrecircncia da criaccedilatildeo da verdade e da mentira

68

21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira

No ensaio sobre verdade e mentira o intelecto eacute concebido apenas como um

instrumento uma construccedilatildeo orgacircnica um oacutergatildeo voltado para a sobrevivecircncia do ser

humano No que se vecirc claramente uma rejeiccedilatildeo de qualquer finalidade exterior agrave

sobrevivecircncia humana41 Esta renuacutencia ao conhecimento como finalidade a indicaccedilatildeo de

que ao contraacuterio do que a tradiccedilatildeo imagina o intelecto natildeo seria o uacuteltimo grau de

desenvolvimento bioloacutegico prepara o cenaacuterio para o desmascaramento do homem como

ponto culminante da criaccedilatildeo

Naquelas notas preparatoacuterias para uma dissertaccedilatildeo em filosofia o autor buscava

uma explicaccedilatildeo mecacircnica capaz de suplantar a explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo natural

Analogamente no ensaio em estudo a biologia a lei natural de desenvolvimento dos

organismos apareceraacute como instrumento interpretativo para estruturas sobre as quais o

idealismo fundamentava o que o autor considerava as mais tresloucadas concepccedilotildees Mais

ainda em sua exposiccedilatildeo do desenvolvimento do intelecto como oacutergatildeo para a linguagem o

autor desconsidera a possibilidade de qualquer finalidade superior assim como reduz a

importacircncia do oacutergatildeo em questatildeo a uma finalidade fisioloacutegica Com isso o autor parece

pocircr em uso um entendimento criacutetico com relaccedilatildeo agrave teleologia que seria similar ao

apresentado nas jaacute referidas notas sobre teleologia

Uma conclusatildeo fundamental que pode ser extraiacuteda do ensaio eacute que o conhecimento

representado aqui na forma do grande edifiacutecio de conceitos da qual a ciecircncia seria uma

expressatildeo natildeo se confunde em Nietzsche como um produto da verdade Na verdade

como a construccedilatildeo que toma por material os conceitos que satildeo algo como cristalizaccedilotildees de

metaacuteforas adequadas a ciecircncia eacute apenas uma construccedilatildeo humana para fins de

sobrevivecircncia humana que natildeo tem um valor absoluto e cujo valor para outras espeacutecies eacute

questionaacutevel Ora se aprofundarmos a metaacutefora da teia da aranha em relaccedilatildeo ao

conhecimento para o homem veremos que a ciecircncia humana eacute tatildeo verdadeira para a aranha

quanto a teia desta para noacutes Algo simplesmente natildeo encaixa na comparaccedilatildeo porque o

41 Quando tomada a questatildeo da finalidade como centro de reflexatildeo de Nietzsche naquele momento de suaproduccedilatildeo eacute importante repensar a criacutetica agrave concepccedilatildeo de finalidade como explicaccedilatildeo dos organismos talcomo esta reflexatildeo aparece em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie analisadas no toacutepico anterior

69

filoacutesofo entende que ambas criaccedilotildees apenas correspondem agraves necessidades de cada espeacutecie

e natildeo tecircm valor algum fora de suas perspectivas

Nesse sentido longe de ser o objeto proacuteprio do ser humano seu uacuteltimo alvo e

finalidade no universo diante do qual todo universo deveria se dobrar o conhecimento eacute

tomado pelo autor como uma relaccedilatildeo antropomoacuterfica uma estrateacutegia de sobrevivecircncia

criada com o uacutenico intuito de conservar por um breve momento a mais na existecircncia a

espeacutecie mais ameaccedilada de todas Assim por meio de uma faacutebula apresentada jaacute no

primeiro paraacutegrafo do ensaio Nietzsche apresenta uma visatildeo pessimista com relaccedilatildeo ao

conhecimento

Em algum remoto rincatildeo do universo que se desaacutegua fulgurantementeem inumeraacuteveis sistemas solares havia uma vez um astro no qualanimais astuciosos inventaram o conhecimento Foi o minuto maisaudacioso e hipoacutecrita da ldquohistoacuteria universalrdquo mas no fim das contas foiapenas um minuto Apoacutes alguns respiros da natureza o astro congelou-see os astuciosos animais tiveram de morrer Algueacutem poderia desse modoinventar uma faacutebula e ainda assim natildeo teria ilustrado suficientementebem quatildeo lastimaacutevel quatildeo sombrio e efecircmero quatildeo sem rumo e semmotivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza houveeternidades em que ele natildeo estava presente quando ele tiver passadomais uma vez nada teraacute ocorrido (WLVM sectI paacuteg 25)42

Esta faacutebula da criaccedilatildeo do conhecimento humano que consta como poacutertico de

entrada do ensaio daacute mostras do tom irocircnico a ser utilizado para com o intelecto humano e

para com o proacuteprio conhecimento em todo o escrito Disto jaacute tomamos notiacutecia pela ecircnfase

do autor no termo ldquohistoacuteria universalrdquo mencionado entre aspas como a ironizar a

arrogacircncia necessaacuteria para chamar universal uma histoacuteria que eacute narrada a partir de nossa

perspectiva limitada criaturas destinadas a sumir ao fim de apenas alguns respiros do

universo Do mesmo modo o uso da faacutebula como que para demarcar o limite hipoteacutetico de

toda essa formulaccedilatildeo arbitraacuteria e antropocecircntrica guarda bastante do tom irocircnico utilizado

pelo autor para tratar do conhecimento em seus textos da fase madura43

42 As citaccedilotildees satildeo da traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros do Ensaio sobre Verdade e Mentira da editoraHedra conforme consta na bibliografia Entre parecircnteses eacute indicado o texto por WLVM a indicaccedilatildeo deparaacutegrafo e a paacutegina da traduccedilatildeo em estudo43 Por outro lado o recurso agrave faacutebula como instrumento expositivo nesse ensaio se torna importante porquerepresenta a permanecircncia no pensamento do autor de um recurso discursivo com o qual este se opotildee agravesdescriccedilotildees com pretensatildeo cientiacutefica Este recurso eacute especialmente comum em textos nietzschianos em que o

70

O sentido do primeiro paraacutegrafo do texto torna-se assim claro e rico de sentido o

autor do ensaio natildeo vecirc com benevolecircncia o conhecimento humano assim como natildeo atribui

grande importacircncia ao intelecto humano Toda esta postura denuncia um afastamento da

tradiccedilatildeo na medida em que aquela eacute marcada pela ecircnfase nessas instacircncias meramente

humanas Por isso o autor acrescenta que este intelecto lastimaacutevel sombrio e efecircmero o

qual ldquohouve eternidades em que ele natildeo estava presenterdquo e que ldquoquando ele tiver passado

mais uma vez nada teraacute ocorridordquo (WLVM sectI paacuteg 25) natildeo tem nenhuma missatildeo

especial no universo para aleacutem da sobrevivecircncia humana

O intelecto nos diz o autor natildeo alcanccedila nada para aleacutem de sua funccedilatildeo bioloacutegica a

criaccedilatildeo de ilusotildees capazes de facilitar a sobrevivecircncia humana No entender de Nietzsche

apenas o homem toma este intelecto de forma tatildeo ldquopateacuteticardquo centrando o universo nesse

instrumento de sobrevivecircncia Como uma mosca que fundamentasse o universo em seu

voar o homem mede todo o universo a partir de sua perspectiva limitada e enganosa Esse

pathos a sensaccedilatildeo de que o mundo pode ser explicado por meio de uma tatildeo limitada

ferramenta teria sido justamente o motivo de tantos erros em filosofia Erros os quais

seria funccedilatildeo do ensaio questionar tomando como instrumento criacutetico uma anaacutelise bioloacutegica

do desenvolvimento humano e suas estruturas perceptivas

Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela exposiccedilatildeo do

caraacuteter perspectivo de nossas pretensas verdades universais Nietzsche coloca-se frente agrave

pretensatildeo de verdade representada pelas filosofias racionalistas identificada pelo autor do

ensaio como a pretensatildeo de atingir a verdade absoluta atraveacutes de um instrumento

necessariamente relativo humano Assim por meio de uma consideraccedilatildeo perspectiva do

conhecimento a defesa do caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da realidade

repousaraacute sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o filoacutesofo

realiza por meio da constataccedilatildeo dos limites do intelecto em contrariedade a toda a tradiccedilatildeo

racionalista que preferiu se voltar contra os oacutergatildeos dos sentidos Sua anaacutelise de tudo que

autor reflete acerca dos problemas da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O uso da faacutebula emcontraposiccedilatildeo a uma descriccedilatildeo dos fatos assinala um certo caraacuteter provisoacuterio ou hipoteacutetico com que se podetratar do tema do conhecimento sem que seja necessaacuteria a defesa de uma concepccedilatildeo proacutepria que se entendecomo definitiva Ou seja o recurso nietzschiano agrave faacutebula assim como seu recurso agraves hipoacuteteses marcam aoposiccedilatildeo criacutetica do autor a toda forma de tratamento dogmaacutetico Do mesmo modo este modo peculiar deargumentar eacute utilizado pelo filoacutesofo como demonstraccedilatildeo de que eacute possiacutevel opor-se a uma posiccedilatildeo dogmaacuteticasem recorrer a uma outra posiccedilatildeo dogmaacutetica Este recurso pode ser compreendido desta forma comomanifestaccedilatildeo praacutetica do experimentalismo nietzschiano

71

ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo

desdobramento do mundo em substacircncia inteligiacutevel agrave anaacutelise de sua origem e

desenvolvimento

O contato nietzschiano com autores das ciecircncias naturais contato que teria sido

mediado pela leitura de A Histoacuteria do Materialismo de Albert Lange proporciona uma

investigaccedilatildeo do intelecto com base na interpretaccedilatildeo deste como um oacutergatildeo voltado para a

sobrevivecircncia humana Para o autor do ensaio sua funccedilatildeo mais comum eacute a geraccedilatildeo de

linguagem que nessa leitura significa a modelagem de estruturas natildeo comunicaacuteveis dentro

de conceitos passiveis de serem convertidos em sons Nesta leitura o processo de

formaccedilatildeo da linguagem eacute examinado com base na suposiccedilatildeo de que esta teria evoluiacutedo sob

a pressatildeo da necessidade humana Assim a linguagem teria sido criada esse desenvolvido

natildeo com base na descriccedilatildeo da realidade mas na simplificaccedilatildeo de uma forma de realidade

Esta simplificaccedilatildeo teria se dado sobretudo na supressatildeo da mobilidade que nos eacute

apresentada pelos sentidos por meio de metaacuteforas que conferem um caraacuteter fixo e

comunicaacutevel a estas impressotildees fundamentais Mas a linguagem apenas se torna uma

funccedilatildeo orgacircnica importante na medida em que o homem passa a depender de outros

homens para sua sobrevivecircncia E se o intelecto tem como funccedilatildeo fundamental a criaccedilatildeo da

linguagem eacute natural compreender que este enquanto estrutura propriamente humana que

se originou e desenvolveu segundo nossas necessidades naturais ocupe um papel

secundaacuterio no conjunto de nossas atividades orgacircnicas

Seraacute apenas a partir deste gecircnero de anaacutelise da utilidade do intelecto e seus

produtos que passam a ser encarados no Ensaio Sobre Verdade e Mentira como

instrumentos adequados agraves necessidades humanas que Nietzsche poderaacute efetuar uma

criacutetica evolutiva do conhecimento humano Ou seja com esta anaacutelise que toma o intelecto

natildeo como oacutergatildeo para a verdade mas como estrutura voltada para uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia Nietzsche desenvolve uma criacutetica da razatildeo baseada em sua utilidade

bioloacutegica44

44 Haacute uma dificuldade interpretativa em Nietzsche quanto agrave categoria de razatildeo De modo adverso aos autoresque lhe antecedem e que satildeo uma clara influecircncia na sua teoria sobre a verdade e o conhecimento tais comoKant e Schopenhauer Nietzsche natildeo desenvolve uma elucidaccedilatildeo dos mecanismos da razatildeo e natildeo sepreocupa em fazer uma distinccedilatildeo entre o que sejam intuiccedilatildeo entendimento intelecto e razatildeo que para atradiccedilatildeo que ele perpetua tem um papel fundamental Tal se daacute entre outros motivos pela negaccedilatildeo dasfaculdades espirituais que eacute comum a todos os escritos sobre o conhecimento de Nietzsche Do mesmomodo para descrever a faculdade que daacute origem agrave linguagem ele adota um termo no Ensaio Sobre Verdade eMentira (Intellektintelecto) e outro no sect354 de A Gaia Ciecircncia (Bewusstseinsconsciecircncia) A mudanccedila do

72

Nesta criacutetica em que o intelecto natildeo eacute mais visto como fonte da veracidade do

mundo mas como um oacutergatildeo que evoluiu segundo as exigecircncias de uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia proacutepria de nossa espeacutecie o filoacutesofo considera que o conhecimento humano

como parte de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia Como tal o conhecimento humano natildeo

teria uma origem divina extramundana mas sim um surgimento na histoacuteria do mesmo

modo que um dia teraacute seu fim Como estrutura bioloacutegica o intelecto seria para o homem

algo correlato ao chifre ou agraves presas para outras espeacutecies45 uma formaccedilatildeo fisioloacutegica

adaptativa que se associa a uma estrateacutegia de sobrevivecircncia especiacutefica

Esta compreensatildeo eacute pensada como para subverter a compreensatildeo do intelecto como

algo divino Compreensatildeo que fundamentaria a compreensatildeo da verdade como um

produto do intelecto tambeacutem como algo divino Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo que entende que

o intelecto foi moldado para a verdade Nietzsche compreende que ldquoSeu efeito mais geral eacute

engano ndash mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caraacuteterrdquo

(WLVM sect1) Assim a compreensatildeo do intelecto como instrumento possibilita a

compreensatildeo da verdade como algo relacionado agrave sobrevivecircncia humana

O modo de operaccedilatildeo do intelecto que estaria relacionado ao condicionamento de

um nuacutemero ilimitado de objetos a uma quantidade limitada de conceitos torna possiacutevel ao

autor do ensaio sustentar uma relaccedilatildeo estrutural entre a verdade e o falseamento da

realidade Se a verdade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto entatildeo a ela estaria

relacionada natildeo uma descriccedilatildeo mais adequada da realidade mas o falseamento dessa

realidade mais proveitoso para a espeacutecie humana A constante suposiccedilatildeo nietzschiana de

nossa dependecircncia do erro que encontraremos em diversos textos do filoacutesofo em todas as

termo em uso sugere uma progressatildeo de sua reflexatildeo e um afastamento da filosofia de Schopenhauer O usodo termo ldquointelectordquo se adequaria melhor a descriccedilatildeo da atuaccedilatildeo da razatildeo em consonacircncia com a teoria doconhecimento em Schopenhauer na eacutepoca em que ele escreve o ensaio enquanto que o uso de consciecircnciasucinta a denuacutencia de um problema que se alastraria em meio a intelectualidade da Europa a eacutepoca de A GaiaCiecircncia o tornar-se consciente mais racional cada vez mais ldquolinguiacutesticordquo em conclusatildeo cada vez menosverdadeiro45 Aparentemente Nietzsche toma essa analogia entre os chifres e a razatildeo de Schopenhauer Assim em seuensaio sobre verdade e mentira nos diz ldquoComo um meio para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo o intelectodesenrola suas principais forccedilas na dissimulaccedilatildeo pois esta constitui o meio pelo qual os indiviacuteduos maisfracos menos vigorosos conservam-se como aqueles aos quais eacute denegado empreender uma luta pelaexistecircncia com chifres e presas afiadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 27) O que eacute certo eacute que esta noccedilatildeo do intelectocoincide com a hipoacutetese de Schopenhauer de que a razatildeo eacute um instrumento para a sobrevivecircncia humanasendo um testemunho indiscutiacutevel da influecircncia de Schopenhauer na teoria perspectivista de Nietzsche Noentanto cumpre observar que o fato de Nietzsche relacionar o uso da consciecircncia a um certoenfraquecimento da espeacutecie humana assim como a consideraccedilatildeo com fortes traccedilos evolucionistas queencontramos em sua reflexatildeo satildeo indiacutecios de uma apropriaccedilatildeo da teoria schopenhaueriana que natildeo se reduzsimplesmente as consideraccedilotildees do autor de O Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo

73

fases de sua produccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada desta compreensatildeo fundamental

Acompanhemos o autor em sua descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo da linguagem

Diante da pluralidade estrutural da realidade a linguagem eacute criada pelo intelecto

mediante a compreensatildeo de muitos objetos em uma mesma categoria sem que com isso

seja respeitada nenhuma lei estrutural A uacutenica lei que parece guiar esta compreensatildeo seria

a forma especiacutefica de vida humana Nesse sentido a funccedilatildeo primordial do intelecto estaria

relacionada ao estabelecimento de metaacuteforas para os objetos com os quais nos deparamos

em nosso meio Por este motivo o autor do ensaio considera o intelecto o autor das mais

sublimes ilusotildees desde que seria ele o responsaacutevel pela constituiccedilatildeo das metaacuteforas que se

tornam em conceitos

Afastada a hipoacutetese de que a funccedilatildeo do intelecto estivesse relacionada ao

desvelamento do real o autor do ensaio se volta para sua real funccedilatildeo a potencializaccedilatildeo da

sobrevivecircncia humana Para Nietzsche dois seriam os expedientes empregados pelo

intelecto para alcanccedilar uma maior permanecircncia do mais fraco dos animais na existecircncia a

criaccedilatildeo da linguagem e a autojustificaccedilatildeo do intelecto Esta autojustificaccedilatildeo se daria no

sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de seu papel e de seu alcance Atraveacutes desta

autojustificaccedilatildeo do intelecto A dignidade tributada ao intelecto pela tradiccedilatildeo seria a mais

poderosa ilusatildeo de que o proacuteprio intelecto eacute capaz Pois seria justamente esta ilusatildeo que lhe

conferiria uma nobreza tatildeo desmensurada quando comparada agrave sua real importacircncia A

importacircncia dessa supervalorizaccedilatildeo do intelecto estaacute relacionada no pensamento

nietzschiano com sua criacutetica ao racionalismo da tradiccedilatildeo Assim dada a importacircncia de se

submeter o intelecto a uma avaliaccedilatildeo criacutetica agrave luz de suas reais funccedilatildeo e origem Nietzsche

se volta com frequecircncia em seu ensaio contra esta supervalorizaccedilatildeo do intelecto Jaacute nos

primeiros paraacutegrafos esta arrogacircncia do intelecto eacute abordada por meio da faacutebula do

surgimento do intelecto Do mesmo modo em uma passagem bastante conhecida do

ensaio Nietzsche se voltaraacute com irocircnica admiraccedilatildeo e espanto contra as capacidades do

intelecto Assim o autor conclui

Eacute curioso pensar que isso seja levado a efeito pelo intelecto precisamenteele que foi outorgado apenas como instrumento auxiliar aos maisinfelizes fraacutegeis e evanescentes dos seres para conservaacute-los um minutona existecircncia da qual teriam todos os motivos para fugir tatildeo rapidamentequanto o filho de Lessing (WLVM sectI paacuteg 26)

74

A autojustificaccedilatildeo do intelecto seria assim a grande ilusatildeo que subjaz a todas as

outras ilusotildees criadas pelo proacuteprio intelecto Pois esta seria uma ilusatildeo fundamental que lhe

garante sua veracidade por meio da qual se disfarccedila sua real aplicaccedilatildeo Por fim a proacutepria

crenccedila que a tradiccedilatildeo depositou na capacidade do intelecto em revelar a verdade seria

ainda uma consequecircncia deste modo de proceder do intelecto em sua avaliaccedilatildeo de si

mesmo

Mas por que o homem se deixa enganar pela ilusatildeo do intelecto em sua

autojustificaccedilatildeo Isto se daacute no entender de Nietzsche porque o valor do homem teria se

associado no decorrer da formaccedilatildeo da sociedade ao proacuteprio valor do intelecto Desta

forma o homem compartilharia com o intelecto a ilusoacuteria importacircncia que lhe eacute atribuiacuteda

por meio de avaliaccedilatildeo deste sobre si Por outro lado a confianccedila no intelecto fornece meios

para o homem sustentar uma compreensatildeo limitada acerca do universo circundante e de

seus horrores indescritiacuteveis Tudo isso faz contribui para que o animal humano se sinta natildeo

apenas seguro mas orgulhoso de seu lugar na existecircncia

Aquela audaacutecia ligada ao conhecer e sentir que se acomoda sobre osolhos e sentidos dos homens qual uma neacutevoa ofuscante ilude-os quantoao valor da existecircncia na medida em que traz em si a mais envaidecedoradas apreciaccedilotildees valorativas sobre o proacuteprio conhecer Seu efeito maisuniversal eacute engano ndash todavia os efeitos mais particulares tambeacutem trazemconsigo algo do mesmo caraacuteter (WLVM sectI paacuteg 27)

Ao valor do conhecimento enquanto produto da avaliaccedilatildeo de si mesmo do

intelecto se vincula o valor mesmo que o intelecto se atribui Dessa forma o homem passa

a depender para sua sobrevivecircncia do engano na estimaccedilatildeo do valor do intelecto Em

outros termos se poderia dizer que a proacutepria criaccedilatildeo da perspectiva humana assim como a

atribuiccedilatildeo de valor que lhe conferimos seria obra do intelecto

Por meio desta atuaccedilatildeo do intelecto em que engano e valor surgem como criaccedilotildees

de igual importacircncia o homem consegue natildeo apenas fixar-se na existecircncia mas envolvido

nesse pathos valorando a existecircncia a partir dessa perspectiva atinge o cume de sua

vitalidade em um orgulho que natildeo encontra paralelos em sua real situaccedilatildeo como animal

75

ameaccedilado Assim a perspectiva do intelecto se autoafirma como o proacuteprio valor da

existecircncia humana

Em seus estaacutegios mais primitivos portanto toda a potecircncia criativa inerente ao

intelecto estaria ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia estaria a serviccedilo da vida No

entanto com o uso constante do intelecto este passa a afastar-se dos interesses para a vida

passa a constituir uma realidade apartada da realidade da vida fazendo repousar o valor de

sua perspectiva em valores de negaccedilatildeo da vida No entanto enquanto ainda estaacute vinculado

agrave vida a funccedilatildeo primordial do intelecto humano eacute o engano que ele aplica de maneira

muito especiacutefica no segundo expediente que este utiliza para conservar nossa existecircncia a

linguagem Antes de entrarmos na questatildeo da linguagem poreacutem seria interessante analisar

a relaccedilatildeo entre a verdade e o engano nos primeiros estaacutegios de anaacutelise da atuaccedilatildeo do

intelecto

Inicialmente Nietzsche considera um fato fundamental acerca do homem que este

natildeo admira a verdade acima de todas as coisas Como prova deste fato eacute apresentado o

argumento segundo o qual nada mais agrada o homem comum do que deixar-se enganar

em sonhos todas as noites O Haacutebito de sonhar natildeo tem via de regra nenhum tipo de

repreensatildeo moral nenhum homem procura vencer esse haacutebito por consideraacute-lo imoral

Eles se acham profundamente imersos em ilusotildees e imagens oniacutericas seuolho desliza apenas ao redor da superfiacutecie das coisas e vecirc ldquoformasrdquo suasensaccedilatildeo natildeo leva agrave verdade em nenhum lugar mas antes se satisfaz emreceber estiacutemulos e tocar por assim dizer um teclado sobre o dorso dascoisas Para tanto o homem consente agrave noite e atraveacutes de toda uma vidaser enganado em sonho sem que seu sentimento moral jamais tentasseevitar isso natildeo obstante deve haver homens que pela forccedila de vontadedeixaram de roncar (WLVM sectI paacuteg 27)

O exemplo do sonho sugere que o deixar-se enganar por si natildeo eacute motivo de

reprimenda moral sendo necessaacuterio acrescentar algum outro elemento ao engano para

tornaacute-lo repreensiacutevel Se pensamos na verdade como consequecircncia de um impulso moral

como entender que ldquoagrave noite e durante toda uma vidardquo o homem se permita deixar enganar

em sonhos sem que isto estimule um sentimento moral que talvez nos convencesse da

necessidade de deixar de sonhar Por outro lado para Nietzsche ocorreria no homem

76

quando em sonhos o mesmo que ocorre quando este estaacute desperto ambos nunca estariam

de fato diante de realidades Para ambos apenas se apresentariam ilusotildees embora as

ilusotildees do homem desperto se mostrem mais persistentes

Ou seja para o autor do ensaio mesmo quando desperto o tatear do homem pelo

mundo apenas carrega os traccedilos confusos de dados obtidos por meio de um aparato

sensiacutevel ruacutestico seu tatear confuso natildeo atinge o cerne do mundo atinge apenas como que

apenas as costas das coisas Tanto eacute assim que mesmo acerca de noacutes mesmos nosso objeto

mais proacuteximo noacutes pouco sabemos pois apenas coletamos dados obtusos de um mundo

interior fabulado e os agrupamos toscamente em teorias complicadas E eacute com base nesses

dados obtusos que o homem constroacutei suas verdades sem que no entanto nada nele rejeite

essa conduta Ou seja nenhum princiacutepio moral inato o faz recuar dessas ilusotildees

Em sua confrontaccedilatildeo da tradiccedilatildeo Nietzsche desvela a atuaccedilatildeo figuradora do

intelecto que em vez de nos guiar no caminho reto da verdade como se pressupunha que

este deveria fazer eacute ele mesmo a principal fonte de ilusotildees Para o autor do ensaio seria

por forccedila do intelecto que um estiacutemulo logo se torna uma imagem Posteriormente esta

imagem eacute traduzida em sons na medida em que temos necessidade de comunicar a outros

o que nos representamos Todo este processo que deriva da atuaccedilatildeo de um potencial

criativo humano vinculado ao intelecto revela-se na atividade da produccedilatildeo da linguagem

Nesse processo a simplificaccedilatildeo do mundo circundante em foacutermulas mais ou menos

passiacuteveis de comunicaccedilatildeo constitui os passos fundamentais para o estabelecimento da

linguagem e posteriormente da verdade

Ora se o intelecto atua no sentido de uma cada vez maior dependecircncia de ilusotildees

dado que como Nietzsche natildeo se cansa de repetir a criaccedilatildeo de ilusotildees seria sua funccedilatildeo

primordial entatildeo o que se estaacute atacando aqui no fundo seria a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo Posto que

este tipo de anaacutelise que eacute conduzida por Nietzsche durante todo o ensaio tambeacutem tem

seus efeitos negativos para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade que teria se tornado

dependente de uma compreensatildeo do intelecto como potencializador do conhecimento

verdadeiro

Por meio desta criacutetica o filoacutesofo ataca a concepccedilatildeo metafiacutesica e moral que e a

proacutepria concepccedilatildeo tradicional de verdade fundada na ideia de que a verdade teria como

77

suas origens nobres a racionalidade assim como um sentimento moral inato a esta

vinculado O autor do ensaio substitui esta noccedilatildeo da verdade como reflexo de uma

racionalidade e uma moralidade perfeita pela ideia da nossa necessidade de erro de

enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia

Esta necessidade fundamenta de erro e ilusatildeo cede lugar a uma valorizaccedilatildeo da verdade

apenas na medida em que esta proacutepria verdade tambeacutem eacute tida como uma forma de erro

uma forma de ilusatildeo

Com isso poderiacuteamos concluir que a verdade parece natildeo ser o produto mais direto

de todo este processo criativo do intelecto e que portanto todos os produtos do intelecto

deveriam ser tomados como mentiras No entanto sabe-se que haacute uma distinccedilatildeo

fundamental entre verdade e mentira que natildeo pode ser simplesmente reduzida a uma

forma de distinccedilatildeo entre modos diferentes de ilusatildeo posto que se observa entre os homens

uma preferecircncia pela verdade Assim em meio ao cenaacuterio apresentado ateacute aqui pelo autor

do ensaio se poderia perguntar onde surge o apreccedilo pela verdade entre os homens se estes

evoluem em uma cada vez maior dependecircncia de erros e ilusotildees Para Nietzsche

enquanto o homem faz uso do intelecto apenas de forma ocasional natildeo haacute a necessidade de

um questionamento pela verdade ou pela mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua

nos niacuteveis mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe

em imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido

de tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo Como surge entatildeo a verdade e a mentira O autor do ensaio condiciona o

surgimento destes ao surgimento da comunidade quando o homem por teacutedio e

necessidade procura o conviacutevio com outros homens

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

78

Apenas quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com

outros homens o intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um

mundo que se nos daacute a conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado

pela criaccedilatildeo de estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo

assim como a posterior comunicaccedilatildeo de um mundo que se deve compartilhar satildeo os preacute-

requisitos para a intercompreensatildeo e posterior hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana Ateacute

entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma necessidade moral

inata o coage a dizer a verdade necessidade que apenas surgiraacute a partir da convivecircncia

com outros seres humanos

Eacute preciso estar atento aos movimentos que Nietzsche potildee em jogo neste momento

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e a

razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo No entanto se jaacute eacute espantosa a forccedila do intelecto enquanto fonte

de enganos sobre a natureza real do mundo e seus riscos seraacute apenas na formaccedilatildeo das

condiccedilotildees da coexistecircncia coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se

verdadeiramente poderoso

A linguagem pensada no ensaio como estrateacutegia para que se estabeleccedila entre os

homens um acordo de paz seria a peccedila fundamental para a sobrevivecircncia de um animal

que natildeo teria como responder aos riscos da natureza sozinho O homem torna-se animal

gregaacuterio animal linguiacutestico e animal moral tudo a partir dos poderes de dissimulaccedilatildeo do

intelecto Apenas com base no respeito ao uso acordado dos signos da linguagem torna-se

possiacutevel a coexistecircncia Esta torna-se a claacuteusula fundante do acordo de paz estabelecido

pelos homens da qual decorrem as demais normas A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em

contraposiccedilatildeo aos valores que regem a existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro

modelo no uso adequado das designaccedilotildees acordadas pela sociedade

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva das

79

coisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade se estabelece quando o homem troca a linguagem das imagens mentais

proacuteprias de sua existecircncia individual por imagens compartilhaacuteveis representadas por

signos coletivamente determinados46 Por meio do acordo entre os homens sua decisatildeo

coletiva em aplicar as mesmas metaacuteforas nas mesmas circunstancias satildeo fixados o sentido

do que se toma como verdadeiro assim como a condenaccedilatildeo do que natildeo eacute A adesatildeo ao

acordo implica no abandono do uso individual dos signos linguiacutesticos pois o uso adequado

das designaccedilotildees acordadas eacute o que agora se toma como verdadeiro o descumprimento

dessa regra eacute o que agora se chama mentir A verdade assim torna-se decorrecircncia da

aceitaccedilatildeo e cumprimento dessa primeira claacuteusula

Dessa primeira relaccedilatildeo estrutural da primeira divisatildeo da sociedade em membros

dignos e indignos da sociedade ou seja aqueles que usam corretamente as designaccedilotildees

acordadas e aqueles que deturpam os sentidos das designaccedilotildees surge o primeiro juiacutezo

moral Segundo esse juiacutezo a verdade enquanto favoraacutevel agrave convivecircncia gregaacuteria eacute boa A

mentira por sua vez enquanto prejudicial agrave convivecircncia gregaacuteria passa a ser tomada como

maacute Nesse sentido o mentiroso aquele que ldquoserve-se das designaccedilotildees vaacutelidas as palavras

para fazer o imaginaacuterio surgir como efetivordquo (WLVM sectI paacuteg 30) natildeo eacute tanto

repreendido por ferir alguma sensibilidade moral mas por comprometer o acordo de paz

fundamental estabelecido

Atraveacutes dessa leitura Nietzsche ataca frontalmente a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo O filoacutesofo

46 Para Constacircncio a transposiccedilatildeo do terrenos dos signos para o terreno das palavras como um primeiroestaacutegio para a criaccedilatildeo dos conceitos representaria ainda um primeiro estaacutegio para o surgimento da razatildeoem sentido tradicional ldquoUm signo representa ou se coloca como outra coisa embora natildeo como uma coacutepia deoutra coisa ndash e menos que tudo como uma coacutepia adequada disto ndash mas antes de tudo como umarepresentaccedilatildeo simplificada conectada abreviada disto Esta representaccedilatildeo abreviada funciona como um tipode ferramenta fixa que nos permite rapidamente nos referirmos a ou designar aquilo para o qual o simbolorepresenta (zu be-zeichen) Assim ao falar em palavras em termos de lsquosignosrsquo Nietzsche escreve que lsquoahistoacuteria da linguagem eacute a a histoacuteria de um processo de abreviaccedilatildeorsquo (JGBABM IV sect268) Mais importantedo que isso Nietzsche acredita que os conceitos emergem dos signos e que aquilo que chamamos de lsquorazatildeorsquo(por exemplo aquilo que Schopenhauer chama de lsquorazatildeorsquo) eacute essencialmente nossa habilidade de desenvolverpensamentos abstratos com base em signos e conceitos Como escreve explicitamente Nietzsche em umanota poacutestuma de 1884-1885 lsquoprimeiramente signos (Zeichen) entatildeo conceitos (Begriffe) finalmente razatildeo(Vernunft) no sentido convencional (NL 1884-1885 KSA 11 30[10]rdquo (CONSTAcircNCIO 2012 Paacuteg 201)

80

ataca do mesmo modo a concepccedilatildeo que nos foi imposta pela tradiccedilatildeo de que a verdade

deriva de um sentimento moral inato Em seu lugar o autor do ensaio pressupotildee a nossa

necessidade de erro de enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa

estrateacutegia de sobrevivecircncia que apenas atraveacutes da pressatildeo de outras necessidades mais

prementes se curva diante de uma necessidade moral posteriormente constituiacuteda

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e

a razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo Mas a partir da consideraccedilatildeo nietzschiana do conhecimento

pode-se identificar ainda por traacutes disso a atuaccedilatildeo do intelecto que molda o mundo como

percebemos dentro de padrotildees que podem nos ser conhecidos e uacuteteis Tudo isso dito fica

faacutecil ver que estas natildeo satildeo nem de perto as condiccedilotildees mais favoraacuteveis para o surgimento

da verdade tal como a tradiccedilatildeo entende este conceito Com isso poderiacuteamos concluir que a

verdade parece natildeo ser o produto mais direto de todo este processo criativo do intelecto e

que portanto todos os produtos do intelecto deveriam ser tomados como mentiras

Poreacutem o autor do ensaio nos diz que ateacute aqui ainda natildeo estamos diante de um

questionamento acerca da mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua nos niacuteveis

mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe em

imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido de

tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

81

Ateacute entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma

necessidade moral inata o coage a dizer a verdade eacute apenas a partir da convivecircncia com

outros seres humanos que surgiria a obrigaccedilatildeo de se dizer a verdade No entanto se dessa

perspectiva o intelecto eacute necessaacuterio agrave sobrevivecircncia enquanto fonte de enganos sobre a

natureza real do mundo e seus riscos eacute na formaccedilatildeo das condiccedilotildees da coexistecircncia

coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se verdadeiramente poderoso Pois

quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com outros homens o

intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um mundo que se nos daacute a

conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado pela criaccedilatildeo de

estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo e posterior

comunicaccedilatildeo de um mundo satildeo os preacute-requisitos para a intercompreensatildeo e posterior

hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana

Assim pela simplificaccedilatildeo do real e possibilitaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo a linguagem

desempenha entre os homens o papel de um acordo de paz no sentido em que faz com que

estes possam entrar em acordo Como claacuteusula desse acordo por meio da linguagem eacute

fixado o sentido do que se toma como verdadeiro atraveacutes do qual a coexistecircncia se torna

possiacutevel A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em contraposiccedilatildeo aos valores que regem a

existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro modelo no uso adequado das designaccedilotildees

acordadas pela sociedade A verdade torna-se decorrecircncia da aceitaccedilatildeo e cumprimento

dessa primeira claacuteusula

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva dascoisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade surge assim pela primeira vez quando satildeo criadas as leis da linguagem

Em contraposiccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo anterior o homem que vive coletivamente em rebanho

pode dizer a verdade Pois agora ele pode designar de acordo com uma norma

coletivamente instituiacuteda o que natildeo lhe era dado fazer quando em sua existecircncia individual

Do mesmo modo poreacutem agora ele tambeacutem pode mentir quando rompe o acordo acerca

82

dos usos permitidos dos termos fixados na tentativa de tornar real ou fazer parecer real o

que natildeo eacute Da reflexatildeo acerca das leis da linguagem acordada coletivamente surge a

compreensatildeo de que a mentira apenas conduz agrave consequecircncias negativas em uma

convivecircncia gregaacuteria e natildeo universalmente Em outro sentido quando se deixa enganar em

sonhos o homem natildeo mente propriamente Pois nesse estado preacute-linguiacutestico ele apenas

dissimula quando se deixa enganar nos sonhos O homem que se deixa enganar em sonhos

natildeo mente porque natildeo age em natildeo-conformidade com leis da linguagem embora seja

enganado pela atividade criativa proacutepria de sua constituiccedilatildeo mais iacutentima

O ensaio conduz a uma reavaliaccedilatildeo das origens da verdade que tornam nula sua

dignidade fundamental A verdade natildeo seria algo de primordial posto que antes da verdade

jaacute haviam as ilusotildees uacuteteis agrave sobrevivecircncia Nesse sentido as ilusotildees pertencem a uma

existecircncia humana mais primitiva preacute-gregaacuteria da qual natildeo nos desvinculamos Pelo

contraacuterio posto que nos tornamos cada vez mais gregaacuterios mais linguiacutesticos nos

tornamos tambeacutem cada vez mais dependentes de ilusotildees e de enganos A vida ateacute onde

falamos em vida humana das condiccedilotildees necessaacuterias para a sobrevivecircncia e fortalecimento

do gecircnero humano depende fundamentalmente de ilusatildeo Ou seja as ilusotildees tecircm um valor

fundamental em relaccedilatildeo agrave vida natildeo por serem mais verdadeiras do que as ilusotildees da

verdade mas por serem mais fundamentais

No prosseguimento do ensaio Nietzsche especula acerca do valor das primeiras

intuiccedilotildees que logo satildeo convertidas pelo intelecto em metaacuteforas Para o autor estas

primeiras intuiccedilotildees teria um valor superior ao valor das metaacuteforas por conta de serem

condiccedilotildees de fortalecimento do tipo mais individual de vida Estas metaacuteforas

fundamentais no entanto satildeo substituiacutedas pelos conceitos por meio do uso da linguagem

O que conduz agrave criaccedilatildeo da ciecircncia como empreendimento comprometido com as falsas

criaccedilotildees do intelecto

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade

Ao considerar o valor da verdade como sendo uma decorrecircncia de seu valor para a

sobrevivecircncia o Ensaio sobre Verdade e Mentira pode ser visto em grande parte como o

83

palco para o confronto entre uma explicaccedilatildeo essencialista e uma apresentaccedilatildeo cientiacutefica da

verdade Assim na apresentaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca do surgimento da linguagem

Nietzsche apoia-se fortemente em explicaccedilotildees oriundas das ciecircncias bioloacutegicas as quais

geralmente apresenta como contraposiccedilotildees agrave crenccedila tradicional que filia as palavras agraves

entidades ideais exteriores agrave existecircncia fisioloacutegica humana

Assim em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche caracteriza o desejo

sincero pela verdade como sendo o produto de um processo de internalizaccedilatildeo dos usos da

linguagem Nessa leitura a verdade ela mesma tal como a tradiccedilatildeo a representa natildeo seria

desejaacutevel ao homem mais do que pelo seu valor como conservador da sociabilidade

motivo pelo qual o autor do ensaio contrasta a ideia de uma verdade verdadeiramente

desinteressada com a utilidade bioloacutegica da verdade Aqui o conhecimento puro eacute tomado

como algo estranho agrave investigaccedilatildeo da verdade

Num sentido semelhantemente limitado o homem tambeacutem quer apenas averdade Ele quer as consequecircncias agradaacuteveis da verdade queconservam a vida frente ao puro conhecimento sem consequecircncias ele eacuteindiferente frente agraves verdades possivelmente prejudiciais e destruidorasele se indispotildee com hostilidade inclusive (WLVM sectI paacuteg 30)

Natildeo eacute a verdade logo aquilo que nos atraiacute mas seu poder de conservar a paz entre

os homens Mas quais seriam as leis da verdade correlativas as leis da linguagem Sabe-

se que estas leis satildeo produto de uma existecircncia coletiva satildeo as bases do acordo que faz

cessar a guerra de todos contra todos tornando possiacutevel a coexistecircncia paciacutefica Nesse

sentido as leis da verdade difeririam fundamentalmente daquilo que a tradiccedilatildeo pensa delas

Na medida em que esta parece pensar as leis da verdade em conformidade com a loacutegica

como instacircncia exterior ao terreno das necessidades humanas segundo a qual toda forma

de engano eacute afastada

Na acepccedilatildeo tradicional os filoacutesofos entendem o engano como a condiccedilatildeo

perniciosa que deteriora a verdade Nada mais longe do entender do autor do ensaio que

entende que as leis da verdade natildeo protegem a verdade mas sim o viacutenculo social que

propicia a coexistecircncia paciacutefica Por isso ele nos diz ldquoNisso os homens natildeo evitam tanto

ser ludibriados quanto lesados pelo engano Mesmo nesse niacutevel o que eles odeiam

84

fundamentalmente natildeo eacute o engano mas as consequecircncias ruins hostis de certos gecircneros

de enganosrdquo (WLVM sect1 paacuteg 29-30) A concepccedilatildeo nietzschiana da utilidade da verdade

se opotildee aqui a uma tradiccedilatildeo que entende que o homem seria guiado por um impulso

honesto para a verdade

Para o autor esta imagem do impulso honesto para a verdade se fixou na cultura

apoacutes seacuteculos de uso das leis da linguagem que tornaram sem forma os preceitos mais

ruacutesticos dessas leis como que tornando fugidio o sentido por traacutes da rejeiccedilatildeo quase que

instintiva que o homem moderno sente pela mentira No entanto em sua investigaccedilatildeo

extramoral da verdade Nietzsche conclui que mesmo em um niacutevel subconsciente natildeo seria

tanto a verdade que almejamos mas as vantagens para a convivecircncia paciacutefica que se

originam do uso da verdade convencionada No mesmo sentido nossa repulsa pela

mentira natildeo eacute mais do que o produto de um longo processo de internalizaccedilatildeo do terror

pelas consequecircncias da mentira

Motivo pelo qual o autor do ensaio nos diz que somos completamente indiferentes

ldquofrente ao puro conhecimento sem consequecircnciasrdquo Pois um tal tipo de conhecimento natildeo

implica em vantagem ou desvantagem para nossa sobrevivecircncia jaacute que natildeo implica em

conflito aberto com as normas da coletividade Diante de uma verdade prejudicial entatildeo o

homem se encolhe como faria diante de um engano Por meio dessas observaccedilotildees o autor

pretende demonstrar que eacute a utilidade para a sociabilidade e como esta eacute condiccedilatildeo

necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo agrave sobrevivecircncia que condiciona o pathos do conhecimento e

natildeo sua verdade No mais a linguagem enquanto produto dessa relaccedilatildeo entre o

entendimento humano e nossa necessidade de sobrevivecircncia seria apenas mais um tipo de

ilusatildeo

Como produto do intelecto a linguagem se constitui como um mecanismo de

simplificaccedilatildeo do real Nesse sentido as relaccedilotildees da linguagem natildeo podem refletir de

maneira exata o mundo que simplifica As relaccedilotildees da linguagem que a princiacutepio tem por

objetivo apenas a sociabilidade natildeo traduzem o real de forma exata O que o autor do

Ensaio expressa na forma do questionamento ldquoas designaccedilotildees e as coisas se recobremrdquo

(WLVM sect1 paacuteg 29-30) que recebe imediatamente uma resposta negativa e uma seacuterie de

contraexemplos

85

Nessa leitura criacutetica da formaccedilatildeo da linguagem o autor conclui que em primeiro

lugar seria um forte contraexemplo agrave ideia de que a linguagem espelha o real o fato de

que quando analisada pormenorizadamente toda linguagem apresenta diversas

arbitrariedades em sua constituiccedilatildeo Outro argumento marcante seria o fato objetivo da

existecircncia de diversas liacutenguas Assim o autor procura demonstrar que natildeo atingimos a

verdade por meio da linguagem ateacute porque este natildeo eacute seu objetivo sua razatildeo de existir

Nesse sentido as coisas e nossas designaccedilotildees natildeo satildeo intercambiaacuteveis mais do que por

termos assim convencionado e mais tarde esquecido que assim o convencionamos

passando a acreditar que assim o seja de fato

Apenas por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a imaginarque deteacutem uma verdade no grau ora mencionado Se ele natildeo esperacontentar-se com a verdade sob a forma da tautologia isto eacute comconchas vazias entatildeo iraacute permutar eternamente ilusotildees por verdades Oque eacute uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como umacausa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificadado princiacutepio de razatildeo Como poderiacuteamos caso tatildeo somente a verdadefosse decisiva na gecircnese da linguagem caso apenas o ponto de vista dacerteza fosse algo decisoacuterio nas designaccedilotildees como poderiacuteamos noacutes natildeoobstante dizer a pedra eacute dura como se esse ldquodurardquo ainda nos fosseconhecido de alguma outra maneira e natildeo soacute como um estiacutemulototalmente subjetivo (WLVM sectI paacuteg 29-30)

Na medida em que a dureza de uma pedra nos aparece apenas como efeito de uma

causa desconhecida sendo que aqui mesmo a aplicaccedilatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito jaacute eacute

uma abstraccedilatildeo e que essa dureza apenas diz respeito a noacutes jamais seria possiacutevel sustentar a

verdade da simples afirmaccedilatildeo ldquoa pedra eacute durardquo com base nos princiacutepios inerentes agrave verdade

de acordo com a tradiccedilatildeo Isto se deveria ao fato de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

parte de uma consideraccedilatildeo do ldquoponto de vista da certezardquo como algo ldquodecisoacuterio nas

designaccedilotildeesrdquo (WLVM sectI paacuteg 29-30) Por outro lado quando proferimos este tipo de

afirmaccedilatildeo apenas nos utilizamos das designaccedilotildees acordadas no sentido de facilitar a

comunicaccedilatildeo de sensaccedilotildees totalmente subjetivas

Nietzsche pensa que sensaccedilotildees como a dureza de uma pedra variam

necessariamente de indiviacuteduo para indiviacuteduo E nem o fato de podermos alcanccedilar uma

designaccedilatildeo coletiva para transmitir essa sensaccedilatildeo individual muda o fato fundamental da

individualidade da sensaccedilatildeo Portanto as designaccedilotildees que se atinge por meio do

86

procedimento do intelecto ou seja por meio da simplificaccedilatildeo da realidade pouco tem que

ver com certezas Como se poderia falar de certezas quando se sabe que diante da

absoluta individualidade das sensaccedilotildees natildeo pode haver objetividade possiacutevel47 O que o

intelecto realiza nesse sentido ele apenas o pode realizar por meio de transgressotildees

arbitraacuterias tendo em vista propiciar a comunicaccedilatildeo segundo um processo de simplificaccedilatildeo

arbitraacuterio

Estas transgressotildees arbitraacuterias que satildeo amplamente empregadas na criaccedilatildeo da

linguagem atingem seu ponto maacuteximo de abstraccedilatildeo quando a proacutepria ciecircncia passa a

apoiar-se no uso convencionado dessas transgressotildees como validaccedilatildeo para aleacutem de sua

adequaccedilatildeo com quaisquer coisas que sejam seu objeto Por outro lado quando Nietzsche

considera que ldquoA reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como uma causa fora de noacutes jaacute eacute o

resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacuteg

29-30) somos levados a refletir acerca do que foi dito no capiacutetulo anterior acerca do

princiacutepio de razatildeo Ou seja tal como em suas notas para Zur Teleologie Nietzsche aqui

reflete criticamente acerca da impropriedade em se inferir a existecircncia de algo para aleacutem de

nossa esfera de conhecimento

Esta preocupaccedilatildeo eacute ainda o reflexo de uma importante questatildeo da filosofia criacutetica o

problema em torno dos limites de nosso conhecimento Este mesmo problema jaacute havia sido

discutido por Nietzsche em Zur Schopenhauer como o problema das fronteiras da

individuaccedilatildeo segundo a terminologia schopenhaueriana A conclusatildeo apresentada no

ensaio eacute coerente com o tratamento apresentado anteriormente pelo autor

Para o autor do ensaio o estiacutemulo nervoso eacute a uacutenica coisa que pode ser deduzida

com base na fisiologia de nossa constituiccedilatildeo nervosa como causa da sensaccedilatildeo Isto porque

natildeo se poderia conhecer qualquer coisa fora da esfera de nossas sensaccedilotildees que estariam

como que na regiatildeo do em si kantiano Nesse sentido o filoacutesofo parece fazer coincidir os

limites de nossa sensibilidade e os limites de nosso conhecimento em estreita similaridade

com a posiccedilatildeo kantiana que como se sabe determinava os limites do conhecimento aos

limites da experiecircncia possiacutevel Assim a determinaccedilatildeo dos limites do conhecimento em

uma leitura semifilosoacutefica e semicientiacutefica assim como este objetivo se apresentava para o

47 No capiacutetulo deste trabalho acerca do perspectivismo nietzschiano deveremos voltar a este ponto com baseno conhecido aforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral

87

autor do das notas para Zur Teleologie parece permanecer um objetivo para o autor do

ensaio sobre verdade e mentira

A suposiccedilatildeo da existecircncia de uma entidade da qual natildeo temos direito de supor nada

Em outras palavras a suposiccedilatildeo de algo aleacutem dos estiacutemulos nervosos de algum objeto que

propicia este estiacutemulo jaacute estaria fora das consideraccedilotildees do autor do ensaio Para aleacutem

destes limites pensa o autor do ensaio qualquer afirmaccedilatildeo eacute uma temeraacuteria aplicaccedilatildeo

injustificada do princiacutepio de razatildeo suficiente De modo geral isto conduz a conclusatildeo

epistemoloacutegica de que natildeo se poderia fundamentar a veracidade de nossa afirmaccedilatildeo em

algo que se potildee para aleacutem dos estiacutemulos nervosos uacuteltima coisa que ainda se pode

considerar como causa das sensaccedilotildees

Qualquer tentativa de transpor estes limites recebe aqui o mesmo veto que o autor

das notas preparatoacuterias para Zur Teleologie atribuiacutea agrave tentativa de se estabelecer a

existecircncia de uma finalidade natural48 Com isso Nietzsche estabelece uma duacutevida essencial

acerca da origem dos estiacutemulos nervosos Duacutevida que natildeo poderia ser sanada por nenhum

tipo de procedimento cientiacutefico ou filosoacutefico posto que seu esclarecimento necessitaria de

dados externos agrave esfera de nossa sensibilidade Destas conclusotildees se origina um forte

argumento para a fundamentaccedilatildeo da opiniatildeo do autor de que na criaccedilatildeo das designaccedilotildees

nunca estariacuteamos tratando com certezas

A hipoacutetese de uma realidade objetiva por traacutes da criaccedilatildeo da linguagem recebe ainda

uma criacutetica mais forte que diz respeito aos diferentes idiomas ldquoDispostas lado a lado as

diferentes liacutenguas mostram que nas palavras o que conta nunca eacute a verdade jamais uma

expressatildeo adequada pois do contraacuterio natildeo haveriam tantas liacutenguasrdquo (WLVM sectI paacuteg

31) Ou seja para o autor do ensaio se a linguagem fosse de fato criada com base em uma

realidade objetiva entatildeo os diferentes idiomas postos lado a lado deveriam demonstrar

mais coincidecircncias do que no geral demonstram Em uacuteltima instacircncia natildeo eacute uma

realidade objetiva o que condiciona a criaccedilatildeo da linguagem mas o uso da linguagem

enquanto meio de comunicaccedilatildeo Sendo assim a criaccedilatildeo das linguagens natildeo diz respeito a

um compromisso com o verdadeiro eacute seu soacute que determina as condiccedilotildees de verdade

48 Conforme a discussatildeo sobre as notas preparatoacuterias na seccedilatildeo 213 desse trabalho

88

A hipoacutetese contraacuteria de que a linguagem seria proveniente de um compromisso

fundamental com a verdade eacute rejeitada com base na compreensatildeo de que se tal hipoacutetese

fosse verdadeira todos os idiomas teriam que se comportar como derivaccedilotildees de uma liacutengua

primordial da qual os diferentes ramos se afastam Algo que o autor do ensaio estaacute longe

de considerar verdadeiro Assim atraveacutes do recurso agrave figura do criador da linguagem

Nietzsche estabelece uma hipoteacutetica origem para a linguagem condizente com sua

suposiccedilatildeo de que esta estaria diretamente ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia Por outro

lado o fato de que Nietzsche nessa consideraccedilatildeo fabulosa da origem da linguagem

sustentar a hipoacutetese de uma falsificaccedilatildeo da natureza na criaccedilatildeo das palavras estaria

diretamente relacionado agrave sua suposiccedilatildeo de que a verdade mesma tal como se pretende

que esta exista fora das relaccedilotildees da linguagem jamais estaria ao alcance deste criador e

nem mesmo lhe seria objeto especial de preocupaccedilatildeo

Esta parte da investigaccedilatildeo nietzschiana eacute singularmente importante Isto porque a

referecircncia nietzschiana agraves coisas em si tal como esta referecircncia frequentemente aparece no

ensaio faz deste texto nietzschiano objeto de constantes insinuaccedilotildees do compromisso do

autor com uma realidade em si Os comentadores que tomam o uso das coisas em si nos

textos nietzschianos de juventude como testemunho de seu compromisso com estas

categorias entendem que a rejeiccedilatildeo nietzschiana da pretensatildeo de verdade da linguagem

repousa sobre a negaccedilatildeo de que esta consiga referir-se a uma realidade objetiva Ou seja

Nietzsche utilizaria as coisas em si para negar que a linguagem possa dizer algo sobre tais

entidades

Do mesmo modo para estes comentadores apenas com base em um recurso a uma

realidade objetiva o autor poderia sustentar sua constante criacutetica dos produtos do intelecto

como falsificaccedilotildees Nesta leitura se os produtos do intelecto satildeo falsificaccedilotildees eacute necessaacuterio

que eles falsifiquem algo Como aqui se trata de uma reflexatildeo acerca da verdade entatildeo

essa falsificaccedilatildeo representaria um fracasso na correspondecircncia entre os produtos do

intelecto e aquilo que o intelecto tenta reproduzir Eacute nesse espiacuterito que Clark afirma em sua

obra sobre Nietzsche e a verdade

A aceitaccedilatildeo de Nietzsche da teoria metafiacutesica da correspondecircncia parecebastante oacutebvia tanto quando ele nega que a linguagem pudesse expressar

89

a verdade porque natildeo se preocupa com a ldquocoisa-em-sirdquo quanto quandoele critica a ldquoverdade antropomoacuterficardquo por natildeo conter ldquonem um uacutenicoponto que seria lsquoverdadeiro em sirsquo ou realmente e universalmente vaacutelidaslsquopara aleacutem de todos os seres humanosrsquordquo em ambos os casos eleclaramente assume que a realidade eacute independente dos seres humanos eque aquilo que falha em corresponde a esta realidade natildeo pode serverdadeiro A questatildeo permanece como se o uso da expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentidokantiano e assim como se ele interpreta-se a verdade como independentede seres humanos no sentido necessaacuterio para tornaacute-lo um realistametafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85)

Ao analisar a filosofia de juventude nietzschiana notadamente seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira Clark submete o pensamento sobre a verdade do autor a uma

interpretaccedilatildeo eminentemente metafiacutesica assegurada pela sua aceitaccedilatildeo do princiacutepio de

correspondecircncia Segundo essa leitura a concepccedilatildeo nietzschiana de que as palavras

representam uma falsificaccedilatildeo da realidade seria dependente da defesa de uma realidade em

si segundo a qual poderia ser negado que as designaccedilotildees e as coisas coincidam Caso em

que a constante referecircncia do filoacutesofo agraves coisas em si como na seguinte passagem ldquoA

lsquocoisa em sirsquo (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequecircncias) tambeacutem

eacute para o criador da linguagem algo totalmente inapreensiacutevel e pelo qual nem de longe

vale a pena esforccedilar-serdquo (WLVM sect1 paacuteg 31) estaria justificada49

No entanto para aleacutem do fato de tratar-se aqui de uma faacutebula da origem da

linguagem o que de si jaacute colocaria em risco a suposiccedilatildeo de uma consideraccedilatildeo seacuteria da

parte de Nietzsche da concepccedilatildeo de coisas em si temos ainda que na medida em que

49 Andreacute Luiacutes Mota Itaparica em seu artigo As objeccedilotildees de Nietzsche ao Conceito de Coisa em Si(kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 307-320) toma como certa a admissatildeo nietzschiana dacategoria de coisa em si em sua filosofia de juventude ldquoA esse respeito natildeo haacute duacutevida de que entre ostemas kantianos discutidos por Nietzsche a questatildeo sobre o estatuto da coisa em si eacute particularmenterelevante para a elaboraccedilatildeo de sua proacutepria filosofia jaacute que ela tem como um dos seus objetivos em suaforma madura a criacutetica agrave noccedilatildeo de uma realidade independente de qualquer perspectiva Por esse motivo acompreensatildeo de Nietzsche desse problema tambeacutem se tornou um dos assuntos mais debatidos e controversosentre seus inteacuterpretes De forma geral e com naturais diferenccedilas de ecircnfase os comentadores tendem aidentificar na filosofia de Nietzsche uma trajetoacuteria que o levaria da admissatildeo de um conceito de coisa em siem sua juventude ateacute uma negaccedilatildeo da coisa em si considerada como uma concepccedilatildeo contraditoacuteria em suafilosofia madura A discordacircncia entre os comentadores surge quando se pergunta se o conceito de coisa emsi que Nietzsche critica eacute exatamente aquilo que Kant entendia por coisa em sirdquo (ITAPARICA 2013 Paacutegs308-309) Claramente Itaparica segue aqui a indicaccedilatildeo de Clark de que A questatildeo permanece como se o usoda expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentido kantiano eassim como se ele interpretasse a verdade como independente de seres humanos no sentido necessaacuterio paratornaacute-lo um realista metafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85) conforme citaccedilatildeoda paacutegina anterior

90

verificamos uma certa continuidade entre este escrito com relaccedilatildeo a textos do mesmo

periacuteodo de produccedilatildeo tais como as jaacute referidas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie e

Zur Schopenhauer nos parece proveitoso nos afastarmos dessa leitura50 Isto porque

consideramos que com base na leitura que o autor do ensaio efetua da filosofia kantiana

nessa eacutepoca uma tal concepccedilatildeo como a da realidade das coisas em si seria insustentaacutevel51

A compreensatildeo do sentido do uso nietzschiano da concepccedilatildeo de coisas em si no

ensaio passa pela anaacutelise dos jaacute referidos textos Nesta leitura a referecircncia criacutetica a esta

concepccedilatildeo sempre se daacute de modo criacutetico e muitas vezes irocircnico Com base em uma

reavaliaccedilatildeo criacutetica das coisas em si presente sobretudo nas primeiras impressotildees criacuteticas

acerca da obra kantiana52 o autor do ensaio na passagem acima mencionada procuraria

indicar que o reino da verdade por princiacutepio estaria fora do alcance e da esfera de

interesses do criador da linguagem Motivo pelo qual em sua exposiccedilatildeo das origens da

linguagem a partir do intelecto esta natildeo teria nada que ver com a verdade tal como a

tradiccedilatildeo a concebe posto que natildeo eacute criada tendo por base o mundo das ldquocoisas em sirdquo53

Aleacutem desses motivos o uso de aspas para indicar esta concepccedilatildeo kantiana pode ser tomado

como uma indicaccedilatildeo da ironia com quecirc o autor toma o conceito de coisas em si na

passagem em questatildeo do mesmo modo como faz inuacutemeras vezes em que o autor se refere

a esta concepccedilatildeo em sua obra madura

50 Na carta de 1866 citada anteriormente em que Nietzsche apresenta a seu amigo Baratildeo von Gersdorff osresultados de suas leituras de A Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange o filoacutesofo jaacute demonstrauma certa compreensatildeo criacutetica da concepccedilatildeo kantiana de coisas em si Na correspondecircncia em questatildeoNietzsche afirma ldquo(hellip) Entatildeo a verdadeira natureza das coisas as coisas em si natildeo apenas nos satildeodesconhecidas mas ateacute mesmo o conceito delas seria nada mais nada menos do que a uacuteltima encarnaccedilatildeo deuma contradiccedilatildeo condicionada por nossa organizaccedilatildeo da qual natildeo sabemos se tem qualquer sentido paranossa experiecircnciardquo (BVN-1866 517 ndash carta a Carl von Gesdorf de fins de agosto de 1886) Por outro ladoem um fragmento dos rascunhos para A Filosofia na eacutepoca Traacutegica dos Gregos Nietzsche escreve de umaforma que evidencia um uso metodoloacutegico das coisas em si ldquo(hellip) Certamente esta unidade uacuteltima dolsquoindeterminadorsquo o choque original de todas as coisas apenas pode ser descrito negativamente pelo homemcomo algo ao qual nenhum predicado pode ser dado fora do existente mundo do tornar-se e para a qualportanto as lsquocoisas em sirsquo kantianas podem ser igualmente aplicadasrdquo (PHG-4 sect4) Acredito que o uso queo autor faz das coisas em si no ensaio em estudo seria tambeacutem uma espeacutecie de uso metodoloacutegico destaconcepccedilatildeo kantiana A traduccedilatildeo dos fragmentos eacute de nossa responsabilidade51 O que parece concordar com as diversas criacuteticas que essa concepccedilatildeo recebe na filosofia nietzschiana dematuridade que inclusive satildeo antecipadas em muitos fragmentos dos primeiros anos de sua reflexatildeo comoas jaacute mencionadas cartas que antecipam a possibilidade de produccedilatildeo de uma tese acerca dos limites doorgacircnico a partir de Kant 52 Com as quais Nietzsche entra em contato atraveacutes de sua leitura de filoacutesofos criacuteticos de Kant notadamenteAlbert Lange e Schopenhauer53 Uma ideia recorrente do ensaio que eacute melhor compreendida a partir da comparaccedilatildeo nietzschiana entre ouso da palavra ldquofolhardquo com a ideia de uma folha fundamental com base na qual todas as folhas seriamconfeccionadas mas como que ldquopor matildeos inaacutebeisrdquo

91

Mais ainda a referecircncia de que tais entidades como coisas em si corresponderiam

ao mundo das verdades sem consequecircncias as mesmas verdades que o autor anteriormente

afirmava serem indiferentes ao homem torna ainda mais visiacutevel o trato irocircnico para com

estas entidades As quais natildeo corresponderiam a um objeto especial da filosofia tal como a

tradiccedilatildeo parece tecirc-las entendido Estas entidades que natildeo possuem relaccedilotildees com outras

entidades nos seriam totalmente indiferentes aleacutem de incompreensiacuteveis Logo o criador

da linguagem se sua motivaccedilatildeo fosse propiciar a sobrevivecircncia natildeo poderia apoiar-se em

um tal terreno das verdades incompreensiacuteveis e inuacuteteis para a comunicaccedilatildeo entre os

homens

Pelo contraacuterio segundo o autor do ensaio ldquoEle designa apenas as relaccedilotildees das

coisas com os homens e para expressaacute-las serve-se da ajuda das mais ousadas metaacuteforasrdquo

(WLVM sectI paacuteg 29-32) Nada aqui traz qualquer relaccedilatildeo com a verdade eterna e

imutaacutevel pois natildeo se trata de uma tentativa de alcanccedilar um reino especial da verdade mas

apenas de tornar comunicaacutevel as relaccedilotildees das coisas enfim o que nos pode ser uacutetil nas

coisas Se o objeto da criaccedilatildeo da linguagem nada tem que ver com a verdade o que dizer

do instrumento as metaacuteforas com as quais satildeo construiacutedas as designaccedilotildees das coisas

Diga-se de passagem natildeo quaisquer metaacuteforas mas ldquoas mais ousadasrdquo como o autor faz

questatildeo de ressaltar

Estas metaacuteforas seriam as mais ousadas porque no entender do autor do ensaio

seriam as mais distantes daquilo que se conveacutem chamar verdade Segundo Nietzsche a

loacutegica da criaccedilatildeo da linguagem sugere a passagem de estiacutemulos nervosos para imagens

mentais que logo seriam traduzidas em sons A transposiccedilatildeo das imagens mentais em sons

por meio do intelecto obedece a necessidade de comunicar uma impressatildeo individual e

natildeo a qualquer tipo de correspondecircncia De fato em todo esse processo a coisa mesma natildeo

entra em questatildeo O autor afirma que natildeo se pode tomar sua existecircncia como causa das

sensaccedilotildees Do mesmo modo posto que a criaccedilatildeo das palavras eacute determinada por uma

necessidade de comunicar e que nesta criaccedilatildeo o intelecto opera com base nas mais

ousadas transposiccedilotildees natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo causal entre a coisa e a palavra que a

nomeia Menos ainda uma relaccedilatildeo de correspondecircncia Assim nos diz Nietzsche ldquoO que eacute

uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em sons Mas deduzir do estiacutemulo

nervoso uma causa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do

92

princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacutegs 30-31) Portanto a deduccedilatildeo da existecircncia de algo

como coisas em si para aleacutem do estiacutemulo nervoso que daacute margem agrave criaccedilatildeo das palavras

seria ir aleacutem do que permite o princiacutepio de razatildeo do mesmo modo que seria um erro

considerar-se coisas em si como causas dos fenocircmenos Em ambos os casos estariacuteamos

diante de um uso indevido do princiacutepio de razatildeo ao supormos uma causa onde nada nos

possibilita uma tal suposiccedilatildeo

Portanto na criaccedilatildeo das palavras em cada conversatildeo em cada metaacutefora ocorre a

transposiccedilatildeo para um terreno novo totalmente adverso do ponto de partida como nos diz

Nietzsche ldquoDe antematildeo um estiacutemulo nervoso transposto em uma imagem Primeira

metaacutefora A imagem por seu turno remodelada num som Segunda metaacutefora E a cada

vez um completo sobressalto de esferas em direccedilatildeo a uma outra totalmente diferente e

novardquo (WLVM sectI paacuteg 32) Com isso a proacutepria pretensatildeo de dizer a verdade conforme

uma concepccedilatildeo de verdade que toma como princiacutepio a relaccedilatildeo entre as coisas e as palavras

passa a ser analisada como um desatino porque desconsideraria todo o processo indicado

pelo autor

Notaacutevel que em sua explicaccedilatildeo da origem da linguagem o autor fundamente-se

amplamente em teorias das ciecircncias naturais como fica claro em sua reduccedilatildeo do mundo a

meros estiacutemulos nervosos Do mesmo modo seu uso dos experimentos de Chladni54 acerca

54 Nietzsche demonstra em seus escritos poacutestumos ter se interessado enormemente pelas experiecircncias deChladini Assim em uma nota poacutestuma de 1872 o filoacutesofo afirma ldquoSondern die feinsten Ausstrahlungen vonNerventhaumltigkeit auf einer Flaumlche gesehn sie verhalten sich wie die Chladnirsquoschen Klangfiguren zu demKlang selbst so diese Bilder zu der darunter sich bewegenden Nerventhaumltigkeit Das allerzarteste sichSchwingen und Zittern Der kuumlnstlerische Prozeszlig ist physiologisch absolut bestimmt und nothwendigrdquo(NFFP 1872 19[79]) Assim Nietzsche pensa as reproduccedilotildees visuais da atividade nervosa como umaespeacutecie de reflexo da atividade artiacutestica por traacutes da atividade humana Esta atividade artiacutestica demonstrariatal como as figuras sonoras de Chladini uma perfeita harmonia Esta ideia volta a ser reproduzida em umanota mais curta no fragmento poacutestumo (NFFP 1872 19[140]) Em um outro fragmento daquele periacuteodo ofiloacutesofo reflete sobre a relaccedilatildeo entre as leis da multiplicidade e sua expressatildeo em foacutermulas numeacutericas comouma metaacutefora Neste sentido a reproduccedilatildeo das leis da natureza em expressotildees numeacutericas guardaria a mesmarelaccedilatildeo de similaridade que as figuras de Chladini com o som que as gerou ldquoBesonders die Zahl dieAufloumlsung aller Gesetze in Vielheiten ihr Ausdruck in Zahlenformeln ist eine μεταφορά wie jemand dernicht houmlren kann die Musik und den Ton nach den Chladnischen Klangfiguren beurtheiltrdquo (NFFP 187219[237]) Seraacute exatamente esta ideia que retornaraacute no Ensaio sobre Verdade e Mentira A ideia de que asfiguras de Chladini guardariam a mesma similaridade com os sons que lhe geram que os sons guardariamcom os estiacutemulos nervosos que lhe originam ldquoMan kann sich einen Menschen denken der ganz taub ist undnie eine Empfindung des Tones und der Musik gehabt hat wie dieser etwa die Chladnischen Klangfiguren imSande anstaunt ihre Ursachen im Erzittern der Saite findet und nun darauf schwoumlren wird jetzt muumlsse erwissen was die Menschen den Ton nennen so geht es uns allen mit der Sprache (WLVM sect01) Para umaexcelente explicaccedilatildeo dos experimentos de Chladni e sua relaccedilatildeo com a teoria da linguagem de Nietzscherecomendo a muito clara explicaccedilatildeo do Professor Fernando Barros na nota trecircs na traduccedilatildeo em uso doEnsaio Sobre Verdade e Mentira (WLVM sectI paacutegs 32-33)

93

da acuacutestica indica que ainda entreteacutem estreitos laccedilos com as ciecircncias naturais Assim

como jaacute mencionado temos que considerar que na confecccedilatildeo do ensaio suas leituras

acerca das ciecircncias tal como nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie possibilitam a

Nietzsche um patamar argumentativo para se contrapor agraves correntes idealistas de

investigaccedilatildeo do conhecimento e da verdade

Em complemento ao que foi dito acerca das coisas em si no Ensaio sobre Verdade e

Mentira devemos abordar o uso do termo ldquoterreno das essencialidadesrdquo no referido ensaio

A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade parte da denuacutencia de uma

compreensatildeo errocircnea dos filoacutesofos que tomam a linguagem como algo que eacute criado como

reflexo da verdade objetiva Nessa leitura pelo recurso a uma concepccedilatildeo da criaccedilatildeo da

linguagem como processo de traduccedilatildeo arbitraacuteria de estiacutemulos nervosos em imagens e dai

em sons o autor do ensaio procura refutar qualquer sugestatildeo de uma necessaacuteria relaccedilatildeo

entre a linguagem e uma realidade original da qual esta seria reflexo Assim o autor

defende a suposiccedilatildeo de que toda vez que nos utilizamos a linguagem para nos referirmos agrave

realidade ignoramos completamente estas relaccedilotildees arbitraacuterias das quais a linguagem deve

sua existecircncia

A concepccedilatildeo tradicional da linguagem por outro lado parece fundamentar-se em

uma origem quase maacutegica da linguagem como se ela espelha-se uma relaccedilatildeo de parentesco

entre a inteligecircncia criadora da realidade e nossa inteligecircncia Nesse espelhamento da

realidade ideal da qual as imagens que nosso intelecto nos apresentam seriam algo como

reflexo imperfeito das proacuteprias coisas surgiria a relaccedilatildeo de correspondecircncia pressuposta

em toda afirmaccedilatildeo verdadeira O autor do ensaio no entanto esforccedila-se por destituir de

vaidade esta origem mitoloacutegica da linguagem No lugar de um terreno da objetividade o

autor faz questatildeo de enfatizar que sempre que usamos a linguagem estamos no terreno das

metaacuteforas

Acreditamos saber algo acerca das proacuteprias coisas quando falamos deaacutervores cores neve e flores mas com isso nada possuiacutemos senatildeometaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agravesessencialidades originais Tal como o som sob a forma de figura de areiaassim se destaca o enigmaacutetico ldquoXrdquo da coisa em si uma vez comoestiacutemulo nervoso em seguida como imagem e por fim como som Dequalquer modo o surgimento da linguagem natildeo procede pois

94

logicamente sendo que o inteiro material no qual e com o qual o homemda verdade o pesquisador o filoacutesofo mais tarde trabalha e edifica temsua origem se natildeo em alguma nebulosa cucolacircndia em todo caso natildeo naessecircncia das coisas (WLVM sectI paacuteg 35)

Mais do que o falante comum o homem da verdade eacute enganado aqui por ser o mais

dependente das essencialidades originais para sua atividade As supostas coisas em si que

o proacuteprio Kant pensou apenas como um ldquoXrdquo enigmaacutetico natildeo representariam qualquer

papel na criaccedilatildeo da linguagem Na leitura nietzschiana apresentada no ensaio portanto a

linguagem natildeo procede de forma loacutegica mas seria o resultado de arbitraacuterias transposiccedilotildees

de metaacuteforas Do mesmo modo ela natildeo procede de qualquer essencialidade mas de um

estiacutemulo nervoso em primeira instacircncia e de uma imagem criada a partir desse estiacutemulo

em segunda instacircncia Com isso o autor do ensaio natildeo afirma nada acerca de uma relaccedilatildeo

entre as essencialidades e a linguagem como forma de qualificar uma teoria da verdade

mais correta do que a tradicional mas apenas rejeita a teoria que faz decorrer a linguagem

dessas supostas essencialidades55

A preocupaccedilatildeo fundamental do autor o motivo pelo qual retoma com frequecircncia

sua teoria acerca da linguagem diz respeito a sua preocupaccedilatildeo com um us bastante

especiacutefico da linguagem o uso cientiacutefico Assim seu objetivo final eacute demonstrar que toda

ciecircncia eacute construiacuteda com base em relaccedilotildees pouco explicadas com abstraccedilotildees arbitraacuterias

com palavras de cuja origem natildeo se poderia garantir a veracidade Nesse sentido seu

uacuteltimo alvo seria a constataccedilatildeo de que aquilo com que o homem da verdade trabalha e

edifica aquilo com que o filoacutesofo constroacutei suas belas teorias metafiacutesicas natildeo proveacutem do

reino das ideias mas de uma seacuterie de processos pouco racionais

O conceito por exemplo o material com que segundo o autor do ensaio satildeo

construiacutedas as teorias cientiacuteficas e filosoacuteficas seria ainda um produto deste tipo de relaccedilatildeo

de simplificaccedilatildeo e falsificaccedilatildeo que natildeo se prende a qualquer racionalidade Uma palavra se

55 No fragmento poacutestumo 19 [165] do mesmo periacuteodo da obra em estudo Nietzsche parece refletir acercado caraacuteter das supostas essecircncias das coisas ldquoconhecemos apenas uma realidade ndash a dos pensamentos E seisso fosse a essecircncia das coisas Se memoacuteria e sensaccedilatildeo fossem o material das coisardquo O uso de exclamaccedilotildeese todo o contexto do fragmento parece sugerir que Nietzsche usa o termo essecircncia como origem das coisas oque por sinal tambeacutem poderia ser um sentido utilizado no proacuteprio texto do Ensaio Sugestatildeo que me parecemais provaacutevel do que a ideia de que naquela altura de seu desenvolvimento intelectual o autor aindasuportasse alguma crenccedila em essecircncias em sentido metafiacutesico Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na seletade fragmentos poacutestumos publicados em adendo a traduccedilatildeo em estudo Paacuteg 70

95

torna um conceito no entender de Nietzsche na medida em que seu uso se torna cada vez

mais especializado servindo para designar progressivamente objetos cada vez mais

gerais Em sua leitura contraacuteria agravequela da concepccedilatildeo tradicional acerca da formaccedilatildeo da

linguagem o conceito por meio da solidificaccedilatildeo de uma palavra quando ela perde a

flexibilidade adequada agraves necessidades da comunicaccedilatildeo cotidiana passando a designar um

conjunto de objetos em vez de um objeto individual Desta maneira uma palavra torna-se

um conceito ldquoagrave medida que natildeo deve servir a tiacutetulo de recordaccedilatildeo para a vivecircncia

primordial completamente singular e individualizada agrave qual deve seu surgimentordquo

(WLVM sectI paacuteg 35) Ou seja no processo de criaccedilatildeo dos conceitos um esquecimento do

uso individual da palavra tem efeito convergindo na aplicaccedilatildeo desta palavra em contextos

cada vez mais especializados o que significa um afastamento cada vez maior da realidade

da qual o conceito eacute derivado

Pode se ver assim que na leitura nietzschiana um conceito natildeo designa um

objeto mas um conjunto do qual o objeto eacute um exemplo Deste modo todo conceito seria

essencialmente uma generalizaccedilatildeo Mas o esquecimento desse caraacuteter geneacuterico em que

toda individualidade dos objetos eacute deixada de lado conduz agrave arbitraacuteria igualaccedilatildeo do

individual uma supressatildeo das caracteriacutesticas individuais dos objetos e uma supervaloraccedilatildeo

dos conceitos que passam a assumir o caraacuteter de uma realidade condizente com a realidade

ela mesma

Em contraposiccedilatildeo a essa ideia o autor do ensaio supotildee todas as coisas como sendo

individuais em um niacutevel indescritiacutevel Logo um conceito jamais poderia ser considerado

uma coisa e sua formaccedilatildeo corresponderia a mais um estaacutegio de afastamento da linguagem

daquilo que esta deveria designar Nesse sentido a criaccedilatildeo de conceitos por meio da

destituiccedilatildeo de individualidade dos objetos estaria relacionada a mais uma transposiccedilatildeo

arbitraacuteria Pois quando designamos diversos objetos sob um mesmo termo como quando

utilizamos a palavra folha para designar vaacuterios objetos individuais nos esquecemos de que

algo como ldquoa folhardquo por exemplo natildeo existe O que existem satildeo folhas todas diferentes

umas das outras Mas a transposiccedilatildeo natildeo paacutera aiacute pois na criaccedilatildeo do conceito a atribuiccedilatildeo

de realidade do conceito representa mais um grau de afastamento das verdades individuais

96

Nesse sentido a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma realidade conceitual eacute

comparada agrave ideia de meras criaccedilotildees arbitraacuterias do intelecto que teria seu fundamento nos

produtos mais fundamentais da apreensatildeo dos estiacutemulos nervosos uacutenica realidade agrave qual o

filoacutesofo estaria de acordo em admitir em sua leitura As implicaccedilotildees dos problemas

decorrentes de uma consideraccedilatildeo essencialista dos conceitos eacute apresentada por Nietzsche

traveacutes da consideraccedilatildeo de qualidades como a honestidade que surgiria da desconsideraccedilatildeo

de uma grande gama de eventos individuais os quais satildeo conceituados como uma

qualidade determinante de um indiviacuteduo

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que sechamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildeesindividualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos poromissatildeo do desigual e passamos a designar dessa feita como accedilotildeeshonestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occultacom o nome honestidade (WLVM sectI paacuteg 36)

Assim surgiria o conceito de honestidade como qualidade daquilo que eacute honesto

como nos diz o autor do ensaio O autor do ensaio se vale aqui uma vez mais de uma forte

ironia como veiacuteculo para uma ideia fundamental Dizer que a honestidade eacute a qualidade

daquilo que eacute honesto natildeo diz mais sobre a honestidade do que dizer que o oacutepio faz dormir

por conta de sua virtus dormitiva Nesse exemplo satildeo vaacutelidos os mesmos problemas que

Nietzsche enxerga no caso da criaccedilatildeo de conceitos a partir de objetos Assim o processo de

cunhagem do conceito de honestidade cumpriria os mesmos estaacutegios do processo de

cunhagem do conceito de ldquofolhardquo com a exceccedilatildeo de que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de

algo como a honestidade eacute mais oacutebvia do que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de uma folha

primordial

O autor do ensaio procura por meio deste gecircnero de argumentos contrapor-se agrave

crenccedila arraigada entre os filoacutesofos de que os conceitos seriam derivados de alguma

realidade supra-terrena Em contraposiccedilatildeo a esta ideia o autor entende que a origem dos

conceitos se deveria a uma igualaccedilatildeo do desigual no uso da linguagem A atribuiccedilatildeo de

existecircncia aos conceitos seria o uacuteltimo degrau em uma escala progressiva de esquecimento

de seu uso individual Ou seja apenas por meio de um esquecimento acerca da origem

97

desses conceitos assim como de seu uso individual seria possiacutevel atribuir uma existecircncia

desconexa de seu uso a tais entidades inexistentes De todo modo o que se vecirc no ensaio eacute

uma progressiva destituiccedilatildeo de validade dos fundamentos que suportam a concepccedilatildeo da

existecircncia dos conceitos

Por outro lado se o autor natildeo nega explicitamente a existecircncia objetiva dos

conceitos isto se deveria apenas ao receio de incorrer em uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica

Assim no lugar da rejeiccedilatildeo destes o autor utiliza-se de argumentos criacuteticos baseados nas

limitaccedilotildees da capacidade humana de conhecer como forma de demonstrar que devido a

proacutepria natureza de nossa constituiccedilatildeo estamos impedidos de conhecer algo como

conceitos ou coisas me si

A inobservacircncia do individual e efetivo nos fornece o conceito bemcomo a forma ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas econceitos e portanto tambeacutem quaisquer gecircneros mas tatildeo somente umldquoXrdquo que nos eacute inaccessiacutevel e indefiniacutevel Pois ateacute mesmo nossa oposiccedilatildeoentre o indiviacuteduo e gecircnero eacute antropomoacuterfica e natildeo adveacutem da essecircncia dascoisas ainda que natildeo arrisquemos dizer que ela natildeo lhe corresponde issoseria efetivamente uma asserccedilatildeo dogmaacutetica e como tal tatildeoindemonstraacutevel quanto o seu contraacuterio (WLVM sectI paacuteg 36)

Nada sabemos da essecircncia das coisas nem mesmo se tais essecircncias existem

Apenas uma fuga dos limites da efetividade pode sugerir a existecircncia de tais essecircncias

Dizer que natildeo haacute distinccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros no reino das essecircncias seria fazer

uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica e assim ferir o preceito kantiano de limitaccedilatildeo do conheciacutevel agrave

esfera dos fenocircmenos No entanto tudo poderia se passar de modo que estas se

comportassem exatamente do modo como a tradiccedilatildeo acredita e nesse sentido esta

realidade poderia refletir as relaccedilotildees de gecircnero e indiviacuteduo que Nietzsche procura

qualificar como antropomoacuterficas Pois como mencionado no capiacutetulo anterior Nietzsche

aceita jaacute em Zur Schopenhauer que tal como na citaccedilatildeo do ensaio acima ldquopode haver uma

coisa em sirdquo mas essa possibilidade apenas eacute referida porque o filoacutesofo compreende que

ldquona aacuterea de transcendecircncia tudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute

possiacutevelrdquo (BAW Paacuteg 354-355) A existecircncia de coisas em si nesse sentido seria apenas

possiacutevel

98

Devemos considerar entretanto que tal como o autor argumenta em Zur

Schopenhauer eacute apenas negativa E que essa probabilidade conta praticamente como

desvantagem para a concepccedilatildeo das coisas em si Desta maneira tal como em sua reflexatildeo

acerca da multiplicidade e individualidade em Zur Teleologie aqui tambeacutem o autor

renuacutencia oferecer qualquer posiccedilatildeo determinada acerca do caraacuteter em si da existecircncia por

considerar esta uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Mas aqui como nas notas preparatoacuterias o filoacutesofo

rejeita toda argumentaccedilatildeo que parte da consideraccedilatildeo destas realidades preferindo manter-

se no limite do efetivo e do individual Para tanto apoia-se com frequecircncia nas ciecircncias da

natureza como a se tratar aqui de modelo seguro para sua determinaccedilatildeo do caraacuteter

antropomoacuterfico destas determinaccedilotildees A investigaccedilatildeo da natureza com base em preceitos

cientiacuteficos neste caso a investigaccedilatildeo natural da origem da linguagem e dos conceitos

demonstra que nossa diferenciaccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros eacute uma decorrecircncia de

diversas transposiccedilotildees arbitraacuterias entre metaacuteforas de reinos muito distintos de existecircncia

Por esses motivos procuramos por meio de nossa interpretaccedilatildeo romper com a ideia

de uma defesa nietzschiana do reino das essencialidades como fundamento de suas

afirmaccedilotildees concepccedilatildeo que acreditamos que o autor substitui pela ideia de uma

investigaccedilatildeo natural das origens da linguagem e da verdade Com isso com a

contraposiccedilatildeo nietzschiana agrave progressiva inclusatildeo de conceitos nas realidades cientiacuteficas e

filosoacuteficas o autor efetuaria uma de suas primeiras denuacutencias da progressiva destituiccedilatildeo de

valor da realidade pelas concepccedilotildees racionalistas Em sua leitura na medida em que

passamos a depositar total confianccedila em uma realidade conceitual na medida em que

fazemos depender nossa existecircncia desse gecircnero de criaccedilatildeo arbitraacuteria passamos a rejeitar

uma forma mais original de existecircncia que se fundamentaria no valor de nossas criaccedilotildees

enquanto criaccedilotildees

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor

Todo o progresso alcanccedilado pelo autor do ensaio ateacute aqui serve de preparaccedilatildeo para

a postulaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca da verdade Hipoacutetese a que o autor do ensaio chega

99

atraveacutes de uma investigaccedilatildeo extramoral da verdade e da mentira que culmina em uma

anaacutelise das origens da linguagem A relaccedilatildeo estabelecida pelo autor entre a linguagem e a

verdade possibilita uma anaacutelise do valor da verdade como decorrecircncia das origens mesmas

da linguagem Nesse sentido a partir do momento que Nietzsche conclui que a verdade

surge em consequecircncia do uso da linguagem como uma decorrecircncia das leis das

designaccedilotildees coletivas a concepccedilatildeo da verdade formulada no ensaio natildeo pode ser

desvinculada de sua anaacutelise das origens da linguagem

A que conclusotildees o estudo das origens da linguagem conduz Ora se o autor

percebe que a linguagem seria o produto de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias de

metaacuteforas primeiramente de estiacutemulos nervos em imagens mentais e posteriormente destas

em sons a verdade que eacute compreendida pela tradiccedilatildeo como uma propriedade da

linguagem em relaccedilatildeo a um objeto tambeacutem teria sua validade derivada destas

transposiccedilotildees arbitraacuterias Se a linguagem eacute este conjunto de transposiccedilotildees arbitraacuterias

tambeacutem a verdade acaba por constituir-se como um conjunto de metaacuteforas que devem sua

origem a tais transposiccedilotildees arbitraacuterias

O que eacute pois a verdade Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemiasantropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas queforam realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e queapoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildeesdas quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaramdesgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel eagora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais comomoedas (WLVM sectI paacuteg 37)

Eacute fundamental atentar para o sentido que o autor atribui agraves verdades aqui As

verdades ou seja as afirmaccedilotildees tomadas com verdadeiras dentro das normas linguiacutesticas

convencionadas ainda que preservem todas as exigecircncias que um teoacuterico tradicional queira

prescrever para o que seja verdadeiro carregam consigo os viacutecio da linguagem Nesse

sentido toda verdade afirmada seria sempre o produto de um esquecimento das origens das

palavras Sendo assim a conclusatildeo a que o posicionamento criacutetico nietzschiano chega eacute de

que as verdades seriam o contraacuterio do que se pensou delas ateacute entatildeo Com isso a

concepccedilatildeo tradicional finda destituiacuteda de validade

100

Verdades neste caso satildeo ilusotildees do tipo mais profundo porque nela se ignora seu

efeito ilusoacuterio Assim naquele momento de sua produccedilatildeo Nietzsche toma as verdades

como uma parcela inserida no conjunto maior das ilusotildees das metaacuteforas de cuja origem

metafoacuterica se esquece para bem da comunicaccedilatildeo Com isso tem-se uma caracterizaccedilatildeo

provisoacuteria do sentido da verdade no Ensaio sobre Verdade e Mentira enquanto ilusotildees das

quais comodamente nos esquecemos que satildeo ilusotildees para fins gregaacuterios Sendo assim a

verdade corresponderia a algo como um conjunto de mentiras convencionadas cujo valor

haacute muito tempo deixou de relacionar-se com sua origem

A veracidade diria respeito entatildeo a uma relaccedilatildeo entre designaccedilotildees que por sua

vez satildeo produtos de transposiccedilotildees arbitraacuterias Portanto a relaccedilatildeo de veracidade natildeo

corresponderia a uma relaccedilatildeo de proximidade com um mundo essencial incognosciacutevel mas

representaria a internalizaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo linguiacutestica mediante a pressatildeo da

necessidade Mas como se pode explicar isso Qual o sentido de termos como metaacutefora e

ilusatildeo nessa argumentaccedilatildeo

Para exemplificar diriacuteamos que haacute expressotildees cujo significado usual suplanta sua

origem A existecircncia de expressotildees que perpetuam-se na liacutengua por seu uso e cujo sentido

se sobrepotildee agraves origens de onde obtinha seu sentido a princiacutepio parece ser um fenocircmeno

facilmente observaacutevel em todos os idiomas Assim quando chamamos a liacutengua portuguesa

ldquoa uacuteltima flor do Laacuteciordquo utilizamos uma expressatildeo que poderia significar uma flor literal

nascida no Laacutecio origem poeacutetica da qual a expressatildeo deve sua origem56 Aqui no entanto

tal expressatildeo perde toda ligaccedilatildeo com seu sentido poeacutetico passando a representar o idioma

que eacute comparado a uma flor Nesse sentido esta expressatildeo poderia ser tomada como uma

metaacutefora para a liacutengua portuguesa

No caso nietzschiano no entanto as metaacuteforas tecircm o sentido que lhes eacute atribuiacutedo na

comparaccedilatildeo com o que pretendem significar mas natildeo um sentido independente porque o

que lhes daacute origem eacute algo que natildeo tem sentido propriamente independente do que se quer

comunicar Isto porque o sentido poeacutetico destas expressotildees teria sido a muito tempo

esquecidas As metaacuteforas que fundamentam a concepccedilatildeo de verdade que Nietzsche busca

56 A expressatildeo agora praticamente em desuso pertence ao o soneto ldquoLiacutengua Portuguesardquo do poeta brasileiroOlavo Bilac Neste soneto Olavo Bilac escreve no primeiro verso ldquoUacuteltima flor do Laacutecio inculta e belardquoreferindo-se ao idioma Portuguecircs como a uacuteltima liacutengua derivada do Latim Vulgar idioma falado na regiatildeo doLaacutecio na Itaacutelia principalmente por soldados rasos e comerciantes dai o adjetivo ldquoincultardquo utilizado porOlavo Bilac

101

descrever satildeo metaacuteforas em um sentido muito especial portanto Isto porque usualmente

uma metaacutefora guarda uma relaccedilatildeo de sentido com o que tenta significar aleacutem de um

sentido literal independente o que natildeo ocorre com as metaacuteforas dos estiacutemulos nervosos

que segundo Nietzsche seriam as imagens mentais Do mesmo modo tambeacutem os sons

tomados como metaacuteforas das metaacuteforas que satildeo as imagens mentais natildeo guarda uma

relaccedilatildeo de sentido com elas Por fim os conceitos que seriam metaacuteforas das quais se perde

completamente ateacute a lembranccedila de que deveriam se reportar a algo aparecem como

metaacuteforas muito mais esmaecidas em relaccedilatildeo agraves primeiras metaacuteforas

Agora o que o autor do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sugerir eacute que a

verdade enquanto uso verdadeiro de designaccedilotildees linguiacutesticas guarda exatamente este

mesmo tipo de relaccedilatildeo com suas origens Grosso modo a verdade natildeo seria mais do que a

sobreposiccedilatildeo do uso de expressotildees linguiacutesticas sobre sua origem que eacute sem sentido e

incomunicaacutevel Nietzsche procura assim desvincular o apreccedilo pela verdade de qualquer

origem nobre que lhe tenha sido atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo Ainda assim determinadas a

origem e o significado da verdade faltaria ao autor explicar a tendecircncia natural agrave verdade

ou o impulso agrave verdade que para a tradiccedilatildeo eacute como que uma marca distintiva da

humanidade entre os outros animais

Toda a histoacuteria da origem da verdade apresentada pelo autor sugere apenas a

obrigatoriedade de se falar a verdade como uma obrigaccedilatildeo moral assumida perante a

sociedade na tentativa de evitar as consequecircncias negativas do engano para a

sociabilidade A identificaccedilatildeo da verdade como um tipo de engano consentido em grupo

ou ldquodito moralmente da obrigaccedilatildeo de mentir conforme uma convenccedilatildeo consolidada

mentir em rebanho num estilo a todos obrigatoacuteriordquo (WLVM sect1 paacuteg 37) natildeo afasta a

necessidade de se explicar as origens do pathos da verdade do sentimento moral que a

tradiccedilatildeo associou agrave verdade e que constrange o seu uso

A referecircncia nietzschiana a este pathos ou seja o forte sentimento que estaacute ligado

em noacutes agrave obediecircncia de certas regras na praacutetica discursiva se deveria a um lento processo

de internalizaccedilatildeo destas mesmas regras por forccedila do receio de recair em uma maacute

disposiccedilatildeo por parte da comunidade Nesse sentido por exemplo o fato de nos sentirmos

mal ao mentir e nos sentirmos bem ao falar a verdade estaria relacionado a uma instintiva

recordaccedilatildeo das consequecircncias da mentira para seu praticante Assim a origem desse

102

pathos estaria relacionada natildeo a um desejo inato pela verdade mas a um receio

inconsciente de rejeiccedilatildeo Por outro lado o pathos da verdade poderia ser relacionado ao

sentimento advindo da constataccedilatildeo da falta de apreccedilo pelas consequecircncias da mentira Ou

seja quando confrontado com o lugar legado pela sociedade aos mentirosos ao mesmo

tempo que eacute motivado cada vez mais a fazer uso de tantas abstraccedilotildees quantas se lhe

apresentem o homem cultiva em seu iacutentimo a necessidade de verdade

O homem que vive em rebanho passa entatildeo a ser fortemente incentivado a criar

formas de comunicar todo acesso consciente agraves intuiccedilotildees agraves impressotildees repentinas e

individuais com que se depara Certamente este esforccedilo em comunicar o que eacute individual

representa tambeacutem um progressivo afastamento do que eacute individual na medida em que se

deve esquecer a individualidade das impressotildees na esperanccedila de melhor comunicaacute-las

Assim o homem de rebanho troca estas impressotildees originais por conceitos E pelo uso de

conceitos cada vez mais ldquodesbotados e friosrdquo o homem passa a se distinguir em sua

comunidade como portador de um conjunto cada vez maior de veracidade

O resultado mais imediato desse pathos da verdade seria a constituiccedilatildeo de

hierarquias que posteriormente evoluiriam e viriam a se tornar nosso ordenamento juriacutedico

e social distintivos da existecircncia em rebanho que se contrapotildee ao modo de existir

individual Disso dependeria fundamentalmente o modo humano de existir assim como

nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No entanto na medida em

que esta progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma progressiva falsificaccedilatildeo das

impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva dependecircncia do homem para

com a linguagem

A partir do reforccedilo do costume de se dizer a verdade cumpriria ao homem

enquanto pretende ser um homem da verdade aplicar os conceitos segundo a forma

convencionada tomando cuidado em ldquojamais atentar contra a ordenaccedilatildeo de castas bem

como contra a sequecircncia das classes hierarquicamente organizadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 39)

Nesse sentido a preservaccedilatildeo da verdade significaria tambeacutem preservaccedilatildeo das hierarquias

Em outras palavras na medida em que a vida humana passa progressivamente a girar em

torno da sociabilidade necessariamente o cultivo da linguagem passa a relacionar-se com a

preservaccedilatildeo das cadeias de comando pois a linguagem se relaciona intimamente com as

cadeias de reproduccedilatildeo de valor

103

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana

Segundo a aproximaccedilatildeo do homem a outras espeacutecies de animais que Nietzsche

torna operante em todo o ensaio a razatildeo mesma que goza de alta consideraccedilatildeo por parte da

tradiccedilatildeo racionalista passa a ser entendida como um instrumento fornecido pela natureza

para melhor adaptaccedilatildeo do homem Dela dependeria fundamentalmente o modo humano

de existir assim como nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No

entanto na medida em que a progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma

progressiva falsificaccedilatildeo das impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva

dependecircncia do homem para com a linguagem um tornar-se cada vez mais linguiacutestico

logo cada vez mais consciente Na leitura nietzschiana no entanto isto natildeo faria do

homem um animal superior mas apenas um animal mais dependente de ilusotildees

Com isso a intenccedilatildeo de Nietzsche seria confrontar a secular distinccedilatildeo do homem

como animal racional O autor do ensaio combate a interpretaccedilatildeo segundo a qual o homem

seria um animal superior por conta de sua racionalidade ao afirmar que a distinccedilatildeo entre os

seres humanos e os outros animais consistiria em outras qualidades menos oacutebvias Pois ao

contraacuterio do que imagina a tradiccedilatildeo natildeo eacute uma tendecircncia agrave verdade e ao conhecimento que

distingue o homem dos outros animais mas sua necessidade de ilusotildees de aparecircncias Ao

atacar as bases daquilo que a tradiccedilatildeo toma como traccedilo distintivo do ser humano sua

propensatildeo para a verdade sua racionalidade Nietzsche pretende sujeitar o intelecto a sua

funccedilatildeo como instrumento para a sobrevivecircncia Esta estrateacutegia argumentativa a defesa de

uma interpretaccedilatildeo do intelecto enquanto oacutergatildeo para a linguagem se opotildee a uma estrateacutegia

que o autor do ensaio pretende tornar natildeo operante a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do intelecto

que se confunde com uma explicaccedilatildeo teleoloacutegica

Eacute nesse contexto que surge a imagem da teia de conceitos A cadeia de conceitos

que possibilita a ciecircncia seria o ponto mais elevado da estrateacutegia de sobrevivecircncia descrita

no ensaio A teia conceitual vista nessa leitura enquanto construccedilatildeo humana seria

104

aparentada com a teia da aranha por ser igualmente engenhosa57 De fato a teia conceitual

da ciecircncia aparece na leitura de Nietzsche como um claro exemplo da engenhosidade

arquitetocircnica humana que superaria em engenhosidade e sutileza a teia da aranha na

medida em que eacute tecida em material mais eteacutereo apesar de igualmente flexiacutevel e resistente

Aqui cabe muito bem admirar o homem como um formidaacutevel gecircnio daconstruccedilatildeo capaz de erguer sobre fundamentos instaacuteveis e como quesobre a aacutegua corrente um domo de conceitos infinitamente complicadopor certo a fim de manter-se firmemente em peacute sobre tais fundamentoscumpre ser uma construccedilatildeo como que feita com teias de aranhasuficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas e firme obastante para natildeo ser despedaccedilada pelo sopro do vento Como gecircnio daconstruccedilatildeo o homem eleva-se muito acima da abelha na seguinte medidaesta uacuteltima constroacutei a partir da cera que ela recolhe da natureza ao passoque o primeiro a partir da mateacuteria muito mais delicada dos conceitos queprecisa fabricar a partir de si mesmo Aqui cumpre admiraacute-lo muito masnatildeo somente por causa de seu impulso agrave verdade ao conhecimento purodas coisas (WLVM sectI paacuteg 40)

O significado da metaacutefora nietzschiana da teia relaciona-se natildeo apenas ao fato de

exemplificar uma forma sofisticada de estrateacutegia de sobrevivecircncia mas ao aspecto

definidor da realidade em ambos os casos Ou seja tanto a teia da aranha quanto o palaacutecio

conceitual da ciecircncia humana os quais constituem estrateacutegias de sobrevivecircncia para seus

criadores evoluem junto com a espeacutecie cuja sobrevivecircncia possibilitam Assim do mesmo

modo que a aranha e sua teia evoluem em uma iacutentima relaccedilatildeo a ponto da teia ser para a

aranha seu mundo posto que seu aparato sensorial evoluiu no sentido de uma limitaccedilatildeo de

sua realidade agrave sua teia o mundo de conceitos seria para o homem seu mundo

Nesse sentido a metaacutefora da teia eacute uma representaccedilatildeo poeacutetica do caraacuteter

perspectivo do conhecimento na filosofia nietzschiana Pois a perspectiva humana eacute

formada por aquilo que se lhe apresenta como objeto de conhecimento em uma primeira

acepccedilatildeo mas tambeacutem pela teia conceitual que eacute construiacuteda como modo de apreensatildeo

daquilo que se lhe apresenta ao conhecimento

57 O uso de animais nos escritos nietzschianos eacute sempre muito rico de sentido Em especial esta reflexatildeoacerca das semelhanccedilas entre os mecanismos de sobrevivecircncia do homem e da aranha constitui uma dasprimeiras apariccedilotildees de uma imagem poeacutetica constantemente retomada na filosofia nietzschiana acerca doconhecimento De fato muitas vezes a referecircncia agrave aranha ou a referecircncia a teia conceitual humanaaparecem como indicativos dos momentos na obra nietzschiana em que o autor reflete acerca doconhecimento

105

A genialidade da raccedila humana consistiria assim natildeo na veracidade de seus

construtos teoacutericos mas na capacidade de construir estruturas mais fraacutegeis e ao mesmo

tempo mais duradouras que outras espeacutecies naturais e que lhe possibilitam apreender o

mundo a sua volta Assim sua aparente tendecircncia ao conhecimento e agrave verdade seria

apenas mais uma ilusatildeo Uma ilusatildeo que lhe faz admirar seu construto teoacuterico do mesmo

modo que uma aranha aprende a estimar sua teia Nessas comparaccedilotildees as construccedilotildees

teoacutericas dos seres humanos natildeo aparecem em um grau superior agravequelas dos outros animais

o que confere ao texto a impressatildeo de que aqui o autor estivesse comparando estrateacutegias de

sobrevivecircncia sem desmerecer nenhuma delas

Na leitura nietzschiana portanto a propensatildeo ao conhecimento proacutepria do homem

seu impulso agrave verdade consistiria apenas em uma espeacutecie de truque da razatildeo A busca pela

verdade que tradicionalmente se tomava como a missatildeo sagrada do homem eacute vista pelo

autor do ensaio como um resultado de seu proceder racional Isto se daria porque para

Nietzsche o procurar e encontrar da ldquoverdaderdquo no interior do domiacutenio da razatildeo natildeo

poderia ter outro resultado senatildeo a descoberta de verdades criadas pela proacutepria razatildeo Dado

que a criaccedilatildeo de conceitos pelo homem condiciona o tipo de coisa designada e nada haacute de

especial em encaixar uma coisa em sua designaccedilatildeo conceitual pois o proacuteprio conceito eacute

um esquecimento da designaccedilatildeo original da coisa

Se crio a definiccedilatildeo de mamiacutefero e aiacute entatildeo apoacutes inspecionar um camelodeclaro veja eis um mamiacutefero com isso uma verdade decerto eacute trazida agraveplena luz mas ela possui um valor limitado digo ela eacute antropomoacuterficade fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse ldquoverdadeiroem sirdquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homem Emprinciacutepio o pesquisador dessas verdades procura apenas a metamorfosedo mundo nos homens esforccedila-se por uma compreensatildeo do mundo vistocomo uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das hipoacuteteses granjeiapara si o sentimento de uma assimilaccedilatildeo Agrave semelhanccedila do astroacutelogo queobserva as estrelas a serviccedilo dos homens e em conformidade com suafelicidade e sofrimento assim tambeacutem um tal pesquisador observa omundo inteiro como conectado ao homem como o ressoar infinitamentefragmentado de um som primordial do homem como a coacutepiareduplicada de uma imagem primordial do homem (WLVM sectI paacuteg40-41)

106

Como afirma o autor nada haacute de ldquoverdadeiro em si58rdquo nesse tipo de procedimento

apesar disso parecer desesperador aos filoacutesofos mais antigos Tudo se daacute aqui no terreno

antropomoacuterfico dos conceitos e natildeo no terreno da pesquisa desinteressada da verdade Pois

o pesquisador deixando de lado o caraacuteter metafoacuterico de suas primeiras imagens as quais

lhe servem de objeto atua como se estivesse diante da realidade ela mesma sem se dar

conta que apenas testemunha uma verdade antropomoacuterfica Assim ele atua em erro de

princiacutepio ao fim ldquoeis seu procedimento ter o homem por medida de todas as coisas algo

que ele faz poreacutem partindo do erro de acreditar que teria tais coisas como objetos puros

diante de sirdquo (WLVM sectI paacuteg 41) Estes objetos puros natildeo satildeo colocados diante do

homem mais do que pela proacutepria razatildeo que procura nesses objetos a verdade Isto a razatildeo

faz de maneira inconsciente na medida em que ldquoEle se esquece pois das metaacuteforas

intuitivas originais tais como satildeo metaacuteforas e as toma pelas proacuteprias coisasrdquo (WLVM

sectI paacuteg 41)

O modo pelo qual Nietzsche chega aos conceitos diverge profundamente do modo

como a filosofia metafiacutesica os concebe Se a tradiccedilatildeo concebe os conceitos como uma

pressuposiccedilatildeo necessaacuteria a partir da constataccedilatildeo que a verdade deve ser eterna e imutaacutevel

Nietzsche concebe estas entidades como a imobilizaccedilatildeo dos impulsos originais por meio

de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias que culmina com o esquecimento desta mesma

cadeia A compreensatildeo dos conceitos como esta ldquocalcificaccedilatildeordquo das palavras a

internalizaccedilatildeo de palavras devido seu uso continuado na praacutetica comunicativa culminaria

na compreensatildeo da ciecircncia como construto que tem por seus elementos menores os

conceitos Nesse sentido se os conceitos natildeo teriam relaccedilatildeo com uma forma mais

verdadeira de representar a realidade tambeacutem a ciecircncia natildeo poderia ter esperanccedilas de

representar a realidade de um modo mais verdadeiro

Para o autor do ensaio o conceito seria apenas um produto tardio oriundo de nossa

pouca memoacuteria e deve-se notar em uacuteltima instacircncia produto de nossa sensibilidade

limitada Pois se natildeo percebemos as mudanccedilas constantes na realidade isso se deveria a

uma limitaccedilatildeo fundamental de nossos sentidos que satildeo marcados pela estabilidade como

58 O proacuteprio uso do termo ldquoverdadeiro em sirdquo entre aspas nesse trecho do Ensaio assim como os outrostermos relacionados (efetivo e universalmente vaacutelido) daacute a ideia de que Nietzsche nega que seusantagonistas os adeptos da concepccedilatildeo tradicional de verdade em algum momento tenham atingido seusobjetivos em sua pesquisa filosoacutefica Mas de maneira alguma o uso destes termos torna o autorcomprometido com a crenccedila nesse tipo de conceitos

107

necessidade fundamental Posto que nossos sentidos se desenvolveram em acordo com

nossa necessidade de estabilidade eles nos conferem em associaccedilatildeo com o intelecto a

estabilidade sem a qual natildeo poderiacuteamos sobreviver Assim apenas pela omissatildeo da

realidade em sua natureza mutaacutevel podemos conceber um mundo de estabilidade Por outra

parte somente porque desprezamos a originalidade de cada entidade o que significaria sua

natildeo existecircncia objetiva podemos conceber os conceitos

Nesse sentido os conceitos constituem a perspectiva verdadeira para o homem

capaz de lhe garantir uma existecircncia ateacute certo ponto feliz posto que o colocam para aleacutem

da terriacutevel circunstacircncia de sua existecircncia enquanto espeacutecie ameaccedilada O palaacutecio

conceitual criado pelo intelecto que atua por forccedila da capacidade do intelecto de criar

ilusotildees eacute concebido aqui como uma proteccedilatildeo que manteacutem a autoconsciecircncia segura do

risco de confrontar o desconhecido sob o qual descansa A ideia dos terrores sobre os quais

o homem constitui sua existecircncia natildeo eacute nova na literatura nietzschiana e o autor apenas

retoma aqui uma ideia que jaacute houvera exposto em O Nascimento da Trageacutedia59 onde por

meio da reproduccedilatildeo de uma extensa passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo

o autor pretende vincular sua interpretaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana do veacuteu de Maia

(hellip) Seu olho deve ser lsquosolarrsquo em conformidade com a sua origemmesmo quando mira coleacuterico e mal-humorado paira sobre ele aconsagraccedilatildeo da bela aparecircncia E assim poderia valer em relaccedilatildeo a Apoloem um sentido excecircntrico aquilo que Schopenhauer observou a respeitodo homem colhido no veacuteu de Maia na primeira parte de O mundo comovontade e representaccedilatildeo ldquoTal como em meio ao mar furioso queilimitado em todos os quadrantes ergue e afunda vagalhotildees bramantesum barqueiro estaacute sentado em seu bote confiando na fraacutegil embarcaccedilatildeoda mesma maneira em meio a um mundo de tormentos o homemindividual permanece calmamente sentado apoiado e confiante noprincipium individuationis [princiacutepio de individuaccedilatildeo]rdquo Sim poder-se-iadizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressatildeo a inabalaacutevelconfianccedila nesse principium e o tranquilo ficar aiacute sentado de quem neleestaacute preso e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplecircndidaimagem divina do principium individuationis a partir de cujos gestos eolhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ldquoaparecircnciardquojuntamente com a sua belezardquo (GTNT I sect1)

59 A citaccedilatildeo eacute da traduccedilatildeo de J Guinsburg para a editora Companhia das Letras conforme bibliografia

108

Na passagem em questatildeo Nietzsche relata os poderes de Apolo na medida em que

este eacute tomado como o impulso artiacutestico por traacutes da criaccedilatildeo da realidade oniacuterica como uma

representaccedilatildeo mitoloacutegica do principium individuationis Segundo a interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana que Nietzsche acompanha em sua referecircncia a situaccedilatildeo do homem

mediante a confianccedila depositada no princiacutepium individuationis eacute comparaacutevel a de um

homem que em meio a um mar bravio se prende a seu bote com a seguranccedila de que nele

repousa sua uacutenica esperanccedila de sobrevivecircncia

No Ensaio sobre Verdade e Mentira por sua vez o intelecto eacute representado como

uma fonte de conforto e orgulho para o homem Isto porque o homem participa na

exaltaccedilatildeo do intelecto que eacute apresentada para ele por meio da autojustificaccedilatildeo do intelecto

Nesse sentido o orgulho advindo da compreensatildeo do intelecto sobre si mesmo torna-se

uma taacutebua de salvaccedilatildeo que protege o homem da compreensatildeo da perenidade de todo

conhecimento Isto seria alcanccedilado por meio da caracteriacutestica capacidade de iludir do

intelecto que faz o homem repousar em sua teia conceitual que foi criada como sua esfera

de atuaccedilatildeo na realidade

Somente pelo esquecimento desse mundo metafoacuterico apenas peloenrijecimento e petrificaccedilatildeo de uma massa imageacutetica que qual umliacutequido fervente desaguava originalmente em torrentes a partir dacapacidade primitiva da fantasia humana tatildeo somente pela crenccedilaimbatiacutevel de que este sol esta janela esta mesa satildeo uma verdade em siem suma apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e comefeito enquanto sujeito artisticamente criador ele vive com certatranquilidade com alguma seguranccedila e consequecircncia se pudesse sairapenas por um instante das redomas aprisionadoras dessa crenccedila entatildeosua ldquoautoconsciecircnciardquo desapareceria de imediato (WLVM sectI paacuteg 42)

Em outros termos a elevada estima para com o conhecimento seria apenas o

produto de um desconhecimento fundamental acerca de suas origens O proacuteprio valor da

ciecircncia dependeria fundamentalmente desta ignoracircncia fundamental Por outro lado o

desvelamento das origens da ciecircncia que eacute alcanccedilada no ensaio a anaacutelise dos fundamentos

mesmos de onde ela surge faz perceber que natildeo eacute o conhecimento o grande diferencial do

homem em relaccedilatildeo aos demais animais mas sua criatividade artiacutestica Natildeo apenas a

109

ciecircncia seria produto desta criatividade artiacutestica fundamental mas o proacuteprio valor que

atribuiacutemos a ciecircncia como produto do intelecto seria decorrecircncia desta criatividade

Nesse movimento portanto ao mesmo tempo que Nietzsche expotildee a ciecircncia como

natildeo sendo digna de sua reputaccedilatildeo faz da criatividade humana o seu grande potencial Esta

forma de conceber a ciecircncia em relaccedilatildeo agrave arte guarda certa similaridade com a forma como

o autor pensa essa relaccedilatildeo em O Nascimento da Trageacutedia O que nos chama atenccedilatildeo aqui

no entanto eacute que se naquela obra o autor tomava partido pela arte se era o artista

Nietzsche que falava ali aqui o autor realiza a criacutetica da ciecircncia utilizando-se de uma

anaacutelise que privilegia o uso de concepccedilotildees cientiacuteficas Isto significaria que jaacute naquele

periacuteodo de sua produccedilatildeo o filoacutesofo fazia um uso da ciecircncia como produto da criatividade

artiacutestica humana

A consciecircncia do valor da ciecircncia como produto artiacutestico no entanto eacute algo que soacute

se torna possiacutevel a partir da criacutetica do intelecto como produtor de ilusotildees Assim podemos

perceber que a autoconsciecircncia enquanto a imagem do homem criada a partir do potencial

criativo do intelecto em sua autojustificaccedilatildeo tem importacircncia significativa na consideraccedilatildeo

do valor da ciecircncia Sendo assim os alicerces de nosso edifiacutecio conceitual repousariam natildeo

sobre uma fundaccedilatildeo segura na verdade mas sobre uma representaccedilatildeo do intelecto como

elemento revelador da verdade Mediante a desintegraccedilatildeo da autoconsciecircncia um exerciacutecio

que ateacute certo ponto eacute levado a cabo nesta passagem do ensaio outras perspectivas

despontariam para o homem como igualmente vaacutelidas

Exigi-lhe esforccedilo inclusive admitir para si mesmo o fato de que o insetoou o paacutessaro percebem um mundo totalmente diferente daquele percebidopelo homem sendo que a pergunta por qual das duas percepccedilotildees demundo eacute a mais correta natildeo possui qualquer sentido haja visto que pararespondecirc-la a questatildeo teria de ser previamente medida com criteacuterioatinente agrave percepccedilatildeo correta isto eacute de acordo com um criteacuterio que natildeoestaacute agrave disposiccedilatildeo A mim me parece em todo caso que a percepccedilatildeocorreta ndash que significaria a expressatildeo adequada de um objeto no sujeito ndasheacute uma contraditoacuteria absurdidade pois entre duas esferas absolutamentediferentes tais como entre sujeito e objeto natildeo vigora nenhumacausalidade nenhuma exatidatildeo nenhuma expressatildeo mas acima de tudouma relaccedilatildeo esteacutetica digo uma transposiccedilatildeo sugestiva uma traduccedilatildeobalbuciante para uma liacutengua totalmente estranha Algo que requer dequalquer modo uma esfera intermediaacuteria manifestamente poeacutetica einventiva bem como uma forccedila mediadora (WLVM sectI paacuteg 42)

110

O que se percebe nessa passagem eacute uma preacutevia reflexatildeo acerca do caraacuteter limitado

de nossa compreensatildeo da realidade assim como uma criacutetica do valor de nossas estimaccedilotildees

da realidade com base em uma concepccedilatildeo da consciecircncia que eacute desde sempre apenas um

produto da autojustificaccedilatildeo do intelecto Destituiacuteda de validade a ciecircncia passa a ser

compreendida como algo que deve seu valor apenas a uma concepccedilatildeo dogmaacutetica acerca do

entendimento humano Desta interpretaccedilatildeo criacutetica surge a possibilidade de que existam

outras perspectivas outras concepccedilotildees de mundo fora da concepccedilatildeo humana Por outro

lado toda tentativa de julgamento destas outras perspectivas eacute confrontada com a

suposiccedilatildeo de que esta criacutetica ela mesma seria realizada a partir do intelecto Logo natildeo

poderia ter validade fora da esfera de justificaccedilatildeo do intelecto

A denuacutencia do caraacuteter antropomoacuterfico das criaccedilotildees teoacutericas humanas abriria assim

tereno para a postulaccedilatildeo nietzschiana das demais perspectivas como possibilidades

Apenas considerando-se o que fora dito anteriormente levando-se em consideraccedilatildeo

inclusive a reflexatildeo acerca dos diferentes modos de sensibilidade animal investigaccedilatildeo

com a qual Nietzsche entra em contato a partir de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo eacute possiacutevel pesar a complexidade dos argumentos que compotildeem esta

sentenccedila

Grosso modo o problema poderia ser colocado do seguinte modo admitindo-se

como certa a hipoacutetese de que o homem natildeo seja a medida de todas as coisas que de certo

modo eacute a alma deste ensaio como ficariam as outras perspectivas diante da perspectiva

humana Ou seja considerando-se a possibilidade de que outras espeacutecies possam ver o

mundo sob formas muito diferentes da nossa e essa possibilidade eacute amplamente

respaldada pelas investigaccedilotildees das ciecircncias naturais agravequela eacutepoca como julgar se a nossa

seria a mais correta O uacutenico modo para o autor seria a comparaccedilatildeo com a perspectiva

correta No entanto tal perspectiva natildeo estaacute ao alcance A proacutepria especulaccedilatildeo acerca de

uma tal perspectiva seria um absurdo60 Na medida em que examinamos estaacute reflexatildeo tecircm-

60 Nesta passagem Nietzsche adianta uma reflexatildeo fundamental para seu perspectivismo que eacute referida noaforismo 374 de A Gaia Ciecircncia intitulado ldquonosso novo infinitordquo Naquela conhecida passagem o autorafirmaraacute ldquoNatildeo podemos enxergar aleacutem de nossa esquina eacute uma curiosidade desesperada querer saber queoutros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haverrdquo (FWGC V sect374) com isso retomando a reflexatildeode juventude acerca das formas como os insetos ou os paacutessaros enxergam a realidade Das conclusotildees que oautor retira dessa impossibilidade falaremos no uacuteltimo capiacutetulo

111

se como certo que o autor natildeo admite a possibilidade de que se possa comparar

perspectivas porque natildeo estamos de posse de uma pedra de toque definitiva o criteacuterio

atinente com que se poderia determinar qual seria a perspectiva correta

Embora sua consideraccedilatildeo do papel do intelecto na apropriaccedilatildeo do mundo pela

humanidade soacute se torne possiacutevel em uma filosofia que conhece a criacutetica efetuada por Kant

Nietzsche se opotildee a essa filosofia ao contrastar a confianccedila do filoacutesofo de Koumlnigsberg na

capacidade da razatildeo em julgar a si mesma com a suspeita de que como instrumento

plasmador de ilusotildees o intelecto eacute pouco confiaacutevel para estabelecer a verdade de qualquer

coisa especialmente sobre si mesmo

Para que a consciecircncia viesse a efetuar sua proacutepria criacutetica seria necessaacuterio que esta

se desloca-se para aleacutem de sua proacutepria perspectiva para julgar as demais perspectivas

como se aqui se trata-se de uma perspectiva absoluta Ou ainda que este se coloca-se em

uma relaccedilatildeo de proximidade com o conhecimento verdadeiro em sentido metafiacutesico que

este se colocasse em uma relaccedilatildeo ideal com a coisa em si o que lhe seria impossiacutevel posto

que a proacutepria concepccedilatildeo de coisas em si repudia a possibilidade de atuaccedilatildeo do intelecto

Assim a hipoacutetese de que o intelecto pudesse efetuar sua proacutepria criacutetica que de certo modo

se encontra subjacente agrave consideraccedilatildeo criacutetica kantiana ainda reconhece na razatildeo humana

um sentido para a verdade que lhe eacute totalmente estranho

Como o autor defende desde que o homem da verdade estaacute imbuiacutedo em sua

perspectiva da verdade natildeo lhe eacute faacutecil contemplar a sugestatildeo de que outras perspectivas

sejam sempre possiacuteveis Pois o investigador que toma a seacuterio a possibilidade da verdade

natildeo pode imaginar que esta seja subjetiva61 Mas se tal fosse possiacutevel o autor aponta a

saiacuteda seria necessaacuterio entender-se com a objetivaccedilatildeo mais adequada da realidade

Para o autor do ensaio poreacutem esta sugestatildeo seria um absurdo na medida em que tal

criteacuterio natildeo nos estaria disponiacutevel Pois seria necessaacuterio ter um acesso privilegiado ao

mundo das verdades para daiacute entatildeo postular qual perspectiva se lhe aproxima mais Mas

61 Esta passagem reflete ideias que seriam retomadas por Nietzsche em seu pensamento maduronotadamente na seguinte passagem de seu espoacutelio ldquoO intelecto natildeo pode ele mesmo criticar-se justamenteporque natildeo pode ser comparado com intelectos diferentemente constituiacutedos e porque sua capacidade deconhecer viria agrave luz somente em face da lsquoverdadeira realidadersquo [wahren Wirklichkeit] isto eacute porque paracriticar o intelecto precisariacuteamos ser um ser mais elevado com lsquoconhecimento absolutorsquo Isto jaacute pressupotildeeque haveria algo um lsquoem sirsquo para aleacutem de todas as espeacutecies de perspectivas de consideraccedilatildeo e deapropriaccedilatildeo sensiacutevel-espiritual ndash mas a deduccedilatildeo psicoloacutegica da crenccedila em coisas nos proiacutebe falar de lsquocoisasem sirsquordquo (WMVP Livro III sect473)

112

da relaccedilatildeo entre um objeto e um sujeito uma imensidatildeo de possibilidades criativas se

coloca natildeo sendo a objetividade uma decorrecircncia necessaacuteria Assim o autor toma toda

objetivaccedilatildeo como uma decorrecircncia esteacutetica sempre que eacute produto da atuaccedilatildeo de instacircncias

criativas sem as quais o objeto mesmo natildeo aparece ao sujeito

Nestas consideraccedilotildees satildeo adiantadas muitas concepccedilotildees que seratildeo retomadas por

Nietzsche em seu pensamento de maturidade Entre estas ideias talvez a mais significativa

seja a concepccedilatildeo do poder criativo do intelecto A sugestatildeo nietzschiana de que na

apariccedilatildeo dos fenocircmenos entram em jogo forccedilas criativas conduz agrave conclusatildeo de que a

interpretaccedilatildeo nunca eacute um produto espontacircneo no sentido de uma decorrecircncia natural uma

maacutegica apariccedilatildeo de um algo para um sujeito Toda aparecircncia eacute sempre um resultado uma

regulaccedilatildeo natural de uma forccedila criativa inerente ao intelecto

Mesmo aquilo que Nietzsche toma como base de sua teoria da linguagem a

tranposiccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em uma imagem eacute tomado em sentido hipoteacutetico

Sendo assim tal relaccedilatildeo natildeo seria uma decorrecircncia necessaacuteria mas apenas um haacutebito

adquirido mediante a contiacutenua repeticcedilatildeo desta atividade Desta forma o autor do ensaio

procura evitar qualquer referecircncia a uma realidade que vaacute aleacutem dos limites do que pode ser

conhecido Mantendo-se nos limites do que eacute exposto no ensaio percebe-se que Nietzsche

ateacute mesmo evita usar termos como fenocircmeno e aparecircncia pois compreende que estes ainda

poderiam ser confundidos com a ideia de que algo no mundo empiacuterico esteja relacionado

com um reino original de onde brotasse nosso conhecimento das coisas

A palavra aparecircncia conteacutem muitas tentaccedilotildees daiacute eu evitaacute-la sempre quepossiacutevel pois natildeo eacute verdade que a essecircncia das coisas aparece no mundoempiacuterico Um pintor cujas matildeos lhe faltassem e quisesse ainda assimexpressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelaraacute nessatroca de esferas muito mais sobre a essecircncia das coisas do que aquilo querevela o mundo empiacuterico A proacutepria relaccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso coma imagem gerada natildeo eacute em si algo necessaacuterio mas quando justamente amesma imagem foi gerada milhotildees de vezes e foi herdada por muitasgeraccedilotildees de homens ateacute que por fim aparece junto agrave humanidade inteirasempre na sequecircncia da mesma ocasiatildeo entatildeo ela termina por adquirir aofim e ao cabo o mesmo significado para o homem como se fosse aimagem exclusivamente necessaacuteria e como se aquela relaccedilatildeo do estiacutemulonervoso original com a imagem gerada constituiacutesse uma firme relaccedilatildeocausal assim como um sonho que se repete eternamente seria semduacutevida sentido e julgado como efetividade Mas o enrijecimento e a

113

petrificaccedilatildeo de uma metaacutefora natildeo asseguram coisa alguma agrave suanecessidade e justificaccedilatildeo exclusiva (WLVM sectI paacuteg 42-43)

Em outros termos a regularidade que se observa na transposiccedilatildeo dos estiacutemulos

nervosos em imagens mentais pode ser vista como mais um efeito da atuaccedilatildeo do intelecto

Esta regularidade no entanto pouco significa para a veracidade dessas relaccedilotildees E assim

seria um erro loacutegico entender a regularidade dessas transposiccedilotildees como um argumento a

favor de sua certeza Pois um sonho que nos aparecesse com a mesma regularidade natildeo

seria mais real por isso

Como podemos ver as uacuteltimas conclusotildees da primeira parte do ensaio parecem

apontar para um forte ceticismo Segundo esta leitura natildeo haveriam certezas nas relaccedilotildees

da linguagem porque estas se constituem na transposiccedilatildeo de esferas do mundo dos

estiacutemulos ao mundo das imagens Por outro lado seria essa possibilidade de criar uma

realidade ao lado da realidade mais fundamental das intuiccedilotildees fundamentais segundo uma

certa regularidade natural que nos possibilita estabelecer as bases para nossa criaccedilatildeo da

linguagem Isto eacute certo na medida em que a hipoacutetese acerca da criaccedilatildeo da linguagem nos

fornece uma explicaccedilatildeo plausiacutevel que se fundamenta em um processo evolucionaacuterio e

seletivo que acabaria por criar um tesouro de metaacuteforas coerentes

Por outro lado o ensaio deixa claro que a relaccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute uma

relaccedilatildeo esteacutetica e natildeo epistemoloacutegica Com isso o autor quer dizer que o processo segundo

o qual constituiacutemos nossa perspectiva eacute um processo criativo que se desenrola pela

atividade mesma de uma esfera intermediaacuteria poeacutetica e inventiva uma forccedila mediadora

para a qual neste momento o autor natildeo tinha um nome Por outro lado uma concepccedilatildeo

definitiva acerca da realidade como o homem aspira eacute uma ilusatildeo Pois tudo que merece o

nome de realidade seria apenas o produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo intelectual e

crer no contraacuterio conduziria ao idealismo mais arbitraacuterio

O que nos interessa mais diretamente ateacute aqui eacute o fato de que este mundo dos

conceitos criados a partir de um mundo de intuiccedilotildees originais passa a constituir-se por

conta de nossa crescente dependecircncia da ciecircncia como o mundo que merece valor Nesse

sentido necessariamente o mundo mais fundamental das intuiccedilotildees perde valor em relaccedilatildeo

ao mundo organizado segundo a hierarquia de valores inerente a uma consideraccedilatildeo

114

cientiacutefica da realidade Este eacute um estaacutegio fundamental no desenvolvimento do niilismo em

que o proacuteprio mundo dos conceitos a medida que a ciecircncia torna-se cada vez mais criacutetica

tambeacutem tem seu valor desvalorizado

Assim se considerarmos que no ensaio em questatildeo Nietzsche se detecircm ainda que

de maneira pouco sistemaacutetica com o problema da desvalorizaccedilatildeo do mundo dos conceitos

entatildeo podemos considerar a segunda parte do ensaio como a apresentaccedilatildeo de uma

possibilidade de superaccedilatildeo do problema da desvalorizaccedilatildeo dos produtos da atividade

criativa humana atraveacutes da comparaccedilatildeo de duas formas antagocircnicas de consideraccedilatildeo da

realidade a do homem da verdade e a do homem intuitivo Este passo eacute fundamental

porque representa a possibilidade cotejada na filosofia de maturidade nietzschiana de se

valorizar o conhecimento como criaccedilatildeo em detrimento do conhecimento que se

desconhece como criaccedilatildeo forjada na ilusatildeo

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo

Em sua leitura criacutetica Nietzsche conclui que apesar de sua fundamental relaccedilatildeo

com a sobrevivecircncia o uso da linguagem implicaria em consequecircncias negativas em

relaccedilatildeo agrave vida Isto na medida em que passa a constituir um modo de vida que culmina na

desvalorizaccedilatildeo do mundo de intuiccedilotildees originais A simplificaccedilatildeo da realidade para fins de

comunicaccedilatildeo o que Nietzsche considera um processo fundamental na formaccedilatildeo da

linguagem conduz a uma dependecircncia crescente em uma realidade conceitual que se potildee

ao lado da realidade das impressotildees fundamentais Como este processo eacute progressivo

como o homem paulatinamente se esquece de sua realidade individual e passa a pensar

dentro de uma rede determinada de conceitos a realidade conceitual acabaria por substituir

em importacircncia e valor a realidade mais fundamental daquelas impressotildees fundamentais

Esta forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo da ciecircncia com o reino mais fundamental

das impressotildees seria o reflexo de um problema constante na especulaccedilatildeo nietzschiana a

substituiccedilatildeo da vida pela vida racionalmente mediada Isto porque apesar de a reduccedilatildeo da

realidade a conceitos passo fundamental para a constituiccedilatildeo da linguagem expressar-se

115

por meio de um mecanismo psicoloacutegico de defesa destinado a sustentar um ser no mundo

por mais um pouco de tempo este mesmo processo eacute entendido como culminando em um

abandono das relaccedilotildees mais fundamentais com a realidade da qual a vida mesma se

apresentaria como impressotildees individuais

Em um certo sentido o uso de conceitos que tornam o homem um ser cada vez

mais linguiacutestico cada vez mais consciente tornam-no com isso cada vez mais dependente

das ilusotildees fundamentais inerentes ao uso da linguagem Esta eacute a natureza do risco da

progressiva conscientizaccedilatildeo do homem seu paulatino tornar-se mais linguiacutestico tal como

este risco seraacute apresentado em A Gaia Ciecircncia Dessa maneira a superestimaccedilatildeo da razatildeo

conduz a uma confianccedila na razatildeo que acaba por tornar a realidade conceitual um objeto de

crenccedila o que por sua vez conduz agrave destituiccedilatildeo de validade da realidade mais original das

impressotildees originais

Podemos antever na exposiccedilatildeo nietzschiana o modo como a expressatildeo

cientificamente mediada da realidade tomada aqui como produto da sugestiva apariccedilatildeo dos

conceitos que correspondem ao enrijecimento de metaacuteforas adequadas embora providencie

uma base segura para a investigaccedilatildeo cientiacutefica acaba constituindo-se como uma limitaccedilatildeo

para a atuaccedilatildeo humana Pois para Nietzsche a investigaccedilatildeo levada a cabo dentro dos

limites conceituais natildeo atinge senatildeo um tipo de verdade bastante limitado Os conceitos

pensados no ensaio como fossilizaccedilotildees de palavras tem uma origem descortinada por

Nietzsche no esquecimento do uso de determinadas noccedilotildees gerais Assim sua existecircncia

estaacute necessariamente restrita agrave histoacuteria de seu uso Palavras analogamente se tornam

valores fixos com os quais construiacutemos uma rede de estabilidade onde podemos viver e

estabelecer hierarquias de comando

Nessa leitura a comunicaccedilatildeo pode ser vista como tendo sua determinaccedilatildeo na

necessidade de medir algo contra outra coisa uma impressatildeo com uma representaccedilatildeo

sonora desta representaccedilatildeo Como uma sequecircncia de siacutembolos que devem corresponder a

outra sequecircncia de siacutembolos de modo a definir e medir e criar uma referecircncia

reciprocamente entre eles Assim se por um lado o homem pode pesquisar dentro de seu

ciacuterculo antropomoacuterfico com base em conceitos tanto no sentido de uma investigaccedilatildeo que

contemplasse as menores grandezas quanto as maiores sem nunca encontrar uma

contradiccedilatildeo por outro lado este tipo de pesquisa nunca o afastaria das condiccedilotildees de

116

possibilidade jaacute dadas pela forma como a linguagem eacute constituiacuteda Do mesmo modo esta

atividade investigativa nunca possibilitaria um conhecimento adequado da realidade

mesma que eacute justamente a pretensatildeo de todo conhecimento

Ainda assim o conhecimento que se torna atuante atraveacutes do progressivo uso dos

conceitos na medida em que corresponde a uma perspectiva tipicamente humana constitui

uma forma estabelecida de ciecircncia Mais do que isso eacute possiacutevel que nunca tenha havido

na histoacuteria da humanidade uma outra forma de ciecircncia Assim de um certo modo a

caracteriacutestica mesma do humano consistiria na capacidade do intelecto em constituir

imagens em conceitos expediente por meio do qual se tornaria possiacutevel a ciecircncia Nessa

leitura a capacidade de constituir em conceitos uma realidade comunicaacutevel mais do que

objeto de censura da parte de Nietzsche aparece no ensaio quase como motivo de

assombro

Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capacidadede volatilizar as metaacuteforas intuitivas num esquema de dissolver umaimagem num conceito portanto no acircmbito daqueles esquemas torna-sepossiacutevel algo que nunca poderia ser alcanccedilado sob a eacutegide das primeirasimpressotildees intuitivas erigir uma ordenaccedilatildeo piramidal segundo castas egradaccedilotildees criar um novo mundo de leis privileacutegios subordinaccedilotildeesdelimitaccedilotildees que agora faz frente ao outro mundo intuitivo das primeirasimpressotildees como o mais consolidado universal conhecido humano eem virtude disso como o mundo regulador e imperativo (WLVM sectIpaacuteg 38)

Eacute natural que diante das dificuldades enfrentadas pelo criador da linguagem nos

vejamos diante deste imponente edifiacutecio com assombro e admiraccedilatildeo Ainda assim aquilo

de que noacutes nos assombramos natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise senatildeo de noacutes mesmos Assim com

certa admiraccedilatildeo o filoacutesofo descreve a capacidade humana de ldquovolatilizar metaacuteforas

intuitivasrdquo ou seja de desgastar impressotildees fundamentais tornando-as conceitos como a

base para a criaccedilatildeo de um mundo cuja realidade compete com a realidade do mundo das

intuiccedilotildees fundamentais

Para Nietzsche a hierarquia fundamental que caracterizaria o modo humano de

existir depende desta capacidade de conferir realidade a uma ordenaccedilatildeo de valores

fundamentais independentes do mundo de impressotildees originais para o qual esse mundo de

117

conceitos torna-se o esquema compreensivo Com isso o mundo fundamental das intuiccedilotildees

passa a fazer frente ao mundo inventado dos conceitos ldquocomo o mundo regulador e

imperativordquo por meio do qual o homem constitui sua ciecircncia Assim com a caracterizaccedilatildeo

da ciecircncia como o empreendimento que toma como realidade a realidade conceitual o

autor antecipa uma importante conclusatildeo do ensaio em questatildeo na apreciaccedilatildeo do problema

do valor dos conceitos cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave vida que aqui eacute representada na forma das

intuiccedilotildees fundamentais

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a primeira parte do Ensaio sobre Verdade e

Mentira e a segunda A primeira parte do ensaio pode ser interpretada como a apresentaccedilatildeo

do posicionamento criacutetico do autor para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade Dentro

deste posicionamento satildeo apresentadas as hipoacuteteses nietzschianas acerca das origens da

linguagem da verdade e do valor moral atribuiacutedo agrave verdade Nesse sentido a primeira

parte culmina em uma criacutetica ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade A segunda

parte do ensaio parte dessa consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a uma vida norteada pelas

concepccedilotildees conceituais e a ela confronta um modo de vida mais original fundamentado

nas impressotildees originais Assim a primeira parte do ensaio a parte teoacuterica prepara o

terreno para um problema de cunho praacutetico o conflito intriacutenseco a dois modos de

existecircncia a do homem cientiacutefico e a do homem intuitivo

O homem cientiacutefico recebe uma caraterizaccedilatildeo negativa jaacute em consequecircncia das

criacuteticas nietzschianas ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade Deste modo na

segunda parte do ensaio o autor continua a descrever esta concepccedilatildeo de realidade de

maneira pouco elogiosa Por outro lado a esta concepccedilatildeo da realidade eacute apresentada uma

concepccedilatildeo antagocircnica que eacute representada aqui como constituinte de um tipo de existecircncia

em a capacidade de criaccedilatildeo eacute valorizada em detrimento da necessidade de conceitos O que

eacute dito aqui do homem intuitivo natildeo se distingue daquilo que no periacuteodo intermediaacuterio da

filosofia nietzschiana Nietzsche diraacute dos espiacuteritos livres

O autor do ensaio inicia a segunda parte do texto por meio de uma apresentaccedilatildeo da

linguagem e dos conceitos como produtos de uma atividade de simplificaccedilatildeo da realidade

Nesta apresentaccedilatildeo o processo de criaccedilatildeo da linguagem eacute caracterizado como tendo suas

fases evolutivas marcadas pela criaccedilatildeo de metaacuteforas que culminaria na criaccedilatildeo dos

conceitos Por sua vez os conceitos se entrelaccedilariam se relacionariam de modo a criar

118

uma rede de compreensatildeo em que a realidade eacute traduzida em ciecircncia No entanto se os

conceitos satildeo como o autor pensa petrificaccedilotildees das intuiccedilotildees originais que se daria atraveacutes

de vaacuterias transposiccedilotildees arbitraacuterias entatildeo a ciecircncia seria uma construccedilatildeo produzida com

base nestas mesmas transposiccedilotildees arbitraacuterias

O processo de produccedilatildeo dos conceitos que tem por finalidade preparar os

elementos necessaacuterios para a constituiccedilatildeo da ciecircncia eacute marcado pela compressatildeo de

informaccedilatildeo Os conceitos seriam esta forma mais compacta de se preservar a realidade

embora uma realidade mais aacuterida do que o terreno original das primeiras impressotildees que

lhe datildeo origem Nesse sentido a ciecircncia enquanto rede compreensiva de conceitos

enquanto verdadeira piracircmide conceitual torna-se uma representaccedilatildeo aacuterida de todo o

mundo empiacuterico Este mundo empiacuterico no entanto que nessa altura nada mais eacute do que o

mundo sob uma perspectiva antropomoacuterfica A realidade da ciecircncia aparece como um

reflexo paacutelido da realidade mais original das impressotildees Por ser paacutelido poreacutem este

reflexo torna-se mais cocircmodo ao olhar miacuteope do cientista

Qual o caraacuteter deste empobrecimento da realidade narrado por Nietzsche Em quecirc

esta piracircmide de conceitos deixa a desejar em relaccedilatildeo agrave realidade mais fundamental das

metaacuteforas intuitivas Para Nietzsche um dos problemas com o tornar-se mais linguiacutestico

mais dependente do esquema conceitual caracteriacutestico das ciecircncias seria o fato de que a

proacutepria linguagem natildeo eacute vista como um meio seguro para expressar a diferenccedila Como

uma forma de fixaccedilatildeo do real os conceitos se relacionam intimamente com a similaridade

entre as impressotildees fundamentais que no fundo nunca satildeo de fato similares Assim por

exemplo dois homens que apontassem para um objeto e que usam a mesma designaccedilatildeo

para nomeaacute-lo poderiam entender-se perfeitamente Mas algo eacute sempre deixado de lado

nessa comunicaccedilatildeo e natildeo eacute possiacutevel dizer de fato o que cada um vecirc Porque haacute uma

diferenccedila fundamental em seus modos de perceber intuitivamente o mundo que natildeo eacute

capturado pelos conceitos

Na traduccedilatildeo da realidade das metaacuteforas intuitivas em conceitos para o autor do

ensaio se daacute uma falsificaccedilatildeo fundamental da realidade A traduccedilatildeo da natureza nas leis da

fiacutesica eacute um exemplo recorrentemente utilizado na obra nietzschiana para demarcar o tipo

de simplificaccedilatildeo que eacute operada pela ciecircncia As leis da fiacutesica representam a ciecircncia apenas

do ponto de vista do fiacutesico nunca do ponto de vista da natureza ela mesma De modo que

119

tudo que eacute expresso pela fiacutesica eacute verdadeiro apenas no interior da fiacutesica Do mesmo modo

se as leis da fiacutesica natildeo podem ser equivocadas isto apenas significa que desde que estas

leis satildeo uma imposiccedilatildeo segundo a norma convencionada de aplicaccedilatildeo de conceitos nada

dizem acerca da natureza mesmo pois expressam apenas um sistema de relaccedilotildees fechado

Por outro lado o que haacute de verdadeiramente significativo nas leis da natureza

seriam as relaccedilotildees de sucessatildeo e nuacutemero que satildeo expressotildees do tempo e espaccedilo portanto

aplicaccedilotildees de conceitos humanos Ou seja as leis da natureza satildeo criaccedilotildees nossas tal qual

a regularidade numeacuterica que eacute produzida ldquocom aquela necessidade com a qual a aranha

tece sua teiardquo (WLVM sectI paacuteg 45) Lembremos que em suas notas preparatoacuterias para

Zur Teleologie o filoacutesofo nos falava das leis da fiacutesica como uacutenico modo de compreensatildeo

da natureza para os homens62

Mas porque as leis da fiacutesica satildeo criaccedilotildees humanas capazes de oferecer uma

explicaccedilatildeo da natureza Porque satildeo criadas com esse propoacutesito No entanto as leis da

fiacutesica satildeo produtos de nossa atividade criativa condicionadas pela regularidade numeacuterica

que eacute inerente ao nosso intelecto e natildeo carateriacutesticas da proacutepria natureza Sendo assim

poderiacuteamos nos perguntar o que eacute expresso nestas determinaccedilotildees numeacutericas Para

Nietzsche a mesma regularidade que eacute o traccedilo do intelecto o traccedilo caracteriacutestico de nossa

atividade criativa sobre o mundo que seria o uacutenico conteuacutedo das leis da natureza Isto

seria de fato uma explicaccedilatildeo da natureza Mas uma explicaccedilatildeo dentro de um ponto de

vista63

Por fim tem-se que as leis da fiacutesica seriam a forma mais avanccedilada de falsificaccedilatildeo

da natureza por meio da qual se constitui nossa ciecircncia natural Nesse sentido se por um

lado esta domesticaccedilatildeo das imagens em conceitos coincide com uma maior falsificaccedilatildeo da

realidade por outro apenas por meio desta falsificaccedilatildeo seria possiacutevel constituir a ciecircncia

enquanto um edifiacutecio de riacutegidos conceitos e hierarquizaccedilatildeo Desta maneira repercutindo

uma ideia apresentada em suas notas preparatoacuterias para a dissertaccedilatildeo sobre teleologia

62 Em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie Nietzsche reuacutene uma seacuterie de citaccedilotildees da obra deFischer tendo em vista estabelecer como ponto de partida de sua proacutepria concepccedilatildeo sobre os organismosque noacutes apenas podemos conhecer o que eacute mecacircnico (BAW 3 Paacuteg 377) Em outras palavras para o homemapenas o que se revela em relaccedilotildees de necessidade seria passiacutevel de conhecimento Embora como as notasparecem significar conhecimento a partir de um ponto de vista mecacircnico ao que o autor acrescenta ldquoEineBetrachtungsweise ist noch keine Erkenntnissrdquo ou seja ldquoUm ponto de vista ainda natildeo eacute conhecimentordquo(BAW 3 Paacuteg 377)63 Vide nota anterior

120

Nietzsche reduz toda regularidade da natureza a regularidade dos conceitos que aparece

para o autor como o reflexo de nossa proacutepria constituiccedilatildeo

Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetoacuteria dos planetas eno processo quiacutemico coincide no fundo com aquelas propriedades quenoacutes mesmos introduzimos nas coisas de sorte que com issoimpressionamos a noacutes mesmos Disso se segue por certo que aquelaformaccedilatildeo artiacutestica de metaacuteforas que em noacutes daacute iniacutecio a toda sensaccedilatildeo jaacutepressupotildee tais formas e portanto realiza-se nelas somente a partir dafirme persistecircncia dessas formas primordiais torna-se possiacutevel esclarecercomo pocircde assim como outrora ser novamente erigido um edifiacutecio deconceitos feito com as proacuteprias metaacuteforas Tal edifiacutecio eacute pois umaimitaccedilatildeo das relaccedilotildees de tempo espaccedilo e nuacutemero sobre o solo dasmetaacuteforas (WLVM sectI paacuteg 45)

Toda a impressionante ordenaccedilatildeo da natureza seria assim um reflexo de nosso

ponto de vista determinado natildeo se podendo tributar agrave natureza qualquer regularidade

proacutepria Por outro lado o autor esforccedila-se em demonstrar que um conceito natildeo tem

realidade ldquoa-histoacutericardquo pois sua existecircncia estaacute necessariamente restrita a histoacuteria de seu

uso Por sua vez o proacuteprio mundo de conceitos e de hierarquia que eacute a ciecircncia seria um

mundo humano construiacutedo com base em leis de regularidade que a proacutepria regularidade de

nossa constituiccedilatildeo lhe impotildee Como Nietzsche afirma ldquoEm princiacutepio o pesquisador dessas

verdades procura apenas a metamorfose do mundo nos homens esforccedila-se por uma

compreensatildeo do mundo visto como uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das

hipoacuteteses granjeia para si o sentimento de uma assimilaccedilatildeordquo (WLVM sectI paacuteg 40) De

tal modo a existecircncia humana passa a depender destas associaccedilotildees automaacuteticas que os

conceitos passam a valer na existecircncia humana como verdadeiras entidades Ainda assim

tatildeo distantes os conceitos estatildeo das metaacuteforas que lhe datildeo origem que facilmente

descremos dessa origem Com a mesma facilidade com que o homem perde de vista o fato

de que todo conceito e portanto toda ciecircncia tem como sua origem uma ilusatildeo

ocasionada por uma atividade criativa inerente agrave constituiccedilatildeo humana

Enquanto cada metaacutefora intuitiva eacute individual e desprovida de seucorrelato e por isso sabe sempre eludir a todo rubricar o grande edifiacuteciodos conceitos exibe a inflexiacutevel regularidade de um columbaacuterio romano e

121

exala na loacutegica aquela dureza e frieza que satildeo proacuteprias agrave matemaacuteticaAquele que eacute baforado por essa frieza mal acreditaraacute que mesmo oconceito ossificado e octogonal como um dado e tatildeo rolante como estepermanece tatildeo-somente o resiacuteduo de uma metaacutefora sendo que a ilusatildeo datransposiccedilatildeo artiacutestica de um estiacutemulo nervoso em imagens se natildeo eacute amatildee eacute ao menos a avoacute de todo conceito (WLVM sectI paacutegs 38-39)

Exatamente nisso os conceitos se diferenciam das metaacuteforas intuitivas Enquanto as

metaacuteforas intuitivas satildeo eventos singulares desprovidos de sentido aleacutem de sua apariccedilatildeo

os conceitos satildeo criaccedilotildees que devem servir de modelo para interpretaccedilatildeo da realidade em

formas fixas segundo uma riacutegida loacutegica Os elementos constitutivos de todas as ciecircncias

relacionam-se uns aos outros para formar estruturas que estatildeo ancoradas a outros

conceitos que conduzem a um fundamento riacutegido que se presume ser um ldquoinstantacircneordquo do

mundo em que realmente vivemos Um instantacircneo de forma loacutegica e epistemologicamente

exata por assim dizer Mas se levarmos a seacuterio esse pensamento como fica a realidade

Onde estaacute o mundo em que realmente vivemos Neste instantacircneo Seraacute que ele teria sido

simplesmente captado por completo em nossa representaccedilatildeo conceitual da realidade A

resposta do autor eacute claramente negativa para todas estas questotildees

O processo que culmina na produccedilatildeo da ciecircncia tem para Nietzsche uma loacutegica

determinada segundo a qual ldquo() a linguagem trabalha na construccedilatildeo dos conceitos desde

o princiacutepio e em periacuteodos posteriores a ciecircnciardquo (WLVM sectI paacuteg 46) Assim a

linguagem eacute considerada nessa leitura como um passo inicial no processo de produccedilatildeo da

ciecircncia que teraacute seu modo de operaccedilatildeo determinado por essa mesma loacutegica Eacute esta loacutegica

que determina que a busca de regularidade proacutepria da ciecircncia culmine em um

esquecimento da realidade para aleacutem da regularidade atribuiacuteda a ela Ou seja tendo em

vista uma cada vez melhor adaptaccedilatildeo da realidade agraves necessidades humanas notadamente

a necessidade de comunicaccedilatildeo a ciecircncia opera com conceitos cada vez menos relacionados

agrave realidade original das metaacuteforas intuitivas

Nesse processo a proacutepria similaridade da constituiccedilatildeo humana parece cooperar na

medida em que ocasiona que sempre vejamos o mundo de uma perspectiva muito

semelhante posto que condicionada pela mesma organizaccedilatildeo64 Apesar disso a tendecircncia

64 A ideia da conformidade da constituiccedilatildeo do aparato perceptivo humano como motivo da regularidade dasexperiecircncias compartilhadas pelos homens eacute reforccedilada no Fragmento poacutestumo 19 [157] do mesmo periacuteododa obra citada ldquoO imenso consenso dos homens acerca das coisas comprova a uniformidade de seu aparatoperceptivordquo Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na paacutegina 67 da obra em estudo

122

humana agrave formulaccedilatildeo de conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural da qual a

proacutepria criaccedilatildeo de conceitos seria dependente

A caracterizaccedilatildeo da dependecircncia humana do esquema conceitual possibilita a

Nietzsche qualificar sua eacutepoca enquanto uma eacutepoca culturalmente dominada pela

primordialidade da ciecircncia como uma eacutepoca ameaccedilada pela crescente dependecircncia do

esquema conceitual fruto do intelecto Pois o autor identifica na incapacidade humana em

trabalhar apenas com as metaacuteforas poeacuteticas originais incapacidade que torna-se algo

inerente ao modo de vida que passa a caracterizar a humanidade uma crescente perda de

vitalidade na forma de uma crescente deterioraccedilatildeo da capacidade de ver segundo a

pluralidade de perspectivas possiacuteveis Assim para o autor do ensaio que confirmaraacute essa

suspeita em obras posteriores apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida

humana caracterizar-se por um processo de crescente adoecimento do homem a

consideraccedilatildeo da realidade segundo a realidade dos conceitos tende a uma expansatildeo

contiacutenua Pois a atividade dissimuladora do intelecto responsaacutevel pela conversatildeo de

metaacuteforas intuitivas em conceitos tende a uma atividade contiacutenua

Esta atividade criativa estruturalmente ligada ao intelecto chega a tornar-se nos

homens seu traccedilo caracteriacutestico Assim este traccedilo positivo do intelecto na medida em que

eacute manifestaccedilatildeo do potencial criativo inerente agrave atividade humana revela-se como potencial

artiacutestico incansaacutevel E ainda quando estabelecido o outro mundo dos conceitos cientiacuteficos

a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas permanece ativa e pronta para desempenhar seus

artifiacutecios em terrenos ainda inexplorados pelas ciecircncias

Tal impulso agrave formaccedilatildeo de metaacuteforas esse impulso fundamental dohomem ao qual natildeo se pode renunciar nem por um instante jaacute que comisso renunciar-se-ia ao proacuteprio homem natildeo eacute em verdade subjugado eminimamente domado pelo fato de um novo mundo firme e regular ter-lhe sido construiacutedo qual uma fortificaccedilatildeo a partir de seus produtosvolatilizados o mesmo eacute dizer os conceitos (WLVM sectI paacutegs 46-47)

Nesta leitura o autor identifica a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas com uma forccedila

que natildeo se deteacutem mesmo diante do soacutelido palaacutecio de conceitos da ciecircncia Ou seja apesar

da preponderacircncia da ciecircncia em determinadas eacutepocas o poder dissimulador do intelecto

permanece ativo e a disposiccedilatildeo Apenas o pesquisador o homem da verdade que associa

123

seu modo de vida ao proacuteprio desenvolvimento do palaacutecio conceitual da ciecircncia

permaneceria alienado dessa atividade propriamente artiacutestica do intelecto Mesmo que

enquanto homem natildeo possa ignorar a atuaccedilatildeo dessa potencialidade criativa que

constantemente lhe forccedila a confrontar suas certezas com outras tantas formas de verdade

Nesse sentido o pesquisador da verdade seria o homem mais ameaccedilado pela constante

intromissatildeo de verdades estranhas em seu sistema de compreensatildeo do mundo

Se o homem de accedilatildeo une sua vida agrave razatildeo e a seus conceitos para natildeo serarrastado e natildeo se perder a si mesmo o pesquisador de sua parteconstroacutei sua cabana junto agrave torre da ciecircncia para que possa prestar-lheassistecircncia e encontrar ele proacuteprio amparo sob o baluarte agrave suadisposiccedilatildeo E com efeito ele necessita de amparo pois haacute forccedilasterriacuteveis que lhe irrompem constantemente e que opotildee agraves verdadescientiacuteficas ldquoverdadesrdquo de um tipo totalmente diferente com as maisdiversas espeacutecies de emblemas (WLVM sectI paacuteg 46)

O homem de accedilatildeo nesse sentido identifica-se de forma instrumental com o palaacutecio

de conceitos mas o homem da ciecircncia o pesquisador faz desse palaacutecio a razatildeo mesma de

sua existecircncia Assim por conta da dependecircncia crescente neste construto teoacuterico para o

homem da ciecircncia este lhe pareceraacute sempre mais e mais real Na medida em que o homem

da ciecircncia dedica sua vida agrave construccedilatildeo do palaacutecio de conceitos e que faz sua vida

depender desse palaacutecio conceitual embora no fundo estes mesmos conceitos sejam ainda o

resultado dos enganos mais criativos natildeo pode fugir das ldquoverdadesrdquo de tipo distinto aos

conceitos cientiacuteficos que como resultado da atuaccedilatildeo do intelecto sempre se lhe

apresentam

O que o autor relata aqui eacute a presenccedila fundamental da forccedila criadora de metaacuteforas

como princiacutepio que natildeo se encerra na produccedilatildeo das verdades cientiacuteficas mas que

permanece ativa para aleacutem da consolidaccedilatildeo desse empreendimento Assim apesar de a

razatildeo conduzir inevitavelmente a uma certa imobilizaccedilatildeo da accedilatildeo na medida em que o

homem se deixa conduzir unicamente por seu princiacutepio falsificador com isso natildeo

chegamos a um pessimismo em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana mas agrave conclusatildeo de que apenas

podemos ser guiados por intuiccedilotildees que satildeo produtos de nossa capacidade poeacutetica e que

encontram seu valor nessa capacidade poeacutetica

124

Por meio da reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a atividade cientiacutefica e a atividade

criativa de metaacuteforas inerente agrave existecircncia humana Nietzsche ressalta o papel da forccedila

criativa que atua na construccedilatildeo das metaacuteforas a qual o autor considera uma forccedila poeacutetica

ineliminaacutevel nos homens A abordagem desse potencial criativo poderia ser lida como

complemento ao que Lange expressa sob a questatildeo do potencial criativo do ideal no

capiacutetulo de A Histoacuteria do Materialismo acerca do ponto de vista do ideal e deste modo

estaria relacionada agrave questatildeo mais fundamental acerca da inevitabilidade da tendecircncia

metafiacutesica no homem65

De modo geral o que Nietzsche nos apresenta ao confrontar o homem da verdade

com o homem intuitivo seria um reflexo da ideia langeana de que a forccedila poeacutetica no ser

humano seria um complemento necessaacuterio agrave atividade do homem teoacuterico66 Assim o autor

65 Em sua filosofia de maturidade Nietzsche considera que Kant assim como Schopenhauer teriam sidotragados para uma consideraccedilatildeo seacuteria das coisas em si por conta da necessidade moral que subjaz agraves suasfilosofias Essa necessidade moral teria sido de acordo com a interpretaccedilatildeo criacutetica de Nietzsche o peso quearrastou a filosofia desses autores para o abismo da inevitabilidade metafiacutesica Nesse sentido a segundagrande influecircncia na interpretaccedilatildeo nietzschiana da filosofia kantiana Fr A Lange acompanha Kant naproibiccedilatildeo do conhecimento do que se coloca para aleacutem da experiecircncia possiacutevel embora atribua um papelimportante para as realidades ideais como fontes de estiacutemulo na pesquisa cientiacutefica e inspiraccedilatildeo nas esferaspoeacutetica e moral Assim ele nos diz ldquoUma coisa eacute certa que o homem tem necessidade de completar arealidade com um mundo ideal que o mesmo cria e que para tais criaccedilotildees concorrem as mais altas e nobresfunccedilotildees de sua inteligecircnciardquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 586) Assim estes produtos das mais altas e nobresfunccedilotildees da inteligecircncia humana natildeo deveriam ser desperdiccedilados mas ter seu uso restrito ao acircmbito praacuteticoMotivo pelo quecirc as uacuteltimas seccedilotildees de sua obra satildeo dedicadas agrave descriccedilatildeo do uso adequado dessa propensatildeonatural especialmente no que diz respeito agrave religiosidade que tem um papel fundamental enquanto fonte devalores morais na proposta langeana ldquo(hellip) e chegamos a crer que esta tese da associaccedilatildeo da religiatildeo com aarte e a metafiacutesica seraacute adotada de modo geral em um tempo natildeo muito distante e ainda nos parece que estasrelaccedilotildees satildeo reconhecidas ou ao menos pressentidas pelos mais entusiastas em uma medida muito maisampla do que se admite ordinariamenterdquo (Tomo II 4 II Paacuteg 521) Por outro lado como se sabe o combateagrave religiosidade exatamente por conta dos valores morais associados a essa praacutetica humana eacute objeto degrande destaque na filosofia nietzschiana na qual a destruiccedilatildeo da metafiacutesica aparece como objeto central Noentanto eacute possiacutevel observar que o que Nietzsche afirma acerca do potencial das metaacuteforas intuitivas serelaciona intimamente como o que Lange diz acerca da atuaccedilatildeo do potencial poeacutetico humano ldquoA visatildeo deconjunto que converte os fatos em ciecircncias e a ciecircncia em sistema eacute um fruto da livre siacutentese e proveacutemportanto da mesma origem que a criaccedilatildeo do ideal mas enquanto este dispotildee em completa liberdade damateacuteria a siacutentese apenas tem o domiacutenio do movimento a liberdade de sua origem que emana do espiacuteritopoeacutetico do homem e estaacute por outro lado encarregado da tarefa de estabelecer a maior harmocircnia possiacutevelentre os fatores necessaacuterios do conhecimento subtraiacutedos a nosso caprichordquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 578)66 De modo geral os elementos que Nietzsche absorve de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo deAlbert Lange satildeo resumidos pelo filoacutesofo em uma carta escrita a Carl von Gersdoff seu amigo ecorrespondente de longa data A carta em questatildeo que foi datada de fins de agosto de 1866 reflete asimpressotildees que Nietzsche conservava de sua leitura da obra de Lange ldquoFinalmente devemos mencionartambeacutem Schopenhauer pelo qual eu ainda tenho a maior simpatia O que pode ser encontrado nele foirecentemente esclarecido para mim por uma fonte diferente o excelente e muito instrutivo entre os seusHistoacuteria do Materialismo e criacutetica de sua importacircncia para o presente Fr A Lange 1866 Aqui encontramosum kantiano e um investigador da natureza altamente esclarecido Os seus resultados podem ser resumidosnas trecircs seguintes sentenccedilas 1-O mundo sensiacutevel eacute o produto da nossa organizaccedilatildeo 2-Nossos oacutergatildeos visiacuteveis(fiacutesicos) satildeo como todas as outras partes do mundo fenomecircnico somente imagens de um objeto

125

do ensaio nos apresenta uma concepccedilatildeo dessa forccedila criativa essencial segundo a qual em

alguns momentos da histoacuteria em que o intelecto conseguiria libertar-se da indigecircncia do

modo conceitual de viver ele atuaria na livre construccedilatildeo de produtos diretos das intuiccedilotildees

fundamentais As aacutereas afeitas a essa atividade nos diz Nietzsche seriam as aacutereas da

criaccedilatildeo dos mitos e das artes o que reflete a ideia Langeana de que natildeo apenas a filosofia

mas tambeacutem a arte e a religiatildeo tecircm livre acesso ao terreno dos conceitos67 Ao defender

essa concepccedilatildeo langeana fundamental Nietzsche descreve o modo como o intelecto natildeo

circunspecto aos limites da criaccedilatildeo dos conceitos busca uma fuga na criaccedilatildeo de ilusotildees

embelezadoras enriquecedoras da existecircncia humana tanto na arte quanto na criaccedilatildeo de

mitos

Ele busca um novo acircmbito para sua accedilatildeo e um outro regato sendo que oencontra no mito e em linhas gerais na arte Perpetuamente mistura asrubricas e as divisoacuterias dos conceitos ao introduzir novas transposiccedilotildeesmetaacuteforas metoniacutemias perpetuamente demonstra o aacutevido desejo deconfigurar o mundo agrave disposiccedilatildeo do homem desperto sob uma forma tatildeocoloridamente irregular inconsequentemente desarmocircnica instigante eeternamente nova como a do mundo do sonho (WLVM sectI paacuteg 47)

Assim na medida em que o intelecto se liberta da indigecircncia de sua atuaccedilatildeo

segundo a pressatildeo da necessidade de sobrevivecircncia sua atividade se volta para a criaccedilatildeo de

desconhecido 3-A nossa verdadeira organizaccedilatildeo permanece desconhecida para noacutes bem como as coisasexternas reais Noacutes apenas temos o produto de ambos perante noacutes (KSB 2 p 159-160) A referida citaccedilatildeoassim como as proacuteximas passagens mencionadas desta mesma carta satildeo uma traduccedilatildeo nossa de textopertencente agrave coleccedilatildeo de cartas de Nietzsche na ediccedilatildeo eletrocircnica de suas obras completas (eKGB) sob asigla BVN 1886 517 A mesma carta foi publicada no segundo volume da coletacircnea completa das obras deNietzsche organizada por Colli-Mortinari sob a sigla (KSB 2 p 159-160) Nesse trecho em que Nietzschefaz uma exposiccedilatildeo entusiaacutestica de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo podemos ver o quanto o jovemprofessor de filologia apreciou o livro de seu colega de Bonn e disciacutepulo de Ritschl Havia apenas um anoque o jovem filoacutelogo houvera descoberto O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo e acreditava ver a perfeitaqualificaccedilatildeo das ideias de Schopenhauer como herdeiro direto da filosofia kantiana no livro de Lange 67 O percurso investigativo que toma como ponto de partida a estrutura humana de apreensatildeo da realidadetem suas raiacutezes na antiguidade do pensamento No entanto a consideraccedilatildeo da estrutura racional responsaacutevelpela constituiccedilatildeo da realidade em objeto de apreensatildeo mental eacute um traccedilo caracteriacutestico da filosofia modernaque foi legado agrave filosofia posterior na forma do questionamento pelo sujeito do conhecimento Esta estruturapor traacutes da formaccedilatildeo da realidade que foi apresentada por Kant em A Criacutetica da Razatildeo Pura na forma dosujeito transcendental foi nomeada por Lange como nossa organizaccedilatildeo psicofiacutesica estrutura que surge emseu pensamento como um produto ressignificado daquela concepccedilatildeo kantiana Esta concepccedilatildeo que surge naespeculaccedilatildeo langeana acerca dos avanccedilos dos estudos dos oacutergatildeos dos sentidos e da fisiologia que apareceespecialmente no terceiro capiacutetulo do segundo volume de sua Histoacuteria do Materialismo seraacute o modelo dainvestigaccedilatildeo que seraacute assumida na filosofia nietzschiana na forma de uma concepccedilatildeo naturalista genealoacutegicae fenomenoloacutegica da consciecircncia

126

produtos esteacuteticos relacionados agrave criaccedilatildeo de mitos e obras artiacutesticas Eacute difiacutecil natildeo ver nessa

passagem os efeitos da leitura de Nietzsche da obra de Albert Lange o qual via os ideais da

razatildeo como produtos diretos da atividade poeacutetica do intelecto Assim a concepccedilatildeo do

potencial criativo humano e a importacircncia que esse potencial possui na filosofia desses

autores constituiria um traccedilo caracteriacutestico em ambas filosofias assim como um importante

passo na compreensatildeo da relaccedilatildeo desses autores com o idealismo Tal semelhanccedila entre as

reflexotildees desses autores pode ser pensada sem prejuiacutezo algum como uma continuidade de

objetivos entre ambos pensamentos apesar das necessaacuterias diferenccedilas de abordagem

Para Nietzsche em uma cultura em que a arte da dissimulaccedilatildeo natildeo foi sublimada

pela obsessatildeo pela verdade torna-se possiacutevel ao intelecto libertar-se da necessidade de

sobrevivecircncia e atuar segundo a sua inclinaccedilatildeo original ldquoO intelecto esse mestre da

dissimulaccedilatildeo acha-se pois livre e desobrigado de todo seu serviccedilo de escravo sempre que

pode enganar sem causar prejuiacutezo e festeja entatildeo suas Saturnais nunca ele eacute mais

opulento rico orgulhoso versaacutetil e arrojadordquo (WLVM sectI paacuteg 48) Para o intelecto que

liberta-se da necessidade de sobrevivecircncia ldquoEm comparaccedilatildeo com o que fazia antes agora

tudo o que faz traz em si a dissimulaccedilatildeo assim como sua conduta anterior trazia em si a

deformaccedilatildeo Copia a vida humana mas a toma por uma coisa boa e parece estar

plenamente satisfeito com elardquo (WLVM sectI paacuteg 49) Nesse sentido na medida em que o

intelecto liberta-se das amarras da necessidade e da necessidade de prover os elementos

garantidores da coexistecircncia gregaacuteria atua no sentido de uma criaccedilatildeo de sentido individual

da realidade independente da atuaccedilatildeo dos conceitos Com isso antecipa-se na reflexatildeo

nietzschiana uma resposta para o proacuteprio pessimismo inerente a uma consideraccedilatildeo da

realidade segundo os preceitos das ciecircncias

Ao contrapor a atuaccedilatildeo do intelecto segundo a pressatildeo da sobrevivecircncia que

implica na criaccedilatildeo dos conceitos e por fim na criaccedilatildeo da ciecircncia com a atividade do

intelecto em sua liberdade o autor relaciona duas atividades tatildeo distintas quanto a

falsificaccedilatildeo e a dissimulaccedilatildeo Nessa leitura a ciecircncia implicaria em uma falsificaccedilatildeo da

realidade na medida em que cria um mundo que se coloca lado a lado com o mundo mais

originaacuterio das intuiccedilotildees fundamentais que faz passar como mais verdadeiro do que o

mundo que daacute origem agrave realidade dos conceitos cientiacuteficos em uma clara atitude de

falsificaccedilatildeo Por outro lado a atividade dissimuladora do intelecto se caracteriza por um

127

embelezamento da realidade intuitiva originaacuteria o qual natildeo se explica mas se expressa de

acordo com belas imagens de sonhos

Em uma profunda reflexatildeo acerca do potencial criativo do intelecto que se liberta

de suas funccedilotildees habituais Nietzsche defende a opiniatildeo que estas funccedilotildees habituais natildeo satildeo

sua funccedilatildeo primordial posto que estas parecem se opor ao ilimitado potencial criativo do

intelecto Na compreensatildeo do filoacutesofo muito mais afeito a este potencial criativo ilimitado

do intelecto seria o papel fundamental na criaccedilatildeo de sentido a que este se entrega quando

liberto da necessidade de dissimular Ou seja mais do que propiciar a manutenccedilatildeo do

homem por meio de uma crescente falsificaccedilatildeo da realidade segundo as necessidades da

ciecircncia o intelecto teria surgido pela necessidade do homem de sentido

Em comparaccedilatildeo agrave necessidade humana de sentido o proacuteprio palaacutecio da ciecircncia

visto de um ponto de vista teoacuterico como a maior realizaccedilatildeo da humanidade seria apenas

uma ocupaccedilatildeo secundaacuteria do intelecto Assim a este palaacutecio conceitual corresponderia a

negaccedilatildeo da realidade poeacutetica inerente agrave existecircncia humana Mais do que constituir-se no

proacuteprio sentido para o homem o palaacutecio da ciecircncia seria visto como uma prisatildeo

momentacircnea para o intelecto como uma muleta para o homem como uma falsificaccedilatildeo

necessaacuteria agrave sobrevivecircncia e nada mais

Aquele enorme entablamento e andaime de conceitos sobre o qual ohomem necessitado se pendura e se salva ao longo da vida eacute para ointelecto tornado livre apenas um cadafalso e um brinquedo para seusmais audaciosos artifiacutecios (hellip) ele entatildeo revela que natildeo necessitadaqueles expedientes da indigecircncia e que agora natildeo eacute conduzido porconceitos mas por intuiccedilotildees (WLVM sectI paacuteg 49)

Reaparece aqui a ideia comum ao Nascimento da Trageacutedia de que a arte e natildeo a

ciecircncia seria a verdadeira atividade inerente ao potencial criativo humano Ou seja ao

afirmar que na criaccedilatildeo de mitos e produccedilotildees artiacutesticas o intelecto natildeo eacute conduzido por

conceitos mas por intuiccedilotildees e que nisso consistiria sua libertaccedilatildeo Nietzsche reafirma uma

valorizaccedilatildeo da arte comum agravequele periacuteodo de sua produccedilatildeo filosoacutefica Embora natildeo nomeie

os partidos eacute impossiacutevel natildeo relacionar os lados em disputa com os representantes de duas

formas de vida jaacute apresentados em sua obra de estreia o racionalista socraacutetico e o homem

128

traacutegico68 Assim em passagens que parecem retomar o tema fundamental de O Nascimento

da Trageacutedia a contraposiccedilatildeo entre o homem intuitivo grego e o cientista desenganado pela

ciecircncia Nietzsche passa a descrever nas passagens subsequentes do ensaio de que modo a

criaccedilatildeo contiacutenua de ilusotildees favoreceu o homem grego antigo

Analisado a luz das reflexotildees posteriores do filoacutesofo O Nascimento da

Trageacutedia passa a ser interpretado como um experimento em que as oacuteticas da arte e da

ciecircncia satildeo confrontadas com a vida como instacircncia de valoraccedilatildeo suprema Na medida em

que por meio de uma espeacutecie de confronto entre as oacuteticas da arte e da ciecircncia o autor

consegue oferecer um questionamento do valor da ciecircncia antecipa a conclusatildeo de que a

crenccedila no valor inquestionaacutevel da ciecircncia estaria fundamentado em uma compreensatildeo

eminentemente moral da realidade Assim o problema do valor da ciecircncia estaria fundado

em uma interpretaccedilatildeo moral que camufla a necessidade do questionamento verdadeiro o

problema da ciecircncia como valor

A ciecircncia apenas consegue se impor como valor segundo Nietzsche porque nesta

avaliaccedilatildeo parte-se de um princiacutepio moral Do ponto de vista de um princiacutepio vital no

entanto a ciecircncia se mostraria como algo inferior agrave arte Desta maneira antecipando um

tema que seraacute tratado em profundidade em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche

teria compreendido jaacute em O Nascimento da Trageacutedia que a valorizaccedilatildeo da verdade em

detrimento da mentira atende a uma determinaccedilatildeo de ordem moral

Ora se a verdade eacute concebida no Ensaio sobre Verdade e Mentira como uma opccedilatildeo

metafiacutesica que tornou-se objeto de estima isto apenas teria se dado porque a tradiccedilatildeo

metafiacutesica parte de uma avaliaccedilatildeo moral decadente a mesma moral que em sua revisatildeo de

O Nascimento da Trageacutedia eacute associada pelo autor a uma consideraccedilatildeo cristatilde da realidade

A vontade de verdade ou seja o sincero desejo de verdade natildeo se determinaria por uma

melhor apreciaccedilatildeo teoacuterica Menos ainda por uma recusa teoacuterica da ilusatildeo Pelo contraacuterio a

vontade de verdade seria consequecircncia de um apego moral agrave verdade e uma recusa moral

agraves consequecircncias imorais que podem provir da mentira Assim uma dimensatildeo moral que

sustenta a valorizaccedilatildeo da ficccedilatildeo da ciecircncia em detrimento da ficccedilatildeo da arte justamente o

68 Em uma visatildeo retrospectiva de sua obra de estreia tanto em Ecce Homo no primeiro paraacutegrafo da seccedilatildeosobre O Nascimento da Trageacutedia quanto no prefaacutecio tardio para aquela obra escrito em 1886 e publicadojunto agrave traduccedilatildeo em estudo sob o nome de ldquoTentativa de autocriacuteticardquo paraacutegrafo segundo Nietzsche se refereaos grandes temas daquele livro como sendo o confronto entre uma visatildeo de mundo racionalista otimista euma visatildeo de mundo traacutegica dionisiacuteaca que considera o pessimismo da vida como um tocircnico para a vida

129

que vem agrave tona quando a primeira eacute examinada pelo meacutetodo perspectivista do jogo de

oacuteticas69 ensaiado em O Nascimento da Trageacutedia seria a grande redescoberta de Nietzsche

quando reflete retrospectivamente acerca daquela obra

Com base nesta releitura criacutetica da concepccedilatildeo de ciecircncia sustentada em O

Nascimento da Trageacutedia o otimismo teoacuterico passa a ser interpretado como a tentativa de

por meio de uma intenccedilatildeo moral elevar a valoraccedilatildeo inerente a ilusotildees como verdade e

ciecircncia O problema seria que estas mesmas verdade e ciecircncia por si mesmas teriam

pouco valor quando avaliada em relaccedilatildeo a sua adequaccedilatildeo agrave realidade No entanto por meio

de uma associaccedilatildeo com a moral o domiacutenio teoacuterico se sobrepotildee agrave proacutepria natureza como

posiccedilatildeo de maior valor

A segunda parte do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sustentar-se nesta

mesma posiccedilatildeo em que as ilusotildees da ciecircncia satildeo tomadas como tendo sido erigidas como

novos valores em detrimento das ilusotildees da arte Permanece no ensaio a suspeita de que

apenas com base em uma interpretaccedilatildeo moral a ciecircncia poderia ser pensada como superior

agrave arte Consideradas do ponto de vista de seu valor para a vida no entanto com base em

uma esfera de avaliaccedilatildeo diferente da esfera de avaliaccedilatildeo da moral decadente Nietzsche

pensa que os produtos da arte deveriam ser tomados como objetos de maior valor porque

reconhecem-se como produtos de uma atividade criativa mais proacutexima da realidade

individual

Com isso o autor confronta duas formas de vida diametralmente opostas do ponto

de vista da vida e da sobrevivecircncia De um lado o homem da verdade o pesquisador de

outro o homem intuitivo o artista traacutegico Atraveacutes da apresentaccedilatildeo do confronto entre o

homem intuitivo e o homem da verdade o filoacutesofo parece refletir sobre o confronto de

duas eacutepocas diferentes a eacutepoca grega claacutessica e a dele proacuteprio Nesta comparaccedilatildeo a

realidade da Greacutecia do periacuteodo claacutessico aparece como o feliz produto de uma consideraccedilatildeo

artiacutestica da realidade de uma eacutepoca em que o homem se deixava guiar por belas imagens

de uma realidade vista sob a oacutetica da criaccedilatildeo artiacutestica e dos mitos

69 A ideia do jogo de oacuteticas eacute uma contribuiccedilatildeo de Dalla Vechia em sua tese de doutoramento (VECHIA2005 Paacuteg 84)

130

Haacute eacutepocas em que o homem racional e o homem intuitivo colocam-selado a lado um com medo da intuiccedilatildeo outro ridicularizando a abstraccedilatildeoo uacuteltimo eacute tatildeo irracional quanto o primeiro eacute inartiacutestico Ambos contamimperar sobre a vida este sabendo encarar as mais baacutesicas necessidadesmediante precauccedilatildeo sagacidade e regularidade aquele como ldquoheroacuteisobre-exaltadordquo passando ao largo de tais necessidades e tomando porreal somente a vida dissimulada em aparecircncia e beleza Onde o homemintuitivo tal como na antiga Greacutecia alguma vez manipula suas armasmais violentamente e mais vitoriosamente do que seu oponente entatildeosob circunstacircncias favoraacuteveis pode tomar forma uma cultura e fundar-seo domiacutenio da arte sobre a vida aquela dissimulaccedilatildeo aquele repuacutedio agraveindigecircncia aquele brilho das intuiccedilotildees metafoacutericas e em linhas geraisaquela imediatez do engano seguem todas as manifestaccedilotildees de tal vidaNem a casa nem a maneira de andar nem a vestimenta nem a jarra deargila evidenciam que foi a necessidade que os inventou tudo se passacomo se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime eum oliacutempico desanuviamento bem como uma espeacutecie de jogo com aseriedade (WLVM sectI paacutegs 50-51)

Em sua reflexatildeo acerca da Greacutecia claacutessica o autor nos apresenta a opccedilatildeo entre a

dependecircncia do mundo conceitual da verdade e a superabundacircncia de vida advinda da

atividade criativa do intelecto Deste modo esta parte do ensaio corresponde ao confronto

entre duas formas de saberes distintas o conhecimento intuitivo e o conhecimento

racional70 Na leitura nietzschiana do problema do conhecimento considerando-se

especialmente o papel das construccedilotildees poeacuteticas na filosofia e na ciecircncia a forccedila criativa

que origina as metaacuteforas aparece como um elemento ineliminaacutevel da constituiccedilatildeo humana

Esta forccedila criativa atuaria tanto no homem da verdade quanto no poeta e criador de mitos

Aqui nos deparamos com a aridez da ciecircncia diante do potencial criativo inerente ao

indiviacuteduo que toma como suporte as metaacuteforas intuitivas Esta imagem do confronto entre

modos de vida antagocircnicos divididos pela sua postura diante dos produtos do intelecto

fecha o ensaio

70 A distinccedilatildeo nietzschiana entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento racional que encontramosfortemente representado no ensaio parte da distinccedilatildeo schopenhaueriana das duas formas de saberes nointerior do princiacutepium individuationis que satildeo apresentados por Crawford em sua obra sobre as origens dateoria nietzschiana da linguagem no capiacutetulo dois acerca de Schopenhauer ldquoO sujeito ou o principiumindividuationis tinha dois modos de conhecimento o conhecimento da percepccedilatildeo (ou conhecimentointuitivo) e o conhecimento abstrato da percepccedilatildeo ou seja conhecimento racional O que pode existir fora doprincipium individuationis a coisa em si natildeo pode nunca ser conhecida (embora posteriormente em minhadiscussatildeo descobriremos que Schopenhauer afirma identificar a essecircncia da coisa em si mesma sob o nomeda vontade) Dentro das representaccedilotildees o sujeito pode apenas conhecer suas percepccedilotildees e o que eleconceitualiza e pensa acerca destas percepccedilotildees como objetos Assim representaccedilotildees significam maisprecisamente ndash objeto para o sujeito Poreacutem o sujeito ele mesmo eacute tambeacutem necessariamente apenas objetopara sua proacutepria consciecircncia que conhecerdquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 24)

131

Enquanto o homem conduzido por conceitos e abstraccedilotildees apenas rechaccedilapor meio destes a infelicidade sem granjear para si mesmo umafelicidade a partir das abstraccedilotildees enquanto ele se esforccedila ao maacuteximo paralibertar-se da dor o homem intuitivo situado no interior de uma culturajaacute colhe de suas intuiccedilotildees aleacutem da defesa contra tudo que eacute mal umailuminaccedilatildeo contiacutenua e caudalosa juacutebilo redenccedilatildeo Por certo sofre commais intensidade quando sofre sim sofre ateacute com mais assiduidadeporque natildeo sabe aprender a partir da experiecircncia voltando a cair sempreno mesmo buraco em que jaacute havia caiacutedo Ele eacute assim tatildeo irracional nosofrimento quanto na felicidade grita alto e natildeo dispotildees de qualquerconsolo Quatildeo diferentemente ali se coloca sob o mesmo reveacutes o homemestoico versado na experiecircncia que se governa atraveacutes de conceitos Eleque de mais a mais soacute busca probidade verdade liberdade frente aosenganos e proteccedilatildeo contra as incursotildees ardilosas executa agora nainfelicidade a obra-prima da dissimulaccedilatildeo tal como aquele na felicidadenatildeo carrega um rosto humano trecircmulo e movente mas uma espeacutecie demaacutescara com digna simetria de traccedilos natildeo grita e tampouco muda suavoz uma vez sequer Se uma vultosa nuvem de chuva desaacutegua sobre eleenrola-se em seu manto e passo a passo caminha lentamente paradebaixo dela (WLVM sectI paacutegs 51-52)

Se levarmos a seacuterio a hipoacutetese de que Nietzsche se utiliza dessa imagem para

expressar uma reflexatildeo acerca de sua eacutepoca percebe-se que esta aparece como sendo

marcada pelo cientificismo e pessimismo inerentes agrave concepccedilatildeo cientiacutefica da realidade O

que ocorre agora quando confrontados o homem das intuiccedilotildees e homem da verdade o

homem racional O homem de ciecircncia aparece como uma forma mais dependente das

construccedilotildees conceituais do que o homem comum na medida em que os conceitos satildeo sua

proacutepria vida Para o homem da verdade a construccedilatildeo do edifiacutecio da ciecircncia eacute sua missatildeo

no mundo Missatildeo aacuterdua sem duacutevida na medida em que ele eacute constantemente assaltado

por ldquoverdadesrdquo muito dispares das verdades cientiacuteficas lhe satildeo inspiradas pela mesma

natureza a que deve toda sua construccedilatildeo teoacuterica

Ao contraacuterio do homem comum que utiliza-se dos conceitos de uma forma

pragmaacutetica como ferramentas para ancoraacute-lo na existecircncia coletiva o homem que se

compraz nas metaacuteforas intuitivas utiliza-se do intelecto com mais liberdade O intelecto

nesses casos atuaria como um artista que em curtos intervalos de liberdade goza seus

dotes artiacutesticos com mais prazer possibilitando a fruiccedilatildeo de se deixar enredar pelas ilusotildees

sempre que estas dissimulaccedilotildees da realidade podem ser desfrutadas sem prejuiacutezo agrave

sociabilidade Nestes casos nessa atividade livre do homem que se deixa levar por sua

natureza poeacutetica natildeo haacute restriccedilotildees para a forccedila criativa do intelecto O uso que faz das

132

mesmas metaacuteforas e metoniacutemias que possibilitam a ciecircncia eacute mais rico porque natildeo eacute

regulado por nenhuma necessidade de sobrevivecircncia da qual liberta-se o intelecto nessa

atividade

Em oposiccedilatildeo agrave atividade segundo a qual o intelecto criava as ilusotildees necessaacuterias agrave

sociabilidade condicionado pela pressatildeo da sobrevivecircncia sob as quais o homem atuava no

sentido de deturpar a realidade ou seja deformaacute-la e moldaacute-la para seu benefiacutecio agora

ele a dissimula a embeleza de maneira conscientemente mentirosa A distinccedilatildeo entre

deturpaccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo aqui eacute assinalada pelo fato de que a consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto difere fundamentalmente de uma consideraccedilatildeo dos produtos do

intelecto que natildeo os compreende como ilusotildees No caso em que o homem intuitivo

reconhece suas criaccedilotildees como algo falso natildeo se trata de mentira como falsificaccedilatildeo mas

como adereccedilo como dissimulaccedilatildeo portanto Assim para o autor do ensaio a mentira da

arte e do mito se diferenciariam da mentira da ciecircncia pela consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto em contraposiccedilatildeo agrave aridez da ciecircncia que toma suas construccedilotildees

como estando relacionadas agrave verdade

O homem da ciecircncia assim confronta uma posiccedilatildeo delicada Na medida em que

mesmo quando as verdades poeacuteticas e mitoloacutegicas confrontam seu conhecimento da

realidade conceitual natildeo poderia renunciar a esta natureza criativa Pois a renuacutencia desta

forccedila plasmadora de metaacuteforas invalidaria o proacuteprio palaacutecio de conceitos que tambeacutem

deve sua existecircncia a ela Assim ele eacute forccedilado a contemplar as verdades criadas como

formas de dissimulaccedilatildeo do real verdades cuja similaridade com as verdades cientiacuteficas

recusa-se a ver pois natildeo pode identificar o aspecto conscientemente enganoso nas

verdades cientiacuteficas Assim acometido por esta influecircncia de seu potencial criativo o

homem da verdade resistiria a tomar a ciecircncia tambeacutem como mito e criaccedilatildeo artiacutestica sem

no entanto conseguir diferenciaacute-las de maneira definitiva Mais fortemente entatildeo este se

apegaria ao mito da ciecircncia

133

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor

O niilismo aparece apenas de forma fugidia entre os fragmentos poacutestumos do

periacuteodo intermediaacuterio da filosofia nietzschiana71 O proacuteprio Nietzsche demonstrou ter

consciecircncia do quatildeo tarde esta concepccedilatildeo problemaacutetica se torna presente em seu

pensamento quando afirma em um fragmento poacutestumo pertencente ao seu uacuteltimo periacuteodo

de produccedilatildeo ldquoSomente tarde tem-se coragem para aquilo que realmente se sabe Entendi

somente haacute pouco que eu fui desde o fundo ateacute aqui niilistardquo (KSA XII 9[123]) Ainda no

mesmo fragmento o filoacutesofo aponta para uma interpretaccedilatildeo de sua compreensatildeo do

niilismo como um pensamento da perda de valor dos valores fundamentais motivo porque

identifica sua proacutepria reflexatildeo como indiacutecio de um pensamento que carecia de metas falta

que foi disfarccedilada pela incriacutevel energia com que teria se dedicado a atingir aquilo que

enxergava como metas

A precariedade de fontes textuais na obra publicada de certa forma constitui uma

limitaccedilatildeo da compreensatildeo de um conceito tatildeo importante cuja interpretaccedilatildeo permanece

sempre como um fragmento do que tal concepccedilatildeo poderia ter significado uma perspectiva

limitada diante das possibilidades a que seu criador poderia tecirc-lo elevado Tamanha a

escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada que acreditamos o que se encontra

entre estas natildeo permitiria uma caracterizaccedilatildeo adequada desta concepccedilatildeo nietzschiana

Ainda mais grande parte do significado do niilismo nietzschiano estaacute ligado agrave dificuldade

71 A primeira apariccedilatildeo registrada do termo ldquoNiilismordquo ocorre em uma correspondecircncia do filoacutesofo de 1881com Heinrich Koumlsenlitz na qual o filoacutesofo escreve ldquoIch bedarf aller Arten Gesundheit mdash es ist mir etwas zutief inrsquos Herz gegangen dieser bdquoherzbrecherische Nihilismusldquo Nun bleiben wir tapfer Treugesinnt F Nldquo Acredibilidade desta carta no entanto eacute questionaacutevel uma vez que teria sido alterada em 1888 Um ensaiopreacutevio de um aforismo que mais tarde seria trabalhado pelo autor aparece em 1882 no qual estaacute registradobdquoDie Freunde des Lebens Nihilismus als kleines Vorspiel Unmoumlglichkeit der Philosophie Wie derBuddhismus unproduktiv und gut macht so wird auch Europa unter seinem Einfluszlig muumlde Die Guten dasist die Ermuumldungldquo (NF FP 1882 2 [4]) Este registro eacute importante porque nele apesar de sua brevidade jaacutese percebem elementos que mais tarde o filoacutesofo relacionaraacute adequadamente com o niilismo Outro registrodo termo naquele ano eacute feito em bdquoAlle Art von wahnsinniger Entartung houmlherer Naturen (zB Nihilismus)kommt an ihn heran Zarathustra 2 mdash bdquodie Lehre der ewigen Wiederkehrldquo mdash zunaumlchst zerdruumlckend fuumlr dieEdleren scheinbar das Mittel sie auszurotten mdash denn die geringeren weniger empfindlichen Naturenbleiben uumlbrigldquo (NF FP 1884 27 [23]) A partir de 1885 o termo torna-se bastante frequente e jaacute seexpressa com alguma clareza em sua determinaccedilatildeo conceitual

134

encontrada pelo filoacutesofo em abordar este tema Ou seja a proacutepria relutacircncia nietzschiana

em abordar tema tatildeo profundo eacute um sinal de que o autor natildeo encontrou em seu periacuteodo

produtivo meio de expressatildeo adequado para tatildeo grande concepccedilatildeo72

Ao julgar como vaacutelido para a discussatildeo do pensamento nietzschiano apenas o que o

filoacutesofo publicou ou seja o que seria representativo de seu pensamento concreto amputa-

se a dificuldade inerente agrave complexidade e variedade de significados de seus escritos

deixa-se de lado o fato de que o proacuteprio Nietzsche parece natildeo ter encontrado uma forma

adequada de tratar alguns dos temas que aborda Assim a proacutepria tentativa de abordar o

niilismo apenas com base nestas raras passagens constituiria uma deturpaccedilatildeo de seu

sentido

Apesar da vaga referecircncia ao niilismo na obra publicada natildeo permitir uma

caracterizaccedilatildeo adequada deste conceito esta referecircncia nos potildee em contato com uma

concepccedilatildeo que julgamos fundamental para a interpretaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo de

conhecimento pelos motivos que seratildeo apresentados nesse capiacutetulo Entatildeo como

proceder Ora se a ausecircncia de referecircncias na obra publicada nesse como em outros temas

da filosofia nietzschiana apresenta-se como limite interpretativo entatildeo concepccedilotildees

fundamentais de seu periacuteodo maduro se perderiam posto que este periacuteodo eacute interrompido

sem aviso preacutevio pela doenccedila de Nietzsche Assim percebemos que tal ausecircncia de

referecircncias pode e deve ser remediada pelo uso dos escritos poacutestumos do filoacutesofo

72 Acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte de sua obra fundamental que natildeo pode vir a lume por contade seu colapso mental ao niilismo Temos notiacutecia dessa obra fundamental em Genealogia da Moral ldquoBastaBasta Deixemos essas curiosidades e complexidades do espiacuterito moderno nas quais haacute tanto para rir quantopara aborrecer-se pois nosso problema o problema da significaccedilatildeo do ideal asceacutetico pode dispensaacute-las ndashque tem ele a ver com o hoje e o ontem Tais coisas seratildeo por mim tratadas em outro contexto com maiorprofundidade e severidade (sob o tiacutetulo de lsquoHistoacuteria do Niilismo europeursquo numa obra que estou preparandoA vontade de poder Ensaio de transvaloraccedilatildeo de todos os valores)rdquo (GMGM III sect27) Como se vecircNietzsche anuncia a pretensatildeo de tratar do tema do niilismo em uma obra futura que foi abandonada emmeio a sua preparaccedilatildeo Apoacutes o abandono desse projeto monumental o filoacutesofo decidiu aproveitar suas notasna composiccedilatildeo de um projeto mais modesto um livro possivelmente intitulado Versuch einer Umwertungaller Werte (Tentativa de Transvaloraccedilatildeo de todos os Valores) tiacutetulo que encontra-se as vezes na posiccedilatildeoprincipal as vezes como subtiacutetulo em diversos rascunhos Esta obra seria composta de quatro livros cadaqual contendo quatro ensaios dos quais apenas O Anticristo veio a ser escrito acompanhado do prefaacutecio Noentanto em um dos primeiros esforccedilos de popularizar a obra nietzschiana Elisabeth Foster-Nietzsche a irmatildedo filoacutesofo solicitou a Peter Gast uma organizaccedilatildeo dos fragmentos dos projetos abandonados que forampublicados sob o tiacutetulo de Der Wille zur Macht Estes fragmentos passaram por vaacuterias ediccedilotildees sempre comprofundos questionamentos acerca da autenticidade das notas da ordem em que foram postos assim como deseu papel no interior da obra nietzschiana Estes questionamentos vem dividindo os comentadores da obranietzschiana desde a publicaccedilatildeo destes textos

135

Por outro lado interpretar o niilismo sem considerar o fato de que aqui estamos

diante de uma hipoacutetese natildeo desenvolvida em sua integridade nos faria perder de vista a

complexidade desta concepccedilatildeo Concepccedilatildeo para a qual como afirmamos o proacuteprio

Nietzsche natildeo julgou encontrar uma forma adequada ou definitiva de abordagem Assim

devemos partir do pressuposto de que dizer o que Nietzsche pretendia expressar quando se

referia ao niilismo significa muitas vezes apenas isso interpretar o que ele poderia querer

dizer mas natildeo disse Nesse sentido o que aqui se pretende como uma correta compreensatildeo

desse importante conceito ao qual acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte daquela

que considerou sua obra fundamental73 depende fortemente da interpretaccedilatildeo de seus

fragmentos poacutestumos

Acreditamos que este uso quando pautado por uma reflexatildeo criacutetica acerca da

limitaccedilatildeo de tais textos oferece uma leitura mais aproximada do pensamento nietzschiano

do que a mera exclusatildeo do tema por falta de referecircncias poderia oferecer Esta reflexatildeo

criacutetica por sua vez deve pautar-se pela consciecircncia de que apesar de nos propormos a

amenizar a escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada recorrendo aos

fragmentos poacutestumos estamos cientes de que aqui se trata de uma concepccedilatildeo inacabada

que eacute apresentada atraveacutes de textos que o autor natildeo julgou prontos para a publicaccedilatildeo

Mas por que nos debruccedilarmos sobre o niilismo quando o objeto de nosso estudo eacute

o perspectivismo nietzschiano Acreditamos que uma tentativa de interpretaccedilatildeo do niilismo

nietzschiano apesar de natildeo poder reclamar para si o status de interpretaccedilatildeo correta

sobretudo por conta da multiplicidade de sentidos possiacuteveis para o termo niilismo na obra

nietzschiana tem uma vantagem fundamental em nossa leitura A proacutepria incerteza acerca

desse tema se mostra como objeto de experimentaccedilatildeo por meio da qual seria possiacutevel ler

os escritos nietzschianos como a manifestaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo afirmativa do niilismo

que por sua vez se relacionaria com uma concepccedilatildeo afirmativa do perspectivismo No

73 Obra que como foi mencionado na nota anterior natildeo pode vir a lume por conta de seu colapso doadoecimento de Nietzsche Poreacutem entre os poacutestumos de 1888 constam diversos planos para A vontade dePotecircncia tentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valores que preenchem diversas anotaccedilotildees de Nietzsche eque levam o niilismo seriamente em consideraccedilatildeo notadamente em (NFFP 1887 9[127]) e (NFFP 1885-1887 9[164]) Em (NFFP 1887 9[127]) Nietzsche faz constar a seguinte ordem de capiacutetulos em um esboccedilopara a obra em questatildeo O advento do niilismo que se dividiria em A loacutegica do niilismo A autosuperaccedilatildeo doniilismo e Superadores e Superados No segundo fragmento mencionado sob o tiacutetulo A vontade de poder esubtiacutetulo Tentativa de uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Nietzsche faz constar uma ordem de livrossendo o primeiro intitulado O niilismo como consequecircncia dos valores supremos existentes ateacute agora osegundo intitulado Criacutetica dos valores supremos existentes ateacute agora o terceiro A autosuperaccedilatildeo do niilismo eo quarto Os superadores e os superados

136

mais se reconhecemos no tratamento nietzschiano de temas como a verdade e o

conhecimento a permanecircncia de um questionamento acerca do valor destas concepccedilotildees

natural que nos questionemos acerca das consequecircncias teoacutericas da perda de valor destas

segundo a loacutegica proacutepria do niilismo descrita por Nietzsche

Na uacuteltima fase de seu pensamento Nietzsche entende os valores morais associados

a uma concepccedilatildeo moral de ciecircncia e conhecimento como valores de decadecircncia Segundo

esta compreensatildeo o filoacutesofo passa a interpretar os valores morais como formas negativas

em relaccedilatildeo agrave vida Este julgamento do valor negativo destas concepccedilotildees em relaccedilatildeo agrave vida

se daacute no contexto de uma interpretaccedilatildeo em que a vida mesma eacute percebida como uacuteltima

forma de se instituir valores

A reflexatildeo nietzschiana neste ponto se volta contra tudo o que a tradiccedilatildeo entenderia

como sendo o homem e sua missatildeo sua finalidade Aqui a racionalidade associada pelo

autor agraves condiccedilotildees de formaccedilatildeo e ascensatildeo dos valores da deacutecadence74 eacute posta em cheque

pela consideraccedilatildeo do homem como ser de criaccedilatildeo Para o filoacutesofo se o conhecimento ainda

se reconhece como atividade que define o humano conhecer natildeo eacute mais entendido como a

procura por explicaccedilotildees mas como o processo de criaccedilatildeo de valor Estes valores criados

pelo homem em sua atividade interpretativa seriam os fundamentos natildeo apenas do

conhecimento mas na medida em que constituem para o homem sua realidade do proacuteprio

homem Neste contexto aparecem as tentativas nietzschianas de vincular ao conhecimento

agrave ousadia da criaccedilatildeo agrave coragem de empreender experimentos com o pensamento com o

proacuteprio niilismo arriscando tentativas de superaccedilatildeo de toda negatividade

Mediante esta interpretaccedilatildeo nos deparamos com uma leitura do perspectivismo

nietzschiano em que este deixa de ser interpretado como concepccedilatildeo puramente criacutetica

tornando-se uma concepccedilatildeo criativa Ou seja enquanto expressatildeo afirmativa que surge de

uma profunda criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento o perspectivismo

nietzschiano relaciona-se com uma forma afirmativa de niilismo tornando-se tambeacutem uma

forma afirmativa de perspectivismo

74 Em um fragmento poacutestumo da primavera de 1888 Nietzsche diraacute ldquoO niilismo natildeo eacute causa mas apenas aloacutegica da deacutecadencerdquo (NFFP XII 14 [86])

137

31 O niilismo como reflexo da crise dos valores morais

Tratar do tema do niilismo nietzschiano implica em reconhecer como uma

dificuldade inicial o fato desta concepccedilatildeo pertencer de forma necessaacuteria aos planos

filosoacuteficos interrompidos por Nietzsche De partida eacute necessaacuterio reconhecer que com base

na escassa base textual disponiacutevel natildeo se pode pretender afirmar categoricamente o que o

autor pretendia dizer quando utilizava a expressatildeo niilismo75 Se a escassez de referecircncias

na obra publicada do autor pode lanccedilar duacutevidas acerca da importacircncia desta concepccedilatildeo

para a compreensatildeo do pensamento nietzschiano esta duacutevida eacute amenizada pelo rico

material produzido pelos comentaacuterios da obra nietzschiana76 Do mesmo modo o peso que

o autor atribui ao conceito em questatildeo quando a ele se refere em sua obra parece constituir

evidecircncia da grande importacircncia dessa concepccedilatildeo

As vagas apariccedilotildees do niilismo mesmo nos escritos poacutestumos refletem uma ideia

que retorna com frequecircncia na mente do filoacutesofo mas para a qual este natildeo parece encontrar

um modo de expressatildeo que decirc conta de sua grandeza Entre estes escritos essa apariccedilatildeo se

daacute com frequecircncia na forma de uma previsatildeo o anuacutencio de um grande perigo para a

humanidade Ao niilismo estaria vinculado um processo de aprofundamento para a

humanidade uma linha que apoacutes cruzada mudaria completamente a realidade e o proacuteprio

ser humano Assim por exemplo o niilismo aparece em um fragmento de marccedilo de 1887

carregado de fatalidade e de prenuacutencio de cataacutestrofe

Grandes coisas exigem que delas nos calemos ou que delas falemos comgrandeza grandeza a saber cinicamente e com inocecircncia O que eunarro eacute a histoacuteria dos dois proacuteximos seacuteculos Descrevo o que vem o que

75 A compreensatildeo nietzschiana do niilismo eacute profundamente marcada pela literatura russa de onde a maioriados comentaristas acredita que o autor teria entrado em contato com o termo Sabe-se que Dostoieacutevski foium autor importante para Nietzsche Um bdquoPsychologeldquo segundo a expressatildeo do fiacuteloacutesofo (GDCI I sect46) aquem Nietzsche leu e costumava recomendar a leitura (Vide correspondecircncia do filoacutesofo notadamenteBVN-1887798 BVN-1887800 BVN-1887812 BVN-1887814 BVN-1887845 BVN-18881130 BVN-18881134 BVN-18881151 BVN-18881160 Ver tambeacutem (WA CW Epilog) (AC AC I sect31)) Noentanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que o utiliza para caracterizar um de seuspersonagens em seu romance Pais e Filhos 76 De acordo com Kaulbach Nietzsche foi o responsaacutevel por abrir os olhos de sua geraccedilatildeo (e das vindouras)para a experiecircncia limite que atravessa o homem moderno ndash o niilismo ldquoEsta experiecircncia consiste nadesilusatildeo da feacute do povo na tradiccedilatildeo platocircnico-cristatilde de um lsquomundo realrsquo na razatildeo do Ser fundada no Sercujo sentido pode ser descoberto pelo homem []rdquo (KAULBACH 1990 p 210)

138

natildeo poderaacute deixar de vir o advento do niilismo Esta histoacuteria jaacute pode sercontada pois eacute a necessidade mesma que estaacute aqui em obra Este futurofala jaacute atraveacutes de cem signos este destino anuncia-se em toda parte paraesta muacutesica do futuro todos os ouvidos jaacute estatildeo atentos (NFFP 188711[411])

Como se vecirc no fragmento em questatildeo Nietzsche considera a aproximaccedilatildeo do

niilismo mais profundo como uma certeza como algo que se anuncia jaacute por meio de ldquocem

signosrdquo Embora seja apresentado como risco a este natildeo eacute vinculada nenhuma forma de

resistecircncia nenhuma possibilidade de evitaacute-lo posto que em seu progresso seria a proacutepria

necessidade quem opera O mesmo tom premonitoacuterio o anuacutencio da aproximaccedilatildeo de uma

grande crise aparece por vezes na obra publicada No proacutelogo de A Genealogia da Moral

por exemplo o filoacutesofo pensa o niilismo como uma ameaccedila iminente como o grande

perigo que se acerca da humanidade

Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim umadesconfianccedila cada vez mais radical um ceticismo cada vez maisprofundo Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para ahumanidade sua mais sublime seduccedilatildeo e tentaccedilatildeo ndash a quecirc ao nada ndash precisamente nisso enxerguei o comeccedilo do fim o ponto morto o cansaccediloque olha para traacutes a vontade que se volta contra a vida a uacuteltima doenccedilaanunciando-se terna e melancoacutelica eu compreendi a moral da compaixatildeocada vez mais se alastrando capturando e tornando doentes ateacute mesmo osfiloacutesofos como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietantecultura europeia como o seu caminho sinuoso em direccedilatildeo a um novobudismo a um budismo europeu a um ndash niilismohellip (GMGM proacutelogosect05)

Como uma forma europeia de budismo o que aqui significa como uma forma

europeizada de negaccedilatildeo da realidade o niilismo se expressaria como a manifestaccedilatildeo de um

profundo cansaccedilo contra o qual Nietzsche se opunha quase que de forma instintiva Do

mesmo modo o filoacutesofo via como avanccedilo da ameaccedila niilista a expansatildeo da moral da

compaixatildeo que alcanccedilava ldquoateacute mesmo os filoacutesofosrdquo como o grande sintoma que apenas

ele pensava haver identificado77 Natildeo haacute duacutevidas de que aqui o filoacutesofo identifica no

77 Nietzsche pensa a moral da compaixatildeo como uma novidade no acircmbito da moral que para o autor semprehavia sido estabelecida com base na negaccedilatildeo dos valores que tornam uma forma de vida possiacutevel quepossibilitam seu crescimento e expansatildeo Assim na continuaccedilatildeo da passagem citada Nietzsche identifica emoutros filoacutesofos uma certa desconfianccedila com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo como virtude ldquoPois essa modernapreferecircncia e superestimaccedilatildeo da compaixatildeo por parte dos filoacutesofos eacute algo novo justamente sobre o natildeo-valor

139

niilismo o grande adversaacuterio de sua filosofia assim como o fundamento da sua criacutetica agraves

concepccedilotildees filosoacuteficas que lhe cercam

Este posicionamento teoacuterico manifesto na maioria dos casos na forma de criacutetica agraves

concepccedilotildees estabelecidas foi entendido desde entatildeo como um ceticismo crescente que

foi posteriormente associado de forma definitiva com seu perspectivismo No entanto o

aparente ceticismo por traacutes de seu posicionamento seria apenas a manifestaccedilatildeo de um

criticismo crescente em relaccedilatildeo aos valores que fundamentam as ciecircncias e posiccedilotildees

filosoacuteficas dogmaacuteticas Natildeo seria esse ceticismo a renuacutencia em descobrir novas verdades o

que seria contraacuterio agrave concepccedilatildeo mesma de conhecimento em Nietzsche mas a perda de

crenccedila nas concepccedilotildees filosoacuteficas O ceticismo eacute usado aqui como manifestaccedilatildeo

fundamental de repuacutedio a tudo que era tido haacute eacutepoca de Nietzsche como ciecircncia e como

sabedoria Natildeo agrave sabedoria e a ciecircncia elas mesmas no entanto

O ceticismo de suas concepccedilotildees de juventude nos diz Nietzsche no comeccedilo do

proacutelogo teria crescido em oposiccedilatildeo a ldquoos instintos de compaixatildeo abnegaccedilatildeo sacrifiacuteciordquo os

quais o filoacutesofo entende que Schopenhauer teria idolatrado acima de todas as coisas

ldquodourado divinizado idealizadordquo (GMGM proacutelogo sect5) Assim o aparente ceticismo da

posiccedilatildeo nietzschiana natildeo se poderia confundir com uma renuacutencia com relaccedilatildeo a toda forma

de verdade Mas apenas como uma suspeita que se estende a todas as avaliaccedilotildees morais

esteacuteticas e filosoacuteficas de sua eacutepoca tomadas em sua leitura como expressotildees do niilismo

O primeiro valor que se torna objeto de criacutetica aqui a compaixatildeo aparece como

elemento constitutivo de uma moral que seduz para o nada e que eacute reproduzida pela

filosofia como expressatildeo de uma moralidade superior Ao identificar o niilismo como uma

tendecircncia para desvalorizar valores essa concepccedilatildeo desempenha um papel fundamental na

criacutetica nietzschiana da moralidade Criacutetica segundo a qual o niilismo que aparece para o

autor da genealogia como uma forma europeia de budismo eacute interpretada como uma

tendecircncia agrave supervalorizaccedilatildeo do nada camuflada na forma de uma adoraccedilatildeo da apoacutes a

morte

da compaixatildeo os filoacutesofos estavam ateacute agora de acordo Menciono apenas Platatildeo Spinoza La Rochefoucaulde Kant quatro espiacuteritos tatildeo diversos quanto possiacutevel um do outro mas unacircnimes em um ponto na poucaestima da compaixatildeordquo (GMGM proacutelogo sect05)

140

Por sua vez ao relacionarmos o que eacute dito aqui com o que o filoacutesofo apresenta em

seu Anticristo percebe-se uma certa continuidade Neste sentido a compaixatildeo aparece

naquela obra como princiacutepio moral que se propaga a outras esferas da atividade humana A

compaixatildeo teria se tornado assim elemento fundamental para a criacutetica dos valores morais

cristatildeos na medida em que ela eacute percebida como algo que expande sua zona de alcance a

todas as concepccedilotildees teoacutericas que se deixaram infectar pelo instinto teoloacutegico Motivo pelo

qual em O Anticristo Nietzsche afirma enxergar o instinto teoloacutegico em toda parte

(ACAC I sect09)

Por outro lado na medida em que a verdade aparece em sua leitura como um valor

fundado em uma concepccedilatildeo moral desde que a veracidade aparece aqui como

reverberaccedilatildeo da moralidade como expressatildeo mesma do desenvolvimento de uma forma de

moralidade as questotildees referentes agrave sua compreensatildeo da verdade e do conhecimento

comeccedilam a se relacionar com a dinacircmica proacutepria do niilismo Nessa leitura a veracidade a

exigecircncia da vontade de verdade que aparece aqui como consequecircncia da moralidade

ocasiona que a proacutepria interpretaccedilatildeo moral do mundo passa a ser vista como falsa ou seja

que os valores que suportam essa interpretaccedilatildeo perdem seus valores Como diz Araldi

Nietzsche afirma num fragmento do outono de 1887 que aldquoPotencializaccedilatildeo do valor do homemrdquo foi ateacute entatildeo obra dos meiosdisciplinadores da moral Entretanto entre as forccedilas engendradas pelamoral estaacute a veracidade que por fim descobre a falsidade subjacente agraveinterpretaccedilatildeo moral do mundo Eacute a proacutepria moral em suas raiacutezes imoraise natildeo-verdadeiras que deve desvendar a inverdade do processo O valorda moral poreacutem natildeo estaacute em seu grau de veracidade mas em possibilitara vida em ser antiacutedoto ao niilismo (Cf XII 5 [70]) (ARALDI 1998Paacutegs 78)

Ao pensar o valor da moral como sendo fundamentando na categoria de veracidade

o filoacutesofo abre a possibilidade de se pensar a necessidade de superaccedilatildeo do niilismo a partir

de seus valores como exigecircncia para a proposiccedilatildeo de uma nova forma de valoraccedilatildeo Nesse

processo a consciecircncia da falta de sentido no mundo da verdade na verdade mesma

desempenha papel fundamental Por isso entendemos que o niilismo nietzschiano

relaciona-se com o seu perspectivismo que tem na falta de sentido por traacutes da criaccedilatildeo de

um mundo da verdade assim como da distinccedilatildeo deste de um mundo das aparecircncias um

141

aspecto fundamental Do mesmo modo a identificaccedilatildeo dessa tendecircncia como aquilo que

alimentava sua duacutevida seu ceticismo indica que sua proacutepria concepccedilatildeo negativa em

relaccedilatildeo agrave verdade natildeo eacute isenta de um reconhecimento do niilismo como adversaacuterio

32 Os niilismos nietzschianos

Em uma das primeiras apariccedilotildees do termo entre os escritos poacutestumos nietzschianos

Nietzsche jaacute esboccedila uma reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da evoluccedilatildeo de uma

tendecircncia segundo a qual o niilismo eacute concebido ldquocomo um pequeno preluacutediordquo (NFFP

1882 2 [4]) que ldquoComo o budismo torna improdutivo e bomrdquo e que ldquoa Europa tambeacutem

estaacute sob sua influecircncia cansadardquo (NFFP 1882 2[4]) Em sua leitura o niilismo seria natildeo

um caso de exceccedilatildeo mas ldquoum estado normalrdquo (NFFP 1887 9[35]) um ldquoestado

intermediaacuterio patoloacutegicordquo (NFFP 1887 9 [35]) ou seja uma etapa decrescente de forccedila

no desenvolvimento da cultura de um povo na medida em que se generaliza a conclusatildeo

de que ldquonatildeo haacute nenhum sentido absolutordquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoas forccedilas

produtivas natildeo satildeo ainda suficientemente fortesrdquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoa

deacutecadenceacute ainda vacila e natildeo foi inventado ainda seus remeacutediosrdquo (NFFP 1887 9 [35])

Como a consciecircncia de uma ldquofalta de metardquo (NFFP 1887 9 [35]) como a

ausecircncia de resposta para a pergunta pelo ldquopor quecircrdquo o niilismo representa para o filoacutesofo

que ldquoos valores supremos se desvalorizamrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o que para Nietzsche

torna o niilismo algo ambiacuteguo (NFFP 1887 9 [35]) na medida em que a consciecircncia da

desvalorizaccedilatildeo dos valores supremos poderia implicar em duas atitudes uma permanecircncia

nos valores dados apesar da consciecircncia de sua falta de sentido ou a criaccedilatildeo de novos

valores Estas duas atitudes por sua vez enquanto condicionadas pela forccedila ou cansaccedilo do

niilista que se depara com os valores dados seriam aspectos fundamentais de duas formas

de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo Poreacutem mais do que duas formas

desconectadas de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo significariam dois estaacutegios

na dinacircmica proacutepria do niilismo que vai de seu surgimento a sua radicalizaccedilatildeo78 Posto

78 Araldi pensa os diferentes modos de apresentaccedilatildeo do niilismo na obra tardia o niilismo passivo oniilismo ativo e o niilismo completo como representaccedilotildees de diferentes momentos no processo dedesenvolvimento do niilismo Assim o comentador afirma ldquoEacute importante ressaltar entatildeo que o foco centraldas diversas caracterizaccedilotildees elaboradas na obra tardia estaacute no caraacuteter de processo do niilismo o qual

142

que para Nietzsche as diversas formas que o niilismo assume em sua obra mais do que

uma apresentaccedilatildeo de suas variaccedilotildees cumpririam a funccedilatildeo de determinar uma loacutegica de

superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo

Assim o filoacutesofo representa a possibilidade do niilismo se apresentar como ldquosigno

do poder ascendente do espiacuteritordquo o que nesta leitura significa que a atitude diante dos

valores poderia condicionar um niilismo ativo (NFFP 1887 9 [35]) Dessa forma ao

passo que ldquoa forccedila do espiacuterito poderia ter crescido tanto que as metas que tinha ateacute o

momento (lsquoconvicccedilotildeesrsquo artigos de feacute) lhe satildeo inadequadasrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o

niilismo pode tornar-se o primeiro estaacutegio na produccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do que eacute dado como insuficiente

Nesse sentido para Nietzsche mais do que uma convicccedilatildeo motivada por um

conhecimento superior ldquouma crenccedila de fato expressa em geral a coerccedilatildeo de condiccedilotildees de

existecircncia uma submissatildeo agrave autoridade de situaccedilotildees em que um ser prospera cresce

ganha poderrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o niilismo ativo representaria uma consciecircncia

ascendente do oder que rejeita o que eacute dado como sendo insuficiente Ou seja o autor

entende que todo ser prospera cresce e ganha poder de acordo com as condiccedilotildees que lhe

satildeo dadas e aceitas como crenccedilas Por sua vez a consciecircncia da vacuidade de sentido

dessas crenccedilas seria o niilismo mas a atividade de criaccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia dessa vacuidade de sentido seria o que determinaria uma forma ativa de

niilismo

Por sua vez o niilismo passivo o estaacutegio oposto ao niilismo ativo eacute caracterizado

por Nietzsche como ldquodecreacutescimo e retrocesso do poder do espiacuteritordquo como signo de

debilidade como sinal de esgotamento e cansaccedilo da vontade De tal forma que modo que

ldquoas metas e os valores existentes ateacute o momento satildeo inadequados e natildeo encontram creacuteditordquo

(NFFP 1887 9 [35]) Nesse sentido como sintoma de enfraquecimento da vontade e

cansaccedilo que impede a criaccedilatildeo de novos valores o niilismo passivo seria ainda signo de

ldquodissolvecircncia da proacutepria siacutentese entre valores e metasrdquo sobre as quais descansa toda cultura

forte (NFFP 1887 9 [35]) Nesse estado de cansaccedilo e perda de vivacidade da cultura

tudo o que eacute reconfortante tudo que anestesia passa para primeiro plano torna-se em

comporta uma gecircnese um transcurso e um acabamentordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 84)

143

valor por sob diferentes disfarces tratem-se de disfarces morais religiosos poliacuteticos ou

esteacuteticos

O niilismo passivo seria marcado como ldquoum signo de uma forccedila insuficiente para

apresentar-se novamente de um modo produtivo uma meta um lsquoporquecircrsquo uma crenccedilardquo

(NFFP 1887 9 [35]) Este seria tambeacutem visto pelo filoacutesofo como um ldquoniilismo cansado

que jaacute natildeo atacardquo (NFFP 1887 9 [35]) e cuja forma mais famosa e uma das mais

presentes em seus comentaacuterios do niilismo passivo seria o budism79 De fato tanto o

budismo quanto o cristianismo aparecem na obra nietzschiana como expressotildees de uma

vontade cansada portanto como manifestaccedilotildees de uma forma negativa de niilismo

A diferenccedila aqui seria de grau desde que o cristianismo ao rejeitar o valor da vida

em sua corporeidade coloca o valor da vida em um aleacutem Por meio desta transposiccedilatildeo do

valor do terreno da vida e sua corporeidade para o terreno de uma existecircncia ideal o

cristianismo operaria uma espeacutecie de promoccedilatildeo da extinccedilatildeo da vida agrave categoria de ideal O

budismo por outro lado seria compreendido por Nietzsche como uma forma radical de

niilismo passivo que reconhece a falta de sentido e coloca seu empenho no

estabelecimento do nirvana ou seja no reino do nada absoluto Assim Claudemir Araldi

enfoca esta distinccedilatildeo fundamental quando chama a atenccedilatildeo para o fato do niilismo

enquanto uma forma europeia de budismo natildeo compartilhar ainda da radicalidade

daquele seu correlato indiano

O cristianismo procura retardar o niilismo da accedilatildeo (der Nihilismus derThat) forma consequente de niilismo que encoraja para a morte eautoaniquilamento atraveacutes da indicaccedilatildeo de uma falsa sobrevivecircncia paraaleacutem desse mundo Em vez do autoaniquilamento o cristianismo propotildeeuma vida duradoura mas fraca e empobrecida (XIII 14 (9)) O budismorepresenta uma forma mais radical de niilismo pois nele haacute a dissoluccedilatildeoda vontade do indiviacuteduo no nada no nirvana ldquoO pessimismo europeuestaacute ainda em seu iniacutecio ele natildeo tem ainda aquela descomunal fixideznostaacutelgica do olhar na qual se espelha o nada como ele teve outrora naIacutendiardquo (XI 25 (16)) (ARALDI 1998 Paacutegs 86-87)

79 A compreensatildeo do niilismo como uma forma de budismo europeu estaacute presente no proacutelogo de AGenealogia da Moral onde este eacute pensado como modelo de uma forma de niilismo passivo e portantopoderia ser considerado uma forma de budismo europeu

144

Por outro lado em O Anticristo Nietzsche pensa a relaccedilatildeo entre o budismo e o

cristianismo como expressatildeo de uma disputa entre uma forma positiva e uma forma

negativa de religiatildeo da decadecircncia Ainda como religiotildees da decadecircncia ambas se

distinguiriam pelo niacutevel de realismo do budismo que natildeo apregoa a necessidade de um

outro mundo mas restringe suas praacuteticas agraves esferas da dieteacutetica e da higiene Aqui como

manifestaccedilatildeo mais realista de uma forma decadente o budismo eacute considerado por

Nietzsche como uma forma superior de se encarar o problema da falta de sentido Pois

para o filoacutesofo o budismo representaria uma forma de racionalizaccedilatildeo do problema da falta

de sentido da realidade muito a frente do cristianismo

Com minha condenaccedilatildeo do cristianismo natildeo quero ser injusto com umareligiatildeo a ele aparentada que pelo nuacutemero de seguidores ateacute o supera obudismo As duas satildeo proacuteximas por serem religiotildees niilistas ndash religiotildees dedecadence ndash as duas de diferenciam de modo bastante notaacutevel O criacuteticodo cristianismo tem uma diacutevida de gratidatildeo aos eruditos hindus pelo fatode elas poderem se comparadas ndash O budismo eacute mil vezes mais realistado que o cristianismo ndash ele carrega a heranccedila da colocaccedilatildeo fria e objetivados problemas ele vem apoacutes seacuteculos de contiacutenuo movimento filosoacutefico oconceito de ldquodeusrdquo jaacute foi abolido quando ele surge O budismo eacute a uacutenicareligiatildeo realmente positivista que a histoacuteria tem a nos mostrar ateacute mesmoem sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo ndash )(ACAC I sect20)

Com base nessa leitura podemos ver que a distinccedilatildeo fundamental entre o

cristianismo e o budismo se resume a uma diferenccedila de graus de niacuteveis mas natildeo em sua

natureza Ambas compartilham na especulaccedilatildeo nietzschiana uma classificaccedilatildeo comum

enquanto formas passivas de niilismo Como tais sua expansatildeo significaria para o filoacutesofo

um risco para a cultura Assim em A Gaia Ciecircncia Nietzsche relaciona a propagaccedilatildeo do

budismo e do cristianismo a um adoecimento da vontade a um decreacutescimo no iacutempeto de

comando que levou os homens a procurar por uma autoridade forte fora do mundo

A feacute sempre eacute mais desejada mais urgentemente necessitada quandofalta a vontade pois a vontade eacute enquanto afeto de comando o decisivoemblema da soberania e da forccedila Ou seja quanto menos sabe algueacutemcomandar tanto mais anseia por algueacutem que comande que comandeseveramente mdashpor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um

145

confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteria De onde se concluiriatalvez que as duas religiotildees mundiais o budismo e o cristianismo podemdever sua origem e mais ainda a suacutebita propagaccedilatildeo a um enormeadoecimento da vontade E assim foi na verdade ambas as religiotildeesdepararam com a exigecircncia de um ldquotu devesrdquo alccedilada ateacute o absurdo peloadoecimento da vontade e indo ateacute o desespero ambas ensinaram ofanatismo em eacutepocas de afrouxamento da vontade com issoproporcionando a muitos um apoio uma nova possibilidade de quererum deleite no querer Pois o fanatismo eacute a uacutenica ldquoforccedila de vontaderdquo quetambeacutem os fracos e inseguros podem ser levados a ter como uma espeacuteciede hipnotizaccedilatildeo de todo o sistema sensoacuterio-intelectual em prol daabundante nutriccedilatildeo (hipertrofia) de um uacutenico ponto de vista e sentimentoque passa a predominar mdash o cristatildeo o denomina sua feacute Quando umapessoa chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandadatorna-se ldquocrenterdquo inversamente pode-se imaginar um prazer e forccedila naautodeterminaccedilatildeo uma liberdade da vontade em que um espiacuterito sedespede de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em seequilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidades e em danccedilar ateacute mesmo agravebeira de abismos Um tal espiacuterito seria o espiacuterito livre por excelecircncia(FWGC V sect347)

Nietzsche pensa a propagaccedilatildeo do cristianismo e do budismo como sintoma de uma

forma de adoecimento da vontade que acaba por condicionar a busca pelo comando em

esferas exteriores agrave esfera do acontecer humano que se mostra preponderantemente sob o

domiacutenio dos instintos fracos Dessa forma jaacute no periacuteodo de gestaccedilatildeo de sua obra

intermediaacuteria niilismo e budismo mostram-se associados Mais do que as religiotildees da

decadecircncia o niilismo passivo determina o avanccedilo de uma forma de pensar uma doutrina

acerca da verdade e do conhecimento contra a qual como vemos no fim da passagem

citada se voltariam os espiacuteritos livres

Em oposiccedilatildeo agrave forma de pensar condicionada pela necessidade de crenccedilas como

substitutos para o iacutempeto de comando os espiacuteritos livres seriam marcados pela sua

liberdade em relaccedilatildeo a toda forma de determinaccedilatildeo dogmaacutetica toda forma de verdade

dada Nesse sentido o espiacuterito livre ldquopor excelecircnciardquo seria aquele que obteacutem prazer ldquona

autodeterminaccedilatildeordquo na ldquoliberdade da vontaderdquo e no despedir-se de toda crenccedila Seria

justamente este abandono de todo ldquodesejo de certezardquo e abandono de si ldquosobre tecircnues

cordas e possibilidadesrdquo que caracterizaria a forma de conhecer proacutepria aos espiacuterito livre

146

Assim na necessidade de definir este estilo de filosofar a ele poderia ser comparado uma

danccedila a beira do abismo a brincadeira com o perigoso propor novas verdades80

Retomando poreacutem o problema da distinccedilatildeo entre as diferentes formas de niilismo

temos que o niilismo passivo seria marcado pela consciecircncia de uma falta de sentido

estrutural dos valores que no entanto natildeo subordina a produccedilatildeo de novos valores por se

dar em uma natureza cansada Aqui aparece o niilista como o sujeito dessa vontade

cansada como aquele que nega o mundo dos fenocircmenos mas que natildeo consegue criar um

mundo ideal e que portanto transporta para outra esfera o mundo das criaccedilotildees ideias

A criacutetica nietzschiana ao niilismo eacute caracterizada pela criacutetica agrave rejeiccedilatildeo do mundo

existente com base na defesa da necessidade de um mundo melhor inexistente uma

realidade idealizada Criacutetica que se sustentaria com base na negaccedilatildeo da realidade

imperfeita que eacute percebida pelo filoacutesofo como sendo nossa criaccedilatildeo Assim em uma

80 Aqui poreacutem torna-se necessaacuterio distinguir aquela que Nietzsche toma como a atitude filosoacutefica porexcelecircncia e a atitude ceacutetica A descriccedilatildeo do espiacuterito livre como aquele que se despede das certezas natildeo seconfunde com a defesa de uma forma ceacutetica de consideraccedilatildeo do conhecimento Ou seja natildeo faz parte denossa tese a reduccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzscheana de conhecimento a uma forma de ceticismo O ceticismo naverdade recorrentemente aparece entre os poacutestumos como representante de um tipo de niilismo passivo oque diga-se de passagem serve de referecircncia para distinguir o Perspectivismo nietzschano de uma forma deceticismo Em sua criacutetica ao ceticismo antigo nos poacutestumos Nietzsche chega a chamar Pirro de ldquoum budistagregordquo (NFFP 1888 14[85]) e retorna essa opiniatildeo quando diz que ldquoO filltoacutesofogt antigo ltagt partir deSoacutecrates tem os estigmas da decadecircncia moralismo e felicidaderdquo e que Pirro havia alcanccedilado o pontoculminante desta tendecircncia ldquoalcanccedilando o niacutevel do budismordquo (NFFP 1888 14[87]) Leia-se especialmenteo fragmento (NFFP 1888 14[99]) em que Nietzsche retorna a chamar Pirro de budista e oferece umacomparaccedilatildeo deste com Epicuro como tipos caracteriacutesticos da deacutecadeacutence entre os gregos Neste fragmentodiz Nietzsche sob o tiacutetulo de filosofia como decadecircncia ldquoFilosofia como deacutecadence ndash O cansaccedilo saacutebioPirro O budista Comparaccedilatildeo com Epicuro Pirro Viver entre os humildes humildemente Sem orgulhoViver de maneira ordinaacuteria honrar e crer o que todos creem Estar em guarda frente a ciecircncia e o espiacuteritoinclusive frente a tudo que inflahellip Simplesmente indescritivelmente paciente despreocupado suave (hellip)Um budista para Greacutecia crescido em meio ao tumulto das escolas vindo tarde fatigado o protesto docansado ante o zelo dos dialeacuteticos a natildeo crenccedila do cansado na importacircncia de todas as coisas Viu aAlexandre viu aos penitentes hindus Em tais indiviacuteduos tardios e refinados tudo o que eacute humilde tudo o queeacute pobre tudo o que eacute idiota causa efeitos inclusive sedutores Isto atua como um narcoacutetico produz distensatildeoPascal Por outro lado em meio do gentio e confusos com qualquer estes sentem um pouco de calornecessitam calor esses indiviacuteduos cansados hellip (hellip) Pirro igualmente a Epicuro duas formas da deacutecadencegrega afins no oacutedio contra a dialeacutetica e contra todas as virtudes histriocircnicas [schauspielerische] ndash A estasduas coisas entatildeo se chamou filosofia ndash intencionalmente eacute o humilde o que estes amam escolhendo paraisto os nomes habituais e inclusive depreciados representando um estado no qual natildeo se estaacute nem doentenem satildeo nem vivo nem mortohellip Epicuro mais ingecircnuo mais idiacutelico mais agradecido mais viajado commais experiecircncias vividas mais niilistahellip Sua vida foi um protesto contra a grande teoria da identidade(felicidade = virtude = conhecimento) A vida reta natildeo se encontra mediante a ciecircncia a sabedoria natildeo fazldquosaacutebiosrdquohellip (NFFP 1888 14[99]) Com o que fica dito a guisa de justificaccedilatildeo do uso ocasional do termoldquoceticismordquo nesta tese natildeo se depreende a tentativa de definiccedilatildeo do ceticismo na filosofia nietzschianaNossa explicaccedilatildeo natildeo eacute nem poderia ser exaustiva Quando se queira aprofundar sobre este tema natildeopoderiacuteamos recomendar nada melhor do que a tese de doutoramento de Rogeacuterio Lopes que serviu deinspiraccedilatildeo para muitas das ideias discutidas aqui e que se encontra na bibliografia

147

passagem bastante conhecida pelos autores que trabalham o tema do niilismo Nietzsche

pensa o niilista como ldquoo homem que a respeito do mundo tal como eacute julga que natildeo

deveria ser e a respeito do mundo que deveria ser julga que natildeo existerdquo (NFFP 1887

9[60]) Nesta leitura ao negar o mundo o niilista estaria negando o proacuteprio ser que se

apresenta na forma de um ldquoagir sofrer querer sentirrdquo que aparece para ele como natildeo

tendo sentido O niilista assim se caracterizaria pelo pathos do ldquoem vatildeordquo que percebe

como uma inconsequecircncia (NFFP 1887 9[60])

Em outros termos o niilista atua por forccedila de uma forte rejeiccedilatildeo do que cria da

realidade condicionada como sua criaccedilatildeo e procura a verdade em uma realidade que este

natildeo pode criar Ou seja o filoacutesofo define o niilista como aquele que rejeita o mundo com

que se relaciona em prol de um mundo com o qual sabe natildeo poder se relacionar O que

norteia esta realizaccedilatildeo para o autor da passagem seria mesmo uma espeacutecie de impulso

para o nada em que o mais proacuteximo e exequiacutevel eacute abandonado em prol do distante e

inexequiacutevel Quase como algueacutem que diante da possibilidade de conquistar uma vitoacuteria

certa mais humilde se lanccedila agrave conquista de um objetivo grandioso embora impossiacutevel

Ora se pensarmos que nossa realidade eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees entatildeo o

mundo que o niilista rejeita eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees o qual ele desejaria ver

substituiacutedo por um mundo ideal independente de nossas valoraccedilotildees Na leitura

perspectivista nietzschiana no entanto posto que natildeo se pode pensar um mundo senatildeo

como produto de nossas valoraccedilotildees o niilista seria aquele que pretende alcanccedilar um

mundo de objetividade natildeo avaliada

Esta concepccedilatildeo do niilismo estaacute estreitamente relacionada com a criacutetica

nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Seria apenas porque a concepccedilatildeo de

verdade estaria relacionada com a ideia de uma realidade inaccessiacutevel que o filoacutesofo

considera niilista todo projeto filosoacutefico ocidental que se deixa guiar pela ideia de uma

realidade objetiva natildeo valorada da qual decorreria a verdade Do mesmo modo a rejeiccedilatildeo

operada pela filosofia tradicional do testemunho dos sentidos em prol de uma realidade que

apenas pode ser concebida pelo intelecto eacute vista pelo filoacutesofo como constituindo um dos

primeiros estaacutegios na histoacuteria do niilismo ocidental

Nessa leitura a ideia de uma realidade idealizada que apenas pode ser

compreendida aqui como realidade enquanto criaccedilatildeo do intelecto seria o ponto de

148

culminacircncia de toda forma disfarccedilada de niilismo Por outro lado aquele que concebe o

mundo como criaccedilatildeo como inferior posto que eacute sua criaccedilatildeo rejeita nele mesmo a proacutepria

criaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo desta criaccedilatildeo no entanto configura-se como passividade na medida em

que se determinaria por uma rejeiccedilatildeo do proacuteprio criar

Satildeo essas razotildees que nos impotildeem a necessidade de distinguir entre duas formas de

niilismo o niilismo ativo e o niilismo passivo Pois uma avaliaccedilatildeo desta distinccedilatildeo torna

claro que aquilo que comumente se toma como a criacutetica nietzschiana ao niilismo estaria

voltada prioritariamente a uma forma passiva de niilismo em detrimento do niilismo como

um todo Assim se o niilismo passivo como vimos estaria relacionado ao cansaccedilo das

forccedilas criativas que se tornam ressentimento da necessidade de criaccedilatildeo quase como se o

intelecto ciente de sua condicionalidade enquanto estrutura criativa se visse ressentido de

sua limitaccedilatildeo enquanto instacircncia de criaccedilatildeo e passasse a criar a partir desse ressentimento

por outro lado o niilista ativo seria aquele que consciente da realidade de sua criaccedilatildeo

enfatiza os poderes criativos do intelecto como superiores criando uma realidade

idealizada a partir da potecircncia criativa do intelecto

Partindo dessa consideraccedilatildeo das diferenccedilas entre uma forma passiva e uma forma

ativa de niilismo percebe-se que nada se aproveita do niilismo passivo posto que apenas

os piores instintos os instintos cansados parecem estar a seu serviccedilo Ao niilismo ativo

por outro lado Nietzsche relaciona um aspecto positivo na medida em que neste jaacute se

reconhece a moral como algo superado Neste sentido o niilismo ativo poderia ser lido

como a representaccedilatildeo de uma forma de superaccedilatildeo criativa do pessimismo da existecircncia o

que caracteriza essa forma de niilismo como sintoma de um grau elevado de ldquocultura

espiritualrdquo Alto grau de cultura espiritual aqui significa que este estaacutegio de desdobramento

do niilismo seria caracterizado pela criaccedilatildeo proliacutefica de novas realidades

Natildeo eacute que a ldquopenuacuteriardquo tenha aumentado pelo contraacuterio ldquoDeus a moral aresignaccedilatildeordquo eram remeacutedios a niacuteveis profundos e terriacuteveis de miseacuteria oniilismo ativo aparece em condiccedilotildees relativamente muito mais favoraacuteveisJaacute o fato de que se sinta a moral como algo superado supotildee um graubastante elevado de cultura espiritual esta por sua vez a um relativobem-estar Um certo cansaccedilo espiritual que a grande luta de opiniotildeesfilosoacuteficas conduziu ateacute a um ceticismo desesperado frente a filosofiacaracteriza tambeacutem agrave classe de nenhuma maneira baixa destes niilistasPense-se na situaccedilatildeo na que surgiu Buda A doutrina do eterno retorno

149

teria pressupostos doutos (assim como os tinha a doutrina de Buda porexemplo o conceito de causalidade etc) (NFFP 1886-1887 5 [71])

A crenccedila no Deus assim como a moral que pertenceriam a um estado inferior da

ldquocultura espiritualrdquo satildeo superados pela suposiccedilatildeo de uma forma nova de valorar no

niilismo ativo O niilismo ativo assim distingue-se do passivo pela potencialidade

criativa que supera a moral dada Em comparaccedilatildeo ao niilismo ativo o niilismo passivo

pode ser visto como algo esteacuteril posto que em seu desenvolvimento este natildeo confronta a

realidade de forma tatildeo criativa quanto aquele Desta forma como uacuteltimo momento do

confronto do niilista com a realidade este jaacute pressuporia um alto niacutevel de desenvolvimento

cultural produto das sucessivas superaccedilotildees das produccedilotildees do niilismo passivo

Nesse sentido o ceticismo nietzschiano para com toda forma de criaccedilatildeo moral

apareceria como sintoma deste alto niacutevel de desenvolvimento cultural No entanto este

ceticismo como sintoma da superaccedilatildeo de diversas formas de moral apareceria tambeacutem

como a exaustatildeo de forccedilas criativas Por isso o ceticismo eacute visto como uma forma

desesperada de niilismo que se daacute diante da constataccedilatildeo da inutilidade da moral mas que

natildeo condiciona a accedilatildeo Do mesmo modo aqui estariacuteamos diante da ideia de uma forma

mais extrema de niilismo ativo no qual ocorre natildeo apenas a negaccedilatildeo da moral mas uma

elaboraccedilatildeo do homem em meio de cura em graus profundos de miseacuteria Nesse sentido o

niilismo ativo aparece em condiccedilotildees que se configuram relativamente mais favoraacuteveis

Seria portanto na possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que apareceria em toda

profundidade a diferenccedila entre o niilismo passivo e o niilismo ativo Porque o iacutempeto para

a destruiccedilatildeo dos valores dados passo necessaacuterio na constituiccedilatildeo dos novos valores apenas

se daacute pela consciecircncia da vacuidade de sentido da carecircncia de fundamento do que eacute dado

atraveacutes do qual ldquoseu maacuteximo de forccedila relativa eacute alcanccedilada como forccedila violenta de

destruiccedilatildeo como niilismo ativordquo (NFFP 1887 9 [35]) O fundamental aqui eacute reconhecer

que um niilismo ativo poderia representar um passo importante na dinacircmica de superaccedilatildeo

do proacuteprio niilismo

Satildeo muitos os fragmentos poacutestumos em que o filoacutesofo se refere a uma forma mais

desenvolvida do niilismo ativo um niilismo perfeito enquanto ldquoconsequecircncia necessaacuteria

dos ideais tidos ateacute o momentordquo (NFFP 1887 10 [42]) Ou seja em contraposiccedilatildeo ao

150

niilismo incompleto em meio ao qual o filoacutesofo pensa que se desdobrava a cultura

filosofia e religiatildeo de sua eacutepoca haveria uma forma extrema de niilismo que poderia

produzir resultados no processo de superaccedilatildeo do niilismo como perda de sentido

Na medida em que Nietzsche entende que as tentativas de escapar-se do niilismo

sem realizar uma avaliaccedilatildeo dos valores recebidos da tradiccedilatildeo apenas tornavam mais agudas

as consequecircncias do niilismo (NFFP 1887 10[42]) ele pensa o niilismo completo como

uma forma de superar a negatividade do niilismo a partir do proacuteprio niilismo Assim a

radicalizaccedilatildeo do niilismo que conduz ao niilismo completo como ponto da dinacircmica do

niilismo em que se rompe a cadeia de criaccedilatildeo de valores niilistas se daria com o colapso

do conceito de ldquoDeusrdquo entendido aqui como fundamento de todos os valores niilistas

Como diz Araldi ldquoA morte de Deus eacute um evento que repercute na modernidade e que

aciona novas formas de niilismo sempre na perspectiva de sua radicalizaccedilatildeordquo (ARALDI

1998 Paacutegs 85-86) Isto porque o conceito de ldquoDeusrdquoeacute visto pelo filoacutesofo como uma

repercussatildeo da realidade ideal como a traduccedilatildeo moderna do antigo conceito platocircnico de

realidade das ideias

Tal como a realidade ideal platocircnica o Deus veraz atua na modernidade como

fundamento uacuteltimo da verdade Aqui aparece para Nietzsche o cristianismo como um

ldquoplatonismo para as massasrdquo como o lugar de fundamentaccedilatildeo de uma veracidade que se

perde na iminecircncia do grande evento da morte de Deus Posto que Deus passa a ser visto

de acordo com os princiacutepios dessa veracidade como ldquouma hipoacutetese demasiado extremardquo

(NFFP 1886 5[71]) Motivo pelo qual Claudemir Araldi pensa a distinccedilatildeo entre uma

forma incompleta e uma forma completa de niilismo como dependendo fundamentalmente

do anuacutencio da morte de Deus

Eacute nesse sentido que Nietzsche distingue entre niilismo incompleto eniilismo completo No niilismo incompleto (unvollstaumlndig Nihilismus) haacutea tentativa de preencher o vazio decorrente da morte do deus cristatildeo tidocomo a fonte da verdade (XII 10 (42) Atraveacutes de ideais laicizados (oprogresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia) os homensainda mantecircm o lugar outrora ocupado por Deus o supra-sensiacutevel poisbuscam algo que ordene categoricamente ao qual possam se entregarabsolutamente Em suma no niilismo incompleto haacute a tentativa desuperar o niilismo sem transvalorar os valores (XII 10 (42)) No niilismocompleto (vollkommener Nihilismus) haacute uma autoconsciecircncia do homem

151

sobre si proacuteprio e sobre a sua nova situaccedilatildeo apoacutes a morte de Deus (XII10 (42) Esta forma de niilismo eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria dosvalores estimados ateacute entatildeo como superiores Nesse momento contudonatildeo ocorre ainda a criaccedilatildeo de valores afirmativos o niilista completo natildeoconsegue mais mascarar atraveacutes de ideais e ficccedilotildees a vontade de nadaNatildeo eacute apenas o supra-sensiacutevel que eacute abolido mas tambeacutem a oposiccedilatildeoentre ambos (GDCI Como o Mundo Verdadeiro tornou-se Faacutebula) Comum olhar paacutelido desfigurado o niilista completo contempla e idealiza apartir da fraqueza A completude do niilismo natildeo ocorre somente nessadissoluccedilatildeo passiva no tipo do decadente que frui passivamente de seuesgotamento (ARALDI 1998 Paacutegs 86)81

Segundo Araldi Nietzsche compreendeu a modernidade filosoacutefica como a tentativa

de ocupar o lugar vago pela ausecircncia do Deus cristatildeo atraveacutes da admissatildeo de ideais

laicizados tais como o progresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia Estas

tentativas no entanto aparecem para o autor como uma forma fracassada de abandonar os

ideais cristatildeos82 Desde que os fundamentos satildeo reconhecidos aqui como pertencendo a

uma instacircncia superior agrave instacircncia do acontecer humano esfera na qual Nietzsche enxerga

a dinacircmica da criaccedilatildeo de valores esta tentativa ainda se fundamentava em uma concepccedilatildeo

tradicional de verdade Sendo assim esta tentativa de superaccedilatildeo do Deus cristatildeo cai por

terra na medida em que conserva o lugar ocupado por Deus Esta leitura eacute coerente com o

que ao autor expressa em A Gaia Ciecircncia o filoacutesofo narra os motivos do fracasso dessa

tentativa de se livrar de Deus como a permanecircncia na crenccedila na verdade

Mas jaacute teratildeo compreendido onde quero chegar isto eacute que a nossa feacute naciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica ndash que tambeacutem noacutes quehoje buscamos o conhecimento noacutes ateus e antimetafiacutesicos aindatiramos nossa flama daquele mesmo fogo que uma feacute milenar acendeuaquela crenccedila cristatilde que era tambeacutem de Platatildeo de que Deus eacute a verdadede que a verdade eacute divinahellip Mas como se precisamente isto se tornacada vez menos digno de creacutedito se nada mais se revela divino com apossiacutevel exceccedilatildeo do erro da cegueira da mentira ndash se o proacuteprio Deus serevela como a nossa mais longa mentira (FWGC V sect344)

81 A citaccedilatildeo manteve intacta a estrutura e redaccedilatildeo dada por seu autor ao texto ou seja foram preservados osaspectos do texto que foram redigidos anteriormente agrave adoccedilatildeo das normas do novo acordo ortograacutefico daliacutengua portuguesa82 Nos diz ainda Claudemir Araldi ldquoA modernidade representa para o filoacutesofo tanto o esforccedilo de substituir odeus transcendente por outros valores (razatildeo histoacuteria progresso) bem como o vazio aberto pela percepccedilatildeode que o deus transcendente jaacute natildeo exerce nenhuma influecircncia sobre a existecircnciardquo (ARALDI 1998 Paacutegs77-78) Ou seja segundo Araldi natildeo apenas a modernidade filosoacutefica fracassa em ocupar o lugar deixadovago pela morte de Deus como ainda traz a tona a realidade desse vazio

152

A morte de Deus a perda do ldquobem em sirdquo e o desaparecimento de um fundamento

universal da realidade constituem nessa leitura diferentes niacuteveis de uma mesma

experiecircncia Poreacutem a radicalidade do ponto de partida nietzschiano diz respeito agrave

concomitacircncia destes fundamentos em uma concepccedilatildeo tradicional de verdade Assim a

permanecircncia na verdade marca ainda o lugar onde uma uacuteltima crenccedila deve ser abandonada

A avaliaccedilatildeo dos valores portanto comeccedila pela consciecircncia da morte do Deus cristatildeo que

eacute anunciada no aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia mas apenas se conclui a partir da

consciecircncia da caducidade da ideia de verdade

Em suma estaacute fase intermediaacuteria representaria ainda uma manifestaccedilatildeo do niilismo

incompleto em que a tentativa de superar o niilismo ocorre sem oferecer uma completa

avaliaccedilatildeo dos valores No niilismo completo no entanto ocorre uma tomada de

consciecircncia o reconhecimento da responsabilidade pela criaccedilatildeo dos valores que

condiciona a radicalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo do niilismo tornando-se este assim uma forma de

niilismo ativo

Se o niilismo eacute a situaccedilatildeo a que se vecirc confrontada uma eacutepoca que experimenta a

perda de validade dos valores supremos na medida em que Nietzsche reconhece nos

ldquovalores superioresrdquo mais do que a fundamentaccedilatildeo da organizaccedilatildeo social humana mas a

proacutepria atribuiccedilatildeo de valor para a vida entre os homens ou seja a moral o filoacutesofo

reconhece na perda de validade destes valores um risco iminente para a humanidade

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade

Nos primeiros capiacutetulos deste trabalho procuramos mostrar que apesar de o

desdobramento da reflexatildeo nietzschiana acerca do niilismo pertencer agrave terceira fase de seu

pensamento o potencial afirmativo inerente agrave superaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de

verdade jaacute se acha prenunciado no pensamento da primeira fase desse autor em sua

confrontaccedilatildeo de uma forma radical de pessimismo fundado em uma concepccedilatildeo moral do

conhecimento Em suas primeiras incursotildees filosoacuteficas em que o niilismo aparece ainda

sob a aparecircncia de uma forma radical de pessimismo Nietzsche identifica um potencial

153

deleteacuterio da cultura europeia Este potencial de destruiccedilatildeo dos valores fundamentais eacute

criticado pelo autor pela primeira vez a partir da suspeita lanccedilada agraves formulaccedilotildees teoacutericas

do racionalismo socraacutetico Naquela reflexatildeo Nietzsche pensava as condiccedilotildees histoacutericas de

surgimento do conceito de verdade como algo que teria se associado agrave ideia de valor

absoluto por meio de uma interpretaccedilatildeo moral

Considerando-se que neste periacuteodo de seu pensamento o filoacutesofo ainda parece

considerar a justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia como uma contra medida para com os

valores cristatildeos que seriam aqueles que pretendem-se unicamente morais eacute possiacutevel

pensar que a criaccedilatildeo artiacutestica dos valores seria uma forma de contrapor-se aos valores do

pessimismo Nesse sentido mais do que uma criacutetica agrave moral a criacutetica ao mundo-de-laacute

criado para difamar o mundo de caacute tenciona alargar a denuacutencia dos problemas teoacutericos

referentes agrave consideraccedilatildeo do verdadeiro que em Nietzsche estatildeo indissociavelmente

relacionados aos valores morais do cristianismo

O cristianismo eacute concebido no pensamento nietzschiano como se opondo natildeo

apenas agrave vida mas tambeacutem a seus princiacutepios fundamentais dentre os quais a aparecircncia a

arte e o proacuteprio caraacuteter perspectivo de que toda vida seria dependente Tal ideia da

negaccedilatildeo cristatilde dos valores fundamentais agrave vida eacute expressa com clareza no prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia em que Nietzsche reflete sobre o silecircncio que houvera

conservado para com o cristianismo naquela obra

Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendorantimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro inteiro setrata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeodo tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutar Na verdadenatildeo existe contraposiccedilatildeo maior agrave exegese e justificaccedilatildeo puramenteesteacutetica do mundo tal como eacute ensinada neste livro do que a doutrinacristatilde a qual eacute e quer ser somente moral e com seus padrotildees absolutos jaacutecom sua veracidade de Deus por exemplo desterra a arte toda arte aoreino da mentira ndash isto eacute nega-a reprova-a condena-a Por traacutes desemelhante modo de pensar e valorar o qual tem de ser adverso agrave arteenquanto ela for de alguma maneira autecircntica sentia eu tambeacutem desdesempre a hostilidade agrave vida a rancorosa vingativa aversatildeo contra aproacutepria vida pois toda a vida repousa sobre a aparecircncia a arte a ilusatildeo aoacuteptica a necessidade do perspectiviacutestico e do erro (Prefaacutecio sect5 Paacuteg 19)

154

Ainda que de modo inconsciente em sua formulaccedilatildeo na filosofia nietzschiana de

juventude a suspeita em torno da verdade e sua relaccedilatildeo com a moral cristatilde satildeo vistas aqui

como um grande perigo para a humanidade Segundo o autor natildeo apenas contra o

cristianismo ldquocomo a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade

chegou ateacute agora a escutarrdquo mas contra os princiacutepios morais do niilismo expressos sub-

repticiamente nessa moral seus instintos o haviam precavido Precauccedilatildeo que teria se

refletido no silecircncio para com estes temas que o filoacutesofo conserva em sua obra de estreia

Assim entendemos que embora o niilismo seja inegavelmente uma concepccedilatildeo em que

Nietzsche passa a se deter mais prontamente a partir do periacuteodo intermediaacuterio de seu

pensamento e que recebe um tratamento mais aprofundado apenas a partir de seus uacuteltimos

escritos os pressupostos para a formulaccedilatildeo desta concepccedilatildeo jaacute estavam contidos na criacutetica

nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento

Seu projeto de superaccedilatildeo do niilismo portanto natildeo se resume a apontar o futuro do

niilismo e sua superaccedilatildeo definitiva Uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo genealoacutegica

nietzschiana as condiccedilotildees de superaccedilatildeo do niilismo residem na consideraccedilatildeo das razotildees

pelas quais ele se tornou hegemocircnico na vida intelectual do Ocidente Por sua vez em

consequecircncia de sua compreensatildeo do niilismo como uma tendecircncia agrave desvalorizaccedilatildeo da

realidade a possiacutevel superaccedilatildeo dos valores de decadecircncia soacute poderia advir de uma

consideraccedilatildeo fundamental sobre o caraacuteter da realidade como interpretaccedilatildeo

Nessa leitura a consideraccedilatildeo da vida em sua essecircncia como vontade de potecircncia

desempenharia um papel fundamental Pois se para Nietzsche ldquoesse mundo eacute a vontade de

potecircncia e nada aleacutem dissordquo (NFFP 1885 38[12]) tambeacutem a vida enquanto uma

manifestaccedilatildeo no mundo seria apenas vontade de potecircncia e nada mais Apesar de natildeo

constituir objeto fundamental de nosso trabalho e apesar de natildeo possuirmos espaccedilo

suficiente aqui para uma correta abordagem dessa importante concepccedilatildeo nietzschiana

consideramos que a concepccedilatildeo de vontade de potecircncia deve ser brevemente elucidada para

efeitos de compreensatildeo do que se diz nesse capiacutetulo e mais a frente

Em nossa interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia natildeo

seria possiacutevel natildeo mencionar a interpretaccedilatildeo de Muumlller-Lauter83 Em seu comentaacuterio da

83 Trabalhamos em nossa leitura com a traduccedilatildeo para o portuguecircs do artigo ldquoA Doutrina da Vontade dePoder em Nietzscherdquo de Oswaldo Giacoacuteia Juacutenior publicado pela editora Annablume Satildeo Paulo 1997conforme bibliografia

155

concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia Muumlller-Lauter a qualifica como uma

concepccedilatildeo metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 51-52) mesmo rejeitando

ldquoconceber a vontade de poder como lsquoinequiacutevocarsquo vontade metafiacutesica no sentido de

Schopenhauerrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 70) e mesmo rejeitando a posiccedilatildeo de

Heidegger De fato Muumlller-Lauter escreve suas consideraccedilotildees acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo adversaacuteria da interpretaccedilatildeo de

Heidegger

Nesta reflexatildeo polecircmica o autor parte da suposiccedilatildeo de que a filosofia nietzschiana

representaria um acabamento do pensamento metafiacutesico Posiccedilatildeo como se vecirc muito

proacutexima da leitura heideggeriana No entanto para Muumlller-Lauter o pensamento

nietzschiano se converte em uma forma de metafiacutesica por forccedila do constante questionar-se

nietzschiano acerca da metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 53) Por outro lado o

autor compreende que este estreito refletir acerca da metafiacutesica que teria forccedilado

Nietzsche mesmo a adotar uma certa terminologia metafiacutesica em suas obras natildeo se

confunde com uma compreensatildeo abrangente do sentido de metafiacutesica Sendo assim se

Nietzsche pode ser considerado um pensador metafiacutesico isto natildeo torna seu pensamento

paradoxal pois o sentido de metafiacutesica de sua reflexatildeo natildeo se confundiria com aquilo que

o filoacutesofo criticava sob o nome de metafiacutesica

Como se pode ver estamos aqui diante de uma possiacutevel autocontradiccedilatildeo no

pensamento nietzschiano que tem que ser enfrentada por Muumlller-Lauter Pois ao interpretar

a vontade de potecircncia como conceito metafiacutesico o autor precisa confrontar a criacutetica

nietzschiana agrave metafiacutesica presente em boa parte de seus escritos Em sua interpretaccedilatildeo o

autor realiza este movimento por meio de uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana agrave

metafiacutesica a partir da compreensatildeo de que o filoacutesofo teria entendido por metafiacutesica uma

compreensatildeo da realidade segundo uma teoria dos dois mundos Ou seja embora o

pensamento nietzschiano possa ser entendido como uma forma de pensamento metafiacutesico

este pensamento natildeo operaria com base na defesa de um dualismo ontoloacutegico

Esta interpretaccedilatildeo enquanto pode ser vista como uma leitura vaacutelida da filosofia

nietzschiana enfrenta dificuldades peculiares Primeiro por que a distinccedilatildeo entre duas

formas de filosofia no pensamento nietzschiano parece repousar em evidecircncia textual

precaacuteria E segundo porque a criacutetica nietzschiana a toda forma de filosofia natildeo parece ser

156

compatiacutevel com a ideia de uma defesa nietzschiana de uma determinada forma de

metafiacutesica O que motiva a adoccedilatildeo de Muumlller-Lauter desta interpretaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana como uma certa forma de metafiacutesica seria antes de tudo a necessidade de

interpretar a concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia como uma forma de

fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da verdade Ou seja a tentativa de fundamentar o discurso

nietzschiano em uma compreensatildeo da vontade de potecircncia como conceito ontoloacutegico

subjacente agrave realidade das interpretaccedilotildees

De fato em um fragmento poacutestumo de fins de 1887 3 iniacutecios de 1888 Nietzsche

considera a vontade de potecircncia sob a luz de uma consideraccedilatildeo desta enquanto ldquoum

quantum de poder um devir na medida em que nele nada tem o caraacuteter do lsquoserrsquordquo (NFFP

1887-1888 11[73]) Sendo assim enquanto esta interpretaccedilatildeo poderia por um lado ser

considerada a afirmaccedilatildeo de um caraacuteter ontoloacutegico da vontade de potecircncia por outro na

medida em que o filoacutesofo afirma que esta concepccedilatildeo teria relaccedilotildees com o devir em

contraposiccedilatildeo ao ser fica difiacutecil natildeo pensar que esta passagem se contrapotildee a uma tentativa

de pensar a Vontade de potecircncia como uma espeacutecie de fundamento Na medida em que

nada na vontade de potecircncia refletiria um ser ela mesma natildeo poderia ser vista como

fundamento do existente

Como alternativa pode-se pensar uma interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de

vontade de potecircncia como a compreensatildeo desta como uma hipoacutetese Dessa forma

tornando-se possiacutevel evitar a necessidade de fundamentaacute-la em uma interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica Ao interpretar esta concepccedilatildeo como uma forma de quantum de potecircncia a

vontade de potecircncia natildeo refletiria um existir determinado mas apenas a percepccedilatildeo dela

enquanto um ponto mais baixo ou mais elevado de potecircncia Ou seja a vontade de

potecircncia natildeo seria uma realidade sua interpretaccedilatildeo enquanto vontade forte ou vontade

fraca dependeria da captura de um momento de seu existir pois ldquonatildeo haacute nenhuma

vontade haacute pontuaccedilotildees da vontade que constantemente aumentam ou perdem seu poderrdquo

(NFFP 1887-1888 11[73]) Sendo assim a vontade de potecircncia natildeo poderia ser pensada

de maneira independente de sua interpretaccedilatildeo submetendo-se ela mesma aos princiacutepios

nietzschianos da hegemonia da interpretaccedilatildeo

Esta forma de compreender a vontade de potecircncia parece combinar perfeitamente

com o sentido de textos Nietzschianos tais como o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal

157

em que Nietzsche expressamente fala da vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo

Naquele texto sobre o qual falaremos no uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho Nietzsche

considera a concepccedilatildeo dos fiacutesicos e de suas leis da natureza como uma maacute interpretaccedilatildeo e

a ela confronta a possibilidade de se explicar os mesmos fenocircmenos com base na hipoacutetese

da vontade de potecircncia Neste confronto o que parece interessar ao filoacutesofo que busca

destituir de validade a ideia de uma realidade natural como texto a ser interpretado seria a

possibilidade de se confrontar perspectivas diferentes diferentes hipoacuteteses como formas

igualmente verdadeiras de se interpretar o mesmo fenocircmeno

Perdoem a esse velho filoacutelogo que sou se natildeo renuncia a abdicar domaligno prazer que representa pocircr o dedo na chaga das explicaccedilotildeeserrocircneas de vossas fraquezas filoloacutegicas Porque em verdade essemecanismo das ldquoleis da naturezardquo de que voacutes fiacutesicos falais com tantoorgulho natildeo eacute um fato nem um texto mas uma composiccedilatildeoingenuamente humana dos fatos uma deturpaccedilatildeo do sentido umaadulaccedilatildeo servil agrave habilidade dos instintos democraacuteticos da alma modernaldquoEm todas as partes igualdade diante da lei a este respeito a naturezanatildeo foi melhor tratada que noacutesrdquo Sedutora segunda intenccedilatildeo que encobremais uma vez o oacutedio da plebe contra toda marca de privileacutegio e de tiraniabem como uma segunda forma mais sutil de ateiacutesmo Ni Dieu nimaitre Voacutes tambeacutem desejais que assim seja e por isso gritais ldquoVivam asleis da naturezardquo (JGBABM I sect22)

Muumlller-Lauter no entanto parece pensar diferente Assim quando julga a

possibilidade de interpretar a vontade de potecircncia como uma hipoacutetese tatildeo verdadeira

quanto a hipoacutetese representada naquele texto pela posiccedilatildeo dos fiacutesicos o autor afirma ldquoEle

proacuteprio [Nietzsche] sustenta uma pretensatildeo de superioridade em face de outras

interpretaccedilotildees do mundo Ao questionarmos seu pensamento em relaccedilatildeo a essa pretensatildeo

deparamos com o problema da fundamentabilidade de sua lsquodoutrina da vontade de poderrsquordquo

(MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 121) Desta maneira o autor parece compreender que

Nietzsche natildeo teria pensado sua posiccedilatildeo a interpretaccedilatildeo da natureza segundo a hipoacutetese da

vontade de potecircncia como uma hipoacutetese de validade igual agrave hipoacutetese apresentada pelos

fiacutesicos mas como posiccedilatildeo superior Assim a pretensatildeo de superioridade das posiccedilotildees

nietzschianas problema fundamental do uacuteltimo capiacutetulo desse trabalho impediria a

compreensatildeo da concepccedilatildeo de vontade de potecircncia como interpretaccedilatildeo

158

Nos parece algo bastante simboacutelico que ao analisar o aforismo vinte e dois de

Aleacutem do Bem e do Mal Muumlller-Lauter considere que ldquoPara o que aqui nos importa eacute

essencial que ele [Nietzsche] impute aos lsquofiacutesicosrsquo uma maacute lsquofilologiarsquordquo ou seja ao

considerar o aforismo em questatildeo Muumlller-Lauter julga que o fato de Nietzsche considerar

a posiccedilatildeo dos fiacutesicos como uma maacute interpretaccedilatildeo conduz agrave crenccedila de que o filoacutesofo

sustentava sua proacutepria interpretaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo segundo uma boa filologia

como uma interpretaccedilatildeo superior Assim ao confrontar a hipoacutetese de que Nietzsche

necessariamente deva tomar suas posiccedilotildees como interpretaccedilotildees com a necessidade de que

o filoacutesofo as defenda como uma interpretaccedilatildeo superior chegamos a um ponto fundamental

para o questionamento acerca do valor destas interpretaccedilotildees Refletindo sobre este

problema Muumlller-Lauter escreve

Entatildeo toda explicaccedilatildeo (Deutung) do mundo eacute tambeacutem uma interpretaccedilatildeoperspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos que aquela quecompreende todo acontecer do mundo como o caos de vontades de podercooperantes e combatentes Em consequecircncia disso lsquoorsquo mundoconcebido como soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeo perspectiva domundo ao lado de inuacutemeras outras Em face da fundamental relatividadede todo explicar-o-mundo o que poderia ser aduzido em favor dalsquoverdadersquo da interpretaccedilatildeo de Nietzscherdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997Paacutegs 126)

O fundamental aqui eacute o questionamento acerca do que pode ser acrescentado em

favor da posiccedilatildeo defendida por Nietzsche a fim de que esta venha a ser tomada como mais

verdadeira e portanto superior ao posicionamento dos fiacutesicos e sua explicaccedilatildeo mecacircnica

da natureza Na leitura do autor apenas a compreensatildeo que identifica a vontade de

potecircncia como fundamento da verdade poderia garantir esta veracidade e consequente

superioridade Mas aqui se confunde superioridade de uma perspectiva e sua veracidade o

que eacute justamente questionado por meio do perspectivismo nietzschiano Ou seja se

assumirmos que apenas a veracidade de uma posiccedilatildeo pode ser ponto de demarcaccedilatildeo de seu

valor tornamos sem sentido o perspectivismo nietzschiano Mas sendo assim de que outro

modo se poderia justificar a superioridade do posicionamento nietzschiano

A resposta a esta questatildeo representa um ponto fundamental de nossa interpretaccedilatildeo

Trata-se de considerar como ponto central das criacuteticas de Nietzsche agrave concepccedilatildeo tradicional

159

de verdade a implicaccedilatildeo entre valor e verdade de um posicionamento concepccedilatildeo que a

interpretaccedilatildeo tradicional da natureza da verdade nos levaria a aceitar Esta implicaccedilatildeo a

qual Nietzsche jaacute denuncia como improcedente desde seus escritos de juventude

notadamente seu Ensaio sobre Verdade e Mentira seria apenas o resultado de uma

interpretaccedilatildeo moral do problema da verdade Por outro lado como julgar da superioridade

de interpretaccedilotildees adversaacuterias quando natildeo se pode reclamar para estas uma maior

veracidade No caso especiacutefico apresentado por Muumlller-Lauter como justificar a

superioridade da posiccedilatildeo nietzschiana em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees que o filoacutesofo combate

Uma possiacutevel resposta para esta pergunta eacute que nada pode ser acrescentado em favor da

ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiana No entanto no que se trata do questionamento da

superioridade desta posiccedilatildeo poderiacuteamos acrescentar agrave posiccedilatildeo nietzschiana o fato dela ser

derivada de uma arte de filologia superior

Nesta interpretaccedilatildeo consideramos que Nietzsche toma a concepccedilatildeo de vontade de

potecircncia como uma parte de sua filosofia que eacute apenas reconhecida pelo filoacutesofo como

uma possiacutevel interpretaccedilatildeo entre outras interpretaccedilotildees Por outro lado o fato de Nietzsche

se opor a certas interpretaccedilotildees e defender as suas proacuteprias natildeo nos obriga a pensar que o

autor tomava suas posiccedilotildees como mais verdadeiras Pois diferentemente da interpretaccedilatildeo

sustentada por Muumlller-Lauter distinguimos uma interpretaccedilatildeo superior de uma

interpretaccedilatildeo mais verdadeira O fato de Nietzsche tomar sua posiccedilatildeo como superior tanto

no caso em questatildeo como em todos os casos em que este aparente paradoxo se apresenta

natildeo significa que estamos julgando dentro do terreno da veracidade

De fato desde que esta atitude seja entendida como componente do perspectivismo

nietzschiano ela deve ser interpretada como a representaccedilatildeo de uma forma de se

confrontar o dogmatismo pela proacutepria defesa da interpretaccedilatildeo como possibilidade Assim

o que eacute dito na mencionada passagem de Aleacutem do Bem e do Mal representaria um

exerciacutecio deste tipo de compreensatildeo em que a proacutepria possibilidade de se apresentar novas

interpretaccedilotildees jaacute pesa contra a possibilidade de uma posiccedilatildeo dogmaacutetica que deve sempre

ser vista como a uacutenica interpretaccedilatildeo vaacutelida

O mesmo se observa na descriccedilatildeo nietzschiana das forccedilas e suas relaccedilotildees como

aspecto mais iacutentimo da vontade de potecircncia Nestes casos como em todos os casos em que

o filoacutesofo se propotildee a realizar uma descriccedilatildeo da vontade de potecircncia enxergamos uma

160

atitude experimental e artiacutestica um modo criativo de apresentar hipoacuteteses em

contraposiccedilatildeo a uma determinaccedilatildeo definitiva Assim embora saibamos que natildeo temos aqui

uma apresentaccedilatildeo definitiva das justificativas para tanto tomaremos a concepccedilatildeo de

vontade de potecircncia como hipoacutetese interpretativa como um expediente com a qual

Nietzsche pretendeu opor-se a uma determinaccedilatildeo dogmaacutetica da realidade

A inferioridade das posiccedilotildees que critica eacute sempre relacionada por Nietzsche aos

instintos do pesquisador que apresenta esta posiccedilatildeo ou aos valores por traacutes de tais

interpretaccedilotildees A verdade ou falsidade destas posiccedilotildees eacute tomada pelo filoacutesofo sempre como

um efeito colateral dos valores sustentados por tais posiccedilotildees No entanto eacute claro que o

filoacutesofo natildeo poderia tomar suas posiccedilotildees como mais verdadeiras em sentido tradicional

posto que considerava tais concepccedilotildees como aspectos de sua interpretaccedilatildeo da realidade O

que significa dizer que elas tinham que ser tomadas como interpretaccedilotildees a partir de sua

perspectiva

Desde que a partir da concepccedilatildeo nietzschiana da realidade todos os fenocircmenos satildeo

redutiacuteveis agrave categoria de vontade de potecircncia a vida mesma passa a ser expressa como

uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia Logo os valores afirmativos da vida que se

manifestam atraveacutes de um sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia satildeo tidos nessa leitura

como valores superiores Novamente como compreender a superioridade destes valores se

abdicamos de uma suposta veracidade superior para os mesmos Esta superioridade se

deveria ao fato destas interpretaccedilotildees representarem de forma mais adequada uma

determinada configuraccedilatildeo de forccedilas que se mostraria ascendente naquele momento Como

interpretaccedilatildeo em que as forccedilas mais fortes ou um nuacutemero maior de forccedilas se expressa

uma posiccedilatildeo poderia no entender de Nietzsche ser tomada como refletindo de forma mais

afirmativa a vida e assim a proacutepria vontade de potecircncia

Por outro lado os valores morais que com o apoio da doutrina cristatilde obtecircm os

nomes mais elevados na tradiccedilatildeo filosoacutefica seriam consequecircncia de um estado em que

forccedilas menos fortes se agrupariam em torno de um fim Neste sentido enquanto sintoma de

forccedila descendente de forccedilas menos fortes estes valores seriam expressatildeo de tudo que eacute

inferior Por representarem uma configuraccedilatildeo descendente de forccedilas tais valores

inviabilizariam a vida que cresce constituindo-se em valores de negaccedilatildeo de tudo que eacute

161

necessaacuterio agrave sobrevivecircncia A estes valores que Nietzsche toma como expressatildeo mesma do

niilismo estaria ligada uma corrupccedilatildeo fundamental do animal homem

Digo que um animal uma espeacutecie um indiviacuteduo estaacute corrompido quandoperde seus instintos quando escolhe prefere o que lhe eacute desvantajosoUma histoacuteria dos ldquosentimentos superioresrdquo dos ldquoideais da humanidaderdquo ndashe eacute possiacutevel que eu tenha de escrevecirc-la ndash tambeacutem seria quase a explicaccedilatildeode porque o homem se acha tatildeo corrompido A vida mesma eacute para miminstinto de crescimento de duraccedilatildeo de acumulaccedilatildeo de forccedilas de poderonde falta a vontade de poder haacute decliacutenio Meu argumento eacute que a todosos supremos valores da humanidade falta essa vontade ndash que valores dedecliacutenio valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados(ACAC I sect6)

Como a citaccedilatildeo sugere na fase final de seu pensamento o filoacutesofo entende o

niilismo como a concomitacircncia de dois eventos a corrupccedilatildeo dos valores fundamentais e o

empobrecimento vital da espeacutecie o enfraquecimento da vontade de potecircncia Para

Nietzsche a vida como uma expressatildeo da vontade de potecircncia se constitui como luta

interminaacutevel por mais poder Por sua vez a afinidade a iacutentima relaccedilatildeo entre o niilismo e o

cristianismo enquanto filiados a um impulso para a piedade para a compaixatildeo denuncia

um certo cansaccedilo da espeacutecie que natildeo mais vecirc prazer na destruiccedilatildeo e como esta eacute apenas

uma face da criaccedilatildeo natildeo vecirc mais prazer na criaccedilatildeo propriamente Para a pergunta por que

os valores cristatildeos seriam valores niilistas Competiria responder porque nestes valores a

ambiccedilatildeo por poder eacute tomada como algo negativo Onde haacute vida haacute uma acumulaccedilatildeo de

poder onde falta o desejo dessa acumulaccedilatildeo falta a vida Corrupccedilatildeo decadecircncia e niilismo

estatildeo aqui vinculados a uma mesma ideia a destituiccedilatildeo de valor da vida Valores que

impossibilitam a vida satildeo tomados segundo essa leitura como valores niilistas e a estes eacute

atribuiacuteda a potecircncia corruptora por excelecircncia

O impulso para a piedade e agrave compaixatildeo comuns ao niilismo e ao cristianismo eacute

entendido por Nietzsche como impulso para a negaccedilatildeo de tudo que eacute afirmativo da vida

desde que vida mesma em sua leitura se opotildee agrave piedade O processo dinacircmico por ldquomais

poderrdquo se daacute em todas as formaccedilotildees de domiacutenio e o niilismo mesmo constitui apenas uma

ldquoparterdquo uma etapa do processo dinacircmico que caracteriza tudo aquilo que existe Como

162

tudo que existe ele apenas quer mais poder84 Assim o autor entende o niilismo como

movimento que confronta diretamente o apetite para o crescimento que eacute comum a tudo

que vive e que para Nietzsche na avaliaccedilatildeo segundo a moral da decadecircncia muitas vezes

se expressa na forma de crueldade

Nesse impulso para a morte na negaccedilatildeo da vida inerente a uma concepccedilatildeo cristatilde do

mundo estaria a justificativa para os ataques ferrenhos de Nietzsche ao cristianismo assim

como contra as pretensotildees da moral cristatilde a qual eacute vista na leitura nietzschiana como uma

tentativa de aprisionar o homem em valores ilusoriamente tomados como absolutos Com

base nessa concepccedilatildeo da moral cristatilde o filoacutesofo move sua genealogia como tentativa de

trazer agrave luz as negras raiacutezes dos ideais humanos Este procedimento mais do que

descortinar o caraacuteter ilusoacuterio das concepccedilotildees dogmaacuteticas eacute pensado como meio de tornar

vaacutelidas tambeacutem as demais criaccedilotildees humanas

Assim enquanto tendecircncia imobilizante a esta tendecircncia moral e epistemoloacutegica

estariam vinculados impulsos de morte O que aqui deve ser compreendido no sentido mais

amplo tanto quando diz respeito a um impulso para a verdade enquanto objetividade

entendida como a caracterizaccedilatildeo estaacutevel de uma realidade em movimento como quanto a

uma vontade de paz comum aos espiacuteritos religiosos Nesse sentido O Anticristo apresenta

os mais ferozes ataques de Nietzsche ao niilismo e a seus valores dos quais a compaixatildeo

destaca-se como elemento fundamental

Ousou-se chamar a compaixatildeo uma virtude (ndash em toda moral nobre eacuteconsiderada fraqueza ndash) foi-se mais longe fez-se dela a virtude o solo eorigem de todas as virtudes ndash apenas eacute verdade e natildeo se deve jamaisesquecer do ponto de vista de uma filosofia que era niilista queinscreveu no seu emblema a negaccedilatildeo da vida Schopenhauer estava certonisso atraveacutes da compaixatildeo a vida eacute negada tornada digna de negaccedilatildeo ndashcompaixatildeo eacute a praacutetica do niilismo (ACAC I sect7)

84 Ao fim e ao cabo a destruiccedilatildeo dos valores motivada pelo niilismo seria apenas uma expressatildeo danatureza que tem na destruiccedilatildeo de formas organizadas sua funccedilatildeo primordial por meio da qual obtecircm poderSegundo Giacoia ldquoUma formaccedilatildeo decadente eacute para Nietzsche uma Verkehtheit isto eacute uma totalidade postasob o impeacuterio de um movimento de inversatildeo de reversatildeo violenta de fins e propoacutesitos cujo ser e operarpotildeem em movimento a destruiccedilatildeo de uma determinada estrutura hierarquizada de forccedilas em relaccedilatildeo Estadestruiccedilatildeo eacute no entanto um lsquoevento natural do mundo orgacircnicorsquordquo (GIACOIA 1997 Paacuteg 21)

163

Por meio de uma anaacutelise genealoacutegica da compaixatildeo que teria se tornado um valor

fundamental tanto da filosofia quanto da moral de seus contemporacircneos o filoacutesofo nos

apresenta um processo de decadecircncia na passagem de uma moral nobre em que a

compaixatildeo era tomada como expressatildeo de fraqueza para a moral cristatilde85 Assim mais do

que uma virtude cristatildeo a compaixatildeo teria se tornado mesmo uma marca um sintoma dos

instintos desagregadores de sua eacutepoca

A compaixatildeo cristatilde eacute tomada aqui como expressatildeo de uma falta de higiene do

espiacuterito de modo que para Nietzsche ldquoNada eacute mais insalubre em meio a nossa insalubre

modernidade do que a compaixatildeo cristatilderdquo e seria necessaacuterio com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo

cristatilde ldquoser meacutedico aqui ser inexoraacutevel aqui usar a faca ndash isso pertence a noacutes esse eacute nosso

modo de amor ao homem com isso noacutes somos filoacutesofos noacutes hiperboacutereosrdquo (ACAC I

sect7) Com isto o filoacutesofo pretendeu afirmar o verdadeiro papel do filoacutesofo na forma da

eterna inimizade para com a compaixatildeo como fundamento do valor Pois em sua leitura a

compaixatildeo estaria ligada de forma inseparaacutevel agrave decadecircncia

Repito esse instinto depressivo e contagioso entrava os instintos quetendem agrave conservaccedilatildeo e elevaccedilatildeo do valor da vida eacute um instrumentocapital na intensificaccedilatildeo da decadeacutence como um multiplicador damiseacuteria e como conservador de tudo que eacute miseraacutevel ndash a compaixatildeopersuade ao nadahellip Mas natildeo se diz ldquonadardquo diz-se ldquoaleacutemrdquo ou ldquoDeusrdquoou ldquoa verdadeira vidarsquo ou nirvana salvaccedilatildeo bem-aventuranccedilahellip Estainocente retoacuterica do acircmbito da idiossincrasia moral-religiosa parecemuito menos inocente quando se nota qual a tendecircncia que aiacute veste omanto das palavras sublimes a tendecircncia hostil agrave vida (ACAC I sect7)

O fato do autor enfatizar aqui a expressatildeo ldquoa verdadeira vidardquo natildeo eacute ocasional

como se pode perceber Esta expressatildeo carregaria um certo sentido teoloacutegico por traacutes do

qual se esconde um certo anseio pelo nada uacutenica realidade possiacutevel por traacutes da cortina dos

valores ensinados pela religiatildeo86 Por meio desta consideraccedilatildeo criacutetica do cristianismo

85 Conforme nota da seccedilatildeo anterior acerca da revoluccedilatildeo dos escravos na moral em Genealogia da Moralou seja da mudanccedila de paradigma dos valores morais constituidores da cultura romana para os valoresmorais cristatildeos originados no interior da cultura judaica86 Leia-se novamente o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[35]) em que o niilismo passivo eacute apresentadocomo uma divinizaccedilatildeo de tudo que eacute decadente atraveacutes da valorizaccedilatildeo exacerbada de tudo que ldquorefrescacura tranquiliza anestesiardquo que passa para o primeiro plano de consideraccedilatildeo humana sob ldquodisfarcesdiversosrdquo O fato do filoacutesofo referir-se ainda ao ldquoNirvanardquo indica a proximidade com que considera tanto ocristianismo quanto o budismo ambos como sendo posicionamentos niilistas que pregam sob os mais belos

164

apresentado como um subterfuacutegio por meio do qual inocular os valores do niilismo o autor

combate a crenccedila na sacralidade dos valores morais fundamentados pela religiatildeo cristatilde No

entanto cumpre salientar que o ataque ao cristianismo nestas reflexotildees natildeo seria o cerne

mas apenas uma consequecircncia do ataque ao niilismo

De que o ataque de Nietzsche ao cristianismo seria apenas a consequecircncia de um

ataque mais amplo a toda uma forma de consideraccedilatildeo da realidade o autor nos demonstra

em diversas passagens do anticristo em que associa cristianismo e budismo agrave mesma

tendecircncia negativa em relaccedilatildeo ao impulso para ser mais proacuteprio de tudo que vive Ou seja

a renuacutencia a este iacutempeto de criaccedilatildeo e expansatildeo teria como substrato uma tendecircncia mais

geral o niilismo propriamente como tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo Desta forma tendo em

vista esclarecer que sua criacutetica ao cristianismo assim como ao budismo tinha no niilismo

um alvo mais geral o autor afirma natildeo querer fazer injusticcedila a estas duas expressotildees

religiosas Isto mesmo quando considera que ldquoAmbas devem ser classificadas entre as

religiotildees niilistasrdquo e logo que ldquoambas satildeo religiotildees de decadecircnciardquo (ACAC I sect20)De

fato o autor ateacute demonstra certa afinidade com os princiacutepios do budismo sobretudo sua

epistemologia que assim como a concepccedilatildeo sustentada por Nietzsche seria ldquoum

fenomenismo estritordquo (ACAC I sect20)

Apesar de sua determinaccedilatildeo se dirigir ao niilismo e de ateacute mesmo demonstrar certa

admiraccedilatildeo pelo budismo87 Nietzsche deixa claro em O Anticristo que o instinto teoloacutegico

seria uma ameccedila subterracircnea agrave vida na medida em que de forma velada propagaria os

valores da negaccedilatildeo da realidade em prol de uma realidade inexistente Nesta leitura o

filoacutesofo considera toda virtude religiosa como uma maacutescara um simulacro para camuflar

os reais propoacutesitos da moral que seria a extinccedilatildeo da vida por meio da supressatildeo de suas

manifestaccedilotildees mais fortes mais sadias Com isso uma desvalorizaccedilatildeo de todo sentimento

de forccedila tem lugar e todo instinto de criaccedilatildeo eacute suplantado a partir do instinto teoloacutegico

Assim tambeacutem a compaixatildeo a virtude cristatilde por excelecircncia eacute vista como um disfarce por

nomes o desejo do nada87 O budismo via de regra eacute considerado por Nietzsche uma forma superior de niilismo passivo Seja emsua consideraccedilatildeo da epistemologia budista como um ldquofenomenismo estritordquo seja em sua consideraccedilatildeo assuas prescriccedilotildees bem ao gosto de Nietzsche como tendo uma prescriccedilatildeo de fundo higiecircnico Vida ao ar livreviagens todas formas de combater uma depressatildeo originada em uma profunda sensibilidade ao sofrimentoesta forma de niilismo exime-se das criacuteticas agudas que o filoacutesofo impotildee ao cristianismo e sua moral Nascomparaccedilotildees que o filoacutesofo apresenta entre o cristianismo e o budismo Nietzsche realccedila o caraacuteter meramenteobjetivo da consideraccedilatildeo budista do mundo que em oposiccedilatildeo ao cristianismo natildeo enfrenta uma luta entre obem e o mal na forma de uma luta contra o pecado

165

meio do qual o niilismo esconderia seu rosto doentio no manto dos valores cristatildeos Como

disfarce por meio do qual seriam inoculados os valores niilistas o instinto teoloacutegico se

expressaria por meio da feacute uma espeacutecie de maacute visatildeo para com a realidade

A este instinto de teoacutelogo eu faccedilo guerra encontrei sua pista em todaparte Quem possui sangue de teoacutelogo no corpo jaacute tem ante todas ascoisas uma atitude enviesada e desonesta O paacutethos que daiacute se desenvolvechama a si mesmo de feacute cerrar os olhos a si mesmo de uma vez portodas para natildeo sofrer da visatildeo da incuraacutevel falsidade Dessa defeituosaoacutetica em relaccedilatildeo agraves coisas a pessoa faz uma moral uma virtude umasantidade vincula a boa consciecircncia agrave falsa visatildeo ndash exige que nenhumaoutra oacutetica possa mais ter valor apoacutes tornar sacrossanta a sua proacutepriausando as palavras ldquoDeusrdquo ldquosalvaccedilatildeordquo ldquoeternidaderdquo (ACAC I sect9)88

Como uma maacute visatildeo para com a falsidade que se transveste de boa consciecircncia a feacute

se expressa como um fechar os olhos para todo defeituoso que se encontra a nosso alcance

Este fechar os olhos para todo defeituoso torna-se um defeito na oacutetica do instinto teoloacutegico

que ignora que a vida depende fundamentalmente de falsidades Do mesmo modo a vida

parece se fortalecer com base nessas falsidades ineliminaacuteveis Esta oacutetica da vida nesse

sentido se confundiria com a oacutetica humana a oacutetica dos valores humanos

Aqui Nietzsche retoma uma concepccedilatildeo que sustenta desde seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira e que permanece no periacuteodo intermediaacuterio de sua obra A concepccedilatildeo

segundo a qual a vida depende fundamentalmente de certos erros para sua manutenccedilatildeo Por

outro lado agrave moral que se fundamenta na feacute nega esta caracteriacutestica fundamental da vida e

por isto se torna uma concepccedilatildeo niilista A esta moral niilista que eacute criada a partir dos

instintos teoloacutegicos estaria vinculada uma perspectiva defeituosa que estimula a natildeo

enxergar o defeituoso na existecircncia e que ao mesmo tempo deturpa o valor de outras

perspectivas A feacute agiria no sentido de fazer parecer toda outra perspectiva todo enxergar a

falsidade na realidade como moralmente defeituosa Esta deturpaccedilatildeo do valor de outras

oacuteticas seria propriamente o que se chama moral religiosa enquanto a negaccedilatildeo de toda

perspectiva que natildeo eacute tornada sacrossanta pela feacute ou seja que natildeo eacute contaminada pela

oacutetica defeituosa da feacute

88 Acompanhamos a traduccedilatildeo de David Jardim Juacutenior para a editora Nova Fronteira

166

Haacute que se pensar que a rejeiccedilatildeo nietzschiana dessa moral assim como da

perspectiva moral que lhe sustenta natildeo se relaciona com um problema teoloacutegico Natildeo

interessa ao filoacutesofo os problemas religiosos assim como a feacute mesma natildeo seria um

problema para o autor de O Anticristo No entanto enquanto parte de um movimento mais

amplo enquanto instrumento para a expansatildeo do niilismo esta perspectiva se torna algo a

ser criticado Importante nesse sentido compreender que a moral teoloacutegica natildeo respeita os

limites da mera religiatildeo se expandindo para diversas aacutereas da experiecircncia humana Motivo

pelo qual Nietzsche afirma encontrar este instinto teoloacutegico em todas as partes

Desencavei o instinto de teoacutelogo em toda parte eacute a mais disseminada aforma realmente subterracircnea de falsidade que existe na Terra O que umteoacutelogo percebe como verdadeiro tem de ser falso aiacute se tem quase queum criteacuterio da verdade Seu mais fundo instinto de conservaccedilatildeo proiacutebeque a realidade receba as honras ou mesmo assuma a palavra em algumponto Ateacute onde vai a influecircncia do teoacutelogo o julgamento de valor estaacute decabeccedila para baixo os conceitos de ldquoverdadeirordquo e ldquofalsordquo estatildeonecessariamente invertidos o que eacute mais prejudicial agrave vida chama-seldquoverdadeirordquo o que a realccedila eleva afirma justifica e faz triunfar chama-se ldquofalsordquohellip se acontece de os teoacutelogos atraveacutes da ldquoconsciecircnciardquo dospriacutencipes (ou dos povos ndash ) estenderem a matildeo para o poder natildeoduvidemos do que no fundo sempre se daacute a vontade de fim a vontadeniilista quer alcanccedilar o poder(ACAC I sect9)

A reflexatildeo que encontramos aqui entre a amplitude da esfera de atuaccedilatildeo dos

instintos teoloacutegicos e a questatildeo da verdade natildeo eacute acidental A radicalidade da criacutetica

nietzschiana a esta fragilidade fundamental da concepccedilatildeo teoloacutegica chega tatildeo longe a

ponto de quase tornar em princiacutepio de verdade a contraposiccedilatildeo agraves suas suposiccedilotildees

Nietzsche percebe na atuaccedilatildeo destes instintos a expansatildeo de uma moral niilista sob

diferentes aspectos da existecircncia humana que se tornam contaminados por um princiacutepio de

desvalorizaccedilatildeo que toma de assalto tudo o que interessaria agrave vida ser tomado como

verdadeiro Assim como uma maacute vontade para tudo que eacute defeituoso enquanto visatildeo

radicalmente contraacuteria aos elementos mais fundamentais de toda visatildeo a concepccedilatildeo

teoloacutegica da realidade distingue-se como visatildeo falsa por definiccedilatildeo Eacute contra esta forma de

maacute perspectiva que Nietzsche impotildee uma concepccedilatildeo de perspectividade de todo conhecer

167

Pois em sua leitura Nietzsche entende como verdadeiro tudo que se reconhece no caraacuteter

perspectivo relativo de toda concepccedilatildeo da realidade

Na leitura apresentada pelo autor a boa consciecircncia cristatilde que teria por base uma

visatildeo defeituosa seria profundamente marcada por uma incapacidade de perceber a

necessidade das perspectivas incapaz de atribuir valor a qualquer outra forma de ver

Assim a feacute nesta leitura seria a covarde negaccedilatildeo do caraacuteter aparente que eacute necessaacuterio agrave

existecircncia como negaccedilatildeo da falsidade inerente a toda forma de vida A suposiccedilatildeo de uma

perspectiva privilegiada proveniente da feacute seria assim um dos defeitos congecircnitos de toda

consideraccedilatildeo teoloacutegica da realidade

A compreensatildeo nietzschiana desta forma de considerar a realidade ao postular que

essa perspectiva limitativa tem sua origem em uma ldquovisatildeo defeituosardquo se associa em seu

pensamento agrave necessidade de se conceber uma forma de valorar que seja contraacuteria agrave loacutegica

do niilismo Em seu julgamento criacutetico o que torna a oacutetica teoloacutegica algo condenaacutevel seria

sua incapacidade em captar a falsidade como elemento fundamental da realidade Por outro

lado esta forma de se compreender as coisas eacute entendida como defeituosa porque lhe falta

o caraacuteter criativo inerente a todo olhar que se entende como um projetar o mundo a partir

de seu ponto de vista

A leitura nietzschiana do caraacuteter epistemoloacutegico da posiccedilatildeo teoloacutegica passa por uma

qualificaccedilatildeo do criteacuterio fisioloacutegico de verdade em contraposiccedilatildeo a uma caracterizaccedilatildeo

negativa dos valores morais Segundo esta leitura assim como a concepccedilatildeo teoloacutegica

constitui seus valores com base em uma atividade instintiva de negaccedilatildeo da vida tambeacutem

uma forma afirmativa de vida constitui seus valores atraveacutes da atuaccedilatildeo de seus instintos

Pois a potecircncia criativa que gera as perspectivas eacute vista pelo filoacutesofo como uma

manifestaccedilatildeo da proacutepria vontade por traacutes da realidade

O que a anaacutelise do instinto teoloacutegico nos ensina eacute que em um sentido fundamental

Nietzsche pensa que toda perspectiva parte de uma determinada configuraccedilatildeo instintual

Satildeo os instintos teoloacutegicos que orientam a formaccedilatildeo de uma moral niilista uma moral que

rejeita a realidade Dessa moral em outros termos desta primeira unidade de formaccedilatildeo de

valores surge a oacutetica que orienta os filoacutesofos metafiacutesicos a buscarem uma outra realidade

que natildeo a realidade das falsidades indispensaacuteveis agrave vida para fundamentar sua concepccedilatildeo

168

de verdade Nesse sentido a verdade mesma natildeo eacute tomada mais do que como um

indicativo de forccedila ou decadecircncia O valor mesmo recai natildeo sobre a veracidade da feacute mas

na configuraccedilatildeo de instintos que impulsiona a feacute em determinadas verdades

Estes instintos satildeo vistos por Nietzsche como manifestaccedilotildees de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedila Deste modo a criaccedilatildeo dos valores correspondente a uma atividade

instintual afirmativa em relaccedilatildeo agrave existecircncia dependeria tambeacutem de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedilas Em sua leitura os valores da moral teoloacutegica nunca satildeo tomados

como orientados para uma forma menos verdadeira de avaliaccedilatildeo da realidade Eles satildeo

considerados inferiores porque direcionados a uma forma de avaliar a vida que constrange

seu crescimento Do mesmo modo devemos supor que os valores criados a partir de uma

perspectiva afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida natildeo seriam mais verdadeiros do que os valores da

moral teoloacutegica No entanto enquanto guiados por uma oacutetica em que a falsidade da

realidade natildeo eacute ignorada estes valores seriam mais afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida

Se tomarmos estes valores como expressatildeo da verdade segundo as diferentes oacuteticas

em anaacutelise entatildeo chegaremos agrave conclusatildeo que o autor de Anticristo oferece uma anaacutelise de

seu valor sem levar em conta sua veracidade propriamente mas sua afinidade com as

exigecircncias da vida Em outras palavras importa mais ao autor o que se toma por

verdadeiro e o motivo pelo qual se toma isto por verdadeiro do que a verdade do que se

toma por verdadeiro Assim desde que ao fim aos valores criados nenhuma realidade

superior estaacute ligada tanto no caso da concepccedilatildeo teoloacutegica como no caso de uma concepccedilatildeo

afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida a veracidade em sentido tradicional natildeo importa para a

consideraccedilatildeo de sua validade

A liccedilatildeo que a anaacutelise dos valores teoloacutegicos nos ensina eacute que a oacutetica de onde uma

determinada moral eacute forjada eacute determinada por uma certa configuraccedilatildeo instintual que

determina seu valor Desde que o filoacutesofo entende que desde sempre nos movemos apenas

em meio a inverdades o fundamental seria caracterizar o valor destas inverdades para a

vida pois ldquoDe fato faz uma grande diferenccedila com que finalidade se mente se com isso

se conserva ou destroacuteirdquo (ACAC I sect58) Por outro lado ao cristianismo parece pertencer

um impulso para a negaccedilatildeo da realidade que nega inclusive esta negaccedilatildeo ela mesma ou

seja a moral cristatilde para o filoacutesofo parece fundamentar-se no esquecimento de seu valor

enquanto interpretaccedilatildeo

169

Na compreensatildeo nietzschiana nessa adoraccedilatildeo do aleacutem como uma doenccedila que se

propaga por meio da cultura o niilismo ameaccedila o futuro do homem na exata medida em

que os cientistas e filoacutesofos consideram avanccedilar em seu conhecimento do mundo O autor

sinaliza o avanccedilo desta concepccedilatildeo sobre as demais esferas da experiecircncia humana atraveacutes

de sua denuacutencia da confluecircncia da filosofia e da religiatildeo assim como no crescente apreccedilo

pela compaixatildeo como virtude uacuteltima na moral Esta compreensatildeo eacute vista por Nietzsche

como contraacuteria a tudo que era tomado como bom senso em filosofia ateacute Kant89 como

atesta o reconhecimento de ilustres pensadores anteriores a si como representantes

destacados da criacutetica agrave compaixatildeo

Atraveacutes dessa leitura todo impulso metafiacutesico eacute visto pelo filoacutesofo como tendecircncia

funesta impulso para o nada disfarccedilado de vontade de verdade Por esse motivo a vontade

de verdade estaria intrinsecamente associada agrave vontade de morte enquanto vontade de que

cesse o vir-a-ser da existecircncia Por outro lado o avanccedilo da concepccedilatildeo filosoacutefica que vecirc na

compaixatildeo a virtude moral por excelecircncia apresenta-se para Nietzsche como sintoma do

avanccedilo do proacuteprio niilismo que passa aos olhos desapercebidos dos filoacutesofos europeus na

figura do melhoramento do homem90

89 A opiniatildeo de Nietzsche acerca da moral kantiana eacute sujeita a alguma variaccedilatildeo no interior de sua obraEmbora aqui Kant apareccedila entre os filoacutesofos ilustres que antes de Nietzsche se contrapuseram agrave compaixatildeocomo virtude em O Anticristo Nietzsche reproduziraacute uma extensa criacutetica agrave moral kantiana a associando auma forma niilista de consideraccedilatildeo do mundo ldquoAlgumas palavras agora contra Kant como moralista Umavirtude tem de ser nossa invenccedilatildeo deve brotar de nossas necessidades naturais para nossa defesa Emqualquer outro caso eacute uma fonte de perigo Tudo que natildeo pertence agrave nossa vida a ameaccedila uma ldquovirtuderdquocomo Kant queria eacute perniciosa ldquoVirtuderdquo ldquodeverrdquo o ldquobem pelo bemrdquo a bondade baseada na impessoalidadeou em uma noccedilatildeo de validez universal ndash tudo isso natildeo passa de quimeras e nelas encontramos apenas umaexpressatildeo de decadecircncia o uacuteltimo colapso da vida o espiacuterito chinecircs de Koumlnigsberg Exatamente o contraacuterio eacuteexigido pelas mais profundas leis da autopreservaccedilatildeo e do desenvolvimento perceber que todo homemencontra sua proacutepria virtude o seu proacuteprio imperativo categoacuterico Uma naccedilatildeo se despedaccedila quandoconfunde o seu dever com o conceito geral de dever Nada provoca mais completo e pungente desastre doque todo dever ldquoimpessoalrdquo todo sacrifiacutecio diante do Moloc da abstraccedilatildeo Pensar-se que ningueacutem achou oimperativo categoacuterico de Kant perigoso para a vidahellip Somente o instinto teoloacutegico o tomou sob suaproteccedilatildeo ndash uma accedilatildeo motivada pelo instinto vital mostra-se uma accedilatildeo correta pela quantidade de prazer quetraz consigo no entanto aquele niilista com as suas entranhas de dogmatismo cristatildeo considera o prazercomo uma objeccedilatildeohelliprdquo (ACAC I sect11)90 No aforismo onze do segundo livro de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Nietzsche opotildee sua concepccedilatildeo de moralcomo obediecircncia aos instintos agrave concepccedilatildeo que equaciona felicidade com a obediecircncia agrave Razatildeo e que entendeo ensinamento da subserviecircncia agrave Razatildeo como uma forma de moral do aperfeiccediloamento Jaacute no livro seacutetimoda mesma obra intitulada Os ldquomelhoradores da humanidaderdquo o autor parte da compreensatildeo da inexistecircnciade ldquofatos moraisrdquo para qualifica a moral como uma maacute interpretaccedilatildeo de determinados fenocircmenos Nessesentido aquilo que os pregadores morais teriam realizado sob a prerrogativa de melhoramento dahumanidade apenas teria significado um amansamento uma debilitaccedilatildeo da forccedila inerente ao homem(GDCI VII sect2)

170

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo

Em um fragmento poacutestumo de 1885 ou 1886 que pertenceu aos planos para um

livro acerca do niilismo europeu (Der europaumlische Nihilismus)91 Nietzsche apresenta uma

reflexatildeo profunda acerca da emergecircncia do niilismo Nessa reflexatildeo o autor pensa que o

niilismo como consequecircncia de um processo em curso de desvalorizaccedilatildeo da realidade

estaria estreitamente relacionado ao fato de que nossa realidade natildeo pode ser desvinculada

de nossa oacutetica de avaliaccedilatildeo

Mais do que a mera desvalorizaccedilatildeo da realidade por conta de sua falsidade

estrutural o niilismo implicaria uma rejeiccedilatildeo do valor de tudo aquilo que natildeo pertenceria agrave

realidade de maneira certa e incorruptiacutevel Em outros termos tudo que eacute acrescentado agrave

realidade por meio da atividade humana eacute tomado em uma leitura niilista como

contaminaccedilatildeo Quase como se por meio de nossa interpretaccedilatildeo da realidade a

destituiacutessemos de valor por acrescentar a ela a limitaccedilatildeo caracteriacutestica de nossa oacutetica

Por outro lado segundo a compreensatildeo nietzschiana uma realidade tal como o

homem a venera em sua eternidade e veracidade natildeo teria valor para noacutes Pois tudo que

tem valor na realidade para o homem eacute produto de sua atividade de interpretaccedilatildeo Para noacutes

tem valor o mundo em que vivemos que criamos que somos Assim o filoacutesofo afirma

que ldquoOcasiona o seu ocaso a oposiccedilatildeo do mundo que noacutes veneramos do mundo em que

noacutes vivemos que noacutes somosrdquo (NFFP 1885 2[131])92 Com isso Nietzsche pretendia

assinalar que diante da eminecircncia de uma forma radical de niilismo teriacuteamos duas opccedilotildees

ou aboliriacuteamos nossa adoraccedilatildeo do mundo ideal ou de noacutes mesmos Segundo sua leitura a

segunda forma seria uma expressatildeo do niilismo cuja emergecircncia o autor considerava uma

certeza como expressatildeo do desenvolvimento do pessimismo inerente agrave valorizaccedilatildeo da

91 Extraiacutedo de (eKGWBNF-18852[131] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1885 mdash Herbst 1886)Exceto menccedilatildeo em contraacuterio para a traduccedilatildeo foram utilizadas as traduccedilotildees de Marco Antocircnio Casanova parao volume VI das traduccedilotildees dos fragmentos poacutestumos da editora Forense Universitaacuteria92 Segundo Araldi (ARALDI 1998 Paacutegs 77) esse aforismo pertence aos planos para elaboraccedilatildeo de A GaiaCiecircncia correspondendo ao aforismo 346 onde Nietzsche diz ldquoNatildeo caiacutemos exatamente com isso nasuspeita de uma oposiccedilatildeo uma oposiccedilatildeo entre o mundo no qual ateacute hoje nos sentiacuteamos em casa com nossasveneraccedilotildees ndash em virtude das quais talvez suportaacutessemos viver ndash e um outro mundo que somos noacutes mesmosnuma inexoraacutevel radical profunda suspeita acerca de noacutes mesmos que cada vez mais e de forma cada vezpior toma conta de noacutes europeus e facilmente poderia colocar as geraccedilotildees vindouras ante essa terriacutevelalternativa lsquoou suprimir suas veneraccedilotildees ou ndash a si mesmosrsquo esta seria niilismo mas aquela natildeo seria tambeacutemndash niilismo Eis a nossa interrogaccedilatildeordquo (FWGC V sect346)

171

realidade segundo os juiacutezos de valor cristatildeo que eram juiacutezos de valor moral baseado na

ldquovontade de verdaderdquo

O diagnoacutestico do filoacutesofo eacute claro se queremos superar o niilismo temos que

escolher entre uma realidade ideal e a realidade de nossas valoraccedilotildees a realidade em que

vivemos que noacutes somos Como forma de se contrapor ao niilismo restaria ao homem uma

valorizaccedilatildeo da realidade de nossas impressotildees como valor em si mesma Estas satildeo as

consequecircncias que se pode extrair das vaacuterias conclusotildees da filosofia nietzschiana acerca da

relaccedilatildeo entre a vida e a verdade Ou seja se nessa leitura a vida apenas pode prosperar no

que eacute perspetivo se a vida depende fundamentalmente de falsidade a realidade ideal seria

um siacutembolo para nossa extinccedilatildeo Assim ao homem interessaria sobretudo abrir matildeo de

uma realidade ideal em prol da realidade de suas proacuteprias avaliaccedilotildees

No entanto a ideia de uma realidade ideal apenas eacute operante na filosofia da

antiguidade Assim como uma forma de traduzir este problema para sua eacutepoca o filoacutesofo

converte a ideia de um colapso da realidade ideal na ideia da morte de Deus O Deus veraz

que eacute traduzido na filosofia moderna como o grande garantidor da verdade substitui na

filosofia contemporacircnea a ideia de uma realidade ideal Com o anuacutencio da morte de Deus

que aparece no fim do periacuteodo intermediaacuterio da obra nietzschiana93 o filoacutesofo identifica o

estado geral do homem moderno com a ausecircncia do valor supremo da vida considerado

ateacute entatildeo como uacutenica garantia de felicidade para o homem num aleacutem-mundo

A passagem em que a morte de Deus eacute revelada na obra nietzschiana de forma mais

expressiva e rica de sentido eacute o aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia Nesta passagem que

ocupa um lugar estrateacutegico no livro trecircs daquela obra logo apoacutes o louvor do horizonte

aberto agraves novas descobertas e antes de uma seacuterie de explicaccedilotildees acerca das supersticcedilotildees

religiosas94 o autor nos potildee diante do evento decisivo da morte de Deus

93 Pela primeira vez em A Gaia Ciecircncia e novamente em Assim Falou Zaratustra94 Para efeito de compreensatildeo o tiacutetulo dos aforismos que se seguem ao 125 satildeo 126 Explicaccedilotildees miacutesticas127 Efeito posterior da antiga religiosidade 128 O valor da oraccedilatildeo 129 As condiccedilotildees para Deus 130 Umadecisatildeo perigosa breve reflexatildeo acerca do fato da decisatildeo cristatilde de achar o mundo feio e ruim que acaba portornar o mundo feio e ruim 131 o cristianismo e o suiciacutedio 132 contra o cristianismo e outros queapresentam sempre a ideia de uma criacutetica agraves crenccedilas religiosas inclusive agraves do cristianismo comosupersticcedilotildees mal fundadas Isto ateacute o 145 que apresenta uma variaccedilatildeo do tema na criacutetica ao vegetarianismoApoacutes este o autor apresenta uma criacutetica ao nacionalismo alematildeo e a seguir volta a atacar o cristianismo

172

O louco saltou no meio deles e os transpassou com os olhos ldquoOnde estaacuteDeus ele chorou eu quero te dizer Noacutes o matamos ndash vocecirc e eu Somostodos seus assassinos Mas como fizemos isso Como pudemos beber omar Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro O quefizemos ao desatar a terra do seu sol Onde eles estatildeo se movendo agoraPara onde vamos Longe de todos os soacuteis Natildeo estamos mergulhandocontinuamente Para traacutes para os lados para frente em todas asdireccedilotildees Existe ainda algum em cima ou para baixo Natildeo estamosvagando como que atraveacutes de um nada infinito Natildeo sentimos na pele osopro do vaacutecuo Natildeo ficou mais frio Natildeo permanece sempre a noite emais noite Natildeo se tem que acender lanternas de manhatilde Natildeo ouvimos obarulho da cova de Deus sendo cavada Natildeo sentimos o cheiro daputrefaccedilatildeo divina - Deuses tambeacutem decompotildeem-se Deus estaacute mortoDeus continua morto E noacutes o matamos Como havemos de nos consolaros assassinos de todos os assassinos O santo e mais poderoso que omundo ateacute entatildeo possuiacutea ele sangrou ateacute a morte em nossas facas - quemvai limpar o este sangue de noacutes Com que aacutegua poderiacuteamos nospurificar A expiaccedilatildeo que jogos sagrados teremos de inventar natildeo amagnitude desta obra muito grande para noacutes Natildeo devemos nos tornarDeuses simplesmente para aparecer digno Nunca houve uma maior accedilatildeondash e quem eacute nascido depois de noacutes pertence a este ato de amor de umamaior histoacuteria de toda a histoacuteria ateacute aqui (FWGC Livro III sect125)

O clima geral de duacutevida em torno do anuacutencio da morte de Deus parece tornar clara

a ideia fundamental de que com a extinccedilatildeo deste fundamento uacuteltimo da veracidade todo

posicionar-se eacute determinantemente abalado Por isso o texto faz menccedilatildeo agrave concepccedilotildees

cientiacuteficas como a ideia da gravitaccedilatildeo da terra em torno do sol o qual ainda se relaciona

com a concepccedilatildeo platocircnica de bem que eacute representada como o sol que ilumina a verdade

e portanto reforccedila a ideia de que o racionalismo da ciecircncia se relaciona com a crise da

verdade representada pela morte de Deus

Deus como siacutembolo de uma realidade ideal inexistente que chega a seu colapso na

filosofia Nietzscheana O que significa neste contexto que toda a busca por certezas ou a

vontade de verdade proacutepria da ciecircncia satildeo interpretados nessa leitura como oriundos de

um empreendimento desprovido de sentido Pois na medida em que o processo mesmo de

desenvolvimento das ciecircncias foi guiado por uma vontade de verdade sobretudo a partir do

seacuteculo XIX entatildeo o que condiciona seu desenvolvimento eacute uma loacutegica interna de auto-

supressatildeo Isto porque eacute o proacuteprio avanccedilo da moralidade cristatilde que condiciona esta

vontade de verdade Por sua vez o aacutepice do desenvolvimento desta moralidade cristatilde eacute a

consciecircncia da falta de sentido da proacutepria vontade de verdade Assim diante da

necessidade que a moralidade cristatilde ocasiona desta efetuar sua proacutepria criacutetica o colapso

173

do edifiacutecio teoacuterico criado pela racionalidade ocidental jaacute podia estar determinado desde a

fundaccedilatildeo de seus alicerces

Eacute a proacutepria exigecircncia de rigor da ciecircncia que eacute uma consequecircncia da moralidade

cristatilde presente neste empreendimento teoacuterico que gera as condiccedilotildees para o colapso de seu

fundamentos Este colapso tem sua expressatildeo mais clara na filosofia nietzschiana na ideia

da morte de Deus no colapso da proacutepria moralidade cristatilde por conta de suas proacuteprias

exigecircncias Por sua vez a ciecircncia que se deixa determinar por essa moralidade encontra

seu colapso no colapso da ideia de um fundamento uacuteltimo para a verdade representado

aqui na ideia de Deus

A destituiccedilatildeo de validade de um sistema de crenccedilas e conhecimento a ciecircncia

mesma perece por forccedila das contradiccedilotildees internas da moralidade a partir da qual se

desenvolveu Atinge seu ponto de validade mais baixo por determinaccedilatildeo de seus proacuteprios

fundamentos morais Ou seja na medida em que o mundo ideal pensado por Nietzsche

como sendo a proacutepria expressatildeo de nosso ponto mais baixo em termos de vitalidade

corresponderia em sua eacutepoca agrave ideia de Deus o filoacutesofo concebe a morte de Deus como

correlato agrave supressatildeo da realidade ideal De maneira que o ldquomaior de todos os eventosrdquo eacute

percebido em sua filosofia como evento marcante no processo de desenvolvimento do

niilismo

2) O cristianismo perecendo de sua moral ldquoDeus eacute a verdaderdquo ldquoDeus eacute oamorrdquo ldquoo Deus justordquo ndash o maior de todos os eventos ndash ldquoDeus estaacute mortordquondash sentido de maneira grosseira A tentativa alematilde de transformar ocris[tianismo] em uma gnose eacute recusada por uma desconfianccedila profundao ldquoinveriacutedicordquo aiacute eacute experimentado da maneira mais forte o possiacutevel(contra Schelling por exemplo) (NFFP 1885 2[131])

Nietzsche analisa a pouca influecircncia desse evento ainda em sua eacutepoca e concluiacute que

este evento ainda era sentido de forma grosseira em contraposiccedilatildeo por exemplo a uma

tentativa de se reorganizar o cristianismo decadente transformando-o em uma expressatildeo

da ciecircncia Em um outro fragmento poacutestumo de 1886 ou 188795 outro plano para o

trabalho intitulado O Niilismo Europeu Nietzsche reflete sobre o niilismo ativo e sua

95 Idem (eKGWBNF-18865[71]) mdash Nachgelassene Fragmente Sommer 1886 mdash Herbst 1887 citado nocapiacutetulo anterior paacuteg 138

174

expressatildeo na moral cristatilde Em sua leitura o fato dessa moral natildeo haver ocasionado um

aumento na indigecircncia ou seja uma intensificaccedilatildeo no empobrecimento intelectual da

Europa favorece sua crenccedila de que tal seria consequecircncia de uma alianccedila entre a

intelectualidade e a moral cristatilde Nesse sentido os eruditos como manifestaccedilotildees do

niilismo ativo teriam mesmo se utilizado dos artifiacutecios da moral cristatilde como meios para

sua conservaccedilatildeo

Estes fragmentos como se vecirc satildeo contemporacircneos ao periacuteodo de preparaccedilatildeo de A

Gaia Ciecircncia periacuteodo em que Nietzsche refletia fortemente acerca da morte de Deus e sua

relaccedilatildeo com o niilismo conceito que no entanto natildeo aparece nos livros anteriores ao livro

cinco daquela obra Assim uma anaacutelise daquele que considerava o maior de todos os

eventos pertencia aos seus planos de anaacutelise do fenocircmeno niilismo evento narrado ainda

nos primeiros livros daquela obra e que portanto haviam sido elaborados de forma

passiacutevel agrave publicaccedilatildeo antes de suas conclusotildees acerca do niilismo terem tomado uma

forma apresentaacutevel

Na medida em que o niilismo enquanto movimento histoacuterico de desvalorizaccedilatildeo

dos valores relaciona-se com o conceito de Deus enquanto fundamento uacuteltimo da

verdade o niilismo mais extremo adquire sentido positivo a partir da queda do uacuteltimo e

mais elevado dos valores que fundamentam a concepccedilatildeo filosoacutefica ocidental Para

Nietzsche o niilismo apenas se torna expressatildeo de um grande risco na Europa por conta

de sua associaccedilatildeo com os valores inerentes a uma concepccedilatildeo moral da realidade

notadamente sua concepccedilatildeo de um mundo do aleacutem apartado do mundo dos fenocircmenos No

entanto eacute esta mesma forma de moralidade que culminando no sentido de uma necessaacuteria

veracidade conduz ao colapso das consideraccedilotildees advindas da forma cristatilde de consideraccedilatildeo

da realidade como diz Araldi

A moral cristatilde eacute o evento determinante do Ocidente No cristianismo ainterpretaccedilatildeo moral da existecircncia e do mundo se impotildee em todo o seusignificado e com pretensatildeo absoluta de domiacutenio A vontade de verdadeou a ambiccedilatildeo metafiacutesica de certeza tem sua gecircnese jaacute em Soacutecrates ePlatatildeo mas eacute no cristianismo que ela desdobra a amplitude de seu sentidoe de seu caraacuteter problemaacutetico e ambiacuteguo A vontade de verdade quenasce da moral cristatilde volta-se contra a moral contra a necessidade dementira e falsificaccedilatildeo do mundo que ela comporta (ARALDI 1998Paacutegs 79)

175

A vontade de verdade impulsionada pela consideraccedilatildeo cristatilde da realidade aponta

para uma criacutetica da consideraccedilatildeo falsa do mundo que eacute inerente agrave moral cristatilde torna-se

eminente a crise da proacutepria concepccedilatildeo de veracidade e do fundamento uacuteltimo dessa

veracidade segundo uma consideraccedilatildeo moral cristatilde Nesse sentido o avanccedilo do niilismo

nos meios intelectuais da Europa estaria vinculado a outro evento histoacuterico de importacircncia

igualmente significativa a morte de Deus

A partir da aproximaccedilatildeo entre a moral cristatilde e o niilismo que eacute tiacutepica do uacuteltimo

periacuteodo de produccedilatildeo da filosofia nietzschiana o filoacutesofo concebe uma possibilidade de

superaccedilatildeo do niilismo no esgotamento vital da concepccedilatildeo cristatilde Com base na afirmaccedilatildeo de

Dostoieacutevski ldquoSe Deus natildeo existe tudo eacute permitidordquo96 Nietzsche vislumbra natildeo o terror do

relativismo moral que parece motivar o romancista russo mas a liberdade de atuaccedilatildeo

teoacuterica independente da necessidade de verdade da vontade de verdade proacutepria do

pensamento racionalista Eacute nesse sentido por exemplo que o filoacutesofo relaciona a ideia da

queda dos fundamentos da necessidade de se crer na verdade com a ideia de uma

liberdade de atuaccedilatildeo improacutepria de homens acostumados com os valores cristatildeos e com a

qual estes teriam entrado em contato pela primeira vez quando adentram os segredos da

seita oriental dos assassinos

Quando os cruzados cristatildeos no Oriente depararam com aquela invenciacutevelOrdem dos Assassinos aquela ordem de espiacuteritos livres par excellencecujos graus inferiores viviam numa obediecircncia que nenhuma ordemmonaacutestica alcanccedilou igual obtiveram de algum modo informaccedilatildeo sobreaquele siacutembolo e senha reservado aos graus superiores como seusecretum ldquoNada eacute verdadeiro tudo eacute permitido (GMGM III sect24)

As questotildees levantadas pela passagem em questatildeo dizem respeito ao verdadeiro

sentido de espiacuterito livre Se considerarmos verdadeiro o que Nietzsche nos diz nessa

passagem em contraposiccedilatildeo aos cientistas os membros da seita dos assassinos seriam

verdadeiros modelos de espiacuteritos livres Para o filoacutesofo isso se deveria sobretudo a sua

libertaccedilatildeo do uacuteltimo dos entraves ao espiacuterito a crenccedila na verdade A suprema sabedoria

96 Expressatildeo utilizada por Dostoieacutevski em sua famosa obra Irmatildeos Karamazov e que impactouprofundamente a reflexatildeo nietzschiana natildeo apenas em seu desenvolvimento da ideia da morte de Deus masainda na reflexatildeo em torno das consequecircncias morais da ausecircncia da crenccedila na verdade

176

expressa na renuacutencia de toda forma de verdade aparece nessa leitura como traccedilo

caracteriacutestico de uma vivecircncia da realidade superior a toda forma de sabedoria advinda do

meacutetodo cientiacutefico

A ecircnfase nietzschiana na expressatildeo ldquonada eacute verdadeiro tudo eacute permitidordquo eacute bastante

expressiva Ela atua no sentido de realccedilar uma revelaccedilatildeo fundamental uma sabedoria

superior reservada apenas aos graus mais elevados da seita dos assassinos Esta sabedoria

ganha sentido na contraposiccedilatildeo desta com aquilo que era considerado sabedoria pelos

autoproclamados uacuteltimos idealistas os cientistas de sua eacutepoca Se estes se consideravam

espiacuteritos livres na medida em que pensavam terem conquistado independecircncia para com

toda forma de dogmatismo o filoacutesofo lhes apresenta ainda uma uacuteltima crenccedila da qual

teriam esquecido de se desvencilhar Seria portanto a partir de sua compreensatildeo do que

significa ser um espiacuterito livre que Nietzsche descreve a distacircncia entre os cientistas e os

membros da seita dos assassinos

Diante da imagem dos membros da seita dos assassinos os quais se libertaram ateacute

mesmo da ideia de verdade algo que os cientistas estariam longe de alcanccedilar Nietzsche

estabelece como criteacuterio uacuteltimo de libertaccedilatildeo da metafiacutesica a renuacutencia da crenccedila na

verdade Eacute a partir da compreensatildeo de que os cientistas ao permanecerem presos agrave

verdade natildeo poderiam reclamar para si o tiacutetulo de espiacuteritos livres que eacute posta em duacutevida o

caraacuteter antimetafiacutesico e ateu da ciecircncia de sua eacutepoca Ao confrontar os cientistas modernos

com sua crenccedila na verdade a qual o autor relaciona como uma uacuteltima expressatildeo do

idealismo os pretensos espiacuteritos livres satildeo tomados como aqueles que natildeo compreendem

ateacute que ponto ainda permanecem presas de uma crenccedila ancestral na verdade Apesar de sua

profissatildeo de feacute contra a autoridade teoloacutegica

De modo geral sem ferir o sentido do texto nietzschiano podemos considerar que

nessa passagem Nietzsche efetua uma reformulaccedilatildeo da expressatildeo de Dostoieacutevski ao

substituir o termo ldquoDeusrdquo pelo termo ldquoverdaderdquo que para o autor poderia ser tomado como

uma traduccedilatildeo literal do sentido de Deus Com isso nos aproximamos da grande

significacircncia de sua concepccedilatildeo da morte de Deus que entendemos como querendo

significar principalmente crise da concepccedilatildeo de verdade A morte de Deus como aacutepice da

desvalorizaccedilatildeo da crenccedila em um mundo verdadeiro traz consigo o reconhecimento de que

a abdicaccedilatildeo da crenccedila na verdade traz de volta a liberdade de atuaccedilatildeo necessaacuteria aos

177

espiacuteritos livres Pois em sentido amplo a morte de Deus enquanto o maior evento da

histoacuteria humana leva consigo todas as certezas

Eacute assim por exemplo que Heidegger em sua avaliaccedilatildeo criacutetica da filosofia

nietzschiana interpreta a morte de Deus como um ponto central do niilismo nietzschiano

articulando este conceito com a ideia da caducidade do sentido97 Para o filoacutesofo em uma

leitura que privilegia a originalidade do pensamento nietzschiano e sua relaccedilatildeo com os

desdobramentos do niilismo esta concepccedilatildeo compreendida como momento histoacuterico

singular poderia mesmo ser resumida na expressatildeo nietzschiana ldquoDeus estaacute mortordquo que

marca um ponto de viragem entre o desenvolvimento posterior e a culminacircncia e extrema

significaccedilatildeo que o niilismo viria a obter no seacuteculo vindouro Para Heidegger se o Deus

Cristatildeo ocupa para a eacutepoca de Nietzsche o lugar de principal representaccedilatildeo do

suprassensiacutevel a denuacutencia da caducidade dessa representaccedilatildeo carrega o sentido de uma

crise na credibilidade do proacuteprio suprassensiacutevel que eacute o traccedilo fundamental do niilismo

Nietzsche emprega a palavra ldquoniilismordquo como o nome para o movimentohistoacuterico por ele reconhecido pela primeira vez que jaacute transpassava demaneira determinante os seacuteculos precedentes e que determina o seuproacuteximo seacuteculo um movimento cuja interpretaccedilatildeo essencial ele concentrana sentenccedila ldquoDeus estaacute mortordquo essa sentenccedila quer dizer o ldquoDeus cristatildeordquoperdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definiccedilatildeo do homem O ldquoDeuscristatildeordquo eacute ao mesmo tempo a representaccedilatildeo diretriz para oldquosuprassensiacutevelrdquo em geral e para as suas diversas interpretaccedilotildees para osideias e para as normas para os ldquoprinciacutepiosrdquo e as ldquoregrasrdquo para asldquofinalidadesrdquo e os ldquovaloresrdquo que satildeo erigidos ldquosobrerdquo o ente a fim de lheldquodarrdquo ao ente na totalidade uma meta uma ordem e ndash como se diz demaneira sucinta ndash um ldquosentidordquo Niilismo eacute aquele processo histoacuterico pormeio do qual o domiacutenio do ldquosuprassensiacutevelrdquo se torna nulo e caduco de talmodo que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido Niilismo eacute ahistoacuteria do proacuteprio ente uma histoacuteria por meio da qual a morte do Deuscristatildeo vem agrave tona de maneira lenta mas irremediaacutevel (HEIDEGGER2014 Paacuteg 482)

Assim na leitura heideggeriana na medida em que Deus torna-se a fundamentaccedilatildeo

do mundo suprassensiacutevel o evento descomunal da morte de Deus significa que a validade

desta realidade caduca deixa de ser atuante Com isso o conceito de Deus que estaria no

97 As polecircmicas em torno da interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana satildeo bastante conhecidasNossa referencia agrave interpretaccedilatildeo de Heidegger natildeo significa uma adesatildeo irrestrita agrave suas posiccedilotildees mas oreconhecimento de que este eacute um autor que natildeo se pode desconsiderar ao propor-se uma interpretaccedilatildeo dopensamento nietzschiano No entanto a interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana eacute tomada aquicom bastante cautela conforme jaacute antecipado na introduccedilatildeo deste trabalho

178

cerne das preocupaccedilotildees nietzschianas especialmente em relaccedilatildeo ao niilismo como a

culminacircncia e preparaccedilatildeo para a superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

quer significar apenas a validade dos valores e do sentido Na interpretaccedilatildeo heideggeriana

o conceito do Deus cristatildeo que ocupa uma posiccedilatildeo central em relaccedilatildeo ao sentido como

norma como lei e como fundamento tem a significacircncia de um agregador de sentido

metafiacutesico Assim como o niilismo como consequecircncia da crenccedila na caducidade dos

valores e das normas significaria o colapso da crenccedila na validade da realidade

suprassensiacutevel que tem seu colapso traduzido na simples expressatildeo ldquoDeus estaacute mortordquo

Com o colapso da crenccedila na verdade que tem seu correlato na moral na crenccedila

cristatilde no Deus garantidor da verdade colapsaria todo o edifiacutecio de sentido da humanidade

que na eacutepoca de Nietzsche estaria fundado no suprassensiacutevel Ainda segundo Heidegger

este problema fundamental seria mesmo o problema nietzschiano por excelecircncia Do

mesmo modo o niilismo como movimento histoacuterico que conduz ao colapso da crenccedila na

verdade representada na figura do Deus cristatildeo seria o meio atraveacutes do qual a reflexatildeo

nietzschiana poderia se constituir em uma leitura acerca do sentido metafiacutesico da

existecircncia

Podemos discordar de Heidegger na medida em que natildeo identificamos na filosofia

nietzschiana a busca por um sentido metafiacutesico da existecircncia98 Ainda assim podemos

concordar com o filoacutesofo na concepccedilatildeo que toma a morte de Deus enquanto

acontecimento filosoacutefico como possuindo um lugar de proeminecircncia entre as conclusotildees

teoacutericas de Nietzsche Do mesmo modo compreendemos que Heidegger compreende bem

esta concepccedilatildeo quando a vincula ao problema do valor e de sua crise que se expressa na

obra nietzschiana na forma do niilismo

98 Sobre a questatildeo da influecircncia de Heidegger na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas do niilismo eda morte de Deus Claudemir Araldi esclarece na nota sete do artigo de que temos nos utilizado em nossainterpretaccedilatildeo ldquoHeidegger ressalta a importacircncia da questatildeo do niilismo no pensamento de Nietzsche ateacute oponto de afirmar lsquoSeu pensamento se vecirc sob o signo do niilismorsquo (Heidegger 5 p 178) O filoacutesofo daFloresta Negra entretanto procura levar a seacuterio Nietzsche como pensador metafiacutesico situando o niilismo nahistoacuteria metafisicamente determinada do Ocidente Criticando Nietzsche Heidegger diraacute que nihil emniilismo eacute um conceito de ser e natildeo de valor Visto que Nietzsche investiga o niilismo a partir da moralHeidegger distancia-se radicalmente do projeto nietzschiano pois remete agrave essecircncia do niilismo agrave Questatildeo doSer Apesar da distacircncia entre os projetos filosoacuteficos de Nietzsche e de Heidegger parece-nos pertinente ainterpretaccedilatildeo heideggeriana do niilismo como um processo fundamental (constituiacutedo de um advento de umdesenvolvimento e por sua superaccedilatildeo) que move a Histoacuteria do Ocidente A Morte de Deus eacute o eventofundamental nesse processo tendo como consequecircncias a ruiacutena do mundo supra-sensiacutevel e a derrocada dosvalores tradicionaisrdquo (ARALDI 1998 Paacutegs 91)

179

No entanto a restituiccedilatildeo do valor agrave esfera do ser que parece ser o ponto

fundamental da interpretaccedilatildeo de Heidegger ultrapassa em muito nossa interpretaccedilatildeo da

filosofia nietzschiana Em nossa compreensatildeo seria a partir de uma reconstruccedilatildeo teoacuterica

do avanccedilo da moral cristatilde em sua eacutepoca que Nietzsche traccedilaria uma iacutentima relaccedilatildeo entre o

aspecto histoacuterico do niilismo e a questatildeo da perspectiva da genealogia dos valores morais99

Nesse sentido em sua leitura da histoacuteria do surgimento e superaccedilatildeo do niilismo

tanto o racionalismo socraacutetico quanto a fundamentaccedilatildeo da crenccedila cristatildeo ocupam lugar

privilegiado na constituiccedilatildeo de uma realidade suprassensiacutevel em que eacute depositada toda a

crenccedila e todos os valores da humanidade100 A morte de Deus seria vista nessa leitura como

uma etapa do processo de negatividade instaurado pela proacutepria loacutegica do niilismo processo

que tem seu fechamento e conclusatildeo jaacute preacute-determinado desde sua origem na criaccedilatildeo do

mundo ideal o qual Nietzsche localiza no racionalismo socraacutetico

Dessa forma o anuacutencio da morte de Deus constitui um dos aspectos de suma

importacircncia no desenvolvimento da dinacircmica proacutepria do niilismo explicitada por

Nietzsche na medida em que aqui se daria o ponto de ruptura em que o niilismo

engendraria a partir de seu progresso sua proacutepria superaccedilatildeo Atraveacutes do processo de

internalizaccedilatildeo da veracidade em seus valores fundamentais o cristianismo teria

possibilitado a tomada de consciecircncia dos paradoxos envolvidos na proacutepria crenccedila na

verdade Assim a morte de Deus representaria a tomada de consciecircncia da derrocada da

metafiacutesica na medida em que potildee abaixo sua pretensatildeo de verdade a validade das

verdades eternas e inalcanccedilaacuteveis ao homem em sua vivecircncia material O conceito de Deus

o fundamento uacuteltimo da verdade para a metafiacutesica que desde Platatildeo faz sua entrada no

reino das preocupaccedilotildees filosoacuteficas por meio da categoria de bem101 colapsa diante do

avanccedilo de uma tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo de todos os valores que eacute impulsionada pela

crenccedila da filosofia em encontrar a verdade objetiva em uma realidade extrafenomecircnica

99 Ainda conforme Araldi sobre a relaccedilatildeo entre a histoacuteria de desenvolvimento do niilismo e sua relaccedilatildeo coma moral cristatilde ldquoEacute a partir da histoacuteria da moral que o filoacutesofo procuraraacute caracterizar e validarmetodologicamente as diversas formas de niilismo Ou seja o niilismo foi cunhado na obra de Nietzsche apartir da investigaccedilatildeo da moral da qual resulta a elaboraccedilatildeo de um novo meacutetodo de anaacutelise da moral oprocedimento genealoacutegicordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 78)100 A histoacuteria de um erro a faacutebula nietzschiana expressa em Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da origem ecolapso da ideia de uma realidade ideal ou mundo verdadeiro pode ser lida em consonacircncia com estainterpretaccedilatildeo de onde se entende em que sentido a morte de Deus pode ser lida como um ponto de viragemem relaccedilatildeo agrave mentira de dois mil anos da idealidade de uma realidade apartada da realidade das perspectivas101 Conforme nota 73 ainda nesse capiacutetulo

180

Em outras palavras Nietzsche entende a concepccedilatildeo concebida no interior do

racionalismo socraacutetico como a imagem da verdade no mundo das ideias como um

ancestral da ideia de Deus que teria sido mais tarde reelaborada pelo cristianismo atraveacutes

da vinculaccedilatildeo da existecircncia de uma verdade com a existecircncia de um fundamento da

verdade Isto porque se Platatildeo compreendeu o conceito de bem como uma ideia divina

como o sol que iluminava todas as verdades este conceito moral e epistemoloacutegico encontra

na modernidade na figura do Deus cristatildeo sua uacuteltima apariccedilatildeo Nesse sentido enquanto

sustentada pelo Deus extraterreno garantidor absoluto da verdade a verdade mesma teria

se tornado divina

Na medida em que a leitura nietzschiana encontra no racionalismo socraacutetico a

origem do processo de desenvolvimento do niilismo identifica no conceito de bem de

Platatildeo uma crenccedila que embora natildeo tivesse na antiguidade o mesmo papel que Deus na sua

eacutepoca esta estreitamente relacionada com a ideia de fundamentaccedilatildeo extraterrena da

verdade Do mesmo modo o supremo geocircmetra concebido pelos modernos como aquele

que garante a validade das verdades eternas desde que as caracteriacutesticas de clareza e

distinccedilatildeo natildeo nos possibilitariam discernir o que eacute real do que eacute sonho sem que a

existecircncia do Deus veraz nos fosse necessaacuteria Com isso tem-se a origem e deslocamento

de uma crenccedila fundamental na idealidade dos valores que se reinventa atraveacutes da histoacuteria

e que ocupa na imagem do Deus cristatildeo seu uacuteltimo desenvolvimento

Do ponto de vista da filosofia nietzschiana no entanto o ponto fundamental do

anuacutencio da morte de Deus seria a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que aparece

como consequecircncia do vaacutecuo criado pelo colapso do sistema moral cientiacutefico ancorado na

ideia de uma realidade ideal Podemos portanto relacionar a morte de Deus enquanto

correlata da morte da verdade com uma representaccedilatildeo do fim das limitaccedilotildees que o proacuteprio

homem se havia imposto Assim quando renuncia agrave crenccedila em uma realidade ideal

inexistente o homem se torna apto a criar sua proacutepria realidade Mais do que isso sua

avaliaccedilatildeo dessa realidade criada da realidade de suas valoraccedilotildees natildeo sofre mais o

constrangimento de uma realidade ideal inexistente com a qual pudesse ser comparada

Nesse sentido a morte de Deus enquanto colapso da seguranccedila do fundamento

significaria a abertura de possibilidades novas de criaccedilatildeo que adveacutem do abandono das

certezas fundamentadas no nada

181

Com a morte de Deus abrem-se caminhos novos nunca trilhados102 E seria

sobretudo por isso que o anuacutencio da morte Deus ocupa o lugar que ocupa em A Gaia

Ciecircncia Pois o anuacutencio da morte de Deus nos revela que haacute um vazio no ponto de

estimaccedilatildeo ideal nada nos constrange a tomar como valiosas nossas proacuteprias estimaccedilotildees

Assim surge a possibilidade do abandono da necessidade de uma escala superior de

avaliaccedilatildeo Motivo porque tambeacutem a ideia da coragem para criar associada agrave ideia de

lanccedilar-se em novos mares eacute constantemente retomada por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia

como um convite para a alegre criaccedilatildeo de sentido que se torna possiacutevel apenas quando

abrimos matildeo das certezas que satildeo aqui representadas na imagem de velhos portos Assim

no aforismo anterior ao citado acima o filoacutesofo anuncia

No horizonte do infinito ndash Deixamos a terra firme e embarcamosQueimamos a ponte ndash mais ainda cortamos todo laccedilo com a terra queficou para traacutes Agora tenha cautela pequeno barco Junto a vocecirc estaacute ooceano eacute verdade que ele nem sempre ruge e agraves vezes se estende comoseda e ouro e devaneio de bondade Mas viratildeo momentos em que vocecircperceberaacute que ele eacute infinito e que natildeo haacute coisa mais terriacutevel que ainfinitude Oh pobre paacutessaro que se sentiu livre e agora se bate nasparedes dessa gaiola Ai de vocecirc se for acometido de saudade da terracomo se laacute tivesse havido mais liberdade ndash e jaacute natildeo existe mais terra(FWGC III sect124)

Aqui anuncia-se um aspecto fundamental do posterior desenvolvimento do niilismo

nietzschiano na aproximaccedilatildeo da necessidade de se libertar de um ponto de vitalidade baixo

com relaccedilatildeo agrave necessidade de se lanccedilar ao sem sentido para criar O anuacutencio da morte de

Deus nos diz que o homem precisa se livrar do medo do desconhecido apresentado pelo

autor como primeira consequecircncia do advento da queda dos fundamentos Eacute este medo que

se torna para o homem liberto das amarras de uma existecircncia ideal o uacutenico impedimento

para sua auto-exultaccedilatildeo Sendo assim a partir da morte de Deus o homem precisa

acostumar-se com a ausecircncia de terra firme conceitos estaacuteveis verdades absolutas pelos

quais se guiar Para ele natildeo haacute mais porto seguro possiacutevel de modo que se pode desconfiar

que aqui a humanidade se encontraria em pior estado do que quando gozava confiante da

102 Se por um lado eacute inquestionaacutevel que a imagem do mar de possibilidades que se abre com o anuacutencio damorte de Deus tem uma significaccedilatildeo moral na obra nietzschiana por outro lado esta imagem comporta aindauma significaccedilatildeo epistemoloacutegica Esta significaccedilatildeo eacute perceptiacutevel na anaacutelise do conjunto do livro em que oaforismo em questatildeo se insere Dentre estes aforismos deve ser destacado o importante aforismo 354 em queNietzsche trata de seu perspectivismo

182

ilusatildeo das verdades permanentes como se naquelas houvesse mais liberdade Nisso tudo se

passa como no estaacutegio passivo do niilismo

Poreacutem a indecisatildeo natildeo poderia durar para sempre e o proacuteprio Nietzsche parece

avanccedilar em seu otimismo na medida em que passa a refletir acerca das possibilidades

abertas pelo colapso da realidade ideal Assim quando o filoacutesofo retomar a ideia da morte

de Deus no livro cinco da mesma obra escrito quase cinco anos apoacutes o livro trecircs103 esta

ideia jaacute estaraacute claramente relacionada agrave ideia de liberdade de criaccedilatildeo tanto na esfera dos

valores quanto na esfera da investigaccedilatildeo teoacuterica No aforismo 343 de A Gaia Ciecircncia o

autor mostrasse cheio de esperanccedilas para com o futuro do homem quando consegue

absorver os efeitos do grande evento da morte de Deus Nessa passagem o autor reflete

sobre as primeiras consequecircncias do anuacutencio da morte de Deus que lanccedila suas ldquoprimeiras

sombras sobre a Europardquo e chega agrave conclusatildeo de que ao menos para os espiacuteritos livres os

poucos corajosos e desejosos o suficiente para ainda criar a morte de Deus representa uma

libertaccedilatildeo a promessa de novos mares abertos

O sentido de nossa jovialidade - O maior acontecimentos recentes- O fato de que ldquoDeus estaacute mortordquo de que a crenccedila no Deus cristatildeoperdeu o creacutedito ndash jaacute comeccedila a lanccedilar suas primeiras sombras sobre aEuropa Ao menos para aqueles poucos cujo olhar cuja suspeita no olhareacute forte e refinada o bastante para esse espetaacuteculo algum sol parece ter seposto alguma velha e profunda confianccedila parece ter se transformado emduacutevida para eles nosso velho mundo deve aparecer cada dia maiscrepuscular mais desconfiado mais estranho ldquomais velhordquo (hellip) De fatonoacutes filoacutesofos e ldquoespiacuteritos livresrdquo ante a notiacutecia de que ldquoo velho Deusmorreurdquo nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nossocoraccedilatildeo transborda de gratidatildeo espanto pressentimento expectativa mdashenfim o horizonte nos aparece novamente livre embora natildeo esteja limpoenfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todoperigo novamente eacute permitida toda a ousadia de quem busca oconhecimento o mar o nosso mar estaacute novamente aberto eprovavelmente nunca houve tanto ldquomar abertordquo (FWGC Livro Vsect343)

Na medida em que o autor identifica os filoacutesofos e os espiacuteritos livres como aqueles

que vislumbram com otimismo ldquogratidatildeo espanto pressentimento expectativardquo o grande

evento da morte de Deus qualifica estes como aqueles capazes de mesmo diante da

103 A Gaia Ciecircncia foi redigida por Nietzsche em trecircs momentos distintos primeiramente em 1881 o quartolivro em 1882 e recebe um novo prefaacutecio e o quinto livro em 1886

183

evidecircncia da mais completa cataacutestrofe experimentada pelo gecircnero humano se lanccedilar agrave

criaccedilatildeo A estes no entanto o filoacutesofo contrasta os entristecidos pelo escurecimento pelo

obscurecimento do proacuteprio sol novamente em uma referecircncia clara agrave antiga concepccedilatildeo

platocircnica do bem Com isso o autor nos apresenta a dualidade do evento da morte de Deus

que por sua vez nos remete agrave jaacute referida ambiguidade do niilismo

Partindo da distinccedilatildeo entre o niilismo passivo e o niilismo ativo podemos

representar dois momentos apresentados em A Gaia Ciecircncia como consequecircncias da morte

de Deus Em uma analogia direta entre a forma como o niilismo ativo se distingue do

niilismo passivo poderiacuteamos dizer que a ideia de que a falta de sentido apresentada aqui

por meio da imagem do novo infinito do mar aberto condiciona duas formas de encarar o

evento da morte de Deus simboliza a possibilidade de superaccedilatildeo da inaccedilatildeo por meio de

uma atitude afirmativa diante da responsabilidade pela criaccedilatildeo

A queda dos fundamentos simbolizada aqui pelo evento da morte de Deus eacute

apresentada como evento ainda incerto que divide a humanidade em dois tipos diferentes

reconhecidos na histoacuteria do conhecimento atraveacutes de duas atitudes opostas diametralmente

Se por um lado a queda dos fundamentos representa para o filoacutesofo da tradiccedilatildeo o fim do

conhecimento e desespero das ciecircncias para os espiacuteritos livres os filoacutesofos do futuro tal

acontecimento representa a afirmaccedilatildeo de ldquotoda ousadia do conhecedorrdquo que agora pode se

lanccedilar sobre um mar de possibilidades Assim em um aforismo do livro cinco de A Gaia

Ciecircncia o filoacutesofo retoma a questatildeo das novas possibilidades de criaccedilatildeo abertas com a

mote de Deus

O mundo tornou-se novamente ldquoinfinitordquo para noacutes na medida em que natildeopodemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitasinterpretaccedilotildees Mais uma vez nos acomete o grande tremor mdash mas quemteria vontade de imediatamente divinizar de novo agrave maneira antiga essemonstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecidocomo ldquoo ser desconhecidordquo Ah estatildeo incluiacutedas demasiadaspossibilidades natildeo divinas de interpretaccedilatildeo nesse desconhecidodemasiada diabrura estupidez tolice de interpretaccedilatildeo mdasha nossa proacutepriahumana demasiado humana que bem conhecemoshellip (FWGC Livro Vsect374)

184

Nesse aforismo em que Nietzsche reflete acerca da pluralidade de perspectivas

inerentes agrave nova forma de contemplar a realidade a partir da morte de Deus surge a

afirmaccedilatildeo do nosso novo infinito de possibilidade de criar e o temor advindo dessa

possibilidade que surge como consequecircncia da exposiccedilatildeo dos perigos agenciados pela

morte de Deus A afirmaccedilatildeo do caraacuteter perspectivo da existecircncia inerente a uma forma de

conceber a realidade que se liberta das certezas fundamentadas na concepccedilatildeo tradicional de

verdade representa a antecipaccedilatildeo do problema fundamental do conflito entre o niilismo o

pessimismo da existecircncia e a proacutepria perspectiva o caraacuteter mais imediato da existecircncia

Em sua leitura do avanccedilo do niilismo como vimos em seccedilotildees anteriores a postura

eminentemente antiniilista de conceber a verdade eacute sempre representada por meio da

referecircncia ao perspectivo ao ponto de vista agrave acuidade do olhar Estas satildeo sempre formas

de interpretar que o autor apontaraacute em oposiccedilatildeo ao racionalismo socraacutetico e ao

cristianismo com o intuito de demarcar a diferenccedila essencial entre os ideais regidos pela

negatividade e a concepccedilatildeo afirmativa da existecircncia Assim a morte de Deus tal como

Nietzsche parece entender este pensamento profundo surge aqui como uma completa

compreensatildeo da ausecircncia de sentido da vida do homem a partir da qual surge na vacacircncia

do trono divino a possibilidade do proacuteprio homem ocupar o lugar de significaccedilatildeo maacutexima

que eacute representada na possibilidade de se divinizar perspectivas

Aleacutem do Deus cristatildeo no entanto tambeacutem outros iacutedolos necessitam ser demolidos

Entre eles os princiacutepios da moral todos eles entendidos na leitura nietzschiana como

estando fundados na crenccedila em uma realidade suprassensiacutevel Ou seja todo princiacutepio

considerado aqui como reminiscecircncia das ideias platocircnicas como formas de valores

superiores ateacute entatildeo Assim em obras posteriores em que o niilismo eacute tratado por

Nietzsche em maior profundidade tais como Para Aleacutem de Bem e Mal Para a Genealogia

da Moral e O Anticristo assim como nos fragmentos contemporacircneos a estas haacute a

indicaccedilatildeo de sintomas pelos quais o acontecimento da morte de Deus e suas consequecircncias

para o futuro do homem satildeo retratadas como o resultado de uma profunda crise

Partindo de uma concepccedilatildeo afirmativa advinda do panorama aberto pela morte de

Deus o filoacutesofo concebe a possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo que eacute marcado pela

crenccedila nas verdades fundamentadas na ideia de bem Assim pode-se afirmar que na

terceira fase da obra nietzschiana o filoacutesofo estaria de posse de tudo que eacute fundamental

185

para a proposiccedilatildeo de uma soluccedilatildeo para o problema do niilismo assim como das possiacuteveis

vias de superaccedilatildeo no pensamento dogmaacutetico

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar

Entre os comentaacuterios do pensamento nietzschiano com frequecircncia nos deparamos

com um tratamento eminentemente criacutetico do sentido de niilismo na obra deste autor Por

estas leituras serem tratadas como uma reflexatildeo acerca dos valores e sua corrupccedilatildeo por

desprezar o aspecto deleteacuterio desse conceito em relaccedilatildeo aos valores epistemoloacutegicos a

anaacutelise do niilismo suportada nestas leituras acaba por mostrar-se uma leitura parcial

Assim na medida em que o niilismo eacute contemplado nestes comentaacuterios exclusivamente

com base em sua implicaccedilatildeo criacutetica enquanto processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores a

ele logo eacute associada a criacutetica nietzschiana agrave moral

Por outro lado um exame atento dos textos nietzschianos demonstraria a forma

como o filoacutesofo relaciona a corrupccedilatildeo dos valores morais com a corrupccedilatildeo dos princiacutepios

epistemoloacutegicos Pois o autor reconhece na concepccedilatildeo tradicional de verdade assim como

a submissatildeo cega da ciecircncia a esta concepccedilatildeo traccedilos de uma moral niilista Uma leitura

neste sentido propiciaria uma interpretaccedilatildeo segundo a qual a desconfianccedila nietzschiana

para com os fundamentos morais da concepccedilatildeo tradicional de verdade acaba por despertar

no filoacutesofo a necessidade de repensar o valor do conhecimento posto que considera que

este teria se enredado com uma vontade de verdade estranha aos fundamentos da proacutepria

vida

Se por um lado o niilismo nietzschiano eacute concebido como a loacutegica de corrupccedilatildeo

dos valores por outro percebe-se que o autor pensa essa desvalorizaccedilatildeo como atingindo

tambeacutem o acircmbito do conhecimento Nesta leitura se Nietzsche rejeita as concepccedilotildees

tradicionais de verdade e conhecimento tal se daria porque reconhece nestas concepccedilotildees

elementos constitutivos de uma vontade de verdade que para o filoacutesofo seriam expressatildeo

de uma moral decadente Tendo em vista a superaccedilatildeo desta moral decadente Nietzsche

contrapotildee agrave concepccedilatildeo tradicional de ciecircncia uma concepccedilatildeo de conhecimento pensada em

186

conformidade com os preceitos da vida Por sua vez em sua explicitaccedilatildeo dos preceitos

internos agrave proacutepria vida o filoacutesofo se utiliza da categoria de vontade de potecircncia uma

interpretaccedilatildeo da realidade em sua loacutegica interna que viabilizaria uma concepccedilatildeo de

conhecimento afeita aos princiacutepios da proacutepria vida

Tendo em vista a superaccedilatildeo do niilismo Nietzsche expotildee a loacutegica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes de um procedimento genealoacutegico chegando a uma

forma de niilismo em que as verdades eternas mesmas concepccedilatildeo que desencadeia o

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores eacute reconhecida como uma concepccedilatildeo sem valor Se

eacute a proacutepria concepccedilatildeo da realidade ideal que confere ao niilismo sua limitaccedilatildeo na medida

que as exigecircncias da concepccedilatildeo de verdade inerente a essa criaccedilatildeo deve culminar em um

exame das concepccedilotildees cientiacuteficas morais e filosoacuteficas que delas eacute dependente entatildeo o

advento do niilismo prepara as condiccedilotildees do surgimento desenvolvimento e queda dos

valores supremos segundo uma dinacircmica de autossuperaccedilatildeo (Selbstaufhebung) dos valores

ideais104

A anaacutelise genealoacutegica do niilismo conduz agrave identificaccedilatildeo de uma dinacircmica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores superiores que potildee em riso a existecircncia humana na medida em

que esta existecircncia apenas pode se dar com base em uma avaliaccedilatildeo segundo uma hierarquia

de dominaccedilatildeo e subjugaccedilatildeo Por sua vez a consideraccedilatildeo do aspecto ativo do niilismo

dentro da dinacircmica de desenvolvimento interna ao niilismo conduz agrave compreensatildeo de que

a destituiccedilatildeo dos valores apesar de atuar de forma debilitante em algumas naturezas

conduzindo ao niilismo passivo e consequentemente agrave criaccedilatildeo de valores morais

decadentes pode ser considerado do ponto de vista de naturezas melhores condicionadas

104 Na leitura heideggeriana toda forma de conceber a realidade segundo princiacutepios enquanto forma deordenamento de comando constitui seus valores e eacute portanto uma forma de moral uma metafiacutesica dosvalores Nesse sentido se Heidegger pensa que toda filosofia posterior a Platatildeo eacute uma concepccedilatildeo metafiacutesicana medida em que pensa o ente a partir de valores dados ou seja se ldquoNesse entendimento toda a filosofiadesde Platatildeo se transforma em uma metafiacutesica dos valoresrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 652) entatildeo tambeacutem afilosofia nietzschiana poderia ser compreendida como uma metafiacutesica dos valores Assim na leituraheideggeriana o confronto de Nietzsche com a metafiacutesica platocircnica faz da filosofia nietzschiana uma formainvertida de platonismo e desse modo ainda uma especulaccedilatildeo metafiacutesica da realidade Ao contrapor-se aessa tese heideggeriana fundamental Scarlett Marton procura analisar a filosofia nietzschiana como umprojeto de filosofia da natureza uma cosmologia em sentido similar agravequele dos filoacutesofos preacute-socraacuteticosNeste sentido a radicalidade da filosofia nietzschiana ldquonatildeo residiria na tentativa de levar a metafiacutesica ateacutesuas uacuteltimas consequecircncias [Heidegger] nem no ensaio de inaugurar novas teacutecnicas de interpretaccedilatildeo[Foucault]rdquo (MARTON 1990 p 13) mas na tentativa de reduzir todos os processos de formaccedilatildeo de valor auma instacircncia especiacutefica a vontade de potecircncia que apoiada em dados cientiacuteficos deve constituir a basedesta cosmologia

187

tornando-se niilismo ativo e conduzindo a uma compreensatildeo interpretativa da realidade

Ou como nos diz Claudemir Araldi

A compreensatildeo nietzschiana da moral como a ldquoteoria das relaccedilotildees dedominaccedilatildeo sob as quais se origina o fenocircmeno lsquovidarsquordquo (JGBBM sect19)implica na admissatildeo da ambiguumlidade do termo a moral pode engendrarum povo e indiviacuteduos superiores ou pode levar agrave decadecircncia dependendode qual fonte os valores satildeo criados da vida afirmativa ou da vida doenteAo examinar a preacute-histoacuteria da moral o periacuteodo da eticidade dos costumes(die Sittlichkeit der Sitte) Nietzsche constata que o processo da eticidadedos costumes tem como termo o indiviacuteduo soberano (das souveraineIndividuum) autocircnomo e extra-moral que por fim se liberta da coaccedilatildeo edos deveres morais a que estava vinculado (GMGM II 2))Compreendida desse modo a moral eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para aautodisciplina e auto-superaccedilatildeo do homem (ARALDI 1998 Paacutegs 79)

Segundo a dinacircmica proacutepria desse movimento tal como Nietzsche a descortina o

niilismo ativo do qual surge a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria sua

radicalizaccedilatildeo na emergecircncia de uma forma de niilismo extremado em que os proacuteprios

princiacutepios da dinacircmica do niilismo satildeo questionados Com a emergecircncia dessa forma de

niilismo extremo que levaria a termo as potencialidades do niilismo ativo uma tendecircncia a

um perecer para tudo aquilo que fenece uma vontade de nada para tudo aquilo que anseia

pelo fim eacute posta em praacutetica por meio da negaccedilatildeo da proacutepria concepccedilatildeo de uma verdade em

si105 que culmina com o grande evento da morte de Deus

De maneira geral o processo histoacuterico de desenvolvimento e radicalizaccedilatildeo do

niilismo eacute concebido por Nietzsche como algo que apenas pode ser conduzido a termo por

meio de sua vivecircncia ateacute o fim atraveacutes da vivecircncia de uma forma radical de niilismo106

Nesse sentido se por um lado o niilismo eacute um mal para as naturezas fraacutegeis aquelas que

105 Eacute neste sentido que Heidegger pensa a realizaccedilatildeo do niilismo ativo como a realizaccedilatildeo de que aquilo quequer perecer deve perecer ldquoEm contrapartida o niilismo lsquoativorsquo interveacutem revoluciona na medida em que seexpotildee a partir do modo de vida ateacute aqui e inspira com razatildeo ainda maior ao lsquoanseio pelo fimrsquo aquilo que querperecerrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Assim se a concepccedilatildeo de uma realidade em si eacute vista na leituranietzschiana como obra de uma vontade cansada que quer perecer a contemplaccedilatildeo do sem sentido dessaconcepccedilatildeo apenas faz perecer essa vontade cansada106 Em sua leitura do problema do niilismo e do papel que esta concepccedilatildeo desempenharia na histoacuteria doocidente Heidegger afirma ldquoPara se tornar completo o niilismo precisa atravessar o lsquoextremorsquordquo(HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Para o filoacutesofo ldquoO lsquoniilismo extremorsquo reconhece que natildeo haacute nenhumalsquoverdade eterna em sirsquo Na medida em que soacute se conforma determinadamente com essa intelecccedilatildeo e em queobserva a decadecircncia dos valores supremos ateacute aqui ele permanece passivordquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg657)

188

dependem do valor das verdades em si por outro ele implica um bem para as naturezas

afeitas agrave necessidade de criaccedilatildeo de valor como apresentaccedilatildeo da possibilidade de um novo

modo de valorar Torna-se entatildeo necessaacuterio compreender de que forma o niilismo ativo

concebido em conformidade com a concepccedilatildeo do fim da verdade que eacute anunciada por

Nietzsche no grande evento da morte de Deus culminaria em uma forma de pensar que ao

mesmo tempo identificada com o niilismo propicia as condiccedilotildees da superaccedilatildeo da dinacircmica

da desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes da renuacutencia agrave criaccedilatildeo de uma realidade ideal

Na medida em que o niilismo passivo eacute pensado por Nietzsche como contraacuterio ao

proacuteprio estabelecimento de valores que eacute preacute-condiccedilatildeo para a vida sua superaccedilatildeo se daria

com base na observaccedilatildeo dos aspectos fortalecedores da vida entre os quais Nietzsche

destaca a perspectividade Nesse sentido a capacidade de criar valores que se entende

desde o princiacutepio apenas como criaccedilotildees portanto valores que natildeo se deixam determinar

pelas exigecircncias da veracidade constituem o acircmago de uma nova moral a partir de

Nietzsche assim como da proacutepria concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento107 Por esta

razatildeo o filoacutesofo pensa a possibilidade de se estabelecerem valores como criaccedilotildees cujo

fundamentos natildeo teriam relaccedilotildees com a concepccedilatildeo tradicional de verdade e que portanto

natildeo reclamam para si um acesso privilegiado a um acircmbito objetivo

Para Nietzsche todas as revoluccedilotildees observadas na modernidade significariam uma

tentativa de ocupar o lugar da veracidade que colapsa conservando as mesmas estruturas e

por isso para o filoacutesofo estariam fadadas ao fracasso Neste ponto o filoacutesofo reflete

acerca da superaccedilatildeo do niilismo e pensa que esta natildeo poderia prescindir de uma

reavaliaccedilatildeo da estrutura mesma de fundamentaccedilatildeo dos valores Nesse sentido a proacutepria

veracidade que o filoacutesofo entendia como a fundamentaccedilatildeo do mundo verdadeiro na figura

de um Deus garantidor da verdade passa por uma revisatildeo Por isso o filoacutesofo pensa que

uma verdadeira superaccedilatildeo do niilismo apenas se tornaria possiacutevel por meio de uma

radicalizaccedilatildeo do niilismo mesmo o que significaria a destruiccedilatildeo dos princiacutepios de

107 Pois como Araldi ressalta haacute traccedilos do niilismo em todas as formas de cultura contemporacircnea inclusiveem teoria do conhecimento ldquoA reflexatildeo de Nietzsche sobre si e sobre sua eacutepoca eacute elaborada filosoficamenteem termos de niilismo O niilismo que se origina e se desenvolve a partir da moral radicaliza-se namodernidade tanto na teoria quanto na praacutetica haacute traccedilos niilistas na teoria do conhecimento na moral nasciecircncias naturais na poliacutetica na esteacutetica (XII 2 (131) Natildeo haacute como fugir desse hoacutespede inquietante que seinstala sorrateiramente em todos os domiacutenios da modernidaderdquo (ARALDI 1998 Paacuteg 87)

189

avaliaccedilatildeo dominantes A ideia de uma superaccedilatildeo do niilismo pelos filoacutesofos do futuro

aparece por exemplo em um aforismo de A Genealogia da Moral

Algum dia poreacutem num tempo mais forte do que esse presente murchoinseguro de si mesmo ele viraacute o homem redentor o homem do grandeamor e do grande desprezo o espiacuterito criador cuja forccedila impulsoraafastaraacute sempre de toda transcendecircncia e toda insignificacircncia cujasolidatildeo seraacute mal compreendida pelo povo como se fosse fuga darealidade quando seraacute apenas a sua imersatildeo absorccedilatildeo penetraccedilatildeo narealidade para que ao retornar agrave luz do dia ele possa trazer a redenccedilatildeodessa realidade sua redenccedilatildeo da maldiccedilatildeo que o ideal existente sobre elalanccedilou Esse homem do futuro que nos salvaraacute natildeo soacute do ideal vigentecomo daquilo que dele forccedilosamente nasceria do grande nojo da vontadede nada do niilismo esse toque de sino do meio-dia e da grande decisatildeoque torna novamente livre a vontade que devolve agrave terra sua finalidade eao homem sua esperanccedila esse anticristatildeo e antiniilista esse vencedor deDeus e do nada ele tem que vir um dia (GMGM II sect24)

Atraveacutes do recurso agrave imagem dos homens do futuro que pensam de forma

divergente do estabelecido pelo ldquoideal vigenterdquo Nietzsche antecipa um ponto de viragem

na histoacuteria dos valores ateacute entatildeo Para o filoacutesofo as diferentes formas do niilismo o

primeiro como uma forma de debilidade uma representaccedilatildeo da incapacidade de fixar

valores verdadeiramente novos o segundo como expressatildeo da forccedila como tendecircncia a

destruiccedilatildeo dos valores antigos representariam a expressatildeo de instintos fundamentais

atuando por traacutes da atividade de criaccedilatildeo de valores e que culminariam na substituiccedilatildeo do

ideal pela criaccedilatildeo Esta revoluccedilatildeo do pensamento se daria como um anuacutencio do meio dia o

momento da menor sombra em que a vontade deixa de ser vontade de verdade e torna-se

vontade livre Esta ideia tem similaridade com o que Nietzsche expotildee na segunda seccedilatildeo do

Ensaio sobre Verdade e Mentira acerca da forma como o intelecto se liberta da pressatildeo da

necessidade e torna-se criador de produccedilotildees artiacutesticas que reconhece como manifestaccedilotildees

mais puras de um princiacutepio natural criador de metaacuteforas108

Na medida em que o filoacutesofo entende que a tendecircncia humana agrave formulaccedilatildeo de

conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural a capacidade de criaccedilatildeo aparece

como impulso para a arte e para as ciecircncias Assim ainda quando qualifica sua eacutepoca como

sendo culturalmente dominada pela primordialidade da ciecircncia portanto como uma eacutepoca

ameaccedilada pelo enrijecimento do esquema conceitual e da cega obediecircncia agrave vontade de

108 Conforme exposto na seccedilatildeo 224 do primeiro capiacutetulo desse trabalho

190

verdade que possibilita a expansatildeo dos domiacutenios das ciecircncias todo esse progresso

cientiacutefico apenas aponta para a emergecircncia de uma nova veracidade que se compreende em

seu caraacuteter criativo Pois apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida humano

tender a uma expansatildeo contiacutenua a atividade criativa do intelecto a que deve-se a

capacidade de conversatildeo de metaacuteforas em conceitos assim como dos produtos artiacutesticos

nunca deixa de atuar nos homens sendo mesmo seu traccedilo caracteriacutestico

No entanto esta forma de niilismo ativo seria marcada pela radicalidade de sua

novidade Esta novidade eacute compreendida como provindo da consciecircncia mesma do

aprofundamento do niilismo sem a qual o filoacutesofo pensa que natildeo seria possiacutevel a inversatildeo

dos valores proacutepria da filosofia do futuro a qual pensa contemplar Ou seja o filoacutesofo

concebe sua proacutepria praacutetica filosoacutefica assim como toda a filosofia do futuro como

expressotildees de uma forma ativa produtiva de niilismo Pois essa filosofia do futuro seria

profundamente determinada pela consciecircncia da natildeo existecircncia de verdades em sentido

tradicional Natildeo admira portanto que sua concepccedilatildeo de conhecimento funde-se na mesma

certeza que para o filoacutesofo inaugura o niilismo

Que natildeo haacute verdades que natildeo haacute constituiccedilatildeo absoluta das coisas quenatildeo haacute ldquocoisa em sirdquo ndash isso mesmo eacute um niilismo e o mais extremoColocar o valor das coisas precisamente em que a esse valor natildeo lhecorresponde nem lhe correspondeu nenhuma realidade senatildeo que eacuteapenas um sintoma de forccedila por parte de quem institui o valor umasimplificaccedilatildeo com o fim da vida (NFFP1887 9 [35])

Por traacutes da compreensatildeo criacutetica acerca do conhecimento suportada na fase madura

de seu pensamento permanece a mesma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que eacute

inerente ao niilismo mais extremo Na medida em que esta estaria fundada na compreensatildeo

fundamental da ausecircncia de verdades e da ausecircncia de um mundo de ldquocoisas em sirdquo como

um ponto de vista exterior a todas as formas de avaliaccedilatildeo a ela corresponderia uma forma

extrema de niilismo Do mesmo modo a compreensatildeo de que nenhum valor corresponde agrave

realidade mas que apresenta-se como resultado de uma avaliaccedilatildeo que toma a vida como

medida compreensatildeo que remonta agraves primeiras investigaccedilotildees do autor acerca da natureza

da concepccedilatildeo tradicional de finalidade natural permanece em seu pensamento da

necessidade de superaccedilatildeo do niilismo Em sua leitura no entanto a desconfianccedila para com

191

a concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute traduzida em uma interpretaccedilatildeo em que seria a forccedila

de quem institui os valores que garantem a validade da concepccedilatildeo suportada

A verdade seria nessa leitura resultante das forccedilas em jogo na sustentaccedilatildeo de uma

determinada concepccedilatildeo Isto sem duacutevida implicaria em uma imposiccedilatildeo posto que eacute a

maior forccedila em accedilatildeo em uma determinada compreensatildeo da realidade natildeo sua veracidade

em sentido tradicional que garante sua superioridade Por sua vez a esta imposiccedilatildeo de

valores corresponderia uma simplificaccedilatildeo ldquocom o fim da vidardquo ou seja uma simplificaccedilatildeo

para efeitos de sobrevivecircncia Pois as valoraccedilotildees possibilitadas pela dominacircncia de uma

determinada forma de compreender a realidade correspondem apenas a uma parcela da

objetividade geral que seria garantida apenas de forma hipoteacutetica pela consideraccedilatildeo do

maior nuacutemero possiacutevel de formas de compreensatildeo da realidade

O aspecto fundamental da compreensatildeo nietzschiana acerca da verdade

compreensatildeo em que a verdade passa a ser entendida como uma restriccedilatildeo da esfera de

criaccedilatildeo de valores agraves necessidades de cada ser interpretante pode ser compreendida como

reflexo de uma concepccedilatildeo nietzschiana de juventude acerca da verdade No entanto eacute

preciso assinalar que na maturidade de seu pensamento a compreensatildeo da dinacircmica

proacutepria do niilismo desempenha um papel fundamental em suas consideraccedilotildees acerca da

natureza do conhecimento e da verdade Pois na medida em que o filoacutesofo pensa que esta

concepccedilatildeo de conhecimento se relaciona intimamente com ldquoO niilismo enquanto negaccedilatildeo

de um mundo verdadeiro de um serrdquo (NFFP 1887 9 [41]) e que por isso mesmo

ldquopoderia ser um modo de pensamento divino (NFFP 1887 9 [41]) podemos concluir que

sua concepccedilatildeo madura apenas se torna possiacutevel mediante a identificaccedilatildeo da dinacircmica

proacutepria de desenvolvimento do niilismo

A concepccedilatildeo expressa por Nietzsche em seus textos de juventude de que a verdade

que nos interessa corresponderia apenas a uma simplificaccedilatildeo para fins da sobrevivecircncia

retorna em seu pensamento de maturidade como fundamento uacuteltimo de seu perspectivismo

Assim sua compreensatildeo madura acerca do conhecimento distingue-se de suas concepccedilotildees

de juventude na medida em que eacute entendida como uma etapa no processo que

caracterizaria uma forma de superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constituiacutedos Segundo esta compreensatildeo apenas conforme uma interpretaccedilatildeo do

192

perspectivismo nietzschiano como representando uma forma divina de pensar se pode

reconhecer um aspecto positivo na admissatildeo nietzschiana de seu niilismo109

Na medida em que a noccedilatildeo de niilismo tem dois sentidos no interior da reflexatildeo

nietzschiana e que passamos de uma forma de niilismo passivo para uma forma afirmativa

de niilismo faz sentido pensar que o autor localizava seu pensamento como uma forma

afirmativa de niilismo Forma que prepara os passos para sua radicalizaccedilatildeo Assim

enquanto uma forma de niilismo fundado na concepccedilatildeo da inexistecircncia da verdade a forma

de niilismo extremo ao qual o pensamento nietzschiano poderia ser relacionado diria

respeito agrave consciecircncia da ausecircncia de verdades consciecircncia que constrange agrave criaccedilatildeo de

valores novos a partir de uma vontade afirmativa Nesse sentido esta forma de niilismo se

distinguiria fortemente de uma forma passiva de niilismo que atuando segundo a vontade

de verdade natildeo se vecirc capaz da criaccedilatildeo de novos valores embora compreenda os valores

antigos como sendo valores fundados em um mundo inexistente

Na leitura nietzschiana a forma mais extrema de niilismo estaria vinculada agrave

concepccedilatildeo de que todas as crenccedilas satildeo falsas Esta forma de compreender segundo a qual

todas as crenccedilas seriam falsas apenas poderia se fundamentar na certeza da inexistecircncia de

uma realidade ideal na certeza da inexistecircncia de um fundamento uacuteltimo da verdade A

esta forma de niilismo corresponderia a negaccedilatildeo de toda certeza assim como a

impossibilidade de toda forma de valoraccedilatildeo Tendo em vista sua sobrevivecircncia o homem

crecirc naquilo que precisa crer para continuar vivendo Assim o homem passa a crer na

veracidade de seus discursos na correspondecircncia de sua linguagem em relaccedilatildeo a uma

realidade ideal em tudo por fim que garanta sua permanecircncia na terra No entanto o que

eacute uma crenccedila Para Nietzsche esta pergunta estaria relacionada ao caraacuteter perspectiviacutestico

da realidade

O que eacute uma crenccedila Como surge Toda crenccedila eacute um tomar-por-verdadeiro ( fuumlr-wahr-halten) A forma extrema do niilismo seria que toda crenccedila todo tomar-por-verdadeiro eacute necessariamente falso porque natildeo haacute em absoluto um mundoverdadeiro Portanto uma aparecircncia perspectivista cuja origem estaacute em noacutesmesmos (enquanto temos necessidade permanentemente de um mundo maisestreito abreviado simplificado ndash que a medida da forccedila eacute o grau em que

109 Segundo uma interpretaccedilatildeo do fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9 [123]) apresentada no iniacutecio destecapiacutetulo

193

podemos admitir a aparencialidade a necessidade da mentira sem sucumbir(NFFP 1887 9[41])

A crenccedila nada mais eacute do que a confianccedila na veracidade de uma concepccedilatildeo para ela

portanto natildeo interessa a veracidade da concepccedilatildeo em jogo Por outro lado para Nietzsche

este tomar por verdadeiro daquilo que necessitamos crer para viver corresponderia a uma

aparecircncia perspectivista da realidade Ou seja a origem da forccedila de toda crenccedila a

capacidade de se tomar por verdadeiro o que eacute necessaacuterio para nossa sobrevivecircncia estaria

em nosso interior E o que determinaria a nobreza do homem seria o fato da natureza o ter

munido de um intelecto capaz de criar estas condiccedilotildees para sua sobrevivecircncia A esta

capacidade corresponderia nossa capacidade de criar uma realidade cada vez mais criacutevel

Mas como Nietzsche antecipa em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira esta potencialidade

do intelecto apenas foi dada ao homem porque este seria o animal mais ameaccedilado o mais

fraacutegil frente as demais espeacutecies o que o teria tornado o animal mais dependente de

aparecircncias para sobreviver

Por outro lado enquanto a fraqueza de um ser vivo possa ser determinada pela

quantidade de acessoacuterios de que este depende para sobreviver a forccedila do homem poderia

ser determinada pela quantidade de ilusotildees de que este depende para sua manutenccedilatildeo Em

outros termos de quantas ilusotildees quantas crenccedilas poderia o homem se livrar sem

sucumbir Posto em termos nietzschiano quatildeo longe o homem poderia se aprofundar no

niilismo sem sucumbir A isto Nietzsche chama experimento a ideia de que algumas

naturezas sucumbem enquanto outras florescem na compreensatildeo de que a vida natildeo tem

valor aleacutem do valor que damos a ela

Nesse sentido a partir da vacuidade de sentido gerada na corrupccedilatildeo das certezas

inerente ao grande evento da morte de Deus o filoacutesofo pensa a possibilidade do

surgimento de uma forma de pensar afirmativa em relaccedilatildeo ao terriacutevel da existecircncia ateacute

mesmo de sua falta de sentido radical A esta forma de pensar Nietzsche as vezes se refere

como pensamento traacutegico as vezes como concepccedilatildeo dionisiacuteaca da realidade Nessa

concepccedilatildeo o filoacutesofo parece vislumbrar o surgimento de uma nova forma de filoacutesofos

Filoacutesofos traacutegicos capazes de apropriar-se de forma ativa de sua potencialidade criativa

superando a negatividade do niilismo atraveacutes de sua consumaccedilatildeo

194

Noacutes os pensantes-que-sentem somos os que de fato e continuamentefazem algo que ainda natildeo existe o inteiro mundo em eterno crescimentode avaliaccedilotildees cores pesos perspectivas degraus afirmaccedilotildees e negaccedilotildeesEsse poema de nossa invenccedilatildeo eacute pelos chamados homens praacuteticos(nossos atores como disse) permanentemente aprendido exercitadotraduzido em carne e realidade em cotidianidade O que quer que tenhavalor no mundo de hoje natildeo o tem em si conforme sua natureza mdash anatureza eacute sempre isenta de valor mdashfoi-lhe dado oferecido um valor efomos noacutes esses doadores e ofertadores O mundo que tem alguminteresse para o ser humano fomos noacutes que o criamos mdashMas justamenteeste saber nos falta e se num instante o colhemos no instante seguintevoltamos a esquececirc-lo desconhecemos nossa melhor capacidade e nossubestimamos um pouco noacutes os contemplativos mdash natildeo somos tatildeoorgulhosos nem tatildeo felizes quanto poderiacuteamos ser (FWGC IV sect301)

O pensamento do futuro portanto seria a retomada de uma forma de filosofia de

artista no sentido em que os novos filoacutesofos deveriam empoderar-se de sua capacidade

criar valor atraveacutes das criaccedilotildees de seu intelecto O uacuteltimo homem aquele que sofre ainda

das consequecircncias negativas da morte de Deus seria incapaz deste empoderamento A ele

se assemelharia um artista que se perde na criaccedilatildeo e por vezes perde o sentido de sua

criaccedilatildeo Inerente a este tipo de filosofia estaria a capacidade de conviver com um grau

elevado de ilusotildees sem deteriorar seu valor por conta da independecircncia dessas ilusotildees de

uma realidade ideal

Em sua reflexatildeo acerca do conhecimento Nietzsche pensa o homem como criador

de valor que por vezes esquece-se dessa propensatildeo de sua natureza Em certo sentido o

filoacutesofo compreende que algumas formas de constituiccedilatildeo vital vinculadas pelo filoacutesofo a

uma moral decadente e a uma ciecircncia dogmaacutetica tornam-se extremamente dependentes do

tipo de verdade concebida no interior de uma concepccedilatildeo platocircnica da realidade enquanto

outras formas segundo Nietzsche melhor constituiacutedas tem sua vitalidade vinculada agrave

negaccedilatildeo desse tipo de realidade ideal A sua noccedilatildeo de experimento assim significaria uma

forma de pensar as manifestaccedilotildees niilistas da cultura como sintomas de enfraquecimento

vital

Nesta leitura a consciecircncia da ausecircncia de verdades absolutas possibilitaria a

criaccedilatildeo de valores novos nos quais temos consciecircncia da falta absoluta de fundamentaccedilatildeo

Sendo assim o pensamento maduro nietzschiano compreendido dentro dos limites de uma

195

consideraccedilatildeo acerca da possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria como base a

consciecircncia de que toda crenccedila eacute essencialmente falsa A esta consciecircncia estaria vinculada

a certeza de que toda crenccedila seria efeito de uma confianccedila na veracidade de uma

concepccedilatildeo e natildeo de sua veracidade propriamente Acreditamos que a referecircncia ao

perspectivo no fragmento poacutestumo citado acima natildeo eacute aleatoacuteria nem mesmo indireta mas

que diz respeito aos princiacutepios que Nietzsche faz constar como elementos fundamentais de

sua compreensatildeo afirmativa do conhecimento Ou seja o questionamento do quanto de

verdade um ser vivente suporta sem sucumbir110 constitui-se como as bases para a

compreensatildeo de um modo divino de pensar

O perspectivismo enquanto pensamento radical que se contrapotildee a toda verdade

absoluta a todo ser enquanto fundamento da existecircncia representaria assim o modo de

pensar divino que afirma de modo criativo a falta de sentido da existecircncia Esta

compreensatildeo da perspectividade de toda suposta verdade refletiria aquilo que Nietzsche

nos diz quando afirma em um fragmento poacutestumo de 1887 ldquoNessa medida o niilismo

poderia como negaccedilatildeo de um mundo verdadeiro de um ser ser um modo de pensar

divinordquo (NFFP 1887 9[41]) Ou seja o perspectivismo nietzschiano enquanto expressatildeo

de um niilismo extremo que nega todo ser e o substitui por aparecircncias que nega toda

verdade e a substitui por interpretaccedilotildees corresponderia a uma forma de pensar que

refletiria um grau maacuteximo de forccedila um grau divino de existecircncia humana

O filoacutesofo relaciona a forma mais extrema de niilismo agrave tomada de consciecircncia da

inexistecircncia de um mundo verdadeiro Esta compreensatildeo da realidade em que o mundo

verdadeiro perde forccedila de significaccedilatildeo a partir do grande evento da morte de Deus pode

110 Atraveacutes de sua concepccedilatildeo de experimento Nietzsche retoma uma ideia fundamental jaacute presente em seuEnsaio sobre Verdade e Mentira e que retorna com frequecircncia em seus escritos posteriores A concepccedilatildeo danecessidade humana de falsidade de um mundo simplificado tornado passiacutevel de comunicaccedilatildeo um mundoque natildeo eacute mais do que a soma dos erros fundamentais necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia Esta concepccedilatildeofundamental para a compreensatildeo nietzschiana que vincula o conhecimento agrave necessidade humana desobrevivecircncia eacute expressa com frequecircncia em seus poacutestumos de 1887 e a ideia apresentada no fragmentopoacutestumo 9[41] de nossa necessidade de um mundo simplificado jaacute havia sido antecipada no aforismo 9[35]em sua segunda seccedilatildeo Neste fragmento em que Nietzsche pensa ldquoO fato de natildeo haver nenhuma verdaderdquo(NFFP 1887 9[35]) como uma consequecircncia positiva do niilismo o filoacutesofo antecipa a ideia de que adesvalorizaccedilatildeo dos valores fundados em uma realidade ideal implica a constataccedilatildeo de um enfraquecimentovital inerente agrave afirmaccedilatildeo dessa realidade Assim a constataccedilatildeo ldquode natildeo haver nenhuma constituiccedilatildeoabsoluta das coisas nenhuma lsquocoisa em sirsquordquo (NFFP 1887 9[35]) implica a investigaccedilatildeo das forccedilas posta emjogo na afirmaccedilatildeo de uma tal realidade Nesse sentido o perspectivismo nietzschiano na medida em que estaacuterelacionado agrave denuacutencia da inexistecircncia de uma realidade ideal apresenta-se como manifestaccedilatildeo de umniilismo extremo e como manifestaccedilatildeo de uma forccedila afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida

196

ser relacionada com a falsidade atribuiacuteda a todas as perspectivas assim como com o

potencial de valor associado ao princiacutepio que gera as perspectivas Desta maneira apesar

da nossa necessidade de perspectivas na medida em que nos desenvolvemos segundo a

necessidade de um mundo simplificado passiacutevel de ser comunicado essa necessidade

poderia ser valorizada como ponto de vista da criaccedilatildeo como arte

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo

Consideradas a obra nietzschiana do ponto de vista cronoloacutegico temos que a partir

de 1880 seu pensamento apresenta uma abordagem diferenciada para os problemas que

havia antecipado em seus escritos de juventude A emergecircncia de conceitos como Vontade

de Poder e Niilismo circunscrevem um periacuteodo em que seu pensamento toma como

fundamento o sentimento de afirmaccedilatildeo do mundo e da vida Nesta leitura a estrateacutegia

nietzschiana de radicalizaccedilatildeo do niilismo se fundamenta em uma nova estrutura conceitual

na qual o filoacutesofo vinha trabalhando jaacute desde seu Assim Falava Zaratustra Assim na

uacuteltima fase de seu pensamento em que Nietzsche estaacute preocupado de maneira especial

com o niilismo assim como em oferecer uma estrateacutegia de superaccedilatildeo deste entram em

jogo conceitos novos com os quais o filoacutesofo tencionava mobilizar uma estrateacutegia de

reversatildeo do processo de decadecircncia moral e cultural em que acreditava que sua eacutepoca

havia se aprofundado111

111 Esta interpretaccedilatildeo natildeo eacute incomum nos comentaacuterios da filosofia nietzschiana Nesse sentido eacute relevanteretomar a conhecida interpretaccedilatildeo heideggeriana para quem o pensamento nietzschiano poderia sercircunscrito a cinco conceitos fundamentais que seriam ldquoOs cinco tiacutetulos principais mencionados ndashlsquoniilismorsquo lsquotransvaloraccedilatildeo de todos os valores ateacute aquirsquo lsquovontade de poderrsquo lsquoeterno retorno do mesmorsquolsquoaleacutem-do homemrsquo ndash mostram a metafiacutesica de Nietzsche em um aspecto a cada vez uno mas respectivamentedeterminante do todordquo (HEIDEGGER 2007 Paacuteg 38) Nessa leitura a opccedilatildeo heideggeriana pelo niilismocomo conceito fundamental do pensamento metafiacutesico nietzschiano e a traduccedilatildeo de outros conceitosnietzschianos fundamentais a partir desse conceito indica um caminho de leitura possiacutevel em que osprincipais expoentes do pensamento nietzschiano relacionam-se a uma tentativa de superaccedilatildeo do niilismo Noentanto na medida em que compreendemos que no pensamento nietzschiano natildeo estamos diante de umauacutenica forma de niilismo posto que seria possiacutevel identificar em seu pensamento um niilismo da verdade umniilismo como antirealismo um niilismo como criacutetica dos fundamentos da religiatildeo um niilismo como criacuteticaaos fundamentos da ciecircncia e por uacuteltimo e talvez mais relevante um niilismo dos valores morais torna-senecessaacuterio ir aleacutem da interpretaccedilatildeo unificante de Heidegger De certa forma posto que o niilismo se apresentaa Nietzsche como mostrando-se a partir de ldquocentena de signosrdquo talvez fosse mais correto dizer que Nietzscheentende o niilismo como uma tendecircncia deteriorante uma doenccedila que perpassa diversas formas de culturahumana manifestando-se atraveacutes da negaccedilatildeo da realidade

197

Estes aspectos conduzem seu pensamento agrave busca pelos modos de se atingir o mais

elevado grau de vivacidade possiacutevel de ser experimentado De maneira geral importa a

Nietzsche neste periacuteodo de sua reflexatildeo oferecer alternativas aos problemas teoacutericos e de

fundo fisioloacutegico112 que o filoacutesofo encontra em sua eacutepoca Eacute nesse momento de sua

produccedilatildeo que o filoacutesofo registra em suas notas em um fragmento poacutestumo que costuma

constar como proacutelogo nos comentaacuterios do niilismo nietzschiano

O que eu relato eacute histoacuteria dos proacuteximos dois seacuteculos Descrevo o que estaacutea caminho o que natildeo pode mais ser diferente o advento do niilismoEssa histoacuteria pode ser relatada desde jaacute pois eacute a necessidade mesma queopera aqui Esse futuro fala agora mesmo atraveacutes de uma centena designos esse destino se anuncia em toda parte para essa muacutesica do futurotodos os ouvidos estatildeo abertos agora mesmo Por algum tempo ateacute agoratoda a nossa cultura europeia se moveu como que em direccedilatildeo a umacataacutestrofe com uma tensatildeo tortuosa que foi crescendo deacutecada por deacutecadaincansavelmente violentamente irrecorrivelmente como uma torrenteque quer alcanccedilar o fim que jaacute natildeo reflete que tem medo de refletir(KSA XIII 11[411])

Neste fragmento o niilismo eacute apresentado como se mostrando atraveacutes de uma

ldquocentena de signosrdquo ou seja como manifestando-se em diversas formas de expressatildeo na

cultura europeia Motivo pelo qual a ele ldquotodos os ouvidos estatildeo abertosrdquo Claramente aqui

o que estaacute em jogo eacute um sentido negativo do niilismo como uma ldquocataacutestroferdquo que se

anuncia por diversos signos Estes signos seriam a crescente tendecircncia decadente

subversora do sentido que Nietzsche enxerga presente na filosofia nas ciecircncias e de modo

geral na moral e que poria em risco a proacutepria existecircncia humana

De fato considerando-se que a moral eacute o grande campo de disputa da reflexatildeo

nietzschiana e que seu uso do termo aparece muitas vezes relacionado agrave sua criacutetica ao

cristianismo enquanto fundamento da moral ocidental entatildeo natildeo teriacuteamos duacutevida acerca

da natureza deste conceito em sua obra Deveriacuteamos concluir que o uso nietzschiano do

112 No fundo os problemas teoacutericos e suas consequecircncias fisioloacutegicas nunca satildeo distintos de forma clara nopensamento nietzschiano que toma a fisiologia dos processos de reflexatildeo como um modelo de reflexatildeo Esteaspecto tambeacutem eacute parte do experimentalismo da postura do filoacutesofo na qual o corpo e suas manifestaccedilotildeesfisioloacutegicas satildeo tomadas como laboratoacuterio de pesquisa Nesse sentido o conhecimento importa ao autor namedida em que possibilita o fortalecimento do tipo humano ao contraacuterio eacute relegado ao plano da especulaccedilatildeosem sentido

198

termo niilismo condiz com uma forma de criticar uma tendecircncia que se encontraria muito

fundamentalmente arraigada nos fundamentos da moral A partir da moral entatildeo o

niilismo enquanto tendecircncia teoacuterica conseguiria expandir-se para os outros terrenos da

cultura humana Nesse sentido na medida em que a ciecircncia e a filosofia se deixam

influenciar por concepccedilotildees morais inoculam o niilismo em suas produccedilotildees

Diante do exposto acreditamos natildeo ser absurdo contemplar o efeito da tendecircncia

niilista nas teorias do conhecimento criticadas por Nietzsche Em termos epistemoloacutegicos

que dizem respeito mais diretamente ao objeto deste trabalho o uso nietzschiano do termo

niilismo estaacute vinculado a uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade e conhecimento

como conceitos vinculados a uma vontade negativa em relaccedilatildeo agrave vida Nesse sentido o

niilismo estaria relacionado ao posicionamento epistemoloacutegico que afirma a possibilidade

de se atingir verdades absolutas com base em uma realidade suprassensiacutevel Ao negar a

possibilidade de se atingir verdades absolutas Nietzsche pretende opor resistecircncia agrave

tendecircncia niilista em teoria do conhecimento vista em sua leitura como um fundamento do

pensamento ocidental presente tanto no racionalismo como na metafiacutesica na religiatildeo e ateacute

mesmo na ciecircncia113

A questatildeo fundamental acerca do niilismo eacute colocada por Nietzsche nos seguintes

termos ldquoO niilismo estaacute agrave porta de onde nos vem esse mais sinistro de todos os

hoacutespedesrdquo (NFFP 1885 2[127]) Esta pergunta pode ser respondida com base nos textos

nietzschianos onde a genealogia do niilismo efetuada por Nietzsche acaba por conduzir ao

otimismo socraacutetico a crenccedila na razatildeo como remeacutedio para a existecircncia como a raiz mais

antiga do niilismo114 Se o filoacutesofo vincula a origem do niilismo a uma tendecircncia

epistemoloacutegica da antiguidade que certamente reflete uma opccedilatildeo moral associada pelo

113 Nietzsche certamente natildeo foi o primeiro a opor resistecircncia agraves concepccedilotildees que pretendem fundamentar oconhecimento em uma esfera exterior agrave realidade material Assim o perspectivismo nietzschiano enquantopostura epistemoloacutegica teria antecedentes histoacutericos em algumas correntes relativistas radicais daantiguidade tais como em Goacutergias famoso sofista nascido em Leontinos na Siciacutelia por volta de 485480aC cuja ceacutelebre negaccedilatildeo da existecircncia do ser assim como a negaccedilatildeo da possibilidade de seu conhecimentoe comunicaccedilatildeo testemunham uma das primeiras criacuteticas radicais agrave categoria de verdade na antiguidade Poroutro lado o relativismo agnoacutestico de Protaacutegoras que o leva a construir seu meacutetodo da antilogia a crenccedila deque natildeo existiria uma soacute verdade sobre os objetos mas duas verdades opostas e igualmente sustentaacuteveisatraveacutes do discurso possivelmente deve ser considerado como uma influecircncia melhor reconhecida nareflexatildeo nietzschiana Isto se daacute por conta dos embates deste sofista com os filoacutesofos disciacutepulos de Soacutecratesque com certeza refletem-se no antiplatonismo radical que Nietzsche reclama para sua filosofia Ao comparara postura nietzschiana com relaccedilatildeo agrave verdade a estas tendecircncias relativistas da antiguidade fica claro que seuposicionamento tem suas origens em uma espeacutecie de relativismo extremado embora natildeo possa ser reduzido aisto posto que tem tambeacutem um caraacuteter construtivo como pretendemos demonstrar a frente

199

filoacutesofo agrave valores decadentes o presente do niilismo para Nietzsche estaria diretamente

vinculado agrave moral cristatilde Motivo pelo qual na sequecircncia do texto jaacute referido o filoacutesofo

afirma que ldquoem uma interpretaccedilatildeo bem determinada na interpretaccedilatildeo moral cristatilde reside

o niilismordquo Ou seja considerando o niilismo um evento histoacuterico o filoacutesofo suscita uma

desconfianccedila acerca de suas bases constitutivas Poreacutem dado que reconhece uma inter-

relaccedilatildeo entre a moral cristatilde e a epistemologia que move a ciecircncia de sua eacutepoca natildeo tem

duacutevidas acerca do presente do niilismo Do mesmo modo por conta de seu caraacuteter de

mascaramento que reproduz de forma dissimulada a mesma tendecircncia presente no

otimismo socraacutetico o autor considera o cristianismo uma versatildeo popular do platonismo

A definiccedilatildeo de niilismo que se segue no poacutestumo em questatildeo pode ser considerada

definitiva ldquoQue significa niilismo ndash Que os valores supremos desvalorizem-se Falta o

fim falta a resposta ao lsquoPor quecircrsquordquo115 Assim ao niilismo estaria associada uma falta

estrutural de referenciais assim como a ausecircncia total de finalidade do devir Na medida

em que entende que o niilismo teve sua apariccedilatildeo nos meios culturais europeus e que nestes

fez residecircncia sem convite e sem se dar por conhecido o autor descreve o niilismo como

ldquoo mais estranho e mais ameaccedilador de todos os hoacutespedesrdquo116 Diante da nota nietzschiana

ldquoNiilismo falta a metardquo deduz-se que toda ausecircncia de objetivos manifesta uma vacuidade

de sentido da accedilatildeo humana para a qual ldquofalta a resposta ao por quecircrsquordquo deixando a accedilatildeo

humana pendendo sob o abismo da indeterminaccedilatildeo Sendo que o homem eacute visto nessa

leitura como ser limitado a uma determinada forma de viver eacute um ser determinado pela

necessidade de diretrizes ldquoO fato de que os valores supremos se desvalorizamrdquo

114 Eacute nesse sentido por exemplo que Heidegger no capiacutetulo de sua obra colossal acerca da filosofianietzschiana inicia sua apresentaccedilatildeo do niilismo por uma apresentaccedilatildeo da filosofia platocircnica HEIDEGGERMartin Nietzsche 2ordf ediccedilatildeo traduccedilatildeo de Marco antocircnio Casanova editora Forense Universitaacuteria Rio deJaneiro 2014 Mais do que isso o platonismo ocupa a primeira posiccedilatildeo nos estaacutegios do importante capiacutetulode Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da histoacuteria de um erro em que o autor apresenta sua versatildeo para a origem daideia de um mundo verdadeiro que estaacute na base do niilismo epistemoloacutegico como a crenccedila na verdade comovalor

115 Idem116 Nesse mesmo fragmento poacutestumo a consciecircncia da aproximaccedilatildeo de uma eacutepoca em que os fundamentosse tornam inoacutecuos eacute expressa por Nietzsche na sentenccedila ldquoo niilismo estaacute a portardquo (KSA XII 2[127])

200

(NFFP1887 9[35])117 ocasiona para ele um ponto de ruptura a partir do qual poucas

possibilidades se lhe apresentam

O que significa que os valores se desvalorizam Primeiramente isto significa que

natildeo haacute na razatildeo um norte a ser seguido uma finalidade determinada que conduza a accedilatildeo

humana Em segundo lugar isto significa que a concepccedilatildeo em que os valores fundamentais

se baseia mostra-se sem valor sem sentido O que seria para Nietzsche resultado de um

processo de anaacutelise da razatildeo que potildee valores sobre estes mesmos valores Assim com a

questatildeo acerca do sentido da falta de sentido do niilismo nietzschiano nos colocamos

diante de uma exposiccedilatildeo clara e determinante de como este deve ser compreendido em

associaccedilatildeo a duas concepccedilotildees fundamentais Primeiramente o niilismo se opotildee a toda

forma de teleologia ele se afirma na constataccedilatildeo da vacuidade de objetivos para a

realidade Em segundo lugar o niilismo estaacute relacionado com uma vacuidade nos valores

uma deterioraccedilatildeo dos valores fundamentais

Nestas duas concepccedilotildees temos um ponto de partida o niilismo significa que os

valores que fundamentam a existecircncia humana os fundamentos necessaacuterios para nossa

accedilatildeo perdem seu valor Para a pergunta fundamental para o sentido da existecircncia nos falta

uma resposta Deste problema fundamental surge a necessidade de se ocupar o vaacutecuo de

sentido para a existecircncia criado pela emergecircncia do niilismo Considerado o problema

dessa maneira a partir de uma compreensatildeo da falta de sentido na existecircncia duas

possibilidades parecem se apresentar ao filoacutesofo Motivo pelo qual ainda no aforismo

mencionada acima o autor traccedila uma distinccedilatildeo entre duas formas do niilismo o niilismo

ativo e o niilismo passivo

Ao niilismo passivo estaria vinculada toda forma de cansaccedilo da existecircncia toda

forma de instinto decadente O filoacutesofo entende o niilismo enquanto maldiccedilatildeo para a

117 eKGWBNF-18879[35] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1887 Em relaccedilatildeo aos aforismospoacutestumos foram consultados os originais na ediccedilatildeo digital das obras e cartas de Nietzsche organizadas porCOLLIMORTINARI Sempre que disponiacuteveis utilizamos as traduccedilotildees dos poacutestumos reunidas na coletacircneade fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI traduzidos por Marco Antocircnio Casanova publicado pelaeditora GEN em parceria com a Forense Universitaacuteria Tambeacutem utilizamos a ediccedilatildeo de fragmentos do espoacuteliode julho de 1882 a inverno de 18831884 traduzidos por Flaacutevio R Kothe e publicada pela editora UNBTambeacutem foram consultados os fragmentos sobre o Niilismo reunidas nas uacuteltimas paacuteginas do volumeNietzsche da coleccedilatildeo os pensadores editora Abril Cultural 1978 com seleccedilatildeo de textos de Geacuterard Lebrun ecom traduccedilotildees Rubens Rodrigues Torres Filho Quando satildeo utilizados fragmentos que natildeo constam nessascoletacircneas a traduccedilatildeo eacute de nossa responsabilidade A indicaccedilatildeo dos poacutestumos segue o seguinte padratildeo(NFFP Ano Nuacutemero do volume das notas poacutestumas e nuacutemero do fragmento)

201

humanidade como estando vinculado a uma necessidade de repouso que se expressa

muitas vezes em uma adoraccedilatildeo de uma realidade inexistente A constituiccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo de verdade como correspondecircncia a uma realidade apartada da realidade

humana estaacute ligada de forma direta a esta forma passiva de niilismo Nesse sentido o

niilismo poderia tambeacutem ser visto como um sinal de forccedila ldquonatildeo suficienterdquo um estado

cansado passivo reativo em relaccedilatildeo agrave realidade A este estado corresponderia uma

afirmaccedilatildeo da idealidade do que se nos apresenta uma sacralizaccedilatildeo dos valores apesar da

consciecircncia de sua ineficiecircncia Nesse sentido o niilismo passivo apresenta-se como uma

forma decadente de valorar a realidade na medida em que se ampara em valores vazios

em que torna o proacuteprio nada como um telos

A esta forma passiva do niilismo Nietzsche vincula as formas negativas de

existecircncia aquelas que se potildee em contradiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave vida O cristianismo eacute como

se sabe considerado pelo autor como um exemplo da manifestaccedilatildeo desse tipo de niilismo

na histoacuteria118 E jaacute no prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche expressa a

radicalidade da contrariedade do cristianismo em relaccedilatildeo agrave vida e a consequente

valorizaccedilatildeo negativa da vida inerente a essa postura

O cristianismo foi desde o iniacutecio essencial e basicamente asco e fastioda vida na vida que apenas se disfarccedilava apenas se ocultava apenas seenfeitava sob a crenccedila em ldquooutrardquo ou ldquomelhorrdquo vida O oacutedio ao ldquomundordquoa maldiccedilatildeo dos afetos o medo agrave beleza e agrave sensualidade um lado-de-laacuteinventado para difamar melhor o lado-de-caacute no fundo um anseio pelonada pelo fim pelo repouso para chegar ao ldquosabaacute dos sabaacutesrdquo (Prefaacuteciosect5 Paacuteg 19)

Ao cristianismo portanto estaria ligado uma forma negativa de niilismo passivo

Consequentemente ao cristianismo estaria ligada uma forma negativa de existecircncia Mas o

niilismo passivo natildeo eacute a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do niilismo Se por um lado

diante da criacutetica ao cristianismo que encontramos no interior da obra nietzschiana nos

veriacuteamos diante da necessidade de atribuir um valor estritamente negativo ao niilismo do

118 Embora o budismo tambeacutem seja apresentado pelo autor em certas passagens notadamente no Anticristocomo uma forma do niilismo passivo na medida em que entende que este fundamentava-se em uma negaccedilatildeoagrave realidade O budismo no entanto distinguir-se-ia do cristianismo na medida em que o cristianismo conduza uma atitude de rejeiccedilatildeo da realidade que eacute estranha ao budismo

202

qual o cristianismo seria a manifestaccedilatildeo mais elevada por outro lado uma tal condenaccedilatildeo

do niilismo por si passa por alto a distinccedilatildeo fundamental entre niilismo ativo e passivo

Mais do que isso a condenaccedilatildeo do niilismo pode ainda ser vista como um aspecto do

niilismo passivo no qual natildeo se apresentaria uma alternativa de superaccedilatildeo Por sua vez ao

niilismo ativo estaria vinculada uma foacutermula da superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo Esta forma

de superaccedilatildeo do niilismo que toma o niilismo mesmo como elemento relaciona-se

intimamente com o projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo dos valores

A esta forma do niilismo segundo Nietzsche estariam vinculados os instintos

afirmativos e criadores Assim ainda no fragmento poacutestumo 9[39] de 1887 Nietzsche

afirma ldquolsquoNiilismorsquo como ideal da mais elevada potencialidade do espiacuterito em parte

destrutivo em parte irocircnicordquo (NFFP 1887 9[39]) Com isso o filoacutesofo daacute a entender que

o niilismo por si natildeo eacute apenas um estado negativo uma fatalidade histoacuterica Pois em sua

leitura quando o valor da existecircncia carece de sentido o niilismo pode ser ldquosinal do poder

elevado do espiacuteritordquo na medida em que ldquoas metas ateacute aquirdquo se mostram inapropriadas para

algueacutem incapazes de satisfazer as ldquoconvicccedilotildeesrdquo ou os ldquoartigos de feacuterdquo do indiviacuteduo

O niilismo ativo se mostra aqui como potencial criativo na medida em que a

consciecircncia da vacuidade dos valores produz valores novos A proacutepria mudanccedila dos

valores sua transformaccedilatildeo seria manifestaccedilatildeo da forccedila da vontade como uma expressatildeo

direta do crescimento do poder daquele que estabelece os valores (NFFP 1887 9[39])

Para o filoacutesofo a caducidade dos valores eacute condicionada pela sua crescente ineficiecircncia

pela sua incapacidade em suprir a vontade do indiviacuteduo em questatildeo dando margem agrave

mudanccedila dos valores Nesse sentido agrave mudanccedila dos valores estaria ligada a um progresso

no poder criativo daqueles que constituem os valores os legisladores o tipo filosoacutefico

cotejado por Nietzsche em seus escritos a partir de Humano demasiado Humano

Esta distinccedilatildeo se mostra fundamental para um estudo aprofundado do pensamento

de Nietzsche e nem sempre estaacute clara nas leituras mais ligeiras da obra deste autor Assim

apesar da criacutetica ao niilismo na filosofia nietzschiana superar enormemente o sentido

afirmativo dessa tendecircncia eacute importante considerar que na leitura nietzschiana do

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores nem todo niilismo eacute um niilismo passivo Posto

203

que no o autor contempla a possibilidade em se falar de um niilismo positivo afirmativo

ou como prefere Nietzsche um niilismo ativo transformador da realidade119

O niilismo ativo como consciecircncia da falta de sentido no mundo que conduz a

criaccedilatildeo de sentido eacute uma forma de niilismo de extrema significaccedilatildeo na filosofia

nietzschiana Sua concepccedilatildeo da vontade de potecircncia enquanto poder criativo inerente agrave

realidade associa-se intimamente a esta concepccedilatildeo e seu experimentalismo estaacute

estreitamente relacionado com a ideia de um atribuir valor as coisas como podemos ver

em um outro fragmento de 1887 no qual o autor declara

Aquele que natildeo eacute capaz de pocircr sua vontade nas coisas que eacute sem forccedila devontade sabe pelo menos dar um sentido agraves coisas isto eacute agrave crenccedila de queelas encerram uma vontade Eacute uma medida para indicar o grau de forccedilade vontade o saber ateacute que ponto podem as coisas carecer de sentido paranoacutes ateacute que ponto suportamos viver num mundo sem sentido (NFFP1887 9[60])

O filoacutesofo aponta para uma capacidade de atribuir sentido para as coisas

pertencente agravequeles capazes de colocar sua vontade nas coisas E essa capacidade eacute

encarada aqui como uma medida para julgar entre posiccedilotildees contraacuterias entre diferentes

quanta de forccedila O experimento aqui consiste em saber ateacute que ponto as coisas podem

carecer de sentido e serem ainda afirmadas ou de outro modo ateacute que ponto uma

constituiccedilatildeo fisioloacutegica suporta a falta de sentido estrutural nas coisas Tal medida natildeo se

distingue fundamentalmente da ideia presente em outras partes da produccedilatildeo nietzschiana

nas quais o autor relaciona o eterno retorno enquanto extrema forma de niilismo como a

falta de sentido mais elevada e o questionamento acerca do quanto de verdade algueacutem

pode suportar Neste experimento eacute constatado o proacuteprio fato de que a medida da forccedila eacute

quanto podemos admitir da necessidade da mentira sem perecer120

Mesmo diante da constataccedilatildeo da falta de sentido da existecircncia o filoacutesofo chega a

uma conclusatildeo fundamental segundo a qual uma determinada vontade pode ser expressa

em um ato positivo no sentido de sustentar uma crenccedila tomaacute-la por verdade independente

de ser ela verdade ou natildeo Assim considerado a partir dessa perspectiva o niilismo eacute

119 A diferenciaccedilatildeo entre niilismo ativo e passivo eacute expressa por Nietzsche no fragmento poacutestumo(NFFP1887 9[35]) citado a frente (Conforme ainda A Vontade de Poder Paacuteg 36) 120 Vide por exemplo o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[41])

204

ressignificado tornando-se a negaccedilatildeo do mundo do ser o mundo ideal contraposto ao

mundo real da ausecircncia de sentido Natildeo eacute sem importacircncia o fato de que seraacute justamente

nessa superaccedilatildeo da necessidade de um aleacutem enquanto fonte de sentido da existecircncia que o

filoacutesofo encontraraacute a forma mais adequada ao espiacuterito livre

Com base nesta concepccedilatildeo do niilismo ativo pode-se pensar a desconfianccedila acerca

da possibilidade de se nos representarmos a realidade em sua inteireza proacutepria do

perspectivismo como fundamento de uma concepccedilatildeo do conhecimento como criaccedilatildeo A

consideraccedilatildeo frequente nos textos nietzschianos especialmente a partir de A Gaia Ciecircncia

de uma forma de conhecimento como associada agrave audaacutecia da criaccedilatildeo e da experimentaccedilatildeo

assume um novo sentido que lhe afasta da mera consideraccedilatildeo do relativismo inerente agrave

consideraccedilatildeo de que todo conhecimento afirma-se como uma mera interpretaccedilatildeo

Na leitura do filoacutesofo quando uma determinada estrateacutegia epistemoloacutegica vista

aqui apenas como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia torna-se uma obsessatildeo no homem por

exemplo quando a vontade de verdade se sobrepotildee agrave vontade de vida quando o

conhecimento se torna para o homem uma ilusatildeo e uma fuga a ele se vinculam instintos

contraacuterios agrave manutenccedilatildeo da vida E dessa forma se abriria a possibilidade de uma forma

de niilismo Eacute contra o niilismo desta concepccedilatildeo que Nietzsche se volta ao pensar o

conhecimento segundo uma compreensatildeo perspectivista

A este niilismo oriundo da consciecircncia da desvalorizaccedilatildeo dos valores

epistemoloacutegicos ou seja a consciecircncia da inconsistecircncia dos conceitos tomados ateacute entatildeo

como os mais certos vincula-se a possibilidade de criar Esta criaccedilatildeo no entanto natildeo eacute

mais tomada como verdade tais como as criaccedilotildees da ciecircncia e da filosofia dogmaacutetica A

criaccedilatildeo aqui passa a ser vista como de fato eacute apenas uma forma de valorar a realidade

segundo as capacidades e limitaccedilotildees do homem Daiacute o perspectivismo

Nessa leitura entra em jogo uma forma de conceber a criaccedilatildeo que difere da

falsificaccedilatildeo a qual Nietzsche atribuiacute agrave ciecircncia e a filosofia dogmaacutetica No fundo tal como

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira o autor trabalha aqui com duas possibilidades

inerentes agrave inesgotaacutevel capacidade humana de figuraccedilatildeo De um lado teriacuteamos o homem

dos conceitos que se embrenha nas criaccedilotildees do intelecto sem se dar conta da falsidade de

sua atuaccedilatildeo acabando por ficar preso nas redes de seu proacuteprio dogmatismo para o qual

205

natildeo vecirc saiacuteda mesmo quando se torna consciente da falsidade de seus conceitos Aqui

Nietzsche fala propriamente em uma falsificaccedilatildeo da realidade posto que a atitude para

com os produtos do conhecimento implicaria na crenccedila na veracidade destes produtos

A esta atitude para com os produtos do intelecto o autor confronta o modo de

proceder do homem intuitivo do artista do filoacutesofo do futuro do espiacuterito livre todos

variaccedilotildees em torno de uma mesma compreensatildeo do papel do filoacutesofo Segundo Nietzsche

por agir para com os produtos do intelecto de maneira conscientemente artiacutestica o homem

que se liberta do dogmatismo da ciecircncia e da filosofia natildeo falsearia a realidade mas apenas

a dissimularia Deste modo o que estaacute em jogo natildeo eacute mais a falsidade dos produtos da

atuaccedilatildeo perspectivista humana mas a crenccedila em sua veracidade A ideia de

experimentalismo em Nietzsche estaacute estreitamente relacionada a esta compreensatildeo da

atuaccedilatildeo do intelecto Isto porque o filoacutesofo pensa seu experimentalismo como o

questionamento do quanto o homem poderia se aprofundar no niilismo ou seja quanto ele

poderia tornar-se consciente do caraacuteter meramente artiacutestico de seus conceitos de suas

verdades sem sucumbir

Uma filosofia experimental tal como eu a vivo antecipaexperimentalmente ateacute mesmo as possibilidades de um niilismo radicalsem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negaccedilatildeo no natildeoem uma vontade de natildeo Ela quer em vez disso atravessar ateacute ao inversondash ateacute a um dionisiacuteaco dizer - sim ao mundo tal como eacute sem descontoexceccedilatildeo e seleccedilatildeo ndash quer o eterno curso circular ndash as mesmas coisas amesma loacutegica e iloacutegica do encadeamento Supremo estado que umfiloacutesofo pode alcanccedilar estar dionisiacamente diante da existecircncia ndashminha foacutermula para isso eacute amor fati (NFFP XIII 16 [32])121

Se o que o filoacutesofo diz aqui eacute dito com relaccedilatildeo ao mundo ldquosem desconto exceccedilatildeo e

seleccedilatildeordquo entatildeo tambeacutem implicaria um radical dizer-sim ateacute agrave pequenez de nossa

perspectiva humana Nesse sentido o amor fati tambeacutem significaria amar nossa

perspectiva em seu caraacuteter aparente sem sucumbir Segundo a compreensatildeo nietzschiana

em que aspectos das ciecircncias naturais satildeo tomados como suporte teoacuterico o perspectivismo

apareceria como uma postura em relaccedilatildeo ao conhecimento mais proacutexima das exigecircncias da

121 Foi utilizada a traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres filho do espoacutelio do Outono de 1888 constante novolume das obras selecionadas de Nietzsche para a coleccedilatildeo os pensadores

206

proacutepria vida Pois na medida em que uma espeacutecie aparece para o filoacutesofo como

dependente de uma consideraccedilatildeo da realidade segundo suas necessidades seria a proacutepria

perspectividade que potencializaria o desenvolvimento daquela espeacutecie Em contrapartida

a confusatildeo entre o tomar como perspectivo o que eacute necessaacuterio agrave vida e o tomaacute-lo como

verdadeiro caracterizaria uma forma de vida decadente

Na medida em que o autor pensa a transvaloraccedilatildeo como esse movimento que busca

o inverso a partir do que eacute dado ou seja que considera que a chegada em um estaacutegio

superior de afirmaccedilatildeo apenas se torna possiacutevel quando se supera um estaacutegio radical de

negaccedilatildeo a passagem necessaacuteria pelo niilismo radical se torna uma parte importante de seu

procedimento de experimentaccedilatildeo Pois para o filoacutesofo o niilismo apresenta-se como uma

fase um estaacutegio no caminho da afirmaccedilatildeo mais radical o dionisiacuteaco dizer sim Nesse

sentido fundamental o experimentalismo nietzschiano estaria vinculado a uma tentativa de

superaccedilatildeo do niilismo radical

Como o fragmento acima citado demonstra a utilizaccedilatildeo dos termos ldquofilosofia

experimentalrdquo e ldquoamor fatirdquo pertencem ao periacuteodo dos uacuteltimos escritos nietzschianos em

que o filoacutesofo jaacute esboccedila uma tentativa de reconstruccedilatildeo de sua proacutepria obra122 A esta

tentativa pertence tambeacutem e de forma especial o conceito de transvaloraccedilatildeo o qual

vinculamos em nossa interpretaccedilatildeo agrave superaccedilatildeo do niilismo por meio de uma vivecircncia do

niilismo radical ou seja a tentativa de superar o niilismo atraveacutes do niilismo mesmo

122 Como sugere Charles Andler em ANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Paris Gallimard 1958vol 2 p 13

207

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas

Qualquer interpretaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano enfrenta uma dificuldade

inicial peculiar a escassez de referecircncias a esta concepccedilatildeo tanto em textos publicados em

vida quanto na obra poacutestuma do filoacutesofo O termo ldquoperspectivismordquo aparece propriamente

apenas em poucas passagens da obra nietzschiana publicada O primeiro exemplo de

apariccedilatildeo deste termo que gostariacuteamos de analisar encontra-se no sect 354 de A Gaia Ciecircncia

que eacute de tal modo frequente em todos comentadores que trabalham a temaacutetica do

perspectivismo a ponto de quase ser considerada como um ponto de partida oficial dos

comentaacuterios do perspectivismo nietzschiano

Nesta passagem o perspectivismo eacute associado ao ldquofenomenalismordquo no que o autor

pretende como sendo uma afirmaccedilatildeo do caraacuteter amplamente restritivo que a consciecircncia

assume em seu pensamento Nesta consideraccedilatildeo das limitaccedilotildees de sua concepccedilatildeo de

consciecircncia que eacute afirmada em aberta contraposiccedilatildeo ao tratamento epistemoloacutegico

tradicional e seu par conceitual sujeitoobjeto o conceito de perspectivismo natildeo eacute no

entanto oferecido como uma contribuiccedilatildeo original mas eacute apresentado como um traccedilo

caracteriacutestico do pensamento do autor

Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendoa natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemosnos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado ndash quetudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralorelativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-seconsciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeosuperficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo (FWGC Livro V sect354)

Com sua referecircncia ao ldquoFenomenalismordquo de suas concepccedilotildees o autor de A Gaia

Ciecircncia demarca o acircmbito da investigaccedilatildeo a que se propotildee o aparecimento das realidades

em estudo Interessa ao autor portanto o estudo daquilo que se apresenta a noacutes em nossa

experiecircncia Mais ainda o autor assume o caraacuteter restritivo de sua investigaccedilatildeo do tema

208

posto que eacute tomado como advindo de uma perspectiva limitada Do mesmo modo

consciente de que a atuaccedilatildeo da consciecircncia123 conduz a uma superficializaccedilatildeo daquilo que eacute

investigado por meio dela o autor denomina perspectivismo a sua apropriaccedilatildeo do objeto

na medida em que sua apropriaccedilatildeo desse objeto como toda aproximaccedilatildeo de qualquer

objeto por meio da consciecircncia apenas pode se dar de modo a falsear tornar comunicaacutevel

generalizar

Ao entender que sua filosofia esta demarcada por um fenomenalismo e um

perspectivismo o autor reconhece que sua abordagem dos problemas filosoacuteficos natildeo estaacute

alheia ao conhecimento de que toda posiccedilatildeo filosoacutefica apenas pode se dar por meio de uma

grande reduccedilatildeo e simplificaccedilatildeo da realidade Nesta compreensatildeo da necessaacuteria reduccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo operada pela consciecircncia encontramos elementos da abordagem que

Nietzsche adota em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra Moral

Notadamente a afirmaccedilatildeo do caraacuteter falsificador da atuaccedilatildeo da organizaccedilatildeo intelectual

humana124

Em ambos textos o autor parece partir do reconhecimento do avanccedilo das ciecircncias

naturais Esta abordagem eacute significativa porque a partir dela a consciecircncia apareceria para

noacutes como um fenocircmeno entre outros cada vez melhor conhecido e natildeo mais como

substacircncia separada da realidade125 Nesta leitura a consciecircncia atuando no sentido de

123 Vale ressaltar que Nietzsche aplica aqui a anaacutelise da consciecircncia de um modo distinto da tradiccedilatildeo Obrassobre a consciecircncia a razatildeo o entendimento humano satildeo comuns desde a modernidade mas o autor doEnsaio Sobre Verdade e Mentira trabalha com este conceito em um sentido fisioloacutegico e de certo modoevolucionista que distoa da concepccedilatildeo metafiacutesica da consciecircncia tal como esta foi entendida pela tradiccedilatildeoEsta interpretaccedilatildeo parte da consideraccedilatildeo do Ensaio Sobre Verdade e Mentira no sentido Extra-moral cujatemaacutetica e desenvolvimento eacute semelhante as do aforismo em questatildeo A consciecircncia aparece nessa concepccedilatildeocomo um oacutergatildeo do aparato humano uma adaptaccedilatildeo bioloacutegica que cumpre um papel essencial na manutenccedilatildeode nossa espeacutecie O trato naturalista que Nietzsche aplica a consciecircncia seraacute desenvolvido adiante124 Em ambos textos Nietzsche trabalha com a ideia de que o aparato racional humano ao constituir alinguagem simplifica a realidade em prol da sobrevivecircncia humana Ou seja ao inveacutes de estar voltado para averdade como se a realidade estivesse constituiacuteda de forma racional e apenas racionalmente pudesse serdesvelada a razatildeo humana trabalharia no sentido de tornar racional algo muito mais complexo do que a razatildeopossa compreender Assim na tentativa de converter esta complexidade pura em algo passiacutevel decomunicaccedilatildeo a razatildeo operaria uma ldquoviolecircnciardquo para com a realidade propriamente Note-se que toda estaexplicaccedilatildeo parece sugerir que haacute um algo que eacute traduzido em linguagem por meio de uma simplificaccedilatildeo Noentanto a existecircncia desse ldquoalgordquo se deveria muito mais a uma limitaccedilatildeo da linguagem com relaccedilatildeo ao que ofiloacutesofo tenta dizer do que propriamente uma crenccedila de Nietzsche em uma realidade em si que eacute traduzidaem linguagem por meio desta simplificaccedilatildeo Esperamos que isto fique claro no decorrer de nossa exposiccedilatildeoPor fim uma importante ressalva a ser feita diz respeito ao termo utilizado para se referir ao oacutergatildeoresponsaacutevel pela criaccedilatildeo da linguagem em ambos textos Em se Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzscherefere-se a esta faculdade como intelecto (Intelect) e no aforismo em questatildeo de A Gaia Ciecircncia o filoacutesofoconsidera a consciecircncia a estrutura responsaacutevel por esta conversatildeo125 Nesse sentido o autor do aforismo estaacute em conformidade com o essencial da leitura de Lange dafilosofia e do modo como a aplicaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico conduziria a um afastamento cada vez maior das

209

gerar comunicaccedilatildeo conduz a uma reduccedilatildeo cada vez maior de todos os aspectos internos

tudo que haacute de mais individual na vida humana a uma generalizaccedilatildeo passiacutevel de ser

tornada comum Este aspecto generalizante faz com que fiquemos impedidos de nos

relacionar com os eventos verdadeiros ateacute mesmo de nossa proacutepria existecircncia pessoal

Assim perspectivamos o que haacute de verdadeiro acerca de nossa proacutepria constituiccedilatildeo interna

que eacute individual e natildeo passiacutevel de comunicaccedilatildeo na tentativa de nos tornarmos conscientes

de acontecimentos cuja ocorrecircncia natildeo permitiria generalizaccedilatildeo126

A anaacutelise nietzschiana se destaca pela associaccedilatildeo entre perspectivismo e

consciecircncia como uma forma de inversatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Ou seja se a tradiccedilatildeo

compreende que seria o elemento racional humano o elemento potencializador do

conhecimento Nietzsche quer problematizar a natureza desta concepccedilatildeo de conhecimento

que para o filoacutesofo natildeo se relacionaria com a descoberta de verdades disponiacuteveis agrave razatildeo

Sua reflexatildeo criacutetica portanto diz respeito agrave anaacutelise de nossa capacidade de conhecer e do

oacutergatildeo que a tradiccedilatildeo considera responsaacutevel por este conhecimento

Este movimento se realiza com o mesmo sentido com que a tradiccedilatildeo teria operado a

criacutetica ao sensualismo como a desqualificaccedilatildeo dos oacutergatildeos dos sentidos como fonte do

conhecimento Ou seja assim como a tradiccedilatildeo desqualifica os sentidos como fonte de

conhecimento por considerar que sua afinidade com o movimento comprometeria sua

capacidade de revelar qualquer coisa verdadeira Nietzsche desqualifica a consciecircncia

como fonte de conhecimento e suspeita de suas certezas como se natildeo se tratasse de algo

proacuteprio da realidade Assim o primeiro aspecto de uma teoria perspectivista do

conhecimento trata da natureza de nossa consciecircncia a qual natildeo eacute considerada na leitura

nietzschiana como oacutergatildeo para a verdade Desde que sua funccedilatildeo estaria relacionada agrave

generalizaccedilatildeo a vulgarizaccedilatildeo a igualaccedilatildeo do natildeo igual

supersticcedilotildees metafiacutesicas tal como a concepccedilatildeo tradicional de consciecircncia Esta passa a ser analisada tambeacutemaqui em sua geraccedilatildeo e desenvolvimento como fenocircmeno e natildeo mais como substacircncia eterna e imortal126 Este argumento da ignoracircncia no qual somos mantidos em relaccedilatildeo agrave nossa constituiccedilatildeo interna eacute caro aNietzsche para sua negaccedilatildeo de que obtemos qualquer acesso agrave verdade assim como que esta verdade se nosdaacute a conhecer atraveacutes da consciecircncia Este argumento jaacute aparece em seu Ensaio Sobre Verdade e Mentira nosentido Extra-moral em um sentido muito proacuteximo do utilizado na passagem da Gaia Ciecircncia citada acimaldquoO que sabe propriamente o homem sobre si mesmo Sim seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-secompletamente como se estivesse em uma vitrina iluminada Natildeo lhe cala a natureza quase tudo mesmosobre seu corpo para mantecirc-lo agrave parte das circunvoluccedilotildees dos intestinos do fluxo raacutepido das correntessanguiacuteneas das intrincadas vibraccedilotildees das fibras exilado e trancado em uma consciecircncia orgulhosa charlatatildeEla atirou fora a chave e ai da fatal curiosidade que atraveacutes de uma fresta foi capaz de sair uma vez docubiacuteculo da consciecircncia e olhar para baixo e agora pressentiu que sobre o implacaacutevel o aacutevido o insaciaacutevel oassassino repousa o homem na indiferenccedila de seu natildeo-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorsode um tigrerdquo (WLSVM sect1)

210

O aparato cognitivo humano aparece aqui como a ferramenta atraveacutes da qual nossa

espeacutecie se livra da pluralidade e extrema individualidade a fim operacionalizar uma cadeia

de comando produtiva Em outros termos este aparato teria evoluiacutedo em funccedilatildeo de uma

estrateacutegia de sobrevivecircncia tipicamente humana estrateacutegia em que estaria envolvida a

dissimulaccedilatildeo de elementos da realidade127 para efeitos de comunicaccedilatildeo Assim a

consciecircncia que eacute tomada pela filosofia moderna como instrumento revelador da verdade

passa a ser considerada como instrumento ldquomascaradorrdquo oacutergatildeo que cria metaacuteforas a partir

da verdade multifacetada e em constante mudanccedila

E esta seria a passagem na obra nietzschiana em que o termo perspectivismo

aparece com maior clareza Na grande quantidade de notas epistemoloacutegicas reunidas nos

poacutestumos nietzschianos cumpre notar que o termo perspectivismo eacute mencionado apenas

raras vezes O tratamento destas passagens como constituindo um conjunto de notas

epistemoloacutegicas no entanto nada tem a ver com a determinaccedilatildeo dada por seu autor a estas

Este tratamento relaciona-se com uma apreciaccedilatildeo destes textos como constituindo uma

profunda reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento suas consequecircncias e pressupostos

Sobressai entre estas passagens o fragmento 7[60] de fins de 1886 e iniacutecios de 1887

bastante conhecido dos comentadores e ao qual fazemos repetidas referecircncias nesse

trabalho

Contra o positivismo que fica no fenocircmeno ldquosoacute haacute fatosrdquo eu diria natildeojustamente natildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildees [Interpretationen] Natildeopodemos verificar nenhum fato ldquoem sirdquo talvez seja um absurdo quereruma tal coisa ldquoTudo eacute subjetivordquo dizeis mas jaacute isso eacute interpretaccedilatildeo[Auslegung] O ldquosujeitordquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

127 Estes argumentos satildeo apresentados por Nietzsche em oposiccedilatildeo ao que a tradiccedilatildeo postulava motivo peloqual o autor se vecirc na necessidade de fazer referecircncia a um objeto ideal tal como a realidade na tentativa deprovar que se a consciecircncia evolui no sentido de propiciar a comunicaccedilatildeo entatildeo seu funcionamentonecessariamente envolve a eliminaccedilatildeo de elementos do real a fim de criar realidades que possam sercomunicadas Assim sua hipoacutetese eacute apresentada para demonstrar que nosso elemento racional natildeo poderiaser algo afeito agrave natureza veraz da realidade como um oacutergatildeo para a verdade mas que sua atuaccedilatildeo apenas serestringiria agrave criaccedilatildeo de verdades que possam ser comunicadas A permanecircncia na filosofia de juventude deNietzsche deste elemento uacuteltimo absolutamente individual eacute resultado da influecircncia da filosofia metafiacutesicade Schopenhauer e torna parte da filosofia nietzschiana passiacutevel de ser relacionada a uma forma depensamento metafiacutesico No entanto acreditamos que ainda na juventude Nietzsche sustenta uma reflexatildeoeminentemente criacutetica para com toda forma de metafiacutesica Jaacute em 1872 atraveacutes da influecircncia naturalistaobtida da leitura de Lange Nietzsche se vecirc de posse de um arsenal de argumentos cientiacuteficos que lhepossibilitam recusar qualquer recurso a uma explicaccedilatildeo metafiacutesica De que o filoacutesofo se afasta jaacute naqueleperiacuteodo de uma concepccedilatildeo metafiacutesica de verdade temos como testemunho os textos analisados nos primeiroscapiacutetulos deste trabalho em que o filoacutesofo procura responder agrave diversas questotildees referentes agrave verdade combase nos resultados das ciecircncias naturais notadamente na anaacutelise dos oacutergatildeos dos sentidos

211

inventado posto por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes dainterpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacutetese (NFFP 1886-1887 7[60])

A passagem citada eacute geralmente interpretada como a negaccedilatildeo da possibilidade do

conhecimento independentemente do sujeito que conhece e de sua constituiccedilatildeo especiacutefica

Assumimos esta interpretaccedilatildeo como propiacutecia agrave elucidaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

que vem a filiaacute-lo aos resultados da filosofia kantiana Poreacutem com isso natildeo queremos dizer

que o autor destas notas permanece preso agraves consequecircncias teoacutericas a que Kant chega

Pois ao passo que Nietzsche entende o conhecimento como trabalho ativo da consciecircncia

em sua postulaccedilatildeo mais tardia esta ideia se liga agrave inutilidade em se conceber uma realidade

natildeo interpretativa

Ainda que com estas ressalvas Nietzsche conserva algo do espiacuterito da primeira

criacutetica kantiana ao assumir que todo conhecer seria produto da atuaccedilatildeo do sujeito Ou seja

que o conhecimento teria expressatildeo fenomecircnica como apropriaccedilatildeo de eventos natildeo

racionalizaacuteveis de acordo com nossa perspectiva de sujeito O que de partida afastaria a

possibilidade de que em algum momento de nossas formulaccedilotildees teoacutericas estejamos lidando

com fatos brutos ou verdades puras desinteressadas o que jaacute denunciaria o caraacuteter

racional dos elementos por detraacutes da interpretaccedilatildeo Como se pode notar esta constataccedilatildeo jaacute

estaacute presente no aforismo 354 da Gaia Ciecircncia analisado acima

Nesta leitura o conhecimento do mundo pode apenas ser visto como uma

possibilidade quando levamos em consideraccedilatildeo que conhecimento natildeo eacute a explicitaccedilatildeo do

sentido do mundo sua realidade uacuteltima Natildeo haacute um sentido por traacutes mas uma

multiplicidade de sentidos em um mundo permanentemente em mudanccedila impossiacutevel de

apreender de uma vez por todas O que nos conduz agrave necessidade de considerar outra

apariccedilatildeo do termo perspectivismo nos poacutestumos nietzschianos

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade

Em uma anotaccedilatildeo poacutestuma Nietzsche questiona a crenccedila dos fiacutesicos em um mundo

verdadeiro Crenccedila que o filoacutesofo julga subjacente agraves teorias das ciecircncias como um todo

Nesta leitura o mundo aparente enquanto o mundo disponiacutevel para cada um segundo suas

212

capacidades de apreensatildeo se revelaria como paacutelido reflexo deste mundo dos fatos A

criacutetica nietzschiana agraves ciecircncias aqui cumpre os mesmos estaacutegios de sua criacutetica agrave filosofia

dogmaacutetica Assim do mesmo modo que o filoacutesofo houvera criticado a concepccedilatildeo de um

mundo platocircnico das ideias rebate aqui a concepccedilatildeo de aacutetomos que eacute tomada como uma

mera ficccedilatildeo para fins da ciecircncia

Os fiacutesicos acreditam em um ldquomundo verdadeirordquo agrave sua maneira umafirme sistematizaccedilatildeo de aacutetomos igual para todos os seres [Wesen] e commovimentos necessaacuterios ndash de modo que para eles o ldquomundo aparenterdquose reduz ao lado acessiacutevel a cada ser [Wesen] segundo sua espeacutecie do ser[Sein] universal e universalmente necessaacuterio (acessiacutevel e tambeacutem aindapreparado ndash feito ldquosubjetivordquo) Mas com isso enganam-se o aacutetomo quepostulam eacute deduzido a partir da loacutegica daquele perspectivismo daconsciecircncia ndash tambeacutem ele proacuteprio eacute portanto uma ficccedilatildeo subjetiva Essaimagem de mundo que eles projetam natildeo eacute em absoluto essencialmentedistinta da imagem de mundo subjetiva ela soacute eacute construiacuteda com sentidosestendidos pelo pensar mas absolutamente com nossos sentidos Porfim sem sabecirc-lo omitiram algo da constelaccedilatildeo justamente o necessaacuterioperspectivismo em virtude do qual cada centro de forccedila - e somente ohomem - constroacutei a partir de si todo o mundo restante isto eacute medeapalpa forma pela sua forccedila Esqueceram de computar essa forccedila quepotildee perspectivas no ldquoser verdadeirordquo [ldquowahre Seinrdquo] Dito na linguagemda escola o ser-sujeito Eles acham que este foi ldquodesenvolvidordquo que veiode acreacutescimo - Mas o quiacutemico ainda o usa tal eacute o ser-especiacutefico quedetermina o agir e reagir de tal e qual maneira sempre de acordo(NFFP 188814 [186])

Segundo esta leitura tudo o que eacute fato para noacutes jaacute seria o resultado do trabalho

ativo da consciecircncia o que natildeo garante que hajam fatos por traacutes do que nos eacute dado como

objeto de conhecimento Esta afirmaccedilatildeo tem como consequecircncia mais radical a negaccedilatildeo de

um mundo a ser interpretado um mundo para aleacutem das interpretaccedilotildees Isso explica a

negaccedilatildeo do mundo aparente junto agrave negaccedilatildeo do mundo verdadeiro tal como se observa na

passagem de Crepuacutesculo dos Iacutedolos cujo subtiacutetulo histoacuteria de um erro denuncia a

falsidade por traacutes da constituiccedilatildeo do conceito de mundo verdadeiro Processo em que

segundo Nietzsche a filosofia kantiana ocupa uma etapa importante128

128 Esta passagem eacute parte do livro Trecircs do Crepuacutesculo dos Iacutedolos a ldquoRazatildeordquo em filosofia onde Nietzschediz ldquo3 O mundo verdadeiro - inatingiacutevel indemonstraacutevel despromoviacutevel mas o proacuteprio pensamento disso -um consolo uma obrigaccedilatildeo um imperativo (No fundo o velho sol mas visto atraveacutes da neblina e doceticismo A ideia tornou-se elusiva paacutelida noacuterdica koumlnigsbergiana)rdquo O aspecto ldquokoumlnigsbergianordquo domundo real eacute claro refere-se agrave concepccedilatildeo kantiana do mundo ldquonoumenalrdquo

213

Com o que fica dito nestas observaccedilotildees jaacute nos aproximamos dos elementos

fundamentais de uma compreensatildeo perspectivista da verdade tal como acreditamos poder

extrair do pensamento nietzschiano Primeiramente a afirmaccedilatildeo norteadora de que natildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildees que regula a compreensatildeo da verdade em questatildeo como

contraacuterio tanto ao conceito de verdade herdado da tradiccedilatildeo quanto a uma concepccedilatildeo de

verdade com base na atuaccedilatildeo desinteressada do pesquisador presente na concepccedilatildeo

positivista da filosofia

De fato a pretensatildeo positivista de localizar fatos brutos no efetivo sua esperanccedila

de atingir os fatos eternos por traacutes das coisas ultrapassa os limites impostos pelas

consideraccedilotildees criacuteticas nietzschianas Nesta leitura a renuacutencia a qualquer origem natildeo

investigada assim como a negaccedilatildeo da permanecircncia de qualquer fundamento uacuteltimo satildeo

componentes ineliminaacuteveis Por traacutes desta consideraccedilatildeo criacutetica haacute uma compreensatildeo baacutesica

segundo a qual em nossa atividade cognoscitiva temos sempre apenas interpretaccedilotildees de

acontecimentos que nos satildeo dados sem forma racional anterior sendo necessaacuterio tornaacute-los

conscientes o que significa nesta leitura categorizaacute-los segundo os ditames de nossa

racionalidade o que jaacute seria acreacutescimo na constituiccedilatildeo de nossas interpretaccedilotildees Em outras

palavras a consideraccedilatildeo da realidade segundo a pressuposiccedilatildeo de fatos seria um defeito do

qual cumpriria ao filoacutesofo se libertar sempre que este pretendesse uma aproximaccedilatildeo

cientiacutefica da realidade

A elucidaccedilatildeo dos erros fundamentais dos quais os filoacutesofos devem se libertar eacute um

aspecto frequente nas obras nietzschianas Em sua Genealogia da Moral estes erros

fundamentais aparecem como traccedilos de um ideal que guiaria as formulaccedilotildees dogmaacuteticas

em filosofia A partir de sua concepccedilatildeo do caraacutecter perspectivo de todo conhecimento ao

filoacutesofo interessaria antes de tudo criticar a concepccedilatildeo metafiacutesica da verdade como uma

posiccedilatildeo que concebe algo tatildeo absurdo quanto uma visatildeo do nada Com isso a posiccedilatildeo

nietzschiana implicaria a compreensatildeo de que natildeo haacute verdade que natildeo seja em si uma

perspectiva e de que de modo aproximado natildeo haacute conhecimento que natildeo parta de uma

motivaccedilatildeo

Esta compreensatildeo de uma a motivaccedilatildeo a guiar todo posicionamento filosoacutefico estaacute

presente em um dos relatos mais abrangentes acerca do caraacuteter perspectivo do

conhecimento no aforismo doze da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral Neste

texto Nietzsche rejeita a ldquoposiccedilatildeo asceacutetica que se potildee a filosofarrdquo como uma forma de

214

negaccedilatildeo da vida que descarregaraacute seu arbiacutetrio ldquoNaquilo que eacute experimentado do modo

mais seguro como verdadeiro como realrdquo ou seja que em sua tentativa de perverter a

proacutepria verdade ldquobuscaraacute o erro precisamente ali onde o autecircntico instinto de vida situa

incondicionalmente a verdaderdquo (GMGM III sect12) Com isso com as ldquoresolutas inversotildees

das perspectivasrdquo operada pelo ideal asceacutetico que se potildee a filosofar a tradiccedilatildeo teria

procurado operar uma negaccedilatildeo da verdade de que haacute ldquoapenas uma visatildeo perspectiva

apenas um lsquoconhecerrsquo perspectivordquo (GMGM III sect12)

Na medida em que a tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute entendida aqui como tendo se alinhado a

um ideal de negaccedilatildeo da corporeidade Nietzsche interpreta toda a filosofia antiga como a

tentativa de promover uma falsificaccedilatildeo uma corrupccedilatildeo uma simplificaccedilatildeo da verdadeira

objetividade129 que implicaria na pluralidade de perspectivas inerente a toda corporeidade

O traccedilo distintivo desta falsificaccedilatildeo seria a imaginaccedilatildeo de uma objetividade ideal uma

realidade das verdades eternas e imutaacuteveis Segundo a compreensatildeo nietzschiana no

entanto a objetividade como apreensatildeo dos objetos em sua forma natildeo interpretativa seria

inalcanccedilaacutevel para noacutes Objetividade nesse sentido implicaria uma ausecircncia de

necessidades um desinteresse que natildeo eacute caracteriacutestico da atividade teoacuterica Assim o autor

afirma em Genealogia da Moral

Devemos afinal como homens do conhecimento ser gratos a taisresolutas inversotildees das perspectivas e valoraccedilotildees costumeiras com que oespiacuterito de modo aparentemente sacriacutelego e inuacutetil enfureceu-se consigomesmo por tanto tempo ver assim diferente querer ver assim diferente eacuteuma grande disciplina e preparaccedilatildeo do intelecto para a sua futura

129 Entende-se por objetivismo a concepccedilatildeo filosoacutefica que associa conhecimento verdadeiro aoconhecimento dos objetos independente da apreensatildeo de seres conscientes Em um sentido kantianoobjetividade significa a qualidade dos objetos em-si independentes das condiccedilotildees de constituiccedilatildeo de taisobjetos para a experiecircncia Contemporaneamente a vertente filosoacutefica que entende que o valor de verdade deasserccedilotildees acerca da realidade depende da existecircncia de tais objetos se chama realismo em contraposiccedilatildeo agravecorrente anti-realista a qual se constitui em torno da negaccedilatildeo dessa dependecircncia Tal como o objetivismo operspectivismo nietzschiano ao menos em sua formulaccedilatildeo mais primitiva parece requerer uma interpretaccedilatildeoda realidade como algo natildeo interpretativo ou objetivo De acordo com essa interpretaccedilatildeo falar emperspectivismo significa dizer que natildeo temos acesso agraves coisas como elas satildeo para aleacutem de nossainterpretaccedilatildeo A existecircncia de uma realidade objetiva a partir do projeto criacutetico kantiano se relacionaintimamente com a postulaccedilatildeo das coisas em si entidades anteriores a constituiccedilatildeo do fenocircmeno daexperiecircncia Bem se vecirc que Nietzsche natildeo eacute indiferente a polecircmica em torno das coisas em si e embora parteconsideraacutevel de suas teorias sobre a verdade pareccedilam repousar na dependecircncia de tais objetos seupensamento se filia claramente a corrente anti-realista no sentido de que sustenta em boa parte de suaproduccedilatildeo uma criacutetica incisiva as coisas em si No entanto a afirmaccedilatildeo frequente em seu Ensaio sobreVerdade e Mentira de que nossas afirmaccedilotildees do mundo consideradas verdadeiras satildeo de fato metaacuteforas deque a verdade natildeo passa ao final de uma ilusatildeo tem em seu caraacuteter iacutentimo a necessidade de falsear taisverdades e afirmaccedilotildees

215

ldquoobjetividaderdquo ndash a qual natildeo eacute entendida como ldquoobservaccedilatildeodesinteressadardquo (um absurdo sem sentido) mas como a faculdade de terseu proacute e seu contra sob controle e deles poder dispor de modo a saberutilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas einterpretaccedilotildees afetivas De agora em diante senhores filoacutesofosguardemo-nos bem contra a antiga perigosa faacutebula conceitual queestabelece um ldquopuro sujeito do conhecimento isento de vontade alheio agravedor e ao tempordquo guardemo-nos dos tentaacuteculos de conceitos contraditoacuterioscomo ldquorazatildeo purardquo ldquoespiritualidade absolutardquo ldquoconhecimento em sirdquo ndashtudo isto pede que se imagine um olho que natildeo pode absolutamente serimaginado um olho voltado para nenhuma direccedilatildeo no qual as forccedilasativas e interpretativas as que fazem com que ver seja ver-algo devemestar imobilizadas ausentes exige-se do olho portanto algo absurdo esem sentido Existe apenas uma visatildeo perspectiva apenas um ldquoconhecerrdquoperspectivo e quanto mais olhos diferentes olhos soubermos utilizarpara esta coisa tanto mais completo seraacute no ldquoconceitordquo dela nossaldquoobjetividaderdquo (GMGM III sect12)

Ora se toda investigaccedilatildeo se orienta por um objeto a idealizaccedilatildeo da pesquisa

desinteressada natildeo faria nenhum sentido Do mesmo modo a objetividade enquanto

propriedade de um objeto ideal exterior a todo interesse seria uma criaccedilatildeo tornada

operante por meio da negaccedilatildeo do verdadeiro aspecto da objetividade sua perspectividade

Ou seja se toda apreensatildeo da realidade apenas se daacute de acordo com interesses

determinados entatildeo soacute nos restaria ansiar por uma objetividade na forma determinada pela

comparaccedilatildeo das diversas perspectivas sendo que jamais alcanccedilaremos a objetividade

absoluta dado serem inuacutemeras as perspectivas inuacutemeras as interpretaccedilotildees possiacuteveis

Enquanto tentativa de atingir uma realidade ideal o ideal asceacutetico se mostra como

uma forma fracassada de se fazer filosofia No entanto a atuaccedilatildeo dos filoacutesofo segundo os

preceitos deste ideal trariam como consequecircncia positiva a preparaccedilatildeo para uma forma de

pesquisar afeita agrave diversidade de perspectivas Nesta leitura a objetividade passa a ser

compreendida como uma idealizaccedilatildeo uma hipoteacutetica reuniatildeo de todas as perspectivas

possiacuteveis Para o autor o exerciacutecio de novas perspectivas no caso a perspectiva do ideal

asceacutetico prepararia o terreno para uma nova compreensatildeo do conhecimento dos conceitos

e da objetividade e a proacutepria restriccedilatildeo dos termos conhecimento objetividade e conceito

que encontramos nesta passagem implica uma interpretaccedilatildeo perspectiva de conceitos da

tradiccedilatildeo

Pretender conhecer a essecircncia em si do mundo eacute um disparate pois conhecer eacute

exatamente apropriar-se tornar uma coisa no que ela eacute de fato e natildeo desvendar sua

216

essecircncia uacuteltima Tal ldquodesvelamentordquo se fosse possiacutevel seria qualquer coisa mas nunca

conhecimento Eacute a proacutepria imposiccedilatildeo das necessidades do ser que interpreta que faz com

que ver se torne visatildeo de algo Se natildeo haacute interpretaccedilatildeo independente das necessidades de

quem interpreta e se essas necessidades satildeo para cada indiviacuteduo o valor para ele entatildeo

toda interpretaccedilatildeo seria consequecircncia natildeo apenas de uma perspectiva mas tambeacutem de um

conjunto de valores Por sua vez a razatildeo o proacuteprio instrumento que segundo a tradiccedilatildeo nos

conduziria agrave verdade eterna por traacutes das coisas distorce inevitavelmente o real

Nessa interpretaccedilatildeo as conclusotildees de Nietzsche acerca da natureza perspectiva do

conhecimento satildeo contrapostas frontalmente agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal

como a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental a consolidou Desde os princiacutepios da filosofia a

atividade de conhecer eacute interpretada como o esforccedilo humano na tentativa de descortinar a

realidade de sua aparente transitoriedade e assim revelar sua verdade objetiva posta por

traacutes das coisas O ideal de verdade a determinaccedilatildeo da accedilatildeo a partir da postulaccedilatildeo de fins da

razatildeo e a dicotomia entre mundo verdadeiro e o mundo aparente seriam os elementos

identificados por Nietzsche como constitutivos da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

Dentre estes elementos constitutivos destaca-se o proacuteprio ideal de verdade o qual em

Aleacutem do Bem e do Mal eacute tomado como ldquoa ceacutelebre veracidade que ateacute agora todos os

filoacutesofos reverenciaramrdquo (JGBBM I sect 01) e que em Genealogia da Moral apresenta-se

como ldquoa feacute no proacuteprio ideal asceacuteticordquo (GMGM III sect 24)

Seraacute justamente contra este ideal de verdade que tem suas origens ligadas

diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta a Nietzsche como fundamento

constituidor do niilismo o objeto privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual o

filoacutesofo mobilizaraacute sua concepccedilatildeo de interpretaccedilatildeo Por outro lado quando em Genealogia

da Moral Nietzsche representa a interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja

renuacutencia os cientistas pensam obter sua honra como uma tendecircncia agrave ldquoviolentar ajustar

abreviar omitir preencher imaginar falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do

interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma uma criacutetica jaacute suportada em seus escritos de

juventude que naquele momento se apresentava na forma da explicitaccedilatildeo da formaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional de verdade e da constituiccedilatildeo da linguagem como uma forma de

dissimulaccedilatildeo da realidade

A defesa nietzschiana da interpretaccedilatildeo como forma mais adequada de verdade

estaria ligada a uma criacutetica ao ideal tradicional de verdade que jaacute se encontrava na filosofia

217

de juventude do autor Nessa leitura sua criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade se daacute

na forma de uma defesa da interpretaccedilatildeo como noccedilatildeo mais adequada do que a verdade

poderia significar e como posiccedilatildeo contraacuteria agrave noccedilatildeo de verdade encampada por valores

niilistas Esta criacutetica tambeacutem reclamaria em sua criacutetica que os ldquopensadores mais fortes

mais vitais ainda sedentos de vidardquo viessem a ldquotomar partido contra a aparecircncia e

pronunciar jaacute com altivez a palavra lsquoperspectivarsquordquo (JGBBM I sect10)

Por outro lado assim como a concepccedilatildeo de verdade vinculada agrave valores de

decadecircncia teria no platonismo suas primeiras origens tambeacutem a dicotomia entre mundo

verdadeiro e mundo aparente130 outro aspecto fundamental da concepccedilatildeo niilista vinculada

por Nietzsche a um ldquoniilismo e sinal de uma alma em desespero mortalmente cansadardquo

(JGBBM I sect10) teria suas raiacutezes no racionalismo socraacutetico Em sua criacutetica a esta

dicotomia fundamental o autor atribui um cansaccedilo e desilusatildeo essencial conducente ao

nada como forma de repouso a toda consideraccedilatildeo da necessidade de se defender a

existecircncia de uma realidade apartada da realidade das perspectivas e da interpretaccedilatildeo

Mas se a realidade do aleacutem-mundo teria sua origem no platonismo o filoacutesofo

reconhece sua sacralizaccedilatildeo na crenccedila cristatilde de um mundo do aleacutem A determinaccedilatildeo da accedilatildeo

a partir da postulaccedilatildeo de fins da razatildeo131 como uma forma de estabelecer-se virtudes a

partir da razatildeo que se vincula a uma concepccedilatildeo teoloacutegica e que na modernidade vincula-se

tanto agrave ideia cristatilde de um Deus como fonte do bem quanto na concepccedilatildeo moralista agrave ideia

de uma tendecircncia ao bem inerente agrave racionalidade teria encontrado tambeacutem no platonismo

sua origem e estiacutemulo na equaccedilatildeo que faz equivaler razatildeo virtude e felicidade

Em todas estes posicionamentos criacuteticos o ponto em comum seria a compreensatildeo

nietzschiana da razatildeo como elemento falseador do caraacuteter perspectivo da realidade Assim

o filoacutesofo enxerga na supervalorizaccedilatildeo da razatildeo um risco para a cultura e contra a

decadecircncia uma maacute ferramenta posto que a crenccedila na razatildeo natildeo eacute vista pelo filoacutesofo como

uma forma de se contrapor a algo que ela mesma figura com necessidade Ou seja em sua

leitura quando os filoacutesofos e moralistas fazem da razatildeo um meio para sair do processo de

decadecircncia ldquoelegem como meio como salvaccedilatildeordquo algo que ldquoeacute apenas mais uma expressatildeo

da deacutecadencerdquo (GDCI II sect11) Assim em sua contraposiccedilatildeo a toda forma de

130 Conforme (JGBBM I sect10) e a importante seccedilatildeo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Como o verdadeiro mundoacabou por se tornar uma faacutebula em que a filosofia platocircnica ocupa o primeiro estaacutegio do processo decriaccedilatildeo do ideal131 Esta ideia fundamental eacute narrada em Crepuacutesculo do Iacutedolos na seccedilatildeo sobre O problema de Soacutecrates sect10

218

melhoramento do homem toda forma de estabelecimento de virtudes por meio de uma

supervalorizaccedilatildeo da razatildeo Nietzsche defende a proeminecircncia dos instintos como forma de

julgar as accedilotildees humanas Pois entende que ldquoTer de combater os instintos ndash eis a foacutermula da

deacutecadencerdquo mas ldquoenquanto a vida ascende felicidade eacute igual a instintordquo (GDCI II sect11)

Com isso o filoacutesofo acredita opor-se ao platonismo assim como agrave proacutepria tradiccedilatildeo

filosoacutefica na medida em que faz sobressair o corpo em contraposiccedilatildeo agrave razatildeo e a ideia de

objetividade deduzida a partir dela

Se a noccedilatildeo de objetividade segundo a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

seria apenas um valor que perde sentido com a constataccedilatildeo da inexistecircncia de uma

realidade ideal entatildeo sempre que se credita possuir ou pelo menos ter direito de atingir a

interpretaccedilatildeo definitiva opera-se no interior de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica e como tal

apenas uma ilusatildeo O conhecimento soacute tem sentido se considerado em suas limitaccedilotildees

enquanto conhecimento humano determinado pelo conjunto de interesses que guiam sua

busca Do ponto de vista de uma realidade objetiva no entanto ele natildeo pode ser

totalizante

Por isso na continuaccedilatildeo do fragmento poacutestumo citado acima Nietzsche nos diz

ldquoTanto quanto a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute conheciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outra maneira ele natildeo tem nenhum sentido atraacutes de si mas sim inuacutemeros

sentidos lsquoperspectivismorsquordquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Haacute tantos sentidos ldquopor traacutesrdquo da

realidade quantas interpretaccedilotildees possiacuteveis da mesma Pois o sentido eacute sempre um sentido

para algueacutem nunca um sentido ldquoem-sirdquo Assim ao mesmo tempo em que Nietzsche afirma

que o conhecimento humano eacute possiacutevel ele nega a pretensatildeo de se atingir uma verdade

absoluta Logo haacute tantas formas de conhecimento quantas forma de configuraccedilatildeo de

necessidades especiacuteficas

Natildeo admira que a concepccedilatildeo tradicional de verdade compreendida por Nietzsche

como tendo suas origens ligadas diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta

ao filoacutesofo como fundamento constituidor do niilismo tenha se tornado o objeto

privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual este mobiliza sua concepccedilatildeo de

interpretaccedilatildeo Tendo renunciado agrave possibilidade de obter um conhecimento coerente com

os princiacutepios da vida a partir da razatildeo Nietzsche passa a compreender o conhecimento

como expressatildeo de uma determinada forma de valoraccedilatildeo da realidade Posto que natildeo

219

havendo fatos por traacutes das coisas conhecer natildeo pode ser algo como esta objetividade

imaginada pelas cabeccedilas metafiacutesicas

Conhecer na interpretaccedilatildeo nietzschiana seria o mesmo que interpretar segundo os

padrotildees humanos de acordo com a atuaccedilatildeo dos instintos que guiam nossas opccedilotildees teoacutericas

Ou seja o conhecimento eacute sempre consequecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de

necessidades o que significa uma determinada ordenaccedilatildeo das necessidades internas ao

indiviacuteduo Isto no entanto de modo algum elimina a possibilidade de outras

interpretaccedilotildees

A criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave incapacidade desta em

reconhecer adequadamente os limites da perspectiva a qual o filoacutesofo vecirc como elemento

ineliminaacutevel de toda formulaccedilatildeo teoacuterica e que aparece para o filoacutesofo como viacutecio inerente

a toda forma de consideraccedilatildeo dogmaacutetica Assim quando Nietzsche representa a

interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja renuacutencia os cientistas pensam obter

sua honra como uma tendecircncia ldquoa violentar ajustar abreviar omitir preencher imaginar

falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma

suas concepccedilotildees de juventude acerca da formaccedilatildeo da verdade e da constituiccedilatildeo da

linguagem como uma forma de dissimulaccedilatildeo da realidade defendendo essa concepccedilatildeo

como componente de sua proacutepria compreensatildeo do conhecimento contraacuteria agrave noccedilatildeo de

verdade niilista

Com isso reconhece-se que sua defesa da interpretaccedilatildeo estaacute ligada a sua criacutetica ao

ideal tradicional de verdade Certamente esta atitude natildeo qualifica um posicionamento

teoacuterico determinado em relaccedilatildeo agrave verdade embora surja como reflexo de uma criacutetica ao

sentido tradicional de verdade Com isso a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma

forma de se elevar para aleacutem das consideraccedilotildees em torno da noccedilatildeo tradicional de verdade e

sua relaccedilatildeo com a perspectividade inerente a toda consideraccedilatildeo da realidade pode ser vista

como um posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade sem

no entanto estabelecer-se como outra forma de verdade Considerando-se o pensamento

nietzschiano em sua totalidade considerando-se especialmente o progresso de suas

consideraccedilotildees criacuteticas acerca do conhecimento e da verdade o que nos eacute apresentado eacute

uma compreensatildeo do conhecimento que reduz sua validade agraves instacircncias de sua

enunciaccedilatildeo sem que com isso se destitua qualquer afirmaccedilatildeo de seu valor em relaccedilatildeo agraves

demais afirmaccedilotildees necessaacuterias agrave sobrevivecircncia

220

O foco das criacuteticas nietzschianas agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento recai

completamente sobre a razatildeo e seu caraacuteter limitado Limitaccedilatildeo que conduz a uma

concepccedilatildeo de realidade como mundo verdadeiro Neste sentido desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas sua criacutetica ao conhecimento estaacute relacionada agrave apresentaccedilatildeo de nosso

aparato intelectual como parte de nosso aparato bioloacutegico e assim como algo que se

desenvolve em torno de nossa necessidade de sobrevivecircncia e natildeo a favor de uma verdade

objetiva

O perspectivismo nietzschiano especialmente na forma como fica exposto no

aforismo doze de Genealogia da Moral carrega consigo a ideia de que todas as

perspectivas satildeo limitadas nesse sentido natildeo verdadeiras Nem por isso falsas pois em

segundo plano agrave exposiccedilatildeo do perspectivismo permanece a ideia de que a objetividade

como a totalidade de perspectivas eacute algo que se pode conceber sem contradiccedilatildeo como a

totalidade de perspectivas possiacuteveis Em outro sentido o conhecimento como a tradiccedilatildeo o

entende como a visatildeo unilateral de uma verdade existente de forma independente do ato

de conhecer se torna uma perspectiva inferior exatamente por que abre matildeo da

multiplicidade de perspectivas inerente agrave ideia de objetividade cotejada por Nietzsche Ou

seja embora natildeo represente em si mesma uma teoria acerca do conhecimento nem

implique a criacutetica ao conhecimento tradicional como distorccedilatildeo da realidade o

perspectivismo nietzschiano utiliza-se da metaacutefora da perspectiva para promover o

reconhecimento do caraacuteter natildeo-fundacional do conhecimento assim como caracterizar

como contraditoacuteria a ideia de uma realidade em si mesma

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores

Consideramos a questatildeo do valor como uma questatildeo fundamental para o

pensamento nietzschiano com base na qual se poderia entender sua concepccedilatildeo de verdade

pois esta gira em torno da necessidade de desconsiderar a concepccedilatildeo tradicional da

verdade afim de estabelecer algo de suma importacircncia para a determinaccedilatildeo de um valor

superior ou seja a proacutepria vida Para Nietzsche o problema dos valores estaria

relacionado ao fato de que na histoacuteria da filosofia a questatildeo dos valores morais foi tomada

221

como a proacutepria questatildeo do valor Assim ao refletir sobre isso o filoacutesofo afirma que ldquoA

ldquoAvaliaccedilatildeo moralrdquo ateacute onde eacute algo social mede erroneamente o homem a partir de seus

efeitosrdquo (NF FP 1887 9 [55]) Ou seja que a apreciaccedilatildeo dos valores de um ponto de

vista dos valores morais reduz a questatildeo mais ampla dos valores a uma consideraccedilatildeo que

leva apenas os efeitos praacuteticos da avaliaccedilatildeo moral dentro de um contexto no qual a

sociabilidade eacute tomada como um estado natural o filoacutesofo procura desfazer essa confusatildeo

pensando a natureza do valor em seu surgimento e totalidade

Por outro lado a consideraccedilatildeo dos valores em uma avaliaccedilatildeo exterior agrave proacutepria

sociabilidade se distinguiria fundamentalmente de uma compreensatildeo dos valores como

determinaccedilatildeo objetiva fora dos homens Nessa leitura a interpretaccedilatildeo dos valores morais

como os valores em si como a uacutenica forma de valor eacute confrontada por uma explicitaccedilatildeo

dos valores como resultado de um processo fisioloacutegico avaliaccedilatildeo que expotildee os valores

morais como algo pertencente apenas a um tipo bastante determinado de valor

Nesta interpretaccedilatildeo do problema dos valores em geral os valores morais

corresponderiam apenas a uma forma da categoria mais ampla dos valores Assim os

valores natildeo seriam realidades independentes dos homens mas produtos de sua atuaccedilatildeo

interpretativa poisldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas com a interpretaccedilatildeordquo (NF

FP 18851886 2 [77]) A interpretaccedilatildeo nietzschiana dos valores assim exclui a validade

de uma consideraccedilatildeo de um ldquosentido no em sirdquo na medida em que considera os valores

como decorrecircncias de nossa interpretaccedilatildeo Todo sentido passa a ser considerado nessa

leitura como algo relacional e perspectivo Os valores morais aparecem aqui como

resultado de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica como a interpretaccedilatildeo que substitui a

interpretaccedilatildeo religiosa decadente (NFFP 1887 9 [60])

A partir da intuiccedilatildeo fundamental de que todo valor seria produto de uma

interpretaccedilatildeo ou seja de que todo valor corresponderia a uma avaliaccedilatildeo portanto de que

toda moral deve alcanccedilar seu instante de superaccedilatildeo em uma nova taacutebua de valores (ZAZa

III Das antigas e novas taacutebuas sect02) Nietzsche contempla a possibilidade de uma

afirmaccedilatildeo incondicional do mundo e da vida na atividade criativa de valores Os valores

morais satildeo entendidos aqui como valores de conservaccedilatildeo consolidados por uma

determinada tradiccedilatildeo dos quais competiria ao homem se livrar na medida que potildee o

fortalecimento da vida a frente de sua conservaccedilatildeo Este pensamento que se coloca na

222

contramatildeo de tudo o que se fez desde a cultura racional do socratismo-platonismo ateacute o

presente traduz a maacutexima expressatildeo da afirmaccedilatildeo da vida na aceitaccedilatildeo de seu caraacuteter

ficcional

Em sua leitura Nietzsche qualifica o valor como ponto de vista fundamental

segundo os ditames das necessidades de algo que queira permanecer no curso do devir

Assim em um fragmento poacutestumo o filoacutesofo afirma ldquoO ponto de vista do lsquovalorrsquo eacute o ponto

de vista das condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e aumento com respeito a formaccedilotildees complexas de

relativa duraccedilatildeo da vida no seio do devirrdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) Em outros termos

a vida aparece para Nietzsche como condiccedilatildeo de possibilidade de toda avaliaccedilatildeo posto que

ela eacute preacute-requisito para toda avaliaccedilatildeo Para tudo que pretende durar na existecircncia assume

valor aquilo que possibilita esta duraccedilatildeo Por isso o filoacutesofo pensa desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas a verdade como correlata a um valor desde que esta seria parte

fundamental na estrateacutegia de sobrevivecircncia humana

O problema do perspectivismo se relaciona com o problema do valor jaacute na

suposiccedilatildeo nietzschiana de que toda interpretaccedilatildeo seria o produto de nossas necessidades

Assim o filoacutesofo escreve ldquoSatildeo nossas necessidades as que interpretam o mundo nossos

impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de acircnsia de domiacutenio cada um

tem sua perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os demais impulsosrdquo (NF

FP 1886-1887 7[60]) Na medida em que cada impulso tem seu proacute e seu contra a ele

estaria relacionada uma determinada ordenaccedilatildeo de valores uma determinada hierarquia

Sua vontade tem como moacutevel acima de tudo o estabelecimento de seus proacutes e contras

como norma geral Ou seja toda perspectiva tem como razatildeo de existir o estabelecimento

de valores a partir de si Neste sentido natildeo haacute valor extra-perspectivo Do mesmo modo

que natildeo haacute perspectiva que natildeo implique valores Com isso podemos ver que a perspectiva

e o valor estatildeo intimamente relacionados no pensamento nietzschiano

Valores satildeo estabelecidos na medida em que sua capacidade de fazer algo

permanecer na existecircncia eacute comprovada Assim quando uma determinada configuraccedilatildeo de

forccedilas se mostra propiacutecia agrave manutenccedilatildeo da vida em seu entorno se agrupam cada vez mais

forccedilas o que acaba conduzindo agrave formaccedilatildeo de centros de domiacutenio ldquolsquovalorrsquo eacute

essencialmente o ponto de vista para o aumento ou a diminuiccedilatildeo destes centros de domiacutenio

(NFFP 1887-1888 11[73]) O valor configura perspectivas na medida em que tende a

223

agrupar forccedilas em torno de um determinado centro de domiacutenio que passa a se fazer valer

como uma perspectiva de dominaccedilatildeo Uma perspectiva nesse sentido seria justamente o

ponto de vista de uma determinada ordenaccedilatildeo das forccedilas inerentes a uma realidade

segundo os ditames de sua manutenccedilatildeo ou crescimento

Se toda forma de avaliar depende das condiccedilotildees de manutenccedilatildeo de um determinado

tipo de vida entatildeo toda filosofia enquanto conjunto de valores enquanto reflexo de uma

determinada valoraccedilatildeo corresponderia a um determinado conjunto de necessidades

inerentes a um modo de vida pois ldquopor traacutes de toda loacutegica e de sua aparente soberania de

movimentos existem valoraccedilotildees ou falando mais claramente exigecircncias fisioloacutegicas para

a preservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vidardquo (JGBABM I sect03) Assim a

substituiccedilatildeo de uma filosofia niilista por uma forma perspectivista de filosofia

corresponderia no pensamento nietzschiano agrave substituiccedilatildeo de uma forma decadente de

valoraccedilatildeo que tem no conjunto de suas necessidades uma necessidade de nada suportada

pela crenccedila em uma realidade ideal por uma forma ascendente de avaliaccedilatildeo que tem na

multiplicidade e na mudanccedila suas necessidades essenciais

A substituiccedilatildeo de uma esfera ideal de constituiccedilatildeo dos valores pela vida tomada

aqui como escala segundo a qual os proacuteprios valores se constituem possibilitaria uma

avaliaccedilatildeo dos valores que difere completamente da avaliaccedilatildeo tradicional segundo a qual

haveriam valores dados e irrevogaacuteveis Pois segundo uma compreensatildeo dos valores que

toma a vida como criteacuterio as condiccedilotildees em que algo tem que se firmar mudam Nesse

sentido eacute natural que tambeacutem os valores mudem posto que natildeo haacute sentido exterior a uma

escala de necessidades nem nenhuma escala determinante na esfera do devir

A cada momento para cada espeacutecie verdadeiro eacute apenas aquilo que possibilita sua

conservaccedilatildeo Seraacute justamente esta interpretaccedilatildeo do valor que possibilitaraacute ao filoacutesofo opor-

se tanto agrave moral dogmaacutetica quanto agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica de conhecimento Um valor

segundo a tradiccedilatildeo criticada por Nietzsche seria justamente o bem em si mesmo uma

ideia a qual o filoacutesofo se opotildee fortemente O mesmo ocorreria com a verdade em si que

segundo esta compreensatildeo teria por problema fundamental sua dependecircncia em relaccedilatildeo agrave

defesa niilista de uma realidade criada que torna sem valor a realidade dos fenocircmenos

224

Ateacute onde se compreende o que Nietzsche considera problemaacutetico no dogmatismo

filosoacutefico tradicional fica claro que ele entende que a grande falha da filosofia tradicional

teria sido seu entendimento da verdade como algo localizaacutevel de forma definitiva ainda

que em uma realidade externa agrave realidade dos fenocircmenos Esta realidade externa aos

fenocircmenos no entanto natildeo houvera aparecido para a tradiccedilatildeo como uma realidade criada

do mesmo modo que a realidade a partir dos sentidos A partir de sua consideraccedilatildeo criacutetica

da razatildeo como parte do esquema de simplificaccedilatildeo da realidade Nietzsche se coloca em

condiccedilotildees de questionar justamente este caraacuteter simplificado da realidade concebida a

partir da razatildeo aprofundado uma criacutetica que a tradiccedilatildeo filosoacutefica apenas havia comeccedilado

Assim no prefaacutecio de Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche explica brevemente o que ele

chama de ldquoo erro do dogmatismordquo Apoacutes sua pequena anedota acerca do despreparo dos

filoacutesofos dogmaacuteticos para abordar uma mulher o filoacutesofo diz

Falando seriamente haacute boas razotildees para esperar que toda dogmatizaccedilatildeoem filosofia natildeo importando o ar solene e definitivo que tenhaapresentado natildeo tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa deiniciantes e talvez esteja proacuteximo o tempo em que se perceberaacute quatildeopouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutasconstruccedilotildees filosofais que os dogmaacuteticos ergueram ndash alguma supersticcedilatildeopopular de um tempo imemorial (como a supersticcedilatildeo da alma que comosupersticcedilatildeo do sujeito e do Eu ainda hoje causa danos) talvez algumjogo de palavras alguma seduccedilatildeo da gramaacutetica ou temeraacuteriageneralizaccedilatildeo de fatos muito estreitos muito pessoais demasiadohumanos (JGBABM Proacutelogo sect1)

Em sua leitura o autor denomina dogmaacutetico tudo aquilo que se segue agrave criaccedilatildeo das

sublimes e absolutas criaccedilotildees filosoacuteficas com base em fatos pessoais idiossincrasias

filosoacuteficas coisa humana demasiado humana A proacutepria criaccedilatildeo platocircnica do reino das

ideias fundamento e ponto de partida de toda concepccedilatildeo niilista parece fornecer o modelo

deste tipo de construccedilatildeo filosoacutefica dogmaacutetica Motivo pelo qual em sua leitura o autor

indica a invenccedilatildeo do ldquopuro espiacuterito e do bem em sirdquo como um erro de dogmaacutetico o ldquopior o

mais persistente e perigoso dos erros ateacute aquirdquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Do mesmo

modo a criaccedilatildeo da moralidade decorrente da criaccedilatildeo dogmaacutetica das noccedilotildees de ldquoo bemrdquo e

ldquoo malrdquo seria mais a frente abordada por Nietzsche e com maior profundidade em

Genealogia da Moral

225

O que determina a importacircncia das poucas indicaccedilotildees acerca do que o autor entende

como sendo o dogmatismo da concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute o bastante para conectar

a fabricaccedilatildeo da moralidade ao problema do dogmatismo e sua superaccedilatildeo na consideraccedilatildeo

do caraacuteter perspectivo da existecircncia Assim em uma outra passagem do proacutelogo de Aleacutem

do Bem e do Mal Nietzsche considera que o erro dogmaacutetico de Platatildeo surgiu de sua

incapacidade em adotar um perspectivismo adequado ldquoCertamente significou pocircr a

verdade de ponta-cabeccedila e negar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica de toda vida falar do

espiacuterito e do bem como o fez Platatildeordquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Para Nietzsche portanto a

luta para superar o erro dogmaacutetico platocircnico e toda moralidade decorrente desse erro

significava pocircr a verdade de volta sob seus peacutes e afirmar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica

de toda a vida

De fato nesta leitura tambeacutem a verdade enquanto componente de uma estrateacutegia

especiacutefica de sobrevivecircncia natildeo poderia ter seu valor determinado absolutamente Assim

como parte de uma estrateacutegia de sobrevivecircncia tiacutepica de uma espeacutecie que busca se manter

no curso do devir o conhecimento humano tambeacutem corresponderia a um ponto de vista

determinado de valores proacuteprios De fato toda ciecircncia e filosofia ateacute entatildeo teria seu valor

vinculado agrave conservaccedilatildeo da vida Motivo pelo qual para Nietzsche a loacutegica por exemplo

soacute eacute importante porque nosso modo de vida depende dela fundamentalmente Isto natildeo

significa que a realidade seja ela mesma loacutegica ou que se comporte de forma loacutegica

apenas que a realidade assume valor para noacutes na exata medida em que podemos aplicar a

loacutegica a ela

Por outro lado conceitos fundamentais da fiacutesica tambeacutem apenas adquiririam

sentido para noacutes por sua utilidade praacutetica natildeo por sua veracidade De um modo geral toda

forma de compreensatildeo da realidade segundo instacircncias fixas seria reflexo desta mesma

conversatildeo da realidade em elementos uacuteteis para a conservaccedilatildeo da vida pois ldquonatildeo haacute

unidades uacuteltimas duradouras natildeo haacute aacutetomos natildeo haacute mocircnadas tambeacutem aqui lsquoo ente [das

Seiende]rsquo foi introduzido primeiro por noacutes (por razotildees praacuteticas uacuteteis segundo a

perspectiva)rdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) A criacutetica nietzschiana a esta perspectiva por

sua vez natildeo diria respeito a seu caraacuteter perspectivo Pois posto que todo conhecimento eacute

perspectivo seria necessaacuterio possuir uma verdade no sentido que o filosofo rejeita para

entatildeo questionar a perspectividade de uma posiccedilatildeo

226

No entanto o fato desta perspectiva adotar como interesse praacutetico a conservaccedilatildeo

motivo pelo qual se apoia em conceitos imobilistas aparece como algo criticaacutevel para

Nietzsche que reconhece nestes conceitos criaccedilotildees de menor valor Nesse sentido o

perspectivismo nietzschiano distingue-se fundamentalmente de uma teoria pragmaacutetica da

verdade Pois o filoacutesofo considera toda utilidade enquanto princiacutepio para a conservaccedilatildeo

como manifestaccedilatildeo de valores de decadecircncia Na leitura do filoacutesofo o princiacutepio de

utilidade conduziria agrave criaccedilatildeo de valores imobilistas e estes por sua vez conduziriam agrave

criaccedilatildeo de uma realidade extra-fenomecircnica logo acaba por se configurar em uma forma

dogmaacutetica de filosofia ou ciecircncia Desta maneira se pode entender a criacutetica agrave concepccedilatildeo

tradicional de utilidade presente no final do aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

Natildeo temos nenhum oacutergatildeo para o conhecer para a ldquoverdaderdquo noacutesldquosabemosrdquo (ou cremos ou imaginamos) exatamente tanto quanto podeser uacutetil ao interesse da grege humana da espeacutecie e mesmo o que aqui sechama ldquoutilidaderdquo eacute afinal apenas uma crenccedila uma imaginaccedilatildeo etalvez precisamente a fatiacutedica estupidez da qual um dia pereceremos(FWGC IV sect354)

Posto que o filoacutesofo compreende que toda forma de conhecimento conduz agrave

admissatildeo de erros fundamentais conclui que a proacutepria utilidade seria um erro talvez o erro

fundamental de que um dia sucumbiremos Nesta leitura Nietzsche percebe que o homem

enquanto animal de rebanho persegue por comodidade valores de conservaccedilatildeo valores

dos quais se o homem deve se livrar do niilismo precisa abandonar Em seu lugar

competiria ao homem estabelecer o conhecimento sob o fundamento de valores de

aumento da forccedila de crescimento Estes valores estatildeo vinculados ao risco satildeo valores

experimentais os quais o filoacutesofo do futuro deveria acolher em detrimento dos valores de

decadecircncia Nesta leitura o problema com a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento seria

sua renuacutencia ao caraacuteter perspectivo de todo conhecimento

Tomada sua reflexatildeo criacutetica em sentido amplo eacute possiacutevel ver em seus ataques aos

filoacutesofos que lhe precedem uma condenaccedilatildeo de toda tentativa de dizer a verdade vistas

aqui como um ato que constrange interpretaccedilotildees diversas a uma unificaccedilatildeo improcedente

o que condiciona o sentido da verdade a um posicionamento dogmaacutetico Assim parte de

227

sua criacutetica agrave metafiacutesica se fundamentaria no fato de que esta atraveacutes da busca pelos

fundamentos uacuteltimos teria conduzido a filosofia a estipular um deux ex machina na figura

de concepccedilotildees tais como a concepccedilatildeo de causa sui

A causa sui eacute a mais bela contradiccedilatildeo jaacute cogitada uma espeacutecie deviolaccedilatildeo e golpe mortal agrave loacutegica Poreacutem o orgulho ilimitado do homemconduziu-o a um emaranhamento cada vez maior no intrincado absurdo odesejo do ldquolivre arbiacutetriordquo entendido no sentido superlativo e metafiacutesicoque domina ainda (por desgraccedila nos ceacuterebros semi-cultivados) que eacute anecessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidade de seusatos e natildeo atribuiacute-la a Deus ao mundo agrave hereditariedade agrave sorte agravesociedade esta causa sui natildeo eacute mais que a necessidade de ser algueacutem ecom esta audaacutecia intreacutepida que supera agrave do baratildeo de Muumlnchhausen tentatirar a si mesmo do pacircntano do nada puxando seus proacuteprios cabelos eentrar na luz da existecircncia (JGBABM Livro I sect21)

O que o autor nos apresenta em sua leitura criacutetica das concepccedilotildees antagocircnicas de

livre-arbiacutetrio e determinismo eacute uma mesma crenccedila de base na causalidade A causalidade eacute

vista pelo autor como um condicionamento das concepccedilotildees que se pretendem natildeo

condicionais de causa e efeito Mais especificamente a crenccedila em que todos os atos

humanos ou bem seriam produtos de uma escolha ou bem satildeo resultados da atuaccedilatildeo de

causas externas agrave vontade humana o que acaba por conduzir agrave compreensatildeo de que toda

causa deva ter um efeito reciacuteproco Esta compreensatildeo da realidade que eacute a compreensatildeo

de base dos naturalistas quando se baseiam no meacutetodo mecanicista eacute tida aqui como um

erro de interpretaccedilatildeo oriundo da crenccedila na necessidade de uma dicotomia de princiacutepios

Assim o filoacutesofo apela para que tal concepccedilatildeo seja abandonada

Se algueacutem chegasse a vislumbrar a neacutescia rusticidade do famoso conceitodo ldquolivre arbiacutetriordquo ateacute chegar a afastaacute-lo do seu espiacuterito eu lhe rogariaque desse mais um passo e afastasse de seu ceacuterebro o contraacuterio dessepseudoconceito isto eacute o ldquodeterminismordquo que conduz ao mesmo abusodas noccedilotildees de causa e efeito Natildeo eacute preciso cometer o erro de tornarcondicionados causa e efeito como fazem os naturalistas (e todos quesequem seu meacutetodo de pensar) segundo as cretinices mecanicistas emvoga que querem que toda causa impulsione e pressione ateacute produzir umefeito (JGBABM Livro I sect21)

228

A crenccedila na causalidade na lei que rege as accedilotildees humanas com a mesma

regularidade com que rege os eventos da natureza seria por sua vez um reflexo na crenccedila

na oposiccedilatildeo entre falsidade e verdade Estas concepccedilotildees surgem de uma consideraccedilatildeo

mecanicista da realidade que opotildee duas esferas governadas pela mesma lei de necessidade

Razatildeo pela qual em seu pensamento antimetafiacutesico Nietzsche buscaria ao contraacuterio da

concepccedilatildeo tradicional minar o dualismo fundamental que divide o mundo em uma

realidade superior agrave realidade dada pelos sentidos e desta forma instaurar a validade

perspectiva como uacutenica pretensatildeo possiacutevel ao conhecimento humano

Atraveacutes da constataccedilatildeo da hegemonia da interpretaccedilatildeo satildeo igualadas todas as

concepccedilotildees acerca da realidade como sendo igualmente falsas sendo que satildeo oriundas de

uma consideraccedilatildeo perspectiva A ausecircncia de fundamento uacuteltimo que surge da anaacutelise

perspectivista das concepccedilotildees tradicionais expotildee o absurdo de se buscar a verdade uacuteltima

Mediante esta reflexatildeo a proacutepria oposiccedilatildeo entre interpretaccedilatildeo e mundo verdadeiro eacute

esvaziada de sentido Posto que natildeo havendo texto ou seja natildeo havendo uma realidade

ideal com base na qual julgar a realidade das avaliaccedilotildees natildeo haacute necessariamente

interpretaccedilatildeo Assim ao padratildeo de avaliaccedilatildeo da realidade segundo os criteacuterios de verdade e

falsidade Nietzsche contrapotildee a hipoacutetese de se interpretar a realidade conforme diferentes

valores os quais natildeo se distinguiriam de maneira dicotocircmica mas se diferenciariam

conforme a um padratildeo correlato ao padratildeo de uma avaliaccedilatildeo esteacutetica

Aqui se nos apresenta o seguinte problema o que caracteriza a condiccedilatildeo

perspectiva de toda vida como o ponto correto de consideraccedilatildeo da realidade Ou seja se

tudo que temos satildeo interpretaccedilotildees como a consideraccedilatildeo nietzschiana da primordialidade

das perspectivas pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo melhor do que a interpretaccedilatildeo

platocircnica Estariacuteamos aqui diante de uma consideraccedilatildeo dogmaacutetica da perspectividade da

existecircncia em Nietzsche Quando considerada a criacutetica nietzschiana a toda forma de

determinaccedilatildeo de verdade como certeza este natildeo parece ser o caso

O perspectivismo nietzschiano implicaria assim na afirmaccedilatildeo de que toda

justificaccedilatildeo de nossas crenccedilas depende de um contexto dado a partir de outras crenccedilas que

passam por verdadeiras quando no fundo satildeo apenas consideradas incontestaacuteveis para o

momento Assim a defesa nietzschiana de suas posiccedilotildees de suas concepccedilotildees filosoacuteficas

em especial natildeo partiria de uma consideraccedilatildeo de sua veracidade mas de uma afirmaccedilatildeo

229

contextual que tomaria a vida como criteacuterio absoluto e sobre o qual nenhum outro criteacuterio

poderia ser estabelecido Isto no entanto por vezes pode parecer insuficiente posto que a

defesa da posiccedilatildeo nietzschiana parece requerer uma base para a qualificaccedilatildeo desta como

superior ou entatildeo o filoacutesofo incorreria em uma forma menos expliacutecita de dogmatismo

Assim certamente o filoacutesofo natildeo poderia dizer que sua perspectiva eacute verdadeira baseada

apenas no modo como as coisas lhe parecem Mesmo que natildeo conte com uma base objetiva

ou neutra deve dar conta do porquecirc de sua perspectiva dever ser confiada antes de outra

Desde que Nietzsche claramente faz afirmaccedilotildees de verdade que ele acredita que satildeo

apoiadas por seu perspectivismo sem no entanto explicar o que exatamente as torna

verdadeiras o filoacutesofo introduz embora experimentalmente o problema da verdade tal

como este surgiu entre os gregos e que culminaria na elaboraccedilatildeo platocircnica do mundo das

ideias Mas um relato decisivo acerca do que realmente seria a verdade nunca esteve entre

os planos do filoacutesofo que ao inveacutes de propor uma concepccedilatildeo proacutepria de verdade preferiu

esclarecer um problema inerente agraves formas tradicionais da concepccedilatildeo de verdade132

Ao oferecer uma criacutetica extensa do equiacutevoco que Nietzsche considera comum entre

os filoacutesofos que lhe precedem de que algo possa ser afirmado objetivamente fora de

qualquer perspectiva sua reflexatildeo em torno da verdade constitui-se apenas de forma

negativa Desta maneira suas posiccedilotildees filosoacuteficas seriam reconhecidas como hipoacuteteses

interpretaccedilotildees que natildeo reclamariam nenhuma vantagem em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees que o

filoacutesofo critica a natildeo ser pelo fato de se reconhecerem como interpretaccedilotildees o que se torna

possiacutevel na medida em que suas concepccedilotildees natildeo se deixam guiar por uma vontade de

verdade moralmente decadente

O perspectivismo nietzschiano assim deve ser avaliado como contraproposta a

uma forma de conhecimento tradicional associada por Nietzsche a uma tendecircncia niilista

de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a uma consideraccedilatildeo negativa da

realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a proacutepria perspectividade Na defesa

desta contraproposta apresentada de modo experimental mais do que uma anaacutelise da

verdade de posicionamentos filosoacuteficos interessa a Nietzsche a anaacutelise do valor desses

posicionamentos

230

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas

O problema da verdade que aparece ao filoacutesofo desde suas primeiras incursotildees

filosoacuteficas como um problema fundamental assume um caraacuteter duplo em sua reflexatildeo

madura Esta mudanccedila apenas pode ser produzida quando Nietzsche confronta o problema

do niilismo que condiciona uma mudanccedila de sentido da concepccedilatildeo de vida em seu

pensamento agora natildeo mais pensada apenas enquanto instacircncia bioloacutegica mas tambeacutem

como instacircncia de fundamentaccedilatildeo de valores Se em Zur Teleologie motivada pelo

problema da questatildeo teoloacutegica o filoacutesofo pensa a vida apenas como algo que pode ser

mantido agora ela lhe aparece como algo que natildeo apenas se deve manter mas que tambeacutem

deve ser fortalecida Assim quando tomada a vida como determinante para a

caracterizaccedilatildeo dos valores primeiramente haveriam os valores de manutenccedilatildeo da vida e

depois aqueles valores que tornam a vida mais forte Os primeiros valores que estariam

vinculados a criaccedilatildeo de uma realidade ideal e conceitos imobilistas seriam valores

inferiores em relaccedilatildeo agrave vida Em contraposiccedilatildeo a estes os valores de afirmaccedilatildeo da vida

seriam aqueles que a fortalecem Nesse sentido a perspectividade enquanto fundamento de

uma compreensatildeo da realidade que rejeita toda forma de imobilismo estaria vinculada de

maneira necessaacuteria ao fortalecimento da vida caracterizando um posicionamento superior

quando em comparaccedilatildeo ao posicionamento dogmaacutetico

Para Nietzsche portanto o fundamental de um posicionamento filosoacutefico seria seu

potencial afirmativo da vida natildeo sua veracidade Em sua interpretaccedilatildeo criacutetica da

concepccedilatildeo tradicional de verdade interessaria ao filoacutesofo opor vida e valores e desta

forma questionar o valor dos valores afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida em oposiccedilatildeo aos

valores que satildeo essenciais para nossa sobrevivecircncia Neste sentido no fragmento poacutestumo

7[8] que tem por tiacutetulo ldquoNiilismordquo escrito entre o final de 1886 e a primavera de 1887 e

que corresponderia ao terceiro capiacutetulo do terceiro livro dos planos para a obra Vontade de

Potecircncia Nietzsche apresenta este como sendo seu verdadeiro problema que apenas em

sua filosofia se teria feito consciente

231

Suportei ateacute aqui uma tortura todas as leis segundo as quais a vida sedesenvolve pareciam-me estar em contradiccedilatildeo com os valores em virtudedos quais noacutes nos mantemos vivos Natildeo parece ser o estado do qualmuitos sofrem conscientemente apesar disso quero reunir os sinais apartir dos quais suponho que esse eacute o caraacuteter fundamental o problematraacutegico propriamente dito de nosso mundo moderno e a indigecircnciasecreta a causa ou a interpretaccedilatildeo de todas as nossas indigecircncias Esseproblema tornou-se consciente em mim (NFFP 18861887 7 [08])

Na medida em que se considera que entre as leis em que a vida se desenvolve se

inclui a proacutepria consideraccedilatildeo perspectiva da realidade que se opotildee frontalmente agrave nossa

necessidade de aparecircncias que ocupam na loacutegica de nossa sobrevivecircncia um lugar de

importacircncia iacutempar natildeo pode haver duacutevida de que neste fragmento estamos diante do

questionamento acerca do valor mesmo de uma consideraccedilatildeo perspectiva dos valores em

relaccedilatildeo ao valor das proacuteprias aparecircncias Se a caracterizaccedilatildeo da perspectiva como condiccedilatildeo

inerente agrave vida pode ser vista como contraposiccedilatildeo a um mal-entendido da verdade que o

autor identifica nas posiccedilotildees dogmaacuteticas entatildeo os valores suportados pela consideraccedilatildeo

tradicional da verdade estariam ligados agrave manutenccedilatildeo da vida e os valores de uma

consideraccedilatildeo perspectivista da vida estariam ligados a uma forma de valorar segundo

valores que tornam a vida mais forte

O perspectivismo nietzschiano por sua vez desde que tem em seus fundamentos

uma reavaliaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de verdade pode ser visto como uma forma de

reflexatildeo radical natildeo apenas acerca do conhecimento e da verdade mas tambeacutem dos

valores como criaccedilotildees oriundas de uma perspectiva limitada e que natildeo tem importacircncia

para aleacutem da esfera de sua criaccedilatildeo O que torna o mundo dos valores enquanto mundo da

criaccedilatildeo humana segundo sua perspectiva como uacutenica realidade para aleacutem da consideraccedilatildeo

de uma realidade verdadeira assim como de uma realidade como aparecircncia Nesse sentido

a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma forma de reverter completamente a noccedilatildeo

tradicional da natureza da verdade e da perspectiva pode ser vista como um

posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade ainda que com

isto se acentue a contradiccedilatildeo entre aquilo que propicia a sobrevivecircncia humana em relaccedilatildeo

ao que a torna mais forte

Ao propor a ideia de que a realidade seja interpretada segundo uma escala de

inuacutemeros valores o filoacutesofo adianta-se em sua missatildeo de instituir um antiplatonismo

232

radical ao atacar a concepccedilatildeo de mundo verdadeiro A concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana do

conhecimento nesse sentido corresponderia a uma tentativa de analisar a possibilidade de

se considerar qualquer posicionamento teoacuterico como passiacutevel de ser localizado dentro de

uma escala valorativa de infinitos graus infinitos valores para usar a terminologia

nietzschiana em que no grau mais baixo se encontraria o posicionamento menos

afirmativo em relaccedilatildeo agrave vida posto que tende a uma concepccedilatildeo de mundo verdadeiro Pois

na medida em que o mundo verdadeiro que fundamentaria as concepccedilotildees cientiacuteficas e

filosoacuteficas agraves quais Nietzsche se opotildee eacute criticado como a maior das falsidades jaacute criada os

valores que repousam sobre este fundamento satildeo forccedilados a uma reavaliaccedilatildeo Sua negaccedilatildeo

do mundo verdadeiro representaria a ruptura com a mentira de seacuteculos que instituiu um

mundo separado da realidade material como forma de fugir ao caraacuteter limitado de nossas

formulaccedilotildees teoacutericas

A necessidade de uma alteraccedilatildeo do criteacuterio de avaliaccedilatildeo surge da constataccedilatildeo

nietzschiana do colapso do sistema valorativo tradicional suportado pela filosofia

metafiacutesica pela ciecircncia naturalista e pela concepccedilatildeo religiosa Quanto a esta necessidade a

leitura nietzschiana da filosofia tradicional eacute muito clara em sua suposiccedilatildeo de que o

dualismo ontoloacutegico teria levado a pesquisa filosoacutefica a sua exaustatildeo o que se daacute atraveacutes

do confronto entre a inexistecircncia de uma realidade idealizada e a hegemonia da

interpretaccedilatildeo

Para pensar a relaccedilatildeo intriacutenseca entre o conhecimento e os afetos subjacentes agrave

consciecircncia eacute necessaacuterio retornar com ecircnfase especial ao paraacutegrafo 333 de A Gaia

Ciecircncia onde o autor apresenta um suposto tiacutetulo que de fato corresponde a uma citaccedilatildeo

de Espinosa O que significa conhecer Non ridere non lugere nequi detestari sed

intelligere A passagem do Tractatus Politicus de Spinoza aparece aqui como a forma mais

contraacuteria agrave concepccedilatildeo de conhecimento que o autor almeja defender Em contraposiccedilatildeo agrave

ideia de conhecimento como cessaccedilatildeo dos afetos o autor diraacute que o conhecimento natildeo

surge a partir de um apagamento dos impulsos de rir lamentar e detestar mas sim de uma

certa tomada de consciecircncia dos uacuteltimos estaacutegios da luta desses impulsos

A noacutes nos chega agrave consciecircncia apenas as uacuteltimas cenas de conciliaccedilatildeo eajuste de contas desse longo processo e por isso achamos que intelligere eacutealgo conciliatoacuterio justo bom essencialmente contraacuterio aos impulsos

233

enquanto eacute apenas uma certa relaccedilatildeo dos impulsos entre si (FWGC IVsect333)

Conhecer portanto natildeo seria deixar calar os instintos mais iacutentimos do pesquisador

mas o chegar agrave consciecircncia destes estados iacutentimos Pois o que move o conhecimento eacute

precisamente o duelo entre esses instintos de modo que o resultado desse duelo produz

algo diferente novo e que sobreveacutem ao pesquisador como uma faiacutesca que surge do contato

entre duas espadas Ora destes estados iacutentimos o pesquisador reconhece apenas os uacuteltimos

momentos logo ele natildeo eacute sujeito de conhecimento exceto em uma acepccedilatildeo muito precaacuteria

Para todos os efeitos o pesquisador eacute apenas instrumento dos instintos que nele lutam e

atraveacutes dele chegam a uma conformaccedilatildeo especiacutefica segundo a natureza de seus instintos

Esta eacute de fato a caracteriacutestica uacuteltima do tipo de conhecimento defendido por

Nietzsche e estaacute em iacutentima associaccedilatildeo com sua concepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia De

fato a luta dos instintos eacute uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia que nesse sentido

seria a verdadeira responsaacutevel pela interpretaccedilatildeo que chega ao pesquisador em seus

estaacutegios finais como conhecimento Na vontade que Nietzsche pensa como subjacente a

toda concepccedilatildeo racional de natureza nada como a verdade existe Por isso o filoacutesofo diz

ldquoGuardemo-nos de dizer que haacute leis da natureza Haacute apenas necessidades natildeo haacute ningueacutem

que comande ningueacutem que obedeccedila ningueacutem que transgridardquo (FWGC III sect109) Assim

visto a questatildeo ainda de outro modo o conhecimento natildeo seria o cessar das contradiccedilotildees

inerentes aos instintos em luta como se estaria tentado a deduzir diante da concepccedilatildeo

apresentada por Nietzsche como sendo a de Spinosa Mas antes o apaziguar dessas

contradiccedilotildees por meio da consciecircncia mediante a pressatildeo de uma necessidade nossa uma

coaccedilatildeo bioloacutegica que aspira a um cessar dos instintos

A coaccedilatildeo subjetiva que impede de contradizer eacute uma coaccedilatildeo bioloacutegica oinstinto de utilidade que haacute em concluir assim como concluiacutemos tornou-se para noacutes uma segunda natureza somos quase esse instinto Mas queingenuidade querer extrair daiacute a demonstraccedilatildeo de que possuiacutemos umaverdade em si O fato de natildeo ser possiacutevel a contradiccedilatildeo eacute prova de umaincapacidade e natildeo de uma ldquoverdaderdquo (NFFP 1888 14[152])

234

Apesar de o apaziguamento dos instintos que se daacute no sujeito surgir como o efeito

de uma potecircncia ordenadora constituinte da proacutepria consciecircncia aqui natildeo se expressa uma

capacidade superior como por vezes a tradiccedilatildeo do pensamento deixa entender A ela estaacute

ligada a necessidade de simplificar uma realidade caoacutetica para fins de comunicaccedilatildeo Com

isso natildeo se expressa uma potecircncia uma capacidade para a verdade mas uma limitaccedilatildeo

Concebemos verdades com uma determinada regularidade natildeo por uma maior capacidade

interpretativa mas por uma maior dependecircncia de regularidade em relaccedilatildeo a outras

espeacutecies naturais

() O mundo imaginaacuterio do sujeito da substacircncia da ldquorazatildeordquo etc eacutenecessaacuterio haacute em noacutes uma potecircncia ordenadora simplificadora quefalsifica e separa artificialmente ldquoVerdaderdquo eacute a vontade de tornar-sesenhor da multiplicidade das sensaccedilotildees (NFFP 1887 09[189])

Dependemos de estabilidade para viver assim criamos um mundo imaginaacuterio da

substacircncia Com isso nenhuma verdade eacute atingida a natildeo ser que se tome por verdade

aquilo que eacute necessaacuterio para nossa existecircncia Segundo Nietzsche esse teria sido o erro da

tradiccedilatildeo ateacute entatildeo tomar por verdadeiro o que eacute necessariamente verdadeiro para noacutes

Nessa leitura o conhecimento tal como este foi perseguido pela tradiccedilatildeo estaria

relacionado a uma impotecircncia para criar que encontra na vontade de verdade a mateacuteria

prima para a construccedilatildeo do outro mundo

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir Em outras palavras o filoacutesofo compreende que o bem e o mal

natildeo estatildeo colocados de uma vez por todas no real pois jaacute em sua filosofia de juventude

conclui que a realidade natildeo possui ordem ou desordem Assim o mundo se o

considerarmos em si mesmo independente do homem natildeo eacute afeito a coisas como erro

verdade mentira bom ou ruim

235

Na leitura nietzschiana a realidade natildeo possui valor em si valores natildeo-humanos

Todo valor eacute decorrecircncia da atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo

com ilusotildees interpretaccedilotildees muito proacuteprias ligadas desde sua origem a ordem de suas

necessidades Por isso o filoacutesofo afirma ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie ()

traz entatildeo um esplecircndido cortejo de motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer

esquecer que no fundo eacute impulso instinto tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1)

Assim Nietzsche concebe o mundo como uma decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de

sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se carregado de sentido a partir da existecircncia

humana Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto eacute por definiccedilatildeo

sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana natildeo eacute guiada

por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima instacircncia a accedilatildeo

humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento

Nessa leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a

finalidade a moralidade o sentido satildeo tomadas pro Nietzsche com instacircncias do instinto

de conservaccedilatildeo nos seres humanos Os diferentes valores natildeo passam de padronizaccedilotildees

humanas inexistentes no mundo mesmo pois como nos diz o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas

que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a

lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse

mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre fizemos ou seja

mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim a uma atribuiccedilatildeo

humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de sobrevivecircncia de

uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

A necessidade do mundo necessaacuterio da substacircncia condiciona nossa busca pelo

conhecimento como a busca pelo conhecimento deste mundo antropomorficamente

necessaacuterio Mas posto que a existecircncia desse mundo eacute dependente de nossa atuaccedilatildeo a este

mundo natildeo corresponderia nenhuma realidade em si Assim a concepccedilatildeo de conhecimento

combatida por Nietzsche se relaciona intimamente com a tendecircncia niilista que se

propaga do campo da moral para o campo do conhecimento Em sua concepccedilatildeo

perspetivista que confronta o fato de que natildeo haacute outro mundo o elemento criativo

plasmador de interpretaccedilotildees torna-se o ponto central No entanto a negaccedilatildeo de um outro

mundo distingue-se da negaccedilatildeo de uma realidade em si que seria jaacute certo

236

comprometimento com aquilo que se tenciona negar Por outro lado a afirmaccedilatildeo de nosso

mundo de interpretaccedilotildees eacute coerente com o sentido mais iacutentimo da reflexatildeo nietzschiana

conforme o autor esclarece em um fragmento poacutestumo a ideia que regeu sua obra

Que o valor do mundo reside em nossa interpretaccedilatildeo (ndash que em algumoutro lugar talvez sejam possiacuteveis ainda outras interpretaccedilotildees que natildeo ashumanas ndash) que as interpretaccedilotildees ateacute aqui satildeo avaliaccedilotildeesperspectiviacutesticas graccedilas agraves quais noacutes nos mantemos na vida ou seja navontade de poder de crescimento de poder que toda elevaccedilatildeo do homemtraz consigo a superaccedilatildeo de interpretaccedilotildees mais estreitas que todaintensificaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo do poder alcanccediladas abrem novas perspectivase conclamam a que se acredite em novos horizontes ndash isto eacute algo queatravessa meus escritos O mundo que em alguma medida nos dizrespeito eacute falso isto eacute natildeo eacute nenhum fato mas uma sedimentaccedilatildeo e umarrendondamento a partir de uma soma mais magra de observaccedilotildees eleestaacute em ldquofluxordquo como algo que deveacutem como uma falsidade que semprese translada novamente que nunca se aproxima da verdade pois ndash natildeo haacutenenhuma ldquoverdaderdquo (NFFP 18851886 2 [108])

Aqui eacute necessaacuterio voltar-se para a definiccedilatildeo nietzschiana de niilismo na tentativa

de entender radicalmente sua negaccedilatildeo do outro mundo Nietzsche diz ldquoo niilista eacute o

homem que julga que o mundo tal como eacute natildeo deveria existir e o mundo tal qual deveraacute

ser natildeo existerdquo (NFFP 1887 9[60]) O niilista portanto seria aquele que defende a

existecircncia de uma realidade idealizada com base na negaccedilatildeo da realidade imperfeita que eacute

nossa criaccedilatildeo Assim se pensarmos em uma posiccedilatildeo que tenciona superar o niilismo

estamos diante da necessidade natildeo de negar um outro mundo mas de afirmar o mundo

que eacute nossa criaccedilatildeo Pois o nosso mundo objetivo enquanto totalidade de perspectivas eacute

afirmado na consideraccedilatildeo perspectivista nietzschiana como o uacutenico mundo existente

Em contraposiccedilatildeo ao niilista que natildeo consegue aceitar o mundo como totalidade de

perspectivas por consideraacute-lo inferior ao mundo ideal inexistente o filoacutesofo perspectivista

seria aquele que apreende um mundo que entende desde o comeccedilo como produto de sua

atuaccedilatildeo criativa no mundo Desta maneira a ele se assemelha o homem das metaacuteforas

intuitivas do ensaio sobre verdade e mentira para quem as metaacuteforas constituem em seu

caraacuteter mesmo de metaacuteforas o material de sua existecircncia poeacutetica Ao homem da ciecircncia no

ensaio em questatildeo corresponderia o niilista que tenta apoiar-se em uma perspectiva

definitiva uacutenica verdadeira apesar de igualmente ilusoacuteria

237

Conforme referido anteriormente a vontade de verdade constitui uma impotecircncia

para criar que encontra reflexo na afirmaccedilatildeo de que o mundo que deveria ser jaacute eacute e jaacute estaacute

aiacute Atraveacutes dessa concepccedilatildeo a vontade que move a afirmaccedilatildeo da existecircncia do mundo

ideal exclui-se da criaccedilatildeo do mundo e age tatildeo-somente em sua antecipaccedilatildeo Poreacutem na

medida em que se assume que este mundo o mundo aparente natildeo deveria existir caiacutemos

no niilismo Por outro lado haacute tambeacutem um niilismo em uma criacutetica agrave vontade de verdade

tal como a empreendida por Nietzsche Ela se configura como a afirmaccedilatildeo de que o mundo

tal como deveraacute ser ou tal como deveria ser natildeo existe Dessa maneira estamos sempre no

limiar entre um niilismo ativo e um passivo na medida em que assumimos a necessidade

de criar um mundo na ausecircncia deste ou nos ausentamos desta requisiccedilatildeo Eacute nesse terreno

que encontramo-nos quando com Nietzsche nos embrenhamos na anaacutelise genealoacutegica da

verdade como falsidade

A posiccedilatildeo criacutetica nietzschiana assume sua maior radicalidade na tentativa de

subverter todos os dualismos a partir da reavaliaccedilatildeo de toda duplicidade de consideraccedilotildees

da realidade como sendo produto da crenccedila em instacircncias superiores Na medida em que

seu ataque ao dualismo de valores inerente agrave concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional se torna

cada vez mais radical o colapso da crenccedila em uma realidade superior se torna o meio pelo

qual ficaria exposta a existecircncia exclusiva de um mundo aparente Nesse sentido a

destituiccedilatildeo de validade do mundo verdadeiro e com ela a invalidaccedilatildeo de sua contraparte o

mundo aparente considerado como mundo falso coloca nossas afirmaccedilotildees no terreno da

interpretaccedilatildeo sem texto

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva

Em sua obra acerca da verdade na filosofia nietzschiana Clark sustenta que a

problemaacutetica presente nesse pensamento em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade

teria se tornado um dos grandes temas de discussatildeo da filosofia desse autor De fato esta

preocupaccedilatildeo fundamental encontra-se com frequecircncia na obra nietzschiana Sobretudo em

seus uacuteltimos livros notadamente em Aleacutem do Bem e do Mal e Genealogia da Moral

Apesar disso rigorosamente falando o filoacutesofo natildeo oferece em contraposiccedilatildeo a esta

238

concepccedilatildeo tradicional uma concepccedilatildeo proacutepria plenamente desenvolvida acerca da

natureza da verdade Em seu lugar Nietzsche teria optado por oferecer uma criacutetica de

amplo alcance acerca das noccedilotildees tradicionais de objetividade e correspondecircncia Ao que

tudo indica o filoacutesofo esperava dessa forma iniciar um amplo diaacutelogo acerca do valor da

verdade para a filosofia contemporacircnea

O questionamento pelo valor das perspectivas e da proacutepria possibilidade de uma

perspectiva do valor relaciona-se agrave necessidade de julgar qual o fundamento da criacutetica

nietzschiana a outras concepccedilotildees partindo-se da admissatildeo nietzschiana de suas proacuteprias

conclusotildees filosoacuteficas como sendo decorrecircncias de uma perspectiva determinada Em

outras palavras trata-se da busca pela validade das concepccedilotildees nietzschianas em

detrimento de sua possiacutevel veracidade busca que se torna necessaacuteria desde que ao

interpretarmos algumas das passagens mais conhecidas da produccedilatildeo nietzschiana vemos

que o proacuteprio Nietzsche pareceu natildeo se incomodar com a consideraccedilatildeo de suas suposiccedilotildees

como interpretaccedilotildees Como vemos por exemplo na seguinte passagem

Mas como disse isso eacute interpretaccedilatildeo natildeo texto e bem poderia viralgueacutem que com intenccedilatildeo e arte de interpretaccedilatildeo opostas soubesse lerna mesma natureza tendo em vista os mesmos fenocircmenos precisamentea imposiccedilatildeo tiranicamente impiedosa e inexoraacutevel de reivindicaccedilotildees depoder ndash um inteacuterprete que lhes colocasse diante dos olhos o caraacuteter natildeoexcepcional e peremptoacuterio de toda ldquovontade de poderrdquo em tal medidaque quase toda palavra inclusive a palavra ldquotiraniardquo por fim parecesseimproacutepria ou uma metaacutefora debilitante e moderadora ndash demasiadohumana e que no entanto terminasse por afirmar sobre esse mesmomundo o mesmo que vocecircs afirmam isto eacute que ele tem um cursoldquonecessaacuteriordquo e ldquocalculaacutevelrdquo mas natildeo porque nele vigoram leis e simporque faltam absolutamente as leis e cada poder tira a cada instantesuas uacuteltimas consequecircncias Acontecendo de tambeacutem isto ser apenasinterpretaccedilatildeo ndash e vocecircs se apressaratildeo em objetar isso natildeo ndash bem tantomelhor (JGBABM I 22)

O ldquotanto melhorrdquo ao fim da conhecida passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que nos

parece emblemaacutetica do tipo de posicionamento criacutetico que predomina nos escritos

nietzschianos indica que Nietzsche natildeo pretendia ao se contrapor agraves posiccedilotildees das quais

discordava apresentar uma posiccedilatildeo mais verdadeira Isto porque o filoacutesofo se volta contra

a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica Assim considerar as

239

concepccedilotildees nietzschianas do ponto de vista de uma investigaccedilatildeo acerca da verdade destas

posiccedilotildees natildeo parece ser uma atitude produtiva desde que a proacutepria caracterizaccedilatildeo do

filoacutesofo de suas concepccedilotildees como interpretaccedilotildees parece negar a possibilidade de que estas

sejam verdadeiras e que o filoacutesofo rejeita ou natildeo parece se incomodar nem mesmo em

rejeitar a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica

Se por um lado a duacutevida acerca da seriedade com que Nietzsche enfrenta a posiccedilatildeo

dos fiacutesicos parece ser reforccedilada pelo fato do filoacutesofo tomar suas proacuteprias concepccedilotildees como

interpretaccedilotildees e natildeo fatos uma leitura mais atenta poderia demonstrar que o filoacutesofo

reconhece na proacutepria possibilidade de se apresentar novas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de

criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Desta maneira na passagem citada a

concepccedilatildeo de vontade de potecircncia tomada como hipoacutetese contraacuteria agrave opccedilatildeo das ciecircncias

pela compreensatildeo da natureza como algo conforme a uma legalidade natural eacute considerada

pelo proacuteprio Nietzsche uma interpretaccedilatildeo E para o filoacutesofo parece tanto melhor que

assim seja posto que isto concorda com a suposiccedilatildeo inicial de que apenas hajam

interpretaccedilotildees Portanto quando rejeita a posiccedilatildeo dos fiacutesicos a qual considera estar

vinculada a uma concepccedilatildeo moral da verdade o proacuteprio Nietzsche parece rejeitar a

verdade de sua suposiccedilatildeo hipoteacutetica

Isto ocorre porque a criacutetica nietzschiana ao posicionamento dos fiacutesicos se daacute no

interior de uma consideraccedilatildeo que toma a proacutepria necessidade de verdade que para o

filoacutesofo move a ciecircncia como uma rejeiccedilatildeo moral do valor mesmo das interpretaccedilotildees

Nesta leitura a confianccedila das ciecircncias ainda aparece para o filoacutesofo como reflexo da antiga

vontade de verdade como um traccedilo indeleacutevel do niilismo que suporta estas posiccedilotildees

Assim por exemplo em um fragmento do mesmo periacuteodo de elaboraccedilatildeo de Aleacutem do Bem

e do Mal Nietzsche reflete que haacute um traccedilo niilista nas ciecircncias naturais em seu

causalismo e mecanicismo na crenccedila na ldquoconformidade a leisrdquo (NFFP 1885-1886

2[131]) Para o filoacutesofo estes traccedilos niilistas permaneceriam ainda na poliacutetica e na

economia poliacutetica como reflexo de uma falta de inocecircncia e confianccedila no direito de cada

um Do mesmo modo na histoacuteria em sua confianccedila no ldquofatalismo e no darwinismordquo

(NFFP 1885-1886 2[131]) em sua tentativa desesperada de ldquoinserir interpretativamente

a razatildeo e a divindaderdquo (NFFP 1885-1886 2[131]) em sua leitura de um suposto

progresso da humanidade

240

Em seu julgamento das ciecircncias e seu pendor niilista para uma vontade de verdade

o filoacutesofo faz observar entre parecircnteses que tambeacutem aqui se faz necessaacuterio o

fenomenalismo na compreensatildeo do caraacuteter como maacutescara desde que ldquonatildeo haacute nenhum

fatordquo (NFFP 1885-1886 2[131]) Na medida em que mais do que estabelecer uma

concepccedilatildeo mais verdadeira de verdade interessa a Nietzsche questionar os compromissos

morais inerentes agrave vontade de verdade sua filosofia torna-se uma teoria criacutetica da verdade

um posicionamento criacutetico em relaccedilatildeo a toda vontade de verdade inerente agrave ciecircncia e agrave

filosofia tradicional O que natildeo significa a defesa de uma determinada teoria da verdade

mas a investigaccedilatildeo da proacutepria verdade como valor

O posicionamento eminentemente criacutetico de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave verdade faz

emergir uma concepccedilatildeo negativa de verdade desde que sua criacutetica a este conceito perpassa

boa parte de suas obras revelando natildeo uma opccedilatildeo teoacuterica mas o contraste entre uma moral

que se rejeita e uma determinada concepccedilatildeo de verdade que eacute compreendida pelo filoacutesofo

como aliada a uma forma decadente de consideraccedilatildeo da realidade Assim quando

Nietzsche sugere em outra passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que natildeo haacute uma parede

divisoacuteria entre a verdade e a aparecircncia fica claro que o filoacutesofo concebe a verdade apenas

como uma espeacutecie de aparecircncia pondo em duacutevida a tradicional distinccedilatildeo entre a verdade e

o aparente como valores distintos

Eacute um simples preconceito acreditar que a verdade eacute melhor que aaparecircncia eacute inclusive a mais infundada que existe Deve-se confessaacute-lo avida natildeo seria possiacutevel sem toda uma engrenagem de apreciaccedilotildees e deaparecircncias e se se suprimisse o ldquomundo aparenterdquo com toda aindignaccedilatildeo voltada contra ele por certos filoacutesofos supondo-se que istofosse possiacutevel nada restaria tampouco de nossa ldquoverdaderdquo Pois o quenos obriga a admitir que exista uma parede divisoacuteria entre o ldquoverdadeirordquoe o ldquofalsordquo Natildeo bastaria admitir graus de aparecircncia como quem falassede matizes e harmonia mais ou menos claros ou obscuros valoresdiferentes para empregar a linguagem dos pintores Por que o mundo emque vivemos natildeo poderia ser fictiacutecio E se objetasse ainda que toda ficccedilatildeodeve ter um autor natildeo se poderia responder com toda franqueza ldquoPorquecircrdquo A expressatildeo ldquodeve terrdquo natildeo constitui tambeacutem parte da ficccedilatildeo Natildeose pode permitir um pouco de ironia com o sujeito com o predicado ecom o objeto O filoacutesofo natildeo tem razatildeo de declarar-se rebelde contra aconfianccedila cega concedida agrave gramaacutetica Respeito muito aos governantesporeacutem natildeo seria a hora da filosofia renunciar um pouco agrave feacute nosgovernantes (JGBABM Livro II sect34)

241

Ao opor-se criticamente agrave indignaccedilatildeo demonstrada pelos filoacutesofos tradicionais ao

enganoso mundo aparente como uma forma de erro que deveria ser suprimido Nietzsche

apresenta natildeo uma forma diversa de verdade mas uma compreensatildeo diversa da relaccedilatildeo

entre verdade e aparecircncia Pensar que a supressatildeo do mundo aparente ocasiona a supressatildeo

da verdade leva a crer que a verdade pode ser vista como uma forma de aparecircncia Em

outro sentido Nietzsche pensa como inoacutecua a distinccedilatildeo tradicional entre verdade e

aparecircncia posto que considera que natildeo possuiacutemos o suficiente para traccedilar uma tal

distinccedilatildeo Assim a realidade poderia ser representada natildeo mais segundo o dualismo

verdadeiro e falso mas como uma composiccedilatildeo de diferentes tons de aparecircncia

Com esta simples metaacutefora das cores Nietzsche torna possiacutevel pensar a

diferenciaccedilatildeo de valor entre a verdade e o aparente como algo que natildeo remete a

consideraccedilatildeo de diferentes graus de afastamento de uma realidade idealizada mas que

torna a proacutepria aparecircncia o grau a ser levado em consideraccedilatildeo na diferenciaccedilatildeo de tons da

realidade Com isso o filoacutesofo pode oferecer uma leitura diferenciada da relaccedilatildeo entre

valor verdade e aparecircncia sem no entanto necessitar estabelecer uma teoria tradicional

acerca da verdade E se for necessaacuterio definir o perspectivismo nietzschiano deve-se

pensaacute-lo natildeo como uma teoria da verdade mas como um posicionamento criacutetico em

relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que toma a distinccedilatildeo em graus de aparecircncia

como um traccedilo necessaacuterio de toda consideraccedilatildeo da realidade Em relaccedilatildeo ao

conhecimento por outro lado o perspectivismo pode ser pensado como uma relaccedilatildeo para

com a disposiccedilatildeo dos diferentes valores a capacidade de dispor de diferentes valores de

aparecircncia como modo de constituiccedilatildeo de uma determinada interpretaccedilatildeo

Seria possiacutevel portanto pensar que assim como nessa passagem de Aleacutem do Bem

e do Mal a concepccedilatildeo tradicional de ldquovalor de verdaderdquo se torna sem sentido na filosofia

nietzschiana na medida em que o autor considera a verdade mesma apenas um grau de

aparecircncia que poderia corresponder a uma forma conveniente de falsidade De tal maneira

que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso na filosofia nietzschiana seria reduzida a uma

especulaccedilatildeo do valor de determinadas aparecircncias assim como de sua combinaccedilatildeo para as

necessidades especiacuteficas inerentes a uma determinada organizaccedilatildeo de forccedilas Organizaccedilatildeo

que pode ser interpretada como um sujeito

Pois para Nietzsche o sujeito natildeo seria ldquoalgo dado senatildeo algo inventado e

acrescentado algo posto por traacutesrdquo ou seja tambeacutem uma interpretaccedilatildeo Assim por meio da

242

discordacircncia nietzschiana de que o mundo como uma ficccedilatildeo dependa de um autor

correlata agrave negaccedilatildeo de que ldquouma interpretaccedilatildeo necessite de um inteacuterpreterdquo (NFFP 1886-

1887 7[60]) o filoacutesofo estabelece como ponto de partida para sua compreensatildeo do mundo

como uma interpretaccedilatildeo que o ldquosujeitordquo natildeo seria algo distinto daquilo que se procura

conhecer e que se tem considerado como produto da atuaccedilatildeo do sujeito Em grande

medida a criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo que toma a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia

como uma distinccedilatildeo ldquodualoacutegicardquo indevida parte de uma consideraccedilatildeo do sujeito como

uma aparecircncia

Em sua consideraccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo tradicional de sujeito Nietzsche reflete

acerca do proacuteprio sujeito como sendo objeto de uma avaliaccedilatildeo perspectivista que como

tal natildeo poderia ser tomado como fundamento para o estabelecimento de uma distinccedilatildeo tatildeo

fundamental quanto a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia Neste sentido o filoacutesofo

compreende a concepccedilatildeo tradicional de sujeito como estando fundada em uma

desconsideraccedilatildeo do necessaacuterio perspectivismo a compreensatildeo da realidade como produto

de nossa avaliaccedilatildeo

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano surge no pensamento desse autor agrave margem de uma

consideraccedilatildeo criacutetica das concepccedilotildees tradicionais de conhecimento e verdade mas que nem

por isso constitui uma teoria do conhecimento ou da verdade antagocircnica agraves concepccedilotildees

tradicionais Nestes diferentes momentos a criacutetica agrave verdade efetuada pelo autor parece ser

orientada por uma noccedilatildeo caracteriacutestica acerca do valor que subjaz agraves nossas afirmaccedilotildees

sobre a realidade o que impede mesmo a formulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo alternativa de

verdade posto que para o autor o problema da concepccedilatildeo tradicional residiria na

necessidade mesma de verdade Ou seja compreendemos que com seu perspectivismo o

filoacutesofo natildeo pretendeu oferecer uma nova concepccedilatildeo de verdade mas iniciar um

questionamento acerca do valor da verdade para nossa sobrevivecircncia Do mesmo modo

mais do que estabelecer uma teoria do conhecimento interessava agrave Nietzsche o problema

do valor na filosofia

243

No entanto esta compreensatildeo eacute gestada atraveacutes dos diversos periacuteodos da filosofia

nietzschiana Apenas assumindo a forma de uma teoria dos valores por assim dizer na fase

madura do pensamento deste autor A relaccedilatildeo entre criacutetica da concepccedilatildeo tradicional da

verdade e teoria do valor que seria o perspectivismo propriamente apenas se torna

possiacutevel porque na maturidade do pensamento nietzschiano a reflexatildeo acerca do caraacuteter

perspectivo da avaliaccedilatildeo se associa a uma compreensatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos

valores Assim em sua abordagem do problema da desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria

inerente agrave dinacircmica que o autor reconhece nos meios intelectuais europeus de sua eacutepoca e

que em diversos fragmentos poacutestumos nomeia como niilismo embora sem expor

propriamente o que seria o niilismo132 fica clara a tentativa do filoacutesofo de descobrir uma

forma de se contrapor a um processo de decadecircncia que potildee em risco a cultura e a proacutepria

humanidade como organizaccedilatildeo cultural

Sendo assim o perspectivismo nietzschiano que tal como o niilismo seria uma

tese da maturidade do pensamento nietzschiano que careceu de desenvolvimento na obra

publicada pode ser pensado como uma parte fundamental de uma estrateacutegia mais ampla de

combate agrave dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria comum ao niilismo A questatildeo

do valor das perspectivas na filosofia nietzschiana e por sua vez a questatildeo da

perspectividade dos valores estaria dessa forma intimamente relacionada com a questatildeo

acerca do valor da verdade que na concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento substitui a

questatildeo do valor de verdade Esta reflexatildeo criacutetica acerca do sentido tradicional de verdade

se reflete na projeccedilatildeo nietzschiana de uma filosofia do futuro

132 Apesar de constituir objeto de importacircncia reconhecidamente elevada no interior do pensamentonietzschiano de modo geral o tema do niilismo foi tratado apenas de forma obliacutequa na obra desse autorVide por exemplo o comentaacuterio de Lebrun no volume Nietzsche da coleccedilatildeo os pensadores Paacuteg 378 Nessapassagem o comentador e coorganizador do volume em questatildeo das obras selecionadas trata de formaresumida o tema do estado geral da obra nietzschiana a interrupccedilatildeo dessa obra por sua doenccedila e o status dospoacutestumos ldquoAteacute agora escolhi os textos com uma dupla intenccedilatildeo 1ordm) despertar no leitor o gosto por um autorque se queria lsquoextemporacircneorsquo 2ordm) preservaacute-lo dos contrassensos estuacutepidos de que Nietzsche tanto sofreu(anti-semita preacute-nazista etc) ndash A dificuldade agora eacute a seguinte Nietzsche quando foi atingido peladoenccedila estava preparando a obra que considerou a fundamental A Vontade de Potecircncia ndash Os editorespublicaram sob esse tiacutetulo um livro contestado e sem duacutevida contestaacutevel do ponto de vista filoloacutegico poisos fragmentos estatildeo agrupados sem levar em conta sua dataccedilatildeo Em sua ediccedilatildeo criacutetica Coli e Montinaripreferiram dispensar estes textos tatildeo arbitrariamente selecionados entre os fragmentos poacutestumos deNietzsche ndash Como aqui repito trata-se apenas de despertar no leitor o gosto e a curiosidade por Nietzschepermiti-me ndash os eruditos me perdoem ndash escolher em A Vontade de Potecircncia e nos textos poacutestumos osfragmentos referentes a dois temas que a obra publicada soacute aborda obliquamente o niilismo e o eternoretornordquo

244

A ideia de que o futuro do pensamento ocidental seria marcado pela renuacutencia agrave

ideia de verdade em sentido tradicional mais do que tudo condiciona a aposta

nietzschiana na emergecircncia dos espiacuteritos livres Assim por meio da compreensatildeo de uma

iacutentima relaccedilatildeo entre este processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores e a necessidade de se

superar a concepccedilatildeo tradicional de verdade a questatildeo dos valores se insere na reflexatildeo

nietzschiana acerca dos problemas em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade O

abandono da concepccedilatildeo tradicional de verdade era uma esperanccedila do filoacutesofo esperanccedila

fundada na compreensatildeo da necessidade de se superar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos

valores que em sua eacutepoca se espalhava por todas as esferas da cultura europeia

Ao lado do problema da verdade a questatildeo acerca dos valores ocuparia um papel

fundamental na consideraccedilatildeo nietzschiana acerca do conhecimento E mesmo Maudemarie

Clark apesar de declarar natildeo pretender se aprofundar sobre o problema do valor defende

que este se oferece como uma posiccedilatildeo nietzschiana fundamental que apareceria lado a

lado ao problema da verdade no interior da especulaccedilatildeo nietzschiana

Apesar da ecircnfase recente acerca de suas afirmaccedilotildees sobre a verdadepoucos negariam que a importacircncia fundamental de Nietzsche estaacuteconectada com aquilo que ele tem a dizer acerca dos valoresespecialmente ao desafio que ele oferece aos valores recebidos Seudesafio aos valores recebidos parece repousar em afirmaccedilotildees como aseguinte que a moralidade eacute uma expressatildeo do ressentimento e danegaccedilatildeo da vida que a vida em si mesma eacute vontade de poder quefilosofia religiatildeo e moralidade estatildeo entre as mais refinadas formas dessavontade que a civilizaccedilatildeo ocidental encontra-se sob o grave perigoadvindo da morte de Deus e o niilismo que a esta estaacute ligada Natildeo eacuteminha preocupaccedilatildeo aqui explicar como exatamente tais afirmaccedilotildeesdesafiam os valores recebidos mas aparentemente eacute claro que estasafirmaccedilotildees natildeo podem se contrapor aos valores recebidos a menos quesejam tomados como verdadeiros (CLARK 1990 Paacuteg 03)

Nesta interessante passagem da extremamente importante obra de Clark a autora

lanccedila-se agrave anaacutelise da verdade ao mesmo tempo em que apenas apresenta o problema do

valor na filosofia nietzschiana Segundo esta compreensatildeo a concepccedilatildeo nietzschiana

acerca da verdade apareceria como sendo o fundamento da criacutetica nietzschiana aos valores

recebidos Isto porque o valor da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de moral

dependeria do valor de verdade de suas proacuteprias concepccedilotildees Pois para a autora seria

245

absurdo pensar que o autor oferece uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional sem estar de posse

de uma concepccedilatildeo mais verdadeira

Sendo assim Maudemarie Clark natildeo nega a importacircncia das consideraccedilotildees

nietzschianas acerca dos valores mas utiliza-se do contexto em que a criacutetica nietzschiana

aos valores eacute formulada como exemplo do modo como o filoacutesofo muitas vezes parece

argumentar com base em afirmaccedilotildees que refletem um determinado compromisso com a

verdade Ou seja apesar de reconhecer a importacircncia fundamental do problema dos

valores a autora apenas insinua a importacircncia de na tentativa de se fundamentar a criacutetica

nietzschiana aos valores recebidos da tradiccedilatildeo ou agrave moralidade tradicional que satildeo os

grandes pontos a serem combatidos pela filosofia nietzschiana estabelecer o sentido de

verdade na filosofia desse autor Isto eacute claro aceitando-se que a menos que se considerem

as afirmaccedilotildees nietzschianas contraacuterias agrave moral tradicional e seus valores como estando

fundadas em uma forma de verdade toda sua criacutetica torna-se sem sentido

Considerando-se a obra nietzschiana como um todo torna-se evidente que a

questatildeo do valor aparece no pensamento desse autor como um ponto fundamental O

niilismo nietzschiano orbita naturalmente em torno da questatildeo do valor e da desvalorizaccedilatildeo

dos valores fundamentais Motivadas por essa compreensatildeo do niilismo suas obras mais

conhecidas conduzem a uma reavaliaccedilatildeo do valor da moral Do mesmo modo concepccedilotildees

nietzschianas fundamentais como sua concepccedilatildeo do super-homem apenas podem ser

compreendidas mediante a consideraccedilatildeo de uma necessaacuteria transvaloraccedilatildeo dos valores

Outra concepccedilatildeo nietzschiana fundamental a morte de Deus aparece sob uma nova luz

quando considerada do ponto de vista de uma necessaacuteria consideraccedilatildeo do problema dos

valores Segundo esta leitura compreendemos o anuacutencio da morte de Deus nas obras

nietzschianas do periacuteodo intermediaacuterio como uma concepccedilatildeo que se baseia na derrocada

do valor da verdade assim como na necessidade de se estabelecer novos valores por meio

dos quais qualificar a verdade

Se estamos corretos em nossa interpretaccedilatildeo entatildeo temos que repensar a reflexatildeo de

Maudemarie Clark Pois quando a autora considera o valor da criacutetica nietzschiana agrave moral

como fundamentalmente dependente da compreensatildeo do autor do sentido de verdade ela

submete a questatildeo do valor a uma anaacutelise da questatildeo da verdade Virtualmente invertendo a

ordem dos fatores em sua reflexatildeo acerca da filosofia nietzschiana Na medida em que

246

concordamos com a autora em que uma correta caracterizaccedilatildeo do sentido de verdade seria

fundamental para a determinaccedilatildeo do sentido da criacutetica nietzschiana aos valores

entendemos ainda que uma compreensatildeo preexistente acerca da natureza dos valores

perpassa a investigaccedilatildeo nietzschiana acerca da moral Ou seja de certo modo seria a

conclusatildeo nietzschiana acerca da dependecircncia da moral que subjaz a uma forma tradicional

de verdade a qual o filoacutesofo jaacute considera problemaacutetica que estaacute na base de sua

compreensatildeo criacutetica acerca dos valores morais

Nesta compreensatildeo do problema enfatizamos a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

verdade como valor Caracterizaccedilatildeo que aparece na obra do filoacutesofo desde seus primeiros

escritos como objeto de criacuteticas A partir da denuacutencia desta consideraccedilatildeo moral da

verdade tributada agrave concepccedilatildeo tradicional o filoacutesofo assume uma posiccedilatildeo criacutetica e

negativa para com toda caracterizaccedilatildeo definitiva da verdade Este caraacuteter criacutetico cuja

expressatildeo maacutexima se daacute na rejeiccedilatildeo em apresentar uma teoria proacutepria acerca da verdade

faz com que seu pensamento assuma a feiccedilatildeo de uma aproximaccedilatildeo pessimista do potencial

humano para o conhecimento

O caraacuteter criacutetico da reflexatildeo nietzschiana acerca da verdade e do conhecimento

conduz a uma consideraccedilatildeo negativa destas instacircncias em que o perspectivo se destaca

como contraposiccedilatildeo agrave possibilidade de se atingir uma visatildeo objetiva da realidade Como

consequecircncia as conclusotildees apresentadas por Nietzsche especialmente em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia

Por sua vez o caraacuteter pessimista de sua consideraccedilatildeo sobre o conhecimento aparece

nesse contexto como reverberaccedilatildeo da criacutetica ao racionalismo da filosofia ocidental

herdeira de Soacutecrates e de seu otimismo infundado denunciados desde O Nascimento da

Trageacutedia A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e agrave filosofia com

esta comprometida enquanto expressatildeo de uma ldquovontade de verdaderdquo moralmente

decadente e na qual a figura de Soacutecrates desponta como grande signo e sintoma diria

respeito a uma criacutetica mais fundamental ao valor do conhecimento como expressatildeo de uma

determinada moral

247

De fato interessa ao filoacutesofo questionar em primeiro lugar a reduccedilatildeo da verdade a

um valor moral e em segundo lugar a reduccedilatildeo do valor a uma caracterizaccedilatildeo

simplificadora em que todo valor aparece apenas como valor moral Tal como o filoacutesofo

expressa em um fragmento do periacuteodo intermediaacuterio ldquoOra mas o valor ateacute aqui sobretudo

o valor da filosofia (lsquoda vontade de verdadersquo) estava baseado em juiacutezos moraisrdquo (NFFP

1885-1886 2[131] 4) Assim em sua consideraccedilatildeo criacutetica os valores morais aparecem

como uma simplificaccedilatildeo de valores mais fundamentais valores para a vida enquanto

valores de crescimento e de conservaccedilatildeo Aos valores morais implicaria o lugar entre os

valores de conservaccedilatildeo portanto seriam considerados valores de uma ordem inferior Por

outro lado a caracterizaccedilatildeo tradicional da verdade que condiciona a verdade a uma forma

de valor moral torna esta igualmente um valor de conservaccedilatildeo

O conhecimento torna-se nessa leitura em consequecircncia da adoccedilatildeo de verdades

como valores morais um mero instrumento para a conservaccedilatildeo perdendo sua

caracteriacutestica criativa vinculada a valores mais elevados de fortalecimento da vida

Motivos pelos quais o pessimismo epistemoloacutegico na filosofia nietzschiana que surge

como uma desconfianccedila com relaccedilatildeo ao conhecimento como remeacutedio para a existecircncia e

como atitude afirmativa torna-se frequente na obra do filoacutesofo

A desconfianccedila nietzschiana para com a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional do

conhecimento fundamenta-se em uma compreensatildeo criacutetica desta posiccedilatildeo que a toma

como estando em contrariedade em relaccedilatildeo agrave vida Esta caracterizaccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo

tradicional de conhecimento oriunda de uma avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e seu compromisso

com valores de decadecircncia se refletiraacute em sua reflexatildeo em uma atitude pessimista para

com o potencial humano para o conhecimento Por sua vez o pessimismo em relaccedilatildeo ao

papel do conhecimento na vida humana fundamento da vocaccedilatildeo antiplatocircnica de sua

filosofia conduz seu pensamento agrave negaccedilatildeo da identificaccedilatildeo entre o real e o racional assim

como agrave negaccedilatildeo da possibilidade de se estabelecer uma forma afirmativa de conhecimento

a partir do uso da razatildeo

Esta compreensatildeo criacutetica do sentido de conhecimento na tradiccedilatildeo no entanto natildeo

chegaria a caracterizar uma filiaccedilatildeo nietzschiana a alguma forma de ceticismo Posto que

248

Nietzsche conduziu diversas criacuteticas agrave postura ceacutetica em sua obra133 Por outro lado esta

caracterizaccedilatildeo critica conduz a reflexatildeo nietzschiana a uma tentativa de reavaliaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional do conhecimento por meio da qual o filoacutesofo pretendia libertar o

conhecimento de seu compromisso com valores de decadecircncia valores filiados a uma

compreensatildeo niilista da realidade

Sendo assim ainda que as conclusotildees apresentadas pelo autor acerca do

conhecimento e consequentemente o valor eminentemente negativo atribuiacutedo ao

conhecimento como tendecircncia moral e como expressatildeo de valores decadentes culmine em

uma apreciaccedilatildeo pessimista da possibilidade do conhecimento na medida em que a verdade

como valor mais elevado acaba sofrendo uma destituiccedilatildeo de valor as uacuteltimas expressotildees

do pensamento nietzschiano nos potildeem diante da possibilidade de um sentido criativo para

o conhecimento o que nos apresenta um potencial afirmativo do conhecimento para a

humanidade

Neste sentido acabamos por concluir que a consideraccedilatildeo criacutetica nietzschiana acerca

do conhecimento conduz a uma compreensatildeo do conhecimento como algo vinculado ao

potencial criativo humano Ou seja na medida em que Nietzsche liberta o conhecimento de

suas funccedilotildees de conservaccedilatildeo do ser humano que o aprisionam em uma realidade

convencionada simulada este passa a ser caracterizado como uma forma de atividade

artiacutestica ligada agrave criaccedilatildeo de valores Considerada assim a concepccedilatildeo de conhecimento que

Nietzsche poderia defender entende-se que ela tem de estar de acordo com o tipo de

filoacutesofo que o autor pressupotildee como sendo o filoacutesofo do futuro aquele que o autor elege

como seu sucessor espiritual

Motivos pelos quais Josef Simon em sua leitura da filosofia nietzschiana apresenta

as caracteriacutesticas de uma possiacutevel continuidade da filosofia nietzschiana em relaccedilatildeo agrave

tradiccedilatildeo Em sua leitura a filosofia nietzschiana se voltaria fundamentalmente contra dois

133 A relaccedilatildeo de Nietzsche com o ceticismo eacute bastante controversa resistindo em algumas passagens de suaobra uma avaliaccedilatildeo positiva da atitude ceacutetica em contraposiccedilatildeo a outras passagens em que o autor se mostraabertamente criacutetico do ceticismo De maneira bastante resumida poderia ser dito que o posicionamentonietzschiano com relaccedilatildeo ao conhecimento reflete certos aspectos da postura ceacutetica na exata medida em querejeita a abstenccedilatildeo ceacutetica propriamente Em outras palavras enquanto o filoacutesofo elogia um certocomedimento em se posicionar acerca da verdade tiacutepico de uma postura ceacutetica rejeita a inaccedilatildeo inerente a umconformismo ligado agrave uma rejeiccedilatildeo em opinar diante da compreensatildeo dos limites do conhecimento possiacutevelPara maiores informaccedilotildees sobre essa relaccedilatildeo conflituosa recomendamos a tese e doutoramento de RogeacuterioLopes de 2008 que consta na bibliografia e que serviu enormemente na elaboraccedilatildeo desta tese

249

aspectos da filosofia tradicional a questatildeo do valor que estaacute diretamente relacionada ao

correto proceder e a questatildeo do conhecimento Nesse sentido a questatildeo da verdade na

filosofia nietzschiana deveria ser compreendida agrave luz da concepccedilatildeo tradicional de verdade

Mais corretamente a busca irrevogaacutevel pela verdade que seria o traccedilo distintivo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica ateacute Nietzsche eacute considerado aqui o valor mesmo que eacute questionado na

filosofia nietzschiana

A filosofia contra a qual Nietzsche e seu conceito de filoacutesofo querem secolocar eacute uma filosofia que acima de tudo reflete sobre duas coisassobre a verdade e sobre o correto proceder (rechte Handeln) Por isso eacuteimportante refletir que a autocompreensatildeo contra a qual Nietzsche sevolta deve ser entendida em seu caraacuteter duplo A busca pela verdadedeve em si mesma ser considerada um valor Sem questionamentoacerca de se em cada caso este impulso para a verdade corresponderia aum procedimento correto A esse respeito diz Nietzsche o que o filoacutesofocomo ele o entende deveria fazer ldquoconhecer o que eacute necessaacuterio fazerrdquo(SIMON 1992 paacuteg 02 grifo do autor)

Segundo Simon a filosofia nietzschiana aquela que o autor pressupotildee como sendo

a filosofia a ser adotada pelos filoacutesofos do futuro deveria estar relacionada ao problema do

valor mesmo da verdade Na leitura do autor verdade e valor vatildeo de matildeos dadas na

filosofia nietzschiana na medida em que esta se mostraria como uma profunda reflexatildeo

acerca dos fundamentos do correto agir Pois para Nietzsche natildeo haacute nenhum conhecimento

puro o qual por meio de uma verdade pura nos seria acessiacutevel

Segundo a compreensatildeo de Simon a negaccedilatildeo de uma forma pura de conhecimento

significa na filosofia nietzschiana que o conhecimento natildeo pode ser libertado de seus preacute-

conceitos filosoacuteficos de sua visatildeo filosoacutefica de seus necessaacuterios ldquofundamentos iniciaisrdquo

Em comparaccedilatildeo agraves valoraccedilotildees nele contidas natildeo pode haver liberdade de avaliaccedilatildeo mas

apenas uma transvaloraccedilatildeo Por meio dessa transvaloraccedilatildeo atraveacutes da qual a filosofia

dominaria a ciecircncia em um tal sentido que permaneceria capaz de reavaliar suas

ldquoconcepccedilotildeesrdquo de base fixa ldquorestringirrdquo o ldquoilimitado instinto de conhecimento da unidade

(SIMON 1992 paacuteg 02) No entanto se compreendermos que o valor da verdade nessa

leitura seu valor moral em contraposiccedilatildeo ao seu valor para a constituiccedilatildeo de uma

250

estrateacutegia que propicia a ampliaccedilatildeo da potecircncia da vida eacute uma questatildeo fundamental que

conecta as concepccedilotildees nietzschianas de juventude agraves suas concepccedilotildees de maturidade

sobretudo por meio de uma consideraccedilatildeo do sentido tradicional de verdade e sua relaccedilatildeo

com as exigecircncias mesmas da vida estariacuteamos entatildeo de posse de um eixo de interpretaccedilatildeo

fundamental para caracterizar o posicionamento nietzschiano acerca do conhecimento e

em consequecircncia o fundamento do julgamento nietzschiano negativo em relaccedilatildeo agraves

concepccedilotildees morais

Desta maneira se as conclusotildees apresentadas por Nietzsche em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia na maturidade de seu pensamento a

verdade enquanto valor de manutenccedilatildeo da vida eacute confrontada com uma caracterizaccedilatildeo da

perspectiva como elemento de fortalecimento da vida Ainda segundo esta leitura valores

de manutenccedilatildeo da vida assumiriam uma posiccedilatildeo inferior com relaccedilatildeo aos valores de

fortalecimento da vida

Esta forma de compreensatildeo do problema dos valores jaacute aparece em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira onde uma das funccedilotildees primordiais da linguagem seria a criaccedilatildeo

de hierarquias Por sua vez no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia que em grande medida

retoma os argumentos apresentados no ensaio vemos Nietzsche novamente estabelecer a

cadeia de comando como uma das principais motivaccedilotildees para a criaccedilatildeo da linguagem Esta

ideia retornaraacute ainda em Genealogia da Moral na ideia da relaccedilatildeo conflituosa entre o

senhor e o escravo assim como na reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da

revoluccedilatildeo dos escravos Nestas passagens da obra nietzschiana uma mesma ideia eacute trazida

agrave luz a ideia de que as hierarquias de valor satildeo os instrumentos por meio dos quais se

estabelecem as relaccedilotildees de comando Por outro lado esta ideia aparece na filosofia

nietzschiana como reflexo de sua compreensatildeo da funccedilatildeo primordial do poder criativo

humano como algo relacionado agrave criaccedilatildeo de valores

Segundo esta leitura o proacuteprio niilismo considerado uma forma de ordenaccedilatildeo

cultural segundo a premecircncia de valores que se desvalorizam que perdem sua vitalidade

por forccedila de seu uso continuado refletiria ainda algo da ideia traduzida por Nietzsche na

imagem dos conceitos como moedas que perdem seu troquel e que passam a valer como

metal e natildeo mais como moedas Assim como os conceitos enquanto formas enfraquecidas

251

das intuiccedilotildees originaacuterias conserva ainda algo do potencial criativo inerente agrave organizaccedilatildeo

humana os valores de decadecircncia do niilismo seriam tambeacutem ao fim e ao cabo

expressotildees desse potencial Mas que apropriados por uma constituiccedilatildeo fisioloacutegica doente

expressam-se por meio da negaccedilatildeo mesma de seu elemento criativo que daacute lugar a uma

exaltaccedilatildeo de uma ilusoacuteria origem extramundana

Em outras palavras na medida em que a humanidade tornando-se cada vez mais

linguiacutestica cada vez mais dependente de uma realidade conceitual deixa de lado a

capacidade de constituir valores afirmativos abandona a potecircncia primordial de sua funccedilatildeo

criativa e passa a reproduzir valores com base em uma hierarquia da decadecircncia Por sua

vez o perspectivismo representaraacute a tentativa nietzschiana de revalidar a capacidade

criativa por meio da exposiccedilatildeo do caraacuteter artiacutestico existente em todo conhecimento Nesta

leitura o perspectivismo passaria a ser visto como tendo seus fundamentos na crenccedila de

que a criaccedilatildeo de valores eacute uma atividade inerente agrave organizaccedilatildeo humana

O problema da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal como este problema foi

apresentado na filosofia de juventude nietzschiana visto retrospectivamente pelo autor no

prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia representaria a tentativa dogmaacutetica de

estabelecer valores universais Desta maneira esta concepccedilatildeo de conhecimento passa a ser

compreendida como o contra perspectivismo por excelecircncia Eacute com base nesse tipo de

reflexatildeo acerca do conhecimento que Nietzsche jaacute no acima mencionado prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia trataraacute lado a lado o problema do pessimismo e a tentativa

socraacutetica de soluccedilatildeo do problema

E a ciecircncia mesma a nossa ciecircncia ndash sim o que significa em geralencarada como sintoma da vida toda a ciecircncia Para que pior ainda deonde ndash toda ciecircncia Como Eacute a cientificidade talvez apenas um temor euma escapatoacuteria ante o pessimismo Uma suacutetil legiacutetima defesa contra ndash averdade E amoralmente uma astuacutecia Oacute Soacutecrates Soacutecrates foi esteporventura o teu segredo ironista misterioso foi esta porventura a tuandash ironia (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14)

Com isso o autor que reflete acerca de sua obra de estreia com olhos voltados para

os problemas da maturidade do seu pensamento aponta para a insuficiecircncia de uma

concepccedilatildeo de conhecimento racionalista frente ao crescente pessimismo o niilismo

252

extremo oriundo da compreensatildeo da ausecircncia de valores na proacutepria existecircncia Nessa

reflexatildeo tardia acerca de seu pensamento de juventude o autor reflete acerca do otimismo

da razatildeo que eacute apresentada aqui como expressatildeo desesperada de cansaccedilo de ldquoinstintos que

se dissolvem anaacuterquicosrdquo (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14) Nesse sentido todo o

empreendimento cientiacutefico expresso aqui em um questionamento pela ldquonossa ciecircnciardquo eacute

tomado pelo autor com suspeita

Nessa reflexatildeo em que Nietzsche identifica como um dos problemas fundamentais

de O Nascimento da Trageacutedia o problema da ciecircncia e sua relaccedilatildeo com a arte a criaccedilatildeo

artiacutestica eacute concebida como a atitude humana que permitiria a superaccedilatildeo do pessimismo

inerente agrave existecircncia De tal maneira que a arte enquanto atitude superior a toda forma de

racionalizaccedilatildeo passaria a ser identificada como o local mesmo em que a ciecircncia deveria

ser pensada Posto que a ciecircncia mesma parece natildeo estar afeita a fazer sua criacutetica Mas a

arte por sua vez deveria se submeter ela tambeacutem a uma instacircncia superior tendo apenas

a vida como criteacuterio de julgamento

Estas satildeo por fim as caracteriacutesticas de uma filosofia perspectivista tal como

Nietzsche poderia tecirc-la formulado Uma compreensatildeo artiacutestica do valor que se potildee acima

da ciecircncia posto que deve determinar seu valor a partir de uma avaliaccedilatildeo das exigecircncias da

vida Assim se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas em sua filosofia de juventude nos potildee diante de uma forma de

niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo apenas ao niilismo

mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento

conduziria o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo Este niilismo exuberante surge em

consequecircncia da compreensatildeo de que desde que estamos diante de uma infinita

possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar aberto o homem pode assumir a

funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch schaffendes Subjekt segundo a

terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA 1 p 883]) Isto porquecirc ao nos

darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo humana nos descobrimos que

ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM V sect192) O oposto ao niilismo

deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano entendido como a afirmaccedilatildeo de

253

uma incondicional vontade de criar que se subleva na filosofia nietzschiana como

expressatildeo de uma tentativa de combater os valores de decadecircncia

254

5 Conclusatildeo

A compreensatildeo do conhecimento que encontramos entre as uacuteltimas reflexotildees

nietzschianas enquanto postura que nega as certezas e que retira da existecircncia qualquer

sentido e finalidade preacute-determinados qualquer essecircncia a ser desvendada associa-se a

uma anaacutelise da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores interna agraves concepccedilotildees metafiacutesicas

constituindo-se em uma postura acerca do conhecimento em que eacute negada a possibilidade

de se atingir verdades uacuteltimas e absolutas Assim a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

realidade como vontade de potecircncia configura um mundo em que a existecircncia de fatos em

si eacute aniquilada Nessa leitura todo acontecimento seria decorrecircncia do jogo de forccedilas que

buscam se afirmar a todo custo Desta maneira natildeo haacute acontecimentos modelos nem

nenhuma forma de previsatildeo dos acontecimentos Pois para o filoacutesofo antes que um fato

seja percebido ele precisa ser projetado pela dinacircmica das forccedilas interna agrave vontade de

potecircncia

Sob a luz dessa compreensatildeo podemos ver que a criacutetica nietzschiana agrave moral e agrave

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento satildeo consequecircncias de uma compreensatildeo estrutural

acerca da muacutetua relaccedilatildeo entre valor e conhecimento Nesse sentido a criacutetica nietzschiana agrave

moral apareceria como uma consequecircncia da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees

tradicionais de conhecimento e verdade E estas em consequecircncia da criacutetica nietzschiana agrave

concepccedilatildeo tradicional de valor

Acima de tudo eacute a pretensatildeo de um conhecimento desinteressado que estaacute em jogo

nestas criacuteticas Para o filoacutesofo um conhecimento orientado pelos instintos errados perverte

no pesquisador a noccedilatildeo de utilidade Assim o instinto que motiva o pesquisador asceacutetico

conduziria agrave formulaccedilatildeo de um mundo de estabilidade que surge da negaccedilatildeo do mundo

aparente fazendo parecer o conhecimento de verdades uacuteltimas mais necessaacuterio do que o

conhecimento das aparecircncias

255

Suponha que um desejo corporal de contradiccedilatildeo e anti-natureza sejalevado a filosofar sobre o que ele vai perder seu iacutentimo arbitraacuteria Emque o mais seguro de todos para ser verdade eacute percebido como real eleestaacute procurando o erro apenas quando o verdadeiro instinto de vida averdade atribui agrave maioria absoluta (GMGM Livro III sect12)

Com base nesta compreensatildeo negativa da atuaccedilatildeo do ideal asceacutetico a interpretaccedilatildeo

nietzschiana da natureza do conhecimento configura-se como uma forma de renuacutencia a

qualquer pretensatildeo de verdade definitiva acentuando mesmo que a filiaccedilatildeo entre

conhecimento e a vontade de verdade natildeo seria algo automaacutetico natural mas decorrente da

permanecircncia na histoacuteria do pensamento de uma postura que identifica ambos

procedimentos Ainda segundo esta compreensatildeo criacutetica somente em uma acepccedilatildeo

decadente fraca o conhecimento poderia ser considerado apropriaccedilatildeo da objetividade

desejo de atingir a realidade uacuteltima por traacutes de cada aparecircncia

Posto que conhecer a verdade se torna algo contraditoacuterio na leitura nietzschiana

desde que conhecer aqui significa interpretar segundo os ditames da consciecircncia e nossas

necessidades bioloacutegicas a identificaccedilatildeo que torna redundante a expressatildeo conhecimento da

verdade seria a uacuteltima expressatildeo de um movimento moral decadente em que a busca da

verdade se sobrepotildee agrave pulsatildeo criativa onde a busca de estabilidade se eleva acima do

impulso afirmativo que nos impulsiona a desdobrar a realidade em formas sempre novas

Desta maneira a atividade do pesquisador passa a ser pensada em uma relaccedilatildeo de

proximidade com a atividade artiacutestica em seu caraacuteter criativo em contraposiccedilatildeo ao

procedimento teoacuterico que se norteia pela busca de verdades uacuteltimas A oposiccedilatildeo que

Nietzsche atribui ao pesquisador contemplativo em relaccedilatildeo ao teoacuterico da criaccedilatildeo jaacute

aparece em seu Assim Falava Zaratustra atraveacutes da condenaccedilatildeo da concepccedilatildeo de um

imaculado conhecimento

ldquopara mim seria a coisa mais elevada (assim diz a si mesmo o vosso falsoespiacuterito) olhar a vida sem cobiccedila e natildeo como catildees com a liacutengua de fora

Ser feliz na contemplaccedilatildeo com a vontade morta isento de capacidade ede apetite egoiacutesta frio de corpo mas com os olhos embriagados de luaPara mim seria o melhor (assim se engana a si mesmo o enganado) amara terra como a luz a ama e tocar na sua beleza apenas com os olhos

Eis o que eu chamo o imaculado conhecimento de todas as coisas natildeoquerer das coisas mais do que poder estar diante delasrdquo hipoacutecritas

256

afetados e lascivos Falta-vos a inocecircncia do desejo e por isso caluniais odesejo

Voacutes natildeo amais a terra como criadores como geradores satisfeitos de criar(ZaZA Livro II Do imaculado Conhecimento)

Este aspecto da postura nietzschiana poderia ser confundido com uma espeacutecie de

subjetivismo se jaacute natildeo tiveacutessemos visto por meio da referecircncia aos poacutestumos que

Nietzsche se previne de tal criacutetica ao alegar que jaacute haacute interpretaccedilatildeo ao se subentender um

sujeito que conhece ldquoO lsquosujeitorsquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais inventado posto

por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia

hipoacuteteserdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Ora se Nietzsche rejeita a ideia de um sujeito por

traacutes das interpretaccedilotildees concepccedilatildeo entendida aqui como parte de uma interpretaccedilatildeo que

seguindo os ditames da loacutegica e da gramaacutetica teria sido tornado hegemocircnica134 entatildeo o

perspectivismo natildeo poderia ser confundido com uma teoria subjetivista da verdade

De fato a criacutetica agrave suposiccedilatildeo da categoria de sujeito como algo necessaacuterio para o

processo do conhecimento considerada em contraposiccedilatildeo com a afirmaccedilatildeo da hegemonia

da interpretaccedilatildeo levanta duas perguntas inevitaacuteveis ldquoquem interpretardquo e ldquoaquele que

interpreta interpreta o quecircrdquo Se natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees eacute necessaacuterio

estabelecer o que se interpreta e quem interpreta A resposta nietzschiana a ambas as

questotildees estaacute diretamente relacionada agrave sua teoria da vontade de potecircncia Segundo esta a

interpretaccedilatildeo seria o resultado da atividade de um complexo de forccedilas de pulsotildees que

cada uma por sua vez tem sua proacutepria interpretaccedilatildeo e gostaria de impocirc-la sobre as outras

interpretaccedilotildees

Segundo esta leitura em que seriam nossas necessidades a interpretar a realidade

segundo a pressatildeo de nossa necessidade de sobrevivecircncia cada forccedila tentaria se afirmar

como valor sob as demais forccedilas agrupando-se em comunidades com um objetivo em

comum constituindo na medida deste agrupamento determinadas escalas de avaliaccedilatildeo

Esta ambiccedilatildeo despoacutetica das vontades segundo a qual mesmo a palavra dominaccedilatildeo

apareceria como uma interpretaccedilatildeo paacutelida seria o fundo irracional de toda formaccedilatildeo de

valor

134 De fato parte fundamental da teoria perspectivista acerca do conhecimento se baseia na criacutetica deNietzsche a categoria de sujeito Nesta interpretaccedilatildeo estamos de acordo com a opiniatildeo de Antocircnio Marquesque vecirc no sujeito auto-afirmativo da modernidade a matriz do perspectivismo considerado em sua acepccedilatildeo deteoria do conhecimento em Nietzsche (MARQUES 2003 paacuteg 16)

257

Se um sujeito eacute uma representaccedilatildeo segundo uma certa organizaccedilatildeo das forccedilas entatildeo

toda interpretaccedilatildeo que parte de um sujeito seria uma forma destas forccedilas se imporem como

norma Assim as interpretaccedilotildees satildeo ferramentas atraveacutes das quais cada sujeito tenta

implantar sua forma de ver o mundo cada interpretaccedilatildeo eacute a tentativa de imposiccedilatildeo de um

mundo verdadeiro mas tal interpretaccedilatildeo sempre carrega consigo seu ponto de vista o que

fica impliacutecito quando da associaccedilatildeo de vaacuterias subjetividades que em conjunto tentam

fazer valer como mundo verdadeiro o mundo compartilhado entre tais subjetividades

Desta forma o perspectivismo apareceria como uma forma complexa de especificidade ou

seja como a manifestaccedilatildeo da especificidade de uma certa interpretaccedilatildeo mediante a

consideraccedilatildeo da multiplicidade de forccedilas que atuam em sua formulaccedilatildeo como Nietzsche

nos faz perceber em um poacutestumo de 1888

O perspectivismo eacute soacute uma forma complexa de especificidade - meumodo de ver eacute que cada corpo especiacutefico anseia por tornar-se senhor detodo espaccedilo por estender sua forccedila (-- sua vontade de poder) e repelirtudo que obsta agrave sua expansatildeo Mas ele se depara continuamente com omesmo ansiar de outros corpos e termina por arranjar-se (ldquounificar-serdquo)com aqueles que lhe satildeo aparentados o bastante ndash assim eles conspiramentatildeo juntos pelo poder E o processo segue adiante (NFFP 188814[186])

Decorre da passagem citada que na organizaccedilatildeo das pulsotildees que tentam se

estabelecer como estruturas determinantes em um processo de assimilaccedilatildeo da realidade

surgem novas interpretaccedilotildees que tentam impor-se como verdade uacuteltima Seria desse modo

por exemplo que o pensamento filosoacutefico compreendendo o sujeito como estrutura

fundamental da psique humana associa-se ao pensamento fiacutesico que estipula o aacutetomo

como estrutura fundamental da mateacuteria Ambas as interpretaccedilotildees satildeo oriundas de um

mesmo impulso a verdade definitiva e estaacutevel que na filosofia nietzschiana natildeo se

encontra em parte alguma da realidade Assim ele nega tanto o aacutetomo quanto o sujeito

atocircmico denunciando-os como interpretaccedilotildees grosseiras de um processo muito mais

complexo Mas se de fato ocorre dessa forma entatildeo sempre restaraacute a duacutevida de se o

perspectivismo enquanto ela mesma uma representaccedilatildeo complexa da especificidade de

suas conclusotildees deveria ou natildeo ser aceito como posiccedilatildeo verdadeira

258

Do mesmo modo apesar de a validade do perspectivismo enquanto posiccedilatildeo acerca

do conhecimento permanecer inalterada em face do caraacuteter interpretativo de suas

conclusotildees parece persistir a contradiccedilatildeo entre a aceitaccedilatildeo da validade das posiccedilotildees

oriundas do ascetismo cientiacutefico e sua condenaccedilatildeo moral que eacute proacutepria do perspectivismo

A oposiccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano para com o ideal asceacutetico se daria por

meio da anaacutelise genealoacutegica do ideal asceacutetico que o filoacutesofo executa nas trecircs dissertaccedilotildees

que compotildee a Genealogia da Moral

Nesta anaacutelise genealoacutegica o filoacutesofo filia o comportamento de negaccedilatildeo da

corporeidade o caraacuteter mais imediato da vida ao meacutetodo de pesquisa e criteacuterio de validade

que fundamentam a ciecircncia positiva e o pensamento metafiacutesico Desta maneira na medida

em que sua reflexatildeo pretende oferecer uma reavaliaccedilatildeo dos princiacutepios do ideal asceacutetico

seu perspectivismo oferece-se justamente como uma exaltaccedilatildeo do corpo A contraposiccedilatildeo

nietzschiana ao ideal asceacutetico passaria entatildeo a fundamentar-se nesta exaltaccedilatildeo da

corporeidade de onde sua contraposiccedilatildeo agrave tal postura mediante a especulaccedilatildeo de uma

atividade cientiacutefica e filosoacutefica seria contraacuteria aos princiacutepios desta Ou seja se a

condenaccedilatildeo moral do ideal asceacutetico se fundamenta em uma investigaccedilatildeo desse segundo os

princiacutepios do perspectivismo nietzschiano entatildeo esta condenaccedilatildeo natildeo pode ser tomada

como tendo um fundamento verdadeiro mas apenas um fundamento especiacutefico relacional

A criacutetica ao ideal asceacutetico assim como a descriccedilatildeo de seus fundamentos como

parte do perspectivismo nietzschiano natildeo poderia ser aceito como certeza mas apenas

como manifestaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica gestada a partir dos valores que

norteiam a reflexatildeo nietzschiana Esta contradiccedilatildeo soacute pode ser solucionada aparentemente

pela consideraccedilatildeo de uma opiniatildeo especiacutefica de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave postura

metafiacutesicocientiacutefica e sua adesatildeo ao programa asceacutetico Por outro lado esta posiccedilatildeo eacute

suportada pelo caraacuteter experimental de toda filosofia nietzschiana

A concepccedilatildeo nietzschiana de experimentalismo supotildee que nesse caso natildeo se trata

tanto de se colocar em uma perspectiva mais elevada mas de deslocar perspectivas poder

se movimentar entre interpretaccedilotildees divergentes com certa liberdade A esse respeito

Muumlller-Lauter esclarece que Nietzsche baseado no constante questionar de todas as suas

posiccedilotildees eacute levado a assumir o caraacuteter experimental de sua filosofia sem com isso rejeitar

sua validade Atraveacutes das perguntas fundamentais sobre a validade e alcance das posiccedilotildees

nietzschianas Muumlller-Lauter representa a posiccedilatildeo experimental do pensamento

259

nietzschiano como a inclusatildeo de sua filosofia enquanto interpretaccedilatildeo vaacutelida entre outras

interpretaccedilotildees vaacutelidas

A perspectividade de toda interpretaccedilatildeo torna-se um problema que porfim ricocheteia sobre o proacuteprio filosofar nietzschiano quando pensamosque entre as inumeraacuteveis interpretaccedilotildees de um texto natildeo haacute ldquonenhumainterpretaccedilatildeo lsquocorretarsquordquo Natildeo temos qualquer direito de admitir umldquoconhecedor absolutordquo ldquoo caraacuteter perspectivo enganoso pertence agraveexistecircnciardquo Entatildeo toda explicaccedilatildeo do mundo eacute tambeacutem umainterpretaccedilatildeo perspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos doque aquela que compreende todo acontecer do mundo como o caos devontade de poder cooperantes e combatentes Em consequecircncia disso ldquoordquomundo concebido como uma soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeoperspectivista do mundo ao lado de inuacutemeras outras Em face dafundamental relatividade de explicar-o-mundo o que poderia ser aduzidoem favor da ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiano (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacuteg 126)

Se natildeo haacute algo como uma posiccedilatildeo definitiva nem em se tratando do conhecimento

nem em se tratando de nada mais entatildeo em nosso agir limitado soacute nos caberia o papel

experimental segundo o qual vivemos para testar possibilidades sem garantias de soluccedilatildeo

de problemas teoacutericos Nesta leitura a preocupaccedilatildeo fundamental de um pesquisador

comprometido com a vida natildeo pode ser a sua elucidaccedilatildeo definitiva mas a praacutetica de

meacutetodos que lhe possibilitem experimentar um maior contato com a vida atraveacutes do

sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia Assim concordamos com o modo de ver de Scarlet

Marton para quem o pensamento nietzschiano natildeo pode ser analisado independentemente

de seu caraacuteter experimental Posto que aqui se trataria de uma postura frente ao

conhecimento e sua relaccedilatildeo com a vida que justifica o experimentalismo de sua filosofia

assim como sua opccedilatildeo pelo meacutetodo de escrita que o filoacutesofo adotou

Ora perspectivismo e experimentalismo estatildeo de certa formarelacionados Tanto Loumlwith quanto Kaufmann ressaltam o caraacuteterfundamentalmente experimental do pensamento nietzschiano e insistemno fato de o filoacutesofo ter colocado o estilo aforismaacutetico a serviccedilo de seuexperimentalismo Os aforismos tentativas renovadas de refletir sobrealgumas questotildees possibilitariam experimentos com o proacuteprio pensarSatildeo vaacuterios os textos em que Nietzsche convida o leitor agrave experimentaccedilatildeoseja por entender que noacutes humanos natildeo passamos de experiecircncias ou por

260

acreditar que natildeo nos devemos furtar a fazer experiecircncias com noacutesmesmos Em Para aleacutem de bem e mal refere-se aos novos filoacutesofos comoexperimentadores como os que tecircm o dever ldquodas cem tentativas das cemtentaccedilotildees da vidardquo E num fragmento poacutestumo chega a declarar ldquosempreescrevi minhas obras com todo o meu corpo e minha vida ignoro o quesejam problemas lsquopuramente espirituaisrsquordquo (IX 4 (285)) Concebendo avida como possibilidade de ldquoexperimentaccedilatildeo de conhecimentordquo percorremuacuteltiplos caminhos (MARTON 1990 paacuteg 22)

Nietzsche daacute exemplo de sua consideraccedilatildeo experimental acerca do conhecimento

atraveacutes de sua proacutepria praacutetica filosoacutefica que lhe levou a optar por uma forma de expressatildeo

contraacuteria a todas as determinaccedilotildees uacuteltimas o que confere a seus trabalhos o caraacuteter de pilha

de escombros sobretudo se comparado com os elegantes edifiacutecios teoacutericos da tradiccedilatildeo

metafiacutesica Sua assistematicidade e sua opccedilatildeo pelo aforismo satildeo exemplos vivos da

atividade de uma mente inquieta que jamais procurou a calma de determinaccedilotildees absolutas

mas que fez de sua filosofia um manifesto de uma praacutetica experimental plena e afinada

com sua vida nocircmade Nesse sentido Schacht conclui que

A abordagem perspectivista de Nietzsche estaacute ligada ao caraacuteterexperimental que segundo ele esse tipo de pensamento filosoacutefico possuiO problema eacute tratado pelo filoacutesofo de forma experimentalmenteprovisoacuteria e aberta A conclusatildeo de seus argumentos a respeito deproblemas especiacuteficos em quaisquer de seus trabalhos nunca eacute completaou final pois permanece sempre aberta agrave revisatildeo quando investigaccedilotildeesposteriores forem conduzidas envolvendo outras abordagens quepoderiam iluminar ainda mais a questatildeo135 (SCHACHT 1996 Paacuteg154)

Assim sua filosofia em seu caraacuteter mais refinado enquanto pensamento acerca do

valor da verdade ou seja da verdade vista como valor requer uma nova visatildeo do

verdadeiro onde a crenccedila no mundo ideal no ldquomundo verdadeirordquo comportaria a maior

falsidade a mais grosseira covardia e assim se torna o erro por excelecircncia A coragem de

que deve ser dotado todo pesquisador se mede pela sua sauacutede sua sauacutede pela sua toleracircncia

135 ldquoNietzsches perspectivist approach is connected with the ldquoexperimentalrdquo character he ascribes to hiskind of philosophical thinking His treatment of problems is avowedly merely provisional and openended Theupshot of what he has to say about specific problems in any of these works is never complete and final for italways remains open to revision when subsequent investigations are undertaken involving yet otherapproaches that may shed further light upon themrdquo

261

a verdade como renuacutencia a todo finalismo a toda acircnsia pelo conhecimento verdadeiro A

verdade se encontra sempre aleacutem no proibido para onde tendem os ldquosem medordquo

Quanta verdade suporta quanta verdade ousa um espiacuterito Cada vez maispara mim tornou-se isso a medida de valor Erro (a crenccedila no ideal) natildeo eacutecegueira erro eacute covardiacada conquista cada passo adiante noconhecimento eacute consequecircncia da coragem da dureza consigo da limpezaconsigohellip eu natildeo refuto os Ideais apenas ponho luvas diante delesNitimur in vetitum com esse signo venceraacute um dia minha filosofia poisateacute agora proibiu-se em princiacutepio somente a verdade (EHEH Proacutelogosect 2)

O perspectivismo torna-se assim uma descriccedilatildeo provisoacuteria das concepccedilotildees de

verdade e conhecimento que pode ser extraiacuteda do pensamento nietzschiano e que supotildee a

fragilidade de qualquer postulaccedilatildeo de verdades Por isso esta interpretaccedilatildeo natildeo pretende

ser definitiva mas reconhece na impossibilidade de se chegar a uma resposta definitiva um

elemento fundamental da eacutetica da pesquisa o uacuteltimo teste para o pesquisador realmente

comprometido com a pesquisa

A proacutepria distinccedilatildeo moral entre bem e mal nada mais representaria assim do que

um esquecimento do caraacuteter perspectivo desses valores da desconsideraccedilatildeo da atuaccedilatildeo da

capacidade criativa que eacute natildeo apenas a principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo de valores mas a

principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo da proacutepria realidade de seu tornar-se real Dado que o

mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo que aqui natildeo se distingue mais da criaccedilatildeo do

mundo e com ele do proacuteprio homem o reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo como a

aceitaccedilatildeo de que natildeo podemos evitar o fato de que nossa atividade confere valor agrave

realidade porque nossa proacutepria realidade incluiacutedos noacutes mesmos dependemos da avaliaccedilatildeo

em um niacutevel fundamental Assim seja como elemento mais fundamental da constituiccedilatildeo

humana seja como caraacuteter mesmo da existecircncia a criaccedilatildeo se sobrepotildee aos valores posto

que lhes eacute anterior Se essa avaliaccedilatildeo por sua vez apenas se realiza mediante a

perspectividade que eacute o caraacuteter mesmo da existecircncia entatildeo a perspectiva aparece ao lado

da vida como valor fundamental para o homem

Como se vecirc esta compreensatildeo da moral se distancia de toda concepccedilatildeo moral que

pressupotildee o conhecimento do bem e do mal que pressupotildee haver encontrado esse

conhecimento fora de si O moralista dogmaacutetico aqui age como um criador que ignora sua

262

criaccedilatildeo ou que tenciona fazecirc-la passar como proacuteprio reflexo de uma realidade superior

Tambeacutem por isso toda caracterizaccedilatildeo do bem e do mal como coisas em si como ideias

normativas seriam falsificaccedilotildees da realidade do criar Pois valores mesmo os valores

morais apenas podem ser concebidos como criaccedilotildees nunca como realidades

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir E eacute este conhecimento que se revela a Zaratustra como um

despertar de uma crenccedila que adormece e que conduz agrave superaccedilatildeo dos antigos valores da

antiga distinccedilatildeo do bem e mal como algo fixo independente de interpretaccedilatildeo Em

contraposiccedilatildeo agrave crenccedila na fixidez das concepccedilotildees acerca do bem e do mal o profeta do

super-homem ensina ldquoSoacute o que cria o fim dos homens e o que daacute o sentido e futuro agrave terra

soacute esse cria o bem e o mal de todas as coisasrdquo (ZAZa III Das antigas e novas taacutebuas

sect2) Esta contraposiccedilatildeo fundamental entre uma moral dogmaacutetica e uma moral como

reconhecimento das superaccedilotildees de cada povo oferece um modelo de como se relacionam

no pensamento nietzschiano sua concepccedilatildeo perspectivista e sua criacutetica a uma concepccedilatildeo

dogmaacutetica de conhecimento

E seraacute esse mesmo ldquocriar o fim dos homensrdquo que relacionando-se intimamente com

a capacidade criativa por traacutes da formaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que compotildeem as diferentes

perspectivas que daraacute margem agrave concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento como criaccedilatildeo

Assim considerados todos os principais conceitos da obra nietzschiana na melhor das

hipoacuteteses como hipoacuteteses e na pior delas como produtos de uma atividade poeacutetica inerente

a toda accedilatildeo humana tal qual qualquer obra de arte como considerar com seriedade seu

pensamento Tudo sendo dito se toda verdade eacute abandonada por Nietzsche qual poderia

ser sua doutrina Resta ainda algo que se possa chamar uma doutrina em seu pensamento

Aqui seria preciso ouvir o autor

Qual pode ser a nossa doutrina ndash Que ningueacutem daacute ao ser humano suascaracteriacutesticas nem Deus nem a sociedade nem seus pais e ancestraisnem ele proacuteprio (ndash o contra-senso dessa uacuteltima ideia rejeitada foi

263

ensinado como lsquoliberdade inteligiacutevelrsquo por Kant e talvez jaacute por Platatildeo)Ningueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado porse achar nessas circunstacircncias nesse ambiente A fatalidade do seu sernatildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacute Ele natildeo eacuteconsequecircncia de uma intenccedilatildeo uma vontade uma finalidade proacutepriascom ele natildeo se faz a tentativa de alcanccedilar um lsquoideal de ser humanorsquo ouum lsquoideal de felicidadersquo ou um lsquoideal de moralidadersquo ndash eacute absurdo quererempurrar o seu ser para uma finalidade qualquer Noacutes eacute que inventamos oconceito de lsquofinalidadersquo na realidade natildeo se encontra finalidadehellip Cadaum eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndashnatildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser poisisto significaria julgar medir comparar condenar o todohellip Mas natildeoexiste nada fora do todo ndash O fato de que ningueacutem mais eacute feitoresponsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causaprima de que o mundo natildeo eacute uma unidade nem como sensorium nemcomo lsquoespiacuteritorsquo apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacutenovamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-serhellip O conceito de lsquoDeusrsquofoi ateacute agora a maior objeccedilatildeo agrave existecircnciahellip Noacutes negamos Deus noacutesnegamos a responsabilidade em Deus apenas assim redimimos o mundondash (GDCI VI sect8)

Por fim natildeo faria sentido a defesa de uma doutrina do perspectivismo dentro da

filosofia nietzschiana porque o filoacutesofo mesmo rejeita o valor de toda doutrina Em outras

palavras o filoacutesofo compreende que verdade e o erro natildeo estatildeo colocados de uma vez por

todas no real Pois jaacute em sua filosofia de juventude conclui que a realidade natildeo possui

ordem ou desordem Assim o mundo se o considerarmos em si mesmo independente do

homem natildeo eacute afeito a coisas como erro verdade mentira bem ou mal

O que Nietzsche reconhece como sua uacuteltima doutrina eacute a inocecircncia do devir sua

falta de propoacutesito Para tanto o autor se prende agrave ideia de uma inexistecircncia absoluta de um

ser absoluto ou uma existecircncia fora do todo que eacute o acircmbito do perspectivo Nessa leitura a

realidade natildeo possuiria valor em si valores natildeo-humanos Todo valor eacute decorrecircncia da

atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo com interpretaccedilotildees muito

proacuteprias ligadas desde sua origem agrave ordem de suas necessidades Por isso o filoacutesofo afirma

ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie () traz entatildeo um esplecircndido cortejo de

motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer esquecer que no fundo eacute impulso instinto

tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1) Assim Nietzsche concebe o mundo como uma

decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se

carregado de sentido a partir da existecircncia humana

264

Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto seria por

definiccedilatildeo sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana

natildeo eacute guiada por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima

instacircncia a accedilatildeo humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento Nessa

leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a finalidade a

moralidade o sentido satildeo tomados pro Nietzsche com instacircncias do instinto de

conservaccedilatildeo nos seres humanos

Se natildeo haacute por fim um sentido uacuteltimo para o homem entatildeo os diferentes valores

natildeo passam de padronizaccedilotildees humanas inexistentes no mundo mesmo Pois como nos diz

o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a

relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e

entremesclar nas coisas esse mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre

fizemos ou seja mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim

a uma atribuiccedilatildeo humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de

sobrevivecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

Em Nietzsche de modo contraacuterio agravequele da tradiccedilatildeo ocidental de pensamento a

crenccedila se torna mais importante do que a verdade O valor da verdade em sua leitura

estaria vinculado agrave vida e seu fortalecimento que dependem mais fundamentalmente da

crenccedila do que na verdade contida nela Neste sentido desde que o filoacutesofo entende que a

condiccedilatildeo de tudo que vive eacute a perspectividade julga mais provaacutevel encontrar a verdade na

pluralidade de perspectivas do que na hipoacutetese de uma verdade imoacutevel apartada das

condiccedilotildees em que a vida mesma teria se originado e evoluiacutedo Por esta razatildeo Nietzsche

entende toda tentativa de aproximaccedilatildeo da verdade das filosofias anteriores como o esforccedilo

frustrado de captar uma objetividade inexistente em si que apenas pode existir na

totalidade de perspectivas que por sua vez seria inapreensiacutevel

Mas se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas especialmente em sua filosofia de juventude nos potildee diante

de uma forma de niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo

apenas ao niilismo mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento conduziria

265

o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo

Este niilismo exuberante surge em consequecircncia da compreensatildeo de que desde que

estamos diante de uma infinita possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar

aberto o homem pode assumir a funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch

schaffendes Subjekt segundo a terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA

1 p 883]) Isto porquecirc ao nos darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo

humana noacutes descobrimos que ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM

V sect192) O oposto ao niilismo deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano

entendido como a afirmaccedilatildeo de uma incondicional vontade de criar que se subleva nesse

pensamento como expressatildeo de uma tentativa de combater os valores do niilismo

266

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276

Erklaumlrung

Hiermit versichere ich an Eides statt dass ich die vorliegenden Dissertation selbststaumlndig

und ohne unzulaumlssige Inanspruchnahme Dritter verfasst habe Ich habe dabei nur die

angegebenen oder unveroumlffentlichten Quellen und Hilfsmittel verwendet und die aus

diesen woumlrtlich inhaltlich oder sinngemaumlszlig entnommenen Stellen als solche den

wissenschaftlichen Anforderungen entsprechend kenntlich gemacht Die Versicherung

selbststaumlndiger Arbeit gilt auch fuumlr Zeichnungen Skizzen oder graphische Darstellungen

Die Arbeit wurde in gleicher oder aumlhnlicher Form weder derselben noch einer anderen

Pruumlfungsbehoumlrde vorgelegt und auch noch nicht veroumlffentlicht Mit der Abgabe der

elektronischen Fassung der endguumlltigen Version der Arbeit nehme ich zur Kenntnis dass

diese mit Hilfe eines Plagiatserkennungsdienstes auf enthaltene Plagiate uumlberpruumlft und

ausschlieszliglich fuumlr Pruumlfungszwecke gespeichert wird Es ist mir bekannt dass wegen einer

falschen Versicherung bereits erfolgte Promotionsleistungen fuumlr unguumlltig erklaumlrt werden

und eine bereits verliehene Doktorwuumlrde entzogen wird

Fortaleza 03 de Abril de 2019

_________________________________________________

Joatildeo Pereira da Silva Neto

Kandidat fuumlr Promotion in Philosophie an der Federal University of Cearaacute und Kandidat

fuumlr Promotion in Philosophie bei Fakultaumlt fuumlr Kultur und Sozialwissenschaften von der

FernUniversitaumlt in Hagen

277

Page 2: A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas

JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO

A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DAS PERSPECTIVAS

FERNUNIVERSITAumlTHAGEN

JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO

A PERSPECTIVA DO VALOR

E O VALOR DAS PERSPECTIVAS

FORTALEZA

2019

Tese apresentada como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia junto

ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Instituto de Cultura e Arte - ICA

Universidade Federal do Cearaacute ndash UFC

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Conhecimento e

Linguagem

A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DASPERSPECTIVAS

DISSERTATION

zur Erlangung

des akademischen Grades eines Doktors der Philosophie (Dr phil) im Rahmen des FILORED-Doppelpromotionsprogramms

der Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissenschaften der FernUniversitaumlt in Hagen sowie der Universidade Federal do Cearaacute Instituto de Cultura e Arte

Programa de Poacutes-graduacatildeo em Filosofiacutea

vorgelegt von

Joatildeo Pereira da Silva Neto

aus Fortaleza

Betreuer Prof Dr Thomas Soumlren Hoffmann (Hagen)Prof Dr Fernando R de Moraes Barros (Fortaleza)

Promotionsfach Philosophie

RESUMO

A presente tese tem por objetivo uma investigaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas acerca da

verdade e do conhecimento tomando como eixos de investigaccedilatildeo o problema dos valores e

a relaccedilatildeo entre a perspectiva e a vida no pensamento nietzschiano Esta investigaccedilatildeo que

partindo dos textos de juventude nietzschianos chega ateacute seus uacuteltimos escritos poacutestumos

acompanha o entrelaccedilamento das conclusotildees nietzschianas acerca da concepccedilatildeo tradicional

de verdade e o niilismo Nesta leitura o conhecimento aparece como uma forma de

atividade humana que passa por uma reavaliaccedilatildeo a partir das conclusotildees nietzschianas

acerca da necessidade de se superar o niilismo Para Nietzsche a concepccedilatildeo de

conhecimento tradicional estaria fundada em valores que satildeo produzidos a partir da

necessidade de conservaccedilatildeo da espeacutecie humana entendidos pelo filoacutesofo como

ineficientes para sobrepujar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores Assim a menos que

a ciecircncia e a filosofia se libertassem das amarras de uma concepccedilatildeo de verdade e

conhecimento que culminaria na imobilizaccedilatildeo da vontade todo procedimento filosoacutefico e

cientiacutefico estaria fadado a uma corrupccedilatildeo inevitaacutevel de seus fundamentos e valor O

perspectivismo eacute entendido aqui como a caracteriacutestica fundamental de uma forma de se

fazer filosofia que afastando-se do dogmatismo da filosofia tradicional e da ciecircncia

aproxima-se de uma forma de arte Desta maneira o perspectivismo nietzschiano teria na

criaccedilatildeo dos valores seu objeto fundamental Assim com base na pressuposiccedilatildeo de uma

futura filosofia dos valores que tem seus fundamentos na compreensatildeo da perspectiva

como atitude comprometida com valores de fortalecimento da vida o filoacutesofo procura

contrapor-se agrave hegemonia da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento que tem seus

fundamentos em valores de decadecircncia

Palavras chave Verdade conhecimento perspectiva valor perspectivismo

ABSTRACT

The aim of this thesis is to investigate Nietzschersquos conceptions about truth and knowledge

taking the problem of values and the relation between perspective and life in Nietzschersquos

thinking as research axes This research starting from the Nietzschean texts of youth

reaches its last posthumous writings accompanying the interweaving of the Nietzschean

conclusions about the traditional conception of truth and nihilism In this reading

knowledge appears as a form of human activity that undergoes a reappraisal based on the

Nietzschean conclusions about the need to overcome nihilism For Nietzsche the

conception of traditional knowledge would be based on values that are produced from the

need of conservation of the human species that are understood by the philosopher as

inefficient to overcome the value devaluation process Thus unless science and philosophy

were freed from the bonds of a conception of truth and knowledge that would culminate in

the immobilization of the will every philosophical and scientific procedure would be

doomed to an unavoidable corruption of its foundations and value Perspectivism is

understood here as the fundamental characteristic of a way of making philosophy which

moving away from the dogmatism of traditional philosophy and science approaches itself

of an art form In this way the Nietzschean perspectivism would have in the creation of

values its fundamental object Thus based on the presupposition of a future philosophy of

values which has its foundations in the understanding of perspective as an attitude

committed to life-strengthening values the philosopher seeks to opposite itself to the

hegemony of the traditional conception of knowledge which has its foundations in values

of decadence

Keywords Truth knowledge perspective value perspectivism

Iacutendice

Introduccedilatildeo10

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia21

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica28

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia38

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica52

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana68

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral74

21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira78

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade92

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor108

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana113

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo124

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor143

31 O niilismo como crise dos valores morais146

32 Os niilismos nietzschianos150

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade162

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo177

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar192

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo203

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas215

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade219

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores228

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas238

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva245

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo250

5 Conclusatildeo262

6 BIBLIOGRAFIA274

Notas sobre as citaccedilotildees da obra de Nietzsche

Para a citaccedilatildeo das obras de Nietzsche adotamos a convenccedilatildeo proposta pela ediccedilatildeo

criacutetica das obras completas do filoacutesofo em NIETZSCHE Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari BerlimNew

York Walter de Gruyter 1988 doravante referida como KSA Os tiacutetulos das obras do autor

satildeo dados entre parecircnteses por meio de siglas em alematildeo seguidas de siglas em portuguecircs

para facilitar a leitura das referecircncias

GTNT ndash Die Geburt der Tragoumldie O Nascimento da Trageacutedia (1872)

PHGFT ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen A Filosofia na EacutepocaTraacutegica dos Gregos (1873)

WLVM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinne Sobre Verdade eMentira no Sentido Extra-moral (1873)

MAMHDH ndash Menschliches Allzumenschliches Band I Humano Demasiado HumanoVol I (1878)

MA ndash Morgenroumlte Aurora (18801881)

FWGC ndash Die froumlhliche Wissenschaft A Gaia Ciecircncia (188182 e 1886)

ZaZA ndash Also sprach Zarathustra Assim Falou Zaratustra (188385)

JGBABM ndash Jenseits von Gut und Boumlse Para Aleacutem de Bem e Mal (188586)

GMGM ndash Zur Genealogie der Moral Para a Genealogia da Moral (1887)

GDCI ndash Goumltzen-Daumlmmerung Crepuacutesculo dos Iacutedolos (1888)

ACAC ndash Der Antichrist O Anticristo (1888)

EHEH ndash Ecce Homo (1888)

As referecircncias seratildeo as usuais em estudos sobre Nietzsche 1) Na maioria delas o

algarismo araacutebico apoacutes o signo ldquosectrdquo indicaraacute o aforismo ou seccedilatildeo da obra 2) Na maioria

delas o algarismo romano anterior ao araacutebico remeteraacute ao livro podendo indicar um

capiacutetulo ou uma dissertaccedilatildeo a depender da forma escolhida por Nietzsche para a divisatildeo

da obra citada 3) Para as referecircncias aos fragmentos poacutestumos nos casos de citaccedilotildees da

ediccedilatildeo de estudo ColliMontinari o algarismo romano indicaraacute o volume da ediccedilatildeo KSA e

o araacutebico o nuacutemero do fragmento Quando ao inveacutes da ediccedilatildeo KSA for utilizada outra

ediccedilatildeo para a citaccedilatildeo dos fragmentos poacutestumos seraacute utilizada a notaccedilatildeo (NFFP ano do

fragmento grupo [nuacutemero do fragmento]) Exceccedilatildeo feita as citaccedilotildees referentes a partir da

ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas de juventude de Nietzsche organizadas por

METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a sigla BAW seguida do nuacutemero

do volume em algarismos hindu-araacutebicos e da indicaccedilatildeo da paacutegina em algarismos hindu-

araacutebicos Sempre que disponiacutevel seguimos as traduccedilotildees para o portuguecircs das obras de

Nietzsche jaacute publicadas a maioria por Paulo Ceacutesar de Sousa para a Editora Companhia das

Letras agraves quais fazemos referecircncia tambeacutem por meio de siglas Outras traduccedilotildees utilizadas

satildeo as seguintes

Obras incompletas Trad e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho seleccedilatildeo de textos de

Geacuterard Lebrun posfaacutecio de Antocircnio Candido Satildeo Paulo Abril Cultural 2ordf ed 1979 (col

Os Pensadores)

O nascimento da trageacutedia Trad de Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras

1999

Assim falou Zaratustra Trad de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-

Dumaraacute 2000

O Anticristo Trad de David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016

Para a citaccedilatildeo dos poacutestumos foram utilizadas as traduccedilotildees

Fragmentos poacutestumos 1885-1887 Vol VI Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova editora

Forense Universitaacuteria Rio de Janeiro 2013

Fragmentos do espoacutelio junho de 1882 a inverno de 18831884 Traduccedilatildeo de Flaacutevio R

Kothe Editora UNB Brasiacutelia 2004

Fragmentos poacutestumos 1885-1889 2ordf Edicioacuten Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego

Saacutenchez Meca traduccioacuten introduccioacuten y notas de Juan Luis Vermal y Joan B Llinares

editora Editorial Technos Madrid 2008

0

Introduccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano eacute frequentemente relacionado agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo Esta sentenccedila que apesar de natildeo ocorrer em nenhuma obra

publicada reuacutene concisatildeo e profundidade tiacutepicas da filosofia nietzschiana aparece

recorrentemente entre os poacutestumos de 1885-1886 Uma apariccedilatildeo importante desta

expressatildeo se daacute em (NFFP 1885-1886 2[131]) onde apoacutes refletir acerca da possibilidade

de se comparar a ldquoantiacutetese do mundo que veneramos e do mundo que vivemos que mdash

somosrdquo Nietzsche conclui que apenas restariam duas saiacutedas para o homem ldquoeliminar ou

bem nossas veneraccedilotildees ou bem a noacutes mesmosrdquo

Abdicar da alta estima que dedicamos agrave realidade nessa leitura significa tomar a

realidade como aquilo que ela de fato eacute apenas um resultado de nossa avaliaccedilatildeo Assim o

reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo aparece para Nietzsche como a aceitaccedilatildeo de que

nossa proacutepria realidade depende da avaliaccedilatildeo em um niacutevel fundamental como uma ilusatildeo

que podemos reconhecer como tal mas da qual natildeo poderiacuteamos nos desvencilhar Por outro

lado para o filoacutesofo a compreensatildeo da realidade como dependente de nossa forma de

compreender estaacute diretamente ligada agrave compreensatildeo do valor desta mesma realidade assim

como de nossa capacidade de criar uma realidade a partir de nossas necessidades Ou seja

na leitura do filoacutesofo dado que o mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo nossa veneraccedilatildeo

em nossa consideraccedilatildeo da realidade nos restaria abdicar da alta estima que dedicamos agrave

nossa avaliaccedilatildeo ou abdicar de nossa existecircncia o que seria exatamente o niilismo1 Nesta

leitura a abdicaccedilatildeo de si mesmo como ponto de valoraccedilatildeo de veneraccedilatildeo seria a forma

mais elevada de desvalorizaccedilatildeo dos valores necessaacuterios agrave vida comumente identificados

1 A etimologia nos diz que ldquoniilismordquo (Nihilismus em alematildeo) proveacutem do latim nihil que significaexatamente nada De onde se poderia deduzir que o niilismo diz respeito a afirmaccedilatildeo do nada ou em certosentido a negaccedilatildeo de tudo O significado do termo niilismo na atualidade estaacute ligado de forma irredutiacutevel agravefilosofia nietzschiana No entanto a compreensatildeo nietzschiana mesma do niilismo eacute profundamente marcadapela literatura russa de quem a maioria dos comentadores acredita que o autor teria tomado o termo Sabe-seque Dostoievski a quem Nietzsche leu bastante utilizou o termo e mais do que isso caracterizou muito desua obra pela permanecircncia de uma certa ausecircncia de Deus ausecircncia que em Nietzsche estaraacute ligada de formainextrincaacutevel com o niilismo No entanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que autiliza para caracterizar um de seus personagens em seu romance Pais e Filhos

1

pelo filoacutesofo como o caraacuteter aparente e perspectivo da proacutepria realidade Assim o filoacutesofo

conclui que a ausecircncia de fatos seria decorrecircncia da necessidade de avaliar

A reflexatildeo nietzschiana acerca da inexistecircncia de fatos puros como realidades em

si independentes de uma estrutura de avaliaccedilatildeo se torna uma constante no periacuteodo em que

Nietzsche elabora A Gaia Ciecircncia e Assim Falava Zaratustra2 Nesse sentido podemos

afirmar que a criacutetica aos fatos como consideraccedilatildeo contraacuteria ao caraacuteter interpretativo da

realidade se reconhece como uma ideia fundamental presente na filosofia nietzschiana em

um momento decisivo da evoluccedilatildeo do pensamento desse autor

Natildeo por acaso a apariccedilatildeo mais amplamente reconhecida desta expressatildeo eacute aquela

do fragmento poacutestumo 7[60] de final de 1886 e iniacutecio de 1887 em que Nietzsche diz

ldquoContra o positivismo que permanece no fenocircmeno lsquoapenas haacute fatosrsquo eu diria natildeo precisamente

natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) A compreensatildeo fundamental da

realidade como interpretaccedilatildeo traccedilo comum ao desenvolvimento da concepccedilatildeo nietzschiana

de conhecimento e que como os poacutestumos testemunham estaacute ligada agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatosrdquo eacute entendida aqui como a afirmaccedilatildeo de que natildeo haacute verdades fundamentais e que

portanto toda aproximaccedilatildeo do mundo apenas pode ser feita por meio de uma consideraccedilatildeo

perspectivista

A curiosa contraposiccedilatildeo nietzschiana entre fatos e hipoacuteteses contraposiccedilatildeo que estaacute

presente na citaccedilatildeo e que nela anuncia algo de fundamental acerca de seu posicionamento

com relaccedilatildeo ao conhecimento e sua relaccedilatildeo com a realidade revela um traccedilo fundamental

de seu pensamento que aparece jaacute em seus escritos de juventude e que em sua filosofia

madura eacute apresentada na forma da adoccedilatildeo de hipoacuteteses como fundamentos de sua

filosofia3 De maneira geral eacute possiacutevel compreender esta abordagem por meio da adoccedilatildeo

de hipoacuteteses como concepccedilotildees fundamentais em sua filosofia como um traccedilo caracteriacutestico

2 A expressatildeo ldquonatildeo haacute fatosrdquo volta a aparecer com um sentido aproximado do sentido expresso no fragmentocitado anteriormente no fragmento poacutestumo 2[175] em que Nietzsche reflete acerca da superioridade dascausas internas em relaccedilatildeo agraves causas externas para a nossa interpretaccedilatildeo da realidade3 Com isso apenas queremos dizer que diferentemente do que ocorre em uma concepccedilatildeo filosoacuteficaconvencional em que seus conceitos principais devem ser tomados de forma dogmaacutetica os conceitosfundamentais da filosofia nietzschiana seja o conceito de Vontade de Potecircncia seja o conceito de eternoretorno seja ateacute mesmo o proacuteprio perspectivismo assumem uma expressatildeo que se diferencia daapresentaccedilatildeo de uma verdade dogmaacutetica Por exemplo o conceito nietzschiano de Vontade de Potecircncia eacuteapresentado como hipoacutetese no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal o eterno retorno por meio de umavisatildeo em Zaratustra e de uma suposiccedilatildeo no aforismo 341 de A Gaia Ciecircncia o proacuteprio perspectivismo eacuteapresentado no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia como ldquoo perspectivismo como eu o entendordquo

2

de sua filosofia perspectivista Ou seja ao compreender e interpretar a realidade a seu

modo e ao estar ciente desta determinaccedilatildeo fundamental de suas ideias o filoacutesofo teria

adotado certas suposiccedilotildees como fundamento de suas concepccedilotildees mais iacutentimas posto que

percebe natildeo poder ir aleacutem de uma apresentaccedilatildeo de verdades com caraacuteter bastante limitado

na medida em que seu pensamento se fundamenta apenas em avaliaccedilotildees especiacuteficas

Nesse sentido quando o filoacutesofo afirma na continuaccedilatildeo do fragmento citado ldquona

medida em que a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outro modo natildeo tem um sentido por traacutes de si senatildeo inumeraacuteveis

sentidosrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) e finaliza com a palavra ldquoperspectivismordquo indicaria

que esta interpretaccedilatildeo deveria ser entendida como sendo uma espeacutecie de abordagem

perspectiva do conhecimento Com isso um problema fundamental se apresenta Seria

possiacutevel para Nietzsche efetuar a criacutetica das concepccedilotildees que rejeita sendo que sua filosofia

natildeo se entende como uma descriccedilatildeo de fatos mas apenas como mais uma interpretaccedilatildeo

Compreendemos o perspectivismo4 nietzschiano5 como um tema privilegiado da

obra deste filoacutesofo Apesar desta concepccedilatildeo natildeo haver recebido em sua obra o

desenvolvimento e acabamento que se esperaria de uma concepccedilatildeo fundamental Ateacute

mesmo por conta desta falta de um acabamento da compreensatildeo nietzschiana do

perspectivismo esta concepccedilatildeo conta em sua investigaccedilatildeo com dificuldades interpretativas

bastante especiacuteficas Entre estas dificuldades o problema de sua validade enquanto uma

teoria do conhecimento6 segundo a qual a tese perspectivista seria povoada de problemas

4 Por perspectivismo nietzschiano compreendemos uma noccedilatildeo vinculada agrave compreensatildeo do filoacutesofo de quenatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees Esta compreensatildeo relaciona-se a uma reflexatildeo acerca do caraacuteterperspectivo determinado de todo pretenso conhecimento sendo por isso mesmo frequentemente referidoentre os comentaacuterios da filosofia nietzschiana como uma espeacutecie de teoria do conhecimento Assim segundoCox por exemplo ldquo(hellip) o termo foi usado jaacute em 1906 pelos editores da Vontade de poder para descrever ateoria do conhecimento de Nietzsche e posteriormente foi retomado por Vaihinger em 1911 por Heideggerem 1930 por Morgan em 1940 por Danto na deacutecada de 1960 e em quase todos os comentaristas europeus eanglo-americano desde entatildeordquo (COX 1999 paacuteg 110) 5 Concepccedilatildeo inacabada que pertence de maneira necessaacuteria ao pensamento de maturidade de Nietzsche masque tem suas raiacutezes em suas primeiras incursotildees sobre o problema da verdade e do conhecimento6 O aparente paradoxo do perspectivismo se coloca na forma de sua autorreferecircncia que eacute expresso assim emA Companion to Epistemology no verbete Perspectivism ldquoEacute Frequentemente afirmado que o perspectivismose autorrefuta Se a tese de que todos os pontos de vista satildeo interpretaccedilotildees eacute verdadeira entatildeo argumenta-sehaacute ao menos um ponto de vista que natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Se por outro lado a tese eacute ela mesma umainterpretaccedilatildeo entatildeo natildeo haacute razatildeo para acreditar que ela eacute verdadeira e se segue novamente que nem todoponto de vista eacute uma interpretaccedilatildeordquo O conjunto de questotildees que se extrai da anaacutelise deste problemafundamental tem sido o tema de extensos trabalhos de autores como Maudemarie Clark Heidegger Derrida eKaufmann soacute para citar alguns comentadores da filosofia nietzschiana Mais ainda Reginster em Theparadox of Perspectivism assinala que os uacuteltimos vinte anos da pesquisa nietzschiana realizados em liacutengua

3

teoacutericos com base nos quais se costuma considerar agrave posiccedilatildeo nietzschiana acerca do

conhecimento como inescusavelmente paradoxal

Este problema pode ser resumido por meio da consideraccedilatildeo do modo como a

negaccedilatildeo da verdade proacutepria do perspectivismo nietzschiano parece condenar a proacutepria

consideraccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano como verdadeiro Neste sentido o

perspectivismo nietzschiano apareceria como uma versatildeo atualizada do paradoxo do

mentiroso Pois parece decorrer dos proacuteprios princiacutepios do perspectivismo nietzschiano

segundo os quais todas as formulaccedilotildees teoacutericas devem ser tomadas como meras

interpretaccedilotildees desprovidas de validade que o proacuteprio perspectivismo natildeo pode ter

validade Partindo desse tipo de princiacutepio como seria possiacutevel para Nietzsche validar suas

proacuteprias afirmaccedilotildees acerca da moral assim como da natureza constitutiva do mundo e da

proacutepria verdade se o filoacutesofo a partir de seu proacuteprio julgamento em relaccedilatildeo agraves teorias

filosoacuteficas e cientiacuteficas atribui a esse gecircnero de afirmaccedilotildees o caraacuteter meramente

interpretativo

Ao confrontar este problema Nehamas defende a reivindicaccedilatildeo nietzschiana pela

superioridade de suas posiccedilotildees com base em sua interpretaccedilatildeo do perspectivismo

nietzschiano como a negaccedilatildeo de que todas as afirmaccedilotildees seriam iguais Nesse sentido na

medida em que uma interpretaccedilatildeo se mostre mais afirmativa da vida em um determinado

contexto segundo a interpretaccedilatildeo de Nehamas esta interpretaccedilatildeo se tornaria uma

interpretaccedilatildeo superior Pois para o comentador o perspectivismo nietzschiano natildeo requer

que todas as perspectivas sejam igualmente vaacutelidas mas apenas que cada perspectiva

mereccedila consideraccedilatildeo

A posiccedilatildeo de Nehamas oferece uma forte resistecircncia agrave afirmaccedilatildeo da

autorreferencialidade7 na medida em que em sua leitura a proacutepria consideraccedilatildeo do

perspectivismo como sendo uma releitura do paradoxo do mentiroso seria errocircnea Dado

que esta identificaccedilatildeo decorreria de uma interpretaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo nietzschiana de que

todas as afirmaccedilotildees satildeo interpretaccedilotildees com a afirmaccedilatildeo de que toda interpretaccedilatildeo eacute falsa o

que nunca foi a intenccedilatildeo de Nietzsche De fato a tese nietzschiana implica apenas a

negaccedilatildeo de que qualquer afirmaccedilatildeo seja verdadeira e natildeo de que alguma interpretaccedilatildeo seja

inglesa foram dominados pelo paradoxo do perspectivismo7 A ideia de que o perspectivismo refutar-se-ia a si mesmo quando aplicado ao perspectivismo sua proacutepriaproibiccedilatildeo de que hajam verdades

4

falsa Assim em sua exposiccedilatildeo do problema do perspectivismo como sendo autorreferente

o autor oferece a seguinte exposiccedilatildeo

Suponhamos que caracterizemos o perspectivismo nietzschiano como a tese (P)de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Agora nos parece que se (P) eacuteverdadeira e se toda afirmaccedilatildeo eacute de fato uma interpretaccedilatildeo isto se aplicaria agraveproacutepria (P) Neste caso (P) tambeacutem torna-se uma interpretaccedilatildeo Mas se isto eacuteassim entatildeo nem toda afirmaccedilatildeo precisa ser uma interpretaccedilatildeo e (P) parecehaver se refutado (NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Esta exposiccedilatildeo do problema da autorreferencialidade natildeo ofereceria no entender de

Nehamas um problema especial para a posiccedilatildeo nietzschiana Isto porque o comentador

consegue oferecer uma distinccedilatildeo fundamental entre ser uma interpretaccedilatildeo e ser uma

afirmaccedilatildeo falsa Apenas com base em uma concepccedilatildeo de verdade que entende toda

afirmaccedilatildeo como possuindo um valor determinado se poderia pensar que admitir que uma

posiccedilatildeo natildeo eacute verdadeira significa afirmar sua falsidade Por outro lado a exposiccedilatildeo de

Nehamas do problema que acreditamos refletir fielmente a concepccedilatildeo nietzschiana nos

potildee diante da possibilidade de considerar uma afirmaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo

mantendo indeterminado seu valor de verdade

Ainda assim nosso argumento pode mostrar que (P) eacute verdadeiramente falsaapenas se assumirmos que sendo uma interpretaccedilatildeo (P) pode ser falsa e queportanto ela eacute de fato falsa Esta uacuteltima conclusatildeo verdadeiramente refutaria (P)pois se a tese de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo eacute de fato falsa entatildeo defato algumas afirmaccedilotildees verdadeiramente natildeo satildeo interpretaccedilotildees Mas aconclusatildeo de que (P) eacute de fato falsa natildeo se segue do fato de que (P) eacute ela mesmauma interpretaccedilatildeo Isto eacute alcanccedilado apenas por meio de uma inferecircncia invaacutelidaatraveacutes da equalizaccedilatildeo como acima do fato de que (P) eacute uma interpretaccedilatildeo eportanto possivelmente falsa com o fato de ela eacute verdadeiramente falsa(NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Por outro lado a afirmaccedilatildeo nietzschiana de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

decorre de uma falsificaccedilatildeo da realidade comporta outras dificuldades Segundo

Maudemarie Clark a defesa de Nehamas da posiccedilatildeo nietzschiana pretende mais do que o

autor admite Para a autora a posiccedilatildeo que Nehamas defende de que Nietzsche faz de sua

filosofia uma obra literaacuteria e que portanto ldquocomo todo outro escritor Nietzsche queria

5

que sua audiecircncia aceitasse suas afirmaccedilotildeesrdquo (NEHAMAS 1999 Paacuteg 33) compromete a

defesa da filosofia nietzschiana com a tese da falsificaccedilatildeo

Segundo Clark se Nietzsche tem motivos para querer que sua audiecircncia aceite suas

posiccedilotildees isso apenas seria possiacutevel porque o autor acredita que sua interpretaccedilatildeo seria a

verdadeira e que todas as outras interpretaccedilotildees seriam uma versatildeo falsificada de uma

ldquorealidade verdadeirardquo Assim a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo de Nehamas para Clark nos

compromete com uma versatildeo do perspectivismo que o torna vulneraacutevel agraves proacuteprias

objeccedilotildees contra as quais o autor queria defendecirc-lo (CLARK 1990 Paacuteg 158) Ao assumir

que haacute um todo que incorpora todas as interpretaccedilotildees Nehamas assumiria que existe uma

verdade completa da qual as perspectivas seriam apenas uma imagem necessariamente

falsa Se este eacute o caso no entanto ele estaacute assumindo a posiccedilatildeo fundamentalista com a

qual ele discordou de que existem algumas visotildees que natildeo satildeo interpretaccedilotildees natildeo apenas

aquelas que podem existir

Em sua leitura do perspectivismo Clark acredita achar uma soluccedilatildeo para o

problema do conflito entre a negaccedilatildeo da existecircncia de uma posiccedilatildeo verdadeira e o valor de

verdade dessa negaccedilatildeo ela mesma Sua soluccedilatildeo consistiria na interpretaccedilatildeo da posiccedilatildeo

nietzschiana como sendo a defesa de que eacute possiacutevel afirmar verdadeiramente sem que com

isso se pretenda afirmar algo que seja verdadeiro para todos Segundo essa interpretaccedilatildeo a

tese da falsificaccedilatildeo ou seja a ideia de que o conhecimento eacute limitado e falsificado pela

perspectiva de onde ele parte eacute uma caracteriacutestica da filosofia nietzschiana de juventude

que o autor posteriormente abandona com o amadurecimento de sua concepccedilatildeo

perspectivista

Minha soluccedilatildeo para estes problemas tecircm sido remover a tese dafalsificaccedilatildeo para as obras nietzschianas de juventude e interpretar ametaacutefora da perspectiva como um instrumento retoacuterico desenvolvidopara ajudar-nos a superar a desvalorizaccedilatildeo do conhecimento humanoenvolvida na tese da falsificaccedilatildeo De acordo com minha interpretaccedilatildeo ocaraacuteter perspectivo do conhecimento eacute perfeitamente compatiacutevel comalgumas interpretaccedilotildees sendo verdadeiras e ela natildeo introduz nenhumparadoxo ou autorreferecircncia O Perspectivismo eacute obviamente umaverdade perspectiva mas isso natildeo implica que qualquer afirmaccedilatildeoconcorrente seja tambeacutem verdadeira (CLARK 1990 Paacuteg 158)

6

Com isso a autora acredita oferecer uma interpretaccedilatildeo do perspectivismo que natildeo

seria suscetiacutevel de nenhuma das criacuteticas que Nehamas aponta nem das criacuteticas que ela

mesma aponta na interpretaccedilatildeo de Nehamas Sua interpretaccedilatildeo da filosofia nietzschiana

pressupotildee que seu perspectivismo em sua apariccedilatildeo na obra de maturidade do filoacutesofo natildeo

recai na acusaccedilatildeo do conhecimento como falsificaccedilatildeo da realidade Em outras palavras

Clark sustenta que Nietzsche natildeo tem nenhum problema em fazer afirmaccedilotildees verdadeiras

e ao mesmo tempo natildeo dogmaacuteticas mas que se espera que sejam verdadeiras para todos

No entanto esta posiccedilatildeo parece colidir frontalmente com uma extensa quantidade de

testemunho textual8 Na medida em que passagens da obra de maturidade nietzschiana

refletem as mesmas ideias de sua filosofia de juventude a suposiccedilatildeo de Clark de que em

sua filosofia perspectivista Nietzsche rejeita a tese da falsificaccedilatildeo enfrenta seacuterias

dificuldades

O perspectivismo nietzschiano se ergue como uma estrateacutegia de combate contra

todo antropomorfismo da ciecircncia e nesse sentido ele reduz o que nos distancia das outras

espeacutecies e que permanece na tradiccedilatildeo como nosso elemento identificador agrave condiccedilatildeo de

mero oacutergatildeo natural Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela

exposiccedilatildeo do caraacuteter perspectivo de nossas verdades universais Nietzsche opotildee-se agrave

pretensatildeo de atingir a verdade absoluta por meio de um instrumento necessariamente

relativo Pretensatildeo que o filoacutesofo pensa representada pelas filosofias racionalistas que lhe

antecedem

Segundo esta compreensatildeo o caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da

realidade repousaria sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o

filoacutesofo realiza pensando opor assim a toda a tradiccedilatildeo racionalista que segundo

Nietzsche teria preferido voltar-se contra os oacutergatildeos dos sentidos na constataccedilatildeo dos

limites da consciecircncia Sua anaacutelise de tudo que ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro

submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo desdobramento do mundo em substacircncia

inteligiacutevel a anaacutelise de sua origem e desenvolvimento Atraveacutes de uma anaacutelise naturalista

da consciecircncia ele expotildee o processo de formaccedilatildeo da linguagem como a forma de

8 Leia-se sobretudo o aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal e oaforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral que seratildeo comentados mais a frente

7

apreender uma realidade sempre em mudanccedila atraveacutes de metaacuteforas que lhe confiram um

caraacuteter fixo e comunicaacutevel

A soluccedilatildeo do problema da autorreferencialidade apresentado por Nehamas nos

parece maios adequado aos objetivos deste trabalho Assim natildeo voltaremos a discutir este

problema nos capiacutetulos a seguir No entanto reconhecemos que o problema envolvido na

autorreferencialidade do perspectivismo nietzschiano tem rendido diversos comentaacuterios

importantes tornando-se assim um panorama privilegiado na investigaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana Maudemarie Clark parece concordar com esta interpretaccedilatildeo quando afirma

que o perspectivismo nietzschiano seria sua doutrina mais amplamente aceita aleacutem de ser

a contribuiccedilatildeo mais oacutebvia do pensamento nietzschiano para o cenaacuterio intelectual da

atualidade

ldquoperspectivismordquo eacute a afirmaccedilatildeo de que todo conhecimento eacute perspectivoNietzsche tambeacutem caracteriza valores como perspectivos mas eu devoestar preocupada aqui apenas com seu perspectivismo concernente aoconhecimento O uacuteltimo constitui sua contribuiccedilatildeo mais oacutebvia ao cenaacuteriointelectual da atualidade a doutrina nietzschiana mais amplamente aceita9

(CLARK 1995 Paacuteg 127)

Poreacutem seria necessaacuterio acrescentar que o perspectivismo nietzschiano natildeo se limita

a uma compreensatildeo do conhecimento como algo perspectivo mas diz respeito mais

propriamente ao problema dos valores A negaccedilatildeo nietzschiana da concepccedilatildeo tradicional de

verdade parte do pressuposto de que esta teria se tornado algo intimamente relacionado

aos valores e que com estes ela perde seu sentido na tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo que ignora este aspecto partindo de uma interpretaccedilatildeo do

perspectivismo nietzschiano apenas do ponto de vista de sua validade enquanto teoria

epistemoloacutegica perde de vista uma interpretaccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano

e torna tambeacutem menos rica de sentido essa importante contribuiccedilatildeo nietzschiana para o

cenaacuterio filosoacutefico contemporacircneo

9 No original ldquorsquoPerspectivismrsquo is the claim that all knowledge is perspectival Nietzsche also characterizesvalues as perspectival but I shall be concerned here only with his Perspectivism regarding knowledge Thelatter constitutes his most obvious contribution to the current intellectual scene the most widely acceptedNietzschean doctrinerdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) As traduccedilotildees de obras de comentadores seratildeo todas denossa responsabilidade exceto menccedilatildeo em contraacuterio

8

Ao se colocar em jogo o valor das perspetivas portanto natildeo se pode reduzir esta

questatildeo a uma investigaccedilatildeo da validade do perspectivismo como tese acerca do

conhecimento Como se o que estivesse em jogo fosse apenas a avaliaccedilatildeo do valor de

nossas formulaccedilotildees acerca da realidade Pelo contraacuterio desde que se compreende que estas

formulaccedilotildees natildeo se relacionam com algo como a verdade em sentido absoluto o valor das

perspectivas em relaccedilatildeo a uma suposta realidade em si estaacute desde sempre posto por

Nietzsche como sendo nenhum Assim considerada a questatildeo do ponto de vista de nossa

estimaccedilatildeo de nossa valoraccedilatildeo mesma de uma suposta realidade verdadeira como algo

superior entatildeo temos que o valor das perspectivas natildeo se potildee de forma independente

daquele que avalia

O perspectivismo nietzschiano neste sentido natildeo se reduz a uma anaacutelise do valor

de verdade das perspectivas Mais do que isso o que se potildee em questatildeo eacute o valor que

atribuiacutemos agraves nossas estimaccedilotildees em certo sentido ao valor que atribuiacutemos agrave proacutepria

verdade quando nos recusamos a compreender o proacuteprio homem como ponto de vista da

avaliaccedilatildeo Desta maneira se o filoacutesofo compreende que a realidade eacute um produto de nossa

avaliaccedilatildeo e que apenas seria possiacutevel para noacutes abdicar da avaliaccedilatildeo ou de noacutes mesmos de

nossa existecircncia10 entatildeo o processo de percepccedilatildeo da realidade que eacute inerente agrave sua

consideraccedilatildeo perspectiva do conhecimento estaacute estreitamente ligada com o papel do

homem enquanto criador de valor

Nesta leitura os problemas na investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

notadamente a questatildeo de sua autorreferecircncia podem ser entendidos como decorrentes de

se tratar este tema meramente do ponto de vista de uma anaacutelise do conhecimento e da

verdade sobretudo por se tratar de um autor reconhecido por sua atitude criacutetica em relaccedilatildeo

a ambos Mais do que pensarmos se o perspectivismo nietzschiano pode ser verdadeiro

sem se contradizer eacute preciso pensar que o tipo de ldquovalor de verdaderdquo que o filoacutesofo parece

assumir no interior de sua concepccedilatildeo perspectivista se potildee em um niacutevel superior de

reflexatildeo ao proacuteprio valor que a tradiccedilatildeo atribui agrave verdade

Com isso a afirmaccedilatildeo de Clark de que ldquoNietzsche tambeacutem caracteriza valores

como perspectivosrdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) ganha uma nova dimensatildeo e importacircncia

Pois a partir dessa reflexatildeo podemos pensar que sua menccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o

10 O que para Nietzsche seria exatamente niilismo conforme (NFFP 1885-1886 2[131])

9

perspectivismo e o valor pode apontar para a compreensatildeo de que Nietzsche caracteriza os

valores como perspectivos e que assim o faz porque parte de uma consideraccedilatildeo perspectiva

do conhecimento Ou seja se Nietzsche pensa os valores como perspectivos natildeo eacute absurdo

pensar que sua consideraccedilatildeo da moral seja forjada em meio a uma consideraccedilatildeo do

conhecimento como algo dependente da perspectividade Do mesmo modo natildeo seria

absurdo pensar que a fundamentaccedilatildeo de sua criacutetica agrave moral e ao niilismo natildeo dependeria de

um esclarecimento acerca da ldquoveracidaderdquo de suas proacuteprias concepccedilotildees mas de seu ldquovalorrdquo

em um sentido que jaacute entende a perspectividade de todo ldquovalorarrdquo

A criacutetica nietzschiana a uma certa compreensatildeo do conhecimento e da verdade esta

relacionada agrave compreensatildeo de que tais concepccedilotildees partem de uma consideraccedilatildeo moral

decadente Eacute neste sentido que em um fragmento poacutestumo de finais de 1885 e iniacutecio de

1886 o filoacutesofo compreende todo erro das ciecircncias como estando relacionados a um

pressuposto fundamental ldquoO pressuposto de que tudo ocorre tatildeo moralmente no fundo das

coisas que a razatildeo humana continua em seu direitordquo (NFFP 1885-1886 2[132]) Ou seja

para Nietzsche a crenccedila na ciecircncia como instrumento revelador da realidade estaria

relacionada a uma compreensatildeo da realidade como produto de uma razatildeo divina e que

portanto a razatildeo humana estaria ldquoem seu direitordquo quando tenta se aprofundar nessa

realidade Mas para o filoacutesofo esta seria apenas ldquouma ingenuidade e uma pressuposiccedilatildeo

pequeno-burguesa a ressonacircncia do efeito da crenccedila na veracidade divinardquo (NFFP 1885-

1886 2[132])

Partindo dessa compreensatildeo inicial nossa tese consiste na tentativa de oferecer uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano sob a oacutetica de uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre verdade conhecimento e valor A investigaccedilatildeo do valor das perspectivas que

entendemos como uma questatildeo que se sobrepotildee ao problema da verdade na filosofia

nietzschiana constitui-se por isso mesmo como ponto de originalidade do pensamento

nietzschiano em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo das investigaccedilotildees acerca da verdade ao estabelecer na

proacutepria perspectividade o valor das nossas aproximaccedilotildees da realidade

Neste sentido a tese passa por trecircs momentos Em um primeiro momento

pretendemos efetuar uma interpretaccedilatildeo criacutetica de duas obras nietzschianas de juventude as

notas preparatoacuterias Zur Teleologie e O Ensaio Sobre Verdade e Mentira em sentido Extra

10

Moral11 a fim de descortinar os elementos fundamentais da consideraccedilatildeo criacutetica

nietzschiana para com as concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento Em um

segundo momento o niilismo eacute analisado como ponto de ruptura na filosofia nietzschiana

que fornece o estiacutemulo para uma abordagem do conhecimento que torna mais expliacutecita a

relaccedilatildeo entre este e o valor Na medida em que a dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constrange a uma reavaliaccedilatildeo da verdade mesma como valor o niilismo conduz a uma

forma de avaliaccedilatildeo da realidade que se distingue da avaliaccedilatildeo tradicional por conta de sua

ecircnfase no caraacuteter criativo do conhecimento em contraposiccedilatildeo ao caraacuteter descritivo do

conhecimento na concepccedilatildeo tradicional Em um terceiro momento o perspectivismo eacute

avaliado como contraproposta agrave forma de conhecimento tradicional associada por

Nietzsche a uma tendecircncia niilista de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a

uma consideraccedilatildeo negativa da realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a

proacutepria perspectividade

11 Daqui para frente nomeado simplesmente ldquoEnsaio sobre Verdade e Mentirardquo

11

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia

Em uma carta de 03 de abril de 1868 dirigida a Erwin Rohde Nietzsche faz uma

declaraccedilatildeo a seu amigo acerca da possibilidade de doutorar-se em filosofia possibilidade

que embora natildeo levada a termo pelo autor legou agrave posteridade uma seacuterie de notas

preparatoacuterias cuja interpretaccedilatildeo traz importantes consequecircncias para o estudo do

perspectivismo nietzschiano como veremos a seguir Na carta em questatildeo nos deparamos

com a seguinte afirmaccedilatildeo do jovem Nietzsche ldquoAdemais tenho pensado que poderia

doutorar-me tambeacutem um dia em filosofia e assim justificar posteriormente minha carteira

de estudante em Bonn e Leipzig onde sempre perambulava como stud philosrdquo (KSB II p

265)12 Na carta em questatildeo observa-se o interesse do jovem estudante de filologia claacutessica

de Bonn em vir a doutorar-se futuramente em filosofia disciplina que haacute muito lhe

interessava profundamente especialmente apoacutes seu contato com a obra de Schopenhauer

A indicaccedilatildeo de que o jovem estudante realmente se interessava pelo tema e de que

jaacute realizara alguns preparativos em adiantamento volta a aparecer em uma menccedilatildeo a este

trabalho em outra correspondecircncia dessa vez em uma carta endereccedilada a Paul Deussen

(KSB II p 269) escrita alguns dias apoacutes a carta acima mencionada Com isso pode-se

deduzir que o que era apenas uma ideia vaga viera a tornar-se um projeto melhor

elaborado Nietzsche que desde haacute muito se achava interessado em questotildees filosoacuteficas e

que com a leitura de Schopenhauer e Lange se torna especialmente interessado na filosofia

de Kant anuncia seu interesse em questotildees especiacuteficas que relaciona com a filosofia

kantiana por forccedila das interpretaccedilotildees daqueles autores

Quando vocecirc a propoacutesito receber ao final deste ano minha tese dedoutorado perceberaacute que o problema dos limites do conhecimento seexplica em diversos pontos Meu tema eacute ldquoo conceito de orgacircnico desde

12 No original ldquoUumlbrigens hat mich dies auf den Einfall gebracht auch einmal philosophisch zu promovierenund so meiner Studentenkarte in Bonn und Leipzig noch nachtraumlglich zu ihrem Rechte zu verhelfen ich binnaumlmlich immer als stud philos spazieren gegangenrdquo (KSB II p 265) Curt Paul Janz naquela que eacutepossivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche comenta que nesta eacutepoca este cogitara abandonar osestudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzsche biographie Enfance JeunesseLes Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

12

Kantrdquo metade filosoacutefico metade ciecircncia da natureza (halbphilosophisch halb naturwissenschaftlich) Meus preparativos(Vorarbeiten) jaacute estatildeo quase concluiacutedos (KSB II p 269)13

Na carta a Deussen Nietzsche deixa entrever em seus planos para a dissertaccedilatildeo

elementos fundamentais de uma abordagem do problema do conhecimento Entre estes

elementos destaca-se o fato de que tal dissertaccedilatildeo partiria do ponto de vista de um estudo

dos limites dos oacutergatildeos da sensibilidade humana Com isso aleacutem de esclarecer o sentido de

sua interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana este trabalho tambeacutem possibilita uma compreensatildeo

precisa acerca de suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas naquele periacuteodo de seu pensamento

Motivo pelo qual alguns comentadores concordam que as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie14 ajudam a situar a filosofia do jovem Nietzsche no horizonte de uma ampla

discussatildeo filosoacutefica Marques por exemplo assevera que a discussatildeo sobre a teleologia

coloca Nietzsche em consonacircncia com o programa teoacuterico da modernidade por acercar-se

do grande embate entre as concepccedilotildees leibniziana e cartesiana ou seja do antagonismo

entre teleologia de proveniecircncia aristoteacutelica e o mecanicismo15

Para Marques a filosofia de Nietzsche sobretudo no que diz respeito a sua ldquoteoria

do conhecimentordquo estaria relacionada a um processo de radicalizaccedilatildeo da autoafirmaccedilatildeo do

sujeito moderno Neste sentido enquanto autor que leva ao aacutepice esse processo de

radicalizaccedilatildeo processo que teria se iniciado na modernidade sobretudo com Descartes

13 Apesar de declarar que seus preparativos encontravam-se jaacute bastante adiantados considerando-se arelaccedilatildeo de Nietzsche com Deussen seria plausiacutevel especular que o autor da carta estivesse contandovantagem de seus planos filosoacuteficos que na verdade encontravam-se ainda longe de ser concluiacutedos sendoque algumas de suas partes ainda encontravam-se em seus estaacutegios iniciais como demonstra o estado dasnotas que nos foram legadas Vale ainda ressaltar que esta correspondecircncia como jaacute foi discutido na seccedilatildeo234 desta tese denuncia um interesse fortiacutessimo de Nietzsche pelos resultados de sua leitura de A Histoacuteriado Materialismo de Albert Lange de cujas ideias a dissertaccedilatildeo planejada pelo filoacutesofo encontra-se fartamentepermeada14 A coletacircnea de notas estaacute registrada na ediccedilatildeo completa de Colli e Montinari nos apontamentos 1868 62[3] - 62 [57] Cf NIETZSCHE F Werke Kritische Gesamtausgabe (KGW) 36 Baumlnde Herausgeben GiorgioColli e Mazzino Montinari Berlim De Gruyter 1967-2001 Bd I 15 As concepccedilotildees da filosofia antiga na medida em que se distinguem por uma compreensatildeo racional darealidade satildeo marcadas pela ideia de uma finalidade intriacutenseca a esta mesma realidade sendo Aristoacuteteles esua concepccedilatildeo das causas finais um marco deste tipo de pensamento Por outro lado com a concepccedilatildeoatomiacutestica inaugura-se na antiguidade ainda uma forma de se conceber a realidade como um produto dasinteraccedilotildees mecacircnicas de seus primeiros elementos Surge assim o embate entre s concepccedilotildees teleoloacutegicas emecacircnicas da realidade Marques resume esse antagonismo no seguinte dilema ldquo[] ou o mundo eacuteconstituiacutedo por uma multiplicidade de espontaneidades absolutas que em si tecircm inscritas a finalidade de seuagir ou o mundo seraacute sempre a obra de um Deus criador de uma obra imperfeitardquo (Marques 2003 p 22)Dando continuidade a este embate filosoacutefico aparecem na modernidade as concepccedilotildees de Leibniz e suateoria de mundo como harmonia preestabelecida por Deus e Descartes que pensava o mundo das realidadesextensas como tendo sua formaccedilatildeo determinada de maneira mecacircnica

13

Nietzsche se inseriria na tradiccedilatildeo racionalista criacutetica Por meio de uma anaacutelise

eminentemente histoacuterica das assim chamadas ldquoteses teleoloacutegicas sobre a historicidaderdquo

(MARQUES 2003 Paacuteg 43) Marques realiza uma apresentaccedilatildeo da condiccedilatildeo antinocircmica da

razatildeo moderna em sua interioridade em que Nietzsche se inseriria ao questionar a validade

dos produtos que a razatildeo se apresenta como sua proacutepria realidade

Neste contexto se destacariam as notas preparatoacuterias para Zur Teleologie como

testemunho textual de que jaacute em sua obra de juventude Nietzsche entra em contato com

questotildees de suma importacircncia para o pensamento moderno Este contato com problemas de

primeira ordem da filosofia moderna para Marques tornam o autor das notas preparatoacuterias

natildeo apenas um herdeiro dos problemas do pensamento moderno mas um pensador

moderno que leva ao aacutepice questotildees fundamentais da filosofia moderna

Esta tese pelo que tomamos notiacutecia atraveacutes da leitura dos fragmentos que nos

foram legados caso tivesse sido concluiacuteda poderia vir a ser considerada como sua

primeira incursatildeo por alguns dos temas mais importantes de sua filosofia Nas notas em

questatildeo satildeo adiantadas muitas de suas concepccedilotildees fundamentais as quais seriam

amadurecidas e posteriormente reelaboradas de forma mais rigorosa adquirindo o estilo

caracteriacutestico dos escritos do filoacutesofo Por meio de um lento refinamento e preparaccedilatildeo no

sentido de conferir um apelo original a estas ideias elas viriam a se popularizar como um

conjunto de reflexotildees acerca da natureza dos limites do conhecimento humano Com isso

aquilo que apenas fora esboccedilado de modo precaacuterio nas notas preparatoacuterias viria a

constituir um fundamento seguro para o posterior desenvolvimento da reflexatildeo

nietzschiana em torno dos problemas com relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e

conhecimento

No entanto por vaacuterias razotildees dentre as quais destacam-se certamente sua

convocaccedilatildeo para o serviccedilo militar e o consequente ferimento que o deixa impossibilitado

por semanas Nietzsche natildeo conseguiraacute levar este plano agrave conclusatildeo Ciente da

impossibilidade de levar seus planos adiante o jovem professor declararaacute em uma carta

endereccedilada a Rohde ldquoAssim querido amigo repito nossas perspectivas natildeo deram certo

[]rdquo (KSB II p 272)16 Apesar do naufraacutegio de seus planos ficaram registrados em seus

16 No original ldquoAlso lieber Freund nochmals unsere Aussichten sind zu nichterdquo (KSB II p272) CurtPaul Janz (naquela que eacute possivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche) comenta que nesta eacutepocaeste cogitara abandonar os estudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzschebiographie Enfance Jeunesse Les Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

14

cadernos de notas o conjunto de rascunhos que comporiam sua tese acerca dos limites do

orgacircnico a partir de Kant

Os preparativos para a dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant

compotildeem-se de uma seacuterie de notas e indicativos de leitura Estas referecircncias agrupadas por

Nietzsche satildeo compostas de alguns paraacutegrafos extraiacutedos da literatura que o autor das notas

considera leitura baacutesica para sua exposiccedilatildeo aqui incluiacutedos trechos da Criacutetica da Faculdade

do Juiacutezo de Kant e alguns apontamentos de textos extraiacutedos de obras em que a filosofia se

relaciona com temas das ciecircncias naturais Este material variado dentre o qual destacam-se

algumas relaccedilotildees de ideias e conclusotildees a serem comprovadas pela exposiccedilatildeo foram

reunidas apenas muito tardiamente em um dos muitos esforccedilos de conservaccedilatildeo da obra

nietzschiana ficando entatildeo conhecidas pela criacutetica do pensamento nietzschiano sob o tiacutetulo

de Zur Teleologie

As notas constituem material fundamental para a compreensatildeo da imbricada relaccedilatildeo

de Nietzsche com as principais influecircncias de seu pensamento com as quais entra em

contato jaacute na juventude Dentre estas influecircncias destacam-se uma seacuterie de autores das

ciecircncias naturais pesquisadores materialistas com os quais Nietzsche estabelece contato

atraveacutes de sua leitura de Friedrich Albert Lange O proacuteprio Lange representa uma

influecircncia fundamental para Nietzsche naquele periacuteodo e suas ideias acerca da filosofia

kantiana assim como de sua relaccedilatildeo com as ciecircncias garantem o estiacutemulo para a tentativa

de dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico Esta eacute por exemplo a interpretaccedilatildeo de

Elisabeth Foumlrster-Nietzsche a qual relata

Existe (hellip) um resumo de um trabalho ldquoacerca do conceito de orgacircnicodesde Kantrdquo com que meu irmatildeo durante sua convalescenccedila em marccedilo eabril (1866) se ocupou Ele tinha provavelmente retirado o estiacutemulo paraesse trabalho da Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange oqual ele leu imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo e o qual ele estudounovamente em fevereiro de 186817

A obra de Lange a qual impactou fortemente Nietzsche representava uma espeacutecie

de reconstruccedilatildeo da histoacuteria do materialismo centrada na figura de Kant O fato de

Nietzsche pretender elaborar uma dissertaccedilatildeo acerca das relaccedilotildees entre a filosofia kantiana

17 Conforme Elisabeth Foumlrster-Nietzsche Das Leben Nietzsches Leipzig Verlag von C G Naumann 1895LN 1 269

15

e os estudos recentes acerca dos oacutergatildeos da sensibilidade humana logo apoacutes sua leitura da

obra de Lange natildeo poderia ser confundida como mera coincidecircncia Outra forte evidecircncia

de que Albert Lange foi uma forte inspiraccedilatildeo para esse trabalho encontra-se nas listas de

leituras a serem realizadas parte importante das notas que nos foram legadas Entre os

autores pertencentes a estas listas a serem pesquisadas praticamente todos satildeo cientistas e

filoacutesofos dos quais Nietzsche tomou conhecimento atraveacutes de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo de Albert Lange

Nosso interesse nessa coleccedilatildeo de apontamentos para a dissertaccedilatildeo de Nietzsche se

justifica por vaacuterias razotildees Para aleacutem da importacircncia de rever escritos que ajudam a

descortinar um pouco de seu pensamento de juventude essas notas ajudam a descortinar o

caraacuteter prematuro do posicionamento filosoacutefico desse autor com relaccedilatildeo agrave temas

fundamentais para seu pensamento maduro Percebe-se em boa parte da argumentaccedilatildeo

sustentada nessas notas assim como no material que o autor escolhe para suportar esta

argumentaccedilatildeo que o filoacutesofo jaacute naquela eacutepoca demonstrou certa preocupaccedilatildeo com temas

fundamentais elaborados em profundidade em sua filosofia madura Por outro lado a

discussatildeo do tema da teleologia o potildee em contato com uma temaacutetica fundamental da

filosofia de todos os tempos

Do mesmo modo quando anuncia a Deussen sua intenccedilatildeo de escrever uma

dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant o jovem estudante insinua a

disposiccedilatildeo em trabalhar com um conjunto de questotildees que jaacute compotildeem suas preocupaccedilotildees

fundamentais acerca da natureza do conhecimento Estas questotildees estatildeo intimamente

relacionadas com a criacutetica ao conhecimento expressa em sua obra de maturidade como

testemunho de que Nietzsche natildeo consegue resolver estas questotildees mesmo muitos anos

apoacutes suas primeiras incursotildees no tema

O aspecto epistemoloacutegico da investigaccedilatildeo a ser empreendida jaacute desponta nos

trechos de correspondecircncia citados em que Nietzsche se refere agrave questatildeo dos ldquolimites do

conhecimentordquo e sua relaccedilatildeo com a ldquosensibilidade humanardquo Estas questotildees implicam uma

anaacutelise do papel dos sentidos na constituiccedilatildeo do conhecimento do mesmo modo que

conduzem a uma consideraccedilatildeo do necessaacuterio condicionamento do que pode ser conhecido

pelas limitaccedilotildees da proacutepria sensibilidade humana Nesse sentido a reflexatildeo nietzschiana

expressa nestas notas aponta claramente para uma concepccedilatildeo de conhecimento como algo

determinado pelo aparato fisioloacutegico humano Tendo em vista estes aspectos fundamentais

16

do trabalho em questatildeo eacute possiacutevel identificar traccedilos precursores da compreensatildeo

nietzschiana acerca do conhecimento notadamente na questatildeo da determinaccedilatildeo do que

pode ser conhecido pelo homem segundo a natureza de sua constituiccedilatildeo natural18

De que estes fragmentos comportam informaccedilotildees importantes acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de conhecimento de seu juiacutezo acerca da metafiacutesica das relaccedilotildees entre a

linguagem e a conceitualidade temos o relato de Crawford para quem uma leitura atenta

das notas preparatoacuterias oferece um contato indispensaacutevel com todas estas concepccedilotildees tais

como elas aparecem no pensamento nietzschiano de juventude

Um olhar atento nessas notas acerca da teleologia eacute essencial para minhaposterior discussatildeo porque elas demonstram quatildeo fundamentalmente aepistemologia de Nietzsche eacute baseada em sua teoria da linguagem Nelasnoacutes encontramos a contiacutenua criacutetica de Nietzsche agrave metafiacutesica na qual eleusa como principal ferramenta sua compreensatildeo dos limites da linguageme conceptualidade Nietzsche equaciona pensamento teleoloacutegico compensamento metafiacutesico Em sua carta a Deussen o proacuteprio Nietzscheenfatiza natildeo exatamente o orgacircnico ou o teleoloacutegico mas acima distoele explora a ldquorelatividade consciente do conhecimentordquo e o ldquoponto doslimites do conhecimentordquo Veremos ateacute que ponto Nietzsche se apropriada ideia langeana de que qualquer que seja nossa abordagem dos limitesdo conhecimento o que resta para aleacutem satildeo palavras expressotildees e ummundo de relaccedilotildees mas nunca a verdade em si (CRAWFORD 1988Paacuteg 106)

Para aleacutem destas questotildees no entanto as notas sobre teleologia trazem informaccedilotildees

fundamentais acerca da relaccedilatildeo de Nietzsche com as concepccedilotildees otimista e pessimista sua

consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a toda presunccedilatildeo de racionalidade na natureza e sua ideia

de que esta racionalidade seria antes o resultado de nossa atuaccedilatildeo no mundo do que uma

caracteriacutestica da natureza ela mesma Como se vecirc estes satildeo temas que prenunciam os

caminhos percorridos pelo autor no desenvolvimento de sua filosofia resumidos nos

aspectos de caraacuteter filosoacutefico do trabalho pretendido

18 A limitaccedilatildeo da sensibilidade humana como um traccedilo determinante daquilo que pode ser conhecido pelohomem eacute uma conclusatildeo fundamental das notas a qual percorre uma longa trajetoacuteria ateacute se tornar um aspectofundamental da compreensatildeo nietzschiana do caraacuteter perspectivo de todo conhecimento Isto eacute na medida emque se considera que o perspectivismo nietzschiano estaria ligado agrave sugestatildeo fundamental de que cada umconhece do mundo segundo sua perspectiva a qual eacute determinada fundamentalmente pela sua constituiccedilatildeofisioloacutegica Como fundamento dessa compreensatildeo na filosofia nietzschiana de maturidade observe-se o queeacute dito no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia onde Nietzsche reflete acerca do desenvolvimento dos estudos dafisiologia e dos animais e de como esses estudos nos aproximam da ldquopremonitoacuteria suspeita de Leibnizrdquo ouseja do fato de que cada indiviacuteduo pode conhecer apenas a partir de sua perspectiva

17

Por outro lado a curiosa escolha de fontes para a tese sinaliza o interesse de

Nietzsche mesmo naquele periacuteodo prematuro de seu pensamento em temas das ciecircncias

naturais ou antes para as respostas das ciecircncias naturais para problemas filosoacuteficos

bastante de acordo com o espiacuterito que animou o renascimento do materialismo em sua

eacutepoca Aparentemente cansado do idealismo que reinava nas concepccedilotildees filosoacuteficas

daquele periacuteodo e ainda sob a influecircncia de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Nietzsche enxerga nas ciecircncias naturais um caminho seguro para livrar a filosofia de sua

maacute compreensatildeo acerca de questotildees fundamentais acerca da natureza

Se considerarmos a concepccedilatildeo kantiana acerca dos juiacutezos teleoloacutegicos como o

objeto principal das nota preparatoacuterias que serviraacute como mote para a criacutetica nietzschiana agrave

proacutepria concepccedilatildeo de Teleologia temos aqui uma antecipaccedilatildeo de uma criacutetica fundamental

que o filoacutesofo desenvolveraacute em sua filosofia madura Nesta preacutevia de sua criacutetica agrave

concepccedilatildeo teleoloacutegica que como Crawford aponta eacute associada por Nietzsche a uma

concepccedilatildeo metafiacutesica nos deparamos com noccedilotildees fundamentais que seriam posteriormente

conformadas em modos proacuteprios da filosofia nietzschiana Nesse sentido as notas servem

como um primeiro esboccedilo um primeiro deparar-se de Nietzsche com questotildees as quais o

filoacutesofo ofereceraacute como resposta em sua filosofia madura seu perspectivismo No entanto

na medida em que o projeto de Zur Teleologie foi abandonado com a mesma intensidade

com que fora elaborado as notas que compotildeem o que nos foi legado deste projeto nos

fornecem apenas um indicativo de como jaacute em 1868 Nietzsche compreendia o problema

dos limites do conhecimento

A nosso ver nas notas em questatildeo o autor ensaia uma espeacutecie de protoacutetipo do

perspectivismo na medida em que considera que o orgacircnico seria apenas uma noccedilatildeo

ficcional forjada pelo intelecto e que portanto os produtos subjetivos da razatildeo natildeo

passariam de ficccedilotildees de produtos esteacuteticos forjados a partir da capacidade criativa inerente

a tudo que vive Ou seja apesar de ser questionaacutevel por conta sobretudo da leitura

enviesada e de segunda matildeo da obra kantiana leitura que eacute fundamentada com base nas

interpretaccedilotildees de Kuno Fischer Albert Lange e Schopenhauer entre outros Zur Teleologie

apresenta alguns pontos de vista de grande relevacircncia para o aprofundamento das questotildees

acerca da compreensatildeo nietzschiana dos problemas com a concepccedilatildeo tradicional de

conhecimento

18

Vaacuterias satildeo os problemas apresentados nas notas que mais tarde seriam elaborados

de forma mais apropriada por Nietzsche Primeiramente temos nestas notas preparatoacuterias a

apresentaccedilatildeo de uma noccedilatildeo de organismo como multiplicidade noccedilatildeo que tambeacutem no

periacuteodo maduro de seu pensamento se relacionaraacute com seu perspectivismo Em segundo

lugar em Zur Teleologie eacute realizada a denuacutencia da natureza ficcional e utilitaacuteria da

concepccedilatildeo de teleologia que como outras concepccedilotildees tomadas por Nietzsche como

oriundas de uma consideraccedilatildeo metafiacutesica um conceito de caraacuteter universal que a tradiccedilatildeo

acredita se circunscrever no acircmbito puramente cognitivo eacute considerada naquele texto

como o produto de uma perspectiva limitada

A discussatildeo desenvolvida em Zur Teleologie sobre a finalidade da natureza colocara

Nietzsche diante de um dos principais problemas que sua filosofia precisara administrar o

problema do valor dos produtos subjetivos da razatildeo Toda a argumentaccedilatildeo nietzschiana em

torno das concepccedilotildees de teleologia e mecanicismo se justifica quase que exclusivamente

por apontar para esse problema A resposta para esse problema passa pela questatildeo do

niilismo discutida mais a frente e pela consideraccedilatildeo do perspectivismo como uma forma

de pensar os produtos da razatildeo como tendo valor a partir de uma consideraccedilatildeo de seu valor

bioloacutegico mas tambeacutem como expressatildeo da forccedila vital inerente a criaccedilatildeo de valor objetos

do capiacutetulo final deste trabalho

Estes elementos fazem de Zur Teleologie um objeto de interesse fundamental para

nossa investigaccedilatildeo Pois na medida em que o autor investiga a possibilidade de se rejeitar

concepccedilotildees tais como o juiacutezo teleoloacutegico sem que em seu lugar seja necessaacuterio recorrer a

outra qualquer concepccedilatildeo de cunho metafiacutesico percorre hipoacuteteses que em sua filosofia

madura se relacionaram ao questionamento acerca do embate entre valor vital e valor de

verdade de determinadas concepccedilotildees Esta forma de conceber o problema do valor de

concepccedilotildees metafiacutesicas antecipa a discussatildeo em torno da validade dos produtos da

atividade criativa humana como objetos de valor vital e os problemas oriundos de se tomar

este valor como estando vinculado a um valor de verdade absoluto

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica

19

Para a elaboraccedilatildeo de sua criacutetica da questatildeo teleoloacutegica no conjunto de notas que

comentaremos a seguir Nietzsche parte de uma leitura particular das filosofias de Kant

Albert Lange e Schopenhauer Mais especificamente sua argumentaccedilatildeo em torno da

concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo que constitui-se em um tema de importacircncia significativa

para ao desenvolvimento posterior de sua concepccedilatildeo de conhecimento eacute fundamentada em

uma releitura das posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer a partir de uma fundamentaccedilatildeo

cientiacutefica que o autor retira de sua leitura da obra de Lange Assim considerada a tradiccedilatildeo

filosoacutefica em torno do problema do qual Nietzsche pretende se aproximar a relevacircncia da

tentativa nietzschiana de se inserir na questatildeo acerca da teleologia eacute condicionada pelo

aspecto semifilosoacutefico e semi- cientiacutefico de seus argumentos

Para resumir uma questatildeo maior do que o espaccedilo que temos para apresentaacute-la

diriacuteamos que pelo menos desde a modernidade19 partidos disputam acerca da organizaccedilatildeo

da realidade no sentido de interpretar essa realidade ou bem como o resultado da

interaccedilatildeo dos aacutetomos ou bem de maneira teleoloacutegica ou seja como se esta se dispusesse

segundo uma finalidade uacuteltima Eacute neste embate teoacuterico que as colocaccedilotildees de Nietzsche

pretendem se situar De modo geral os fundamentos para a compreensatildeo nietzschiana do

problema da teleologia naquele momento de sua produccedilatildeo seriam as conclusotildees

apresentadas por Kant na segunda seccedilatildeo de sua Criacutetica do Juiacutezo acerca do Juiacutezo

Teleoloacutegico e as criacuteticas de Schopenhauer e Albert Lange a essas conclusotildees

No entanto se sua reflexatildeo se prendesse a estas referecircncias teoacutericas o conjunto de

fragmentos em questatildeo teria pouco interesse em nossa investigaccedilatildeo O que nos importa

aqui aleacutem da opiniatildeo nietzschiana acerca desses temas eacute sua interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees

mencionadas Motivo pelo qual necessitamos reconstruir minimamente as concepccedilotildees que

inspiraram Nietzsche na tentativa de entender como sua reflexatildeo pode ser tomada como

uma novidade em relaccedilatildeo ao problema da teleologia Neste sentido talvez natildeo seja absurdo

retomar a apresentaccedilatildeo schopenhaueriana do problema

No apecircndice para sua obra maacutexima em que concentra sua criacutetica da filosofia

kantiana Schopenhauer define o problema da teleologia como a disputa entre uma posiccedilatildeo

materialista e uma posiccedilatildeo teiacutesta acerca da produccedilatildeo do mundo Com essa apresentaccedilatildeo do

19 Propriamente falando a questatildeo remonta agrave antiguidade com a concepccedilatildeo aristoteacutelica das causas finaisassumindo na idade meacutedia uma feiccedilatildeo teoloacutegica por meio da ideia de um ser criador da realidade conformeuma inteligecircncia a semelhanccedila da humana Mas na criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica emboraestes ancestrais da questatildeo natildeo sejam ignorados ocupam papel secundaacuterio se comparados com os autoresque precedem imediatamente Kant

20

problema o autor prepara o terreno para a inclusatildeo de Kant na discussatildeo a partir de sua

concepccedilatildeo teleoloacutegica como um ponto de virada que torna sem sentido as posiccedilotildees dos

partidos em disputa Diz Schopenhauer

Ateacute Kant havia-se estabelecido para si o verdadeiro dilema entrematerialismo e teiacutesmo vale dizer entre a assunccedilatildeo de que um acaso cegoou uma inteligecircncia ordenadora de fora segundo fins e conceitos tenhaproduzido o mundo neque dabatur tertium (Natildeo havia terceirapossibilidade) Por isso ateiacutesmo e materialismo eram a mesma coisa Daiacutea duacutevida se poderia existir um ateu isto eacute uma pessoa que pudesserealmente confiar ao acaso cego a tatildeo extraordinaacuteria ordenaccedilatildeo finaliacutesticada natureza em especial a orgacircnica (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg637)

O problema acerca da produccedilatildeo do mundo eacute apresentada aqui como estando

diretamente relacionada agrave pergunta pelos princiacutepios ou fins norteadores de uma tal

produccedilatildeo Se concordamos com Schopenhauer entatildeo seria necessaacuterio admitir que natildeo

haveriam diferenccedilas fundamentais entre o ateiacutesmo e o materialismo na medida em que o

materialismo seria a explicaccedilatildeo da origem do mundo por meio de causas meramente

fiacutesicas sem a intercessatildeo divina Ou seja ambas interpretaccedilotildees rejeitam a ideia de que

Deus estaria reduzido a agente criador do mundo conforme um plano sumamente

inteligente Do mesmo modo em ambas as leituras parece subsistir a ideia de que o mundo

eacute tal como se nos apresenta

O problema da criaccedilatildeo do mundo tal como eacute posto por Schopenhauer implica na

compreensatildeo do modo como o mundo fora ordenado Nessa leitura ou bem esta ordenaccedilatildeo

se deu por acaso ou bem cumpria os ditames de uma inteligecircncia superior guiada por

finalidades a que se devia tal ordenaccedilatildeo A questatildeo mesma da natureza desta ordenaccedilatildeo natildeo

eacute posta em duacutevida jaacute que para ambos os partidos em disputa ela pareceria evidente na

contemplaccedilatildeo do mundo Teria sido em meio a essa disputa que Kant teria surgido e

mudado o foco da questatildeo por meio da distinccedilatildeo entre fenocircmenos e coisas em si

A validade daquela premissa maior disjuntiva daquele dilema entrematerialismo e teiacutesmo assenta-se na assertiva de que o mundo existentediante de noacutes eacute o das coisas em si por conseguinte natildeo existiria outraordem de coisas senatildeo empiacuterica Poreacutem depois que o mundo e suaordenaccedilatildeo se tornou via Kant mero fenocircmeno cujas leis se encontram

21

principalmente nas formas de nosso intelecto a existecircncia e a essecircnciadas coisas e do mundo natildeo precisam mais ser explanadas conformeanalogia das mudanccedilas percebidas ou efetuadas por noacutes NO mundo Nemaquilo que apreendemos como meio e fim teria nascido em consequecircnciade um tal conhecimento Portanto Kant privando o teiacutesmo de seufundamento mediante a importante distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa emsi abriu por outro flanco o caminho para as explanaccedilotildees completamentediversas e mais profundas sobre a existecircncia (SCHOPENHAUER 1966paacuteg 638)

Para Schopenhauer portanto ateacute Kant apenas se podia discutir a questatildeo da

produccedilatildeo do mundo de duas formas ou bem o mundo eacute produto de uma criaccedilatildeo divina ou

obra do acaso Isto porque o modelo para a compreensatildeo da criaccedilatildeo das coisas era a

atuaccedilatildeo do homem em uma realidade que se considerava a realidade ela mesma Por outro

lado a partir da compreensatildeo de que o mundo que estaacute a disposiccedilatildeo para a criaccedilatildeo por

parte da inteligecircncia eacute justamente o mundo dos fenocircmenos torna-se sem sentido a

analogia entre a inteligecircncia divina e a humana

As duas uacutenicas alternativas ateacute entatildeo ou bem o mundo teria sido constituiacutedo

segundo uma inteligecircncia exterior ou bem seria o resultado de causas mecacircnicas pareciam

insuficientes para dar conta do problema da produccedilatildeo do mundo tanto assim que a questatildeo

natildeo chegava a uma soluccedilatildeo Ao apresentar assim o problema o autor potildee em relevo a

filosofia kantiana como um ponto de ruptura com as correntes de pensamento anteriores

que discerniam apenas de forma dualiacutestica o problema

A inserccedilatildeo de Kant nessa disputa deu-se por meio da compreensatildeo segundo a qual

os seres orgacircnicos natildeo seriam passiacuteveis de compreensatildeo apenas segundo modelos

mecacircnicos porque em sua natureza estaria incluiacuteda uma espeacutecie de necessidade

inexplicaacutevel segundo a necessidade mecacircnica tradicional Ou seja no reino inorgacircnico

diferentemente do reino orgacircnico tudo se reduziria agrave relaccedilatildeo de causas e efeitos segundo a

qual os processos de originaccedilatildeo e desenvolvimento seriam passiacuteveis de serem

compreendidos Para salientar esta questatildeo o filoacutesofo utiliza o caso da cristalizaccedilatildeo a qual

considera uma espeacutecie de crescimento no reino do inorgacircnico

A formaccedilatildeo ocorre pois por uma uniatildeo repentina isto eacute por umasolidificaccedilatildeo raacutepida e natildeo por uma passagem progressiva do estado fluido

22

ao soacutelido mas como que por um salto cuja passagem tambeacutem eacutedenominada cristalizaccedilatildeo (KANT 2016 Paacuteg 211)

A referecircncia kantiana ao processo de cristalizaccedilatildeo eacute pensada como meio de

contrastar o desenvolvimento e relaccedilatildeo entre as partes nos seres inorgacircnicos em relaccedilatildeo ao

mesmo processo nos seres orgacircnicos Para Kant a cristalizaccedilatildeo que nos seres inorgacircnicos

diz respeito ao processo de passagem do estado fluido para o soacutelido e que poderia ser

compreendido como uma forma de crescimento e desenvolvimento no reino inorgacircnico

natildeo seria correlato ao crescimento e desenvolvimento dos seres do reino orgacircnico Posto

que no reino orgacircnico ocorreria uma troca de causaccedilotildees entre o todo e as partes e vice-

versa que natildeo se observa no reino inorgacircnico Segundo o exemplo kantiano haveria uma

muacutetua dependecircncia na geraccedilatildeo das folhas de uma aacutervore em relaccedilatildeo agrave proacutepria aacutervore

contrariamente ao que se observa na realidade inorgacircnica O crescimento das folhas

depende da aacutervore mas o desenvolvimento das aacutervores igualmente depende do

desenvolvimento das folhas

Assim no entender de Kant a causalidade tradicional segundo a qual para cada

efeito deveria haver uma causa determinante natildeo corresponderia ao tipo de necessidade

que se observa na formaccedilatildeo e crescimento de seres organizados Os seres orgacircnicos em

sua leitura seriam determinados por um princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproco que apenas

poderia ser compreendida em conformidade com uma ideia de fim natural Eacute com base

nesse princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproca que no paraacutegrafo 65 da Criacutetica da faculdade do

juiacutezo que parece ter inspirado especialmente as concepccedilotildees criticadas por Nietzsche em

suas notas preparatoacuterias Kant prepara o caminho para sua definiccedilatildeo de um fim natural

Por isso para um corpo dever ser ajuizado em si e segundo a uma formainterna eacute necessaacuterio que as partes do mesmo se produzam umas agraves outrasreciprocamente em conjunto tanto segundo a sua forma como na sualigaccedilatildeo e assim produzam um todo a partir da sua proacutepria causalidadecujo conceito por sua vez e inversamente (num ser que possuiacutesse acausalidade adequada a um tal produto) poderia ser causa dele mesmosegundo um princiacutepio e em consequecircncia a conexatildeo das causaseficientes poderia ser ajuizada simultaneamente como efeito mediantecausas finais (KANT 2016 Paacuteg 239)

23

A explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos assim requer um elemento estranho agrave explicaccedilatildeo

dos seres inorgacircnicos Para a explicaccedilatildeo do desenvolvimento das plantas que eacute o exemplo

preferido pelo filoacutesofo nosso entendimento requer uma concepccedilatildeo de fim natural que

contrasta com a causalidade mecacircnica na medida em que causas eficientes devem ser

tomadas tambeacutem como ldquoefeitos mediante causas finaisrdquo logo a uma concepccedilatildeo de fim

natural das partes em relaccedilatildeo ao todo Nesse sentido ldquoEste princiacutepio que eacute ao mesmo

tempo a definiccedilatildeo dos seres organizados eacute o seguinte um produto organizado da natureza

eacute aquele em que tudo eacute fim e reciprocamente meio Nele nada eacute em vatildeo sem fim ou

atribuiacutevel a um mecanismo natural cegordquo (KANT 2016 Paacuteg 242) Diferentemente do

reino inorgacircnico em que se observa que para cada causa corresponde um efeito que se

torna independente da causa originaacuteria no sentido de que natildeo seria retroativo em relaccedilatildeo a

essa causa cada parte de um ser organizado eacute causa e fim do ser organizado enquanto

totalidade

O exemplo escolhido por Kant o de uma planta de cujas folhas eacute ao mesmo

tempo fim e meio expressa claramente a ideia de necessidade de uma causa final diretora

das causas em jogo nas partes e no todo Posto que o desenvolvimento das folhas eacute efeito

da planta mas como o desenvolvimento da proacutepria planta depende do desenvolvimento

das folhas o desenvolvimento das folhas tambeacutem seria causa do desenvolvimento da

planta Esta concepccedilatildeo de uma coisa como fim de si mesma segundo Kant possuiacutea apenas

uma analogia com a causalidade enquanto ldquoconceito constitutivo de nosso entendimentordquo

ou seja enquanto forma de nosso entendimento Pois no tipo de causalidade que se

observaria no reino orgacircnico na reciprocidade de causaccedilatildeo que se observa na relaccedilatildeo entre

os seres orgacircnicos e suas partes teriacuteamos um residuum um fragmento natildeo explicado do

fenocircmeno sempre que o pensaacutessemos segundo o conceito inteligiacutevel de causalidade

O problema da teleologia natural surge quando considerado o tipo de ldquocausalidaderdquo

atuante no reino orgacircnico em que parece atuar uma espeacutecie de finalidade que apenas seria

compreensiacutevel segundo a analogia de uma inteligecircncia superior Para esta finalidade

superior a ldquocausalidaderdquo corresponderia como categoria superior Assim ao menos

metodologicamente pareceria viaacutevel a suposiccedilatildeo de uma inteligecircncia superior como forma

de se compreender a causalidade atuante na natureza orgacircnica

Por outro lado enquanto a concepccedilatildeo de uma inteligecircncia formativa exterior esteja

para muito aleacutem de nossa capacidade de conhecimento posto que a sua universalidade a

24

colocaria para aleacutem dos limites do conhecimento empiacuterico recai sob a concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza o mesmo veto jaacute estabelecido na primeira criacutetica kantiana para as

ideias de Deus Liberdade e Alma Desta forma explica-se de que maneira a faculdade do

juiacutezo eacute aproximada por Kant da razatildeo teoacuterica e da razatildeo praacutetica Por meio de um uso

regulativo da concepccedilatildeo de conveniecircncia a fins que deve diferenciaacute-la do uso constitutivo

que o intelecto faz de seus conceitos Kant estabelece o uso do princiacutepio teleoloacutegico como

meacutetodo analoacutegico e acessoacuterio para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

O conceito de uma coisa enquanto fim natural em si natildeo eacute por isso umconceito constitutivo do entendimento ou da razatildeo No entanto pode serum conceito regulativo para a faculdade de juiacutezo reflexiva para orientar ainvestigaccedilatildeo sobre objetos desta espeacutecie segundo uma analogia remotacom nossa causalidade segundo fins em geral refletir sobre o seu maisalto fundamento o que natildeo serviria para o conhecimento da natureza oude seu fundamento originaacuterio mas muito mais do conhecimento daquelanossa faculdade racional praacutetica com a qual por analogia noacutesconsideraacutevamos a causa daquela conformidade a fins (KANT 2016 Paacuteg241-242)

O propoacutesito de Kant assim natildeo se confunde com a descriccedilatildeo da finalidade natural

Menos ainda com a proposiccedilatildeo da existecircncia de uma causalidade superior Por meio da

suposiccedilatildeo de uma finalidade natural o filoacutesofo da criacutetica apenas pensava constituir o

intelecto com mais um instrumento para a compreensatildeo da natureza o que fica claro no

paraacutegrafo 68 da Criacutetica da faculdade do juiacutezo em que o autor trata da teleologia como um

princiacutepio interno da natureza

Neste paraacutegrafo Kant parte da definiccedilatildeo na constituiccedilatildeo das ciecircncias de seus

princiacutepios internos ou princiacutepios constitutivos e os princiacutepios externos aqueles que

encontram sua fundamentaccedilatildeo em outras ciecircncias Com essa distinccedilatildeo o autor pretende

considerar o princiacutepio teleoloacutegico como princiacutepio externo agrave ciecircncia da natureza como um

princiacutepio assessoacuterio agrave ciecircncia da fiacutesica tal qual as ciecircncias matemaacuteticas Ou seja mais do

que traccedilar consideraccedilotildees epistemoloacutegicas Kant procura afastar-se da concepccedilatildeo de fim na

natureza como produto de uma inteligecircncia externa

A distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si aparece aqui como elemento fundamental

dessa compreensatildeo Pois eacute atraveacutes de seu posicionamento transcendental que o autor busca

separar a teleologia da teologia e assim abrir caminho para um uso cientiacutefico do princiacutepio

25

teleoloacutegico no estudo da natureza Este uso cientiacutefico meramente metodoloacutegico distingue-

se completamente das explicaccedilotildees teiacutestas da natureza

Diferentemente da compreensatildeo teoloacutegica que parte da pressuposiccedilatildeo de uma

inteligecircncia superior como fonte da finalidade natural o autor entende que apesar de nosso

entendimento carecer de um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

conceber uma inteligecircncia exterior como causa da finalidade natural estaacute muito aleacutem da

capacidade cognitiva humana Por conta das limitaccedilotildees tiacutepicas de nossa forma de

considerar a realidade natildeo se pode saber se haacute um ser sumamente inteligente que criou a

natureza posto que tal existecircncia por definiccedilatildeo natildeo pode ser objeto de entendimento Do

mesmo modo seria impossiacutevel saber se caso um tal ser sumamente inteligente existisse

teria constituiacutedo a realidade segundo os princiacutepios de uma inteligecircncia anaacuteloga agrave

inteligecircncia humana Schopenhauer compreendeu bem essa distinccedilatildeo kantiana e natildeo

deixou de prestar sua homenagem a Kant pela sabedoria de suas conclusotildees

Kant tem plena razatildeo no assunto tambeacutem era necessaacuterio que apoacutes tersido mostrado que o conceito de causa e efeito natildeo se aplica ao todo danatureza em geral segundo sua existecircncia tambeacutem fosse mostrado queconforme sua iacutendole a natureza natildeo pode ser pensada como efeito deuma causa guiada por motivos (conceito de finalidade) Caso se pense nagrande plausibilidade da prova fisico-teoloacutegica que ateacute mesmoVOLTAIRE considerava irrefutaacutevel era da maior importacircncia mostrarque o subjetivo de nossa apreensatildeo para o qual Kant reivindicou espaccedilotempo e causalidade estende-se tambeacutem ao nosso julgamento dos corposnaturais e por conseguinte a necessidade que sentimos em pensaacute-loscomo surgidos premeditadamente segundo conceitos de finalidade logopor uma via ONDE A REPRESENTACcedilAtildeO DOS MESMOS TERIAPRECEDIDO SUA EXISTEcircNCIA eacute de origem tatildeo subjetiva quanto aintuiccedilatildeo do espaccedilo a expor-se objetivamente a qual entretanto natildeo podevaler como verdade objetiva (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 661)

Conforme o entendimento de Schopenhauer ao limitar o alcance do conceito de

finalidade agrave esfera da compreensatildeo humana Kant teria posto termo a credibilidade da

prova fiacutesico-teoloacutegica segundo a qual todo existente dependia de uma inteligecircncia

criadora Kant teria alcanccedilado esta vitoacuteria ao pressupor apenas de modo metodoloacutegico a

existecircncia de uma finalidade superior como uma exigecircncia do entendimento humano que

natildeo se sabe se pode obter um equivalente na realidade Nietzsche no entanto parece natildeo

26

ter tomado como suficiente o papel regulativo que Kant confere ao princiacutepio de fim

natural

A discordacircncia nietzschiana da compreensatildeo kantiana do problema natildeo eacute incidental

Pelo contraacuterio a forma como Kant reproduz o problema da teleologia apresenta-se ao autor

das notas preparatoacuterias como modelo da teoria a ser criticada Assim jaacute nas primeiras

linhas de Zur Teleologie o autor enuncia sua discordacircncia com o pensamento kantiano

ldquoKant tenta provar lsquoque haacute uma necessidade para pensar organismos como premeditados

quer dizer pensaacute-los em termos de conceitos de conformidade a finsrsquo apenas posso aceitar

que isto eacute uma forma de explicar-se a teleologiardquo (BAW 3 paacuteg 130)20 O que indica que o

filoacutesofo por seus proacuteprios motivos certamente apropria-se de forma inovadora da

distinccedilatildeo kantiana entre constitutivo e regulativo

Na medida em que se propotildee a efetuar uma reduccedilatildeo do conceito de explicaccedilatildeo a

uma concepccedilatildeo interpretativa entendimento que jaacute antecipa uma compreensatildeo

perspectivista Nietzsche pensa o conceito de finalidade natural como uma

antropomorfizaccedilatildeo desnecessaacuteria Nesse sentido tambeacutem o conceito de conveniecircncia a

fins para o autor das notas preparatoacuterias deveria ser compreendido como um aspecto

interpretativo mais do que um aspecto descritivo da natureza Um fato marcante para o

jovem Nietzsche eacute que em sua leitura o proacuteprio Kant deveria ter realizado a criacutetica das

concepccedilotildees reguladoras

O autor das notas preparatoacuterias compreende que se Kant natildeo o fez seria porque se

deixou levar por uma consideraccedilatildeo da concepccedilatildeo teleoloacutegica como expressatildeo de um

conhecimento do qual o autor da criacutetica sabia desde o princiacutepio natildeo ter direito Assim o

autor das notas preparatoacuterias engloba Kant em sua criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como

um antropomorfismo ingecircnuo embora seja muito provaacutevel que o proacuteprio Kant tenha

criticado as mesmas concepccedilotildees sob a mesma alegaccedilatildeo

De fato na medida em que considera sem sentido o recurso kantiano aos juiacutezos

explicativos Nietzsche enxerga no caraacuteter indeterminado do modo humano de

compreensatildeo da natureza a ausecircncia de um princiacutepio que justifique a admissatildeo dos

produtos de nossa consideraccedilatildeo da realidade como verdades inquestionaacuteveis A

conveniecircncia a fins na natureza eacute entatildeo reduzido elo autor a uma expressatildeo do modo

20 As notas Zur Teleologie satildeo citadas a partir do terceiro volume da ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas dejuventude de Nietzsche organizadas por METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a siglaldquoBAW 3rdquo e conforme sua paginaccedilatildeo As traduccedilotildees satildeo de nossa responsabilidade

27

humano de compreensatildeo do reino do orgacircnico Compreendida pelo autor das notas

preparatoacuterias como uma criaccedilatildeo do intelecto condicionada pelo proacuteprio aparelho conceitual

e perceptivo do homem a finalidade na natureza natildeo passaria de uma ficccedilatildeo que cumpre

um papel na ordenaccedilatildeo humana da realidade mas que fora desta ordenaccedilatildeo poderia natildeo ter

nenhum significado

Em Zur Telelologie A disposiccedilatildeo do reino orgacircnico segundo a ideia de uma

conveniecircncia a fins eacute tomada como produto de uma ldquoimaginaccedilatildeo estendidardquo uma ficccedilatildeo

criada pelo homem para poder regular seu conhecimento e suas accedilotildees Desde que para o

autor das notas preparatoacuterias o conceito de conformidade a fins eacute considerado um produto

esteacutetico esta concepccedilatildeo passa a ser a expressatildeo de um poder inconsciente que cria e se

serve do conhecimento para as funccedilotildees vitais como fortalecimento crescimento

preservaccedilatildeo Esta interpretaccedilatildeo diverge significativamente da interpretaccedilatildeo kantiana na

qual a noccedilatildeo de uma teleologia natural eacute pensada como um conceito subjetivo fundamental

para o uso da razatildeo

Nas notas preparatoacuterias Nietzsche ainda natildeo adianta a tese que nortearaacute seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira de que este tipo de ordenaccedilatildeo da natureza cumpre um papel

fundamental na conservaccedilatildeo do gecircnero humano A ideia fundamental nas notas eacute que uma

finalidade na natureza apenas eacute vista como uma forma especial de finalidade porque

tomamos a conservaccedilatildeo da vida como uma finalidade especial Assim o autor afirma no

apontamento 62[29] ldquoAqui verifica-se que acabamos de chamar proposital o que eacute viaacutevel

O segredo eacute apenas lsquovidarsquordquo(BAW 3 Paacuteg 380) Ao comentar as notas em questatildeo Lopes

identifica nesta concepccedilatildeo um certo pendor para a teoria de Lange na medida em que o

autor das notas preparatoacuterias amplia o escopo dos juiacutezos reflexivos tornando-os uma

questatildeo de utilidade bioloacutegica

Tambeacutem aqui Nietzsche deve ser visto como um herdeiro do programa deLange ao problematizar a distinccedilatildeo kantiana entre uso regulativo edeterminante dos juiacutezos Nietzsche daacute um passo decisivo rumo a umacompreensatildeo ficcional generalizada dos processos de assimilaccedilatildeo humanado mundo Os conceitos mobilizados pelos juiacutezos determinantes(Nietzsche fornece uma lista algo aleatoacuteria destes conceitos na passagemacima) satildeo igualmente regulativos e pertencem agrave mesma estrateacutegiaantropomoacuterfica de apropriaccedilatildeo do mundo (LOPES 2008 Paacuteg 153)

28

Assim a compreensatildeo de base de que os conceitos satildeo criaccedilotildees humanas

condicionadas pela organizaccedilatildeo humana que eacute um traccedilo comum a ambas obras de

juventude nietzschianas tanto seu Ensaio sobre Verdade e Mentira quanto as notas

preparatoacuterias representaria uma releitura de uma conclusatildeo fundamental da filosofia de

Albert Lange Ou seja a apropriaccedilatildeo da concepccedilatildeo kantiana de uso regulativo dos

conceitos na forma de uma consideraccedilatildeo bioloacutegica uma apropriaccedilatildeo em que os interesses

para a vida entram em jogo representaria uma interpretaccedilatildeo nietzschiana das

consideraccedilotildees de Albert Lange o qual para Lopes ldquorestringe a fantasia especulativa ao

acircmbito do discurso edificante e da ficccedilatildeo conceitualrdquo (LOPES 2008 Paacuteg 152)

O que estaacute sendo dito aqui eacute que tanto para Albert Lange quanto para o jovem

autor das notas preparatoacuterias conceitos como o conceito de finalidade natural cumpririam

um importante papel na apropriaccedilatildeo humana da realidade Com o amadurecimento da

reflexatildeo nietzschiana uma consequecircncia mais geral desta forma de compreensatildeo do

problema conduziraacute agrave ideia de que natildeo haacute conhecimento no sentido tradicional mas

somente interpretaccedilatildeo criaccedilatildeo de ilusotildees segundo a determinaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo e

conforme a necessidade humana de dominaccedilatildeo da natureza Os juiacutezos explicativos

pressupostos por Kant em sua criacutetica do juiacutezo tornam-se sem sentido na reflexatildeo do jovem

Nietzsche devendo ser substituiacutedos pela categoria de interpretaccedilatildeo Esta compreensatildeo do

papel da interpretaccedilatildeo como uma afirmaccedilatildeo dos limites da compreensatildeo humana antecipa

os traccedilos fundamentais da madura compreensatildeo nietzschiana do conhecimento

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia

Como apresentamos na seccedilatildeo anterior a redaccedilatildeo das notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie tem nas reflexotildees de Kant e Schopenhauer uma inspiraccedilatildeo contiacutenua No entanto

em sua investigaccedilatildeo do problema teleoloacutegico o autor das notas busca conferir uma

abordagem diferenciada ao problema Esta abordagem diferenciada em parte se deveria a

uma constante reflexatildeo em torno das descobertas das ciecircncias naturais Ou seja a novidade

da abordagem nietzschiana se explica em parte no caraacuteter semicientiacutefico que o autor

29

pretendia conferir a sua tese No entanto no plano filosoacutefico qual seria a natureza das

divergecircncias de Nietzsche com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer

Na medida em que a criacutetica nietzschiana a toda forma de teleologia baseia-se em

uma consideraccedilatildeo do caraacuteter antropomoacuterfico da proacutepria ideia de conveniecircncia a fins21 a

interpretaccedilatildeo kantiana apareceria como modelo de uma forma ingecircnua de interpretaccedilatildeo

teleoloacutegica por desconsiderar a atuaccedilatildeo do intelecto na formaccedilatildeo daquilo que

compreendemos como a ideia de organismo Nessa criacutetica o autor acompanha de perto a

Schopenhauer a quem se refere ao apontar que ldquoA simples ideia eacute distribuiacuteda na

multiplicidade de partes e condiccedilotildees do organismo mas resta intacta na junccedilatildeo necessaacuteria

das partes e funccedilotildeesrdquo (BAW 3 paacuteg 372)

A divergecircncia do autor das notas com relaccedilatildeo agrave Kant portanto eacute posta nos

primeiros momentos de sua reflexatildeo sua abordagem do problema entende-se como um

afastamento de Kant na medida em que o autor das notas pretende efetuar a reduccedilatildeo da

ideia de finalidade natural a um traccedilo da proacutepria constituiccedilatildeo humana A afirmaccedilatildeo

nietzschiana de que Kant deveria ser compreendido como um filoacutesofo filiado a uma

corrente teleoloacutegica em filosofia (BAW Paacuteg 372) estaacute diretamente ligada a esta forma de

compreensatildeo do problema Para Nietzsche a defesa de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica como

necessaacuteria para a compreensatildeo da natureza tal como esta noccedilatildeo apareceria na Criacutetica do

Juiacutezo soacute poderia ser admitida como uma maneira de definir o conceito de teleologia

A denuacutencia da filosofia kantiana como uma forma de defesa da teleologia parte da

compreensatildeo de que Kant chega em sua investigaccedilatildeo da finalidade natural a uma

conclusatildeo natildeo fundamentada Em sua anaacutelise das conclusotildees da Criacutetica do Juiacutezo

Nietzsche identifica uma transposiccedilatildeo indevida da anaacutelise da realidade fenomecircnica para

21 Crawford observa o caraacuteter antropomoacuterfico por traacutes da proacutepria consideraccedilatildeo da ideia de conveniecircncia afins tal como Nietzsche entende essa ideia ldquoAo levarmos em consideraccedilatildeo o primeiro ponto nos planos daobra de Nietzsche lsquoconceito de conveniecircncia a finsrdquo (Begriff der Zweckmaumlssigkeit BAW 3 Paacuteg 392) noteque ele qualifica a palavra conveniecircncia a fins (Zweckmaumlssigkeit Crawford traduz este termo por expedience)como o conceito de conveniecircncia a fins Nietzsche cita Kant duas vezes a partir da Criacutetica do Juiacutezo acerca dopapel fundamental dos conceitos lsquoNoacutes temos completa ideia apenas do que podemos fazer e cumprir deacordo com nossos conceitosrsquo A isso Nietzsche responde lsquoo que se encontra aleacutem dos conceitos eacutecompletamente incompreensiacutevelrsquo Tendo em vista superar o fato de que os seres humanos se potildee diante dodesconhecido eles inventam lsquoconceitos os quais apenas reuacutenem uma soma de caracteriacutesticas aparentes asquais poreacutem natildeo conseguem apreender as coisasrsquo Nietzsche entatildeo enfatiza a natureza provisional daconceitualidade com relaccedilatildeo aos elementos baacutesicos de uma consideraccedilatildeo teleoloacutegica ao escrever lsquoEntre estesestatildeo forccedila mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causa final Estes natildeo satildeo partes mas apenas juiacutezosreflexivosrsquordquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 110)

30

uma realidade superior apartada do mundo orgacircnico o que representaria um salto loacutegico

com base na pressuposiccedilatildeo da necessidade de se considerar fins na natureza Para o autor

das notas preparatoacuterias portanto Kant natildeo teria conseguido superar a interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica do problema teleoloacutegico

O tratamento do problema da teleologia nas notas preparatoacuterias que se oferece

como a transiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica para uma interpretaccedilatildeo eminentemente

epistemoloacutegica converge para uma forma de reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento

e dos limites da capacidade de compreensatildeo humana Assim em sua leitura Nietzsche

concebe a origem da ideia de finalidade exterior como uma superexaltaccedilatildeo da

racionalidade humana que por meio da analogia entre a inteligecircncia constituidora da

natureza com a nossa organizaccedilatildeo conduz a uma compreensatildeo da realidade segundo

princiacutepios finaliacutesticos

Para o jovem Nietzsche a suposiccedilatildeo de uma realidade organizada mediante uma

inteligecircncia exterior seria um antropomorfismo ingecircnuo Tal antropomorfismo que faz

com que se conceba a ideia de finalidade como um traccedilo ineliminaacutevel da realidade

conduziria inevitavelmente a uma concepccedilatildeo teleoloacutegica da realidade Competiria agrave criacutetica

da concepccedilatildeo teleoloacutegica desvelar este antropomorfismo por meio da fundamentaccedilatildeo da

compreensatildeo desta ideia como uma forma humana de compreensatildeo da realidade Nesse

sentido na medida em que a concepccedilatildeo teleoloacutegica diria respeito a nosso modo de

enxergar a realidade e natildeo agrave realidade tal como ela poderia ser em si mesma Nietzsche

trata do problema mediante um tratamento segundo uma anaacutelise das condiccedilotildees de

percepccedilatildeo das finalidades e natildeo de sua realidade necessaacuteria que seria a pretensatildeo por traacutes

das aproximaccedilotildees racionalistas

Segundo a leitura apresentada por Nietzsche nas notas preparatoacuterias a explicaccedilatildeo

kantiana do mundo orgacircnico parece reclamar um recurso agraves coisas em si para sua

justificaccedilatildeo Nesse sentido o jovem autor das notas preparatoacuterias se volta contra Kant e a

favor de Schopenhauer quando afirma ldquoA ideia expandida acima confere a explicaccedilatildeo da

conveniecircncia a fins externa A coisa em si deve lsquomostrar sua unidade na aceitaccedilatildeo de todas

as partesrsquordquo (BAW 3 paacuteg 373) O filoacutesofo compreende que se a natureza apenas nos pode

ser compreensiacutevel mediante a ideia de uma necessidade ou uma propensatildeo natural a fins

31

isto deveria ser creditado a uma caracteriacutestica de nossa forma de compreender o mundo e

natildeo agrave realidade ela mesma

A ideia de uma finalidade natural ideia na qual Kant teria se baseado para sua

defesa da adoccedilatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico norteador da investigaccedilatildeo da natureza

aparece nessa leitura como a transposiccedilatildeo de um elemento da consideraccedilatildeo humana da

natureza para a proacutepria natureza A criacutetica nietzschiana a interpretaccedilatildeo teleoloacutegica kantiana

portanto baseia-se na ideia de que a referecircncia ou o pressuposto da experiecircncia humana

como condiccedilatildeo de constituiccedilatildeo da natureza natildeo pode ser entendido senatildeo como a

radicalizaccedilatildeo de um caraacuteter aleatoacuterio como uma antropomorfizaccedilatildeo da natureza Esta

criacutetica no entanto apenas pode ser adiantada por Nietzsche na medida em que o autor

julga insuficiente o recurso kantiano agrave distinccedilatildeo entre conceito explicativo e conceito

regulativo Ou seja Nietzsche pensa que a admissatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico ainda que

meramente como uma ferramenta auxiliar no estudo da natureza torna a concepccedilatildeo

kantiana como modelo de toda forma de defesa ingecircnua do princiacutepio de finalidade externa

Mas como compreender a relaccedilatildeo intriacutenseca entre as partes e o todo em um

organismo senatildeo por meio de uma ideia de finalidade Assim como na leitura

schopenhaueriana Nietzsche entende que esta accedilatildeo de junccedilatildeo seria uma accedilatildeo realizada

pelo intelecto e natildeo uma caracteriacutestica dos organismos Deste modo o autor das notas

afirma ldquoA conveniecircncia a fins do orgacircnico a regularidade do inorgacircnico satildeo acrescentadas

agrave natureza atraveacutes de nossa compreensatildeordquo (BAW 3 paacuteg 373) Nesse sentido a

conveniecircncia a fins identificada por Kant na realidade orgacircnica corresponderia apenas a

uma transposiccedilatildeo do modo humano de compreensatildeo da natureza agrave proacutepria natureza

A conformidade de opiniatildeo entre Nietzsche e Schopenhauer natildeo eacute total Esta

concordacircncia com Schopenhauer aparece nas notas preparatoacuterias quase que de forma

instrumental especialmente para a criacutetica da posiccedilatildeo kantiana Por outro lado o

desenvolvimento da reflexatildeo nietzschiana conduz a uma criacutetica ao recurso

schopenhaueriano agrave vontade como instacircncia em que a ideia de unidade se fundamentaria

Nessa leitura a compreensatildeo schopenhaueriana da ideia de conflito na natureza como uma

reflexo da atuaccedilatildeo do intelecto que se resolveria na ideia uacutenica de vontade eacute apresentada

como implicando em dificuldades teoacutericas incontornaacuteveis que apenas por meio do recurso

a uma vontade ao mesmo tempo muacuteltipla e una seria solucionaacutevel

32

A interpretaccedilatildeo schopenhaueriana da conformaccedilatildeo das partes ao todo aparece em

sua filosofia como resposta ao problema da adequaccedilatildeo dos organismos em relaccedilatildeo agraves preacute-

condiccedilotildees de sua existecircncia Nesta abordagem tambeacutem eacute levada em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo

entre as partes do organismo em relaccedilatildeo ao organismo como um todo tal como esta relaccedilatildeo

eacute expressa por Kant na Criacutetica do Juiacutezo e que seria justamente o que fundamenta a

concepccedilatildeo teleoloacutegica expressa naquela obra22 Para Schopenhauer o instinto animal seria

a perfeita representaccedilatildeo da figuraccedilatildeo da finalidade na natureza Pois os animais embora

natildeo possam se figurar uma finalidade por natildeo serem racionais parecem agir segundo uma

finalidade sua manutenccedilatildeo

De maneira geral o instinto dos animais nos fornece o melhoresclarecimento para a restante teleologia da natureza Pois se o instinto eacutecomo se fosse um agir conforme um conceito de fim no entantocompletamente destituiacutedo dele assim tambeacutem todos os quadros danatureza se assemelham aos feitos conforme a um conceito de fim e noentanto completamente destituiacutedos dele Em realidade tanto nateleologia externa quanto na interna da natureza aquilo que temos depensar como meio e fim eacute em toda parte apenas o FENOcircMENO DAUNIDADE DA VONTADE UNA EM CONCORDAcircNCIA CONSIGOMESMA que apareceu no espaccedilo e no tempo para o nosso modo deconhecimento (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Como se explica esta correlaccedilatildeo temporal assim como sua reciprocidade A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta finalidade natural se daacute por meio da conformidade dos

fenocircmenos em relaccedilatildeo a uma objetividade originaacuteria da Vontade Una Como a passagem

deixa claro toda teleologia natural seria apenas o reflexo de uma harmonia da Vontade Una

que aparece no fenocircmeno segundo os ditames do intelecto Pois se toda ideia de fim na

natureza seria apenas manifestaccedilatildeo da Vontade Una no tempo e espaccedilo para nosso

conhecimento isto significa que a teleologia natildeo corresponde ao modo de ser da realidade

mas apenas ao modo humano de interpretar esta Vontade Una enquanto fenocircmeno A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta relaccedilatildeo aprofunda a suposiccedilatildeo kantiana de uma

finalidade natural que faria convergir as necessidades das partes de um organismo agraves

necessidades do organismo propriamente

22 Conforme jaacute analisado em seccedilatildeo anterior deste capiacutetulo

33

Se Kant enxerga nos organismos uma relaccedilatildeo reciacuteproca de causaccedilatildeo finaliacutestica uma

muacutetua dependecircncia e conformaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo e vice-versa

Schopenhauer entende essa relaccedilatildeo como reflexo da objetivaccedilatildeo dos fenocircmenos no tempo

segundo uma mesma Ideia diretora na Vontade Una De tal forma que a conformidade

entre as exigecircncias para o surgimento e manutenccedilatildeo de cada espeacutecie em seu ambiente

assim como entre as espeacutecies mesmas apareceria como a expressatildeo de uma objetivaccedilatildeo da

vontade segundo o tempo que natildeo eacute uma categoria da Vontade Una ela mesma eterna e

imutaacutevel mas do entendimento humano

Por conseguinte tendo em mente nossa presente consideraccedilatildeo sobre omodo como a objetivaccedilatildeo da Vontade se distribui em Ideias o curso dotempo eacute totalmente sem significaccedilatildeo e as Ideias cujos FENOcircMENOSapareceram mais cedo no tempo segundo a lei da causalidade agrave qualestatildeo submetidas como fenocircmenos natildeo possuem nenhum direito preacutevioem face daquelas Ideias cujos fenocircmenos apareceram mais tarde e quesatildeo a bem-dizer justamente as objetivaccedilotildees mais perfeitas da Vontade eque tecircm de se adaptar agraves objetivaccedilotildees anteriores tanto quanto estas a elas(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em outros termos se a sucessatildeo temporal corresponde apenas a um modo do

intelecto representar entatildeo natildeo haacute que se espantar a perfeita correlaccedilatildeo entre o

aparecimento de uma espeacutecie e as condiccedilotildees de seu aparecimento Mais ainda esta relaccedilatildeo

de acomodaccedilatildeo natildeo apenas se expressaria na relaccedilatildeo entre o fenocircmeno precedente e o que

lhe sucede mas tambeacutem de forma retrospectiva

Nesse sentido a explanaccedilatildeo dada tambeacutem tem de ser usadaretrospectivamente e devemos natildeo apenas assumir que cada espeacutecie seadapta agraves circunstacircncias encontradas previamente mas tambeacutem estasprecedendo as espeacutecies no tempo levam igualmente em conta os seresque ainda estatildeo por vir Pois se trata de uma uacutenica e mesma Vontade quese objetiva no mundo Esta natildeo conhece tempo algum visto que a figuratemporal do princiacutepio de razatildeo natildeo pertence a ela nem agrave sua objetividadeoriginaacuteria as Ideias mas soacute agrave maneira como estas satildeo conhecidas pelosindiviacuteduos ndash eles mesmos transitoacuterios ndash isto eacute aos fenocircmenos das Ideias(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em sua interpretaccedilatildeo Schopenhauer pensa a relaccedilatildeo de reciprocidade entre

organismo e ambiente como algo que deve ser posto em antecipaccedilatildeo ao surgimento do

34

organismo de tal maneira que ldquoEm conformidade com tudo isso cada fenocircmeno teve de

se adaptar ao ambiente no qual apareceu e este por seu turno teve de adaptar-se agravequele

embora cada fenocircmeno ocupe muito mais tardiamente uma posiccedilatildeo no tempordquo

(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 226) Nesta leitura a finalidade natural eacute representada

pelo autor como exigecircncia necessaacuteria nesta adequaccedilatildeo reciacuteproca entre organismo e

ambiente De tal maneira que ou se pressupotildee uma finalidade natural a guiar o surgimento

dos organismos ou seriacuteamos levados a pensar que cada fenocircmeno natural anteciparia no

tempo as necessidades dos fenocircmenos que lhe sucedem e estes reciprocamente agravequeles

Ora se a Vontade Una natildeo estaacute sujeita ao curso do tempo a sucessatildeo temporal

embora seja fundamental na compreensatildeo dos fenocircmenos natildeo lhe diz respeito Na Vontade

Una natildeo haveria reflexo para a aparente adequaccedilatildeo entre os fenocircmenos que se sucedem

porque o tempo natildeo tem realidade na Vontade Se natildeo haacute sucessatildeo temporal na Vontade

natildeo pode haver uma pressuposiccedilatildeo de adequaccedilatildeo entre a ordem dos fenocircmenos Seria

assim o intelecto que conferiria aos fenocircmenos os aspectos antecipatoacuterios que conferimos

a toda coincidecircncia entre um determinado conjunto de caracteriacutesticas necessaacuterias e o

surgimento da espeacutecie mesma dependente destas caracteriacutesticas

O princiacutepio de razatildeo norteador do surgimento dos fenocircmenos no tempo segundo

Schopenhauer garante o surgimento dos fenocircmenos enquanto conformidade a uma

predeterminaccedilatildeo antecipada na unidade da Vontade Com isso o filoacutesofo parece adiantar

uma ideia de harmonia dos fenocircmenos enquanto objetivaccedilatildeo da Vontade Pois em sua

leitura ldquoTodas as partes da natureza se encaixam pois eacute uma Vontade UNA que aparece

em todas elasrdquo (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227) A explicaccedilatildeo da adequaccedilatildeo das

espeacutecies ao ambiente portanto pressupotildee a harmonia preestabelecida na unidade da

Vontade que se apresentaria para os princiacutepios da razatildeo segundo o aspecto subjetivo de

uma teleologia natural

Nietzsche seraacute certamente influenciado por esta compreensatildeo do problema da

teleologia embora com ressalvas A manutenccedilatildeo da vida de um animal como princiacutepio de

finalidade seraacute por exemplo problematizado por Nietzsche Em sua leitura o autor das

notas preparatoacuterias questiona a superioridade da manutenccedilatildeo da vida de um organismo em

relaccedilatildeo agrave manutenccedilatildeo de uma substacircncia inorgacircnica Seria necessaacuterio pensar que a

manutenccedilatildeo de um ser vivo requer maior conveniecircncia a fins do que a manutenccedilatildeo de uma

rocha em unidade consigo mesma ou a finalidade neste caso como em tantos outros

35

apareceria aqui apenas como resultado de uma antropomorfizaccedilatildeo e de uma

supervalorizaccedilatildeo da complexidade envolvida com tudo que diz respeito agrave vida O autor das

notas tende para a segunda resposta

Para Nietzsche que parece enxergar nas consideraccedilotildees de Kant e Schopenhauer

apenas a passagem de um modo necessaacuterio de compreensatildeo da realidade para uma

suposiccedilatildeo da proacutepria realidade com que se daria uma improcedente antropomorfizaccedilatildeo da

natureza A diferenccedila de posicionamento aqui diz respeito agrave radicalidade da interpretaccedilatildeo

nietzschiana que problematiza tanto a suposiccedilatildeo kantiana da necessidade de uma

teleologia natural como modo de explicaccedilatildeo da natureza quanto a suposiccedilatildeo

schopenhaueriana de uma unidade da vontade como modo de justificaccedilatildeo da correlaccedilatildeo

entre os fenocircmenos no tempo Por outro lado Nietzsche julga problemaacutetica a conciliaccedilatildeo

schopenhaueriana da ideia de conflito e a pressuposiccedilatildeo de uma unidade na Vontade

Na leitura do autor das notas preparatoacuterias o grande problema da interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana diria respeito agrave tentativa do filoacutesofo em conciliar a unidade da vontade

com a ideia de conflito na natureza Schopenhauer pensa natildeo apenas a harmonia derivada

da unidade da vontade mas o proacuteprio conflito como necessaacuterios para a manutenccedilatildeo das

espeacutecies Nesse sentido nem mesmo a adaptaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo dos fenocircmenos destroem o

conflito que eacute essencial agrave vontade seria ainda a fonte das guerras interminaacuteveis de

extermiacutenio dos indiviacuteduos

No entanto a adaptaccedilatildeo e a acomodaccedilatildeo reciacuteproca dos fenocircmenos quesurgem dessa unidade natildeo podem anular o conflito intriacutensecoanteriormente exposto o qual aparece na luta geral da natureza e eacuteessencial agrave Vontade Aquela harmonia vai soacute ateacute onde torna possiacutevel aCONSERVACcedilAtildeO do mundo e de seus seres os quais sem ela haacute muitotempo teriam se extinguido Em consequecircncia se em virtude daquelaharmonia e acomodaccedilatildeo as ESPEacuteCIES no reino orgacircnico e as FORCcedilASUNIVERSAIS DA NATUREZA no reino inorgacircnico se conservam lado alado e ateacute se apoiam reciprocamente por outro lado o conflito interno agraveVontade que se objetiva por meio de todas aquelas ideias mostra-senuma guerra interminaacutevel de extermiacutenio dos INDIVIacuteDUOS de cadaespeacutecie e na luta constante dos FENOcircMENOS das forccedilas da naturezaentre si como abordamos antes O cenaacuterio e o objeto dessa batalha eacute amateacuteria que eles se empenham por arrebatar uns dos outros bem como oespaccedilo e o tempo cuja uniatildeo pela forma da causalidade eacute propriamentea mateacuteria como foi exposto no primeiro livro (SCHOPENHAUER2005 paacuteg 227-228)

36

Na leitura nietzschiana a suposiccedilatildeo do mundo orgacircnico entendido na acepccedilatildeo

schopenhaueriana como representaccedilatildeo de uma unidade harmocircnica em que a proacutepria luta

pela existecircncia desempenharia um papel importante eacute rejeitada na consideraccedilatildeo da

impropriedade em se considerar uma ideia de luta dos indiviacuteduos como compatiacutevel com a

ideia de uma unidade da vontade Com isso a justificaccedilatildeo para a ideia de unidade que se

daria na concepccedilatildeo schopenhaueriana de vontade resumida por Nietzsche na citaccedilatildeo

ldquotodas as partes da natureza encontram umas as outras por que haacute uma vontaderdquo (BAW 3

paacuteg 373) eacute contraposta a uma concepccedilatildeo da realidade como sendo inerentemente

muacuteltipla

A soluccedilatildeo schopenhaueriana aparece para o autor das notas como a tentativa de

deslocar a questatildeo acerca da finalidade natural em vez de resolver o problema

propriamente Nessa leitura criacutetica Schopenhauer teria atraveacutes da pressuposiccedilatildeo de uma

unidade da vontade transferido o problema da teleologia para outra realidade em que a

ideia de finalidade natural acabaria por ocasionar mais problemas Esta divergecircncia criacutetica

pode ser tomada como um exemplo da complexidade da influecircncia schopenhaueriana sobre

a filosofia nietzschiana de juventude

Naquele momento de sua trajetoacuteria intelectual apesar do que se toma conhecimento

atraveacutes da leitura de O Nascimento da Trageacutedia23 Nietzsche jaacute se encontrava em um

patamar criacutetico em relaccedilatildeo agrave filosofia schopenhaueriana Para o jovem leitor de Albert

Lange autor que influenciou de maneira profunda sua interpretaccedilatildeo da filosofia

schopenhaueriana a sentenccedila que resume esta filosofia seria a seguinte ldquoA vontade sem

fundamento e sem conhecimento se revela por meio de um aparato de representaccedilatildeo como

mundordquo24 Na concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana esta sentenccedila enquanto resumo da filosofia

schopenhaueriana carregaria todos os viacutecios daquele sistema Assim em sua criacutetica agrave

23 Sabe-se que a obra de estreia do filoacutesofo foi composta a luz das influecircncias de Schopenhauer e Wagnertambeacutem um schopenhaueriano Esta influecircncia aparece ali de modo expliacutecito e natildeo questionado ou sejaacriacutetico O que levaria a supor que naquele momento Nietzsche ainda natildeo houvera enxergado os problemascom a filosofia schopenhaueriana No entanto a publicaccedilatildeo dos poacutestumos daquele periacuteodo nos descortinamum filoacutesofo jaacute bastante ciente das contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano Testemunhos desta tomada deconsciecircncia nietzschiana dos problemas da filosofia schopenhaueriana satildeo o texto em estudo assim comoZur Schopenhauer do mesmo periacuteodo e que foi publicado na mesma ediccedilatildeo dos fragmentos poacutestumosnietzschianos de seu periacuteodo de juventude que estamos estudando24 Conforme a seguinte passagem em Zur Schopenhauer ldquoDer grundlose erkenntnisslose Wille offenbartsich unter einen Vorstellungsapparat gebracht als Weltrdquo (BAW Paacuteg 353) As notas Zur Schopenhauer satildeonotas remanescentes de um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana que Nietzsche elaborou na mesmaeacutepoca de redaccedilatildeo das notas Zur Teleologie Todas as vezes que este texto for citado seraacute acompanhado dapaginaccedilatildeo da ediccedilatildeo BAW da qual jaacute vinhamos extraindo passagens de Zur Teleologie e como as citaccedilotildeesdesse todas as traduccedilotildees daquele seratildeo de nossa responsabilidade

37

Schopenhauer Nietzsche procura desvelar as contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano

por meio da anaacutelise desta sentenccedila agrave luz da obra do filoacutesofo

Em sua investigaccedilatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana Nietzsche toma o

empreendimento filosoacutefico de Schopenhauer como ldquouma tentativa de explicar o mundo por

meio de um fator aceitordquo (BAW Paacuteg 352) em que ldquoa coisa em si mesma se torna uma de

suas possiacuteveis formasrdquo (BAW Paacuteg 352) Ou seja tratava-se sobretudo de uma

interpretaccedilatildeo da realidade que toma as coisas em si como ao menos uma de suas

expressotildees possiacuteveis Isto apesar de para o autor das notas criacuteticas o empreendimento

filosoacutefico schopenhaueriano natildeo ter sido encarado por Schopenhauer como uma tentativa

(BAW Paacuteg 352) na medida em que este julgou a coisa em si como estando aberta para si

(BAW Paacuteg 352) A falha do autor de O Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em

encarar seu empreendimento como uma tentativa se deveria ao fato deste ldquonatildeo ter querido

perceber as negras contraditoriedades na regiatildeo onde a individualidade cessardquo (BAW Paacuteg

352)

Na medida em que tenta descrever a realidade em termos de ldquoVontaderdquo e

ldquoRepresentaccedilatildeordquo Schopenhauer natildeo se daacute conta de que ldquoO impulso de obscurecimento

produzido pelo mecanismo de representaccedilatildeo revela-se como mundordquo (BAW Paacuteg 352)

uacutenica forma pela qual o mundo da Vontade poderia permanecer velado para o homem

posto que ldquoEsta unidade natildeo estaacute incluiacuteda sob o principium individuationisrdquo (BAW Paacuteg

352) Assim se o traccedilo fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute sua descriccedilatildeo do

mundo como representaccedilatildeo e como tal algo passiacutevel de conhecimento esta hipoacutetese

repousaria fortemente na impossibilidade de se desvelar o mundo como Vontade

Por estas dificuldades assim como sua imbricaccedilatildeo com o proacuteprio nuacutecleo das

consideraccedilotildees schopenhauerianas Nietzsche considera este conjunto de consideraccedilotildees na

medida em que se considerava como sistema como estando ldquocheio de furosrdquo25 Para o

autor das notas sobre Schopenhauer estas falhas poderiam ser exploradas com sucesso

fundamentalmente de quatro diferentes formas Primeiramente em que Schopenhauer natildeo

supera Kant onde pretende superaacute-lo e conserva uma concepccedilatildeo do em si da qual natildeo tinha

direito pois tal como o proacuteprio Schopenhauer havia apontado com relaccedilatildeo ao sistema

kantiano por conta das proacuteprias implicaccedilotildees de seu sistema tal concepccedilatildeo deveria ser

25 Diante da pretensatildeo schopenhaueriana em ter posto termo ao sistema kantiano com seu proacuteprio sistemaNietzsche se questiona ldquo(hellip) wie in aller Welt ein Mensch mit einem so durchloumlcherten System zu solchenPraumltensionen komm[e]rdquo (BAW Paacuteg 354)

38

abandonada Em segundo lugar ao permanecer assim tatildeo proacuteximo a Kant Schopenhauer

apenas substitui as coisas em si daquele pela categoria de Vontade o que segundo

Nietzsche apenas pocircde ser realizado por meio de uma ldquointuiccedilatildeo poeacuteticardquo (BAW Paacuteg 354)

cuja derivaccedilatildeo natildeo possuiacutea provas loacutegicas que pudessem satisfazer o proacuteprio

Schopenhauer posto que este natildeo fora convencido no caso da filosofia kantiana Em

terceiro lugar Nietzsche acusa Schopenhauer de derivar os predicados de sua coisa em si

de uma oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos predicados das representaccedilotildees Assim se as

representaccedilotildees tecircm como sua marca a temporalidade a espacialidade e a multiplicidade a

Vontade deveria ser Una indeterminada espacialmente e eterna Mas como poderia

Schopenhauer reclamar uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre as representaccedilotildees e a Vontade sem

declarar tal oposiccedilatildeo agraves representaccedilotildees como predicado daquela A quarta criacutetica que eacute

uma consequecircncia das trecircs anteriores seria mais complexa Nietzsche a descreve do

seguinte modo

No entanto pode-se postular para o creacutedito de Schopenhauer contra astrecircs objeccedilotildees uma possibilidade de poder triacuteplice pode haver uma coisaem si de todo modo apenas no sentido de que na aacuterea de transcendecircnciatudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute possiacutevel Essapossiacutevel coisa em si pode ser a vontade uma possibilidade que por surgirda junccedilatildeo de duas possibilidades nada mais eacute do que o poder negativo daprimeira possibilidade ou seja jaacute um bom passo em direccedilatildeo ao outropolo o que significa impossibilidade Elevamos este conceito de umapossibilidade sempre decrescente uma vez mais ao admitirmos ospredicados da vontade que Schopenhauer tomava como pertencentes agraveela apenas porque uma oposiccedilatildeo eacute improvaacutevel entre coisa em si eaparecircncia mas ainda pode ser pensada Contra tal noacute de possibilidadestodo pensamento eacutetico poderia explicar-se mas mesmo contra essepretexto eacutetico ainda se poderia objetar que o pensador que estaacute diante doenigma do mundo natildeo tem outro meio senatildeo oferecer palpites naesperanccedila de que um momento de elevada consciecircncia poraacute a palavra emseus laacutebios Uma palavra que oferece a chave para esse texto que repousaainda natildeo lido diante de todos os olhos o qual chamamos de mundoSeria este mundo vontade - Aqui estaacute o ponto em que devemos fazernosso quarto ataque A urdidura e a trama schopenhauerianas seemaranham em suas matildeos na menor parte como resultado de certa faltade taacutetica de seu autor mas principalmente porque o mundo natildeo se deixaprender tatildeo facilmente ao sistema como Schopenhauer havia esperado naprimeira inspiraccedilatildeo da descoberta Na sua velhice ele se queixou de queo problema mais difiacutecil da filosofia natildeo havia sido resolvido em suaproacutepria filosofia Ele quis dizer a questatildeo referente agraves fronteiras daindividuaccedilatildeo (BAW Paacuteg 354-355)

39

O autor de Zur Schopenhauer conclui que o sistema schopenhaueriano estaria

sujeito aos mesmos argumentos que Schopenhauer teria utilizado contra Kant segundo o

qual o que eacute predicado de um objeto segundo o princiacutepio de atuaccedilatildeo do sujeito natildeo poderia

ser predicado da coisa em si Como Nietzsche sugere no proacuteprio caso de Schopenhauer os

atributos de atemporalidade unidade e a falta de causa atributos que o autor de O mundo

como Vontade e como Representaccedilatildeo atribui agrave Vontade mostram-se improacuteprios da

realidade da Vontade se ela eacute como Nietzsche pensa a traduccedilatildeo schopenhaueriana do em

si kantiano

As criacuteticas apontadas por Nietzsche ao sistema schopenhaueriano e que tomam

parte ainda em suas notas Zur Teleologie datildeo testemunho de um profundo

amadurecimento de sua opiniatildeo para com Schopenhauer Como resultado deste

amadurecimento surge a rejeiccedilatildeo das tentativas de Schopenhauer de descrever o sentido

dos predicados da vontade como completamente inapreensiacuteveis e transcendentes Na

medida em que Nietzsche entra em contato com a criacutetica de Albert Lange agrave filosofia

kantiana e que absorve a ideia de que os predicados dos objetos aparecem na realidade

como resultado da nossa organizaccedilatildeo o autor passa a rejeitar o uso de formas gramaticais

como prova da atualidade de qualquer sistema filosoacutefico Assim na medida em que as leis

da existecircncia da Vontade schopenhaueriana natildeo se submetem agraves mesmas leis de formaccedilatildeo

dos fenocircmenos a ela natildeo poderiam ser atribuiacutedos predicados tais como unidade e

atemporalidade que natildeo tem sentido fora da esfera dos fenocircmenos

Como exemplo desta abordagem criacutetica Nietzsche oferece uma interpretaccedilatildeo de O

Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em que certas passagens entrariam em

conflito com a delimitaccedilatildeo schopenhaueriana das fronteiras da individuaccedilatildeo tal como estes

limites aparecem definidos em passagens como a seguinte ldquoA unidade daquela Vontade

(hellip) em que temos reconhecido o ser interior do mundo fenomecircnico eacute uma unidade

metafiacutesica Consequentemente o conhecimento deste eacute transcendente o que significa

dizer ele natildeo repousa sobre as funccedilotildees de nosso intelecto e natildeo eacute portanto passiacutevel de

compreensatildeo por elesrdquo (BAW Paacuteg 357) Assim natildeo faz sentido em falar-se em unidade

fora de nossa esfera de compreensatildeo da realidade natildeo podendo este atributo ser relegado agrave

esfera da vontade

Com base nessa interpretaccedilatildeo em suas notas criacuteticas sobre a filosofia

schopenhaueriana Nietzsche escreve ldquoSchopenhauer estaacute completamente correto quando

40

ele mesmo sustenta contra esta operaccedilatildeo em geral mas aparentemente natildeo em seu proacuteprio

caso que lsquode fora natildeo se possa nunca chegar agrave essecircncia das coisas natildeo importa como se

busque vencer sobre imagens e nomesrsquordquo (BAW Paacuteg 358) Para Nietzsche a atribuiccedilatildeo

schopenhaueriana dos predicados de unidade eternidade e liberdade que satildeo os trecircs

predicados que Schopenhauer atribui agrave Vontade natildeo seria senatildeo retoacuterica vazia Pois estes

predicados seriam no fundo indivisiacuteveis e alinhados uns com os outros e com nossa

organizaccedilatildeo Sendo assim sempre se poderia perguntar qual o sentido destes predicados

fora de nossa esfera de organizaccedilatildeo qual sua validade na esfera da vontade

Em sua leitura portanto Nietzsche permanece fortemente criacutetico da concepccedilatildeo

schopenhaueriana das fronteiras da representaccedilatildeo assim como de toda tentativa de

expressatildeo linguiacutestica do que se encontraria para aleacutem desta fronteira26 Com isso seu

julgamento final sobre a atribuiccedilatildeo de predicados proacuteprios da realidade fenomecircnica agrave

Vontade levada a cabo por Schopenhauer baseia-se fortemente na interpretaccedilatildeo da

linguagem como algo que surge e se desenvolve em unidade com as exigecircncias do homem

vivendo em um determinado contexto social assim como em uma realidade determinada

por sua organizaccedilatildeo e suas necessidades fisioloacutegicas O escopo desta criacutetica cujo cerne

pode ser tambeacutem vislumbrado em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira e que diria respeito

ao veto de conhecimento e atribuiccedilatildeo de predicados agrave realidade que se potildee para aleacutem da

experiecircncia compotildee o essencial de sua compreensatildeo perspectivista do conhecimento em

sua filosofia madura

Retornando agraves notas preparatoacuterias veremos que a interpretaccedilatildeo criacutetica nietzschiana

das concepccedilotildees de Kant e Schopenhauer aproxima-se de uma consideraccedilatildeo perspectivista

da teleologia Isto porque nessa leitura a finalidade natural passa a ser interpretada natildeo

como um aspecto da natureza mas apenas como um modo de se considerar uma realidade

inapreensiacutevel de acordo com os ditames de nossa capacidade de conhecer que eacute

fundamentalmente determinada pelo esquema de nossa sensibilidade Ao fim e ao cabo

26 Como Crawford aponta Nietzsche obteacutem este argumento linguiacutestico contra a noccedilatildeo de um primeiropensamento transcendental do mundo de Lange Stack por sua vez escreve sobre este argumentoldquoLinguagens humanas (para Lange e Nietzsche) se desenvolveram primeiramente para efeitos de relaccedilotildees einteraccedilotildees sociais satildeo perpassadas por lsquopersonificaccedilotildeesrsquo e antropomorfismos e evoluiacuteram para efeitos dedescriccedilatildeo e designaccedilatildeo de objetos e eventos encontrados na experiecircncia A linguagem entatildeo eacute projetada paraefeitos de necessidade praacutetica em um mundo fenomecircnico da experiecircncia O uso de tal linguagem para referir-se agrave ou lsquofiguraccedilatildeorsquo de entidades transcendentais ou um mundo transcendental natildeo supera sua associaccedilatildeoproacutexima com a realidade fenomecircnicardquo (STACK Lange and Nietzsche Paacuteg 66) Apud (CRAWFORD 1988Paacuteg 99)

41

natildeo se trata de uma abordagem totalmente original uma divergecircncia verdadeira com

relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees que Nietzsche critica Muito desta abordagem se deve ao modo como

Kant principia a conversatildeo do problema teleoloacutegico de uma reflexatildeo sobre a constituiccedilatildeo

da realidade em um problema acerca de nossa necessidade de compreensatildeo da realidade

segundo a ideia de uma finalidade natural Do mesmo modo como uma grande parte das

criacuteticas apresentadas pelo autor das notas depende de sua leitura de Schopenhauer Em

contraposiccedilatildeo a estes autores no entanto Nietzsche compreende a permanecircncia da ideia de

uma finalidade natural nas respectivas abordagens criticadas como um uacuteltimo resquiacutecio de

dependecircncia da concepccedilatildeo teleoloacutegica metafiacutesica

A critica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica portanto parte do pressuposto de

que esta teria tomado a finalidade natural como uma realidade objetiva que cumpria

explicar e cuja explicaccedilatildeo mais plausiacutevel seria a ideia de uma inteligecircncia superior

criadora Tendo em vista superar as dificuldades apontadas nas abordagens de Kant e

Schopenhauer Nietzsche se apropria do problema teleoloacutegico de maneira eminentemente

criacutetica para com qualquer suposiccedilatildeo de uma realidade exterior agrave realidade da experiecircncia

Neste sentido o autor apoia-se fortemente nas ciecircncias naturais sempre que julga

necessaacuterio mantendo o lado filosoacutefico da discussatildeo nos limites de uma compreensatildeo

epistemoloacutegica do problema Assim quando comparada ao modo como o problema da

teleologia eacute tratado nas filosofias de Schopenhauer e Kant onde eacute praticamente reduzido agrave

questatildeo sobre a finalidade em seres orgacircnicos27 nas notas preparatoacuterias vemos que

27 A ideia de uma consideraccedilatildeo epistemoloacutegica jaacute apareceria nas consideraccedilotildees de Schopenhauer da criacuteticado juiacutezo kantiana mas Nietzsche parece natildeo se aperceber dessa consideraccedilatildeo Na Criacutetica da faculdade doJuiacutezo em um paraacutegrafo sobre o qual Nietzsche parece ter se detido longamente Kant afirma ldquoPor isso osseres organizados satildeo os uacutenicos na natureza que ainda que tambeacutem soacute se considerem por si e sem umarelaccedilatildeo com outras coisas tecircm poreacutem de ser pensados como possiacuteveis enquanto fins daquela mesmanatureza e por isso como aqueles que primeiramente proporcionam uma realidade objetiva ao conceito deum fim que natildeo eacute um fim praacutetico mas sim um fim da natureza e desse modo agrave ciecircncia da natureza ofundamento para uma teleologia isto eacute um modo de ajuizamento dos seus objetos segundo um princiacutepioparticular que doutro modo natildeo estariacuteamos autorizados a nela introduzir (porque natildeo se pode de maneiranenhuma compreender a priori a possibilidade de uma tal espeacutecie de causalidade)rdquo (KANT 2016 Paacuteg 242)Por sua vez Schopenhauer na parte de sua criacutetica da filosofia kantiana em que se volta para a Criacutetica doJuiacutezo mais especificamente a criacutetica do juiacutezo teleoloacutegico escreve ldquoTodo a Criacutetica da Faculdade de Juiacutezoquer dizer apenas uma coisa embora os corpos organizados necessariamente apareccedilam a noacutes como se fossemcompostos segundo um conceito preacutevio de finalidade de modo algum temos a autorizaccedilatildeo de assumir istoobjetivamente Pois nosso intelecto ao qual as coisas satildeo dadas de fora e que portanto jamais conhece ointerior delas (mediante o qual nascem e existem) mas soacute o seu lado exterior natildeo pode tornar apreensiacuteveluma certa iacutendole proacutepria aos produtos orgacircnicos da natureza a natildeo ser por analogia na medida em que oscompara com as obras humanas produzidas intencionalmente cuja iacutendole eacute determinada por um conceito definalidade Essa analogia eacute suficiente para nos tornar compreensiacutevel a concordacircncia de todas as suas partescom o todo e assim serve como fio condutor para sua investigaccedilatildeo mas de maneira alguma a analogia podeser tomada como fundamento de explanaccedilatildeo da origem e da existecircncia de tais corpos A necessidade de assim

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Nietzsche traduz o problema da teleologia em termos de um problema do conhecimento na

medida em que reduz toda teleologia a uma forma de conceber a natureza em vez de

pensaacute-la como uma caracteriacutestica da natureza

O autor entende que a uacutenica soluccedilatildeo satisfatoacuteria para a compreensatildeo do problema

teleoloacutegico seria a reduccedilatildeo do conceito de finalidade natural uma concepccedilatildeo de fundo

ontoloacutegico em uma categoria do entendimento humano uma realidade eminentemente

epistemoloacutegica de cuja existecircncia objetiva natildeo se teria a menor necessidade nem direito de

supor Assim o autor das notas preparatoacuterias pensa adiantar uma interpretaccedilatildeo original do

problema quando opera a reduccedilatildeo do conceito de finalidade a uma forma de compreensatildeo

da realidade Essa diferenccedila fundamental o tratamento eminentemente epistemoloacutegico de

um problema de fundo ontoloacutegico prenuncia uma importante virada no pensamento

nietzschiano A abordagem nietzschiana em que toda forma de explicaccedilatildeo idealista eacute posta

em suspeita conduz agrave conclusotildees teoacutericas que apenas em sua filosofia de maturidade

assumiraacute total importacircncia Nesta reavaliaccedilatildeo do problema entram em jogo a confrontaccedilatildeo

da realidade como produccedilatildeo humana com as concepccedilotildees racionalistas que satildeo tomadas

pelo autor das notas preparatoacuterias como soluccedilotildees ingecircnuas justamente por

desconsiderarem o quanto de humano haacute nelas

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica

Um problema fundamental decorrente da concepccedilatildeo teleoloacutegica da natureza o qual

Nietzsche apresenta como uma dificuldade essencial de toda concepccedilatildeo teleoloacutegica seria a

dificuldade em atingir uma compreensatildeo que unifica o real para aleacutem da distinccedilatildeo

artificial e arbitraacuteria entre o que se apresenta de forma teleoloacutegica e o que se apresenta de

forma natildeo teleoloacutegica Este problema eacute apresentado pelo autor nas notas do seguinte

modo ldquoA maior dificuldade eacute a unificaccedilatildeo da teleologia e do mundo natildeo teleoloacutegicordquo

(BAW 3 paacuteg 373) Com a apresentaccedilatildeo do problema nesses termos o autor busca

evidenciar de que modo com base em uma concepccedilatildeo teleoloacutegica se poderia explicar a

os conceber eacute de origem subjetivardquo (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 660) Schopenhauer leva a cabo assimuma interpretaccedilatildeo subjetiva da teleologia kantiana da qual Nietzsche parece natildeo ter se apercebido comoveremos na anaacutelise das notas Zur Teleologie

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existecircncia de objetos que natildeo parecem justificar-se segundo nenhuma finalidade Nesse

sentido a existecircncia de realidades natildeo convenientes a fins seria o ponto aleacutem do qual

nenhuma concepccedilatildeo teleoloacutegica ateacute entatildeo teria conseguido ir Em Zur Teleologie

Nietzsche concebe esse problema como tendo certa similaridade com o problema referente

agrave relaccedilatildeo entre a causalidade natural e a questatildeo da liberdade humana como o proacuteprio Kant

houvera observado

O espaccedilo de que dispomos nesse trabalho natildeo possibilita um estudo exaustivo da

teoria do gosto kantiana Desta forma o que se segue agrave guisa de resumo e introduccedilatildeo agrave

compreensatildeo kantiana da concepccedilatildeo de teleologia apenas pretende uma breve

consideraccedilatildeo dos problemas abordados por Kant na terceira Criacutetica assim como uma breve

reflexatildeo acerca do lugar dos juiacutezos teleoloacutegicos naquela discussatildeo Uma comparaccedilatildeo entre

a primeira e a segunda criacutetica mostra que a determinaccedilatildeo dos limites da experiecircncia

humana em comparaccedilatildeo agraves exigecircncias do agir praacutetico acentua um abismo insuperaacutevel

entre o domiacutenio praacutetico e o teoacuterico em filosofia A Criacutetica do Juiacutezo representa assim o

esforccedilo kantiano pela conciliaccedilatildeo entre os acircmbitos praacutetico e teoacuterico por meio da anaacutelise do

juiacutezo do belo

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

Este abismo aparece ao autor da terceira criacutetica como uma lacuna teoacuterica a ser

superada mediante o estudo do juiacutezo de gosto Nesse sentido tendo em vista a integraccedilatildeo

dos dois saberes o filoacutesofo de Koumlnigsberg elabora um meio de superaccedilatildeo da distacircncia que

separa os dois acircmbitos da investigaccedilatildeo filosoacutefica o acircmbito do teoacuterico e do praacutetico A

constituiccedilatildeo da ponte de ligaccedilatildeo entre os dois acircmbitos do saber humano poreacutem depende

de uma compreensatildeo profunda dos elementos do saber humano como sendo limitados pela

fenomenalidade que contrasta com o acircmbito da liberdade

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Toda a nossa faculdade de conhecimento possui dois domiacutenios o dosconceitos da natureza e o do conceito de liberdade na verdade nos doisela eacute legisladora a priori Ora de acordo com isto tambeacutem a Filosofia sedivide em teoacuterica e praacutetica mas o territoacuterio em que o seu domiacutenio eacuteerigido e a sua legislaccedilatildeo exercida eacute sempre soacute a globalidade dos objetosde toda a experiecircncia possiacutevel na medida em que forem tomadossimplesmente como simples fenocircmenos eacute que sem isso natildeo poderia serpensada qualquer legislaccedilatildeo do entendimento relativamente agravequeles(KANT 2016 Paacuteg 05)

Na passagem citada em que a faculdade de julgar eacute apresentada pelo autor como

legislaccedilatildeo a priori cuja esfera de atuaccedilatildeo se distingue tanto da legislaccedilatildeo do entendimento

quanto da razatildeo praacutetica a esfera de atuaccedilatildeo da razatildeo teoacuterica assim como a da accedilatildeo praacutetica

satildeo determinantes O juiacutezo de gosto por sua vez seria apenas reflexivo Na medida em que

a esfera de validade de sua legislaccedilatildeo abrangeria apenas o contingente e as leis empiacutericas

particulares

Ora toda a contradiccedilatildeo poreacutem desaparece se eu digo o juiacutezo de gostofunda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral daconformidade a fins subjetiva da natureza para a faculdade do juiacutezo) apartir do qual poreacutem nada pode ser conhecido e provado acerca doobjeto porque este conceito eacute em si indeterminaacutevel e inadequado para oconhecimento mas o juiacutezo ao mesmo tempo alcanccedila justamente por esseconceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juiacutezosingular que acompanha imediatamente a intuiccedilatildeo) porque o seuprinciacutepio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode serconsiderado como o substrato suprassensiacutevel da humanidade (KANT2016 Paacuteg 201-202)

Na segunda parte da terceira criacutetica a parte da obra referente agrave analiacutetica do belo a

legalidade do contingente eacute encontrada no conceito aacuterido de conformidade a fins que faz

do objeto belo apreciado um exemplo e natildeo uma lei geral Dado que a conformidade a fins

eacute vista na Natureza apenas do ponto de vista artiacutestico A conformidade a fins eacute aqui

entendida por Kant como o caraacuteter proacuteprio do orgacircnico sem o qual nenhum organismo

poderia ser compreendido Na medida em que o filoacutesofo distingue o produto das relaccedilotildees

dos elementos inorgacircnicos como o resultado das interaccedilotildees mecacircnicas de seus elementos

ele enfatiza o caraacuteter finaliacutestico dos elementos da natureza orgacircnica Posto que o belo eacute um

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produto da natureza e que toda criaccedilatildeo artiacutestica eacute dita bela na medida em que nela se

reconhece uma familiaridade com a natureza se poderia entender em que sentido uma obra

artiacutestica natildeo pode ser o produto de interaccedilotildees mecacircnicas mas apenas o resultado da accedilatildeo

humana consciente que pretende um fim

Por isso o filoacutesofo define o gecircnio como aquele dotado de uma faculdade produtora

cuja obra eacute a arte bela A arte bela como foi dito eacute para Kant uma analogia com a

Natureza cuja beleza o gecircnio procura penetrar A obra de arte bela parece ser assim objeto

da natureza que por meio da razatildeo se insere no reino das produccedilotildees humanas Neste

sentido a analogia entre a bela produccedilatildeo artiacutestica e a natureza apenas eacute possiacutevel se se

pensa a natureza como uma produccedilatildeo do aparato categorial humano cuja legalidade estaacute

no contingente e no exemplo

A anaacutelise esteacutetica kantiana que desemboca na questatildeo do gosto ou uma faculdade

de apreciaccedilatildeo esteacutetica reconhecida faz com que Kant entre em contato com um juiacutezo

esteacutetico fundamentado na sensaccedilatildeo de prazer Algo subjetivo mas que ao mesmo tempo

seria passiacutevel de ser reproduzido Assim a anaacutelise kantiana do gosto conduz a duas

conclusotildees aparentemente verdadeiras embora contraditoacuterias segundo as quais o gosto

seria subjetivo e ao mesmo tempo objetivo A objetividade do juiacutezo de gosto porquanto

tal juiacutezo pertenccedila a esfera subjetiva natildeo seria passiacutevel de determinaccedilatildeo objetiva

A forccedila do argumento kantiano repousa na sugestatildeo de que para que o gosto

pudesse vir a ser objeto de discussatildeo o que implica uma possiacutevel concordacircncia este deve

fundar-se em conceitos Desta forma com base na suposiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre coisas

em si e fenocircmenos suposiccedilatildeo que surge como conclusatildeo da primeira criacutetica kantiana o

filoacutesofo teria procurado superar a dificuldade envolvida na determinaccedilatildeo de uma certa

objetividade do juiacutezo de gosto Para o autor da terceira criacutetica a possibilidade de

determinaccedilatildeo da objetividade de um juiacutezo subjetivo tanto na questatildeo da filosofia praacutetica

quanto na questatildeo dos juiacutezos esteacuteticos apenas pode se dar com base na suposiccedilatildeo da

existecircncia de objetos necessaacuterios para a justificaccedilatildeo destes juiacutezos Suposiccedilatildeo que aqui

assume um caraacuteter apenas hipoteacutetico na medida em que o filoacutesofo compreende que destes

natildeo podemos ter conhecimento objetivo28

28 Este raacutepido resumo do problema justamente pela brevidade carece de muitos esclarecimentos eaprofundamentos No entanto aqui pretendemos apenas oferecer uma breve apreciaccedilatildeo dos problemasenfrentados por Kant na terceira criacutetica sobretudo do ponto de vista da consideraccedilatildeo nietzschiana destes

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Por outro lado a hipoacutetese de uma possiacutevel objetividade dos juiacutezos de gosto contaria

com uma hipoacutetese contraacuteria aleacutem de bastante plausiacutevel de que aquilo que agrada natildeo

agrada universalmente natildeo se podendo chegar a um consenso absoluto em termos de

gosto Esta antinomia aparentemente insoluacutevel na medida em que aponta para uma tese e

uma antiacutetese igualmente plausiacuteveis eacute resumida por Kant na possibilidade de se fundar o

gosto em conceitos Pois fica provado na esfera da anaacutelise esteacutetica que se o gosto deve ser

tomado como algo que se funda em conceitos ele poderia ser determinado segundo

demonstraccedilotildees e assim natildeo seria passiacutevel de disputa Por outro lado se este natildeo se funda

em conceitos natildeo eacute passiacutevel de disputa igualmente pois natildeo seria possiacutevel alcanccedilar uma

concordacircncia Assim segundo o autor da Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo essa saiacuteda deveria

ser considerada ainda que a contragosto como uma forma de libertar o juiacutezo do gosto de

sua antinomia

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

A soluccedilatildeo para as antinomias do juiacutezo de gosto encontrar-se-ia portanto para aleacutem

dos limites do sensiacutevel Do mesmo modo na medida em que os juiacutezos teleoloacutegicos se

fundamentariam no ldquoconceito de um fim na naturezardquo a ele tambeacutem estaria ligado a

necessidade de um recurso esfera do suprassensiacutevel da qual segundo Kant embora natildeo se

possa ter um conceito exato deve-se admitir a existecircncia Este recurso agrave esfera do

suprassensiacutevel natildeo escaparaacute ao autor das notas sobre teleologia o qual rejeitaraacute este tipo de

soluccedilatildeo como um tipo de antropomorfizaccedilatildeo infundada Em sua leitura que eacute perpassada

por uma atitude de franca hostilidade a todo recurso ao suprassensiacutevel a soluccedilatildeo para o

problema da finalidade na natureza apenas poderia ser contemplada na compreensatildeo dos

limites do conhecimento humano Limites segundo as notas preparatoacuterias muito

rigidamente demarcados e que se restringiriam agrave esfera da causalidade mecacircnica

problemas

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Em sua compreensatildeo do problema da conformidade a fins no reino orgacircnico

compreensatildeo que o autor das notas determina como sendo ao mesmo tempo semifilosoacutefica

e semicientiacutefica a suposiccedilatildeo mesma da finalidade natural estaria ligada a uma maacute

compreensatildeo da realidade Maacute compreensatildeo que teria sido motivada por uma

desconsideraccedilatildeo do papel da razatildeo na organizaccedilatildeo dos elementos que compotildeem nossa

forma de conceber o mundo

Nietzsche pensa naquele momento que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel

como forma de justificar a existecircncia de uma finalidade na natureza estaria ligada a uma

recusa em aceitar o mecanicismo como meacutetodo adequado para a investigaccedilatildeo do orgacircnico

Esta recusa por sua vez seria decorrecircncia de um preconceito em favor do que vive

considerado nessa leitura como algo mais complexo do que o pertencente ao reino

inorgacircnico Mais ainda Nietzsche considera a suposiccedilatildeo de fins na natureza uma

decorrecircncia de uma transgressatildeo do princiacutepio de razatildeo miacutenima Estaacute transgressatildeo se daria

no recurso o qual o autor das notas pensa que teria sido utilizado pelos defensores da ideia

de uma finalidade natural a uma razatildeo superior Para o autor das notas este recurso natildeo se

justificaria pois tal problema poderia ser satisfatoriamente resolvida com base em um

princiacutepio mais simples

Conformidade interna a fins Vemos uma maacutequina complicada que semantecircm a si mesma e natildeo podemos vislumbrar outra estrutura quepudesse constituir-se de modo mais simples isto significa apenas amaacutequina se manteacutem por si mesma assim ela eacute conforme a umafinalidade Um julgamento acerca de ldquouma finalidade superiorrdquo natildeopodemos fazer Podemos no melhor das hipoacuteteses decidir acerca de umarazatildeo mas natildeo temos direito a indicar se eacute uma razatildeo superior ou inferior(BAW 3 paacuteg 373)

A ideia kantiana de que a forma de causalidade reciacuteproca atuante nos seres

orgacircnicos apenas poderia ser compreendida por meio do recurso a uma razatildeo superior eacute

rejeitada por Nietzsche por meio da compreensatildeo de que nessa leitura a ideia de finalidade

sofre uma supervalorizaccedilatildeo indevida Para dar sentido a esta rejeiccedilatildeo o autor das notas

preparatoacuterias faz uso de uma espeacutecie de princiacutepio de Ockham29 segundo o qual a

29 Para Guilherme de Ockham o Princiacutepio da Parcimocircnia o que ficou conhecido na tradiccedilatildeo como Navalhade Ockham significava que ldquoeacute desperdiacutecio fazer com mais o que pode ser feito com menosrdquo Embora natildeo

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atribuiccedilatildeo de um princiacutepio exterior no caso em questatildeo uma razatildeo superior que pensa uma

finalidade superior agravequela que o homem pode compreender natildeo procede de uma conclusatildeo

loacutegica mas de uma ilusatildeo que atua por forccedila de um grosseiro antropomorfismo Este

antropomorfismo consistiria na defesa de uma razatildeo superior defesa por meio da qual o

defensor da finalidade natural nada mais faria do que pocircr em praacutetica uma exaltaccedilatildeo da

razatildeo

Segundo a compreensatildeo do autor das notas preparatoacuterias no entanto este tipo de

afirmaccedilatildeo de uma finalidade externa superior natildeo se sustenta em uma anaacutelise da razatildeo

porque ldquoapenas temos experiecircncia do meacutetodo da naturezardquo (BAW 3 paacuteg 374) e nunca de

finalidades Desta maneira quando nos confrontamos com um produto da natureza a sua

finalidade apenas nos aparece como o produto de um meacutetodo sem sentido nunca como

uma necessidade loacutegica Por outro lado a ideia de uma finalidade superior apenas nos

aparece quando somos confrontados com a vida Para Nietzsche esta deduccedilatildeo de uma

finalidade superior na manutenccedilatildeo da vida natildeo obedeceria qualquer loacutegica mas talvez

uma certa arrogacircncia de espeacutecie Pois na medida em que pertencemos ao grupo dos

ldquoviventesrdquo possuiacutemos um preconceito com relaccedilatildeo ao que eacute vivo

Segundo a compreensatildeo nietzschiana a vida seria o grande segredo que reclamaria

em sua explicaccedilatildeo a ideia de uma finalidade natural Isto na medida em que ao nos

depararmos com um ser vivo como noacutes somos cegados pelo orgulho e queremos enxergar

na nossa existecircncia algo mais do que a pura atuaccedilatildeo de causas e efeitos Assim este

comportamento natildeo encontraria nenhum suporte loacutegico e a vida poderia como os demais

tenha sido inventado por Ockham o princiacutepio da Navalha teve seu nome ligado em especiacutefico a este filoacutesofopor sua larga utilizaccedilatildeo no sistema que desenvolveu (JUNGES 2005 Paacuteg 03) Conforme nota cinco doartigo Deus e a metafiacutesica em Ockham e Nietzsche ldquoA expressatildeo lsquoNavalha de Ockhamrsquo surgiu no seacuteculoXVI sugerindo que mediante tal Navalha Ockham lsquoencurtava as barbas de Platatildeorsquo numa referecircncia direta aodualismo que ele suprimia com sua negaccedilatildeo da existecircncia dos universais Com essa concepccedilatildeo as essecircnciaspassavam a ser apenas elucubraccedilotildees deslocando o eixo da metafiacutesica para um empirismo nominalista jaacute queOckham dizia serem os universais apenas nomes dados agraves coisas criados pela mente de seu autor e o querealmente havia eram as singularidades e o que poderia ser experimentado pelos sentidos humanosrdquo(JUNGES 2005 Paacuteg 16)Com relaccedilatildeo agrave proximidade entre as filosofias de Ockham e Nietzsche Jungesafirma ldquoAqui apenas podemos comparar entre nossos dois filoacutesofos em questatildeo o fato de que ambosapontavam a concretude da vida como indiscutiacutevel fundamental renegando a metafiacutesica como expedientepara um entendimento do mundo em si A mentira do outro mundo era paralisante desnecessaacuteria O vieacutesantimetafiacutesico de Ockham e Nietzsche denota a importacircncia da criacutetica do mundo ocidental em seus escritos(hellip) Quanto agrave existecircncia dos universais amplamente negada por Ockham acreditamos ser seuposicionamento bastante proacuteximo ao de Nietzsche Isso porque Ockham num vieacutes de declarado cunhoaristoteacutelico pensava os universais como impossiacuteveis sob uma justificativa loacutegica natildeo passando de palavrasque denominavam sentidos por noacutes criados abstraccedilotildees ou ficccedilotildees da mente humanardquo (JUNGES 2005Paacuteg 14)

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eventos naturais ser explicado sem o recurso a uma finalidade natural Pois aiacute natildeo operaria

nenhuma ideia de conveniecircncia a fins apenas uma supervalorizaccedilatildeo do fenocircmeno vida

Ficamos impressionados entatildeo com a complexidade e conjecturamos (pormeio de uma analogia humana) uma sabedoria especial nisto O querealmente eacute maravilhoso para noacutes realmente satildeo os viventes orgacircnicos etodos os meios para mantecirc-los chamamos conforme a fins Por quesuspendemos o conceito de conformidade a fins no mundo inorgacircnicoPorque temos aqui apenas unidades natildeo partes correlacionadas atuandoumas com as outras (BAW 3 paacuteg 374)

Em outras palavras a proacutepria distinccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico nada mais

seria do que o produto de nosso preconceito para com o que vive sem o qual suas partes

assim como as partes dos elementos do reino inorgacircnico tambeacutem seriam vistas como

unidades e natildeo oacutergatildeos Nossa ideia de uma finalidade superior adveacutem de uma

incompreensatildeo fundamental acerca do fenocircmeno vida por conta de nosso preconceito para

com o que vive Sendo que apenas por esse motivo natildeo nos vemos na necessidade de um

recurso a uma finalidade para a explicaccedilatildeo do reino inorgacircnico Posto que entre os

produtos possiacuteveis da atuaccedilatildeo das partes da natureza tambeacutem os organismos seriam uma

possibilidade Isso independente da complexidade envolvida desde que para o autor

ldquoAcaso pode encontrar a mais bela melodiardquo (BAW 3 paacuteg 374) Disso decorre a hipoacutetese

nietzschiana de que a vida mesma pudesse ser compreendida como o produto de forccedilas

atuando ao acaso segundo uma causalidade mecacircnica Ou seja independente da

complexidade envolvida tudo poderia ser obra do acaso

Nesta suposiccedilatildeo encontramos o surgimento de uma concepccedilatildeo fundamental

segundo a qual toda realidade que se nos apresenta de forma orgacircnica poderia ser produto

da atuaccedilatildeo de forccedilas ao acaso Assim com a alusatildeo ao acaso associada agrave ideia da atuaccedilatildeo

de relaccedilotildees causais Nietzsche opera uma explicaccedilatildeo do surgimento do orgacircnico sem

recorrer a qualquer instacircncia externa ao orgacircnico sem nenhum recurso a uma finalidade

externa Solucionada assim a questatildeo do surgimento da realidade orgacircnica por meio do

recurso a uma associaccedilatildeo entre causalidade mecacircnica e acaso restaria explicar como um

ser orgacircnico poderia sustentar-se sem uma finalidade interna

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Respondida a questatildeo do surgimento do orgacircnico para o autor a ideia por traacutes de

sua manutenccedilatildeo parece uma questatildeo friacutevola que apenas poderia ser despertada no interior

de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica que sempre suscita muitas questotildees sem sentido30 A

resposta adequada para este problema livre de um preconceito tendencioso a enxergar uma

explicaccedilatildeo finaliacutestica onde este tipo de explicaccedilatildeo natildeo teria lugar se daacute por meio do

recurso agrave ideia de que a finalidade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto

Recorrendo novamente agrave filosofia schopenhaueriana Nietzsche sustenta a

identificaccedilatildeo de uma finalidade por traacutes da manutenccedilatildeo dos seres orgacircnicos como

consequecircncia da atuaccedilatildeo do intelecto Eacute nesse sentido que o autor das notas sobre

teleologia afirma ldquovemos um meacutetodo para alcanccedilar um objetivo ou mais exatamente

vemos a existecircncia e seus meios e decidimos que esses meios satildeo conformes a fins O

reconhecimento de uma razatildeo elevada certamente natildeo a de uma razatildeo superior ainda natildeo

se potildee aquirdquo (BAW 3 paacuteg 374) Ou seja o fato de que organismos se mantenham

conforme a sua proacutepria manutenccedilatildeo natildeo implica a ideia de uma finalidade superior porque

a manutenccedilatildeo do organismo eacute um fim apenas para o organismo e natildeo um fim superior

O tipo de explicaccedilatildeo adotada por Nietzsche neste ponto de sua exposiccedilatildeo que toma

como base uma explicaccedilatildeo natildeo teleoloacutegica do reino orgacircnico teria como interesse mais

profundo lanccedilar as bases para uma investigaccedilatildeo das questotildees naturais sem o recurso a uma

realidade ideal apartada das relaccedilotildees de necessidade Esta compreensatildeo do problema

portanto natildeo pode ser desvinculado de um interesse praacutetico fundamental Ou seja com a

eliminaccedilatildeo da teleologia e a consequente restituiccedilatildeo das questotildees orgacircnicas ao reino do

orgacircnico surgiria a possibilidade de se eliminar o mundo das ideias que como vimos

aparece como fundamento para a soluccedilatildeo da questatildeo teleoloacutegica no procedimento kantiano

na Criacutetica do Juiacutezo Nesse sentido o autor das notas sobre teleologia afirma ldquoo colocar de

lado da teleologia tem um valor praacutetico Eacute apenas uma questatildeo de recusar o conceito de

uma razatildeo superior assim jaacute nos satisfazemosrdquo (BAW 3 paacuteg 374) Por interesse praacutetico

o autor soacute poderia compreender uma compreensatildeo da liberdade que natildeo implique o recurso

a uma realidade suprassensiacutevel

Nos parece que o ponto fundamental a ser considerado aqui eacute que em Zur

Teleologie Nietzsche parece reconhecer a atuaccedilatildeo de um princiacutepio metafiacutesico na tendecircncia

30 Tais questotildees seriam por exemplo a compreensatildeo do mundo como um organismo vivo e da origem domal questotildees cuja rejeiccedilatildeo ecoara na obra madura de Nietzsche

51

para a soluccedilatildeo das questotildees teleoloacutegicas por meio das coisas em si Assim ao afastar a

questatildeo de uma razatildeo superior o autor entende que a soluccedilatildeo do problema teleoloacutegico sem

o recurso a uma realidade suprassensiacutevel tornaria possiacutevel a anaacutelise de questotildees referentes

agrave liberdade sem o recurso a uma concepccedilatildeo idealista Mesmo se o alvo de sua criacutetica eacute a

ideia de uma finalidade natural a tendecircncia a uma explicaccedilatildeo idealista desta finalidade natildeo

seria menos questionaacutevel

Enfatizamos este ponto porque embora a negaccedilatildeo de uma realidade ideal apenas se

torne atuante na filosofia madura nietzschiana jaacute nas notas preparatoacuterias esta rejeiccedilatildeo

encontra plena expressatildeo na ideia de que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel para a

soluccedilatildeo de problemas teoacutericos repousa em uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel Tendecircncia

que mais do que uma explicaccedilatildeo teoacuterica seria oriunda de questotildees praacuteticas na medida em

que estaria relacionada agrave concepccedilatildeo kantiana da necessidade de se reservar um espaccedilo para

a liberdade em uma realidade para aleacutem dos fenocircmenos De tal maneira que se a soluccedilatildeo

kantiana para o problema da teleologia interna repousa no mesmo tipo de distinccedilatildeo entre o

mundo dos fenocircmenos e o mundo das coisas em si em que Kant faz repousar sua soluccedilatildeo

do problema da liberdade entatildeo a soluccedilatildeo meramente mecacircnica do problema da teleologia

poderia apontar para uma soluccedilatildeo mecacircnica tambeacutem para o problema da liberdade

Por outros termos o reconhecimento do combate agraves coisas em si como uma parte

fundamental do combate a uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel do ponto de vista teoacuterico

tem suas primeiras origens jaacute entre as obras do periacuteodo de juventude da filosofia

nietzschiana31 Podemos ver assim que Nietzsche jaacute na primeira fase de seu pensamento

potildee em accedilatildeo uma estrateacutegia de combate agrave metafiacutesica que precede em algumas deacutecadas a

sua rejeiccedilatildeo do niilismo que o filoacutesofo considera um traccedilo inerente a toda consideraccedilatildeo

idealista No entanto naquele periacuteodo de sua reflexatildeo o autor ainda natildeo chega a confrontar

todos os riscos inerentes a sua posterior consideraccedilatildeo do niilismo propriamente

Se eacute certo que tatildeo cedo quanto em suas notas preparatoacuterias o autor jaacute confronta o

problema da finalidade e o associa com a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente

mecacircnica destas entatildeo podemos dizer que jaacute nesse momento o autor contrapotildee

fortemente o recurso a toda realidade em si como uma forma equivocada de explicaccedilatildeo

Logo em suas primeiras incursotildees pela questatildeo teleoloacutegica podemos enxergar uma

31 Como atestaria tambeacutem o texto criacutetico Zur Schopenhauer jaacute referido na seccedilatildeo anterior

52

antecipaccedilatildeo dessa temaacutetica que mais tarde se transformaraacute no questionamento acerca do

valor de concepccedilotildees idealistas para a vida Ou seja jaacute naquele periacuteodo de sua reflexatildeo

filosoacutefica Nietzsche interpreta o mundo das ideias como uma criaccedilatildeo humana

fundamentada em uma supervalorizaccedilatildeo da razatildeo

Contraacuterio ao posicionamento metafiacutesico que faz repousar ldquoA valorizaccedilatildeo da

teleologia em sua avaliaccedilatildeo do humano mundo das ideiasrdquo (BAW 3 paacuteg 375) o autor

parte para uma consideraccedilatildeo esteacutetica da teleologia ldquoTeleologia eacute como otimismo um

produto esteacuteticordquo (BAW 3 paacuteg 375) Esta compreensatildeo implica que tanto a teleologia

quanto o otimismo seriam criaccedilotildees humanas segundo um impulso poeacutetico fundamental

Fica claro entatildeo que jaacute em seu ensaio sobre a teleologia em Kant Nietzsche estaacute de posse

da ideia de que o mundo das ideias corresponderia apenas a um produto esteacutetico um

produto da atuaccedilatildeo do potencial criativo humano e que essa ideia fundamental estaria

ligada a um otimismo na contemplaccedilatildeo da realidade Da mesma forma o autor das notas jaacute

parece estar de posse de uma compreensatildeo apurada do caraacuteter interpretativo dessa forma

de se considerar a realidade

Partindo de uma avaliaccedilatildeo criacutetica da questatildeo teleoloacutegica que toma a compreensatildeo

kantiana expressa na criacutetica do juiacutezo como modelo Nietzsche estabelece uma forte

oposiccedilatildeo agrave tendecircncia idealista que faz ver nos problemas referentes agrave vida uma explicaccedilatildeo

extra-fenomecircnica Ao opor-se a este tipo de explicaccedilatildeo o autor entende que tanto a

regularidade observada no reino inorgacircnico como a conveniecircncia a fins que se observa no

reino orgacircnico seriam produtos da apropriaccedilatildeo da razatildeo e natildeo caracteriacutesticas da realidade

mesma Pois para o autor das notas preparatoacuterias ldquoNatildeo temos direito a qualquer

julgamento sobre a intencionalidade maiorrdquo (BAW 3 paacuteg 375) e ldquoA teleologia assim como

o otimismo satildeo produtos esteacuteticosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) Com este tipo de afirmaccedilatildeo o autor

das notas Zur Telelologie pretende dizer que nem uma intencionalidade superior nem uma

consideraccedilatildeo otimista da realidade teriam fundamentos em elementos objetivos da

realidade Pelo contraacuterio tanto a consideraccedilatildeo otimista quanto a consideraccedilatildeo da realidade

segundo a pressuposiccedilatildeo de uma finalidade seriam produtos de uma apropriaccedilatildeo da

realidade segundo os modos da organizaccedilatildeo intelectual humana32

32 O termo ldquoperspectivismordquo natildeo aparece nas notas propriamente No entanto eacute possiacutevel perceber que seNietzsche naquela eacutepoca natildeo utiliza o termo perspectivismo para caracterizar uma apropriaccedilatildeo da realidadesegundo as instacircncias racionais o que corresponderia a uma falsificaccedilatildeo da realidade o termo eacute

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Para o autor das notas preparatoacuterias afastada a hipoacutetese da superioridade da vida

em relaccedilatildeo agrave natureza inorgacircnica a suposiccedilatildeo de uma finalidade como explicaccedilatildeo do

orgacircnico em nada pareceria superior a uma explicaccedilatildeo mecacircnica De fato qual a diferenccedila

entre uma explicaccedilatildeo mecacircnica e uma explicaccedilatildeo finaliacutestica da natureza quando afastada a

hipoacutetese de uma verdade superior agrave que toda explicaccedilatildeo da natureza deve-se se reportar O

que estaacute sendo colocado em duacutevida por Nietzsche aqui de fato seria a proacutepria validade de

um juiacutezo reflexivo teleoloacutegico Neste sentido como Lopes afirma o autor das notas

preparatoacuteria se colocaria em direta confrontaccedilatildeo agrave compreensatildeo kantiana da distinccedilatildeo entre

juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos

O caraacuteter indeterminado desta categorizaccedilatildeo permite a Nietzschequestionar um dos grandes dogmas do kantismo a antiacutetese entremecanismo e teleologia ou melhor entre juiacutezo determinante e juiacutezoreflexivo Ao longo de boa parte das notas preparatoacuterias Nietzscheparece aderir agrave concepccedilatildeo dicotocircmica de Kant que restringe o conceitode explicaccedilatildeo ao emprego da causalidade mecacircnica expressa no juiacutezodeterminante Contudo na progressatildeo das notas Nietzsche toma umadireccedilatildeo inversa e sugere uma reduccedilatildeo das causas mecacircnicas a causasfinais e do uso constitutivo ao uso reflexivo da faculdade de julgar(LOPES 2008 paacuteg 150)

O que Lopes sugere eacute que a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos determinantes e juiacutezos

reflexivos passa a ser questionada por Nietzsche em sua rejeiccedilatildeo de que se possa explicar

a natureza orgacircnica por meio de uma concepccedilatildeo finaliacutestica Paras compreensatildeo desse

problema torna-se necessaacuteria um retorno agrave terceira criacutetica kantiana A Criacutetica da

Faculdade do Juiacutezo de Kant pode ser entendida fundamentalmente como uma

investigaccedilatildeo criacutetica acerca de uma certa classe de juiacutezos chamados reflexionantes Os

juiacutezos reflexivos satildeo pesados por Kant em oposiccedilatildeo aos juiacutezos determinantes ou juiacutezos

cientiacuteficos

praticamente a uacutenica coisa que falta para efetuar uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento expresso nas notaspreparatoacuterias e seu posterior perspectivismo Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo desconsiderar que naquele periacuteodo daobra nietzschiana a atribuiccedilatildeo de uma perspectividade em consideraccedilatildeo da apropriaccedilatildeo da realidade segundoos ditames da razatildeo corresponde a um anacronismo Mas os argumentos que o autor apresenta nas notaspreparatoacuterias conduzem a uma conclusatildeo fundamental que sem duacutevida seraacute retomada em seuperspectivismo a ideia de que toda ordem que se observa na realidade corresponde apenas a uma apropriaccedilatildeoracional da realidade e natildeo agrave realidade ela mesma

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Tal princiacutepio natildeo pode ser senatildeo este como leis universais da naturezatecircm seu fundamento em nosso entendimento que as prescreve agrave natureza(ainda que somente segundo o conceito universal dela como natureza) asleis empiacutericas particulares no que diz respeito agravequilo que nelas eacute deixadoindeterminado pelas leis universais da natureza precisam serconsideradas segundo uma tal unidade [nach einer solchen Einheitbetrachtet werden muumlssen] como se [als ob] um entendimento (aindaque natildeo o nosso) as tivesse dado com vistas agrave [zum Behuf] nossafaculdade de conhecimento para tornar possiacutevel um sistema daexperiecircncia segundo leis da natureza particulares Natildeo que desse modoum tal entendimento tivesse realmente que ser admitido (KANT 2016Paacuteg 11)

Os juiacutezos determinantes se diferenciariam dos juiacutezos reflexivos na medida em que

satildeo orientados por um universal Nesse sentido a terceira criacutetica kantiana que parte da

constataccedilatildeo de que um certo uso judicativo supotildee determinadas condiccedilotildees que natildeo satildeo as

mesmas que fundam nossos juiacutezos objetivos e a maioria dos nossos juiacutezos subjetivos33 Na

continuaccedilatildeo do texto do qual eacute extraiacutedo a citaccedilatildeo acima Kant refere-se aos juiacutezos e ao

33 Conforme Pedro Costa Rego a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos objetivos e juiacutezos subjetivos diria respeitofundamentalmente a validade universal de certos juiacutezos em comparaccedilatildeo agrave validade meramente subjetiva deoutros ldquoPor juiacutezos objetivos entende Kant ateacute sua investigaccedilatildeo na terceira Criacutetica juiacutezos de validadeuniversal Objetividade e universalidade se confundem na medida em que 1) um juiacutezo objetivo eacute um juiacutezofundado em conceitos do entendimento ou da razatildeo 2) as categorias como formas de conceitos empiacutericos eas ideias da razatildeo satildeo elementos pertencentes agrave subjetividade como tal 3) juiacutezos que tecircm como fundamentode determinaccedilatildeo princiacutepios pertencentes a priori agrave subjetividade satildeo vaacutelidos para todos os sujeitos Que todojuiacutezo objetivo seja universal isso jamais seraacute problema para Kant O que entretanto a anaacutelise do gostorevelaraacute impreciso seraacute a formulaccedilatildeo completa ateacute entatildeo vaacutelida para a relaccedilatildeo entre a objetividade e auniversalidade do juiacutezo a saber que universalidade seja condiccedilatildeo necessaacuteria e suficiente para a objetividadede um juiacutezordquo (REGO 2006 Paacuteg 217) Em outras palavras Rego entende que a criacutetica do Juiacutezo se torna ummarco na filosofia kantiana na medida em que nesta criacutetica a distinccedilatildeo entre objetivo e subjetivo eacute elevada aum novo patamar ldquoFundamentar a pretensatildeo de universalidade erguida pelo uso habitual do predicado lsquobelorsquoeacute indicar no elemento da subjetividade como tal o fundamento de determinaccedilatildeo natildeo-objetivo de tal usojudicativo Se isso natildeo for possiacutevel o juiacutezo de gosto natildeo se diferencia do juiacutezo de agradabilidade privada enatildeo haacute argumento contra a tese do empirismo esteacutetico Se for possiacutevel natildeo eacute mais preciso aderir agrave insensatezracionalista de um gosto loacutegico e demonstraacutevel para mostrar que os prazeres esteacuteticos natildeo satildeo todos iguaisEm suma a relaccedilatildeo entre universalidade subjetiva e juiacutezo de gosto eacute uma relaccedilatildeo reivindicada A lsquoAnaliacuteticada Faculdade do Juiacutezo Esteacuteticarsquo eacute uma exposiccedilatildeo da reivindicaccedilatildeo de universalidade subjetiva que apenas ojuiacutezo de gosto ergue e uma deduccedilatildeo do direito do uso dessa reivindicaccedilatildeordquo (REGO 2006 Paacuteg 218) Emoutras palavras com base na sugestatildeo de que o juiacutezo de belo eacute comumente relacionado natildeo a um gostoparticular e nesse sentido subjetivo mas a uma certa universalidade entatildeo Kantpensa a possibilidade de seanalisar juiacutezos que apesar de natildeo poderem reclamar um caraacuteter universal posto que natildeo seriam vinculados aum universal nem tivessem fundamentos na constituiccedilatildeo transcendental ainda assim parecem se relacionarcom algum tipo de objetividade A criacutetica da faculdade de julgar assim se constituiria enquanto estudopropriamente desta objetividade tal como Rego afirma ldquo(hellip) a universalidade de um juiacutezo que tem comofundamento de determinaccedilatildeo natildeo um conceito mas o poder de julgar enquanto tal Sendo esse juiacutezojustamente o juiacutezo de gosto sobre o belo fica explicada a relaccedilatildeo entre lsquouniversalidade subjetivarsquo lsquojuiacutezo degostorsquo e lsquofaculdade do juiacutezorsquo e compreende-se no mesmo movimento por que a Esteacutetica de Kant eacute a parteprincipal de uma obra chamada lsquocriacutetica da faculdade de julgarrsquordquo (REGO 2006 Paacuteg 219)

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nosso poder de produzi-los como se aqui se trata-se de uma definiccedilatildeo que aqui eacute chamada

de subsunccedilatildeo O juiacutezo como subsunccedilatildeo apresenta-se ainda segundo a introduccedilatildeo da

terceira criacutetica em dois modos baacutesicos o determinante e o reflexionante Para Kant os

juiacutezos reflexionantes natildeo tecircm todos a mesma natureza e os mesmos fins Essa diversidade

permite a Kant classificaacute-los em dois grupos o dos esteacuteticos que tem por finalidade o

belo e o dos teleoloacutegicos que tem por finalidade o telos da natureza

Certamente satildeo estes uacuteltimos que interessam mais prontamente a Nietzsche em

Zur Telelologie Os juiacutezos teleoloacutegicos na medida em que se distinguem dos juiacutezos

esteacuteticos por seu objeto e por uma certa objetividade que se fundamentaria na natureza satildeo

definidos por Kant como juiacutezos cientiacuteficos ldquoA faculdade de juiacutezo teleoloacutegica [] procede

como sempre acontece no conhecimento teoacuterico segundo conceitos [] Por isso segundo

a sua aplicaccedilatildeo pertence agrave parte teoacuterica da filosofiardquo (KANT 2016 Paacuteg 27) Assim na

medida em que a condiccedilatildeo de reflexionante e por conseguinte a presenccedila do princiacutepio da

Zweckmaumlssigkeit e a conformidade a uma intenccedilatildeo cognoscitiva satildeo considerados traccedilos

distintivos do juiacutezo reflexionante teleoloacutegico em relaccedilatildeo aos juiacutezos reflexionantes esteacuteticos

estes satildeo tomados por Kant o juiacutezo de conhecimento de um telos na natureza e portanto

um juiacutezo conceitual A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica kantiana rejeita

justamente a possibilidade de que juiacutezos reflexionantes teleoloacutegicos sejam tomados como

juiacutezos determinantes como juiacutezos cientiacuteficos Isto porque em sua leitura apenas

explicaccedilotildees mecacircnicas da natureza corresponderiam a um tratamento verdadeiramente

cientiacutefico da natureza

Nietzsche compreende jaacute em Zur Teleologie que apenas podemos compreender do

mundo aquilo que criamos que incluiacutemos no mundo De tal maneira que nosso

conhecimento natildeo se confunde com uma estrateacutegia de traduccedilatildeo da natureza como se esta

se tratasse de um texto dado que a noacutes competiria decifrar Em sua leitura conhecimento

tem muito ais a ver com criaccedilatildeo do que com explicaccedilatildeo Eacute nesse sentido por exemplo que

em um fragmento poacutestumo em que o filoacutesofo reflete acerca de um texto kantiano acerca da

distinccedilatildeo entre juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos Nietzsche escreve

(hellip) soacute podemos compreender plenamente aquilo que noacutes mesmospodemos construir e trazer agrave existecircncia segundo conceitos Deste modo

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apenas o matemaacutetico pode ser plenamente compreendido (ou sejacompreensatildeo formal) Estamos de resto face ao desconhecido Paraadministraacute-lo o homem inventa conceitos que apenas unificam umasomatoacuteria de propriedades que se manifestam mas natildeo tocam a coisa Aeles pertencem fora mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causafinal Eles natildeo satildeo juiacutezos constitutivos mas tatildeo somente juiacutezos reflexivos(KGW I4 paacuteg 565)

Neste fragmento o que estaacute sendo posto eacute a possibilidade de reduccedilatildeo dos juiacutezos

determinantes Para o filoacutesofo na medida em que o homem em sua investigaccedilatildeo da

natureza nunca toca o acircmago das coisas mas pelo contraacuterio sempre trabalha no interior de

realidades por ele criadas tais como aacutetomos sujeitos objetos e todas as categorias com

que se tencione descrever agrave natureza a proacutepria razatildeo sempre estaria atuando de maneira

reflexiva sobre seus proacuteprios produtos Com isso a classe kantiana dos juiacutezos

determinantes a qual dependeria da admissatildeo ainda que apenas metodoloacutegica de uma

realidade extrafenocircmenica estaria de fato esvaziada de objetos Isto natildeo se confunde no

entanto com um alargamento do conceito de explicaccedilatildeo Natildeo se trata de propor que juiacutezos

explicativos deem conta de juiacutezos de finalidade mas o contraacuterio Nietzsche compreende

que juiacutezos explicativos de fato natildeo satildeo possiacuteveis

Retornando agrave anaacutelise levada a cabo pelo autor em Zur Teleologie em que esta

compreensatildeo se mostra presente a conveniecircncia a fins na natureza tal como estaacute foi

imposta ao reino orgacircnico natildeo passaria do produto de um juiacutezo reflexivo uma

consideraccedilatildeo subjetiva que confere leis agrave natureza sem as retirar dela Isto por que

Nietzsche rejeita a ideia de uma inteligecircncia superior como algo que deva ser aceito como

necessaacuterio para a compreensatildeo da natureza desde que para o autor eliminada a distinccedilatildeo

infundada entre realidade orgacircnica e realidade inorgacircnica esta poderia ser compreendida

em sua inteireza por meio da admissatildeo de causas meramente mecacircnicas Assim a

suposiccedilatildeo de uma finalidade na natureza tal como Kant a concebe natildeo diria respeito senatildeo

a uma investigaccedilatildeo da razatildeo com base em seus proacuteprios produtos

Como se pode ver o projeto de investigaccedilatildeo do conceito de orgacircnico a partir de

Kant potildee Nietzsche jaacute em 1868 em contato com uma postura proacutexima agravequela que

caracterizaraacute o periacuteodo maduro de seu pensamento34 Esta postura seria determinada pela

34 Notadamente com as ideias expressas pelo autor no aforismo 14 Aleacutem do Bem e do Mal ldquoComeccedila adespontar em cinco seis ceacuterebros talvez a ideia de que tambeacutem a fiacutesica eacute apenas uma interpretaccedilatildeo e

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compreensatildeo de que as leis da natureza ou conceitos gerais como o de ldquoorgacircnicordquo natildeo satildeo

mais do que ilusotildees produzidas pelo intelecto Na rejeiccedilatildeo nietzschiana das concepccedilotildees

kantianas entram em accedilatildeo ideias contundentes de A Histoacuteria do Materialismo que teratildeo

um longo amadurecimento na reflexatildeo nietzschiana e que acabaratildeo por fundamentar sua

concepccedilatildeo madura acerca do conhecimento assim como da relaccedilatildeo do conhecimento com

a metafiacutesica O fato de o autor das notas referir-se diversas vezes a passagens do texto

langeano para reforccedilar suas posiccedilotildees como por exemplo ao afirmar que ldquoOrdem e

desordem natildeo se encontram na naturezardquo (BAW 3 paacuteg 375) e que ldquoAtribuiacutemos efeitos agrave

causalidade dos quais as causas relacionadas natildeo vemosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) apenas

reforccedila a compreensatildeo de que Nietzsche reflete longamente sobre as concepccedilotildees de Albert

Lange Dessa reflexatildeo a ideia de que toda atribuiccedilatildeo de finalidade na realidade seria um

produto da atuaccedilatildeo poeacutetica humana eacute o resultado mais importante para o texto em estudo

A rejeiccedilatildeo da vida como elemento especial da realidade aparece nessa

compreensatildeo como exemplo da profundidade da influecircncia do materialismo de Lange na

reflexatildeo nietzschiana No lugar de uma concepccedilatildeo otimista em relaccedilatildeo agrave realidade o autor

sustenta uma posiccedilatildeo segundo a qual o acaso seria a uacuteltima fundamentaccedilatildeo da existecircncia

de tudo o que aparece Assim ao considerar que das inuacutemeras possibilidades de

combinaccedilatildeo dos elementos naturais tambeacutem o orgacircnico aparece como possiacutevel o autor das

notas estaacute rejeitando toda necessidade de uma finalidade superior como forma de

explicaccedilatildeo para a vida No lugar de finalidade a vida aparece como tendo seu surgimento e

manutenccedilatildeo condicionados por causas puramente materiais

Para o autor das notas sobre teleologia tudo que existe deve existir posto que deve

ter as condiccedilotildees de sua existecircncia impressas em seu surgimento A apariccedilatildeo do orgacircnico

natildeo representaria nesse sentido nenhum milagre mas apenas uma apariccedilatildeo natural de algo

de cujas causas se desconhece em todo ou em parte Por outro lado o desconhecimento das

causas que ocasionam o seu surgimento natildeo correspondem a um milagre mas apenas a

uma limitaccedilatildeo no conhecimento destas causas

disposiccedilatildeo do mundo (nisso nos acompanhando permitam lembrar) e natildeo uma explicaccedilatildeo do mundoporeacutem na medida em que se apoia na crenccedila nos sentidos ela passa e deveraacute passar durante muito tempopor algo mais isto eacute por explicaccedilatildeordquo (JGBABM I sect14)

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Coisas existem entatildeo elas devem existir o que significa que elas devemter as condiccedilotildees para a existecircncia Quando o homem faz algo estes meiosfazem este algo capaz de existecircncia ele pensa acerca das condiccedilotildees sobas quais isto pode se dar Ele chama as condiccedilotildees para a existecircncia daobra acabada conveniente a fins apoacutes o fato Portanto ele tambeacutem chamaas condiccedilotildees de existecircncia das coisas convenientes a fins o que querdizer apenas com a pressuposiccedilatildeo de que eles surgem do mesmo modoque as obras humanas Quando um homem sorteia um nuacutemero de umacaixa e este natildeo eacute seu nuacutemero ele natildeo eacute nem conforme a fins e neminconforme a fins mas como se diz acaso (zufaumlllig) o que quer dizersem pensamento precedente Poreacutem as condiccedilotildees dessa existecircncia satildeodadas (BAW 3 paacutegs 375-376)

Tudo que surge no reino do orgacircnico pertence agrave realidade porque causa mecacircnicas

determinam seu surgimento e natildeo por conta de um intelecto superior que determina sua

existecircncia Esta suposiccedilatildeo confronta diretamente a concepccedilatildeo kantiana segundo a qual a

causalidade mecacircnica natildeo poderia explicar o reino do orgacircnico Assim ao citar Kant

quando diz ldquoA organizaccedilatildeo da natureza natildeo tem nenhuma analogia com qualquer

causalidade que conheccedilamosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) e ldquoUm organismo eacute aquilo em que tudo

eacute intercambiaacutevel tanto o fim quanto os meiosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) Nietzsche jaacute estaacute em

condiccedilotildees de negar estas exigecircncias Ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo aceitaacutevel para a origem

do orgacircnico o autor das notas preparatoacuterias vecirc em Kant apenas uma supervalorizaccedilatildeo do

racional fundamentada em uma concepccedilatildeo infundada do orgacircnico como algo superior agrave

natureza inorgacircnica

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana

O autor das notas sobre teleologia apresenta em sua leitura do problema do

orgacircnico assim como sua relaccedilatildeo com o inorgacircnico uma interpretaccedilatildeo em que nem a

realidade mecacircnica nem a orgacircnica pertenceriam agrave realidade em si Para o jovem

Nietzsche ambas aproximaccedilotildees do problema tanto a teleoloacutegica quanto a mecacircnica

representariam apenas reflexos de nosso ponto de vista seriam assim produtos de nossa

organizaccedilatildeo Com isso eacute possiacutevel ver que nesta concepccedilatildeo intercalam-se aspectos da

rejeiccedilatildeo nietzschiana das realidades em si e de sua concepccedilatildeo do conhecimento como

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tendo suas limitaccedilotildees em nossa organizaccedilatildeo Estas satildeo ideias caras a Nietzsche que

decorrem sobretudo de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Agravequela altura o autor estaacute certo de que a partir de nosso ponto de referecircncia do

ponto de vista da natureza humana apenas somos capazes de conhecer por meio de

relaccedilotildees causais ou seja ldquoapenas conhecemos mecanismosrdquo e natildeo organismos Com isso

Nietzsche adianta sua conclusatildeo final para o caso dos organismos e da teleologia portanto

uma rejeiccedilatildeo da posiccedilatildeo kantiana e uma reafirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo langeana

O que Kant afirma ele afirma com base em uma maacute analogia que deacordo com essa ideia natildeo haacute nada similar agraves relaccedilotildees de conveniecircncia afins dos organismos A conveniecircncia a fins surge como um caso especialdo possiacutevel formas sem fim surgem o que quer dizer por meio de junccedilatildeomecacircnica entre estas incontaacuteveis formas poderia haver tambeacutem algumascapazes de vida (BAW 3 paacuteg 378-379)

Na citaccedilatildeo fica expliacutecita a compreensatildeo nietzschiana segundo a qual apenas por

meio de uma analogia improcedente entre o modo como o homem cria com a forma como

as coisas satildeo criadas na natureza Kant teria podido sustentar sua concepccedilatildeo teleoloacutegica35

Assim a uacutenica forma de rejeitar o surgimento dos organismos por meios mecacircnicos seria a

suposiccedilatildeo de uma conformidade a fins incoerente como Nietzsche estaacute convencido de

haver demonstrado

Na compreensatildeo nietzschiana Kant teria recorrido a uma realidade extrafenomecircnica

como modo de justificar a existecircncia de uma inteligecircncia diretora por conta de sua rejeiccedilatildeo

de que organismos complexos pudessem surgir por meios mecacircnicos Mas como o autor da

Criacutetica do Juiacutezo poderia sustentar este recurso a uma realidade superior se em sua filosofia

teoacuterica teria negado a possibilidade de conhecimento de qualquer coisa que se pusesse para

aleacutem dos fenocircmenos Assim ao oferecer uma rejeiccedilatildeo sistemaacutetica das concepccedilotildees

kantianas acerca do orgacircnico Nietzsche pensava sustentar aquilo que considerava ser uma

posiccedilatildeo eminentemente kantiana Posiccedilatildeo segundo a qual ldquoo que se encontra para aleacutem de

nossos conceitos eacute completamente impossiacutevel de conhecerrdquo (BAW 3 paacuteg 378-379)

35 A analogia eacute bastante conhecida na histoacuteria da defesa de concepccedilotildees teleoloacutegicas na forma de umaconcepccedilatildeo de design inteligente segundo a qual toda criaccedilatildeo complexa implica a existecircncia de um criadorinteligente

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Vimos em seccedilatildeo anterior que naquele periacuteodo de seu pensamento Nietzsche

escreve um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana em que ataca justamente este

ponto Assim negada a possibilidade de acesso cognitivo a uma realidade superior o que

restaria seria a afirmaccedilatildeo de que o conceito de orgacircnico eacute apenas um conceito humano que

natildeo encontra reflexos na realidade objetiva Assim Nietzsche afirma ldquoa ideia de totalidade

eacute obra nossa Aqui repousa a fonte de nossa representaccedilatildeo de finalidadesrdquo (BAW 3 paacuteg

379) A totalidade da natureza orgacircnica agrave qual Kant pensava que as partes se referiam de

forma finaliacutestica seria apenas um produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo

De fato para o autor das notas preparatoacuterias a proacutepria constituiccedilatildeo do orgacircnico

passa por categorias humanas como a categoria de unidade e de totalidade Sem a ideia de

totalidade tambeacutem a ideia kantiana de finalidade orgacircnica cairia por terra Mas se a

finalidade natural natildeo tem sua explicaccedilatildeo em uma realidade extrafenomecircnica porque natildeo

temos acesso a uma tal realidade isto natildeo quer dizer que o orgacircnico natildeo possa ter sua

origem explicada Esta explicaccedilatildeo no entanto natildeo poderia ser dada de forma definitiva

posto que se fundamentaria em nossa organizaccedilatildeo Assim Para Nietzsche a origem do

orgacircnico apenas pode ser dada de forma hipoteacutetica36 e a hipoacutetese defendida pelo autor das

notas seria uma combinaccedilatildeo de mecanicismo e causalismo A ideia da origem do orgacircnico

por meio da atuaccedilatildeo de relaccedilotildees causais que se dariam ao acaso eacute formulada pelo autor das

notas com base em sua rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo de uma inteligecircncia diretora por traacutes da

criaccedilatildeo da realidade

A origem do orgacircnico eacute uma origem hipoteacutetica em que noacutes imaginamosum entendimento humano como presente Agora o conceito de orgacircnicoeacute tambeacutem apenas humano deve-se apontar a analogia de que o que eacute

36 Na adoccedilatildeo nietzschiana de uma hipoacutetese como resposta agrave suposiccedilatildeo contraacuteria que no caso das notas sobreteleologia eacute a hipoacutetese teleoloacutegica eacute possiacutevel perceber traccedilos de semelhanccedila com a madura concepccedilatildeonietzschiana de vontade de potecircncia e sua defesa hipoteacutetica no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do MalCertamente que a defesa de hipoacuteteses natildeo constitui elemento original na filosofia de um autor comoNietzsche o qual sempre apresenta em seus escritos mais questionamentos do que respostas Mas o fato dofiloacutesofo natildeo defender posiccedilotildees dogmaacuteticas pode ser um elemento mais significativo do que parece a primeiravista podendo significar uma resoluta renuacutencia agrave defesa de posiccedilotildees dogmaacuteticas Atitude que a partir deAleacutem do Bem e do Mal se torna expliacutecita Chama a nossa atenccedilatildeo sobretudo o fato de Nietzsche apresentaresta concepccedilatildeo de maneira hipoteacutetica nessa passagem o que remete agrave forma como o autor apresenta a suaconcepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia como hipoacutetese adversaacuteria da concepccedilatildeo mecanicista dos fiacutesicos No casoem questatildeo a hipoacutetese resumida por Nietzsche como a hipoacutetese acerca da origem do orgacircnico segundo aqual o mesmo princiacutepio diretor que atua na manutenccedilatildeo do orgacircnico atuaria em sua criaccedilatildeo eacute contraposta aideia de uma associaccedilatildeo de mecanicismo e acaso que o autor entende como capaz de originar mesmo asformas mais complexas do orgacircnico

61

capaz de vida surge dentre uma multiplicidade daquelas possibilidadesincapazes de vida Com o quecirc nos aproximamos da soluccedilatildeo doorganismo Vemos o tanto quanto eacute capaz de vida surgir e se manter evemos o meacutetodo Suposto que a forccedila que opera para tornar a vida capazde existecircncia a traz para a existecircncia e a manteacutem do mesmo modo isto eacutemuito irracional Mas esta eacute a pressuposiccedilatildeo da teleologia (BAW 3 paacuteg379)

Diante do absurdo da suposiccedilatildeo de que um mesmo princiacutepio guiado pelas mesmas

premissas atuaria na origem e na manutenccedilatildeo de um ente orgacircnico o autor apresenta a

concepccedilatildeo segundo a qual apenas nossa forma de compreender o orgacircnico poderia

justificar esta distorccedilatildeo fundamental A partir dessa rejeiccedilatildeo fundamental da ideia de uma

inteligecircncia diretora e da hipoacutetese de que um mesmo princiacutepio atuasse na origem e na

manutenccedilatildeo dos seres vivos Nietzsche passa a levar em consideraccedilatildeo o problema

epistemoloacutegico fundamental apresentado na Criacutetica do Juiacutezo Assim na continuidade do

conjunto de fragmentos poacutestumos que compotildeem as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie o autor pretende estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas

categorias de causa e efeito

Atraveacutes do recurso agrave categoria de causalidade e a propriedade do meacutetodo de

investigaccedilatildeo mecanicista Nietzsche rejeita a oposiccedilatildeo entre as categorias de unidade e

multiplicidade Esta oposiccedilatildeo com base na qual a explicaccedilatildeo kantiana da necessidade de

um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos se fundamentaria seria de

fato o rela motivo pelo qual o autor das notas preparatoacuterias teria inserido Kant entre os

defensores da teleologia Na leitura do autor das notas preparatoacuterias apesar da ideia

simples do organismo se apresentar a noacutes como o proacuteprio organismo esta ideia se potildee para

aleacutem da multiplicidade de partes e estados que compotildeem o organismo sem que com isso

se perca a sua identidade

Por isso o filoacutesofo cita uma passagem de A Histoacuteria do Materialismo em que

Lange discute as concepccedilotildees naturalistas de Goethe ldquolsquoToda coisa vivarsquo nos diz Goethe lsquoeacute

natildeo uma singularidade mas uma pluralidade mesmo se no entanto ela aparece a noacutes

como um indiviacuteduo ela permanece uma coleccedilatildeo de seres vivos independentesrsquordquo (BAW 3

Paacuteg 376) Com base nessa interpretaccedilatildeo Nietzsche argumenta que tal natildeo se daria se o

organismo natildeo fosse um elemento estrutural da natureza mas ao contraacuterio a unidade

62

estrutural do orgacircnico fosse um produto de nosso intelecto e natildeo uma caracteriacutestica da

natureza

Este seria o real motivo porque o foco da criacutetica nietzschiana agrave teleologia naquele

momento recaia sobre a concepccedilatildeo tradicional de orgacircnico Pois na medida em que a

tradiccedilatildeo representava a visatildeo da natureza como sendo formada por unidades independentes

que se organizariam para constituir um todo complexo a dicotomia entre a multiplicidade

das partes e a unidade do organismo seria fundamental para a compreensatildeo do mundo

orgacircnico Portanto a verdadeira oposiccedilatildeo natildeo se daria entre uma concepccedilatildeo mecacircnica e

uma concepccedilatildeo teleoloacutegica dos organismos mas entre uma concepccedilatildeo que se baseia na

ideia tradicional de organismos aqueles que pretendem um esclarecimento da natureza

mediante a elucidaccedilatildeo da categoria de orgacircnico e as concepccedilotildees mecacircnicas que

pretendem estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas categorias de causa e

efeito (BAW 3 paacuteg 130)

Acompanhando a interpretaccedilatildeo de Fischer para quem ldquoO que a razatildeo conhece da

natureza atraveacutes de seus conceitos natildeo eacute nada mais do que o efeito de forccedilas em

movimento ou seja seu mecanismordquo(BAW 3 paacuteg 377) Nietzsche adianta uma

explicaccedilatildeo do mundo orgacircnico que pressupotildee apenas uma forma de causalidade mecacircnica

retomando assim a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente mecacircnica dos

organismos Nesse sentido o autor chega a admitir apenas a explicaccedilatildeo mecacircnica como

explicaccedilatildeo cientiacutefica como demonstra a citaccedilatildeo de Fischer que encontramos como

fundamento de sua posterior argumentaccedilatildeo ldquoO que natildeo pode ser conhecido por meio de

um ponto de vista meramente mecacircnico natildeo pertence agrave ciecircncia naturalrdquo (BAW 3 paacuteg

377) Com base na suposiccedilatildeo apenas de princiacutepios mecacircnicos na explicaccedilatildeo da realidade

orgacircnica Nietzsche desqualifica toda forma de explicaccedilatildeo teleoloacutegica da natureza como

sendo uma explicaccedilatildeo natildeo cientiacutefica

Ainda em conformidade com Fischer e Lange Nietzsche escreve ldquoexplicar

mecanicamente significa explicar a partir de causas externasrdquo (BAW 3 paacuteg 377) Desta

maneira o autor das notas preparatoacuterias reforccedila a ideia de que toda suposiccedilatildeo de uma

teleologia interna repousa apenas em um preconceito ocasionado por uma super-

valorizaccedilatildeo da razatildeo Esta interpretaccedilatildeo do problema teleoloacutegico eacute contraposta agrave

interpretaccedilatildeo apresentada por Kant na criacutetica do Juiacutezo segundo a qual ldquoA especificaccedilatildeo

63

(da natureza) natildeo pode ser explicada atraveacutes de causas naturaisrdquo (BAW 3 paacuteg 377)

Nietzsche conclui que as causas internas as quais Kant necessariamente precisa recorrer

em sua explicaccedilatildeo dos organismos na figura da finalidade seriam o mesmo que

representaccedilotildees ideias as quais se recorre para atribuir uma explicaccedilatildeo ao que natildeo eacute

passiacutevel de conhecimento

No entanto desde que a elas corresponderia apenas um ldquoponto de vistardquo e um

ponto de vista natildeo pode ser confundido com um conhecimento objetivo a explicaccedilatildeo dos

seres orgacircnicos por meio da ideia de conveniecircncia a fins corresponderia apenas agrave uma

perspectiva limitada Se como Nietzsche nesse ponto chega a afirmar ldquoo princiacutepio de um

tal ponto de vista necessaacuterio deve ser um conceito da razatildeordquo (BAW 3 paacuteg 377) entatildeo

toda forma de explicaccedilatildeo da natureza corresponderia apenas a sua sujeiccedilatildeo ao mecanismo

representacional humano Logo toda explicaccedilatildeo da natureza repousaria em uma forma de

representaccedilatildeo mais ou menos subjetiva ocasionada pelo modo mesmo como a razatildeo

constitui seus produtos Por outro lado a proacutepria compreensatildeo das coisas mediante uma

explicaccedilatildeo causal seria ainda uma limitaccedilatildeo relativa apenas ao nosso modo de

compreensatildeo porque ldquoDevido a nossa organizaccedilatildeo apenas podemos compreender uma

origem mecacircnica das coisasrdquo (BAW 3 paacuteg 378)

As notas preparatoacuterias para a tese sobre teleologia assim parece apresentar como

seu resultado final uma compreensatildeo do caraacuteter limitado de toda forma de compreensatildeo da

realidade Posto que todo conhecimento da realidade apenas pode ser tomado como uma

representaccedilatildeo segundo a forma humana de apreensatildeo desta realidade entatildeo ou bem o

conhecimento propriamente natildeo eacute possiacutevel ou apenas pode ser tomado como

conhecimento uma forma humana de representaccedilatildeo da realidade Em um outro texto do

periacuteodo de juventude Nietzsche se voltaraacute para os problemas referentes agrave verdade e ao

conhecimento mas agora entraram em cena novas variaacuteveis tais como a linguagem e o

valor moral das nossa representaccedilotildees da realidade Desta forma na medida em que

compreendemos que a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do conhecimento diz respeito a

uma avaliaccedilatildeo do valor do conhecimento entatildeo o Ensaio sobre Verdade e Mentira

apresentaraacute em relaccedilatildeo agrave Zur Teleologie elementos que atestam um progresso

consideraacutevel no caminho da formulaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

64

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral

O Ensaio sobre Verdade e Mentira escrito poacutestumo ditado por Nietzsche a um

amigo em 1873 portanto um ano apoacutes a publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia

testemunha a preocupaccedilatildeo do jovem filoacutesofo com temas relacionados aos problemas do

conhecimento e da verdade Nesse sentido como um primeiro exemplo da abordagem

destes problemas na filosofia nietzschiana pretendemos interpretar este ensaio como o

ponto de partida para diversas concepccedilotildees acerca da natureza do conhecimento Como a

leitura do ensaio deixa claro o autor retira estas concepccedilotildees de seu contato com as ciecircncias

naturais de sua eacutepoca O que significa que assim como no caso das notas Zur Teleologie o

Ensaio sobre Verdade e Mentira assume um aspecto que se poderia qualificar

parafraseando Nietzsche como semifilosoacutefico e semicientiacutefico

Tanto nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie quanto no Ensaio sobre Verdade

e Mentira Nietzsche demonstra um profundo interesse pelas disputas em torno de temas

comuns agraves ciecircncias naturais Se nas notas sobre teleologia o autor se relaciona intimamente

com diversas teorias acerca da natureza do orgacircnico no ensaio aparecem representadas

teses sobre evoluccedilatildeo das espeacutecies e sobre a funccedilatildeo bioloacutegica de determinadas estruturas do

aparato humano De tal forma estes textos demonstram a preponderacircncia de questotildees

relacionadas ao conhecimento em uma interpretaccedilatildeo que aproxima essa temaacutetica dos

estudos bioloacutegicos que natildeo se pode deixar de relacionaacute-los aos desdobramentos que o

autor apresenta no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

No aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia encontramos os traccedilos centrais da teoria do

conhecimento suportada por Nietzsche no periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento

Nesses traccedilos natildeo encontraremos a meu ver mudanccedilas significativas em relaccedilatildeo ao modo

como o conhecimento eacute tratado em sua filosofia de juventude notadamente em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira O objeto do aforismo eacute a criacutetica agrave concepccedilatildeo de consciecircncia

apresentado aqui discretamente como o problema do tornar-se consciente desde que

Nietzsche rejeita a ideia de uma consciecircncia independente do ldquotornar-se conscienterdquo Uma

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resultante desse problema como se pode notar facilmente eacute a concepccedilatildeo de consciecircncia

como objeto de um conhecimento absolutamente certo de si mesma37

O perspectivismo e o fenomenalismo aparecem aqui como a indicaccedilatildeo de que

apenas como fenocircmeno apenas no seu aparecer enquanto o nosso tornar-se consciente a

consciecircncia pode ser objeto de conhecimento38 E como fenocircmeno que eacute nos diz

Nietzsche39 esta seria passiacutevel de uma anaacutelise apenas parcial posto que apenas pode ser

reconhecida por noacutes como um produto de nossa organizaccedilatildeo A anaacutelise do processo de

formaccedilatildeo da consciecircncia tal como estaacute se daraacute aqui tal como se deu a anaacutelise do intelecto

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira passa pelo questionamento acerca da utilidade do

aparato cognitivo humano

Os textos em questatildeo representariam sobretudo um posicionamento criacutetico de

Nietzsche com relaccedilatildeo agrave concepccedilotildees tradicionais de conhecimento Do mesmo modo estes

textos se utilizam amplamente de concepccedilotildees derivadas das ciecircncias naturais como forma

de se contrapor a tais concepccedilotildees tradicionais Em sua abordagem evolutiva ou seja que

toma como referecircncia a evoluccedilatildeo bioloacutegica da espeacutecie humana a consciecircncia eacute tomada

como um oacutergatildeo cuja principal funccedilatildeo estaria relacionada agrave criaccedilatildeo da linguagem A

linguagem por sua vez seria compreendida como uma peccedila fundamental na estrateacutegia de

sobrevivecircncia que se tornou mais eficiente para os homens Assim encontraremos no

aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o questionamento ldquopara quecirc precisamente consciecircnciardquo

37 Como se sabe o conceito de consciecircncia assim como a possibilidade de seu conhecimento certocompotildee o argumento central da filosofia cartesiana a qual influenciou fortemente toda a filosofia moderna Acriacutetica agrave modernidade e sua concepccedilatildeo racionalista portanto comeccedila em Nietzsche pela criacutetica da concepccedilatildeoracionalista de consciecircncia e com a apresentaccedilatildeo dos elementos inconscientes por traacutes da formaccedilatildeo daconsciecircncia que ele apresenta no aforismo em questatildeo38 Eacute importante notar que estes termos satildeo utilizados aqui por Nietzsche com a maacutexima precauccedilatildeo comobem observa Stegmaier ldquoEs ist einer der seltenen Faumllle in denen er im veroumlffentlichten Werk solche Terminibenutzt und er umstellt sie denn auch sogleich mit deutlichen Einschraumlnkungen bdquoDies ist der eigentlichePhaumlnomenalismus und Perspektivismus wie ich ihn versteherdquo (STEGMAIER Werner NietzschesBefreiung der Philosophie Kontextuelle Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo IIUrsprungsfragen zur Aufloumlsung von scheinbar letztem Halt De Gruyter (Berlin Boston) 2012 Paacuteg 280)Como Stegmaier tambeacutem nos diz essa eacute uma das poucas passagens onde podemos contemplar a utilizaccedilatildeodestes termo por Nietzsche

39 Como explica Stegmaier ldquoDer Begriff sbquoPhaumlnomenalismuslsquo war vor allem auf Kants Lehre gemuumlnzt dasswir es niemals mit sbquoDingen an sichlsquo sondern immer nur mit sbquoErscheinungenlsquo sbquoPhaumlnomenenlsquo zu tun haumlttenauch dieser sbquo-ismuslsquo wurde wie viele andere zunaumlchst von Kritikern jener Lehre aufgebracht und dann auchzu ihrer Verteidigung und Fortbildung benutztrdquo Idem

66

Este questionamento que de certo modo jaacute encontra fora respondido no Ensaio sobre

Verdade e Mentira tem no aforismo em questatildeo uma resposta hipoteacutetica ldquoPara fins de

comunicaccedilatildeordquo

Consideramos que a concepccedilatildeo presente no ensaio de uma evoluccedilatildeo do intelecto

com base na necessidade de uma vida coletiva a qual por sua vez torna-se cada vez mais

dependente de uma linguagem pode ser lida aqui como uma variaccedilatildeo do questionamento

suportado por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia A similaridade de objetos assim como da

resposta torna possiacutevel estabelecer uma certa continuidade entre o periacuteodo de juventude e

o periacuteodo intermediaacuterio da reflexatildeo nietzschiana Continuidade que se natildeo pode se

confundir com a supressatildeo das discordacircncias pode servir de base para a ideia de que

apesar de uma certa variaccedilatildeo na abordagem as ideias acerca das relaccedilotildees entre o

conhecimento e a linguagem permanecem praticamente intocadas com o desenvolvimento

do pensamento nietzschiano

A primeira dificuldade que se nos apresenta no estudo do ensaio em questatildeo eacute o

uso ambiacuteguo de verdade a que este daacute lugar40 A originalidade do ensaio que como o tiacutetulo

40 No capiacutetulo de seu livro dedicado ao estudo do ensaio sobre verdade e mentira Bornedal se daacute conta dessaconhecida dificuldade e identifica trecircs (ou quatro) sentidos de verdade no ensaio em questatildeo ldquolsquoverdadersquo eacuteuma bem conhecida pedra no caminho para os comentadores do ensaio de juventude de Nietzsche Muitoscomentadores veem Nietzsche se contradizendo porque ele introduz muitos conceitos diferentes eincompatiacuteveis de verdade Concordamos que Nietzsche realmente introduz diferentes noccedilotildees de lsquoverdadersquo eestamos aptos a numerar no ensaio exatamente trecircs (ou quatro dependendo de como se conta) destas taisnoccedilotildees de verdade verdade como veracidade (truthfulness) verdade como ilusatildeo (que se divide em duasformas porque a verdade pode ser uma ilusatildeo devida agrave percepccedilatildeo ou uma ilusatildeo devida aos conceitos) everdade como a coisa em si Poreacutem ao introduzir estes trecircs ou quatro conceitos de verdade natildeo percebemosuma contradiccedilatildeo em Nietzsche desde que as noccedilotildees tecircm diferentes definiccedilotildees aplicaccedilotildees e contextosrdquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 32-33) No entanto apresentamos uma versatildeo um pouco diferente dasconcepccedilotildees de verdade segundo Bornedal porque este associa uma concepccedilatildeo de coisas em si com umaconcepccedilatildeo de verdade segundo Nietzsche quando nos parece que o autor do ensaio nega esta relaccedilatildeo emtodos os momentos que se refere agraves coisas em si Bornedal parece incorrer em uma interpretaccedilatildeo corriqueirada filosofia de juventude de Nietzsche a qual nos contrapomos de que nesta fase o filoacutesofo postula-se aexistecircncia de coisas em si como um elemento necessaacuterio de sua negaccedilatildeo do conhecimento verdadeiro Com oadendo de que Bornedal faz observaccedilotildees fundamentais no sentido de esclarecer que na reflexatildeo nietzschianadaquele periacuteodo este jaacute se relacionaria com uma versatildeo criacutetica da coisa em si de acordo com asinterpretaccedilotildees de Lange e Hemholtz da filosofia kantiana Versatildeo criacutetica em que o que se potildee para aleacutem dosfenocircmenos natildeo teria relaccedilotildees com uma realidade transcendente mas apenas com o complexo bruto natildeotraduzido de estiacutemulos nervosos Em resumo a coisa em si a qual Nietzsche faria referecircncia no ensaio teriamais a ver com os estiacutemulos nervosos por traacutes das percepccedilotildees humanas ou ldquoNesta reformulaccedilatildeoepistemoloacutegico-cientiacutefica do pensamento kantiano a coisa em si eacute mais do que simplesmente o enigmaacuteticolsquoXrsquo de Kant ele ainda eacute certamente enigmaacutetico mas agora ele eacute compreendido como impressotildees sensiacuteveisimpressas em noacutes lsquosob a pelersquo como diria Schopenhauer A coisa em si eacute tatildeo incompreensiacutevel e inacessiacutevelcomo sempre mas agora sua incompreensibilidade tinha uma explicaccedilatildeo fisioloacutegico-cientiacuteficardquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 41)

67

anuncia tem como tema a verdade e a mentira vistas de um ponto de vista extramoral

residiria no fato de que a anaacutelise destes temas em contraposiccedilatildeo agraves abordagens

tradicionais buscaria situar-se em um patamar de exterior agrave moral A primeira denuacutencia do

texto portanto denuacutencia que jaacute se encontra em seu tiacutetulo diz respeito a insinuaccedilatildeo da

moral em questotildees relativas agrave verdade e a mentira Para o autor do ensaio o

questionamento pela forma como a moral se confunde com a verdade e a mentira jaacute

representaria um passo fundamental na determinaccedilatildeo do que sejam de fato verdade e

mentira

Seu posicionamento distingue-se aos estudos anteriores dessas concepccedilotildees

filosoacuteficas que o autor julga terem sido analisados dentro de uma apreciaccedilatildeo estritamente

moral Assim o autor do ensaio procura qualificar tanto a verdade quanto a mentira como

instacircncias cuja a origem natildeo se relacionaria com algum reino moral Seria somente a partir

das consequecircncias negativas deste uso que surgiria o impulso moral agrave verdade Pois para o

autor do ensaio a verdade em uma primeira acepccedilatildeo estaria relacionada agrave veracidade ou

o uso correto de designaccedilotildees produzidas pelo intelecto a partir de metaacuteforas Em outro

sentido a verdade seria uma ilusatildeo decorrente de se tomar por verdadeiro uma percepccedilatildeo

ou um conceito de algo Por fim a verdade estaria relacionada ao uso dos termos

acordados em uma comunidade tornando-se aquilo que a tradiccedilatildeo entendeu como verdade

com todo o peso moral que esta concepccedilatildeo assume a partir de um haacutebito de interiorizaccedilatildeo

das consequecircncias do uso incorreto dos termos acordados Eacute assim que para o autor a

mentira poderia a princiacutepio ser tomada como o uso incorreto de designaccedilotildees acordadas

em sociedade

Poderia ser dito entatildeo que a originalidade do texto em questatildeo reside no

questionamento do julgamento moral positivo acerca da verdade e o correlato julgamento

negativo com relaccedilatildeo agrave mentira que encontramos nas abordagens tradicionais dos

problemas da verdade Se a verdade eacute universalmente e objetivamente preferiacutevel agrave

mentira e o autor estaacute bem longe de acreditar nisso sua preferecircncia deve ser dada por algo

estranho agrave moral que ao contraacuterio do que se imagina natildeo eacute eterna e portanto anterior agrave

criaccedilatildeo da verdade e da mentira Para o autor do ensaio pelo contraacuterio a moral seria uma

decorrecircncia da criaccedilatildeo da verdade e da mentira

68

21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira

No ensaio sobre verdade e mentira o intelecto eacute concebido apenas como um

instrumento uma construccedilatildeo orgacircnica um oacutergatildeo voltado para a sobrevivecircncia do ser

humano No que se vecirc claramente uma rejeiccedilatildeo de qualquer finalidade exterior agrave

sobrevivecircncia humana41 Esta renuacutencia ao conhecimento como finalidade a indicaccedilatildeo de

que ao contraacuterio do que a tradiccedilatildeo imagina o intelecto natildeo seria o uacuteltimo grau de

desenvolvimento bioloacutegico prepara o cenaacuterio para o desmascaramento do homem como

ponto culminante da criaccedilatildeo

Naquelas notas preparatoacuterias para uma dissertaccedilatildeo em filosofia o autor buscava

uma explicaccedilatildeo mecacircnica capaz de suplantar a explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo natural

Analogamente no ensaio em estudo a biologia a lei natural de desenvolvimento dos

organismos apareceraacute como instrumento interpretativo para estruturas sobre as quais o

idealismo fundamentava o que o autor considerava as mais tresloucadas concepccedilotildees Mais

ainda em sua exposiccedilatildeo do desenvolvimento do intelecto como oacutergatildeo para a linguagem o

autor desconsidera a possibilidade de qualquer finalidade superior assim como reduz a

importacircncia do oacutergatildeo em questatildeo a uma finalidade fisioloacutegica Com isso o autor parece

pocircr em uso um entendimento criacutetico com relaccedilatildeo agrave teleologia que seria similar ao

apresentado nas jaacute referidas notas sobre teleologia

Uma conclusatildeo fundamental que pode ser extraiacuteda do ensaio eacute que o conhecimento

representado aqui na forma do grande edifiacutecio de conceitos da qual a ciecircncia seria uma

expressatildeo natildeo se confunde em Nietzsche como um produto da verdade Na verdade

como a construccedilatildeo que toma por material os conceitos que satildeo algo como cristalizaccedilotildees de

metaacuteforas adequadas a ciecircncia eacute apenas uma construccedilatildeo humana para fins de

sobrevivecircncia humana que natildeo tem um valor absoluto e cujo valor para outras espeacutecies eacute

questionaacutevel Ora se aprofundarmos a metaacutefora da teia da aranha em relaccedilatildeo ao

conhecimento para o homem veremos que a ciecircncia humana eacute tatildeo verdadeira para a aranha

quanto a teia desta para noacutes Algo simplesmente natildeo encaixa na comparaccedilatildeo porque o

41 Quando tomada a questatildeo da finalidade como centro de reflexatildeo de Nietzsche naquele momento de suaproduccedilatildeo eacute importante repensar a criacutetica agrave concepccedilatildeo de finalidade como explicaccedilatildeo dos organismos talcomo esta reflexatildeo aparece em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie analisadas no toacutepico anterior

69

filoacutesofo entende que ambas criaccedilotildees apenas correspondem agraves necessidades de cada espeacutecie

e natildeo tecircm valor algum fora de suas perspectivas

Nesse sentido longe de ser o objeto proacuteprio do ser humano seu uacuteltimo alvo e

finalidade no universo diante do qual todo universo deveria se dobrar o conhecimento eacute

tomado pelo autor como uma relaccedilatildeo antropomoacuterfica uma estrateacutegia de sobrevivecircncia

criada com o uacutenico intuito de conservar por um breve momento a mais na existecircncia a

espeacutecie mais ameaccedilada de todas Assim por meio de uma faacutebula apresentada jaacute no

primeiro paraacutegrafo do ensaio Nietzsche apresenta uma visatildeo pessimista com relaccedilatildeo ao

conhecimento

Em algum remoto rincatildeo do universo que se desaacutegua fulgurantementeem inumeraacuteveis sistemas solares havia uma vez um astro no qualanimais astuciosos inventaram o conhecimento Foi o minuto maisaudacioso e hipoacutecrita da ldquohistoacuteria universalrdquo mas no fim das contas foiapenas um minuto Apoacutes alguns respiros da natureza o astro congelou-see os astuciosos animais tiveram de morrer Algueacutem poderia desse modoinventar uma faacutebula e ainda assim natildeo teria ilustrado suficientementebem quatildeo lastimaacutevel quatildeo sombrio e efecircmero quatildeo sem rumo e semmotivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza houveeternidades em que ele natildeo estava presente quando ele tiver passadomais uma vez nada teraacute ocorrido (WLVM sectI paacuteg 25)42

Esta faacutebula da criaccedilatildeo do conhecimento humano que consta como poacutertico de

entrada do ensaio daacute mostras do tom irocircnico a ser utilizado para com o intelecto humano e

para com o proacuteprio conhecimento em todo o escrito Disto jaacute tomamos notiacutecia pela ecircnfase

do autor no termo ldquohistoacuteria universalrdquo mencionado entre aspas como a ironizar a

arrogacircncia necessaacuteria para chamar universal uma histoacuteria que eacute narrada a partir de nossa

perspectiva limitada criaturas destinadas a sumir ao fim de apenas alguns respiros do

universo Do mesmo modo o uso da faacutebula como que para demarcar o limite hipoteacutetico de

toda essa formulaccedilatildeo arbitraacuteria e antropocecircntrica guarda bastante do tom irocircnico utilizado

pelo autor para tratar do conhecimento em seus textos da fase madura43

42 As citaccedilotildees satildeo da traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros do Ensaio sobre Verdade e Mentira da editoraHedra conforme consta na bibliografia Entre parecircnteses eacute indicado o texto por WLVM a indicaccedilatildeo deparaacutegrafo e a paacutegina da traduccedilatildeo em estudo43 Por outro lado o recurso agrave faacutebula como instrumento expositivo nesse ensaio se torna importante porquerepresenta a permanecircncia no pensamento do autor de um recurso discursivo com o qual este se opotildee agravesdescriccedilotildees com pretensatildeo cientiacutefica Este recurso eacute especialmente comum em textos nietzschianos em que o

70

O sentido do primeiro paraacutegrafo do texto torna-se assim claro e rico de sentido o

autor do ensaio natildeo vecirc com benevolecircncia o conhecimento humano assim como natildeo atribui

grande importacircncia ao intelecto humano Toda esta postura denuncia um afastamento da

tradiccedilatildeo na medida em que aquela eacute marcada pela ecircnfase nessas instacircncias meramente

humanas Por isso o autor acrescenta que este intelecto lastimaacutevel sombrio e efecircmero o

qual ldquohouve eternidades em que ele natildeo estava presenterdquo e que ldquoquando ele tiver passado

mais uma vez nada teraacute ocorridordquo (WLVM sectI paacuteg 25) natildeo tem nenhuma missatildeo

especial no universo para aleacutem da sobrevivecircncia humana

O intelecto nos diz o autor natildeo alcanccedila nada para aleacutem de sua funccedilatildeo bioloacutegica a

criaccedilatildeo de ilusotildees capazes de facilitar a sobrevivecircncia humana No entender de Nietzsche

apenas o homem toma este intelecto de forma tatildeo ldquopateacuteticardquo centrando o universo nesse

instrumento de sobrevivecircncia Como uma mosca que fundamentasse o universo em seu

voar o homem mede todo o universo a partir de sua perspectiva limitada e enganosa Esse

pathos a sensaccedilatildeo de que o mundo pode ser explicado por meio de uma tatildeo limitada

ferramenta teria sido justamente o motivo de tantos erros em filosofia Erros os quais

seria funccedilatildeo do ensaio questionar tomando como instrumento criacutetico uma anaacutelise bioloacutegica

do desenvolvimento humano e suas estruturas perceptivas

Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela exposiccedilatildeo do

caraacuteter perspectivo de nossas pretensas verdades universais Nietzsche coloca-se frente agrave

pretensatildeo de verdade representada pelas filosofias racionalistas identificada pelo autor do

ensaio como a pretensatildeo de atingir a verdade absoluta atraveacutes de um instrumento

necessariamente relativo humano Assim por meio de uma consideraccedilatildeo perspectiva do

conhecimento a defesa do caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da realidade

repousaraacute sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o filoacutesofo

realiza por meio da constataccedilatildeo dos limites do intelecto em contrariedade a toda a tradiccedilatildeo

racionalista que preferiu se voltar contra os oacutergatildeos dos sentidos Sua anaacutelise de tudo que

autor reflete acerca dos problemas da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O uso da faacutebula emcontraposiccedilatildeo a uma descriccedilatildeo dos fatos assinala um certo caraacuteter provisoacuterio ou hipoteacutetico com que se podetratar do tema do conhecimento sem que seja necessaacuteria a defesa de uma concepccedilatildeo proacutepria que se entendecomo definitiva Ou seja o recurso nietzschiano agrave faacutebula assim como seu recurso agraves hipoacuteteses marcam aoposiccedilatildeo criacutetica do autor a toda forma de tratamento dogmaacutetico Do mesmo modo este modo peculiar deargumentar eacute utilizado pelo filoacutesofo como demonstraccedilatildeo de que eacute possiacutevel opor-se a uma posiccedilatildeo dogmaacuteticasem recorrer a uma outra posiccedilatildeo dogmaacutetica Este recurso pode ser compreendido desta forma comomanifestaccedilatildeo praacutetica do experimentalismo nietzschiano

71

ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo

desdobramento do mundo em substacircncia inteligiacutevel agrave anaacutelise de sua origem e

desenvolvimento

O contato nietzschiano com autores das ciecircncias naturais contato que teria sido

mediado pela leitura de A Histoacuteria do Materialismo de Albert Lange proporciona uma

investigaccedilatildeo do intelecto com base na interpretaccedilatildeo deste como um oacutergatildeo voltado para a

sobrevivecircncia humana Para o autor do ensaio sua funccedilatildeo mais comum eacute a geraccedilatildeo de

linguagem que nessa leitura significa a modelagem de estruturas natildeo comunicaacuteveis dentro

de conceitos passiveis de serem convertidos em sons Nesta leitura o processo de

formaccedilatildeo da linguagem eacute examinado com base na suposiccedilatildeo de que esta teria evoluiacutedo sob

a pressatildeo da necessidade humana Assim a linguagem teria sido criada esse desenvolvido

natildeo com base na descriccedilatildeo da realidade mas na simplificaccedilatildeo de uma forma de realidade

Esta simplificaccedilatildeo teria se dado sobretudo na supressatildeo da mobilidade que nos eacute

apresentada pelos sentidos por meio de metaacuteforas que conferem um caraacuteter fixo e

comunicaacutevel a estas impressotildees fundamentais Mas a linguagem apenas se torna uma

funccedilatildeo orgacircnica importante na medida em que o homem passa a depender de outros

homens para sua sobrevivecircncia E se o intelecto tem como funccedilatildeo fundamental a criaccedilatildeo da

linguagem eacute natural compreender que este enquanto estrutura propriamente humana que

se originou e desenvolveu segundo nossas necessidades naturais ocupe um papel

secundaacuterio no conjunto de nossas atividades orgacircnicas

Seraacute apenas a partir deste gecircnero de anaacutelise da utilidade do intelecto e seus

produtos que passam a ser encarados no Ensaio Sobre Verdade e Mentira como

instrumentos adequados agraves necessidades humanas que Nietzsche poderaacute efetuar uma

criacutetica evolutiva do conhecimento humano Ou seja com esta anaacutelise que toma o intelecto

natildeo como oacutergatildeo para a verdade mas como estrutura voltada para uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia Nietzsche desenvolve uma criacutetica da razatildeo baseada em sua utilidade

bioloacutegica44

44 Haacute uma dificuldade interpretativa em Nietzsche quanto agrave categoria de razatildeo De modo adverso aos autoresque lhe antecedem e que satildeo uma clara influecircncia na sua teoria sobre a verdade e o conhecimento tais comoKant e Schopenhauer Nietzsche natildeo desenvolve uma elucidaccedilatildeo dos mecanismos da razatildeo e natildeo sepreocupa em fazer uma distinccedilatildeo entre o que sejam intuiccedilatildeo entendimento intelecto e razatildeo que para atradiccedilatildeo que ele perpetua tem um papel fundamental Tal se daacute entre outros motivos pela negaccedilatildeo dasfaculdades espirituais que eacute comum a todos os escritos sobre o conhecimento de Nietzsche Do mesmomodo para descrever a faculdade que daacute origem agrave linguagem ele adota um termo no Ensaio Sobre Verdade eMentira (Intellektintelecto) e outro no sect354 de A Gaia Ciecircncia (Bewusstseinsconsciecircncia) A mudanccedila do

72

Nesta criacutetica em que o intelecto natildeo eacute mais visto como fonte da veracidade do

mundo mas como um oacutergatildeo que evoluiu segundo as exigecircncias de uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia proacutepria de nossa espeacutecie o filoacutesofo considera que o conhecimento humano

como parte de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia Como tal o conhecimento humano natildeo

teria uma origem divina extramundana mas sim um surgimento na histoacuteria do mesmo

modo que um dia teraacute seu fim Como estrutura bioloacutegica o intelecto seria para o homem

algo correlato ao chifre ou agraves presas para outras espeacutecies45 uma formaccedilatildeo fisioloacutegica

adaptativa que se associa a uma estrateacutegia de sobrevivecircncia especiacutefica

Esta compreensatildeo eacute pensada como para subverter a compreensatildeo do intelecto como

algo divino Compreensatildeo que fundamentaria a compreensatildeo da verdade como um

produto do intelecto tambeacutem como algo divino Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo que entende que

o intelecto foi moldado para a verdade Nietzsche compreende que ldquoSeu efeito mais geral eacute

engano ndash mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caraacuteterrdquo

(WLVM sect1) Assim a compreensatildeo do intelecto como instrumento possibilita a

compreensatildeo da verdade como algo relacionado agrave sobrevivecircncia humana

O modo de operaccedilatildeo do intelecto que estaria relacionado ao condicionamento de

um nuacutemero ilimitado de objetos a uma quantidade limitada de conceitos torna possiacutevel ao

autor do ensaio sustentar uma relaccedilatildeo estrutural entre a verdade e o falseamento da

realidade Se a verdade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto entatildeo a ela estaria

relacionada natildeo uma descriccedilatildeo mais adequada da realidade mas o falseamento dessa

realidade mais proveitoso para a espeacutecie humana A constante suposiccedilatildeo nietzschiana de

nossa dependecircncia do erro que encontraremos em diversos textos do filoacutesofo em todas as

termo em uso sugere uma progressatildeo de sua reflexatildeo e um afastamento da filosofia de Schopenhauer O usodo termo ldquointelectordquo se adequaria melhor a descriccedilatildeo da atuaccedilatildeo da razatildeo em consonacircncia com a teoria doconhecimento em Schopenhauer na eacutepoca em que ele escreve o ensaio enquanto que o uso de consciecircnciasucinta a denuacutencia de um problema que se alastraria em meio a intelectualidade da Europa a eacutepoca de A GaiaCiecircncia o tornar-se consciente mais racional cada vez mais ldquolinguiacutesticordquo em conclusatildeo cada vez menosverdadeiro45 Aparentemente Nietzsche toma essa analogia entre os chifres e a razatildeo de Schopenhauer Assim em seuensaio sobre verdade e mentira nos diz ldquoComo um meio para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo o intelectodesenrola suas principais forccedilas na dissimulaccedilatildeo pois esta constitui o meio pelo qual os indiviacuteduos maisfracos menos vigorosos conservam-se como aqueles aos quais eacute denegado empreender uma luta pelaexistecircncia com chifres e presas afiadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 27) O que eacute certo eacute que esta noccedilatildeo do intelectocoincide com a hipoacutetese de Schopenhauer de que a razatildeo eacute um instrumento para a sobrevivecircncia humanasendo um testemunho indiscutiacutevel da influecircncia de Schopenhauer na teoria perspectivista de Nietzsche Noentanto cumpre observar que o fato de Nietzsche relacionar o uso da consciecircncia a um certoenfraquecimento da espeacutecie humana assim como a consideraccedilatildeo com fortes traccedilos evolucionistas queencontramos em sua reflexatildeo satildeo indiacutecios de uma apropriaccedilatildeo da teoria schopenhaueriana que natildeo se reduzsimplesmente as consideraccedilotildees do autor de O Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo

73

fases de sua produccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada desta compreensatildeo fundamental

Acompanhemos o autor em sua descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo da linguagem

Diante da pluralidade estrutural da realidade a linguagem eacute criada pelo intelecto

mediante a compreensatildeo de muitos objetos em uma mesma categoria sem que com isso

seja respeitada nenhuma lei estrutural A uacutenica lei que parece guiar esta compreensatildeo seria

a forma especiacutefica de vida humana Nesse sentido a funccedilatildeo primordial do intelecto estaria

relacionada ao estabelecimento de metaacuteforas para os objetos com os quais nos deparamos

em nosso meio Por este motivo o autor do ensaio considera o intelecto o autor das mais

sublimes ilusotildees desde que seria ele o responsaacutevel pela constituiccedilatildeo das metaacuteforas que se

tornam em conceitos

Afastada a hipoacutetese de que a funccedilatildeo do intelecto estivesse relacionada ao

desvelamento do real o autor do ensaio se volta para sua real funccedilatildeo a potencializaccedilatildeo da

sobrevivecircncia humana Para Nietzsche dois seriam os expedientes empregados pelo

intelecto para alcanccedilar uma maior permanecircncia do mais fraco dos animais na existecircncia a

criaccedilatildeo da linguagem e a autojustificaccedilatildeo do intelecto Esta autojustificaccedilatildeo se daria no

sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de seu papel e de seu alcance Atraveacutes desta

autojustificaccedilatildeo do intelecto A dignidade tributada ao intelecto pela tradiccedilatildeo seria a mais

poderosa ilusatildeo de que o proacuteprio intelecto eacute capaz Pois seria justamente esta ilusatildeo que lhe

conferiria uma nobreza tatildeo desmensurada quando comparada agrave sua real importacircncia A

importacircncia dessa supervalorizaccedilatildeo do intelecto estaacute relacionada no pensamento

nietzschiano com sua criacutetica ao racionalismo da tradiccedilatildeo Assim dada a importacircncia de se

submeter o intelecto a uma avaliaccedilatildeo criacutetica agrave luz de suas reais funccedilatildeo e origem Nietzsche

se volta com frequecircncia em seu ensaio contra esta supervalorizaccedilatildeo do intelecto Jaacute nos

primeiros paraacutegrafos esta arrogacircncia do intelecto eacute abordada por meio da faacutebula do

surgimento do intelecto Do mesmo modo em uma passagem bastante conhecida do

ensaio Nietzsche se voltaraacute com irocircnica admiraccedilatildeo e espanto contra as capacidades do

intelecto Assim o autor conclui

Eacute curioso pensar que isso seja levado a efeito pelo intelecto precisamenteele que foi outorgado apenas como instrumento auxiliar aos maisinfelizes fraacutegeis e evanescentes dos seres para conservaacute-los um minutona existecircncia da qual teriam todos os motivos para fugir tatildeo rapidamentequanto o filho de Lessing (WLVM sectI paacuteg 26)

74

A autojustificaccedilatildeo do intelecto seria assim a grande ilusatildeo que subjaz a todas as

outras ilusotildees criadas pelo proacuteprio intelecto Pois esta seria uma ilusatildeo fundamental que lhe

garante sua veracidade por meio da qual se disfarccedila sua real aplicaccedilatildeo Por fim a proacutepria

crenccedila que a tradiccedilatildeo depositou na capacidade do intelecto em revelar a verdade seria

ainda uma consequecircncia deste modo de proceder do intelecto em sua avaliaccedilatildeo de si

mesmo

Mas por que o homem se deixa enganar pela ilusatildeo do intelecto em sua

autojustificaccedilatildeo Isto se daacute no entender de Nietzsche porque o valor do homem teria se

associado no decorrer da formaccedilatildeo da sociedade ao proacuteprio valor do intelecto Desta

forma o homem compartilharia com o intelecto a ilusoacuteria importacircncia que lhe eacute atribuiacuteda

por meio de avaliaccedilatildeo deste sobre si Por outro lado a confianccedila no intelecto fornece meios

para o homem sustentar uma compreensatildeo limitada acerca do universo circundante e de

seus horrores indescritiacuteveis Tudo isso faz contribui para que o animal humano se sinta natildeo

apenas seguro mas orgulhoso de seu lugar na existecircncia

Aquela audaacutecia ligada ao conhecer e sentir que se acomoda sobre osolhos e sentidos dos homens qual uma neacutevoa ofuscante ilude-os quantoao valor da existecircncia na medida em que traz em si a mais envaidecedoradas apreciaccedilotildees valorativas sobre o proacuteprio conhecer Seu efeito maisuniversal eacute engano ndash todavia os efeitos mais particulares tambeacutem trazemconsigo algo do mesmo caraacuteter (WLVM sectI paacuteg 27)

Ao valor do conhecimento enquanto produto da avaliaccedilatildeo de si mesmo do

intelecto se vincula o valor mesmo que o intelecto se atribui Dessa forma o homem passa

a depender para sua sobrevivecircncia do engano na estimaccedilatildeo do valor do intelecto Em

outros termos se poderia dizer que a proacutepria criaccedilatildeo da perspectiva humana assim como a

atribuiccedilatildeo de valor que lhe conferimos seria obra do intelecto

Por meio desta atuaccedilatildeo do intelecto em que engano e valor surgem como criaccedilotildees

de igual importacircncia o homem consegue natildeo apenas fixar-se na existecircncia mas envolvido

nesse pathos valorando a existecircncia a partir dessa perspectiva atinge o cume de sua

vitalidade em um orgulho que natildeo encontra paralelos em sua real situaccedilatildeo como animal

75

ameaccedilado Assim a perspectiva do intelecto se autoafirma como o proacuteprio valor da

existecircncia humana

Em seus estaacutegios mais primitivos portanto toda a potecircncia criativa inerente ao

intelecto estaria ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia estaria a serviccedilo da vida No

entanto com o uso constante do intelecto este passa a afastar-se dos interesses para a vida

passa a constituir uma realidade apartada da realidade da vida fazendo repousar o valor de

sua perspectiva em valores de negaccedilatildeo da vida No entanto enquanto ainda estaacute vinculado

agrave vida a funccedilatildeo primordial do intelecto humano eacute o engano que ele aplica de maneira

muito especiacutefica no segundo expediente que este utiliza para conservar nossa existecircncia a

linguagem Antes de entrarmos na questatildeo da linguagem poreacutem seria interessante analisar

a relaccedilatildeo entre a verdade e o engano nos primeiros estaacutegios de anaacutelise da atuaccedilatildeo do

intelecto

Inicialmente Nietzsche considera um fato fundamental acerca do homem que este

natildeo admira a verdade acima de todas as coisas Como prova deste fato eacute apresentado o

argumento segundo o qual nada mais agrada o homem comum do que deixar-se enganar

em sonhos todas as noites O Haacutebito de sonhar natildeo tem via de regra nenhum tipo de

repreensatildeo moral nenhum homem procura vencer esse haacutebito por consideraacute-lo imoral

Eles se acham profundamente imersos em ilusotildees e imagens oniacutericas seuolho desliza apenas ao redor da superfiacutecie das coisas e vecirc ldquoformasrdquo suasensaccedilatildeo natildeo leva agrave verdade em nenhum lugar mas antes se satisfaz emreceber estiacutemulos e tocar por assim dizer um teclado sobre o dorso dascoisas Para tanto o homem consente agrave noite e atraveacutes de toda uma vidaser enganado em sonho sem que seu sentimento moral jamais tentasseevitar isso natildeo obstante deve haver homens que pela forccedila de vontadedeixaram de roncar (WLVM sectI paacuteg 27)

O exemplo do sonho sugere que o deixar-se enganar por si natildeo eacute motivo de

reprimenda moral sendo necessaacuterio acrescentar algum outro elemento ao engano para

tornaacute-lo repreensiacutevel Se pensamos na verdade como consequecircncia de um impulso moral

como entender que ldquoagrave noite e durante toda uma vidardquo o homem se permita deixar enganar

em sonhos sem que isto estimule um sentimento moral que talvez nos convencesse da

necessidade de deixar de sonhar Por outro lado para Nietzsche ocorreria no homem

76

quando em sonhos o mesmo que ocorre quando este estaacute desperto ambos nunca estariam

de fato diante de realidades Para ambos apenas se apresentariam ilusotildees embora as

ilusotildees do homem desperto se mostrem mais persistentes

Ou seja para o autor do ensaio mesmo quando desperto o tatear do homem pelo

mundo apenas carrega os traccedilos confusos de dados obtidos por meio de um aparato

sensiacutevel ruacutestico seu tatear confuso natildeo atinge o cerne do mundo atinge apenas como que

apenas as costas das coisas Tanto eacute assim que mesmo acerca de noacutes mesmos nosso objeto

mais proacuteximo noacutes pouco sabemos pois apenas coletamos dados obtusos de um mundo

interior fabulado e os agrupamos toscamente em teorias complicadas E eacute com base nesses

dados obtusos que o homem constroacutei suas verdades sem que no entanto nada nele rejeite

essa conduta Ou seja nenhum princiacutepio moral inato o faz recuar dessas ilusotildees

Em sua confrontaccedilatildeo da tradiccedilatildeo Nietzsche desvela a atuaccedilatildeo figuradora do

intelecto que em vez de nos guiar no caminho reto da verdade como se pressupunha que

este deveria fazer eacute ele mesmo a principal fonte de ilusotildees Para o autor do ensaio seria

por forccedila do intelecto que um estiacutemulo logo se torna uma imagem Posteriormente esta

imagem eacute traduzida em sons na medida em que temos necessidade de comunicar a outros

o que nos representamos Todo este processo que deriva da atuaccedilatildeo de um potencial

criativo humano vinculado ao intelecto revela-se na atividade da produccedilatildeo da linguagem

Nesse processo a simplificaccedilatildeo do mundo circundante em foacutermulas mais ou menos

passiacuteveis de comunicaccedilatildeo constitui os passos fundamentais para o estabelecimento da

linguagem e posteriormente da verdade

Ora se o intelecto atua no sentido de uma cada vez maior dependecircncia de ilusotildees

dado que como Nietzsche natildeo se cansa de repetir a criaccedilatildeo de ilusotildees seria sua funccedilatildeo

primordial entatildeo o que se estaacute atacando aqui no fundo seria a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo Posto que

este tipo de anaacutelise que eacute conduzida por Nietzsche durante todo o ensaio tambeacutem tem

seus efeitos negativos para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade que teria se tornado

dependente de uma compreensatildeo do intelecto como potencializador do conhecimento

verdadeiro

Por meio desta criacutetica o filoacutesofo ataca a concepccedilatildeo metafiacutesica e moral que e a

proacutepria concepccedilatildeo tradicional de verdade fundada na ideia de que a verdade teria como

77

suas origens nobres a racionalidade assim como um sentimento moral inato a esta

vinculado O autor do ensaio substitui esta noccedilatildeo da verdade como reflexo de uma

racionalidade e uma moralidade perfeita pela ideia da nossa necessidade de erro de

enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia

Esta necessidade fundamenta de erro e ilusatildeo cede lugar a uma valorizaccedilatildeo da verdade

apenas na medida em que esta proacutepria verdade tambeacutem eacute tida como uma forma de erro

uma forma de ilusatildeo

Com isso poderiacuteamos concluir que a verdade parece natildeo ser o produto mais direto

de todo este processo criativo do intelecto e que portanto todos os produtos do intelecto

deveriam ser tomados como mentiras No entanto sabe-se que haacute uma distinccedilatildeo

fundamental entre verdade e mentira que natildeo pode ser simplesmente reduzida a uma

forma de distinccedilatildeo entre modos diferentes de ilusatildeo posto que se observa entre os homens

uma preferecircncia pela verdade Assim em meio ao cenaacuterio apresentado ateacute aqui pelo autor

do ensaio se poderia perguntar onde surge o apreccedilo pela verdade entre os homens se estes

evoluem em uma cada vez maior dependecircncia de erros e ilusotildees Para Nietzsche

enquanto o homem faz uso do intelecto apenas de forma ocasional natildeo haacute a necessidade de

um questionamento pela verdade ou pela mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua

nos niacuteveis mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe

em imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido

de tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo Como surge entatildeo a verdade e a mentira O autor do ensaio condiciona o

surgimento destes ao surgimento da comunidade quando o homem por teacutedio e

necessidade procura o conviacutevio com outros homens

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

78

Apenas quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com

outros homens o intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um

mundo que se nos daacute a conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado

pela criaccedilatildeo de estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo

assim como a posterior comunicaccedilatildeo de um mundo que se deve compartilhar satildeo os preacute-

requisitos para a intercompreensatildeo e posterior hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana Ateacute

entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma necessidade moral

inata o coage a dizer a verdade necessidade que apenas surgiraacute a partir da convivecircncia

com outros seres humanos

Eacute preciso estar atento aos movimentos que Nietzsche potildee em jogo neste momento

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e a

razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo No entanto se jaacute eacute espantosa a forccedila do intelecto enquanto fonte

de enganos sobre a natureza real do mundo e seus riscos seraacute apenas na formaccedilatildeo das

condiccedilotildees da coexistecircncia coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se

verdadeiramente poderoso

A linguagem pensada no ensaio como estrateacutegia para que se estabeleccedila entre os

homens um acordo de paz seria a peccedila fundamental para a sobrevivecircncia de um animal

que natildeo teria como responder aos riscos da natureza sozinho O homem torna-se animal

gregaacuterio animal linguiacutestico e animal moral tudo a partir dos poderes de dissimulaccedilatildeo do

intelecto Apenas com base no respeito ao uso acordado dos signos da linguagem torna-se

possiacutevel a coexistecircncia Esta torna-se a claacuteusula fundante do acordo de paz estabelecido

pelos homens da qual decorrem as demais normas A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em

contraposiccedilatildeo aos valores que regem a existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro

modelo no uso adequado das designaccedilotildees acordadas pela sociedade

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva das

79

coisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade se estabelece quando o homem troca a linguagem das imagens mentais

proacuteprias de sua existecircncia individual por imagens compartilhaacuteveis representadas por

signos coletivamente determinados46 Por meio do acordo entre os homens sua decisatildeo

coletiva em aplicar as mesmas metaacuteforas nas mesmas circunstancias satildeo fixados o sentido

do que se toma como verdadeiro assim como a condenaccedilatildeo do que natildeo eacute A adesatildeo ao

acordo implica no abandono do uso individual dos signos linguiacutesticos pois o uso adequado

das designaccedilotildees acordadas eacute o que agora se toma como verdadeiro o descumprimento

dessa regra eacute o que agora se chama mentir A verdade assim torna-se decorrecircncia da

aceitaccedilatildeo e cumprimento dessa primeira claacuteusula

Dessa primeira relaccedilatildeo estrutural da primeira divisatildeo da sociedade em membros

dignos e indignos da sociedade ou seja aqueles que usam corretamente as designaccedilotildees

acordadas e aqueles que deturpam os sentidos das designaccedilotildees surge o primeiro juiacutezo

moral Segundo esse juiacutezo a verdade enquanto favoraacutevel agrave convivecircncia gregaacuteria eacute boa A

mentira por sua vez enquanto prejudicial agrave convivecircncia gregaacuteria passa a ser tomada como

maacute Nesse sentido o mentiroso aquele que ldquoserve-se das designaccedilotildees vaacutelidas as palavras

para fazer o imaginaacuterio surgir como efetivordquo (WLVM sectI paacuteg 30) natildeo eacute tanto

repreendido por ferir alguma sensibilidade moral mas por comprometer o acordo de paz

fundamental estabelecido

Atraveacutes dessa leitura Nietzsche ataca frontalmente a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo O filoacutesofo

46 Para Constacircncio a transposiccedilatildeo do terrenos dos signos para o terreno das palavras como um primeiroestaacutegio para a criaccedilatildeo dos conceitos representaria ainda um primeiro estaacutegio para o surgimento da razatildeoem sentido tradicional ldquoUm signo representa ou se coloca como outra coisa embora natildeo como uma coacutepia deoutra coisa ndash e menos que tudo como uma coacutepia adequada disto ndash mas antes de tudo como umarepresentaccedilatildeo simplificada conectada abreviada disto Esta representaccedilatildeo abreviada funciona como um tipode ferramenta fixa que nos permite rapidamente nos referirmos a ou designar aquilo para o qual o simbolorepresenta (zu be-zeichen) Assim ao falar em palavras em termos de lsquosignosrsquo Nietzsche escreve que lsquoahistoacuteria da linguagem eacute a a histoacuteria de um processo de abreviaccedilatildeorsquo (JGBABM IV sect268) Mais importantedo que isso Nietzsche acredita que os conceitos emergem dos signos e que aquilo que chamamos de lsquorazatildeorsquo(por exemplo aquilo que Schopenhauer chama de lsquorazatildeorsquo) eacute essencialmente nossa habilidade de desenvolverpensamentos abstratos com base em signos e conceitos Como escreve explicitamente Nietzsche em umanota poacutestuma de 1884-1885 lsquoprimeiramente signos (Zeichen) entatildeo conceitos (Begriffe) finalmente razatildeo(Vernunft) no sentido convencional (NL 1884-1885 KSA 11 30[10]rdquo (CONSTAcircNCIO 2012 Paacuteg 201)

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ataca do mesmo modo a concepccedilatildeo que nos foi imposta pela tradiccedilatildeo de que a verdade

deriva de um sentimento moral inato Em seu lugar o autor do ensaio pressupotildee a nossa

necessidade de erro de enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa

estrateacutegia de sobrevivecircncia que apenas atraveacutes da pressatildeo de outras necessidades mais

prementes se curva diante de uma necessidade moral posteriormente constituiacuteda

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e

a razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo Mas a partir da consideraccedilatildeo nietzschiana do conhecimento

pode-se identificar ainda por traacutes disso a atuaccedilatildeo do intelecto que molda o mundo como

percebemos dentro de padrotildees que podem nos ser conhecidos e uacuteteis Tudo isso dito fica

faacutecil ver que estas natildeo satildeo nem de perto as condiccedilotildees mais favoraacuteveis para o surgimento

da verdade tal como a tradiccedilatildeo entende este conceito Com isso poderiacuteamos concluir que a

verdade parece natildeo ser o produto mais direto de todo este processo criativo do intelecto e

que portanto todos os produtos do intelecto deveriam ser tomados como mentiras

Poreacutem o autor do ensaio nos diz que ateacute aqui ainda natildeo estamos diante de um

questionamento acerca da mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua nos niacuteveis

mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe em

imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido de

tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

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Ateacute entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma

necessidade moral inata o coage a dizer a verdade eacute apenas a partir da convivecircncia com

outros seres humanos que surgiria a obrigaccedilatildeo de se dizer a verdade No entanto se dessa

perspectiva o intelecto eacute necessaacuterio agrave sobrevivecircncia enquanto fonte de enganos sobre a

natureza real do mundo e seus riscos eacute na formaccedilatildeo das condiccedilotildees da coexistecircncia

coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se verdadeiramente poderoso Pois

quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com outros homens o

intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um mundo que se nos daacute a

conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado pela criaccedilatildeo de

estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo e posterior

comunicaccedilatildeo de um mundo satildeo os preacute-requisitos para a intercompreensatildeo e posterior

hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana

Assim pela simplificaccedilatildeo do real e possibilitaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo a linguagem

desempenha entre os homens o papel de um acordo de paz no sentido em que faz com que

estes possam entrar em acordo Como claacuteusula desse acordo por meio da linguagem eacute

fixado o sentido do que se toma como verdadeiro atraveacutes do qual a coexistecircncia se torna

possiacutevel A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em contraposiccedilatildeo aos valores que regem a

existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro modelo no uso adequado das designaccedilotildees

acordadas pela sociedade A verdade torna-se decorrecircncia da aceitaccedilatildeo e cumprimento

dessa primeira claacuteusula

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva dascoisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade surge assim pela primeira vez quando satildeo criadas as leis da linguagem

Em contraposiccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo anterior o homem que vive coletivamente em rebanho

pode dizer a verdade Pois agora ele pode designar de acordo com uma norma

coletivamente instituiacuteda o que natildeo lhe era dado fazer quando em sua existecircncia individual

Do mesmo modo poreacutem agora ele tambeacutem pode mentir quando rompe o acordo acerca

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dos usos permitidos dos termos fixados na tentativa de tornar real ou fazer parecer real o

que natildeo eacute Da reflexatildeo acerca das leis da linguagem acordada coletivamente surge a

compreensatildeo de que a mentira apenas conduz agrave consequecircncias negativas em uma

convivecircncia gregaacuteria e natildeo universalmente Em outro sentido quando se deixa enganar em

sonhos o homem natildeo mente propriamente Pois nesse estado preacute-linguiacutestico ele apenas

dissimula quando se deixa enganar nos sonhos O homem que se deixa enganar em sonhos

natildeo mente porque natildeo age em natildeo-conformidade com leis da linguagem embora seja

enganado pela atividade criativa proacutepria de sua constituiccedilatildeo mais iacutentima

O ensaio conduz a uma reavaliaccedilatildeo das origens da verdade que tornam nula sua

dignidade fundamental A verdade natildeo seria algo de primordial posto que antes da verdade

jaacute haviam as ilusotildees uacuteteis agrave sobrevivecircncia Nesse sentido as ilusotildees pertencem a uma

existecircncia humana mais primitiva preacute-gregaacuteria da qual natildeo nos desvinculamos Pelo

contraacuterio posto que nos tornamos cada vez mais gregaacuterios mais linguiacutesticos nos

tornamos tambeacutem cada vez mais dependentes de ilusotildees e de enganos A vida ateacute onde

falamos em vida humana das condiccedilotildees necessaacuterias para a sobrevivecircncia e fortalecimento

do gecircnero humano depende fundamentalmente de ilusatildeo Ou seja as ilusotildees tecircm um valor

fundamental em relaccedilatildeo agrave vida natildeo por serem mais verdadeiras do que as ilusotildees da

verdade mas por serem mais fundamentais

No prosseguimento do ensaio Nietzsche especula acerca do valor das primeiras

intuiccedilotildees que logo satildeo convertidas pelo intelecto em metaacuteforas Para o autor estas

primeiras intuiccedilotildees teria um valor superior ao valor das metaacuteforas por conta de serem

condiccedilotildees de fortalecimento do tipo mais individual de vida Estas metaacuteforas

fundamentais no entanto satildeo substituiacutedas pelos conceitos por meio do uso da linguagem

O que conduz agrave criaccedilatildeo da ciecircncia como empreendimento comprometido com as falsas

criaccedilotildees do intelecto

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade

Ao considerar o valor da verdade como sendo uma decorrecircncia de seu valor para a

sobrevivecircncia o Ensaio sobre Verdade e Mentira pode ser visto em grande parte como o

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palco para o confronto entre uma explicaccedilatildeo essencialista e uma apresentaccedilatildeo cientiacutefica da

verdade Assim na apresentaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca do surgimento da linguagem

Nietzsche apoia-se fortemente em explicaccedilotildees oriundas das ciecircncias bioloacutegicas as quais

geralmente apresenta como contraposiccedilotildees agrave crenccedila tradicional que filia as palavras agraves

entidades ideais exteriores agrave existecircncia fisioloacutegica humana

Assim em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche caracteriza o desejo

sincero pela verdade como sendo o produto de um processo de internalizaccedilatildeo dos usos da

linguagem Nessa leitura a verdade ela mesma tal como a tradiccedilatildeo a representa natildeo seria

desejaacutevel ao homem mais do que pelo seu valor como conservador da sociabilidade

motivo pelo qual o autor do ensaio contrasta a ideia de uma verdade verdadeiramente

desinteressada com a utilidade bioloacutegica da verdade Aqui o conhecimento puro eacute tomado

como algo estranho agrave investigaccedilatildeo da verdade

Num sentido semelhantemente limitado o homem tambeacutem quer apenas averdade Ele quer as consequecircncias agradaacuteveis da verdade queconservam a vida frente ao puro conhecimento sem consequecircncias ele eacuteindiferente frente agraves verdades possivelmente prejudiciais e destruidorasele se indispotildee com hostilidade inclusive (WLVM sectI paacuteg 30)

Natildeo eacute a verdade logo aquilo que nos atraiacute mas seu poder de conservar a paz entre

os homens Mas quais seriam as leis da verdade correlativas as leis da linguagem Sabe-

se que estas leis satildeo produto de uma existecircncia coletiva satildeo as bases do acordo que faz

cessar a guerra de todos contra todos tornando possiacutevel a coexistecircncia paciacutefica Nesse

sentido as leis da verdade difeririam fundamentalmente daquilo que a tradiccedilatildeo pensa delas

Na medida em que esta parece pensar as leis da verdade em conformidade com a loacutegica

como instacircncia exterior ao terreno das necessidades humanas segundo a qual toda forma

de engano eacute afastada

Na acepccedilatildeo tradicional os filoacutesofos entendem o engano como a condiccedilatildeo

perniciosa que deteriora a verdade Nada mais longe do entender do autor do ensaio que

entende que as leis da verdade natildeo protegem a verdade mas sim o viacutenculo social que

propicia a coexistecircncia paciacutefica Por isso ele nos diz ldquoNisso os homens natildeo evitam tanto

ser ludibriados quanto lesados pelo engano Mesmo nesse niacutevel o que eles odeiam

84

fundamentalmente natildeo eacute o engano mas as consequecircncias ruins hostis de certos gecircneros

de enganosrdquo (WLVM sect1 paacuteg 29-30) A concepccedilatildeo nietzschiana da utilidade da verdade

se opotildee aqui a uma tradiccedilatildeo que entende que o homem seria guiado por um impulso

honesto para a verdade

Para o autor esta imagem do impulso honesto para a verdade se fixou na cultura

apoacutes seacuteculos de uso das leis da linguagem que tornaram sem forma os preceitos mais

ruacutesticos dessas leis como que tornando fugidio o sentido por traacutes da rejeiccedilatildeo quase que

instintiva que o homem moderno sente pela mentira No entanto em sua investigaccedilatildeo

extramoral da verdade Nietzsche conclui que mesmo em um niacutevel subconsciente natildeo seria

tanto a verdade que almejamos mas as vantagens para a convivecircncia paciacutefica que se

originam do uso da verdade convencionada No mesmo sentido nossa repulsa pela

mentira natildeo eacute mais do que o produto de um longo processo de internalizaccedilatildeo do terror

pelas consequecircncias da mentira

Motivo pelo qual o autor do ensaio nos diz que somos completamente indiferentes

ldquofrente ao puro conhecimento sem consequecircnciasrdquo Pois um tal tipo de conhecimento natildeo

implica em vantagem ou desvantagem para nossa sobrevivecircncia jaacute que natildeo implica em

conflito aberto com as normas da coletividade Diante de uma verdade prejudicial entatildeo o

homem se encolhe como faria diante de um engano Por meio dessas observaccedilotildees o autor

pretende demonstrar que eacute a utilidade para a sociabilidade e como esta eacute condiccedilatildeo

necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo agrave sobrevivecircncia que condiciona o pathos do conhecimento e

natildeo sua verdade No mais a linguagem enquanto produto dessa relaccedilatildeo entre o

entendimento humano e nossa necessidade de sobrevivecircncia seria apenas mais um tipo de

ilusatildeo

Como produto do intelecto a linguagem se constitui como um mecanismo de

simplificaccedilatildeo do real Nesse sentido as relaccedilotildees da linguagem natildeo podem refletir de

maneira exata o mundo que simplifica As relaccedilotildees da linguagem que a princiacutepio tem por

objetivo apenas a sociabilidade natildeo traduzem o real de forma exata O que o autor do

Ensaio expressa na forma do questionamento ldquoas designaccedilotildees e as coisas se recobremrdquo

(WLVM sect1 paacuteg 29-30) que recebe imediatamente uma resposta negativa e uma seacuterie de

contraexemplos

85

Nessa leitura criacutetica da formaccedilatildeo da linguagem o autor conclui que em primeiro

lugar seria um forte contraexemplo agrave ideia de que a linguagem espelha o real o fato de

que quando analisada pormenorizadamente toda linguagem apresenta diversas

arbitrariedades em sua constituiccedilatildeo Outro argumento marcante seria o fato objetivo da

existecircncia de diversas liacutenguas Assim o autor procura demonstrar que natildeo atingimos a

verdade por meio da linguagem ateacute porque este natildeo eacute seu objetivo sua razatildeo de existir

Nesse sentido as coisas e nossas designaccedilotildees natildeo satildeo intercambiaacuteveis mais do que por

termos assim convencionado e mais tarde esquecido que assim o convencionamos

passando a acreditar que assim o seja de fato

Apenas por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a imaginarque deteacutem uma verdade no grau ora mencionado Se ele natildeo esperacontentar-se com a verdade sob a forma da tautologia isto eacute comconchas vazias entatildeo iraacute permutar eternamente ilusotildees por verdades Oque eacute uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como umacausa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificadado princiacutepio de razatildeo Como poderiacuteamos caso tatildeo somente a verdadefosse decisiva na gecircnese da linguagem caso apenas o ponto de vista dacerteza fosse algo decisoacuterio nas designaccedilotildees como poderiacuteamos noacutes natildeoobstante dizer a pedra eacute dura como se esse ldquodurardquo ainda nos fosseconhecido de alguma outra maneira e natildeo soacute como um estiacutemulototalmente subjetivo (WLVM sectI paacuteg 29-30)

Na medida em que a dureza de uma pedra nos aparece apenas como efeito de uma

causa desconhecida sendo que aqui mesmo a aplicaccedilatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito jaacute eacute

uma abstraccedilatildeo e que essa dureza apenas diz respeito a noacutes jamais seria possiacutevel sustentar a

verdade da simples afirmaccedilatildeo ldquoa pedra eacute durardquo com base nos princiacutepios inerentes agrave verdade

de acordo com a tradiccedilatildeo Isto se deveria ao fato de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

parte de uma consideraccedilatildeo do ldquoponto de vista da certezardquo como algo ldquodecisoacuterio nas

designaccedilotildeesrdquo (WLVM sectI paacuteg 29-30) Por outro lado quando proferimos este tipo de

afirmaccedilatildeo apenas nos utilizamos das designaccedilotildees acordadas no sentido de facilitar a

comunicaccedilatildeo de sensaccedilotildees totalmente subjetivas

Nietzsche pensa que sensaccedilotildees como a dureza de uma pedra variam

necessariamente de indiviacuteduo para indiviacuteduo E nem o fato de podermos alcanccedilar uma

designaccedilatildeo coletiva para transmitir essa sensaccedilatildeo individual muda o fato fundamental da

individualidade da sensaccedilatildeo Portanto as designaccedilotildees que se atinge por meio do

86

procedimento do intelecto ou seja por meio da simplificaccedilatildeo da realidade pouco tem que

ver com certezas Como se poderia falar de certezas quando se sabe que diante da

absoluta individualidade das sensaccedilotildees natildeo pode haver objetividade possiacutevel47 O que o

intelecto realiza nesse sentido ele apenas o pode realizar por meio de transgressotildees

arbitraacuterias tendo em vista propiciar a comunicaccedilatildeo segundo um processo de simplificaccedilatildeo

arbitraacuterio

Estas transgressotildees arbitraacuterias que satildeo amplamente empregadas na criaccedilatildeo da

linguagem atingem seu ponto maacuteximo de abstraccedilatildeo quando a proacutepria ciecircncia passa a

apoiar-se no uso convencionado dessas transgressotildees como validaccedilatildeo para aleacutem de sua

adequaccedilatildeo com quaisquer coisas que sejam seu objeto Por outro lado quando Nietzsche

considera que ldquoA reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como uma causa fora de noacutes jaacute eacute o

resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacuteg

29-30) somos levados a refletir acerca do que foi dito no capiacutetulo anterior acerca do

princiacutepio de razatildeo Ou seja tal como em suas notas para Zur Teleologie Nietzsche aqui

reflete criticamente acerca da impropriedade em se inferir a existecircncia de algo para aleacutem de

nossa esfera de conhecimento

Esta preocupaccedilatildeo eacute ainda o reflexo de uma importante questatildeo da filosofia criacutetica o

problema em torno dos limites de nosso conhecimento Este mesmo problema jaacute havia sido

discutido por Nietzsche em Zur Schopenhauer como o problema das fronteiras da

individuaccedilatildeo segundo a terminologia schopenhaueriana A conclusatildeo apresentada no

ensaio eacute coerente com o tratamento apresentado anteriormente pelo autor

Para o autor do ensaio o estiacutemulo nervoso eacute a uacutenica coisa que pode ser deduzida

com base na fisiologia de nossa constituiccedilatildeo nervosa como causa da sensaccedilatildeo Isto porque

natildeo se poderia conhecer qualquer coisa fora da esfera de nossas sensaccedilotildees que estariam

como que na regiatildeo do em si kantiano Nesse sentido o filoacutesofo parece fazer coincidir os

limites de nossa sensibilidade e os limites de nosso conhecimento em estreita similaridade

com a posiccedilatildeo kantiana que como se sabe determinava os limites do conhecimento aos

limites da experiecircncia possiacutevel Assim a determinaccedilatildeo dos limites do conhecimento em

uma leitura semifilosoacutefica e semicientiacutefica assim como este objetivo se apresentava para o

47 No capiacutetulo deste trabalho acerca do perspectivismo nietzschiano deveremos voltar a este ponto com baseno conhecido aforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral

87

autor do das notas para Zur Teleologie parece permanecer um objetivo para o autor do

ensaio sobre verdade e mentira

A suposiccedilatildeo da existecircncia de uma entidade da qual natildeo temos direito de supor nada

Em outras palavras a suposiccedilatildeo de algo aleacutem dos estiacutemulos nervosos de algum objeto que

propicia este estiacutemulo jaacute estaria fora das consideraccedilotildees do autor do ensaio Para aleacutem

destes limites pensa o autor do ensaio qualquer afirmaccedilatildeo eacute uma temeraacuteria aplicaccedilatildeo

injustificada do princiacutepio de razatildeo suficiente De modo geral isto conduz a conclusatildeo

epistemoloacutegica de que natildeo se poderia fundamentar a veracidade de nossa afirmaccedilatildeo em

algo que se potildee para aleacutem dos estiacutemulos nervosos uacuteltima coisa que ainda se pode

considerar como causa das sensaccedilotildees

Qualquer tentativa de transpor estes limites recebe aqui o mesmo veto que o autor

das notas preparatoacuterias para Zur Teleologie atribuiacutea agrave tentativa de se estabelecer a

existecircncia de uma finalidade natural48 Com isso Nietzsche estabelece uma duacutevida essencial

acerca da origem dos estiacutemulos nervosos Duacutevida que natildeo poderia ser sanada por nenhum

tipo de procedimento cientiacutefico ou filosoacutefico posto que seu esclarecimento necessitaria de

dados externos agrave esfera de nossa sensibilidade Destas conclusotildees se origina um forte

argumento para a fundamentaccedilatildeo da opiniatildeo do autor de que na criaccedilatildeo das designaccedilotildees

nunca estariacuteamos tratando com certezas

A hipoacutetese de uma realidade objetiva por traacutes da criaccedilatildeo da linguagem recebe ainda

uma criacutetica mais forte que diz respeito aos diferentes idiomas ldquoDispostas lado a lado as

diferentes liacutenguas mostram que nas palavras o que conta nunca eacute a verdade jamais uma

expressatildeo adequada pois do contraacuterio natildeo haveriam tantas liacutenguasrdquo (WLVM sectI paacuteg

31) Ou seja para o autor do ensaio se a linguagem fosse de fato criada com base em uma

realidade objetiva entatildeo os diferentes idiomas postos lado a lado deveriam demonstrar

mais coincidecircncias do que no geral demonstram Em uacuteltima instacircncia natildeo eacute uma

realidade objetiva o que condiciona a criaccedilatildeo da linguagem mas o uso da linguagem

enquanto meio de comunicaccedilatildeo Sendo assim a criaccedilatildeo das linguagens natildeo diz respeito a

um compromisso com o verdadeiro eacute seu soacute que determina as condiccedilotildees de verdade

48 Conforme a discussatildeo sobre as notas preparatoacuterias na seccedilatildeo 213 desse trabalho

88

A hipoacutetese contraacuteria de que a linguagem seria proveniente de um compromisso

fundamental com a verdade eacute rejeitada com base na compreensatildeo de que se tal hipoacutetese

fosse verdadeira todos os idiomas teriam que se comportar como derivaccedilotildees de uma liacutengua

primordial da qual os diferentes ramos se afastam Algo que o autor do ensaio estaacute longe

de considerar verdadeiro Assim atraveacutes do recurso agrave figura do criador da linguagem

Nietzsche estabelece uma hipoteacutetica origem para a linguagem condizente com sua

suposiccedilatildeo de que esta estaria diretamente ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia Por outro

lado o fato de que Nietzsche nessa consideraccedilatildeo fabulosa da origem da linguagem

sustentar a hipoacutetese de uma falsificaccedilatildeo da natureza na criaccedilatildeo das palavras estaria

diretamente relacionado agrave sua suposiccedilatildeo de que a verdade mesma tal como se pretende

que esta exista fora das relaccedilotildees da linguagem jamais estaria ao alcance deste criador e

nem mesmo lhe seria objeto especial de preocupaccedilatildeo

Esta parte da investigaccedilatildeo nietzschiana eacute singularmente importante Isto porque a

referecircncia nietzschiana agraves coisas em si tal como esta referecircncia frequentemente aparece no

ensaio faz deste texto nietzschiano objeto de constantes insinuaccedilotildees do compromisso do

autor com uma realidade em si Os comentadores que tomam o uso das coisas em si nos

textos nietzschianos de juventude como testemunho de seu compromisso com estas

categorias entendem que a rejeiccedilatildeo nietzschiana da pretensatildeo de verdade da linguagem

repousa sobre a negaccedilatildeo de que esta consiga referir-se a uma realidade objetiva Ou seja

Nietzsche utilizaria as coisas em si para negar que a linguagem possa dizer algo sobre tais

entidades

Do mesmo modo para estes comentadores apenas com base em um recurso a uma

realidade objetiva o autor poderia sustentar sua constante criacutetica dos produtos do intelecto

como falsificaccedilotildees Nesta leitura se os produtos do intelecto satildeo falsificaccedilotildees eacute necessaacuterio

que eles falsifiquem algo Como aqui se trata de uma reflexatildeo acerca da verdade entatildeo

essa falsificaccedilatildeo representaria um fracasso na correspondecircncia entre os produtos do

intelecto e aquilo que o intelecto tenta reproduzir Eacute nesse espiacuterito que Clark afirma em sua

obra sobre Nietzsche e a verdade

A aceitaccedilatildeo de Nietzsche da teoria metafiacutesica da correspondecircncia parecebastante oacutebvia tanto quando ele nega que a linguagem pudesse expressar

89

a verdade porque natildeo se preocupa com a ldquocoisa-em-sirdquo quanto quandoele critica a ldquoverdade antropomoacuterficardquo por natildeo conter ldquonem um uacutenicoponto que seria lsquoverdadeiro em sirsquo ou realmente e universalmente vaacutelidaslsquopara aleacutem de todos os seres humanosrsquordquo em ambos os casos eleclaramente assume que a realidade eacute independente dos seres humanos eque aquilo que falha em corresponde a esta realidade natildeo pode serverdadeiro A questatildeo permanece como se o uso da expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentidokantiano e assim como se ele interpreta-se a verdade como independentede seres humanos no sentido necessaacuterio para tornaacute-lo um realistametafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85)

Ao analisar a filosofia de juventude nietzschiana notadamente seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira Clark submete o pensamento sobre a verdade do autor a uma

interpretaccedilatildeo eminentemente metafiacutesica assegurada pela sua aceitaccedilatildeo do princiacutepio de

correspondecircncia Segundo essa leitura a concepccedilatildeo nietzschiana de que as palavras

representam uma falsificaccedilatildeo da realidade seria dependente da defesa de uma realidade em

si segundo a qual poderia ser negado que as designaccedilotildees e as coisas coincidam Caso em

que a constante referecircncia do filoacutesofo agraves coisas em si como na seguinte passagem ldquoA

lsquocoisa em sirsquo (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequecircncias) tambeacutem

eacute para o criador da linguagem algo totalmente inapreensiacutevel e pelo qual nem de longe

vale a pena esforccedilar-serdquo (WLVM sect1 paacuteg 31) estaria justificada49

No entanto para aleacutem do fato de tratar-se aqui de uma faacutebula da origem da

linguagem o que de si jaacute colocaria em risco a suposiccedilatildeo de uma consideraccedilatildeo seacuteria da

parte de Nietzsche da concepccedilatildeo de coisas em si temos ainda que na medida em que

49 Andreacute Luiacutes Mota Itaparica em seu artigo As objeccedilotildees de Nietzsche ao Conceito de Coisa em Si(kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 307-320) toma como certa a admissatildeo nietzschiana dacategoria de coisa em si em sua filosofia de juventude ldquoA esse respeito natildeo haacute duacutevida de que entre ostemas kantianos discutidos por Nietzsche a questatildeo sobre o estatuto da coisa em si eacute particularmenterelevante para a elaboraccedilatildeo de sua proacutepria filosofia jaacute que ela tem como um dos seus objetivos em suaforma madura a criacutetica agrave noccedilatildeo de uma realidade independente de qualquer perspectiva Por esse motivo acompreensatildeo de Nietzsche desse problema tambeacutem se tornou um dos assuntos mais debatidos e controversosentre seus inteacuterpretes De forma geral e com naturais diferenccedilas de ecircnfase os comentadores tendem aidentificar na filosofia de Nietzsche uma trajetoacuteria que o levaria da admissatildeo de um conceito de coisa em siem sua juventude ateacute uma negaccedilatildeo da coisa em si considerada como uma concepccedilatildeo contraditoacuteria em suafilosofia madura A discordacircncia entre os comentadores surge quando se pergunta se o conceito de coisa emsi que Nietzsche critica eacute exatamente aquilo que Kant entendia por coisa em sirdquo (ITAPARICA 2013 Paacutegs308-309) Claramente Itaparica segue aqui a indicaccedilatildeo de Clark de que A questatildeo permanece como se o usoda expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentido kantiano eassim como se ele interpretasse a verdade como independente de seres humanos no sentido necessaacuterio paratornaacute-lo um realista metafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85) conforme citaccedilatildeoda paacutegina anterior

90

verificamos uma certa continuidade entre este escrito com relaccedilatildeo a textos do mesmo

periacuteodo de produccedilatildeo tais como as jaacute referidas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie e

Zur Schopenhauer nos parece proveitoso nos afastarmos dessa leitura50 Isto porque

consideramos que com base na leitura que o autor do ensaio efetua da filosofia kantiana

nessa eacutepoca uma tal concepccedilatildeo como a da realidade das coisas em si seria insustentaacutevel51

A compreensatildeo do sentido do uso nietzschiano da concepccedilatildeo de coisas em si no

ensaio passa pela anaacutelise dos jaacute referidos textos Nesta leitura a referecircncia criacutetica a esta

concepccedilatildeo sempre se daacute de modo criacutetico e muitas vezes irocircnico Com base em uma

reavaliaccedilatildeo criacutetica das coisas em si presente sobretudo nas primeiras impressotildees criacuteticas

acerca da obra kantiana52 o autor do ensaio na passagem acima mencionada procuraria

indicar que o reino da verdade por princiacutepio estaria fora do alcance e da esfera de

interesses do criador da linguagem Motivo pelo qual em sua exposiccedilatildeo das origens da

linguagem a partir do intelecto esta natildeo teria nada que ver com a verdade tal como a

tradiccedilatildeo a concebe posto que natildeo eacute criada tendo por base o mundo das ldquocoisas em sirdquo53

Aleacutem desses motivos o uso de aspas para indicar esta concepccedilatildeo kantiana pode ser tomado

como uma indicaccedilatildeo da ironia com quecirc o autor toma o conceito de coisas em si na

passagem em questatildeo do mesmo modo como faz inuacutemeras vezes em que o autor se refere

a esta concepccedilatildeo em sua obra madura

50 Na carta de 1866 citada anteriormente em que Nietzsche apresenta a seu amigo Baratildeo von Gersdorff osresultados de suas leituras de A Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange o filoacutesofo jaacute demonstrauma certa compreensatildeo criacutetica da concepccedilatildeo kantiana de coisas em si Na correspondecircncia em questatildeoNietzsche afirma ldquo(hellip) Entatildeo a verdadeira natureza das coisas as coisas em si natildeo apenas nos satildeodesconhecidas mas ateacute mesmo o conceito delas seria nada mais nada menos do que a uacuteltima encarnaccedilatildeo deuma contradiccedilatildeo condicionada por nossa organizaccedilatildeo da qual natildeo sabemos se tem qualquer sentido paranossa experiecircnciardquo (BVN-1866 517 ndash carta a Carl von Gesdorf de fins de agosto de 1886) Por outro ladoem um fragmento dos rascunhos para A Filosofia na eacutepoca Traacutegica dos Gregos Nietzsche escreve de umaforma que evidencia um uso metodoloacutegico das coisas em si ldquo(hellip) Certamente esta unidade uacuteltima dolsquoindeterminadorsquo o choque original de todas as coisas apenas pode ser descrito negativamente pelo homemcomo algo ao qual nenhum predicado pode ser dado fora do existente mundo do tornar-se e para a qualportanto as lsquocoisas em sirsquo kantianas podem ser igualmente aplicadasrdquo (PHG-4 sect4) Acredito que o uso queo autor faz das coisas em si no ensaio em estudo seria tambeacutem uma espeacutecie de uso metodoloacutegico destaconcepccedilatildeo kantiana A traduccedilatildeo dos fragmentos eacute de nossa responsabilidade51 O que parece concordar com as diversas criacuteticas que essa concepccedilatildeo recebe na filosofia nietzschiana dematuridade que inclusive satildeo antecipadas em muitos fragmentos dos primeiros anos de sua reflexatildeo comoas jaacute mencionadas cartas que antecipam a possibilidade de produccedilatildeo de uma tese acerca dos limites doorgacircnico a partir de Kant 52 Com as quais Nietzsche entra em contato atraveacutes de sua leitura de filoacutesofos criacuteticos de Kant notadamenteAlbert Lange e Schopenhauer53 Uma ideia recorrente do ensaio que eacute melhor compreendida a partir da comparaccedilatildeo nietzschiana entre ouso da palavra ldquofolhardquo com a ideia de uma folha fundamental com base na qual todas as folhas seriamconfeccionadas mas como que ldquopor matildeos inaacutebeisrdquo

91

Mais ainda a referecircncia de que tais entidades como coisas em si corresponderiam

ao mundo das verdades sem consequecircncias as mesmas verdades que o autor anteriormente

afirmava serem indiferentes ao homem torna ainda mais visiacutevel o trato irocircnico para com

estas entidades As quais natildeo corresponderiam a um objeto especial da filosofia tal como a

tradiccedilatildeo parece tecirc-las entendido Estas entidades que natildeo possuem relaccedilotildees com outras

entidades nos seriam totalmente indiferentes aleacutem de incompreensiacuteveis Logo o criador

da linguagem se sua motivaccedilatildeo fosse propiciar a sobrevivecircncia natildeo poderia apoiar-se em

um tal terreno das verdades incompreensiacuteveis e inuacuteteis para a comunicaccedilatildeo entre os

homens

Pelo contraacuterio segundo o autor do ensaio ldquoEle designa apenas as relaccedilotildees das

coisas com os homens e para expressaacute-las serve-se da ajuda das mais ousadas metaacuteforasrdquo

(WLVM sectI paacuteg 29-32) Nada aqui traz qualquer relaccedilatildeo com a verdade eterna e

imutaacutevel pois natildeo se trata de uma tentativa de alcanccedilar um reino especial da verdade mas

apenas de tornar comunicaacutevel as relaccedilotildees das coisas enfim o que nos pode ser uacutetil nas

coisas Se o objeto da criaccedilatildeo da linguagem nada tem que ver com a verdade o que dizer

do instrumento as metaacuteforas com as quais satildeo construiacutedas as designaccedilotildees das coisas

Diga-se de passagem natildeo quaisquer metaacuteforas mas ldquoas mais ousadasrdquo como o autor faz

questatildeo de ressaltar

Estas metaacuteforas seriam as mais ousadas porque no entender do autor do ensaio

seriam as mais distantes daquilo que se conveacutem chamar verdade Segundo Nietzsche a

loacutegica da criaccedilatildeo da linguagem sugere a passagem de estiacutemulos nervosos para imagens

mentais que logo seriam traduzidas em sons A transposiccedilatildeo das imagens mentais em sons

por meio do intelecto obedece a necessidade de comunicar uma impressatildeo individual e

natildeo a qualquer tipo de correspondecircncia De fato em todo esse processo a coisa mesma natildeo

entra em questatildeo O autor afirma que natildeo se pode tomar sua existecircncia como causa das

sensaccedilotildees Do mesmo modo posto que a criaccedilatildeo das palavras eacute determinada por uma

necessidade de comunicar e que nesta criaccedilatildeo o intelecto opera com base nas mais

ousadas transposiccedilotildees natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo causal entre a coisa e a palavra que a

nomeia Menos ainda uma relaccedilatildeo de correspondecircncia Assim nos diz Nietzsche ldquoO que eacute

uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em sons Mas deduzir do estiacutemulo

nervoso uma causa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do

92

princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacutegs 30-31) Portanto a deduccedilatildeo da existecircncia de algo

como coisas em si para aleacutem do estiacutemulo nervoso que daacute margem agrave criaccedilatildeo das palavras

seria ir aleacutem do que permite o princiacutepio de razatildeo do mesmo modo que seria um erro

considerar-se coisas em si como causas dos fenocircmenos Em ambos os casos estariacuteamos

diante de um uso indevido do princiacutepio de razatildeo ao supormos uma causa onde nada nos

possibilita uma tal suposiccedilatildeo

Portanto na criaccedilatildeo das palavras em cada conversatildeo em cada metaacutefora ocorre a

transposiccedilatildeo para um terreno novo totalmente adverso do ponto de partida como nos diz

Nietzsche ldquoDe antematildeo um estiacutemulo nervoso transposto em uma imagem Primeira

metaacutefora A imagem por seu turno remodelada num som Segunda metaacutefora E a cada

vez um completo sobressalto de esferas em direccedilatildeo a uma outra totalmente diferente e

novardquo (WLVM sectI paacuteg 32) Com isso a proacutepria pretensatildeo de dizer a verdade conforme

uma concepccedilatildeo de verdade que toma como princiacutepio a relaccedilatildeo entre as coisas e as palavras

passa a ser analisada como um desatino porque desconsideraria todo o processo indicado

pelo autor

Notaacutevel que em sua explicaccedilatildeo da origem da linguagem o autor fundamente-se

amplamente em teorias das ciecircncias naturais como fica claro em sua reduccedilatildeo do mundo a

meros estiacutemulos nervosos Do mesmo modo seu uso dos experimentos de Chladni54 acerca

54 Nietzsche demonstra em seus escritos poacutestumos ter se interessado enormemente pelas experiecircncias deChladini Assim em uma nota poacutestuma de 1872 o filoacutesofo afirma ldquoSondern die feinsten Ausstrahlungen vonNerventhaumltigkeit auf einer Flaumlche gesehn sie verhalten sich wie die Chladnirsquoschen Klangfiguren zu demKlang selbst so diese Bilder zu der darunter sich bewegenden Nerventhaumltigkeit Das allerzarteste sichSchwingen und Zittern Der kuumlnstlerische Prozeszlig ist physiologisch absolut bestimmt und nothwendigrdquo(NFFP 1872 19[79]) Assim Nietzsche pensa as reproduccedilotildees visuais da atividade nervosa como umaespeacutecie de reflexo da atividade artiacutestica por traacutes da atividade humana Esta atividade artiacutestica demonstrariatal como as figuras sonoras de Chladini uma perfeita harmonia Esta ideia volta a ser reproduzida em umanota mais curta no fragmento poacutestumo (NFFP 1872 19[140]) Em um outro fragmento daquele periacuteodo ofiloacutesofo reflete sobre a relaccedilatildeo entre as leis da multiplicidade e sua expressatildeo em foacutermulas numeacutericas comouma metaacutefora Neste sentido a reproduccedilatildeo das leis da natureza em expressotildees numeacutericas guardaria a mesmarelaccedilatildeo de similaridade que as figuras de Chladini com o som que as gerou ldquoBesonders die Zahl dieAufloumlsung aller Gesetze in Vielheiten ihr Ausdruck in Zahlenformeln ist eine μεταφορά wie jemand dernicht houmlren kann die Musik und den Ton nach den Chladnischen Klangfiguren beurtheiltrdquo (NFFP 187219[237]) Seraacute exatamente esta ideia que retornaraacute no Ensaio sobre Verdade e Mentira A ideia de que asfiguras de Chladini guardariam a mesma similaridade com os sons que lhe geram que os sons guardariamcom os estiacutemulos nervosos que lhe originam ldquoMan kann sich einen Menschen denken der ganz taub ist undnie eine Empfindung des Tones und der Musik gehabt hat wie dieser etwa die Chladnischen Klangfiguren imSande anstaunt ihre Ursachen im Erzittern der Saite findet und nun darauf schwoumlren wird jetzt muumlsse erwissen was die Menschen den Ton nennen so geht es uns allen mit der Sprache (WLVM sect01) Para umaexcelente explicaccedilatildeo dos experimentos de Chladni e sua relaccedilatildeo com a teoria da linguagem de Nietzscherecomendo a muito clara explicaccedilatildeo do Professor Fernando Barros na nota trecircs na traduccedilatildeo em uso doEnsaio Sobre Verdade e Mentira (WLVM sectI paacutegs 32-33)

93

da acuacutestica indica que ainda entreteacutem estreitos laccedilos com as ciecircncias naturais Assim

como jaacute mencionado temos que considerar que na confecccedilatildeo do ensaio suas leituras

acerca das ciecircncias tal como nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie possibilitam a

Nietzsche um patamar argumentativo para se contrapor agraves correntes idealistas de

investigaccedilatildeo do conhecimento e da verdade

Em complemento ao que foi dito acerca das coisas em si no Ensaio sobre Verdade e

Mentira devemos abordar o uso do termo ldquoterreno das essencialidadesrdquo no referido ensaio

A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade parte da denuacutencia de uma

compreensatildeo errocircnea dos filoacutesofos que tomam a linguagem como algo que eacute criado como

reflexo da verdade objetiva Nessa leitura pelo recurso a uma concepccedilatildeo da criaccedilatildeo da

linguagem como processo de traduccedilatildeo arbitraacuteria de estiacutemulos nervosos em imagens e dai

em sons o autor do ensaio procura refutar qualquer sugestatildeo de uma necessaacuteria relaccedilatildeo

entre a linguagem e uma realidade original da qual esta seria reflexo Assim o autor

defende a suposiccedilatildeo de que toda vez que nos utilizamos a linguagem para nos referirmos agrave

realidade ignoramos completamente estas relaccedilotildees arbitraacuterias das quais a linguagem deve

sua existecircncia

A concepccedilatildeo tradicional da linguagem por outro lado parece fundamentar-se em

uma origem quase maacutegica da linguagem como se ela espelha-se uma relaccedilatildeo de parentesco

entre a inteligecircncia criadora da realidade e nossa inteligecircncia Nesse espelhamento da

realidade ideal da qual as imagens que nosso intelecto nos apresentam seriam algo como

reflexo imperfeito das proacuteprias coisas surgiria a relaccedilatildeo de correspondecircncia pressuposta

em toda afirmaccedilatildeo verdadeira O autor do ensaio no entanto esforccedila-se por destituir de

vaidade esta origem mitoloacutegica da linguagem No lugar de um terreno da objetividade o

autor faz questatildeo de enfatizar que sempre que usamos a linguagem estamos no terreno das

metaacuteforas

Acreditamos saber algo acerca das proacuteprias coisas quando falamos deaacutervores cores neve e flores mas com isso nada possuiacutemos senatildeometaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agravesessencialidades originais Tal como o som sob a forma de figura de areiaassim se destaca o enigmaacutetico ldquoXrdquo da coisa em si uma vez comoestiacutemulo nervoso em seguida como imagem e por fim como som Dequalquer modo o surgimento da linguagem natildeo procede pois

94

logicamente sendo que o inteiro material no qual e com o qual o homemda verdade o pesquisador o filoacutesofo mais tarde trabalha e edifica temsua origem se natildeo em alguma nebulosa cucolacircndia em todo caso natildeo naessecircncia das coisas (WLVM sectI paacuteg 35)

Mais do que o falante comum o homem da verdade eacute enganado aqui por ser o mais

dependente das essencialidades originais para sua atividade As supostas coisas em si que

o proacuteprio Kant pensou apenas como um ldquoXrdquo enigmaacutetico natildeo representariam qualquer

papel na criaccedilatildeo da linguagem Na leitura nietzschiana apresentada no ensaio portanto a

linguagem natildeo procede de forma loacutegica mas seria o resultado de arbitraacuterias transposiccedilotildees

de metaacuteforas Do mesmo modo ela natildeo procede de qualquer essencialidade mas de um

estiacutemulo nervoso em primeira instacircncia e de uma imagem criada a partir desse estiacutemulo

em segunda instacircncia Com isso o autor do ensaio natildeo afirma nada acerca de uma relaccedilatildeo

entre as essencialidades e a linguagem como forma de qualificar uma teoria da verdade

mais correta do que a tradicional mas apenas rejeita a teoria que faz decorrer a linguagem

dessas supostas essencialidades55

A preocupaccedilatildeo fundamental do autor o motivo pelo qual retoma com frequecircncia

sua teoria acerca da linguagem diz respeito a sua preocupaccedilatildeo com um us bastante

especiacutefico da linguagem o uso cientiacutefico Assim seu objetivo final eacute demonstrar que toda

ciecircncia eacute construiacuteda com base em relaccedilotildees pouco explicadas com abstraccedilotildees arbitraacuterias

com palavras de cuja origem natildeo se poderia garantir a veracidade Nesse sentido seu

uacuteltimo alvo seria a constataccedilatildeo de que aquilo com que o homem da verdade trabalha e

edifica aquilo com que o filoacutesofo constroacutei suas belas teorias metafiacutesicas natildeo proveacutem do

reino das ideias mas de uma seacuterie de processos pouco racionais

O conceito por exemplo o material com que segundo o autor do ensaio satildeo

construiacutedas as teorias cientiacuteficas e filosoacuteficas seria ainda um produto deste tipo de relaccedilatildeo

de simplificaccedilatildeo e falsificaccedilatildeo que natildeo se prende a qualquer racionalidade Uma palavra se

55 No fragmento poacutestumo 19 [165] do mesmo periacuteodo da obra em estudo Nietzsche parece refletir acercado caraacuteter das supostas essecircncias das coisas ldquoconhecemos apenas uma realidade ndash a dos pensamentos E seisso fosse a essecircncia das coisas Se memoacuteria e sensaccedilatildeo fossem o material das coisardquo O uso de exclamaccedilotildeese todo o contexto do fragmento parece sugerir que Nietzsche usa o termo essecircncia como origem das coisas oque por sinal tambeacutem poderia ser um sentido utilizado no proacuteprio texto do Ensaio Sugestatildeo que me parecemais provaacutevel do que a ideia de que naquela altura de seu desenvolvimento intelectual o autor aindasuportasse alguma crenccedila em essecircncias em sentido metafiacutesico Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na seletade fragmentos poacutestumos publicados em adendo a traduccedilatildeo em estudo Paacuteg 70

95

torna um conceito no entender de Nietzsche na medida em que seu uso se torna cada vez

mais especializado servindo para designar progressivamente objetos cada vez mais

gerais Em sua leitura contraacuteria agravequela da concepccedilatildeo tradicional acerca da formaccedilatildeo da

linguagem o conceito por meio da solidificaccedilatildeo de uma palavra quando ela perde a

flexibilidade adequada agraves necessidades da comunicaccedilatildeo cotidiana passando a designar um

conjunto de objetos em vez de um objeto individual Desta maneira uma palavra torna-se

um conceito ldquoagrave medida que natildeo deve servir a tiacutetulo de recordaccedilatildeo para a vivecircncia

primordial completamente singular e individualizada agrave qual deve seu surgimentordquo

(WLVM sectI paacuteg 35) Ou seja no processo de criaccedilatildeo dos conceitos um esquecimento do

uso individual da palavra tem efeito convergindo na aplicaccedilatildeo desta palavra em contextos

cada vez mais especializados o que significa um afastamento cada vez maior da realidade

da qual o conceito eacute derivado

Pode se ver assim que na leitura nietzschiana um conceito natildeo designa um

objeto mas um conjunto do qual o objeto eacute um exemplo Deste modo todo conceito seria

essencialmente uma generalizaccedilatildeo Mas o esquecimento desse caraacuteter geneacuterico em que

toda individualidade dos objetos eacute deixada de lado conduz agrave arbitraacuteria igualaccedilatildeo do

individual uma supressatildeo das caracteriacutesticas individuais dos objetos e uma supervaloraccedilatildeo

dos conceitos que passam a assumir o caraacuteter de uma realidade condizente com a realidade

ela mesma

Em contraposiccedilatildeo a essa ideia o autor do ensaio supotildee todas as coisas como sendo

individuais em um niacutevel indescritiacutevel Logo um conceito jamais poderia ser considerado

uma coisa e sua formaccedilatildeo corresponderia a mais um estaacutegio de afastamento da linguagem

daquilo que esta deveria designar Nesse sentido a criaccedilatildeo de conceitos por meio da

destituiccedilatildeo de individualidade dos objetos estaria relacionada a mais uma transposiccedilatildeo

arbitraacuteria Pois quando designamos diversos objetos sob um mesmo termo como quando

utilizamos a palavra folha para designar vaacuterios objetos individuais nos esquecemos de que

algo como ldquoa folhardquo por exemplo natildeo existe O que existem satildeo folhas todas diferentes

umas das outras Mas a transposiccedilatildeo natildeo paacutera aiacute pois na criaccedilatildeo do conceito a atribuiccedilatildeo

de realidade do conceito representa mais um grau de afastamento das verdades individuais

96

Nesse sentido a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma realidade conceitual eacute

comparada agrave ideia de meras criaccedilotildees arbitraacuterias do intelecto que teria seu fundamento nos

produtos mais fundamentais da apreensatildeo dos estiacutemulos nervosos uacutenica realidade agrave qual o

filoacutesofo estaria de acordo em admitir em sua leitura As implicaccedilotildees dos problemas

decorrentes de uma consideraccedilatildeo essencialista dos conceitos eacute apresentada por Nietzsche

traveacutes da consideraccedilatildeo de qualidades como a honestidade que surgiria da desconsideraccedilatildeo

de uma grande gama de eventos individuais os quais satildeo conceituados como uma

qualidade determinante de um indiviacuteduo

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que sechamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildeesindividualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos poromissatildeo do desigual e passamos a designar dessa feita como accedilotildeeshonestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occultacom o nome honestidade (WLVM sectI paacuteg 36)

Assim surgiria o conceito de honestidade como qualidade daquilo que eacute honesto

como nos diz o autor do ensaio O autor do ensaio se vale aqui uma vez mais de uma forte

ironia como veiacuteculo para uma ideia fundamental Dizer que a honestidade eacute a qualidade

daquilo que eacute honesto natildeo diz mais sobre a honestidade do que dizer que o oacutepio faz dormir

por conta de sua virtus dormitiva Nesse exemplo satildeo vaacutelidos os mesmos problemas que

Nietzsche enxerga no caso da criaccedilatildeo de conceitos a partir de objetos Assim o processo de

cunhagem do conceito de honestidade cumpriria os mesmos estaacutegios do processo de

cunhagem do conceito de ldquofolhardquo com a exceccedilatildeo de que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de

algo como a honestidade eacute mais oacutebvia do que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de uma folha

primordial

O autor do ensaio procura por meio deste gecircnero de argumentos contrapor-se agrave

crenccedila arraigada entre os filoacutesofos de que os conceitos seriam derivados de alguma

realidade supra-terrena Em contraposiccedilatildeo a esta ideia o autor entende que a origem dos

conceitos se deveria a uma igualaccedilatildeo do desigual no uso da linguagem A atribuiccedilatildeo de

existecircncia aos conceitos seria o uacuteltimo degrau em uma escala progressiva de esquecimento

de seu uso individual Ou seja apenas por meio de um esquecimento acerca da origem

97

desses conceitos assim como de seu uso individual seria possiacutevel atribuir uma existecircncia

desconexa de seu uso a tais entidades inexistentes De todo modo o que se vecirc no ensaio eacute

uma progressiva destituiccedilatildeo de validade dos fundamentos que suportam a concepccedilatildeo da

existecircncia dos conceitos

Por outro lado se o autor natildeo nega explicitamente a existecircncia objetiva dos

conceitos isto se deveria apenas ao receio de incorrer em uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica

Assim no lugar da rejeiccedilatildeo destes o autor utiliza-se de argumentos criacuteticos baseados nas

limitaccedilotildees da capacidade humana de conhecer como forma de demonstrar que devido a

proacutepria natureza de nossa constituiccedilatildeo estamos impedidos de conhecer algo como

conceitos ou coisas me si

A inobservacircncia do individual e efetivo nos fornece o conceito bemcomo a forma ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas econceitos e portanto tambeacutem quaisquer gecircneros mas tatildeo somente umldquoXrdquo que nos eacute inaccessiacutevel e indefiniacutevel Pois ateacute mesmo nossa oposiccedilatildeoentre o indiviacuteduo e gecircnero eacute antropomoacuterfica e natildeo adveacutem da essecircncia dascoisas ainda que natildeo arrisquemos dizer que ela natildeo lhe corresponde issoseria efetivamente uma asserccedilatildeo dogmaacutetica e como tal tatildeoindemonstraacutevel quanto o seu contraacuterio (WLVM sectI paacuteg 36)

Nada sabemos da essecircncia das coisas nem mesmo se tais essecircncias existem

Apenas uma fuga dos limites da efetividade pode sugerir a existecircncia de tais essecircncias

Dizer que natildeo haacute distinccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros no reino das essecircncias seria fazer

uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica e assim ferir o preceito kantiano de limitaccedilatildeo do conheciacutevel agrave

esfera dos fenocircmenos No entanto tudo poderia se passar de modo que estas se

comportassem exatamente do modo como a tradiccedilatildeo acredita e nesse sentido esta

realidade poderia refletir as relaccedilotildees de gecircnero e indiviacuteduo que Nietzsche procura

qualificar como antropomoacuterficas Pois como mencionado no capiacutetulo anterior Nietzsche

aceita jaacute em Zur Schopenhauer que tal como na citaccedilatildeo do ensaio acima ldquopode haver uma

coisa em sirdquo mas essa possibilidade apenas eacute referida porque o filoacutesofo compreende que

ldquona aacuterea de transcendecircncia tudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute

possiacutevelrdquo (BAW Paacuteg 354-355) A existecircncia de coisas em si nesse sentido seria apenas

possiacutevel

98

Devemos considerar entretanto que tal como o autor argumenta em Zur

Schopenhauer eacute apenas negativa E que essa probabilidade conta praticamente como

desvantagem para a concepccedilatildeo das coisas em si Desta maneira tal como em sua reflexatildeo

acerca da multiplicidade e individualidade em Zur Teleologie aqui tambeacutem o autor

renuacutencia oferecer qualquer posiccedilatildeo determinada acerca do caraacuteter em si da existecircncia por

considerar esta uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Mas aqui como nas notas preparatoacuterias o filoacutesofo

rejeita toda argumentaccedilatildeo que parte da consideraccedilatildeo destas realidades preferindo manter-

se no limite do efetivo e do individual Para tanto apoia-se com frequecircncia nas ciecircncias da

natureza como a se tratar aqui de modelo seguro para sua determinaccedilatildeo do caraacuteter

antropomoacuterfico destas determinaccedilotildees A investigaccedilatildeo da natureza com base em preceitos

cientiacuteficos neste caso a investigaccedilatildeo natural da origem da linguagem e dos conceitos

demonstra que nossa diferenciaccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros eacute uma decorrecircncia de

diversas transposiccedilotildees arbitraacuterias entre metaacuteforas de reinos muito distintos de existecircncia

Por esses motivos procuramos por meio de nossa interpretaccedilatildeo romper com a ideia

de uma defesa nietzschiana do reino das essencialidades como fundamento de suas

afirmaccedilotildees concepccedilatildeo que acreditamos que o autor substitui pela ideia de uma

investigaccedilatildeo natural das origens da linguagem e da verdade Com isso com a

contraposiccedilatildeo nietzschiana agrave progressiva inclusatildeo de conceitos nas realidades cientiacuteficas e

filosoacuteficas o autor efetuaria uma de suas primeiras denuacutencias da progressiva destituiccedilatildeo de

valor da realidade pelas concepccedilotildees racionalistas Em sua leitura na medida em que

passamos a depositar total confianccedila em uma realidade conceitual na medida em que

fazemos depender nossa existecircncia desse gecircnero de criaccedilatildeo arbitraacuteria passamos a rejeitar

uma forma mais original de existecircncia que se fundamentaria no valor de nossas criaccedilotildees

enquanto criaccedilotildees

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor

Todo o progresso alcanccedilado pelo autor do ensaio ateacute aqui serve de preparaccedilatildeo para

a postulaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca da verdade Hipoacutetese a que o autor do ensaio chega

99

atraveacutes de uma investigaccedilatildeo extramoral da verdade e da mentira que culmina em uma

anaacutelise das origens da linguagem A relaccedilatildeo estabelecida pelo autor entre a linguagem e a

verdade possibilita uma anaacutelise do valor da verdade como decorrecircncia das origens mesmas

da linguagem Nesse sentido a partir do momento que Nietzsche conclui que a verdade

surge em consequecircncia do uso da linguagem como uma decorrecircncia das leis das

designaccedilotildees coletivas a concepccedilatildeo da verdade formulada no ensaio natildeo pode ser

desvinculada de sua anaacutelise das origens da linguagem

A que conclusotildees o estudo das origens da linguagem conduz Ora se o autor

percebe que a linguagem seria o produto de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias de

metaacuteforas primeiramente de estiacutemulos nervos em imagens mentais e posteriormente destas

em sons a verdade que eacute compreendida pela tradiccedilatildeo como uma propriedade da

linguagem em relaccedilatildeo a um objeto tambeacutem teria sua validade derivada destas

transposiccedilotildees arbitraacuterias Se a linguagem eacute este conjunto de transposiccedilotildees arbitraacuterias

tambeacutem a verdade acaba por constituir-se como um conjunto de metaacuteforas que devem sua

origem a tais transposiccedilotildees arbitraacuterias

O que eacute pois a verdade Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemiasantropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas queforam realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e queapoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildeesdas quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaramdesgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel eagora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais comomoedas (WLVM sectI paacuteg 37)

Eacute fundamental atentar para o sentido que o autor atribui agraves verdades aqui As

verdades ou seja as afirmaccedilotildees tomadas com verdadeiras dentro das normas linguiacutesticas

convencionadas ainda que preservem todas as exigecircncias que um teoacuterico tradicional queira

prescrever para o que seja verdadeiro carregam consigo os viacutecio da linguagem Nesse

sentido toda verdade afirmada seria sempre o produto de um esquecimento das origens das

palavras Sendo assim a conclusatildeo a que o posicionamento criacutetico nietzschiano chega eacute de

que as verdades seriam o contraacuterio do que se pensou delas ateacute entatildeo Com isso a

concepccedilatildeo tradicional finda destituiacuteda de validade

100

Verdades neste caso satildeo ilusotildees do tipo mais profundo porque nela se ignora seu

efeito ilusoacuterio Assim naquele momento de sua produccedilatildeo Nietzsche toma as verdades

como uma parcela inserida no conjunto maior das ilusotildees das metaacuteforas de cuja origem

metafoacuterica se esquece para bem da comunicaccedilatildeo Com isso tem-se uma caracterizaccedilatildeo

provisoacuteria do sentido da verdade no Ensaio sobre Verdade e Mentira enquanto ilusotildees das

quais comodamente nos esquecemos que satildeo ilusotildees para fins gregaacuterios Sendo assim a

verdade corresponderia a algo como um conjunto de mentiras convencionadas cujo valor

haacute muito tempo deixou de relacionar-se com sua origem

A veracidade diria respeito entatildeo a uma relaccedilatildeo entre designaccedilotildees que por sua

vez satildeo produtos de transposiccedilotildees arbitraacuterias Portanto a relaccedilatildeo de veracidade natildeo

corresponderia a uma relaccedilatildeo de proximidade com um mundo essencial incognosciacutevel mas

representaria a internalizaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo linguiacutestica mediante a pressatildeo da

necessidade Mas como se pode explicar isso Qual o sentido de termos como metaacutefora e

ilusatildeo nessa argumentaccedilatildeo

Para exemplificar diriacuteamos que haacute expressotildees cujo significado usual suplanta sua

origem A existecircncia de expressotildees que perpetuam-se na liacutengua por seu uso e cujo sentido

se sobrepotildee agraves origens de onde obtinha seu sentido a princiacutepio parece ser um fenocircmeno

facilmente observaacutevel em todos os idiomas Assim quando chamamos a liacutengua portuguesa

ldquoa uacuteltima flor do Laacuteciordquo utilizamos uma expressatildeo que poderia significar uma flor literal

nascida no Laacutecio origem poeacutetica da qual a expressatildeo deve sua origem56 Aqui no entanto

tal expressatildeo perde toda ligaccedilatildeo com seu sentido poeacutetico passando a representar o idioma

que eacute comparado a uma flor Nesse sentido esta expressatildeo poderia ser tomada como uma

metaacutefora para a liacutengua portuguesa

No caso nietzschiano no entanto as metaacuteforas tecircm o sentido que lhes eacute atribuiacutedo na

comparaccedilatildeo com o que pretendem significar mas natildeo um sentido independente porque o

que lhes daacute origem eacute algo que natildeo tem sentido propriamente independente do que se quer

comunicar Isto porque o sentido poeacutetico destas expressotildees teria sido a muito tempo

esquecidas As metaacuteforas que fundamentam a concepccedilatildeo de verdade que Nietzsche busca

56 A expressatildeo agora praticamente em desuso pertence ao o soneto ldquoLiacutengua Portuguesardquo do poeta brasileiroOlavo Bilac Neste soneto Olavo Bilac escreve no primeiro verso ldquoUacuteltima flor do Laacutecio inculta e belardquoreferindo-se ao idioma Portuguecircs como a uacuteltima liacutengua derivada do Latim Vulgar idioma falado na regiatildeo doLaacutecio na Itaacutelia principalmente por soldados rasos e comerciantes dai o adjetivo ldquoincultardquo utilizado porOlavo Bilac

101

descrever satildeo metaacuteforas em um sentido muito especial portanto Isto porque usualmente

uma metaacutefora guarda uma relaccedilatildeo de sentido com o que tenta significar aleacutem de um

sentido literal independente o que natildeo ocorre com as metaacuteforas dos estiacutemulos nervosos

que segundo Nietzsche seriam as imagens mentais Do mesmo modo tambeacutem os sons

tomados como metaacuteforas das metaacuteforas que satildeo as imagens mentais natildeo guarda uma

relaccedilatildeo de sentido com elas Por fim os conceitos que seriam metaacuteforas das quais se perde

completamente ateacute a lembranccedila de que deveriam se reportar a algo aparecem como

metaacuteforas muito mais esmaecidas em relaccedilatildeo agraves primeiras metaacuteforas

Agora o que o autor do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sugerir eacute que a

verdade enquanto uso verdadeiro de designaccedilotildees linguiacutesticas guarda exatamente este

mesmo tipo de relaccedilatildeo com suas origens Grosso modo a verdade natildeo seria mais do que a

sobreposiccedilatildeo do uso de expressotildees linguiacutesticas sobre sua origem que eacute sem sentido e

incomunicaacutevel Nietzsche procura assim desvincular o apreccedilo pela verdade de qualquer

origem nobre que lhe tenha sido atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo Ainda assim determinadas a

origem e o significado da verdade faltaria ao autor explicar a tendecircncia natural agrave verdade

ou o impulso agrave verdade que para a tradiccedilatildeo eacute como que uma marca distintiva da

humanidade entre os outros animais

Toda a histoacuteria da origem da verdade apresentada pelo autor sugere apenas a

obrigatoriedade de se falar a verdade como uma obrigaccedilatildeo moral assumida perante a

sociedade na tentativa de evitar as consequecircncias negativas do engano para a

sociabilidade A identificaccedilatildeo da verdade como um tipo de engano consentido em grupo

ou ldquodito moralmente da obrigaccedilatildeo de mentir conforme uma convenccedilatildeo consolidada

mentir em rebanho num estilo a todos obrigatoacuteriordquo (WLVM sect1 paacuteg 37) natildeo afasta a

necessidade de se explicar as origens do pathos da verdade do sentimento moral que a

tradiccedilatildeo associou agrave verdade e que constrange o seu uso

A referecircncia nietzschiana a este pathos ou seja o forte sentimento que estaacute ligado

em noacutes agrave obediecircncia de certas regras na praacutetica discursiva se deveria a um lento processo

de internalizaccedilatildeo destas mesmas regras por forccedila do receio de recair em uma maacute

disposiccedilatildeo por parte da comunidade Nesse sentido por exemplo o fato de nos sentirmos

mal ao mentir e nos sentirmos bem ao falar a verdade estaria relacionado a uma instintiva

recordaccedilatildeo das consequecircncias da mentira para seu praticante Assim a origem desse

102

pathos estaria relacionada natildeo a um desejo inato pela verdade mas a um receio

inconsciente de rejeiccedilatildeo Por outro lado o pathos da verdade poderia ser relacionado ao

sentimento advindo da constataccedilatildeo da falta de apreccedilo pelas consequecircncias da mentira Ou

seja quando confrontado com o lugar legado pela sociedade aos mentirosos ao mesmo

tempo que eacute motivado cada vez mais a fazer uso de tantas abstraccedilotildees quantas se lhe

apresentem o homem cultiva em seu iacutentimo a necessidade de verdade

O homem que vive em rebanho passa entatildeo a ser fortemente incentivado a criar

formas de comunicar todo acesso consciente agraves intuiccedilotildees agraves impressotildees repentinas e

individuais com que se depara Certamente este esforccedilo em comunicar o que eacute individual

representa tambeacutem um progressivo afastamento do que eacute individual na medida em que se

deve esquecer a individualidade das impressotildees na esperanccedila de melhor comunicaacute-las

Assim o homem de rebanho troca estas impressotildees originais por conceitos E pelo uso de

conceitos cada vez mais ldquodesbotados e friosrdquo o homem passa a se distinguir em sua

comunidade como portador de um conjunto cada vez maior de veracidade

O resultado mais imediato desse pathos da verdade seria a constituiccedilatildeo de

hierarquias que posteriormente evoluiriam e viriam a se tornar nosso ordenamento juriacutedico

e social distintivos da existecircncia em rebanho que se contrapotildee ao modo de existir

individual Disso dependeria fundamentalmente o modo humano de existir assim como

nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No entanto na medida em

que esta progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma progressiva falsificaccedilatildeo das

impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva dependecircncia do homem para

com a linguagem

A partir do reforccedilo do costume de se dizer a verdade cumpriria ao homem

enquanto pretende ser um homem da verdade aplicar os conceitos segundo a forma

convencionada tomando cuidado em ldquojamais atentar contra a ordenaccedilatildeo de castas bem

como contra a sequecircncia das classes hierarquicamente organizadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 39)

Nesse sentido a preservaccedilatildeo da verdade significaria tambeacutem preservaccedilatildeo das hierarquias

Em outras palavras na medida em que a vida humana passa progressivamente a girar em

torno da sociabilidade necessariamente o cultivo da linguagem passa a relacionar-se com a

preservaccedilatildeo das cadeias de comando pois a linguagem se relaciona intimamente com as

cadeias de reproduccedilatildeo de valor

103

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana

Segundo a aproximaccedilatildeo do homem a outras espeacutecies de animais que Nietzsche

torna operante em todo o ensaio a razatildeo mesma que goza de alta consideraccedilatildeo por parte da

tradiccedilatildeo racionalista passa a ser entendida como um instrumento fornecido pela natureza

para melhor adaptaccedilatildeo do homem Dela dependeria fundamentalmente o modo humano

de existir assim como nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No

entanto na medida em que a progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma

progressiva falsificaccedilatildeo das impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva

dependecircncia do homem para com a linguagem um tornar-se cada vez mais linguiacutestico

logo cada vez mais consciente Na leitura nietzschiana no entanto isto natildeo faria do

homem um animal superior mas apenas um animal mais dependente de ilusotildees

Com isso a intenccedilatildeo de Nietzsche seria confrontar a secular distinccedilatildeo do homem

como animal racional O autor do ensaio combate a interpretaccedilatildeo segundo a qual o homem

seria um animal superior por conta de sua racionalidade ao afirmar que a distinccedilatildeo entre os

seres humanos e os outros animais consistiria em outras qualidades menos oacutebvias Pois ao

contraacuterio do que imagina a tradiccedilatildeo natildeo eacute uma tendecircncia agrave verdade e ao conhecimento que

distingue o homem dos outros animais mas sua necessidade de ilusotildees de aparecircncias Ao

atacar as bases daquilo que a tradiccedilatildeo toma como traccedilo distintivo do ser humano sua

propensatildeo para a verdade sua racionalidade Nietzsche pretende sujeitar o intelecto a sua

funccedilatildeo como instrumento para a sobrevivecircncia Esta estrateacutegia argumentativa a defesa de

uma interpretaccedilatildeo do intelecto enquanto oacutergatildeo para a linguagem se opotildee a uma estrateacutegia

que o autor do ensaio pretende tornar natildeo operante a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do intelecto

que se confunde com uma explicaccedilatildeo teleoloacutegica

Eacute nesse contexto que surge a imagem da teia de conceitos A cadeia de conceitos

que possibilita a ciecircncia seria o ponto mais elevado da estrateacutegia de sobrevivecircncia descrita

no ensaio A teia conceitual vista nessa leitura enquanto construccedilatildeo humana seria

104

aparentada com a teia da aranha por ser igualmente engenhosa57 De fato a teia conceitual

da ciecircncia aparece na leitura de Nietzsche como um claro exemplo da engenhosidade

arquitetocircnica humana que superaria em engenhosidade e sutileza a teia da aranha na

medida em que eacute tecida em material mais eteacutereo apesar de igualmente flexiacutevel e resistente

Aqui cabe muito bem admirar o homem como um formidaacutevel gecircnio daconstruccedilatildeo capaz de erguer sobre fundamentos instaacuteveis e como quesobre a aacutegua corrente um domo de conceitos infinitamente complicadopor certo a fim de manter-se firmemente em peacute sobre tais fundamentoscumpre ser uma construccedilatildeo como que feita com teias de aranhasuficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas e firme obastante para natildeo ser despedaccedilada pelo sopro do vento Como gecircnio daconstruccedilatildeo o homem eleva-se muito acima da abelha na seguinte medidaesta uacuteltima constroacutei a partir da cera que ela recolhe da natureza ao passoque o primeiro a partir da mateacuteria muito mais delicada dos conceitos queprecisa fabricar a partir de si mesmo Aqui cumpre admiraacute-lo muito masnatildeo somente por causa de seu impulso agrave verdade ao conhecimento purodas coisas (WLVM sectI paacuteg 40)

O significado da metaacutefora nietzschiana da teia relaciona-se natildeo apenas ao fato de

exemplificar uma forma sofisticada de estrateacutegia de sobrevivecircncia mas ao aspecto

definidor da realidade em ambos os casos Ou seja tanto a teia da aranha quanto o palaacutecio

conceitual da ciecircncia humana os quais constituem estrateacutegias de sobrevivecircncia para seus

criadores evoluem junto com a espeacutecie cuja sobrevivecircncia possibilitam Assim do mesmo

modo que a aranha e sua teia evoluem em uma iacutentima relaccedilatildeo a ponto da teia ser para a

aranha seu mundo posto que seu aparato sensorial evoluiu no sentido de uma limitaccedilatildeo de

sua realidade agrave sua teia o mundo de conceitos seria para o homem seu mundo

Nesse sentido a metaacutefora da teia eacute uma representaccedilatildeo poeacutetica do caraacuteter

perspectivo do conhecimento na filosofia nietzschiana Pois a perspectiva humana eacute

formada por aquilo que se lhe apresenta como objeto de conhecimento em uma primeira

acepccedilatildeo mas tambeacutem pela teia conceitual que eacute construiacuteda como modo de apreensatildeo

daquilo que se lhe apresenta ao conhecimento

57 O uso de animais nos escritos nietzschianos eacute sempre muito rico de sentido Em especial esta reflexatildeoacerca das semelhanccedilas entre os mecanismos de sobrevivecircncia do homem e da aranha constitui uma dasprimeiras apariccedilotildees de uma imagem poeacutetica constantemente retomada na filosofia nietzschiana acerca doconhecimento De fato muitas vezes a referecircncia agrave aranha ou a referecircncia a teia conceitual humanaaparecem como indicativos dos momentos na obra nietzschiana em que o autor reflete acerca doconhecimento

105

A genialidade da raccedila humana consistiria assim natildeo na veracidade de seus

construtos teoacutericos mas na capacidade de construir estruturas mais fraacutegeis e ao mesmo

tempo mais duradouras que outras espeacutecies naturais e que lhe possibilitam apreender o

mundo a sua volta Assim sua aparente tendecircncia ao conhecimento e agrave verdade seria

apenas mais uma ilusatildeo Uma ilusatildeo que lhe faz admirar seu construto teoacuterico do mesmo

modo que uma aranha aprende a estimar sua teia Nessas comparaccedilotildees as construccedilotildees

teoacutericas dos seres humanos natildeo aparecem em um grau superior agravequelas dos outros animais

o que confere ao texto a impressatildeo de que aqui o autor estivesse comparando estrateacutegias de

sobrevivecircncia sem desmerecer nenhuma delas

Na leitura nietzschiana portanto a propensatildeo ao conhecimento proacutepria do homem

seu impulso agrave verdade consistiria apenas em uma espeacutecie de truque da razatildeo A busca pela

verdade que tradicionalmente se tomava como a missatildeo sagrada do homem eacute vista pelo

autor do ensaio como um resultado de seu proceder racional Isto se daria porque para

Nietzsche o procurar e encontrar da ldquoverdaderdquo no interior do domiacutenio da razatildeo natildeo

poderia ter outro resultado senatildeo a descoberta de verdades criadas pela proacutepria razatildeo Dado

que a criaccedilatildeo de conceitos pelo homem condiciona o tipo de coisa designada e nada haacute de

especial em encaixar uma coisa em sua designaccedilatildeo conceitual pois o proacuteprio conceito eacute

um esquecimento da designaccedilatildeo original da coisa

Se crio a definiccedilatildeo de mamiacutefero e aiacute entatildeo apoacutes inspecionar um camelodeclaro veja eis um mamiacutefero com isso uma verdade decerto eacute trazida agraveplena luz mas ela possui um valor limitado digo ela eacute antropomoacuterficade fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse ldquoverdadeiroem sirdquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homem Emprinciacutepio o pesquisador dessas verdades procura apenas a metamorfosedo mundo nos homens esforccedila-se por uma compreensatildeo do mundo vistocomo uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das hipoacuteteses granjeiapara si o sentimento de uma assimilaccedilatildeo Agrave semelhanccedila do astroacutelogo queobserva as estrelas a serviccedilo dos homens e em conformidade com suafelicidade e sofrimento assim tambeacutem um tal pesquisador observa omundo inteiro como conectado ao homem como o ressoar infinitamentefragmentado de um som primordial do homem como a coacutepiareduplicada de uma imagem primordial do homem (WLVM sectI paacuteg40-41)

106

Como afirma o autor nada haacute de ldquoverdadeiro em si58rdquo nesse tipo de procedimento

apesar disso parecer desesperador aos filoacutesofos mais antigos Tudo se daacute aqui no terreno

antropomoacuterfico dos conceitos e natildeo no terreno da pesquisa desinteressada da verdade Pois

o pesquisador deixando de lado o caraacuteter metafoacuterico de suas primeiras imagens as quais

lhe servem de objeto atua como se estivesse diante da realidade ela mesma sem se dar

conta que apenas testemunha uma verdade antropomoacuterfica Assim ele atua em erro de

princiacutepio ao fim ldquoeis seu procedimento ter o homem por medida de todas as coisas algo

que ele faz poreacutem partindo do erro de acreditar que teria tais coisas como objetos puros

diante de sirdquo (WLVM sectI paacuteg 41) Estes objetos puros natildeo satildeo colocados diante do

homem mais do que pela proacutepria razatildeo que procura nesses objetos a verdade Isto a razatildeo

faz de maneira inconsciente na medida em que ldquoEle se esquece pois das metaacuteforas

intuitivas originais tais como satildeo metaacuteforas e as toma pelas proacuteprias coisasrdquo (WLVM

sectI paacuteg 41)

O modo pelo qual Nietzsche chega aos conceitos diverge profundamente do modo

como a filosofia metafiacutesica os concebe Se a tradiccedilatildeo concebe os conceitos como uma

pressuposiccedilatildeo necessaacuteria a partir da constataccedilatildeo que a verdade deve ser eterna e imutaacutevel

Nietzsche concebe estas entidades como a imobilizaccedilatildeo dos impulsos originais por meio

de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias que culmina com o esquecimento desta mesma

cadeia A compreensatildeo dos conceitos como esta ldquocalcificaccedilatildeordquo das palavras a

internalizaccedilatildeo de palavras devido seu uso continuado na praacutetica comunicativa culminaria

na compreensatildeo da ciecircncia como construto que tem por seus elementos menores os

conceitos Nesse sentido se os conceitos natildeo teriam relaccedilatildeo com uma forma mais

verdadeira de representar a realidade tambeacutem a ciecircncia natildeo poderia ter esperanccedilas de

representar a realidade de um modo mais verdadeiro

Para o autor do ensaio o conceito seria apenas um produto tardio oriundo de nossa

pouca memoacuteria e deve-se notar em uacuteltima instacircncia produto de nossa sensibilidade

limitada Pois se natildeo percebemos as mudanccedilas constantes na realidade isso se deveria a

uma limitaccedilatildeo fundamental de nossos sentidos que satildeo marcados pela estabilidade como

58 O proacuteprio uso do termo ldquoverdadeiro em sirdquo entre aspas nesse trecho do Ensaio assim como os outrostermos relacionados (efetivo e universalmente vaacutelido) daacute a ideia de que Nietzsche nega que seusantagonistas os adeptos da concepccedilatildeo tradicional de verdade em algum momento tenham atingido seusobjetivos em sua pesquisa filosoacutefica Mas de maneira alguma o uso destes termos torna o autorcomprometido com a crenccedila nesse tipo de conceitos

107

necessidade fundamental Posto que nossos sentidos se desenvolveram em acordo com

nossa necessidade de estabilidade eles nos conferem em associaccedilatildeo com o intelecto a

estabilidade sem a qual natildeo poderiacuteamos sobreviver Assim apenas pela omissatildeo da

realidade em sua natureza mutaacutevel podemos conceber um mundo de estabilidade Por outra

parte somente porque desprezamos a originalidade de cada entidade o que significaria sua

natildeo existecircncia objetiva podemos conceber os conceitos

Nesse sentido os conceitos constituem a perspectiva verdadeira para o homem

capaz de lhe garantir uma existecircncia ateacute certo ponto feliz posto que o colocam para aleacutem

da terriacutevel circunstacircncia de sua existecircncia enquanto espeacutecie ameaccedilada O palaacutecio

conceitual criado pelo intelecto que atua por forccedila da capacidade do intelecto de criar

ilusotildees eacute concebido aqui como uma proteccedilatildeo que manteacutem a autoconsciecircncia segura do

risco de confrontar o desconhecido sob o qual descansa A ideia dos terrores sobre os quais

o homem constitui sua existecircncia natildeo eacute nova na literatura nietzschiana e o autor apenas

retoma aqui uma ideia que jaacute houvera exposto em O Nascimento da Trageacutedia59 onde por

meio da reproduccedilatildeo de uma extensa passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo

o autor pretende vincular sua interpretaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana do veacuteu de Maia

(hellip) Seu olho deve ser lsquosolarrsquo em conformidade com a sua origemmesmo quando mira coleacuterico e mal-humorado paira sobre ele aconsagraccedilatildeo da bela aparecircncia E assim poderia valer em relaccedilatildeo a Apoloem um sentido excecircntrico aquilo que Schopenhauer observou a respeitodo homem colhido no veacuteu de Maia na primeira parte de O mundo comovontade e representaccedilatildeo ldquoTal como em meio ao mar furioso queilimitado em todos os quadrantes ergue e afunda vagalhotildees bramantesum barqueiro estaacute sentado em seu bote confiando na fraacutegil embarcaccedilatildeoda mesma maneira em meio a um mundo de tormentos o homemindividual permanece calmamente sentado apoiado e confiante noprincipium individuationis [princiacutepio de individuaccedilatildeo]rdquo Sim poder-se-iadizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressatildeo a inabalaacutevelconfianccedila nesse principium e o tranquilo ficar aiacute sentado de quem neleestaacute preso e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplecircndidaimagem divina do principium individuationis a partir de cujos gestos eolhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ldquoaparecircnciardquojuntamente com a sua belezardquo (GTNT I sect1)

59 A citaccedilatildeo eacute da traduccedilatildeo de J Guinsburg para a editora Companhia das Letras conforme bibliografia

108

Na passagem em questatildeo Nietzsche relata os poderes de Apolo na medida em que

este eacute tomado como o impulso artiacutestico por traacutes da criaccedilatildeo da realidade oniacuterica como uma

representaccedilatildeo mitoloacutegica do principium individuationis Segundo a interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana que Nietzsche acompanha em sua referecircncia a situaccedilatildeo do homem

mediante a confianccedila depositada no princiacutepium individuationis eacute comparaacutevel a de um

homem que em meio a um mar bravio se prende a seu bote com a seguranccedila de que nele

repousa sua uacutenica esperanccedila de sobrevivecircncia

No Ensaio sobre Verdade e Mentira por sua vez o intelecto eacute representado como

uma fonte de conforto e orgulho para o homem Isto porque o homem participa na

exaltaccedilatildeo do intelecto que eacute apresentada para ele por meio da autojustificaccedilatildeo do intelecto

Nesse sentido o orgulho advindo da compreensatildeo do intelecto sobre si mesmo torna-se

uma taacutebua de salvaccedilatildeo que protege o homem da compreensatildeo da perenidade de todo

conhecimento Isto seria alcanccedilado por meio da caracteriacutestica capacidade de iludir do

intelecto que faz o homem repousar em sua teia conceitual que foi criada como sua esfera

de atuaccedilatildeo na realidade

Somente pelo esquecimento desse mundo metafoacuterico apenas peloenrijecimento e petrificaccedilatildeo de uma massa imageacutetica que qual umliacutequido fervente desaguava originalmente em torrentes a partir dacapacidade primitiva da fantasia humana tatildeo somente pela crenccedilaimbatiacutevel de que este sol esta janela esta mesa satildeo uma verdade em siem suma apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e comefeito enquanto sujeito artisticamente criador ele vive com certatranquilidade com alguma seguranccedila e consequecircncia se pudesse sairapenas por um instante das redomas aprisionadoras dessa crenccedila entatildeosua ldquoautoconsciecircnciardquo desapareceria de imediato (WLVM sectI paacuteg 42)

Em outros termos a elevada estima para com o conhecimento seria apenas o

produto de um desconhecimento fundamental acerca de suas origens O proacuteprio valor da

ciecircncia dependeria fundamentalmente desta ignoracircncia fundamental Por outro lado o

desvelamento das origens da ciecircncia que eacute alcanccedilada no ensaio a anaacutelise dos fundamentos

mesmos de onde ela surge faz perceber que natildeo eacute o conhecimento o grande diferencial do

homem em relaccedilatildeo aos demais animais mas sua criatividade artiacutestica Natildeo apenas a

109

ciecircncia seria produto desta criatividade artiacutestica fundamental mas o proacuteprio valor que

atribuiacutemos a ciecircncia como produto do intelecto seria decorrecircncia desta criatividade

Nesse movimento portanto ao mesmo tempo que Nietzsche expotildee a ciecircncia como

natildeo sendo digna de sua reputaccedilatildeo faz da criatividade humana o seu grande potencial Esta

forma de conceber a ciecircncia em relaccedilatildeo agrave arte guarda certa similaridade com a forma como

o autor pensa essa relaccedilatildeo em O Nascimento da Trageacutedia O que nos chama atenccedilatildeo aqui

no entanto eacute que se naquela obra o autor tomava partido pela arte se era o artista

Nietzsche que falava ali aqui o autor realiza a criacutetica da ciecircncia utilizando-se de uma

anaacutelise que privilegia o uso de concepccedilotildees cientiacuteficas Isto significaria que jaacute naquele

periacuteodo de sua produccedilatildeo o filoacutesofo fazia um uso da ciecircncia como produto da criatividade

artiacutestica humana

A consciecircncia do valor da ciecircncia como produto artiacutestico no entanto eacute algo que soacute

se torna possiacutevel a partir da criacutetica do intelecto como produtor de ilusotildees Assim podemos

perceber que a autoconsciecircncia enquanto a imagem do homem criada a partir do potencial

criativo do intelecto em sua autojustificaccedilatildeo tem importacircncia significativa na consideraccedilatildeo

do valor da ciecircncia Sendo assim os alicerces de nosso edifiacutecio conceitual repousariam natildeo

sobre uma fundaccedilatildeo segura na verdade mas sobre uma representaccedilatildeo do intelecto como

elemento revelador da verdade Mediante a desintegraccedilatildeo da autoconsciecircncia um exerciacutecio

que ateacute certo ponto eacute levado a cabo nesta passagem do ensaio outras perspectivas

despontariam para o homem como igualmente vaacutelidas

Exigi-lhe esforccedilo inclusive admitir para si mesmo o fato de que o insetoou o paacutessaro percebem um mundo totalmente diferente daquele percebidopelo homem sendo que a pergunta por qual das duas percepccedilotildees demundo eacute a mais correta natildeo possui qualquer sentido haja visto que pararespondecirc-la a questatildeo teria de ser previamente medida com criteacuterioatinente agrave percepccedilatildeo correta isto eacute de acordo com um criteacuterio que natildeoestaacute agrave disposiccedilatildeo A mim me parece em todo caso que a percepccedilatildeocorreta ndash que significaria a expressatildeo adequada de um objeto no sujeito ndasheacute uma contraditoacuteria absurdidade pois entre duas esferas absolutamentediferentes tais como entre sujeito e objeto natildeo vigora nenhumacausalidade nenhuma exatidatildeo nenhuma expressatildeo mas acima de tudouma relaccedilatildeo esteacutetica digo uma transposiccedilatildeo sugestiva uma traduccedilatildeobalbuciante para uma liacutengua totalmente estranha Algo que requer dequalquer modo uma esfera intermediaacuteria manifestamente poeacutetica einventiva bem como uma forccedila mediadora (WLVM sectI paacuteg 42)

110

O que se percebe nessa passagem eacute uma preacutevia reflexatildeo acerca do caraacuteter limitado

de nossa compreensatildeo da realidade assim como uma criacutetica do valor de nossas estimaccedilotildees

da realidade com base em uma concepccedilatildeo da consciecircncia que eacute desde sempre apenas um

produto da autojustificaccedilatildeo do intelecto Destituiacuteda de validade a ciecircncia passa a ser

compreendida como algo que deve seu valor apenas a uma concepccedilatildeo dogmaacutetica acerca do

entendimento humano Desta interpretaccedilatildeo criacutetica surge a possibilidade de que existam

outras perspectivas outras concepccedilotildees de mundo fora da concepccedilatildeo humana Por outro

lado toda tentativa de julgamento destas outras perspectivas eacute confrontada com a

suposiccedilatildeo de que esta criacutetica ela mesma seria realizada a partir do intelecto Logo natildeo

poderia ter validade fora da esfera de justificaccedilatildeo do intelecto

A denuacutencia do caraacuteter antropomoacuterfico das criaccedilotildees teoacutericas humanas abriria assim

tereno para a postulaccedilatildeo nietzschiana das demais perspectivas como possibilidades

Apenas considerando-se o que fora dito anteriormente levando-se em consideraccedilatildeo

inclusive a reflexatildeo acerca dos diferentes modos de sensibilidade animal investigaccedilatildeo

com a qual Nietzsche entra em contato a partir de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo eacute possiacutevel pesar a complexidade dos argumentos que compotildeem esta

sentenccedila

Grosso modo o problema poderia ser colocado do seguinte modo admitindo-se

como certa a hipoacutetese de que o homem natildeo seja a medida de todas as coisas que de certo

modo eacute a alma deste ensaio como ficariam as outras perspectivas diante da perspectiva

humana Ou seja considerando-se a possibilidade de que outras espeacutecies possam ver o

mundo sob formas muito diferentes da nossa e essa possibilidade eacute amplamente

respaldada pelas investigaccedilotildees das ciecircncias naturais agravequela eacutepoca como julgar se a nossa

seria a mais correta O uacutenico modo para o autor seria a comparaccedilatildeo com a perspectiva

correta No entanto tal perspectiva natildeo estaacute ao alcance A proacutepria especulaccedilatildeo acerca de

uma tal perspectiva seria um absurdo60 Na medida em que examinamos estaacute reflexatildeo tecircm-

60 Nesta passagem Nietzsche adianta uma reflexatildeo fundamental para seu perspectivismo que eacute referida noaforismo 374 de A Gaia Ciecircncia intitulado ldquonosso novo infinitordquo Naquela conhecida passagem o autorafirmaraacute ldquoNatildeo podemos enxergar aleacutem de nossa esquina eacute uma curiosidade desesperada querer saber queoutros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haverrdquo (FWGC V sect374) com isso retomando a reflexatildeode juventude acerca das formas como os insetos ou os paacutessaros enxergam a realidade Das conclusotildees que oautor retira dessa impossibilidade falaremos no uacuteltimo capiacutetulo

111

se como certo que o autor natildeo admite a possibilidade de que se possa comparar

perspectivas porque natildeo estamos de posse de uma pedra de toque definitiva o criteacuterio

atinente com que se poderia determinar qual seria a perspectiva correta

Embora sua consideraccedilatildeo do papel do intelecto na apropriaccedilatildeo do mundo pela

humanidade soacute se torne possiacutevel em uma filosofia que conhece a criacutetica efetuada por Kant

Nietzsche se opotildee a essa filosofia ao contrastar a confianccedila do filoacutesofo de Koumlnigsberg na

capacidade da razatildeo em julgar a si mesma com a suspeita de que como instrumento

plasmador de ilusotildees o intelecto eacute pouco confiaacutevel para estabelecer a verdade de qualquer

coisa especialmente sobre si mesmo

Para que a consciecircncia viesse a efetuar sua proacutepria criacutetica seria necessaacuterio que esta

se desloca-se para aleacutem de sua proacutepria perspectiva para julgar as demais perspectivas

como se aqui se trata-se de uma perspectiva absoluta Ou ainda que este se coloca-se em

uma relaccedilatildeo de proximidade com o conhecimento verdadeiro em sentido metafiacutesico que

este se colocasse em uma relaccedilatildeo ideal com a coisa em si o que lhe seria impossiacutevel posto

que a proacutepria concepccedilatildeo de coisas em si repudia a possibilidade de atuaccedilatildeo do intelecto

Assim a hipoacutetese de que o intelecto pudesse efetuar sua proacutepria criacutetica que de certo modo

se encontra subjacente agrave consideraccedilatildeo criacutetica kantiana ainda reconhece na razatildeo humana

um sentido para a verdade que lhe eacute totalmente estranho

Como o autor defende desde que o homem da verdade estaacute imbuiacutedo em sua

perspectiva da verdade natildeo lhe eacute faacutecil contemplar a sugestatildeo de que outras perspectivas

sejam sempre possiacuteveis Pois o investigador que toma a seacuterio a possibilidade da verdade

natildeo pode imaginar que esta seja subjetiva61 Mas se tal fosse possiacutevel o autor aponta a

saiacuteda seria necessaacuterio entender-se com a objetivaccedilatildeo mais adequada da realidade

Para o autor do ensaio poreacutem esta sugestatildeo seria um absurdo na medida em que tal

criteacuterio natildeo nos estaria disponiacutevel Pois seria necessaacuterio ter um acesso privilegiado ao

mundo das verdades para daiacute entatildeo postular qual perspectiva se lhe aproxima mais Mas

61 Esta passagem reflete ideias que seriam retomadas por Nietzsche em seu pensamento maduronotadamente na seguinte passagem de seu espoacutelio ldquoO intelecto natildeo pode ele mesmo criticar-se justamenteporque natildeo pode ser comparado com intelectos diferentemente constituiacutedos e porque sua capacidade deconhecer viria agrave luz somente em face da lsquoverdadeira realidadersquo [wahren Wirklichkeit] isto eacute porque paracriticar o intelecto precisariacuteamos ser um ser mais elevado com lsquoconhecimento absolutorsquo Isto jaacute pressupotildeeque haveria algo um lsquoem sirsquo para aleacutem de todas as espeacutecies de perspectivas de consideraccedilatildeo e deapropriaccedilatildeo sensiacutevel-espiritual ndash mas a deduccedilatildeo psicoloacutegica da crenccedila em coisas nos proiacutebe falar de lsquocoisasem sirsquordquo (WMVP Livro III sect473)

112

da relaccedilatildeo entre um objeto e um sujeito uma imensidatildeo de possibilidades criativas se

coloca natildeo sendo a objetividade uma decorrecircncia necessaacuteria Assim o autor toma toda

objetivaccedilatildeo como uma decorrecircncia esteacutetica sempre que eacute produto da atuaccedilatildeo de instacircncias

criativas sem as quais o objeto mesmo natildeo aparece ao sujeito

Nestas consideraccedilotildees satildeo adiantadas muitas concepccedilotildees que seratildeo retomadas por

Nietzsche em seu pensamento de maturidade Entre estas ideias talvez a mais significativa

seja a concepccedilatildeo do poder criativo do intelecto A sugestatildeo nietzschiana de que na

apariccedilatildeo dos fenocircmenos entram em jogo forccedilas criativas conduz agrave conclusatildeo de que a

interpretaccedilatildeo nunca eacute um produto espontacircneo no sentido de uma decorrecircncia natural uma

maacutegica apariccedilatildeo de um algo para um sujeito Toda aparecircncia eacute sempre um resultado uma

regulaccedilatildeo natural de uma forccedila criativa inerente ao intelecto

Mesmo aquilo que Nietzsche toma como base de sua teoria da linguagem a

tranposiccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em uma imagem eacute tomado em sentido hipoteacutetico

Sendo assim tal relaccedilatildeo natildeo seria uma decorrecircncia necessaacuteria mas apenas um haacutebito

adquirido mediante a contiacutenua repeticcedilatildeo desta atividade Desta forma o autor do ensaio

procura evitar qualquer referecircncia a uma realidade que vaacute aleacutem dos limites do que pode ser

conhecido Mantendo-se nos limites do que eacute exposto no ensaio percebe-se que Nietzsche

ateacute mesmo evita usar termos como fenocircmeno e aparecircncia pois compreende que estes ainda

poderiam ser confundidos com a ideia de que algo no mundo empiacuterico esteja relacionado

com um reino original de onde brotasse nosso conhecimento das coisas

A palavra aparecircncia conteacutem muitas tentaccedilotildees daiacute eu evitaacute-la sempre quepossiacutevel pois natildeo eacute verdade que a essecircncia das coisas aparece no mundoempiacuterico Um pintor cujas matildeos lhe faltassem e quisesse ainda assimexpressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelaraacute nessatroca de esferas muito mais sobre a essecircncia das coisas do que aquilo querevela o mundo empiacuterico A proacutepria relaccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso coma imagem gerada natildeo eacute em si algo necessaacuterio mas quando justamente amesma imagem foi gerada milhotildees de vezes e foi herdada por muitasgeraccedilotildees de homens ateacute que por fim aparece junto agrave humanidade inteirasempre na sequecircncia da mesma ocasiatildeo entatildeo ela termina por adquirir aofim e ao cabo o mesmo significado para o homem como se fosse aimagem exclusivamente necessaacuteria e como se aquela relaccedilatildeo do estiacutemulonervoso original com a imagem gerada constituiacutesse uma firme relaccedilatildeocausal assim como um sonho que se repete eternamente seria semduacutevida sentido e julgado como efetividade Mas o enrijecimento e a

113

petrificaccedilatildeo de uma metaacutefora natildeo asseguram coisa alguma agrave suanecessidade e justificaccedilatildeo exclusiva (WLVM sectI paacuteg 42-43)

Em outros termos a regularidade que se observa na transposiccedilatildeo dos estiacutemulos

nervosos em imagens mentais pode ser vista como mais um efeito da atuaccedilatildeo do intelecto

Esta regularidade no entanto pouco significa para a veracidade dessas relaccedilotildees E assim

seria um erro loacutegico entender a regularidade dessas transposiccedilotildees como um argumento a

favor de sua certeza Pois um sonho que nos aparecesse com a mesma regularidade natildeo

seria mais real por isso

Como podemos ver as uacuteltimas conclusotildees da primeira parte do ensaio parecem

apontar para um forte ceticismo Segundo esta leitura natildeo haveriam certezas nas relaccedilotildees

da linguagem porque estas se constituem na transposiccedilatildeo de esferas do mundo dos

estiacutemulos ao mundo das imagens Por outro lado seria essa possibilidade de criar uma

realidade ao lado da realidade mais fundamental das intuiccedilotildees fundamentais segundo uma

certa regularidade natural que nos possibilita estabelecer as bases para nossa criaccedilatildeo da

linguagem Isto eacute certo na medida em que a hipoacutetese acerca da criaccedilatildeo da linguagem nos

fornece uma explicaccedilatildeo plausiacutevel que se fundamenta em um processo evolucionaacuterio e

seletivo que acabaria por criar um tesouro de metaacuteforas coerentes

Por outro lado o ensaio deixa claro que a relaccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute uma

relaccedilatildeo esteacutetica e natildeo epistemoloacutegica Com isso o autor quer dizer que o processo segundo

o qual constituiacutemos nossa perspectiva eacute um processo criativo que se desenrola pela

atividade mesma de uma esfera intermediaacuteria poeacutetica e inventiva uma forccedila mediadora

para a qual neste momento o autor natildeo tinha um nome Por outro lado uma concepccedilatildeo

definitiva acerca da realidade como o homem aspira eacute uma ilusatildeo Pois tudo que merece o

nome de realidade seria apenas o produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo intelectual e

crer no contraacuterio conduziria ao idealismo mais arbitraacuterio

O que nos interessa mais diretamente ateacute aqui eacute o fato de que este mundo dos

conceitos criados a partir de um mundo de intuiccedilotildees originais passa a constituir-se por

conta de nossa crescente dependecircncia da ciecircncia como o mundo que merece valor Nesse

sentido necessariamente o mundo mais fundamental das intuiccedilotildees perde valor em relaccedilatildeo

ao mundo organizado segundo a hierarquia de valores inerente a uma consideraccedilatildeo

114

cientiacutefica da realidade Este eacute um estaacutegio fundamental no desenvolvimento do niilismo em

que o proacuteprio mundo dos conceitos a medida que a ciecircncia torna-se cada vez mais criacutetica

tambeacutem tem seu valor desvalorizado

Assim se considerarmos que no ensaio em questatildeo Nietzsche se detecircm ainda que

de maneira pouco sistemaacutetica com o problema da desvalorizaccedilatildeo do mundo dos conceitos

entatildeo podemos considerar a segunda parte do ensaio como a apresentaccedilatildeo de uma

possibilidade de superaccedilatildeo do problema da desvalorizaccedilatildeo dos produtos da atividade

criativa humana atraveacutes da comparaccedilatildeo de duas formas antagocircnicas de consideraccedilatildeo da

realidade a do homem da verdade e a do homem intuitivo Este passo eacute fundamental

porque representa a possibilidade cotejada na filosofia de maturidade nietzschiana de se

valorizar o conhecimento como criaccedilatildeo em detrimento do conhecimento que se

desconhece como criaccedilatildeo forjada na ilusatildeo

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo

Em sua leitura criacutetica Nietzsche conclui que apesar de sua fundamental relaccedilatildeo

com a sobrevivecircncia o uso da linguagem implicaria em consequecircncias negativas em

relaccedilatildeo agrave vida Isto na medida em que passa a constituir um modo de vida que culmina na

desvalorizaccedilatildeo do mundo de intuiccedilotildees originais A simplificaccedilatildeo da realidade para fins de

comunicaccedilatildeo o que Nietzsche considera um processo fundamental na formaccedilatildeo da

linguagem conduz a uma dependecircncia crescente em uma realidade conceitual que se potildee

ao lado da realidade das impressotildees fundamentais Como este processo eacute progressivo

como o homem paulatinamente se esquece de sua realidade individual e passa a pensar

dentro de uma rede determinada de conceitos a realidade conceitual acabaria por substituir

em importacircncia e valor a realidade mais fundamental daquelas impressotildees fundamentais

Esta forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo da ciecircncia com o reino mais fundamental

das impressotildees seria o reflexo de um problema constante na especulaccedilatildeo nietzschiana a

substituiccedilatildeo da vida pela vida racionalmente mediada Isto porque apesar de a reduccedilatildeo da

realidade a conceitos passo fundamental para a constituiccedilatildeo da linguagem expressar-se

115

por meio de um mecanismo psicoloacutegico de defesa destinado a sustentar um ser no mundo

por mais um pouco de tempo este mesmo processo eacute entendido como culminando em um

abandono das relaccedilotildees mais fundamentais com a realidade da qual a vida mesma se

apresentaria como impressotildees individuais

Em um certo sentido o uso de conceitos que tornam o homem um ser cada vez

mais linguiacutestico cada vez mais consciente tornam-no com isso cada vez mais dependente

das ilusotildees fundamentais inerentes ao uso da linguagem Esta eacute a natureza do risco da

progressiva conscientizaccedilatildeo do homem seu paulatino tornar-se mais linguiacutestico tal como

este risco seraacute apresentado em A Gaia Ciecircncia Dessa maneira a superestimaccedilatildeo da razatildeo

conduz a uma confianccedila na razatildeo que acaba por tornar a realidade conceitual um objeto de

crenccedila o que por sua vez conduz agrave destituiccedilatildeo de validade da realidade mais original das

impressotildees originais

Podemos antever na exposiccedilatildeo nietzschiana o modo como a expressatildeo

cientificamente mediada da realidade tomada aqui como produto da sugestiva apariccedilatildeo dos

conceitos que correspondem ao enrijecimento de metaacuteforas adequadas embora providencie

uma base segura para a investigaccedilatildeo cientiacutefica acaba constituindo-se como uma limitaccedilatildeo

para a atuaccedilatildeo humana Pois para Nietzsche a investigaccedilatildeo levada a cabo dentro dos

limites conceituais natildeo atinge senatildeo um tipo de verdade bastante limitado Os conceitos

pensados no ensaio como fossilizaccedilotildees de palavras tem uma origem descortinada por

Nietzsche no esquecimento do uso de determinadas noccedilotildees gerais Assim sua existecircncia

estaacute necessariamente restrita agrave histoacuteria de seu uso Palavras analogamente se tornam

valores fixos com os quais construiacutemos uma rede de estabilidade onde podemos viver e

estabelecer hierarquias de comando

Nessa leitura a comunicaccedilatildeo pode ser vista como tendo sua determinaccedilatildeo na

necessidade de medir algo contra outra coisa uma impressatildeo com uma representaccedilatildeo

sonora desta representaccedilatildeo Como uma sequecircncia de siacutembolos que devem corresponder a

outra sequecircncia de siacutembolos de modo a definir e medir e criar uma referecircncia

reciprocamente entre eles Assim se por um lado o homem pode pesquisar dentro de seu

ciacuterculo antropomoacuterfico com base em conceitos tanto no sentido de uma investigaccedilatildeo que

contemplasse as menores grandezas quanto as maiores sem nunca encontrar uma

contradiccedilatildeo por outro lado este tipo de pesquisa nunca o afastaria das condiccedilotildees de

116

possibilidade jaacute dadas pela forma como a linguagem eacute constituiacuteda Do mesmo modo esta

atividade investigativa nunca possibilitaria um conhecimento adequado da realidade

mesma que eacute justamente a pretensatildeo de todo conhecimento

Ainda assim o conhecimento que se torna atuante atraveacutes do progressivo uso dos

conceitos na medida em que corresponde a uma perspectiva tipicamente humana constitui

uma forma estabelecida de ciecircncia Mais do que isso eacute possiacutevel que nunca tenha havido

na histoacuteria da humanidade uma outra forma de ciecircncia Assim de um certo modo a

caracteriacutestica mesma do humano consistiria na capacidade do intelecto em constituir

imagens em conceitos expediente por meio do qual se tornaria possiacutevel a ciecircncia Nessa

leitura a capacidade de constituir em conceitos uma realidade comunicaacutevel mais do que

objeto de censura da parte de Nietzsche aparece no ensaio quase como motivo de

assombro

Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capacidadede volatilizar as metaacuteforas intuitivas num esquema de dissolver umaimagem num conceito portanto no acircmbito daqueles esquemas torna-sepossiacutevel algo que nunca poderia ser alcanccedilado sob a eacutegide das primeirasimpressotildees intuitivas erigir uma ordenaccedilatildeo piramidal segundo castas egradaccedilotildees criar um novo mundo de leis privileacutegios subordinaccedilotildeesdelimitaccedilotildees que agora faz frente ao outro mundo intuitivo das primeirasimpressotildees como o mais consolidado universal conhecido humano eem virtude disso como o mundo regulador e imperativo (WLVM sectIpaacuteg 38)

Eacute natural que diante das dificuldades enfrentadas pelo criador da linguagem nos

vejamos diante deste imponente edifiacutecio com assombro e admiraccedilatildeo Ainda assim aquilo

de que noacutes nos assombramos natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise senatildeo de noacutes mesmos Assim com

certa admiraccedilatildeo o filoacutesofo descreve a capacidade humana de ldquovolatilizar metaacuteforas

intuitivasrdquo ou seja de desgastar impressotildees fundamentais tornando-as conceitos como a

base para a criaccedilatildeo de um mundo cuja realidade compete com a realidade do mundo das

intuiccedilotildees fundamentais

Para Nietzsche a hierarquia fundamental que caracterizaria o modo humano de

existir depende desta capacidade de conferir realidade a uma ordenaccedilatildeo de valores

fundamentais independentes do mundo de impressotildees originais para o qual esse mundo de

117

conceitos torna-se o esquema compreensivo Com isso o mundo fundamental das intuiccedilotildees

passa a fazer frente ao mundo inventado dos conceitos ldquocomo o mundo regulador e

imperativordquo por meio do qual o homem constitui sua ciecircncia Assim com a caracterizaccedilatildeo

da ciecircncia como o empreendimento que toma como realidade a realidade conceitual o

autor antecipa uma importante conclusatildeo do ensaio em questatildeo na apreciaccedilatildeo do problema

do valor dos conceitos cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave vida que aqui eacute representada na forma das

intuiccedilotildees fundamentais

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a primeira parte do Ensaio sobre Verdade e

Mentira e a segunda A primeira parte do ensaio pode ser interpretada como a apresentaccedilatildeo

do posicionamento criacutetico do autor para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade Dentro

deste posicionamento satildeo apresentadas as hipoacuteteses nietzschianas acerca das origens da

linguagem da verdade e do valor moral atribuiacutedo agrave verdade Nesse sentido a primeira

parte culmina em uma criacutetica ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade A segunda

parte do ensaio parte dessa consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a uma vida norteada pelas

concepccedilotildees conceituais e a ela confronta um modo de vida mais original fundamentado

nas impressotildees originais Assim a primeira parte do ensaio a parte teoacuterica prepara o

terreno para um problema de cunho praacutetico o conflito intriacutenseco a dois modos de

existecircncia a do homem cientiacutefico e a do homem intuitivo

O homem cientiacutefico recebe uma caraterizaccedilatildeo negativa jaacute em consequecircncia das

criacuteticas nietzschianas ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade Deste modo na

segunda parte do ensaio o autor continua a descrever esta concepccedilatildeo de realidade de

maneira pouco elogiosa Por outro lado a esta concepccedilatildeo da realidade eacute apresentada uma

concepccedilatildeo antagocircnica que eacute representada aqui como constituinte de um tipo de existecircncia

em a capacidade de criaccedilatildeo eacute valorizada em detrimento da necessidade de conceitos O que

eacute dito aqui do homem intuitivo natildeo se distingue daquilo que no periacuteodo intermediaacuterio da

filosofia nietzschiana Nietzsche diraacute dos espiacuteritos livres

O autor do ensaio inicia a segunda parte do texto por meio de uma apresentaccedilatildeo da

linguagem e dos conceitos como produtos de uma atividade de simplificaccedilatildeo da realidade

Nesta apresentaccedilatildeo o processo de criaccedilatildeo da linguagem eacute caracterizado como tendo suas

fases evolutivas marcadas pela criaccedilatildeo de metaacuteforas que culminaria na criaccedilatildeo dos

conceitos Por sua vez os conceitos se entrelaccedilariam se relacionariam de modo a criar

118

uma rede de compreensatildeo em que a realidade eacute traduzida em ciecircncia No entanto se os

conceitos satildeo como o autor pensa petrificaccedilotildees das intuiccedilotildees originais que se daria atraveacutes

de vaacuterias transposiccedilotildees arbitraacuterias entatildeo a ciecircncia seria uma construccedilatildeo produzida com

base nestas mesmas transposiccedilotildees arbitraacuterias

O processo de produccedilatildeo dos conceitos que tem por finalidade preparar os

elementos necessaacuterios para a constituiccedilatildeo da ciecircncia eacute marcado pela compressatildeo de

informaccedilatildeo Os conceitos seriam esta forma mais compacta de se preservar a realidade

embora uma realidade mais aacuterida do que o terreno original das primeiras impressotildees que

lhe datildeo origem Nesse sentido a ciecircncia enquanto rede compreensiva de conceitos

enquanto verdadeira piracircmide conceitual torna-se uma representaccedilatildeo aacuterida de todo o

mundo empiacuterico Este mundo empiacuterico no entanto que nessa altura nada mais eacute do que o

mundo sob uma perspectiva antropomoacuterfica A realidade da ciecircncia aparece como um

reflexo paacutelido da realidade mais original das impressotildees Por ser paacutelido poreacutem este

reflexo torna-se mais cocircmodo ao olhar miacuteope do cientista

Qual o caraacuteter deste empobrecimento da realidade narrado por Nietzsche Em quecirc

esta piracircmide de conceitos deixa a desejar em relaccedilatildeo agrave realidade mais fundamental das

metaacuteforas intuitivas Para Nietzsche um dos problemas com o tornar-se mais linguiacutestico

mais dependente do esquema conceitual caracteriacutestico das ciecircncias seria o fato de que a

proacutepria linguagem natildeo eacute vista como um meio seguro para expressar a diferenccedila Como

uma forma de fixaccedilatildeo do real os conceitos se relacionam intimamente com a similaridade

entre as impressotildees fundamentais que no fundo nunca satildeo de fato similares Assim por

exemplo dois homens que apontassem para um objeto e que usam a mesma designaccedilatildeo

para nomeaacute-lo poderiam entender-se perfeitamente Mas algo eacute sempre deixado de lado

nessa comunicaccedilatildeo e natildeo eacute possiacutevel dizer de fato o que cada um vecirc Porque haacute uma

diferenccedila fundamental em seus modos de perceber intuitivamente o mundo que natildeo eacute

capturado pelos conceitos

Na traduccedilatildeo da realidade das metaacuteforas intuitivas em conceitos para o autor do

ensaio se daacute uma falsificaccedilatildeo fundamental da realidade A traduccedilatildeo da natureza nas leis da

fiacutesica eacute um exemplo recorrentemente utilizado na obra nietzschiana para demarcar o tipo

de simplificaccedilatildeo que eacute operada pela ciecircncia As leis da fiacutesica representam a ciecircncia apenas

do ponto de vista do fiacutesico nunca do ponto de vista da natureza ela mesma De modo que

119

tudo que eacute expresso pela fiacutesica eacute verdadeiro apenas no interior da fiacutesica Do mesmo modo

se as leis da fiacutesica natildeo podem ser equivocadas isto apenas significa que desde que estas

leis satildeo uma imposiccedilatildeo segundo a norma convencionada de aplicaccedilatildeo de conceitos nada

dizem acerca da natureza mesmo pois expressam apenas um sistema de relaccedilotildees fechado

Por outro lado o que haacute de verdadeiramente significativo nas leis da natureza

seriam as relaccedilotildees de sucessatildeo e nuacutemero que satildeo expressotildees do tempo e espaccedilo portanto

aplicaccedilotildees de conceitos humanos Ou seja as leis da natureza satildeo criaccedilotildees nossas tal qual

a regularidade numeacuterica que eacute produzida ldquocom aquela necessidade com a qual a aranha

tece sua teiardquo (WLVM sectI paacuteg 45) Lembremos que em suas notas preparatoacuterias para

Zur Teleologie o filoacutesofo nos falava das leis da fiacutesica como uacutenico modo de compreensatildeo

da natureza para os homens62

Mas porque as leis da fiacutesica satildeo criaccedilotildees humanas capazes de oferecer uma

explicaccedilatildeo da natureza Porque satildeo criadas com esse propoacutesito No entanto as leis da

fiacutesica satildeo produtos de nossa atividade criativa condicionadas pela regularidade numeacuterica

que eacute inerente ao nosso intelecto e natildeo carateriacutesticas da proacutepria natureza Sendo assim

poderiacuteamos nos perguntar o que eacute expresso nestas determinaccedilotildees numeacutericas Para

Nietzsche a mesma regularidade que eacute o traccedilo do intelecto o traccedilo caracteriacutestico de nossa

atividade criativa sobre o mundo que seria o uacutenico conteuacutedo das leis da natureza Isto

seria de fato uma explicaccedilatildeo da natureza Mas uma explicaccedilatildeo dentro de um ponto de

vista63

Por fim tem-se que as leis da fiacutesica seriam a forma mais avanccedilada de falsificaccedilatildeo

da natureza por meio da qual se constitui nossa ciecircncia natural Nesse sentido se por um

lado esta domesticaccedilatildeo das imagens em conceitos coincide com uma maior falsificaccedilatildeo da

realidade por outro apenas por meio desta falsificaccedilatildeo seria possiacutevel constituir a ciecircncia

enquanto um edifiacutecio de riacutegidos conceitos e hierarquizaccedilatildeo Desta maneira repercutindo

uma ideia apresentada em suas notas preparatoacuterias para a dissertaccedilatildeo sobre teleologia

62 Em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie Nietzsche reuacutene uma seacuterie de citaccedilotildees da obra deFischer tendo em vista estabelecer como ponto de partida de sua proacutepria concepccedilatildeo sobre os organismosque noacutes apenas podemos conhecer o que eacute mecacircnico (BAW 3 Paacuteg 377) Em outras palavras para o homemapenas o que se revela em relaccedilotildees de necessidade seria passiacutevel de conhecimento Embora como as notasparecem significar conhecimento a partir de um ponto de vista mecacircnico ao que o autor acrescenta ldquoEineBetrachtungsweise ist noch keine Erkenntnissrdquo ou seja ldquoUm ponto de vista ainda natildeo eacute conhecimentordquo(BAW 3 Paacuteg 377)63 Vide nota anterior

120

Nietzsche reduz toda regularidade da natureza a regularidade dos conceitos que aparece

para o autor como o reflexo de nossa proacutepria constituiccedilatildeo

Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetoacuteria dos planetas eno processo quiacutemico coincide no fundo com aquelas propriedades quenoacutes mesmos introduzimos nas coisas de sorte que com issoimpressionamos a noacutes mesmos Disso se segue por certo que aquelaformaccedilatildeo artiacutestica de metaacuteforas que em noacutes daacute iniacutecio a toda sensaccedilatildeo jaacutepressupotildee tais formas e portanto realiza-se nelas somente a partir dafirme persistecircncia dessas formas primordiais torna-se possiacutevel esclarecercomo pocircde assim como outrora ser novamente erigido um edifiacutecio deconceitos feito com as proacuteprias metaacuteforas Tal edifiacutecio eacute pois umaimitaccedilatildeo das relaccedilotildees de tempo espaccedilo e nuacutemero sobre o solo dasmetaacuteforas (WLVM sectI paacuteg 45)

Toda a impressionante ordenaccedilatildeo da natureza seria assim um reflexo de nosso

ponto de vista determinado natildeo se podendo tributar agrave natureza qualquer regularidade

proacutepria Por outro lado o autor esforccedila-se em demonstrar que um conceito natildeo tem

realidade ldquoa-histoacutericardquo pois sua existecircncia estaacute necessariamente restrita a histoacuteria de seu

uso Por sua vez o proacuteprio mundo de conceitos e de hierarquia que eacute a ciecircncia seria um

mundo humano construiacutedo com base em leis de regularidade que a proacutepria regularidade de

nossa constituiccedilatildeo lhe impotildee Como Nietzsche afirma ldquoEm princiacutepio o pesquisador dessas

verdades procura apenas a metamorfose do mundo nos homens esforccedila-se por uma

compreensatildeo do mundo visto como uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das

hipoacuteteses granjeia para si o sentimento de uma assimilaccedilatildeordquo (WLVM sectI paacuteg 40) De

tal modo a existecircncia humana passa a depender destas associaccedilotildees automaacuteticas que os

conceitos passam a valer na existecircncia humana como verdadeiras entidades Ainda assim

tatildeo distantes os conceitos estatildeo das metaacuteforas que lhe datildeo origem que facilmente

descremos dessa origem Com a mesma facilidade com que o homem perde de vista o fato

de que todo conceito e portanto toda ciecircncia tem como sua origem uma ilusatildeo

ocasionada por uma atividade criativa inerente agrave constituiccedilatildeo humana

Enquanto cada metaacutefora intuitiva eacute individual e desprovida de seucorrelato e por isso sabe sempre eludir a todo rubricar o grande edifiacuteciodos conceitos exibe a inflexiacutevel regularidade de um columbaacuterio romano e

121

exala na loacutegica aquela dureza e frieza que satildeo proacuteprias agrave matemaacuteticaAquele que eacute baforado por essa frieza mal acreditaraacute que mesmo oconceito ossificado e octogonal como um dado e tatildeo rolante como estepermanece tatildeo-somente o resiacuteduo de uma metaacutefora sendo que a ilusatildeo datransposiccedilatildeo artiacutestica de um estiacutemulo nervoso em imagens se natildeo eacute amatildee eacute ao menos a avoacute de todo conceito (WLVM sectI paacutegs 38-39)

Exatamente nisso os conceitos se diferenciam das metaacuteforas intuitivas Enquanto as

metaacuteforas intuitivas satildeo eventos singulares desprovidos de sentido aleacutem de sua apariccedilatildeo

os conceitos satildeo criaccedilotildees que devem servir de modelo para interpretaccedilatildeo da realidade em

formas fixas segundo uma riacutegida loacutegica Os elementos constitutivos de todas as ciecircncias

relacionam-se uns aos outros para formar estruturas que estatildeo ancoradas a outros

conceitos que conduzem a um fundamento riacutegido que se presume ser um ldquoinstantacircneordquo do

mundo em que realmente vivemos Um instantacircneo de forma loacutegica e epistemologicamente

exata por assim dizer Mas se levarmos a seacuterio esse pensamento como fica a realidade

Onde estaacute o mundo em que realmente vivemos Neste instantacircneo Seraacute que ele teria sido

simplesmente captado por completo em nossa representaccedilatildeo conceitual da realidade A

resposta do autor eacute claramente negativa para todas estas questotildees

O processo que culmina na produccedilatildeo da ciecircncia tem para Nietzsche uma loacutegica

determinada segundo a qual ldquo() a linguagem trabalha na construccedilatildeo dos conceitos desde

o princiacutepio e em periacuteodos posteriores a ciecircnciardquo (WLVM sectI paacuteg 46) Assim a

linguagem eacute considerada nessa leitura como um passo inicial no processo de produccedilatildeo da

ciecircncia que teraacute seu modo de operaccedilatildeo determinado por essa mesma loacutegica Eacute esta loacutegica

que determina que a busca de regularidade proacutepria da ciecircncia culmine em um

esquecimento da realidade para aleacutem da regularidade atribuiacuteda a ela Ou seja tendo em

vista uma cada vez melhor adaptaccedilatildeo da realidade agraves necessidades humanas notadamente

a necessidade de comunicaccedilatildeo a ciecircncia opera com conceitos cada vez menos relacionados

agrave realidade original das metaacuteforas intuitivas

Nesse processo a proacutepria similaridade da constituiccedilatildeo humana parece cooperar na

medida em que ocasiona que sempre vejamos o mundo de uma perspectiva muito

semelhante posto que condicionada pela mesma organizaccedilatildeo64 Apesar disso a tendecircncia

64 A ideia da conformidade da constituiccedilatildeo do aparato perceptivo humano como motivo da regularidade dasexperiecircncias compartilhadas pelos homens eacute reforccedilada no Fragmento poacutestumo 19 [157] do mesmo periacuteododa obra citada ldquoO imenso consenso dos homens acerca das coisas comprova a uniformidade de seu aparatoperceptivordquo Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na paacutegina 67 da obra em estudo

122

humana agrave formulaccedilatildeo de conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural da qual a

proacutepria criaccedilatildeo de conceitos seria dependente

A caracterizaccedilatildeo da dependecircncia humana do esquema conceitual possibilita a

Nietzsche qualificar sua eacutepoca enquanto uma eacutepoca culturalmente dominada pela

primordialidade da ciecircncia como uma eacutepoca ameaccedilada pela crescente dependecircncia do

esquema conceitual fruto do intelecto Pois o autor identifica na incapacidade humana em

trabalhar apenas com as metaacuteforas poeacuteticas originais incapacidade que torna-se algo

inerente ao modo de vida que passa a caracterizar a humanidade uma crescente perda de

vitalidade na forma de uma crescente deterioraccedilatildeo da capacidade de ver segundo a

pluralidade de perspectivas possiacuteveis Assim para o autor do ensaio que confirmaraacute essa

suspeita em obras posteriores apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida

humana caracterizar-se por um processo de crescente adoecimento do homem a

consideraccedilatildeo da realidade segundo a realidade dos conceitos tende a uma expansatildeo

contiacutenua Pois a atividade dissimuladora do intelecto responsaacutevel pela conversatildeo de

metaacuteforas intuitivas em conceitos tende a uma atividade contiacutenua

Esta atividade criativa estruturalmente ligada ao intelecto chega a tornar-se nos

homens seu traccedilo caracteriacutestico Assim este traccedilo positivo do intelecto na medida em que

eacute manifestaccedilatildeo do potencial criativo inerente agrave atividade humana revela-se como potencial

artiacutestico incansaacutevel E ainda quando estabelecido o outro mundo dos conceitos cientiacuteficos

a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas permanece ativa e pronta para desempenhar seus

artifiacutecios em terrenos ainda inexplorados pelas ciecircncias

Tal impulso agrave formaccedilatildeo de metaacuteforas esse impulso fundamental dohomem ao qual natildeo se pode renunciar nem por um instante jaacute que comisso renunciar-se-ia ao proacuteprio homem natildeo eacute em verdade subjugado eminimamente domado pelo fato de um novo mundo firme e regular ter-lhe sido construiacutedo qual uma fortificaccedilatildeo a partir de seus produtosvolatilizados o mesmo eacute dizer os conceitos (WLVM sectI paacutegs 46-47)

Nesta leitura o autor identifica a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas com uma forccedila

que natildeo se deteacutem mesmo diante do soacutelido palaacutecio de conceitos da ciecircncia Ou seja apesar

da preponderacircncia da ciecircncia em determinadas eacutepocas o poder dissimulador do intelecto

permanece ativo e a disposiccedilatildeo Apenas o pesquisador o homem da verdade que associa

123

seu modo de vida ao proacuteprio desenvolvimento do palaacutecio conceitual da ciecircncia

permaneceria alienado dessa atividade propriamente artiacutestica do intelecto Mesmo que

enquanto homem natildeo possa ignorar a atuaccedilatildeo dessa potencialidade criativa que

constantemente lhe forccedila a confrontar suas certezas com outras tantas formas de verdade

Nesse sentido o pesquisador da verdade seria o homem mais ameaccedilado pela constante

intromissatildeo de verdades estranhas em seu sistema de compreensatildeo do mundo

Se o homem de accedilatildeo une sua vida agrave razatildeo e a seus conceitos para natildeo serarrastado e natildeo se perder a si mesmo o pesquisador de sua parteconstroacutei sua cabana junto agrave torre da ciecircncia para que possa prestar-lheassistecircncia e encontrar ele proacuteprio amparo sob o baluarte agrave suadisposiccedilatildeo E com efeito ele necessita de amparo pois haacute forccedilasterriacuteveis que lhe irrompem constantemente e que opotildee agraves verdadescientiacuteficas ldquoverdadesrdquo de um tipo totalmente diferente com as maisdiversas espeacutecies de emblemas (WLVM sectI paacuteg 46)

O homem de accedilatildeo nesse sentido identifica-se de forma instrumental com o palaacutecio

de conceitos mas o homem da ciecircncia o pesquisador faz desse palaacutecio a razatildeo mesma de

sua existecircncia Assim por conta da dependecircncia crescente neste construto teoacuterico para o

homem da ciecircncia este lhe pareceraacute sempre mais e mais real Na medida em que o homem

da ciecircncia dedica sua vida agrave construccedilatildeo do palaacutecio de conceitos e que faz sua vida

depender desse palaacutecio conceitual embora no fundo estes mesmos conceitos sejam ainda o

resultado dos enganos mais criativos natildeo pode fugir das ldquoverdadesrdquo de tipo distinto aos

conceitos cientiacuteficos que como resultado da atuaccedilatildeo do intelecto sempre se lhe

apresentam

O que o autor relata aqui eacute a presenccedila fundamental da forccedila criadora de metaacuteforas

como princiacutepio que natildeo se encerra na produccedilatildeo das verdades cientiacuteficas mas que

permanece ativa para aleacutem da consolidaccedilatildeo desse empreendimento Assim apesar de a

razatildeo conduzir inevitavelmente a uma certa imobilizaccedilatildeo da accedilatildeo na medida em que o

homem se deixa conduzir unicamente por seu princiacutepio falsificador com isso natildeo

chegamos a um pessimismo em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana mas agrave conclusatildeo de que apenas

podemos ser guiados por intuiccedilotildees que satildeo produtos de nossa capacidade poeacutetica e que

encontram seu valor nessa capacidade poeacutetica

124

Por meio da reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a atividade cientiacutefica e a atividade

criativa de metaacuteforas inerente agrave existecircncia humana Nietzsche ressalta o papel da forccedila

criativa que atua na construccedilatildeo das metaacuteforas a qual o autor considera uma forccedila poeacutetica

ineliminaacutevel nos homens A abordagem desse potencial criativo poderia ser lida como

complemento ao que Lange expressa sob a questatildeo do potencial criativo do ideal no

capiacutetulo de A Histoacuteria do Materialismo acerca do ponto de vista do ideal e deste modo

estaria relacionada agrave questatildeo mais fundamental acerca da inevitabilidade da tendecircncia

metafiacutesica no homem65

De modo geral o que Nietzsche nos apresenta ao confrontar o homem da verdade

com o homem intuitivo seria um reflexo da ideia langeana de que a forccedila poeacutetica no ser

humano seria um complemento necessaacuterio agrave atividade do homem teoacuterico66 Assim o autor

65 Em sua filosofia de maturidade Nietzsche considera que Kant assim como Schopenhauer teriam sidotragados para uma consideraccedilatildeo seacuteria das coisas em si por conta da necessidade moral que subjaz agraves suasfilosofias Essa necessidade moral teria sido de acordo com a interpretaccedilatildeo criacutetica de Nietzsche o peso quearrastou a filosofia desses autores para o abismo da inevitabilidade metafiacutesica Nesse sentido a segundagrande influecircncia na interpretaccedilatildeo nietzschiana da filosofia kantiana Fr A Lange acompanha Kant naproibiccedilatildeo do conhecimento do que se coloca para aleacutem da experiecircncia possiacutevel embora atribua um papelimportante para as realidades ideais como fontes de estiacutemulo na pesquisa cientiacutefica e inspiraccedilatildeo nas esferaspoeacutetica e moral Assim ele nos diz ldquoUma coisa eacute certa que o homem tem necessidade de completar arealidade com um mundo ideal que o mesmo cria e que para tais criaccedilotildees concorrem as mais altas e nobresfunccedilotildees de sua inteligecircnciardquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 586) Assim estes produtos das mais altas e nobresfunccedilotildees da inteligecircncia humana natildeo deveriam ser desperdiccedilados mas ter seu uso restrito ao acircmbito praacuteticoMotivo pelo quecirc as uacuteltimas seccedilotildees de sua obra satildeo dedicadas agrave descriccedilatildeo do uso adequado dessa propensatildeonatural especialmente no que diz respeito agrave religiosidade que tem um papel fundamental enquanto fonte devalores morais na proposta langeana ldquo(hellip) e chegamos a crer que esta tese da associaccedilatildeo da religiatildeo com aarte e a metafiacutesica seraacute adotada de modo geral em um tempo natildeo muito distante e ainda nos parece que estasrelaccedilotildees satildeo reconhecidas ou ao menos pressentidas pelos mais entusiastas em uma medida muito maisampla do que se admite ordinariamenterdquo (Tomo II 4 II Paacuteg 521) Por outro lado como se sabe o combateagrave religiosidade exatamente por conta dos valores morais associados a essa praacutetica humana eacute objeto degrande destaque na filosofia nietzschiana na qual a destruiccedilatildeo da metafiacutesica aparece como objeto central Noentanto eacute possiacutevel observar que o que Nietzsche afirma acerca do potencial das metaacuteforas intuitivas serelaciona intimamente como o que Lange diz acerca da atuaccedilatildeo do potencial poeacutetico humano ldquoA visatildeo deconjunto que converte os fatos em ciecircncias e a ciecircncia em sistema eacute um fruto da livre siacutentese e proveacutemportanto da mesma origem que a criaccedilatildeo do ideal mas enquanto este dispotildee em completa liberdade damateacuteria a siacutentese apenas tem o domiacutenio do movimento a liberdade de sua origem que emana do espiacuteritopoeacutetico do homem e estaacute por outro lado encarregado da tarefa de estabelecer a maior harmocircnia possiacutevelentre os fatores necessaacuterios do conhecimento subtraiacutedos a nosso caprichordquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 578)66 De modo geral os elementos que Nietzsche absorve de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo deAlbert Lange satildeo resumidos pelo filoacutesofo em uma carta escrita a Carl von Gersdoff seu amigo ecorrespondente de longa data A carta em questatildeo que foi datada de fins de agosto de 1866 reflete asimpressotildees que Nietzsche conservava de sua leitura da obra de Lange ldquoFinalmente devemos mencionartambeacutem Schopenhauer pelo qual eu ainda tenho a maior simpatia O que pode ser encontrado nele foirecentemente esclarecido para mim por uma fonte diferente o excelente e muito instrutivo entre os seusHistoacuteria do Materialismo e criacutetica de sua importacircncia para o presente Fr A Lange 1866 Aqui encontramosum kantiano e um investigador da natureza altamente esclarecido Os seus resultados podem ser resumidosnas trecircs seguintes sentenccedilas 1-O mundo sensiacutevel eacute o produto da nossa organizaccedilatildeo 2-Nossos oacutergatildeos visiacuteveis(fiacutesicos) satildeo como todas as outras partes do mundo fenomecircnico somente imagens de um objeto

125

do ensaio nos apresenta uma concepccedilatildeo dessa forccedila criativa essencial segundo a qual em

alguns momentos da histoacuteria em que o intelecto conseguiria libertar-se da indigecircncia do

modo conceitual de viver ele atuaria na livre construccedilatildeo de produtos diretos das intuiccedilotildees

fundamentais As aacutereas afeitas a essa atividade nos diz Nietzsche seriam as aacutereas da

criaccedilatildeo dos mitos e das artes o que reflete a ideia Langeana de que natildeo apenas a filosofia

mas tambeacutem a arte e a religiatildeo tecircm livre acesso ao terreno dos conceitos67 Ao defender

essa concepccedilatildeo langeana fundamental Nietzsche descreve o modo como o intelecto natildeo

circunspecto aos limites da criaccedilatildeo dos conceitos busca uma fuga na criaccedilatildeo de ilusotildees

embelezadoras enriquecedoras da existecircncia humana tanto na arte quanto na criaccedilatildeo de

mitos

Ele busca um novo acircmbito para sua accedilatildeo e um outro regato sendo que oencontra no mito e em linhas gerais na arte Perpetuamente mistura asrubricas e as divisoacuterias dos conceitos ao introduzir novas transposiccedilotildeesmetaacuteforas metoniacutemias perpetuamente demonstra o aacutevido desejo deconfigurar o mundo agrave disposiccedilatildeo do homem desperto sob uma forma tatildeocoloridamente irregular inconsequentemente desarmocircnica instigante eeternamente nova como a do mundo do sonho (WLVM sectI paacuteg 47)

Assim na medida em que o intelecto se liberta da indigecircncia de sua atuaccedilatildeo

segundo a pressatildeo da necessidade de sobrevivecircncia sua atividade se volta para a criaccedilatildeo de

desconhecido 3-A nossa verdadeira organizaccedilatildeo permanece desconhecida para noacutes bem como as coisasexternas reais Noacutes apenas temos o produto de ambos perante noacutes (KSB 2 p 159-160) A referida citaccedilatildeoassim como as proacuteximas passagens mencionadas desta mesma carta satildeo uma traduccedilatildeo nossa de textopertencente agrave coleccedilatildeo de cartas de Nietzsche na ediccedilatildeo eletrocircnica de suas obras completas (eKGB) sob asigla BVN 1886 517 A mesma carta foi publicada no segundo volume da coletacircnea completa das obras deNietzsche organizada por Colli-Mortinari sob a sigla (KSB 2 p 159-160) Nesse trecho em que Nietzschefaz uma exposiccedilatildeo entusiaacutestica de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo podemos ver o quanto o jovemprofessor de filologia apreciou o livro de seu colega de Bonn e disciacutepulo de Ritschl Havia apenas um anoque o jovem filoacutelogo houvera descoberto O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo e acreditava ver a perfeitaqualificaccedilatildeo das ideias de Schopenhauer como herdeiro direto da filosofia kantiana no livro de Lange 67 O percurso investigativo que toma como ponto de partida a estrutura humana de apreensatildeo da realidadetem suas raiacutezes na antiguidade do pensamento No entanto a consideraccedilatildeo da estrutura racional responsaacutevelpela constituiccedilatildeo da realidade em objeto de apreensatildeo mental eacute um traccedilo caracteriacutestico da filosofia modernaque foi legado agrave filosofia posterior na forma do questionamento pelo sujeito do conhecimento Esta estruturapor traacutes da formaccedilatildeo da realidade que foi apresentada por Kant em A Criacutetica da Razatildeo Pura na forma dosujeito transcendental foi nomeada por Lange como nossa organizaccedilatildeo psicofiacutesica estrutura que surge emseu pensamento como um produto ressignificado daquela concepccedilatildeo kantiana Esta concepccedilatildeo que surge naespeculaccedilatildeo langeana acerca dos avanccedilos dos estudos dos oacutergatildeos dos sentidos e da fisiologia que apareceespecialmente no terceiro capiacutetulo do segundo volume de sua Histoacuteria do Materialismo seraacute o modelo dainvestigaccedilatildeo que seraacute assumida na filosofia nietzschiana na forma de uma concepccedilatildeo naturalista genealoacutegicae fenomenoloacutegica da consciecircncia

126

produtos esteacuteticos relacionados agrave criaccedilatildeo de mitos e obras artiacutesticas Eacute difiacutecil natildeo ver nessa

passagem os efeitos da leitura de Nietzsche da obra de Albert Lange o qual via os ideais da

razatildeo como produtos diretos da atividade poeacutetica do intelecto Assim a concepccedilatildeo do

potencial criativo humano e a importacircncia que esse potencial possui na filosofia desses

autores constituiria um traccedilo caracteriacutestico em ambas filosofias assim como um importante

passo na compreensatildeo da relaccedilatildeo desses autores com o idealismo Tal semelhanccedila entre as

reflexotildees desses autores pode ser pensada sem prejuiacutezo algum como uma continuidade de

objetivos entre ambos pensamentos apesar das necessaacuterias diferenccedilas de abordagem

Para Nietzsche em uma cultura em que a arte da dissimulaccedilatildeo natildeo foi sublimada

pela obsessatildeo pela verdade torna-se possiacutevel ao intelecto libertar-se da necessidade de

sobrevivecircncia e atuar segundo a sua inclinaccedilatildeo original ldquoO intelecto esse mestre da

dissimulaccedilatildeo acha-se pois livre e desobrigado de todo seu serviccedilo de escravo sempre que

pode enganar sem causar prejuiacutezo e festeja entatildeo suas Saturnais nunca ele eacute mais

opulento rico orgulhoso versaacutetil e arrojadordquo (WLVM sectI paacuteg 48) Para o intelecto que

liberta-se da necessidade de sobrevivecircncia ldquoEm comparaccedilatildeo com o que fazia antes agora

tudo o que faz traz em si a dissimulaccedilatildeo assim como sua conduta anterior trazia em si a

deformaccedilatildeo Copia a vida humana mas a toma por uma coisa boa e parece estar

plenamente satisfeito com elardquo (WLVM sectI paacuteg 49) Nesse sentido na medida em que o

intelecto liberta-se das amarras da necessidade e da necessidade de prover os elementos

garantidores da coexistecircncia gregaacuteria atua no sentido de uma criaccedilatildeo de sentido individual

da realidade independente da atuaccedilatildeo dos conceitos Com isso antecipa-se na reflexatildeo

nietzschiana uma resposta para o proacuteprio pessimismo inerente a uma consideraccedilatildeo da

realidade segundo os preceitos das ciecircncias

Ao contrapor a atuaccedilatildeo do intelecto segundo a pressatildeo da sobrevivecircncia que

implica na criaccedilatildeo dos conceitos e por fim na criaccedilatildeo da ciecircncia com a atividade do

intelecto em sua liberdade o autor relaciona duas atividades tatildeo distintas quanto a

falsificaccedilatildeo e a dissimulaccedilatildeo Nessa leitura a ciecircncia implicaria em uma falsificaccedilatildeo da

realidade na medida em que cria um mundo que se coloca lado a lado com o mundo mais

originaacuterio das intuiccedilotildees fundamentais que faz passar como mais verdadeiro do que o

mundo que daacute origem agrave realidade dos conceitos cientiacuteficos em uma clara atitude de

falsificaccedilatildeo Por outro lado a atividade dissimuladora do intelecto se caracteriza por um

127

embelezamento da realidade intuitiva originaacuteria o qual natildeo se explica mas se expressa de

acordo com belas imagens de sonhos

Em uma profunda reflexatildeo acerca do potencial criativo do intelecto que se liberta

de suas funccedilotildees habituais Nietzsche defende a opiniatildeo que estas funccedilotildees habituais natildeo satildeo

sua funccedilatildeo primordial posto que estas parecem se opor ao ilimitado potencial criativo do

intelecto Na compreensatildeo do filoacutesofo muito mais afeito a este potencial criativo ilimitado

do intelecto seria o papel fundamental na criaccedilatildeo de sentido a que este se entrega quando

liberto da necessidade de dissimular Ou seja mais do que propiciar a manutenccedilatildeo do

homem por meio de uma crescente falsificaccedilatildeo da realidade segundo as necessidades da

ciecircncia o intelecto teria surgido pela necessidade do homem de sentido

Em comparaccedilatildeo agrave necessidade humana de sentido o proacuteprio palaacutecio da ciecircncia

visto de um ponto de vista teoacuterico como a maior realizaccedilatildeo da humanidade seria apenas

uma ocupaccedilatildeo secundaacuteria do intelecto Assim a este palaacutecio conceitual corresponderia a

negaccedilatildeo da realidade poeacutetica inerente agrave existecircncia humana Mais do que constituir-se no

proacuteprio sentido para o homem o palaacutecio da ciecircncia seria visto como uma prisatildeo

momentacircnea para o intelecto como uma muleta para o homem como uma falsificaccedilatildeo

necessaacuteria agrave sobrevivecircncia e nada mais

Aquele enorme entablamento e andaime de conceitos sobre o qual ohomem necessitado se pendura e se salva ao longo da vida eacute para ointelecto tornado livre apenas um cadafalso e um brinquedo para seusmais audaciosos artifiacutecios (hellip) ele entatildeo revela que natildeo necessitadaqueles expedientes da indigecircncia e que agora natildeo eacute conduzido porconceitos mas por intuiccedilotildees (WLVM sectI paacuteg 49)

Reaparece aqui a ideia comum ao Nascimento da Trageacutedia de que a arte e natildeo a

ciecircncia seria a verdadeira atividade inerente ao potencial criativo humano Ou seja ao

afirmar que na criaccedilatildeo de mitos e produccedilotildees artiacutesticas o intelecto natildeo eacute conduzido por

conceitos mas por intuiccedilotildees e que nisso consistiria sua libertaccedilatildeo Nietzsche reafirma uma

valorizaccedilatildeo da arte comum agravequele periacuteodo de sua produccedilatildeo filosoacutefica Embora natildeo nomeie

os partidos eacute impossiacutevel natildeo relacionar os lados em disputa com os representantes de duas

formas de vida jaacute apresentados em sua obra de estreia o racionalista socraacutetico e o homem

128

traacutegico68 Assim em passagens que parecem retomar o tema fundamental de O Nascimento

da Trageacutedia a contraposiccedilatildeo entre o homem intuitivo grego e o cientista desenganado pela

ciecircncia Nietzsche passa a descrever nas passagens subsequentes do ensaio de que modo a

criaccedilatildeo contiacutenua de ilusotildees favoreceu o homem grego antigo

Analisado a luz das reflexotildees posteriores do filoacutesofo O Nascimento da

Trageacutedia passa a ser interpretado como um experimento em que as oacuteticas da arte e da

ciecircncia satildeo confrontadas com a vida como instacircncia de valoraccedilatildeo suprema Na medida em

que por meio de uma espeacutecie de confronto entre as oacuteticas da arte e da ciecircncia o autor

consegue oferecer um questionamento do valor da ciecircncia antecipa a conclusatildeo de que a

crenccedila no valor inquestionaacutevel da ciecircncia estaria fundamentado em uma compreensatildeo

eminentemente moral da realidade Assim o problema do valor da ciecircncia estaria fundado

em uma interpretaccedilatildeo moral que camufla a necessidade do questionamento verdadeiro o

problema da ciecircncia como valor

A ciecircncia apenas consegue se impor como valor segundo Nietzsche porque nesta

avaliaccedilatildeo parte-se de um princiacutepio moral Do ponto de vista de um princiacutepio vital no

entanto a ciecircncia se mostraria como algo inferior agrave arte Desta maneira antecipando um

tema que seraacute tratado em profundidade em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche

teria compreendido jaacute em O Nascimento da Trageacutedia que a valorizaccedilatildeo da verdade em

detrimento da mentira atende a uma determinaccedilatildeo de ordem moral

Ora se a verdade eacute concebida no Ensaio sobre Verdade e Mentira como uma opccedilatildeo

metafiacutesica que tornou-se objeto de estima isto apenas teria se dado porque a tradiccedilatildeo

metafiacutesica parte de uma avaliaccedilatildeo moral decadente a mesma moral que em sua revisatildeo de

O Nascimento da Trageacutedia eacute associada pelo autor a uma consideraccedilatildeo cristatilde da realidade

A vontade de verdade ou seja o sincero desejo de verdade natildeo se determinaria por uma

melhor apreciaccedilatildeo teoacuterica Menos ainda por uma recusa teoacuterica da ilusatildeo Pelo contraacuterio a

vontade de verdade seria consequecircncia de um apego moral agrave verdade e uma recusa moral

agraves consequecircncias imorais que podem provir da mentira Assim uma dimensatildeo moral que

sustenta a valorizaccedilatildeo da ficccedilatildeo da ciecircncia em detrimento da ficccedilatildeo da arte justamente o

68 Em uma visatildeo retrospectiva de sua obra de estreia tanto em Ecce Homo no primeiro paraacutegrafo da seccedilatildeosobre O Nascimento da Trageacutedia quanto no prefaacutecio tardio para aquela obra escrito em 1886 e publicadojunto agrave traduccedilatildeo em estudo sob o nome de ldquoTentativa de autocriacuteticardquo paraacutegrafo segundo Nietzsche se refereaos grandes temas daquele livro como sendo o confronto entre uma visatildeo de mundo racionalista otimista euma visatildeo de mundo traacutegica dionisiacuteaca que considera o pessimismo da vida como um tocircnico para a vida

129

que vem agrave tona quando a primeira eacute examinada pelo meacutetodo perspectivista do jogo de

oacuteticas69 ensaiado em O Nascimento da Trageacutedia seria a grande redescoberta de Nietzsche

quando reflete retrospectivamente acerca daquela obra

Com base nesta releitura criacutetica da concepccedilatildeo de ciecircncia sustentada em O

Nascimento da Trageacutedia o otimismo teoacuterico passa a ser interpretado como a tentativa de

por meio de uma intenccedilatildeo moral elevar a valoraccedilatildeo inerente a ilusotildees como verdade e

ciecircncia O problema seria que estas mesmas verdade e ciecircncia por si mesmas teriam

pouco valor quando avaliada em relaccedilatildeo a sua adequaccedilatildeo agrave realidade No entanto por meio

de uma associaccedilatildeo com a moral o domiacutenio teoacuterico se sobrepotildee agrave proacutepria natureza como

posiccedilatildeo de maior valor

A segunda parte do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sustentar-se nesta

mesma posiccedilatildeo em que as ilusotildees da ciecircncia satildeo tomadas como tendo sido erigidas como

novos valores em detrimento das ilusotildees da arte Permanece no ensaio a suspeita de que

apenas com base em uma interpretaccedilatildeo moral a ciecircncia poderia ser pensada como superior

agrave arte Consideradas do ponto de vista de seu valor para a vida no entanto com base em

uma esfera de avaliaccedilatildeo diferente da esfera de avaliaccedilatildeo da moral decadente Nietzsche

pensa que os produtos da arte deveriam ser tomados como objetos de maior valor porque

reconhecem-se como produtos de uma atividade criativa mais proacutexima da realidade

individual

Com isso o autor confronta duas formas de vida diametralmente opostas do ponto

de vista da vida e da sobrevivecircncia De um lado o homem da verdade o pesquisador de

outro o homem intuitivo o artista traacutegico Atraveacutes da apresentaccedilatildeo do confronto entre o

homem intuitivo e o homem da verdade o filoacutesofo parece refletir sobre o confronto de

duas eacutepocas diferentes a eacutepoca grega claacutessica e a dele proacuteprio Nesta comparaccedilatildeo a

realidade da Greacutecia do periacuteodo claacutessico aparece como o feliz produto de uma consideraccedilatildeo

artiacutestica da realidade de uma eacutepoca em que o homem se deixava guiar por belas imagens

de uma realidade vista sob a oacutetica da criaccedilatildeo artiacutestica e dos mitos

69 A ideia do jogo de oacuteticas eacute uma contribuiccedilatildeo de Dalla Vechia em sua tese de doutoramento (VECHIA2005 Paacuteg 84)

130

Haacute eacutepocas em que o homem racional e o homem intuitivo colocam-selado a lado um com medo da intuiccedilatildeo outro ridicularizando a abstraccedilatildeoo uacuteltimo eacute tatildeo irracional quanto o primeiro eacute inartiacutestico Ambos contamimperar sobre a vida este sabendo encarar as mais baacutesicas necessidadesmediante precauccedilatildeo sagacidade e regularidade aquele como ldquoheroacuteisobre-exaltadordquo passando ao largo de tais necessidades e tomando porreal somente a vida dissimulada em aparecircncia e beleza Onde o homemintuitivo tal como na antiga Greacutecia alguma vez manipula suas armasmais violentamente e mais vitoriosamente do que seu oponente entatildeosob circunstacircncias favoraacuteveis pode tomar forma uma cultura e fundar-seo domiacutenio da arte sobre a vida aquela dissimulaccedilatildeo aquele repuacutedio agraveindigecircncia aquele brilho das intuiccedilotildees metafoacutericas e em linhas geraisaquela imediatez do engano seguem todas as manifestaccedilotildees de tal vidaNem a casa nem a maneira de andar nem a vestimenta nem a jarra deargila evidenciam que foi a necessidade que os inventou tudo se passacomo se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime eum oliacutempico desanuviamento bem como uma espeacutecie de jogo com aseriedade (WLVM sectI paacutegs 50-51)

Em sua reflexatildeo acerca da Greacutecia claacutessica o autor nos apresenta a opccedilatildeo entre a

dependecircncia do mundo conceitual da verdade e a superabundacircncia de vida advinda da

atividade criativa do intelecto Deste modo esta parte do ensaio corresponde ao confronto

entre duas formas de saberes distintas o conhecimento intuitivo e o conhecimento

racional70 Na leitura nietzschiana do problema do conhecimento considerando-se

especialmente o papel das construccedilotildees poeacuteticas na filosofia e na ciecircncia a forccedila criativa

que origina as metaacuteforas aparece como um elemento ineliminaacutevel da constituiccedilatildeo humana

Esta forccedila criativa atuaria tanto no homem da verdade quanto no poeta e criador de mitos

Aqui nos deparamos com a aridez da ciecircncia diante do potencial criativo inerente ao

indiviacuteduo que toma como suporte as metaacuteforas intuitivas Esta imagem do confronto entre

modos de vida antagocircnicos divididos pela sua postura diante dos produtos do intelecto

fecha o ensaio

70 A distinccedilatildeo nietzschiana entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento racional que encontramosfortemente representado no ensaio parte da distinccedilatildeo schopenhaueriana das duas formas de saberes nointerior do princiacutepium individuationis que satildeo apresentados por Crawford em sua obra sobre as origens dateoria nietzschiana da linguagem no capiacutetulo dois acerca de Schopenhauer ldquoO sujeito ou o principiumindividuationis tinha dois modos de conhecimento o conhecimento da percepccedilatildeo (ou conhecimentointuitivo) e o conhecimento abstrato da percepccedilatildeo ou seja conhecimento racional O que pode existir fora doprincipium individuationis a coisa em si natildeo pode nunca ser conhecida (embora posteriormente em minhadiscussatildeo descobriremos que Schopenhauer afirma identificar a essecircncia da coisa em si mesma sob o nomeda vontade) Dentro das representaccedilotildees o sujeito pode apenas conhecer suas percepccedilotildees e o que eleconceitualiza e pensa acerca destas percepccedilotildees como objetos Assim representaccedilotildees significam maisprecisamente ndash objeto para o sujeito Poreacutem o sujeito ele mesmo eacute tambeacutem necessariamente apenas objetopara sua proacutepria consciecircncia que conhecerdquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 24)

131

Enquanto o homem conduzido por conceitos e abstraccedilotildees apenas rechaccedilapor meio destes a infelicidade sem granjear para si mesmo umafelicidade a partir das abstraccedilotildees enquanto ele se esforccedila ao maacuteximo paralibertar-se da dor o homem intuitivo situado no interior de uma culturajaacute colhe de suas intuiccedilotildees aleacutem da defesa contra tudo que eacute mal umailuminaccedilatildeo contiacutenua e caudalosa juacutebilo redenccedilatildeo Por certo sofre commais intensidade quando sofre sim sofre ateacute com mais assiduidadeporque natildeo sabe aprender a partir da experiecircncia voltando a cair sempreno mesmo buraco em que jaacute havia caiacutedo Ele eacute assim tatildeo irracional nosofrimento quanto na felicidade grita alto e natildeo dispotildees de qualquerconsolo Quatildeo diferentemente ali se coloca sob o mesmo reveacutes o homemestoico versado na experiecircncia que se governa atraveacutes de conceitos Eleque de mais a mais soacute busca probidade verdade liberdade frente aosenganos e proteccedilatildeo contra as incursotildees ardilosas executa agora nainfelicidade a obra-prima da dissimulaccedilatildeo tal como aquele na felicidadenatildeo carrega um rosto humano trecircmulo e movente mas uma espeacutecie demaacutescara com digna simetria de traccedilos natildeo grita e tampouco muda suavoz uma vez sequer Se uma vultosa nuvem de chuva desaacutegua sobre eleenrola-se em seu manto e passo a passo caminha lentamente paradebaixo dela (WLVM sectI paacutegs 51-52)

Se levarmos a seacuterio a hipoacutetese de que Nietzsche se utiliza dessa imagem para

expressar uma reflexatildeo acerca de sua eacutepoca percebe-se que esta aparece como sendo

marcada pelo cientificismo e pessimismo inerentes agrave concepccedilatildeo cientiacutefica da realidade O

que ocorre agora quando confrontados o homem das intuiccedilotildees e homem da verdade o

homem racional O homem de ciecircncia aparece como uma forma mais dependente das

construccedilotildees conceituais do que o homem comum na medida em que os conceitos satildeo sua

proacutepria vida Para o homem da verdade a construccedilatildeo do edifiacutecio da ciecircncia eacute sua missatildeo

no mundo Missatildeo aacuterdua sem duacutevida na medida em que ele eacute constantemente assaltado

por ldquoverdadesrdquo muito dispares das verdades cientiacuteficas lhe satildeo inspiradas pela mesma

natureza a que deve toda sua construccedilatildeo teoacuterica

Ao contraacuterio do homem comum que utiliza-se dos conceitos de uma forma

pragmaacutetica como ferramentas para ancoraacute-lo na existecircncia coletiva o homem que se

compraz nas metaacuteforas intuitivas utiliza-se do intelecto com mais liberdade O intelecto

nesses casos atuaria como um artista que em curtos intervalos de liberdade goza seus

dotes artiacutesticos com mais prazer possibilitando a fruiccedilatildeo de se deixar enredar pelas ilusotildees

sempre que estas dissimulaccedilotildees da realidade podem ser desfrutadas sem prejuiacutezo agrave

sociabilidade Nestes casos nessa atividade livre do homem que se deixa levar por sua

natureza poeacutetica natildeo haacute restriccedilotildees para a forccedila criativa do intelecto O uso que faz das

132

mesmas metaacuteforas e metoniacutemias que possibilitam a ciecircncia eacute mais rico porque natildeo eacute

regulado por nenhuma necessidade de sobrevivecircncia da qual liberta-se o intelecto nessa

atividade

Em oposiccedilatildeo agrave atividade segundo a qual o intelecto criava as ilusotildees necessaacuterias agrave

sociabilidade condicionado pela pressatildeo da sobrevivecircncia sob as quais o homem atuava no

sentido de deturpar a realidade ou seja deformaacute-la e moldaacute-la para seu benefiacutecio agora

ele a dissimula a embeleza de maneira conscientemente mentirosa A distinccedilatildeo entre

deturpaccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo aqui eacute assinalada pelo fato de que a consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto difere fundamentalmente de uma consideraccedilatildeo dos produtos do

intelecto que natildeo os compreende como ilusotildees No caso em que o homem intuitivo

reconhece suas criaccedilotildees como algo falso natildeo se trata de mentira como falsificaccedilatildeo mas

como adereccedilo como dissimulaccedilatildeo portanto Assim para o autor do ensaio a mentira da

arte e do mito se diferenciariam da mentira da ciecircncia pela consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto em contraposiccedilatildeo agrave aridez da ciecircncia que toma suas construccedilotildees

como estando relacionadas agrave verdade

O homem da ciecircncia assim confronta uma posiccedilatildeo delicada Na medida em que

mesmo quando as verdades poeacuteticas e mitoloacutegicas confrontam seu conhecimento da

realidade conceitual natildeo poderia renunciar a esta natureza criativa Pois a renuacutencia desta

forccedila plasmadora de metaacuteforas invalidaria o proacuteprio palaacutecio de conceitos que tambeacutem

deve sua existecircncia a ela Assim ele eacute forccedilado a contemplar as verdades criadas como

formas de dissimulaccedilatildeo do real verdades cuja similaridade com as verdades cientiacuteficas

recusa-se a ver pois natildeo pode identificar o aspecto conscientemente enganoso nas

verdades cientiacuteficas Assim acometido por esta influecircncia de seu potencial criativo o

homem da verdade resistiria a tomar a ciecircncia tambeacutem como mito e criaccedilatildeo artiacutestica sem

no entanto conseguir diferenciaacute-las de maneira definitiva Mais fortemente entatildeo este se

apegaria ao mito da ciecircncia

133

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor

O niilismo aparece apenas de forma fugidia entre os fragmentos poacutestumos do

periacuteodo intermediaacuterio da filosofia nietzschiana71 O proacuteprio Nietzsche demonstrou ter

consciecircncia do quatildeo tarde esta concepccedilatildeo problemaacutetica se torna presente em seu

pensamento quando afirma em um fragmento poacutestumo pertencente ao seu uacuteltimo periacuteodo

de produccedilatildeo ldquoSomente tarde tem-se coragem para aquilo que realmente se sabe Entendi

somente haacute pouco que eu fui desde o fundo ateacute aqui niilistardquo (KSA XII 9[123]) Ainda no

mesmo fragmento o filoacutesofo aponta para uma interpretaccedilatildeo de sua compreensatildeo do

niilismo como um pensamento da perda de valor dos valores fundamentais motivo porque

identifica sua proacutepria reflexatildeo como indiacutecio de um pensamento que carecia de metas falta

que foi disfarccedilada pela incriacutevel energia com que teria se dedicado a atingir aquilo que

enxergava como metas

A precariedade de fontes textuais na obra publicada de certa forma constitui uma

limitaccedilatildeo da compreensatildeo de um conceito tatildeo importante cuja interpretaccedilatildeo permanece

sempre como um fragmento do que tal concepccedilatildeo poderia ter significado uma perspectiva

limitada diante das possibilidades a que seu criador poderia tecirc-lo elevado Tamanha a

escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada que acreditamos o que se encontra

entre estas natildeo permitiria uma caracterizaccedilatildeo adequada desta concepccedilatildeo nietzschiana

Ainda mais grande parte do significado do niilismo nietzschiano estaacute ligado agrave dificuldade

71 A primeira apariccedilatildeo registrada do termo ldquoNiilismordquo ocorre em uma correspondecircncia do filoacutesofo de 1881com Heinrich Koumlsenlitz na qual o filoacutesofo escreve ldquoIch bedarf aller Arten Gesundheit mdash es ist mir etwas zutief inrsquos Herz gegangen dieser bdquoherzbrecherische Nihilismusldquo Nun bleiben wir tapfer Treugesinnt F Nldquo Acredibilidade desta carta no entanto eacute questionaacutevel uma vez que teria sido alterada em 1888 Um ensaiopreacutevio de um aforismo que mais tarde seria trabalhado pelo autor aparece em 1882 no qual estaacute registradobdquoDie Freunde des Lebens Nihilismus als kleines Vorspiel Unmoumlglichkeit der Philosophie Wie derBuddhismus unproduktiv und gut macht so wird auch Europa unter seinem Einfluszlig muumlde Die Guten dasist die Ermuumldungldquo (NF FP 1882 2 [4]) Este registro eacute importante porque nele apesar de sua brevidade jaacutese percebem elementos que mais tarde o filoacutesofo relacionaraacute adequadamente com o niilismo Outro registrodo termo naquele ano eacute feito em bdquoAlle Art von wahnsinniger Entartung houmlherer Naturen (zB Nihilismus)kommt an ihn heran Zarathustra 2 mdash bdquodie Lehre der ewigen Wiederkehrldquo mdash zunaumlchst zerdruumlckend fuumlr dieEdleren scheinbar das Mittel sie auszurotten mdash denn die geringeren weniger empfindlichen Naturenbleiben uumlbrigldquo (NF FP 1884 27 [23]) A partir de 1885 o termo torna-se bastante frequente e jaacute seexpressa com alguma clareza em sua determinaccedilatildeo conceitual

134

encontrada pelo filoacutesofo em abordar este tema Ou seja a proacutepria relutacircncia nietzschiana

em abordar tema tatildeo profundo eacute um sinal de que o autor natildeo encontrou em seu periacuteodo

produtivo meio de expressatildeo adequado para tatildeo grande concepccedilatildeo72

Ao julgar como vaacutelido para a discussatildeo do pensamento nietzschiano apenas o que o

filoacutesofo publicou ou seja o que seria representativo de seu pensamento concreto amputa-

se a dificuldade inerente agrave complexidade e variedade de significados de seus escritos

deixa-se de lado o fato de que o proacuteprio Nietzsche parece natildeo ter encontrado uma forma

adequada de tratar alguns dos temas que aborda Assim a proacutepria tentativa de abordar o

niilismo apenas com base nestas raras passagens constituiria uma deturpaccedilatildeo de seu

sentido

Apesar da vaga referecircncia ao niilismo na obra publicada natildeo permitir uma

caracterizaccedilatildeo adequada deste conceito esta referecircncia nos potildee em contato com uma

concepccedilatildeo que julgamos fundamental para a interpretaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo de

conhecimento pelos motivos que seratildeo apresentados nesse capiacutetulo Entatildeo como

proceder Ora se a ausecircncia de referecircncias na obra publicada nesse como em outros temas

da filosofia nietzschiana apresenta-se como limite interpretativo entatildeo concepccedilotildees

fundamentais de seu periacuteodo maduro se perderiam posto que este periacuteodo eacute interrompido

sem aviso preacutevio pela doenccedila de Nietzsche Assim percebemos que tal ausecircncia de

referecircncias pode e deve ser remediada pelo uso dos escritos poacutestumos do filoacutesofo

72 Acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte de sua obra fundamental que natildeo pode vir a lume por contade seu colapso mental ao niilismo Temos notiacutecia dessa obra fundamental em Genealogia da Moral ldquoBastaBasta Deixemos essas curiosidades e complexidades do espiacuterito moderno nas quais haacute tanto para rir quantopara aborrecer-se pois nosso problema o problema da significaccedilatildeo do ideal asceacutetico pode dispensaacute-las ndashque tem ele a ver com o hoje e o ontem Tais coisas seratildeo por mim tratadas em outro contexto com maiorprofundidade e severidade (sob o tiacutetulo de lsquoHistoacuteria do Niilismo europeursquo numa obra que estou preparandoA vontade de poder Ensaio de transvaloraccedilatildeo de todos os valores)rdquo (GMGM III sect27) Como se vecircNietzsche anuncia a pretensatildeo de tratar do tema do niilismo em uma obra futura que foi abandonada emmeio a sua preparaccedilatildeo Apoacutes o abandono desse projeto monumental o filoacutesofo decidiu aproveitar suas notasna composiccedilatildeo de um projeto mais modesto um livro possivelmente intitulado Versuch einer Umwertungaller Werte (Tentativa de Transvaloraccedilatildeo de todos os Valores) tiacutetulo que encontra-se as vezes na posiccedilatildeoprincipal as vezes como subtiacutetulo em diversos rascunhos Esta obra seria composta de quatro livros cadaqual contendo quatro ensaios dos quais apenas O Anticristo veio a ser escrito acompanhado do prefaacutecio Noentanto em um dos primeiros esforccedilos de popularizar a obra nietzschiana Elisabeth Foster-Nietzsche a irmatildedo filoacutesofo solicitou a Peter Gast uma organizaccedilatildeo dos fragmentos dos projetos abandonados que forampublicados sob o tiacutetulo de Der Wille zur Macht Estes fragmentos passaram por vaacuterias ediccedilotildees sempre comprofundos questionamentos acerca da autenticidade das notas da ordem em que foram postos assim como deseu papel no interior da obra nietzschiana Estes questionamentos vem dividindo os comentadores da obranietzschiana desde a publicaccedilatildeo destes textos

135

Por outro lado interpretar o niilismo sem considerar o fato de que aqui estamos

diante de uma hipoacutetese natildeo desenvolvida em sua integridade nos faria perder de vista a

complexidade desta concepccedilatildeo Concepccedilatildeo para a qual como afirmamos o proacuteprio

Nietzsche natildeo julgou encontrar uma forma adequada ou definitiva de abordagem Assim

devemos partir do pressuposto de que dizer o que Nietzsche pretendia expressar quando se

referia ao niilismo significa muitas vezes apenas isso interpretar o que ele poderia querer

dizer mas natildeo disse Nesse sentido o que aqui se pretende como uma correta compreensatildeo

desse importante conceito ao qual acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte daquela

que considerou sua obra fundamental73 depende fortemente da interpretaccedilatildeo de seus

fragmentos poacutestumos

Acreditamos que este uso quando pautado por uma reflexatildeo criacutetica acerca da

limitaccedilatildeo de tais textos oferece uma leitura mais aproximada do pensamento nietzschiano

do que a mera exclusatildeo do tema por falta de referecircncias poderia oferecer Esta reflexatildeo

criacutetica por sua vez deve pautar-se pela consciecircncia de que apesar de nos propormos a

amenizar a escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada recorrendo aos

fragmentos poacutestumos estamos cientes de que aqui se trata de uma concepccedilatildeo inacabada

que eacute apresentada atraveacutes de textos que o autor natildeo julgou prontos para a publicaccedilatildeo

Mas por que nos debruccedilarmos sobre o niilismo quando o objeto de nosso estudo eacute

o perspectivismo nietzschiano Acreditamos que uma tentativa de interpretaccedilatildeo do niilismo

nietzschiano apesar de natildeo poder reclamar para si o status de interpretaccedilatildeo correta

sobretudo por conta da multiplicidade de sentidos possiacuteveis para o termo niilismo na obra

nietzschiana tem uma vantagem fundamental em nossa leitura A proacutepria incerteza acerca

desse tema se mostra como objeto de experimentaccedilatildeo por meio da qual seria possiacutevel ler

os escritos nietzschianos como a manifestaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo afirmativa do niilismo

que por sua vez se relacionaria com uma concepccedilatildeo afirmativa do perspectivismo No

73 Obra que como foi mencionado na nota anterior natildeo pode vir a lume por conta de seu colapso doadoecimento de Nietzsche Poreacutem entre os poacutestumos de 1888 constam diversos planos para A vontade dePotecircncia tentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valores que preenchem diversas anotaccedilotildees de Nietzsche eque levam o niilismo seriamente em consideraccedilatildeo notadamente em (NFFP 1887 9[127]) e (NFFP 1885-1887 9[164]) Em (NFFP 1887 9[127]) Nietzsche faz constar a seguinte ordem de capiacutetulos em um esboccedilopara a obra em questatildeo O advento do niilismo que se dividiria em A loacutegica do niilismo A autosuperaccedilatildeo doniilismo e Superadores e Superados No segundo fragmento mencionado sob o tiacutetulo A vontade de poder esubtiacutetulo Tentativa de uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Nietzsche faz constar uma ordem de livrossendo o primeiro intitulado O niilismo como consequecircncia dos valores supremos existentes ateacute agora osegundo intitulado Criacutetica dos valores supremos existentes ateacute agora o terceiro A autosuperaccedilatildeo do niilismo eo quarto Os superadores e os superados

136

mais se reconhecemos no tratamento nietzschiano de temas como a verdade e o

conhecimento a permanecircncia de um questionamento acerca do valor destas concepccedilotildees

natural que nos questionemos acerca das consequecircncias teoacutericas da perda de valor destas

segundo a loacutegica proacutepria do niilismo descrita por Nietzsche

Na uacuteltima fase de seu pensamento Nietzsche entende os valores morais associados

a uma concepccedilatildeo moral de ciecircncia e conhecimento como valores de decadecircncia Segundo

esta compreensatildeo o filoacutesofo passa a interpretar os valores morais como formas negativas

em relaccedilatildeo agrave vida Este julgamento do valor negativo destas concepccedilotildees em relaccedilatildeo agrave vida

se daacute no contexto de uma interpretaccedilatildeo em que a vida mesma eacute percebida como uacuteltima

forma de se instituir valores

A reflexatildeo nietzschiana neste ponto se volta contra tudo o que a tradiccedilatildeo entenderia

como sendo o homem e sua missatildeo sua finalidade Aqui a racionalidade associada pelo

autor agraves condiccedilotildees de formaccedilatildeo e ascensatildeo dos valores da deacutecadence74 eacute posta em cheque

pela consideraccedilatildeo do homem como ser de criaccedilatildeo Para o filoacutesofo se o conhecimento ainda

se reconhece como atividade que define o humano conhecer natildeo eacute mais entendido como a

procura por explicaccedilotildees mas como o processo de criaccedilatildeo de valor Estes valores criados

pelo homem em sua atividade interpretativa seriam os fundamentos natildeo apenas do

conhecimento mas na medida em que constituem para o homem sua realidade do proacuteprio

homem Neste contexto aparecem as tentativas nietzschianas de vincular ao conhecimento

agrave ousadia da criaccedilatildeo agrave coragem de empreender experimentos com o pensamento com o

proacuteprio niilismo arriscando tentativas de superaccedilatildeo de toda negatividade

Mediante esta interpretaccedilatildeo nos deparamos com uma leitura do perspectivismo

nietzschiano em que este deixa de ser interpretado como concepccedilatildeo puramente criacutetica

tornando-se uma concepccedilatildeo criativa Ou seja enquanto expressatildeo afirmativa que surge de

uma profunda criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento o perspectivismo

nietzschiano relaciona-se com uma forma afirmativa de niilismo tornando-se tambeacutem uma

forma afirmativa de perspectivismo

74 Em um fragmento poacutestumo da primavera de 1888 Nietzsche diraacute ldquoO niilismo natildeo eacute causa mas apenas aloacutegica da deacutecadencerdquo (NFFP XII 14 [86])

137

31 O niilismo como reflexo da crise dos valores morais

Tratar do tema do niilismo nietzschiano implica em reconhecer como uma

dificuldade inicial o fato desta concepccedilatildeo pertencer de forma necessaacuteria aos planos

filosoacuteficos interrompidos por Nietzsche De partida eacute necessaacuterio reconhecer que com base

na escassa base textual disponiacutevel natildeo se pode pretender afirmar categoricamente o que o

autor pretendia dizer quando utilizava a expressatildeo niilismo75 Se a escassez de referecircncias

na obra publicada do autor pode lanccedilar duacutevidas acerca da importacircncia desta concepccedilatildeo

para a compreensatildeo do pensamento nietzschiano esta duacutevida eacute amenizada pelo rico

material produzido pelos comentaacuterios da obra nietzschiana76 Do mesmo modo o peso que

o autor atribui ao conceito em questatildeo quando a ele se refere em sua obra parece constituir

evidecircncia da grande importacircncia dessa concepccedilatildeo

As vagas apariccedilotildees do niilismo mesmo nos escritos poacutestumos refletem uma ideia

que retorna com frequecircncia na mente do filoacutesofo mas para a qual este natildeo parece encontrar

um modo de expressatildeo que decirc conta de sua grandeza Entre estes escritos essa apariccedilatildeo se

daacute com frequecircncia na forma de uma previsatildeo o anuacutencio de um grande perigo para a

humanidade Ao niilismo estaria vinculado um processo de aprofundamento para a

humanidade uma linha que apoacutes cruzada mudaria completamente a realidade e o proacuteprio

ser humano Assim por exemplo o niilismo aparece em um fragmento de marccedilo de 1887

carregado de fatalidade e de prenuacutencio de cataacutestrofe

Grandes coisas exigem que delas nos calemos ou que delas falemos comgrandeza grandeza a saber cinicamente e com inocecircncia O que eunarro eacute a histoacuteria dos dois proacuteximos seacuteculos Descrevo o que vem o que

75 A compreensatildeo nietzschiana do niilismo eacute profundamente marcada pela literatura russa de onde a maioriados comentaristas acredita que o autor teria entrado em contato com o termo Sabe-se que Dostoieacutevski foium autor importante para Nietzsche Um bdquoPsychologeldquo segundo a expressatildeo do fiacuteloacutesofo (GDCI I sect46) aquem Nietzsche leu e costumava recomendar a leitura (Vide correspondecircncia do filoacutesofo notadamenteBVN-1887798 BVN-1887800 BVN-1887812 BVN-1887814 BVN-1887845 BVN-18881130 BVN-18881134 BVN-18881151 BVN-18881160 Ver tambeacutem (WA CW Epilog) (AC AC I sect31)) Noentanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que o utiliza para caracterizar um de seuspersonagens em seu romance Pais e Filhos 76 De acordo com Kaulbach Nietzsche foi o responsaacutevel por abrir os olhos de sua geraccedilatildeo (e das vindouras)para a experiecircncia limite que atravessa o homem moderno ndash o niilismo ldquoEsta experiecircncia consiste nadesilusatildeo da feacute do povo na tradiccedilatildeo platocircnico-cristatilde de um lsquomundo realrsquo na razatildeo do Ser fundada no Sercujo sentido pode ser descoberto pelo homem []rdquo (KAULBACH 1990 p 210)

138

natildeo poderaacute deixar de vir o advento do niilismo Esta histoacuteria jaacute pode sercontada pois eacute a necessidade mesma que estaacute aqui em obra Este futurofala jaacute atraveacutes de cem signos este destino anuncia-se em toda parte paraesta muacutesica do futuro todos os ouvidos jaacute estatildeo atentos (NFFP 188711[411])

Como se vecirc no fragmento em questatildeo Nietzsche considera a aproximaccedilatildeo do

niilismo mais profundo como uma certeza como algo que se anuncia jaacute por meio de ldquocem

signosrdquo Embora seja apresentado como risco a este natildeo eacute vinculada nenhuma forma de

resistecircncia nenhuma possibilidade de evitaacute-lo posto que em seu progresso seria a proacutepria

necessidade quem opera O mesmo tom premonitoacuterio o anuacutencio da aproximaccedilatildeo de uma

grande crise aparece por vezes na obra publicada No proacutelogo de A Genealogia da Moral

por exemplo o filoacutesofo pensa o niilismo como uma ameaccedila iminente como o grande

perigo que se acerca da humanidade

Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim umadesconfianccedila cada vez mais radical um ceticismo cada vez maisprofundo Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para ahumanidade sua mais sublime seduccedilatildeo e tentaccedilatildeo ndash a quecirc ao nada ndash precisamente nisso enxerguei o comeccedilo do fim o ponto morto o cansaccediloque olha para traacutes a vontade que se volta contra a vida a uacuteltima doenccedilaanunciando-se terna e melancoacutelica eu compreendi a moral da compaixatildeocada vez mais se alastrando capturando e tornando doentes ateacute mesmo osfiloacutesofos como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietantecultura europeia como o seu caminho sinuoso em direccedilatildeo a um novobudismo a um budismo europeu a um ndash niilismohellip (GMGM proacutelogosect05)

Como uma forma europeia de budismo o que aqui significa como uma forma

europeizada de negaccedilatildeo da realidade o niilismo se expressaria como a manifestaccedilatildeo de um

profundo cansaccedilo contra o qual Nietzsche se opunha quase que de forma instintiva Do

mesmo modo o filoacutesofo via como avanccedilo da ameaccedila niilista a expansatildeo da moral da

compaixatildeo que alcanccedilava ldquoateacute mesmo os filoacutesofosrdquo como o grande sintoma que apenas

ele pensava haver identificado77 Natildeo haacute duacutevidas de que aqui o filoacutesofo identifica no

77 Nietzsche pensa a moral da compaixatildeo como uma novidade no acircmbito da moral que para o autor semprehavia sido estabelecida com base na negaccedilatildeo dos valores que tornam uma forma de vida possiacutevel quepossibilitam seu crescimento e expansatildeo Assim na continuaccedilatildeo da passagem citada Nietzsche identifica emoutros filoacutesofos uma certa desconfianccedila com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo como virtude ldquoPois essa modernapreferecircncia e superestimaccedilatildeo da compaixatildeo por parte dos filoacutesofos eacute algo novo justamente sobre o natildeo-valor

139

niilismo o grande adversaacuterio de sua filosofia assim como o fundamento da sua criacutetica agraves

concepccedilotildees filosoacuteficas que lhe cercam

Este posicionamento teoacuterico manifesto na maioria dos casos na forma de criacutetica agraves

concepccedilotildees estabelecidas foi entendido desde entatildeo como um ceticismo crescente que

foi posteriormente associado de forma definitiva com seu perspectivismo No entanto o

aparente ceticismo por traacutes de seu posicionamento seria apenas a manifestaccedilatildeo de um

criticismo crescente em relaccedilatildeo aos valores que fundamentam as ciecircncias e posiccedilotildees

filosoacuteficas dogmaacuteticas Natildeo seria esse ceticismo a renuacutencia em descobrir novas verdades o

que seria contraacuterio agrave concepccedilatildeo mesma de conhecimento em Nietzsche mas a perda de

crenccedila nas concepccedilotildees filosoacuteficas O ceticismo eacute usado aqui como manifestaccedilatildeo

fundamental de repuacutedio a tudo que era tido haacute eacutepoca de Nietzsche como ciecircncia e como

sabedoria Natildeo agrave sabedoria e a ciecircncia elas mesmas no entanto

O ceticismo de suas concepccedilotildees de juventude nos diz Nietzsche no comeccedilo do

proacutelogo teria crescido em oposiccedilatildeo a ldquoos instintos de compaixatildeo abnegaccedilatildeo sacrifiacuteciordquo os

quais o filoacutesofo entende que Schopenhauer teria idolatrado acima de todas as coisas

ldquodourado divinizado idealizadordquo (GMGM proacutelogo sect5) Assim o aparente ceticismo da

posiccedilatildeo nietzschiana natildeo se poderia confundir com uma renuacutencia com relaccedilatildeo a toda forma

de verdade Mas apenas como uma suspeita que se estende a todas as avaliaccedilotildees morais

esteacuteticas e filosoacuteficas de sua eacutepoca tomadas em sua leitura como expressotildees do niilismo

O primeiro valor que se torna objeto de criacutetica aqui a compaixatildeo aparece como

elemento constitutivo de uma moral que seduz para o nada e que eacute reproduzida pela

filosofia como expressatildeo de uma moralidade superior Ao identificar o niilismo como uma

tendecircncia para desvalorizar valores essa concepccedilatildeo desempenha um papel fundamental na

criacutetica nietzschiana da moralidade Criacutetica segundo a qual o niilismo que aparece para o

autor da genealogia como uma forma europeia de budismo eacute interpretada como uma

tendecircncia agrave supervalorizaccedilatildeo do nada camuflada na forma de uma adoraccedilatildeo da apoacutes a

morte

da compaixatildeo os filoacutesofos estavam ateacute agora de acordo Menciono apenas Platatildeo Spinoza La Rochefoucaulde Kant quatro espiacuteritos tatildeo diversos quanto possiacutevel um do outro mas unacircnimes em um ponto na poucaestima da compaixatildeordquo (GMGM proacutelogo sect05)

140

Por sua vez ao relacionarmos o que eacute dito aqui com o que o filoacutesofo apresenta em

seu Anticristo percebe-se uma certa continuidade Neste sentido a compaixatildeo aparece

naquela obra como princiacutepio moral que se propaga a outras esferas da atividade humana A

compaixatildeo teria se tornado assim elemento fundamental para a criacutetica dos valores morais

cristatildeos na medida em que ela eacute percebida como algo que expande sua zona de alcance a

todas as concepccedilotildees teoacutericas que se deixaram infectar pelo instinto teoloacutegico Motivo pelo

qual em O Anticristo Nietzsche afirma enxergar o instinto teoloacutegico em toda parte

(ACAC I sect09)

Por outro lado na medida em que a verdade aparece em sua leitura como um valor

fundado em uma concepccedilatildeo moral desde que a veracidade aparece aqui como

reverberaccedilatildeo da moralidade como expressatildeo mesma do desenvolvimento de uma forma de

moralidade as questotildees referentes agrave sua compreensatildeo da verdade e do conhecimento

comeccedilam a se relacionar com a dinacircmica proacutepria do niilismo Nessa leitura a veracidade a

exigecircncia da vontade de verdade que aparece aqui como consequecircncia da moralidade

ocasiona que a proacutepria interpretaccedilatildeo moral do mundo passa a ser vista como falsa ou seja

que os valores que suportam essa interpretaccedilatildeo perdem seus valores Como diz Araldi

Nietzsche afirma num fragmento do outono de 1887 que aldquoPotencializaccedilatildeo do valor do homemrdquo foi ateacute entatildeo obra dos meiosdisciplinadores da moral Entretanto entre as forccedilas engendradas pelamoral estaacute a veracidade que por fim descobre a falsidade subjacente agraveinterpretaccedilatildeo moral do mundo Eacute a proacutepria moral em suas raiacutezes imoraise natildeo-verdadeiras que deve desvendar a inverdade do processo O valorda moral poreacutem natildeo estaacute em seu grau de veracidade mas em possibilitara vida em ser antiacutedoto ao niilismo (Cf XII 5 [70]) (ARALDI 1998Paacutegs 78)

Ao pensar o valor da moral como sendo fundamentando na categoria de veracidade

o filoacutesofo abre a possibilidade de se pensar a necessidade de superaccedilatildeo do niilismo a partir

de seus valores como exigecircncia para a proposiccedilatildeo de uma nova forma de valoraccedilatildeo Nesse

processo a consciecircncia da falta de sentido no mundo da verdade na verdade mesma

desempenha papel fundamental Por isso entendemos que o niilismo nietzschiano

relaciona-se com o seu perspectivismo que tem na falta de sentido por traacutes da criaccedilatildeo de

um mundo da verdade assim como da distinccedilatildeo deste de um mundo das aparecircncias um

141

aspecto fundamental Do mesmo modo a identificaccedilatildeo dessa tendecircncia como aquilo que

alimentava sua duacutevida seu ceticismo indica que sua proacutepria concepccedilatildeo negativa em

relaccedilatildeo agrave verdade natildeo eacute isenta de um reconhecimento do niilismo como adversaacuterio

32 Os niilismos nietzschianos

Em uma das primeiras apariccedilotildees do termo entre os escritos poacutestumos nietzschianos

Nietzsche jaacute esboccedila uma reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da evoluccedilatildeo de uma

tendecircncia segundo a qual o niilismo eacute concebido ldquocomo um pequeno preluacutediordquo (NFFP

1882 2 [4]) que ldquoComo o budismo torna improdutivo e bomrdquo e que ldquoa Europa tambeacutem

estaacute sob sua influecircncia cansadardquo (NFFP 1882 2[4]) Em sua leitura o niilismo seria natildeo

um caso de exceccedilatildeo mas ldquoum estado normalrdquo (NFFP 1887 9[35]) um ldquoestado

intermediaacuterio patoloacutegicordquo (NFFP 1887 9 [35]) ou seja uma etapa decrescente de forccedila

no desenvolvimento da cultura de um povo na medida em que se generaliza a conclusatildeo

de que ldquonatildeo haacute nenhum sentido absolutordquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoas forccedilas

produtivas natildeo satildeo ainda suficientemente fortesrdquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoa

deacutecadenceacute ainda vacila e natildeo foi inventado ainda seus remeacutediosrdquo (NFFP 1887 9 [35])

Como a consciecircncia de uma ldquofalta de metardquo (NFFP 1887 9 [35]) como a

ausecircncia de resposta para a pergunta pelo ldquopor quecircrdquo o niilismo representa para o filoacutesofo

que ldquoos valores supremos se desvalorizamrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o que para Nietzsche

torna o niilismo algo ambiacuteguo (NFFP 1887 9 [35]) na medida em que a consciecircncia da

desvalorizaccedilatildeo dos valores supremos poderia implicar em duas atitudes uma permanecircncia

nos valores dados apesar da consciecircncia de sua falta de sentido ou a criaccedilatildeo de novos

valores Estas duas atitudes por sua vez enquanto condicionadas pela forccedila ou cansaccedilo do

niilista que se depara com os valores dados seriam aspectos fundamentais de duas formas

de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo Poreacutem mais do que duas formas

desconectadas de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo significariam dois estaacutegios

na dinacircmica proacutepria do niilismo que vai de seu surgimento a sua radicalizaccedilatildeo78 Posto

78 Araldi pensa os diferentes modos de apresentaccedilatildeo do niilismo na obra tardia o niilismo passivo oniilismo ativo e o niilismo completo como representaccedilotildees de diferentes momentos no processo dedesenvolvimento do niilismo Assim o comentador afirma ldquoEacute importante ressaltar entatildeo que o foco centraldas diversas caracterizaccedilotildees elaboradas na obra tardia estaacute no caraacuteter de processo do niilismo o qual

142

que para Nietzsche as diversas formas que o niilismo assume em sua obra mais do que

uma apresentaccedilatildeo de suas variaccedilotildees cumpririam a funccedilatildeo de determinar uma loacutegica de

superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo

Assim o filoacutesofo representa a possibilidade do niilismo se apresentar como ldquosigno

do poder ascendente do espiacuteritordquo o que nesta leitura significa que a atitude diante dos

valores poderia condicionar um niilismo ativo (NFFP 1887 9 [35]) Dessa forma ao

passo que ldquoa forccedila do espiacuterito poderia ter crescido tanto que as metas que tinha ateacute o

momento (lsquoconvicccedilotildeesrsquo artigos de feacute) lhe satildeo inadequadasrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o

niilismo pode tornar-se o primeiro estaacutegio na produccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do que eacute dado como insuficiente

Nesse sentido para Nietzsche mais do que uma convicccedilatildeo motivada por um

conhecimento superior ldquouma crenccedila de fato expressa em geral a coerccedilatildeo de condiccedilotildees de

existecircncia uma submissatildeo agrave autoridade de situaccedilotildees em que um ser prospera cresce

ganha poderrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o niilismo ativo representaria uma consciecircncia

ascendente do oder que rejeita o que eacute dado como sendo insuficiente Ou seja o autor

entende que todo ser prospera cresce e ganha poder de acordo com as condiccedilotildees que lhe

satildeo dadas e aceitas como crenccedilas Por sua vez a consciecircncia da vacuidade de sentido

dessas crenccedilas seria o niilismo mas a atividade de criaccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia dessa vacuidade de sentido seria o que determinaria uma forma ativa de

niilismo

Por sua vez o niilismo passivo o estaacutegio oposto ao niilismo ativo eacute caracterizado

por Nietzsche como ldquodecreacutescimo e retrocesso do poder do espiacuteritordquo como signo de

debilidade como sinal de esgotamento e cansaccedilo da vontade De tal forma que modo que

ldquoas metas e os valores existentes ateacute o momento satildeo inadequados e natildeo encontram creacuteditordquo

(NFFP 1887 9 [35]) Nesse sentido como sintoma de enfraquecimento da vontade e

cansaccedilo que impede a criaccedilatildeo de novos valores o niilismo passivo seria ainda signo de

ldquodissolvecircncia da proacutepria siacutentese entre valores e metasrdquo sobre as quais descansa toda cultura

forte (NFFP 1887 9 [35]) Nesse estado de cansaccedilo e perda de vivacidade da cultura

tudo o que eacute reconfortante tudo que anestesia passa para primeiro plano torna-se em

comporta uma gecircnese um transcurso e um acabamentordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 84)

143

valor por sob diferentes disfarces tratem-se de disfarces morais religiosos poliacuteticos ou

esteacuteticos

O niilismo passivo seria marcado como ldquoum signo de uma forccedila insuficiente para

apresentar-se novamente de um modo produtivo uma meta um lsquoporquecircrsquo uma crenccedilardquo

(NFFP 1887 9 [35]) Este seria tambeacutem visto pelo filoacutesofo como um ldquoniilismo cansado

que jaacute natildeo atacardquo (NFFP 1887 9 [35]) e cuja forma mais famosa e uma das mais

presentes em seus comentaacuterios do niilismo passivo seria o budism79 De fato tanto o

budismo quanto o cristianismo aparecem na obra nietzschiana como expressotildees de uma

vontade cansada portanto como manifestaccedilotildees de uma forma negativa de niilismo

A diferenccedila aqui seria de grau desde que o cristianismo ao rejeitar o valor da vida

em sua corporeidade coloca o valor da vida em um aleacutem Por meio desta transposiccedilatildeo do

valor do terreno da vida e sua corporeidade para o terreno de uma existecircncia ideal o

cristianismo operaria uma espeacutecie de promoccedilatildeo da extinccedilatildeo da vida agrave categoria de ideal O

budismo por outro lado seria compreendido por Nietzsche como uma forma radical de

niilismo passivo que reconhece a falta de sentido e coloca seu empenho no

estabelecimento do nirvana ou seja no reino do nada absoluto Assim Claudemir Araldi

enfoca esta distinccedilatildeo fundamental quando chama a atenccedilatildeo para o fato do niilismo

enquanto uma forma europeia de budismo natildeo compartilhar ainda da radicalidade

daquele seu correlato indiano

O cristianismo procura retardar o niilismo da accedilatildeo (der Nihilismus derThat) forma consequente de niilismo que encoraja para a morte eautoaniquilamento atraveacutes da indicaccedilatildeo de uma falsa sobrevivecircncia paraaleacutem desse mundo Em vez do autoaniquilamento o cristianismo propotildeeuma vida duradoura mas fraca e empobrecida (XIII 14 (9)) O budismorepresenta uma forma mais radical de niilismo pois nele haacute a dissoluccedilatildeoda vontade do indiviacuteduo no nada no nirvana ldquoO pessimismo europeuestaacute ainda em seu iniacutecio ele natildeo tem ainda aquela descomunal fixideznostaacutelgica do olhar na qual se espelha o nada como ele teve outrora naIacutendiardquo (XI 25 (16)) (ARALDI 1998 Paacutegs 86-87)

79 A compreensatildeo do niilismo como uma forma de budismo europeu estaacute presente no proacutelogo de AGenealogia da Moral onde este eacute pensado como modelo de uma forma de niilismo passivo e portantopoderia ser considerado uma forma de budismo europeu

144

Por outro lado em O Anticristo Nietzsche pensa a relaccedilatildeo entre o budismo e o

cristianismo como expressatildeo de uma disputa entre uma forma positiva e uma forma

negativa de religiatildeo da decadecircncia Ainda como religiotildees da decadecircncia ambas se

distinguiriam pelo niacutevel de realismo do budismo que natildeo apregoa a necessidade de um

outro mundo mas restringe suas praacuteticas agraves esferas da dieteacutetica e da higiene Aqui como

manifestaccedilatildeo mais realista de uma forma decadente o budismo eacute considerado por

Nietzsche como uma forma superior de se encarar o problema da falta de sentido Pois

para o filoacutesofo o budismo representaria uma forma de racionalizaccedilatildeo do problema da falta

de sentido da realidade muito a frente do cristianismo

Com minha condenaccedilatildeo do cristianismo natildeo quero ser injusto com umareligiatildeo a ele aparentada que pelo nuacutemero de seguidores ateacute o supera obudismo As duas satildeo proacuteximas por serem religiotildees niilistas ndash religiotildees dedecadence ndash as duas de diferenciam de modo bastante notaacutevel O criacuteticodo cristianismo tem uma diacutevida de gratidatildeo aos eruditos hindus pelo fatode elas poderem se comparadas ndash O budismo eacute mil vezes mais realistado que o cristianismo ndash ele carrega a heranccedila da colocaccedilatildeo fria e objetivados problemas ele vem apoacutes seacuteculos de contiacutenuo movimento filosoacutefico oconceito de ldquodeusrdquo jaacute foi abolido quando ele surge O budismo eacute a uacutenicareligiatildeo realmente positivista que a histoacuteria tem a nos mostrar ateacute mesmoem sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo ndash )(ACAC I sect20)

Com base nessa leitura podemos ver que a distinccedilatildeo fundamental entre o

cristianismo e o budismo se resume a uma diferenccedila de graus de niacuteveis mas natildeo em sua

natureza Ambas compartilham na especulaccedilatildeo nietzschiana uma classificaccedilatildeo comum

enquanto formas passivas de niilismo Como tais sua expansatildeo significaria para o filoacutesofo

um risco para a cultura Assim em A Gaia Ciecircncia Nietzsche relaciona a propagaccedilatildeo do

budismo e do cristianismo a um adoecimento da vontade a um decreacutescimo no iacutempeto de

comando que levou os homens a procurar por uma autoridade forte fora do mundo

A feacute sempre eacute mais desejada mais urgentemente necessitada quandofalta a vontade pois a vontade eacute enquanto afeto de comando o decisivoemblema da soberania e da forccedila Ou seja quanto menos sabe algueacutemcomandar tanto mais anseia por algueacutem que comande que comandeseveramente mdashpor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um

145

confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteria De onde se concluiriatalvez que as duas religiotildees mundiais o budismo e o cristianismo podemdever sua origem e mais ainda a suacutebita propagaccedilatildeo a um enormeadoecimento da vontade E assim foi na verdade ambas as religiotildeesdepararam com a exigecircncia de um ldquotu devesrdquo alccedilada ateacute o absurdo peloadoecimento da vontade e indo ateacute o desespero ambas ensinaram ofanatismo em eacutepocas de afrouxamento da vontade com issoproporcionando a muitos um apoio uma nova possibilidade de quererum deleite no querer Pois o fanatismo eacute a uacutenica ldquoforccedila de vontaderdquo quetambeacutem os fracos e inseguros podem ser levados a ter como uma espeacuteciede hipnotizaccedilatildeo de todo o sistema sensoacuterio-intelectual em prol daabundante nutriccedilatildeo (hipertrofia) de um uacutenico ponto de vista e sentimentoque passa a predominar mdash o cristatildeo o denomina sua feacute Quando umapessoa chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandadatorna-se ldquocrenterdquo inversamente pode-se imaginar um prazer e forccedila naautodeterminaccedilatildeo uma liberdade da vontade em que um espiacuterito sedespede de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em seequilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidades e em danccedilar ateacute mesmo agravebeira de abismos Um tal espiacuterito seria o espiacuterito livre por excelecircncia(FWGC V sect347)

Nietzsche pensa a propagaccedilatildeo do cristianismo e do budismo como sintoma de uma

forma de adoecimento da vontade que acaba por condicionar a busca pelo comando em

esferas exteriores agrave esfera do acontecer humano que se mostra preponderantemente sob o

domiacutenio dos instintos fracos Dessa forma jaacute no periacuteodo de gestaccedilatildeo de sua obra

intermediaacuteria niilismo e budismo mostram-se associados Mais do que as religiotildees da

decadecircncia o niilismo passivo determina o avanccedilo de uma forma de pensar uma doutrina

acerca da verdade e do conhecimento contra a qual como vemos no fim da passagem

citada se voltariam os espiacuteritos livres

Em oposiccedilatildeo agrave forma de pensar condicionada pela necessidade de crenccedilas como

substitutos para o iacutempeto de comando os espiacuteritos livres seriam marcados pela sua

liberdade em relaccedilatildeo a toda forma de determinaccedilatildeo dogmaacutetica toda forma de verdade

dada Nesse sentido o espiacuterito livre ldquopor excelecircnciardquo seria aquele que obteacutem prazer ldquona

autodeterminaccedilatildeordquo na ldquoliberdade da vontaderdquo e no despedir-se de toda crenccedila Seria

justamente este abandono de todo ldquodesejo de certezardquo e abandono de si ldquosobre tecircnues

cordas e possibilidadesrdquo que caracterizaria a forma de conhecer proacutepria aos espiacuterito livre

146

Assim na necessidade de definir este estilo de filosofar a ele poderia ser comparado uma

danccedila a beira do abismo a brincadeira com o perigoso propor novas verdades80

Retomando poreacutem o problema da distinccedilatildeo entre as diferentes formas de niilismo

temos que o niilismo passivo seria marcado pela consciecircncia de uma falta de sentido

estrutural dos valores que no entanto natildeo subordina a produccedilatildeo de novos valores por se

dar em uma natureza cansada Aqui aparece o niilista como o sujeito dessa vontade

cansada como aquele que nega o mundo dos fenocircmenos mas que natildeo consegue criar um

mundo ideal e que portanto transporta para outra esfera o mundo das criaccedilotildees ideias

A criacutetica nietzschiana ao niilismo eacute caracterizada pela criacutetica agrave rejeiccedilatildeo do mundo

existente com base na defesa da necessidade de um mundo melhor inexistente uma

realidade idealizada Criacutetica que se sustentaria com base na negaccedilatildeo da realidade

imperfeita que eacute percebida pelo filoacutesofo como sendo nossa criaccedilatildeo Assim em uma

80 Aqui poreacutem torna-se necessaacuterio distinguir aquela que Nietzsche toma como a atitude filosoacutefica porexcelecircncia e a atitude ceacutetica A descriccedilatildeo do espiacuterito livre como aquele que se despede das certezas natildeo seconfunde com a defesa de uma forma ceacutetica de consideraccedilatildeo do conhecimento Ou seja natildeo faz parte denossa tese a reduccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzscheana de conhecimento a uma forma de ceticismo O ceticismo naverdade recorrentemente aparece entre os poacutestumos como representante de um tipo de niilismo passivo oque diga-se de passagem serve de referecircncia para distinguir o Perspectivismo nietzschano de uma forma deceticismo Em sua criacutetica ao ceticismo antigo nos poacutestumos Nietzsche chega a chamar Pirro de ldquoum budistagregordquo (NFFP 1888 14[85]) e retorna essa opiniatildeo quando diz que ldquoO filltoacutesofogt antigo ltagt partir deSoacutecrates tem os estigmas da decadecircncia moralismo e felicidaderdquo e que Pirro havia alcanccedilado o pontoculminante desta tendecircncia ldquoalcanccedilando o niacutevel do budismordquo (NFFP 1888 14[87]) Leia-se especialmenteo fragmento (NFFP 1888 14[99]) em que Nietzsche retorna a chamar Pirro de budista e oferece umacomparaccedilatildeo deste com Epicuro como tipos caracteriacutesticos da deacutecadeacutence entre os gregos Neste fragmentodiz Nietzsche sob o tiacutetulo de filosofia como decadecircncia ldquoFilosofia como deacutecadence ndash O cansaccedilo saacutebioPirro O budista Comparaccedilatildeo com Epicuro Pirro Viver entre os humildes humildemente Sem orgulhoViver de maneira ordinaacuteria honrar e crer o que todos creem Estar em guarda frente a ciecircncia e o espiacuteritoinclusive frente a tudo que inflahellip Simplesmente indescritivelmente paciente despreocupado suave (hellip)Um budista para Greacutecia crescido em meio ao tumulto das escolas vindo tarde fatigado o protesto docansado ante o zelo dos dialeacuteticos a natildeo crenccedila do cansado na importacircncia de todas as coisas Viu aAlexandre viu aos penitentes hindus Em tais indiviacuteduos tardios e refinados tudo o que eacute humilde tudo o queeacute pobre tudo o que eacute idiota causa efeitos inclusive sedutores Isto atua como um narcoacutetico produz distensatildeoPascal Por outro lado em meio do gentio e confusos com qualquer estes sentem um pouco de calornecessitam calor esses indiviacuteduos cansados hellip (hellip) Pirro igualmente a Epicuro duas formas da deacutecadencegrega afins no oacutedio contra a dialeacutetica e contra todas as virtudes histriocircnicas [schauspielerische] ndash A estasduas coisas entatildeo se chamou filosofia ndash intencionalmente eacute o humilde o que estes amam escolhendo paraisto os nomes habituais e inclusive depreciados representando um estado no qual natildeo se estaacute nem doentenem satildeo nem vivo nem mortohellip Epicuro mais ingecircnuo mais idiacutelico mais agradecido mais viajado commais experiecircncias vividas mais niilistahellip Sua vida foi um protesto contra a grande teoria da identidade(felicidade = virtude = conhecimento) A vida reta natildeo se encontra mediante a ciecircncia a sabedoria natildeo fazldquosaacutebiosrdquohellip (NFFP 1888 14[99]) Com o que fica dito a guisa de justificaccedilatildeo do uso ocasional do termoldquoceticismordquo nesta tese natildeo se depreende a tentativa de definiccedilatildeo do ceticismo na filosofia nietzschianaNossa explicaccedilatildeo natildeo eacute nem poderia ser exaustiva Quando se queira aprofundar sobre este tema natildeopoderiacuteamos recomendar nada melhor do que a tese de doutoramento de Rogeacuterio Lopes que serviu deinspiraccedilatildeo para muitas das ideias discutidas aqui e que se encontra na bibliografia

147

passagem bastante conhecida pelos autores que trabalham o tema do niilismo Nietzsche

pensa o niilista como ldquoo homem que a respeito do mundo tal como eacute julga que natildeo

deveria ser e a respeito do mundo que deveria ser julga que natildeo existerdquo (NFFP 1887

9[60]) Nesta leitura ao negar o mundo o niilista estaria negando o proacuteprio ser que se

apresenta na forma de um ldquoagir sofrer querer sentirrdquo que aparece para ele como natildeo

tendo sentido O niilista assim se caracterizaria pelo pathos do ldquoem vatildeordquo que percebe

como uma inconsequecircncia (NFFP 1887 9[60])

Em outros termos o niilista atua por forccedila de uma forte rejeiccedilatildeo do que cria da

realidade condicionada como sua criaccedilatildeo e procura a verdade em uma realidade que este

natildeo pode criar Ou seja o filoacutesofo define o niilista como aquele que rejeita o mundo com

que se relaciona em prol de um mundo com o qual sabe natildeo poder se relacionar O que

norteia esta realizaccedilatildeo para o autor da passagem seria mesmo uma espeacutecie de impulso

para o nada em que o mais proacuteximo e exequiacutevel eacute abandonado em prol do distante e

inexequiacutevel Quase como algueacutem que diante da possibilidade de conquistar uma vitoacuteria

certa mais humilde se lanccedila agrave conquista de um objetivo grandioso embora impossiacutevel

Ora se pensarmos que nossa realidade eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees entatildeo o

mundo que o niilista rejeita eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees o qual ele desejaria ver

substituiacutedo por um mundo ideal independente de nossas valoraccedilotildees Na leitura

perspectivista nietzschiana no entanto posto que natildeo se pode pensar um mundo senatildeo

como produto de nossas valoraccedilotildees o niilista seria aquele que pretende alcanccedilar um

mundo de objetividade natildeo avaliada

Esta concepccedilatildeo do niilismo estaacute estreitamente relacionada com a criacutetica

nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Seria apenas porque a concepccedilatildeo de

verdade estaria relacionada com a ideia de uma realidade inaccessiacutevel que o filoacutesofo

considera niilista todo projeto filosoacutefico ocidental que se deixa guiar pela ideia de uma

realidade objetiva natildeo valorada da qual decorreria a verdade Do mesmo modo a rejeiccedilatildeo

operada pela filosofia tradicional do testemunho dos sentidos em prol de uma realidade que

apenas pode ser concebida pelo intelecto eacute vista pelo filoacutesofo como constituindo um dos

primeiros estaacutegios na histoacuteria do niilismo ocidental

Nessa leitura a ideia de uma realidade idealizada que apenas pode ser

compreendida aqui como realidade enquanto criaccedilatildeo do intelecto seria o ponto de

148

culminacircncia de toda forma disfarccedilada de niilismo Por outro lado aquele que concebe o

mundo como criaccedilatildeo como inferior posto que eacute sua criaccedilatildeo rejeita nele mesmo a proacutepria

criaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo desta criaccedilatildeo no entanto configura-se como passividade na medida em

que se determinaria por uma rejeiccedilatildeo do proacuteprio criar

Satildeo essas razotildees que nos impotildeem a necessidade de distinguir entre duas formas de

niilismo o niilismo ativo e o niilismo passivo Pois uma avaliaccedilatildeo desta distinccedilatildeo torna

claro que aquilo que comumente se toma como a criacutetica nietzschiana ao niilismo estaria

voltada prioritariamente a uma forma passiva de niilismo em detrimento do niilismo como

um todo Assim se o niilismo passivo como vimos estaria relacionado ao cansaccedilo das

forccedilas criativas que se tornam ressentimento da necessidade de criaccedilatildeo quase como se o

intelecto ciente de sua condicionalidade enquanto estrutura criativa se visse ressentido de

sua limitaccedilatildeo enquanto instacircncia de criaccedilatildeo e passasse a criar a partir desse ressentimento

por outro lado o niilista ativo seria aquele que consciente da realidade de sua criaccedilatildeo

enfatiza os poderes criativos do intelecto como superiores criando uma realidade

idealizada a partir da potecircncia criativa do intelecto

Partindo dessa consideraccedilatildeo das diferenccedilas entre uma forma passiva e uma forma

ativa de niilismo percebe-se que nada se aproveita do niilismo passivo posto que apenas

os piores instintos os instintos cansados parecem estar a seu serviccedilo Ao niilismo ativo

por outro lado Nietzsche relaciona um aspecto positivo na medida em que neste jaacute se

reconhece a moral como algo superado Neste sentido o niilismo ativo poderia ser lido

como a representaccedilatildeo de uma forma de superaccedilatildeo criativa do pessimismo da existecircncia o

que caracteriza essa forma de niilismo como sintoma de um grau elevado de ldquocultura

espiritualrdquo Alto grau de cultura espiritual aqui significa que este estaacutegio de desdobramento

do niilismo seria caracterizado pela criaccedilatildeo proliacutefica de novas realidades

Natildeo eacute que a ldquopenuacuteriardquo tenha aumentado pelo contraacuterio ldquoDeus a moral aresignaccedilatildeordquo eram remeacutedios a niacuteveis profundos e terriacuteveis de miseacuteria oniilismo ativo aparece em condiccedilotildees relativamente muito mais favoraacuteveisJaacute o fato de que se sinta a moral como algo superado supotildee um graubastante elevado de cultura espiritual esta por sua vez a um relativobem-estar Um certo cansaccedilo espiritual que a grande luta de opiniotildeesfilosoacuteficas conduziu ateacute a um ceticismo desesperado frente a filosofiacaracteriza tambeacutem agrave classe de nenhuma maneira baixa destes niilistasPense-se na situaccedilatildeo na que surgiu Buda A doutrina do eterno retorno

149

teria pressupostos doutos (assim como os tinha a doutrina de Buda porexemplo o conceito de causalidade etc) (NFFP 1886-1887 5 [71])

A crenccedila no Deus assim como a moral que pertenceriam a um estado inferior da

ldquocultura espiritualrdquo satildeo superados pela suposiccedilatildeo de uma forma nova de valorar no

niilismo ativo O niilismo ativo assim distingue-se do passivo pela potencialidade

criativa que supera a moral dada Em comparaccedilatildeo ao niilismo ativo o niilismo passivo

pode ser visto como algo esteacuteril posto que em seu desenvolvimento este natildeo confronta a

realidade de forma tatildeo criativa quanto aquele Desta forma como uacuteltimo momento do

confronto do niilista com a realidade este jaacute pressuporia um alto niacutevel de desenvolvimento

cultural produto das sucessivas superaccedilotildees das produccedilotildees do niilismo passivo

Nesse sentido o ceticismo nietzschiano para com toda forma de criaccedilatildeo moral

apareceria como sintoma deste alto niacutevel de desenvolvimento cultural No entanto este

ceticismo como sintoma da superaccedilatildeo de diversas formas de moral apareceria tambeacutem

como a exaustatildeo de forccedilas criativas Por isso o ceticismo eacute visto como uma forma

desesperada de niilismo que se daacute diante da constataccedilatildeo da inutilidade da moral mas que

natildeo condiciona a accedilatildeo Do mesmo modo aqui estariacuteamos diante da ideia de uma forma

mais extrema de niilismo ativo no qual ocorre natildeo apenas a negaccedilatildeo da moral mas uma

elaboraccedilatildeo do homem em meio de cura em graus profundos de miseacuteria Nesse sentido o

niilismo ativo aparece em condiccedilotildees que se configuram relativamente mais favoraacuteveis

Seria portanto na possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que apareceria em toda

profundidade a diferenccedila entre o niilismo passivo e o niilismo ativo Porque o iacutempeto para

a destruiccedilatildeo dos valores dados passo necessaacuterio na constituiccedilatildeo dos novos valores apenas

se daacute pela consciecircncia da vacuidade de sentido da carecircncia de fundamento do que eacute dado

atraveacutes do qual ldquoseu maacuteximo de forccedila relativa eacute alcanccedilada como forccedila violenta de

destruiccedilatildeo como niilismo ativordquo (NFFP 1887 9 [35]) O fundamental aqui eacute reconhecer

que um niilismo ativo poderia representar um passo importante na dinacircmica de superaccedilatildeo

do proacuteprio niilismo

Satildeo muitos os fragmentos poacutestumos em que o filoacutesofo se refere a uma forma mais

desenvolvida do niilismo ativo um niilismo perfeito enquanto ldquoconsequecircncia necessaacuteria

dos ideais tidos ateacute o momentordquo (NFFP 1887 10 [42]) Ou seja em contraposiccedilatildeo ao

150

niilismo incompleto em meio ao qual o filoacutesofo pensa que se desdobrava a cultura

filosofia e religiatildeo de sua eacutepoca haveria uma forma extrema de niilismo que poderia

produzir resultados no processo de superaccedilatildeo do niilismo como perda de sentido

Na medida em que Nietzsche entende que as tentativas de escapar-se do niilismo

sem realizar uma avaliaccedilatildeo dos valores recebidos da tradiccedilatildeo apenas tornavam mais agudas

as consequecircncias do niilismo (NFFP 1887 10[42]) ele pensa o niilismo completo como

uma forma de superar a negatividade do niilismo a partir do proacuteprio niilismo Assim a

radicalizaccedilatildeo do niilismo que conduz ao niilismo completo como ponto da dinacircmica do

niilismo em que se rompe a cadeia de criaccedilatildeo de valores niilistas se daria com o colapso

do conceito de ldquoDeusrdquo entendido aqui como fundamento de todos os valores niilistas

Como diz Araldi ldquoA morte de Deus eacute um evento que repercute na modernidade e que

aciona novas formas de niilismo sempre na perspectiva de sua radicalizaccedilatildeordquo (ARALDI

1998 Paacutegs 85-86) Isto porque o conceito de ldquoDeusrdquoeacute visto pelo filoacutesofo como uma

repercussatildeo da realidade ideal como a traduccedilatildeo moderna do antigo conceito platocircnico de

realidade das ideias

Tal como a realidade ideal platocircnica o Deus veraz atua na modernidade como

fundamento uacuteltimo da verdade Aqui aparece para Nietzsche o cristianismo como um

ldquoplatonismo para as massasrdquo como o lugar de fundamentaccedilatildeo de uma veracidade que se

perde na iminecircncia do grande evento da morte de Deus Posto que Deus passa a ser visto

de acordo com os princiacutepios dessa veracidade como ldquouma hipoacutetese demasiado extremardquo

(NFFP 1886 5[71]) Motivo pelo qual Claudemir Araldi pensa a distinccedilatildeo entre uma

forma incompleta e uma forma completa de niilismo como dependendo fundamentalmente

do anuacutencio da morte de Deus

Eacute nesse sentido que Nietzsche distingue entre niilismo incompleto eniilismo completo No niilismo incompleto (unvollstaumlndig Nihilismus) haacutea tentativa de preencher o vazio decorrente da morte do deus cristatildeo tidocomo a fonte da verdade (XII 10 (42) Atraveacutes de ideais laicizados (oprogresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia) os homensainda mantecircm o lugar outrora ocupado por Deus o supra-sensiacutevel poisbuscam algo que ordene categoricamente ao qual possam se entregarabsolutamente Em suma no niilismo incompleto haacute a tentativa desuperar o niilismo sem transvalorar os valores (XII 10 (42)) No niilismocompleto (vollkommener Nihilismus) haacute uma autoconsciecircncia do homem

151

sobre si proacuteprio e sobre a sua nova situaccedilatildeo apoacutes a morte de Deus (XII10 (42) Esta forma de niilismo eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria dosvalores estimados ateacute entatildeo como superiores Nesse momento contudonatildeo ocorre ainda a criaccedilatildeo de valores afirmativos o niilista completo natildeoconsegue mais mascarar atraveacutes de ideais e ficccedilotildees a vontade de nadaNatildeo eacute apenas o supra-sensiacutevel que eacute abolido mas tambeacutem a oposiccedilatildeoentre ambos (GDCI Como o Mundo Verdadeiro tornou-se Faacutebula) Comum olhar paacutelido desfigurado o niilista completo contempla e idealiza apartir da fraqueza A completude do niilismo natildeo ocorre somente nessadissoluccedilatildeo passiva no tipo do decadente que frui passivamente de seuesgotamento (ARALDI 1998 Paacutegs 86)81

Segundo Araldi Nietzsche compreendeu a modernidade filosoacutefica como a tentativa

de ocupar o lugar vago pela ausecircncia do Deus cristatildeo atraveacutes da admissatildeo de ideais

laicizados tais como o progresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia Estas

tentativas no entanto aparecem para o autor como uma forma fracassada de abandonar os

ideais cristatildeos82 Desde que os fundamentos satildeo reconhecidos aqui como pertencendo a

uma instacircncia superior agrave instacircncia do acontecer humano esfera na qual Nietzsche enxerga

a dinacircmica da criaccedilatildeo de valores esta tentativa ainda se fundamentava em uma concepccedilatildeo

tradicional de verdade Sendo assim esta tentativa de superaccedilatildeo do Deus cristatildeo cai por

terra na medida em que conserva o lugar ocupado por Deus Esta leitura eacute coerente com o

que ao autor expressa em A Gaia Ciecircncia o filoacutesofo narra os motivos do fracasso dessa

tentativa de se livrar de Deus como a permanecircncia na crenccedila na verdade

Mas jaacute teratildeo compreendido onde quero chegar isto eacute que a nossa feacute naciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica ndash que tambeacutem noacutes quehoje buscamos o conhecimento noacutes ateus e antimetafiacutesicos aindatiramos nossa flama daquele mesmo fogo que uma feacute milenar acendeuaquela crenccedila cristatilde que era tambeacutem de Platatildeo de que Deus eacute a verdadede que a verdade eacute divinahellip Mas como se precisamente isto se tornacada vez menos digno de creacutedito se nada mais se revela divino com apossiacutevel exceccedilatildeo do erro da cegueira da mentira ndash se o proacuteprio Deus serevela como a nossa mais longa mentira (FWGC V sect344)

81 A citaccedilatildeo manteve intacta a estrutura e redaccedilatildeo dada por seu autor ao texto ou seja foram preservados osaspectos do texto que foram redigidos anteriormente agrave adoccedilatildeo das normas do novo acordo ortograacutefico daliacutengua portuguesa82 Nos diz ainda Claudemir Araldi ldquoA modernidade representa para o filoacutesofo tanto o esforccedilo de substituir odeus transcendente por outros valores (razatildeo histoacuteria progresso) bem como o vazio aberto pela percepccedilatildeode que o deus transcendente jaacute natildeo exerce nenhuma influecircncia sobre a existecircnciardquo (ARALDI 1998 Paacutegs77-78) Ou seja segundo Araldi natildeo apenas a modernidade filosoacutefica fracassa em ocupar o lugar deixadovago pela morte de Deus como ainda traz a tona a realidade desse vazio

152

A morte de Deus a perda do ldquobem em sirdquo e o desaparecimento de um fundamento

universal da realidade constituem nessa leitura diferentes niacuteveis de uma mesma

experiecircncia Poreacutem a radicalidade do ponto de partida nietzschiano diz respeito agrave

concomitacircncia destes fundamentos em uma concepccedilatildeo tradicional de verdade Assim a

permanecircncia na verdade marca ainda o lugar onde uma uacuteltima crenccedila deve ser abandonada

A avaliaccedilatildeo dos valores portanto comeccedila pela consciecircncia da morte do Deus cristatildeo que

eacute anunciada no aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia mas apenas se conclui a partir da

consciecircncia da caducidade da ideia de verdade

Em suma estaacute fase intermediaacuteria representaria ainda uma manifestaccedilatildeo do niilismo

incompleto em que a tentativa de superar o niilismo ocorre sem oferecer uma completa

avaliaccedilatildeo dos valores No niilismo completo no entanto ocorre uma tomada de

consciecircncia o reconhecimento da responsabilidade pela criaccedilatildeo dos valores que

condiciona a radicalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo do niilismo tornando-se este assim uma forma de

niilismo ativo

Se o niilismo eacute a situaccedilatildeo a que se vecirc confrontada uma eacutepoca que experimenta a

perda de validade dos valores supremos na medida em que Nietzsche reconhece nos

ldquovalores superioresrdquo mais do que a fundamentaccedilatildeo da organizaccedilatildeo social humana mas a

proacutepria atribuiccedilatildeo de valor para a vida entre os homens ou seja a moral o filoacutesofo

reconhece na perda de validade destes valores um risco iminente para a humanidade

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade

Nos primeiros capiacutetulos deste trabalho procuramos mostrar que apesar de o

desdobramento da reflexatildeo nietzschiana acerca do niilismo pertencer agrave terceira fase de seu

pensamento o potencial afirmativo inerente agrave superaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de

verdade jaacute se acha prenunciado no pensamento da primeira fase desse autor em sua

confrontaccedilatildeo de uma forma radical de pessimismo fundado em uma concepccedilatildeo moral do

conhecimento Em suas primeiras incursotildees filosoacuteficas em que o niilismo aparece ainda

sob a aparecircncia de uma forma radical de pessimismo Nietzsche identifica um potencial

153

deleteacuterio da cultura europeia Este potencial de destruiccedilatildeo dos valores fundamentais eacute

criticado pelo autor pela primeira vez a partir da suspeita lanccedilada agraves formulaccedilotildees teoacutericas

do racionalismo socraacutetico Naquela reflexatildeo Nietzsche pensava as condiccedilotildees histoacutericas de

surgimento do conceito de verdade como algo que teria se associado agrave ideia de valor

absoluto por meio de uma interpretaccedilatildeo moral

Considerando-se que neste periacuteodo de seu pensamento o filoacutesofo ainda parece

considerar a justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia como uma contra medida para com os

valores cristatildeos que seriam aqueles que pretendem-se unicamente morais eacute possiacutevel

pensar que a criaccedilatildeo artiacutestica dos valores seria uma forma de contrapor-se aos valores do

pessimismo Nesse sentido mais do que uma criacutetica agrave moral a criacutetica ao mundo-de-laacute

criado para difamar o mundo de caacute tenciona alargar a denuacutencia dos problemas teoacutericos

referentes agrave consideraccedilatildeo do verdadeiro que em Nietzsche estatildeo indissociavelmente

relacionados aos valores morais do cristianismo

O cristianismo eacute concebido no pensamento nietzschiano como se opondo natildeo

apenas agrave vida mas tambeacutem a seus princiacutepios fundamentais dentre os quais a aparecircncia a

arte e o proacuteprio caraacuteter perspectivo de que toda vida seria dependente Tal ideia da

negaccedilatildeo cristatilde dos valores fundamentais agrave vida eacute expressa com clareza no prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia em que Nietzsche reflete sobre o silecircncio que houvera

conservado para com o cristianismo naquela obra

Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendorantimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro inteiro setrata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeodo tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutar Na verdadenatildeo existe contraposiccedilatildeo maior agrave exegese e justificaccedilatildeo puramenteesteacutetica do mundo tal como eacute ensinada neste livro do que a doutrinacristatilde a qual eacute e quer ser somente moral e com seus padrotildees absolutos jaacutecom sua veracidade de Deus por exemplo desterra a arte toda arte aoreino da mentira ndash isto eacute nega-a reprova-a condena-a Por traacutes desemelhante modo de pensar e valorar o qual tem de ser adverso agrave arteenquanto ela for de alguma maneira autecircntica sentia eu tambeacutem desdesempre a hostilidade agrave vida a rancorosa vingativa aversatildeo contra aproacutepria vida pois toda a vida repousa sobre a aparecircncia a arte a ilusatildeo aoacuteptica a necessidade do perspectiviacutestico e do erro (Prefaacutecio sect5 Paacuteg 19)

154

Ainda que de modo inconsciente em sua formulaccedilatildeo na filosofia nietzschiana de

juventude a suspeita em torno da verdade e sua relaccedilatildeo com a moral cristatilde satildeo vistas aqui

como um grande perigo para a humanidade Segundo o autor natildeo apenas contra o

cristianismo ldquocomo a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade

chegou ateacute agora a escutarrdquo mas contra os princiacutepios morais do niilismo expressos sub-

repticiamente nessa moral seus instintos o haviam precavido Precauccedilatildeo que teria se

refletido no silecircncio para com estes temas que o filoacutesofo conserva em sua obra de estreia

Assim entendemos que embora o niilismo seja inegavelmente uma concepccedilatildeo em que

Nietzsche passa a se deter mais prontamente a partir do periacuteodo intermediaacuterio de seu

pensamento e que recebe um tratamento mais aprofundado apenas a partir de seus uacuteltimos

escritos os pressupostos para a formulaccedilatildeo desta concepccedilatildeo jaacute estavam contidos na criacutetica

nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento

Seu projeto de superaccedilatildeo do niilismo portanto natildeo se resume a apontar o futuro do

niilismo e sua superaccedilatildeo definitiva Uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo genealoacutegica

nietzschiana as condiccedilotildees de superaccedilatildeo do niilismo residem na consideraccedilatildeo das razotildees

pelas quais ele se tornou hegemocircnico na vida intelectual do Ocidente Por sua vez em

consequecircncia de sua compreensatildeo do niilismo como uma tendecircncia agrave desvalorizaccedilatildeo da

realidade a possiacutevel superaccedilatildeo dos valores de decadecircncia soacute poderia advir de uma

consideraccedilatildeo fundamental sobre o caraacuteter da realidade como interpretaccedilatildeo

Nessa leitura a consideraccedilatildeo da vida em sua essecircncia como vontade de potecircncia

desempenharia um papel fundamental Pois se para Nietzsche ldquoesse mundo eacute a vontade de

potecircncia e nada aleacutem dissordquo (NFFP 1885 38[12]) tambeacutem a vida enquanto uma

manifestaccedilatildeo no mundo seria apenas vontade de potecircncia e nada mais Apesar de natildeo

constituir objeto fundamental de nosso trabalho e apesar de natildeo possuirmos espaccedilo

suficiente aqui para uma correta abordagem dessa importante concepccedilatildeo nietzschiana

consideramos que a concepccedilatildeo de vontade de potecircncia deve ser brevemente elucidada para

efeitos de compreensatildeo do que se diz nesse capiacutetulo e mais a frente

Em nossa interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia natildeo

seria possiacutevel natildeo mencionar a interpretaccedilatildeo de Muumlller-Lauter83 Em seu comentaacuterio da

83 Trabalhamos em nossa leitura com a traduccedilatildeo para o portuguecircs do artigo ldquoA Doutrina da Vontade dePoder em Nietzscherdquo de Oswaldo Giacoacuteia Juacutenior publicado pela editora Annablume Satildeo Paulo 1997conforme bibliografia

155

concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia Muumlller-Lauter a qualifica como uma

concepccedilatildeo metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 51-52) mesmo rejeitando

ldquoconceber a vontade de poder como lsquoinequiacutevocarsquo vontade metafiacutesica no sentido de

Schopenhauerrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 70) e mesmo rejeitando a posiccedilatildeo de

Heidegger De fato Muumlller-Lauter escreve suas consideraccedilotildees acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo adversaacuteria da interpretaccedilatildeo de

Heidegger

Nesta reflexatildeo polecircmica o autor parte da suposiccedilatildeo de que a filosofia nietzschiana

representaria um acabamento do pensamento metafiacutesico Posiccedilatildeo como se vecirc muito

proacutexima da leitura heideggeriana No entanto para Muumlller-Lauter o pensamento

nietzschiano se converte em uma forma de metafiacutesica por forccedila do constante questionar-se

nietzschiano acerca da metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 53) Por outro lado o

autor compreende que este estreito refletir acerca da metafiacutesica que teria forccedilado

Nietzsche mesmo a adotar uma certa terminologia metafiacutesica em suas obras natildeo se

confunde com uma compreensatildeo abrangente do sentido de metafiacutesica Sendo assim se

Nietzsche pode ser considerado um pensador metafiacutesico isto natildeo torna seu pensamento

paradoxal pois o sentido de metafiacutesica de sua reflexatildeo natildeo se confundiria com aquilo que

o filoacutesofo criticava sob o nome de metafiacutesica

Como se pode ver estamos aqui diante de uma possiacutevel autocontradiccedilatildeo no

pensamento nietzschiano que tem que ser enfrentada por Muumlller-Lauter Pois ao interpretar

a vontade de potecircncia como conceito metafiacutesico o autor precisa confrontar a criacutetica

nietzschiana agrave metafiacutesica presente em boa parte de seus escritos Em sua interpretaccedilatildeo o

autor realiza este movimento por meio de uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana agrave

metafiacutesica a partir da compreensatildeo de que o filoacutesofo teria entendido por metafiacutesica uma

compreensatildeo da realidade segundo uma teoria dos dois mundos Ou seja embora o

pensamento nietzschiano possa ser entendido como uma forma de pensamento metafiacutesico

este pensamento natildeo operaria com base na defesa de um dualismo ontoloacutegico

Esta interpretaccedilatildeo enquanto pode ser vista como uma leitura vaacutelida da filosofia

nietzschiana enfrenta dificuldades peculiares Primeiro por que a distinccedilatildeo entre duas

formas de filosofia no pensamento nietzschiano parece repousar em evidecircncia textual

precaacuteria E segundo porque a criacutetica nietzschiana a toda forma de filosofia natildeo parece ser

156

compatiacutevel com a ideia de uma defesa nietzschiana de uma determinada forma de

metafiacutesica O que motiva a adoccedilatildeo de Muumlller-Lauter desta interpretaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana como uma certa forma de metafiacutesica seria antes de tudo a necessidade de

interpretar a concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia como uma forma de

fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da verdade Ou seja a tentativa de fundamentar o discurso

nietzschiano em uma compreensatildeo da vontade de potecircncia como conceito ontoloacutegico

subjacente agrave realidade das interpretaccedilotildees

De fato em um fragmento poacutestumo de fins de 1887 3 iniacutecios de 1888 Nietzsche

considera a vontade de potecircncia sob a luz de uma consideraccedilatildeo desta enquanto ldquoum

quantum de poder um devir na medida em que nele nada tem o caraacuteter do lsquoserrsquordquo (NFFP

1887-1888 11[73]) Sendo assim enquanto esta interpretaccedilatildeo poderia por um lado ser

considerada a afirmaccedilatildeo de um caraacuteter ontoloacutegico da vontade de potecircncia por outro na

medida em que o filoacutesofo afirma que esta concepccedilatildeo teria relaccedilotildees com o devir em

contraposiccedilatildeo ao ser fica difiacutecil natildeo pensar que esta passagem se contrapotildee a uma tentativa

de pensar a Vontade de potecircncia como uma espeacutecie de fundamento Na medida em que

nada na vontade de potecircncia refletiria um ser ela mesma natildeo poderia ser vista como

fundamento do existente

Como alternativa pode-se pensar uma interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de

vontade de potecircncia como a compreensatildeo desta como uma hipoacutetese Dessa forma

tornando-se possiacutevel evitar a necessidade de fundamentaacute-la em uma interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica Ao interpretar esta concepccedilatildeo como uma forma de quantum de potecircncia a

vontade de potecircncia natildeo refletiria um existir determinado mas apenas a percepccedilatildeo dela

enquanto um ponto mais baixo ou mais elevado de potecircncia Ou seja a vontade de

potecircncia natildeo seria uma realidade sua interpretaccedilatildeo enquanto vontade forte ou vontade

fraca dependeria da captura de um momento de seu existir pois ldquonatildeo haacute nenhuma

vontade haacute pontuaccedilotildees da vontade que constantemente aumentam ou perdem seu poderrdquo

(NFFP 1887-1888 11[73]) Sendo assim a vontade de potecircncia natildeo poderia ser pensada

de maneira independente de sua interpretaccedilatildeo submetendo-se ela mesma aos princiacutepios

nietzschianos da hegemonia da interpretaccedilatildeo

Esta forma de compreender a vontade de potecircncia parece combinar perfeitamente

com o sentido de textos Nietzschianos tais como o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal

157

em que Nietzsche expressamente fala da vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo

Naquele texto sobre o qual falaremos no uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho Nietzsche

considera a concepccedilatildeo dos fiacutesicos e de suas leis da natureza como uma maacute interpretaccedilatildeo e

a ela confronta a possibilidade de se explicar os mesmos fenocircmenos com base na hipoacutetese

da vontade de potecircncia Neste confronto o que parece interessar ao filoacutesofo que busca

destituir de validade a ideia de uma realidade natural como texto a ser interpretado seria a

possibilidade de se confrontar perspectivas diferentes diferentes hipoacuteteses como formas

igualmente verdadeiras de se interpretar o mesmo fenocircmeno

Perdoem a esse velho filoacutelogo que sou se natildeo renuncia a abdicar domaligno prazer que representa pocircr o dedo na chaga das explicaccedilotildeeserrocircneas de vossas fraquezas filoloacutegicas Porque em verdade essemecanismo das ldquoleis da naturezardquo de que voacutes fiacutesicos falais com tantoorgulho natildeo eacute um fato nem um texto mas uma composiccedilatildeoingenuamente humana dos fatos uma deturpaccedilatildeo do sentido umaadulaccedilatildeo servil agrave habilidade dos instintos democraacuteticos da alma modernaldquoEm todas as partes igualdade diante da lei a este respeito a naturezanatildeo foi melhor tratada que noacutesrdquo Sedutora segunda intenccedilatildeo que encobremais uma vez o oacutedio da plebe contra toda marca de privileacutegio e de tiraniabem como uma segunda forma mais sutil de ateiacutesmo Ni Dieu nimaitre Voacutes tambeacutem desejais que assim seja e por isso gritais ldquoVivam asleis da naturezardquo (JGBABM I sect22)

Muumlller-Lauter no entanto parece pensar diferente Assim quando julga a

possibilidade de interpretar a vontade de potecircncia como uma hipoacutetese tatildeo verdadeira

quanto a hipoacutetese representada naquele texto pela posiccedilatildeo dos fiacutesicos o autor afirma ldquoEle

proacuteprio [Nietzsche] sustenta uma pretensatildeo de superioridade em face de outras

interpretaccedilotildees do mundo Ao questionarmos seu pensamento em relaccedilatildeo a essa pretensatildeo

deparamos com o problema da fundamentabilidade de sua lsquodoutrina da vontade de poderrsquordquo

(MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 121) Desta maneira o autor parece compreender que

Nietzsche natildeo teria pensado sua posiccedilatildeo a interpretaccedilatildeo da natureza segundo a hipoacutetese da

vontade de potecircncia como uma hipoacutetese de validade igual agrave hipoacutetese apresentada pelos

fiacutesicos mas como posiccedilatildeo superior Assim a pretensatildeo de superioridade das posiccedilotildees

nietzschianas problema fundamental do uacuteltimo capiacutetulo desse trabalho impediria a

compreensatildeo da concepccedilatildeo de vontade de potecircncia como interpretaccedilatildeo

158

Nos parece algo bastante simboacutelico que ao analisar o aforismo vinte e dois de

Aleacutem do Bem e do Mal Muumlller-Lauter considere que ldquoPara o que aqui nos importa eacute

essencial que ele [Nietzsche] impute aos lsquofiacutesicosrsquo uma maacute lsquofilologiarsquordquo ou seja ao

considerar o aforismo em questatildeo Muumlller-Lauter julga que o fato de Nietzsche considerar

a posiccedilatildeo dos fiacutesicos como uma maacute interpretaccedilatildeo conduz agrave crenccedila de que o filoacutesofo

sustentava sua proacutepria interpretaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo segundo uma boa filologia

como uma interpretaccedilatildeo superior Assim ao confrontar a hipoacutetese de que Nietzsche

necessariamente deva tomar suas posiccedilotildees como interpretaccedilotildees com a necessidade de que

o filoacutesofo as defenda como uma interpretaccedilatildeo superior chegamos a um ponto fundamental

para o questionamento acerca do valor destas interpretaccedilotildees Refletindo sobre este

problema Muumlller-Lauter escreve

Entatildeo toda explicaccedilatildeo (Deutung) do mundo eacute tambeacutem uma interpretaccedilatildeoperspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos que aquela quecompreende todo acontecer do mundo como o caos de vontades de podercooperantes e combatentes Em consequecircncia disso lsquoorsquo mundoconcebido como soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeo perspectiva domundo ao lado de inuacutemeras outras Em face da fundamental relatividadede todo explicar-o-mundo o que poderia ser aduzido em favor dalsquoverdadersquo da interpretaccedilatildeo de Nietzscherdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997Paacutegs 126)

O fundamental aqui eacute o questionamento acerca do que pode ser acrescentado em

favor da posiccedilatildeo defendida por Nietzsche a fim de que esta venha a ser tomada como mais

verdadeira e portanto superior ao posicionamento dos fiacutesicos e sua explicaccedilatildeo mecacircnica

da natureza Na leitura do autor apenas a compreensatildeo que identifica a vontade de

potecircncia como fundamento da verdade poderia garantir esta veracidade e consequente

superioridade Mas aqui se confunde superioridade de uma perspectiva e sua veracidade o

que eacute justamente questionado por meio do perspectivismo nietzschiano Ou seja se

assumirmos que apenas a veracidade de uma posiccedilatildeo pode ser ponto de demarcaccedilatildeo de seu

valor tornamos sem sentido o perspectivismo nietzschiano Mas sendo assim de que outro

modo se poderia justificar a superioridade do posicionamento nietzschiano

A resposta a esta questatildeo representa um ponto fundamental de nossa interpretaccedilatildeo

Trata-se de considerar como ponto central das criacuteticas de Nietzsche agrave concepccedilatildeo tradicional

159

de verdade a implicaccedilatildeo entre valor e verdade de um posicionamento concepccedilatildeo que a

interpretaccedilatildeo tradicional da natureza da verdade nos levaria a aceitar Esta implicaccedilatildeo a

qual Nietzsche jaacute denuncia como improcedente desde seus escritos de juventude

notadamente seu Ensaio sobre Verdade e Mentira seria apenas o resultado de uma

interpretaccedilatildeo moral do problema da verdade Por outro lado como julgar da superioridade

de interpretaccedilotildees adversaacuterias quando natildeo se pode reclamar para estas uma maior

veracidade No caso especiacutefico apresentado por Muumlller-Lauter como justificar a

superioridade da posiccedilatildeo nietzschiana em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees que o filoacutesofo combate

Uma possiacutevel resposta para esta pergunta eacute que nada pode ser acrescentado em favor da

ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiana No entanto no que se trata do questionamento da

superioridade desta posiccedilatildeo poderiacuteamos acrescentar agrave posiccedilatildeo nietzschiana o fato dela ser

derivada de uma arte de filologia superior

Nesta interpretaccedilatildeo consideramos que Nietzsche toma a concepccedilatildeo de vontade de

potecircncia como uma parte de sua filosofia que eacute apenas reconhecida pelo filoacutesofo como

uma possiacutevel interpretaccedilatildeo entre outras interpretaccedilotildees Por outro lado o fato de Nietzsche

se opor a certas interpretaccedilotildees e defender as suas proacuteprias natildeo nos obriga a pensar que o

autor tomava suas posiccedilotildees como mais verdadeiras Pois diferentemente da interpretaccedilatildeo

sustentada por Muumlller-Lauter distinguimos uma interpretaccedilatildeo superior de uma

interpretaccedilatildeo mais verdadeira O fato de Nietzsche tomar sua posiccedilatildeo como superior tanto

no caso em questatildeo como em todos os casos em que este aparente paradoxo se apresenta

natildeo significa que estamos julgando dentro do terreno da veracidade

De fato desde que esta atitude seja entendida como componente do perspectivismo

nietzschiano ela deve ser interpretada como a representaccedilatildeo de uma forma de se

confrontar o dogmatismo pela proacutepria defesa da interpretaccedilatildeo como possibilidade Assim

o que eacute dito na mencionada passagem de Aleacutem do Bem e do Mal representaria um

exerciacutecio deste tipo de compreensatildeo em que a proacutepria possibilidade de se apresentar novas

interpretaccedilotildees jaacute pesa contra a possibilidade de uma posiccedilatildeo dogmaacutetica que deve sempre

ser vista como a uacutenica interpretaccedilatildeo vaacutelida

O mesmo se observa na descriccedilatildeo nietzschiana das forccedilas e suas relaccedilotildees como

aspecto mais iacutentimo da vontade de potecircncia Nestes casos como em todos os casos em que

o filoacutesofo se propotildee a realizar uma descriccedilatildeo da vontade de potecircncia enxergamos uma

160

atitude experimental e artiacutestica um modo criativo de apresentar hipoacuteteses em

contraposiccedilatildeo a uma determinaccedilatildeo definitiva Assim embora saibamos que natildeo temos aqui

uma apresentaccedilatildeo definitiva das justificativas para tanto tomaremos a concepccedilatildeo de

vontade de potecircncia como hipoacutetese interpretativa como um expediente com a qual

Nietzsche pretendeu opor-se a uma determinaccedilatildeo dogmaacutetica da realidade

A inferioridade das posiccedilotildees que critica eacute sempre relacionada por Nietzsche aos

instintos do pesquisador que apresenta esta posiccedilatildeo ou aos valores por traacutes de tais

interpretaccedilotildees A verdade ou falsidade destas posiccedilotildees eacute tomada pelo filoacutesofo sempre como

um efeito colateral dos valores sustentados por tais posiccedilotildees No entanto eacute claro que o

filoacutesofo natildeo poderia tomar suas posiccedilotildees como mais verdadeiras em sentido tradicional

posto que considerava tais concepccedilotildees como aspectos de sua interpretaccedilatildeo da realidade O

que significa dizer que elas tinham que ser tomadas como interpretaccedilotildees a partir de sua

perspectiva

Desde que a partir da concepccedilatildeo nietzschiana da realidade todos os fenocircmenos satildeo

redutiacuteveis agrave categoria de vontade de potecircncia a vida mesma passa a ser expressa como

uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia Logo os valores afirmativos da vida que se

manifestam atraveacutes de um sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia satildeo tidos nessa leitura

como valores superiores Novamente como compreender a superioridade destes valores se

abdicamos de uma suposta veracidade superior para os mesmos Esta superioridade se

deveria ao fato destas interpretaccedilotildees representarem de forma mais adequada uma

determinada configuraccedilatildeo de forccedilas que se mostraria ascendente naquele momento Como

interpretaccedilatildeo em que as forccedilas mais fortes ou um nuacutemero maior de forccedilas se expressa

uma posiccedilatildeo poderia no entender de Nietzsche ser tomada como refletindo de forma mais

afirmativa a vida e assim a proacutepria vontade de potecircncia

Por outro lado os valores morais que com o apoio da doutrina cristatilde obtecircm os

nomes mais elevados na tradiccedilatildeo filosoacutefica seriam consequecircncia de um estado em que

forccedilas menos fortes se agrupariam em torno de um fim Neste sentido enquanto sintoma de

forccedila descendente de forccedilas menos fortes estes valores seriam expressatildeo de tudo que eacute

inferior Por representarem uma configuraccedilatildeo descendente de forccedilas tais valores

inviabilizariam a vida que cresce constituindo-se em valores de negaccedilatildeo de tudo que eacute

161

necessaacuterio agrave sobrevivecircncia A estes valores que Nietzsche toma como expressatildeo mesma do

niilismo estaria ligada uma corrupccedilatildeo fundamental do animal homem

Digo que um animal uma espeacutecie um indiviacuteduo estaacute corrompido quandoperde seus instintos quando escolhe prefere o que lhe eacute desvantajosoUma histoacuteria dos ldquosentimentos superioresrdquo dos ldquoideais da humanidaderdquo ndashe eacute possiacutevel que eu tenha de escrevecirc-la ndash tambeacutem seria quase a explicaccedilatildeode porque o homem se acha tatildeo corrompido A vida mesma eacute para miminstinto de crescimento de duraccedilatildeo de acumulaccedilatildeo de forccedilas de poderonde falta a vontade de poder haacute decliacutenio Meu argumento eacute que a todosos supremos valores da humanidade falta essa vontade ndash que valores dedecliacutenio valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados(ACAC I sect6)

Como a citaccedilatildeo sugere na fase final de seu pensamento o filoacutesofo entende o

niilismo como a concomitacircncia de dois eventos a corrupccedilatildeo dos valores fundamentais e o

empobrecimento vital da espeacutecie o enfraquecimento da vontade de potecircncia Para

Nietzsche a vida como uma expressatildeo da vontade de potecircncia se constitui como luta

interminaacutevel por mais poder Por sua vez a afinidade a iacutentima relaccedilatildeo entre o niilismo e o

cristianismo enquanto filiados a um impulso para a piedade para a compaixatildeo denuncia

um certo cansaccedilo da espeacutecie que natildeo mais vecirc prazer na destruiccedilatildeo e como esta eacute apenas

uma face da criaccedilatildeo natildeo vecirc mais prazer na criaccedilatildeo propriamente Para a pergunta por que

os valores cristatildeos seriam valores niilistas Competiria responder porque nestes valores a

ambiccedilatildeo por poder eacute tomada como algo negativo Onde haacute vida haacute uma acumulaccedilatildeo de

poder onde falta o desejo dessa acumulaccedilatildeo falta a vida Corrupccedilatildeo decadecircncia e niilismo

estatildeo aqui vinculados a uma mesma ideia a destituiccedilatildeo de valor da vida Valores que

impossibilitam a vida satildeo tomados segundo essa leitura como valores niilistas e a estes eacute

atribuiacuteda a potecircncia corruptora por excelecircncia

O impulso para a piedade e agrave compaixatildeo comuns ao niilismo e ao cristianismo eacute

entendido por Nietzsche como impulso para a negaccedilatildeo de tudo que eacute afirmativo da vida

desde que vida mesma em sua leitura se opotildee agrave piedade O processo dinacircmico por ldquomais

poderrdquo se daacute em todas as formaccedilotildees de domiacutenio e o niilismo mesmo constitui apenas uma

ldquoparterdquo uma etapa do processo dinacircmico que caracteriza tudo aquilo que existe Como

162

tudo que existe ele apenas quer mais poder84 Assim o autor entende o niilismo como

movimento que confronta diretamente o apetite para o crescimento que eacute comum a tudo

que vive e que para Nietzsche na avaliaccedilatildeo segundo a moral da decadecircncia muitas vezes

se expressa na forma de crueldade

Nesse impulso para a morte na negaccedilatildeo da vida inerente a uma concepccedilatildeo cristatilde do

mundo estaria a justificativa para os ataques ferrenhos de Nietzsche ao cristianismo assim

como contra as pretensotildees da moral cristatilde a qual eacute vista na leitura nietzschiana como uma

tentativa de aprisionar o homem em valores ilusoriamente tomados como absolutos Com

base nessa concepccedilatildeo da moral cristatilde o filoacutesofo move sua genealogia como tentativa de

trazer agrave luz as negras raiacutezes dos ideais humanos Este procedimento mais do que

descortinar o caraacuteter ilusoacuterio das concepccedilotildees dogmaacuteticas eacute pensado como meio de tornar

vaacutelidas tambeacutem as demais criaccedilotildees humanas

Assim enquanto tendecircncia imobilizante a esta tendecircncia moral e epistemoloacutegica

estariam vinculados impulsos de morte O que aqui deve ser compreendido no sentido mais

amplo tanto quando diz respeito a um impulso para a verdade enquanto objetividade

entendida como a caracterizaccedilatildeo estaacutevel de uma realidade em movimento como quanto a

uma vontade de paz comum aos espiacuteritos religiosos Nesse sentido O Anticristo apresenta

os mais ferozes ataques de Nietzsche ao niilismo e a seus valores dos quais a compaixatildeo

destaca-se como elemento fundamental

Ousou-se chamar a compaixatildeo uma virtude (ndash em toda moral nobre eacuteconsiderada fraqueza ndash) foi-se mais longe fez-se dela a virtude o solo eorigem de todas as virtudes ndash apenas eacute verdade e natildeo se deve jamaisesquecer do ponto de vista de uma filosofia que era niilista queinscreveu no seu emblema a negaccedilatildeo da vida Schopenhauer estava certonisso atraveacutes da compaixatildeo a vida eacute negada tornada digna de negaccedilatildeo ndashcompaixatildeo eacute a praacutetica do niilismo (ACAC I sect7)

84 Ao fim e ao cabo a destruiccedilatildeo dos valores motivada pelo niilismo seria apenas uma expressatildeo danatureza que tem na destruiccedilatildeo de formas organizadas sua funccedilatildeo primordial por meio da qual obtecircm poderSegundo Giacoia ldquoUma formaccedilatildeo decadente eacute para Nietzsche uma Verkehtheit isto eacute uma totalidade postasob o impeacuterio de um movimento de inversatildeo de reversatildeo violenta de fins e propoacutesitos cujo ser e operarpotildeem em movimento a destruiccedilatildeo de uma determinada estrutura hierarquizada de forccedilas em relaccedilatildeo Estadestruiccedilatildeo eacute no entanto um lsquoevento natural do mundo orgacircnicorsquordquo (GIACOIA 1997 Paacuteg 21)

163

Por meio de uma anaacutelise genealoacutegica da compaixatildeo que teria se tornado um valor

fundamental tanto da filosofia quanto da moral de seus contemporacircneos o filoacutesofo nos

apresenta um processo de decadecircncia na passagem de uma moral nobre em que a

compaixatildeo era tomada como expressatildeo de fraqueza para a moral cristatilde85 Assim mais do

que uma virtude cristatildeo a compaixatildeo teria se tornado mesmo uma marca um sintoma dos

instintos desagregadores de sua eacutepoca

A compaixatildeo cristatilde eacute tomada aqui como expressatildeo de uma falta de higiene do

espiacuterito de modo que para Nietzsche ldquoNada eacute mais insalubre em meio a nossa insalubre

modernidade do que a compaixatildeo cristatilderdquo e seria necessaacuterio com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo

cristatilde ldquoser meacutedico aqui ser inexoraacutevel aqui usar a faca ndash isso pertence a noacutes esse eacute nosso

modo de amor ao homem com isso noacutes somos filoacutesofos noacutes hiperboacutereosrdquo (ACAC I

sect7) Com isto o filoacutesofo pretendeu afirmar o verdadeiro papel do filoacutesofo na forma da

eterna inimizade para com a compaixatildeo como fundamento do valor Pois em sua leitura a

compaixatildeo estaria ligada de forma inseparaacutevel agrave decadecircncia

Repito esse instinto depressivo e contagioso entrava os instintos quetendem agrave conservaccedilatildeo e elevaccedilatildeo do valor da vida eacute um instrumentocapital na intensificaccedilatildeo da decadeacutence como um multiplicador damiseacuteria e como conservador de tudo que eacute miseraacutevel ndash a compaixatildeopersuade ao nadahellip Mas natildeo se diz ldquonadardquo diz-se ldquoaleacutemrdquo ou ldquoDeusrdquoou ldquoa verdadeira vidarsquo ou nirvana salvaccedilatildeo bem-aventuranccedilahellip Estainocente retoacuterica do acircmbito da idiossincrasia moral-religiosa parecemuito menos inocente quando se nota qual a tendecircncia que aiacute veste omanto das palavras sublimes a tendecircncia hostil agrave vida (ACAC I sect7)

O fato do autor enfatizar aqui a expressatildeo ldquoa verdadeira vidardquo natildeo eacute ocasional

como se pode perceber Esta expressatildeo carregaria um certo sentido teoloacutegico por traacutes do

qual se esconde um certo anseio pelo nada uacutenica realidade possiacutevel por traacutes da cortina dos

valores ensinados pela religiatildeo86 Por meio desta consideraccedilatildeo criacutetica do cristianismo

85 Conforme nota da seccedilatildeo anterior acerca da revoluccedilatildeo dos escravos na moral em Genealogia da Moralou seja da mudanccedila de paradigma dos valores morais constituidores da cultura romana para os valoresmorais cristatildeos originados no interior da cultura judaica86 Leia-se novamente o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[35]) em que o niilismo passivo eacute apresentadocomo uma divinizaccedilatildeo de tudo que eacute decadente atraveacutes da valorizaccedilatildeo exacerbada de tudo que ldquorefrescacura tranquiliza anestesiardquo que passa para o primeiro plano de consideraccedilatildeo humana sob ldquodisfarcesdiversosrdquo O fato do filoacutesofo referir-se ainda ao ldquoNirvanardquo indica a proximidade com que considera tanto ocristianismo quanto o budismo ambos como sendo posicionamentos niilistas que pregam sob os mais belos

164

apresentado como um subterfuacutegio por meio do qual inocular os valores do niilismo o autor

combate a crenccedila na sacralidade dos valores morais fundamentados pela religiatildeo cristatilde No

entanto cumpre salientar que o ataque ao cristianismo nestas reflexotildees natildeo seria o cerne

mas apenas uma consequecircncia do ataque ao niilismo

De que o ataque de Nietzsche ao cristianismo seria apenas a consequecircncia de um

ataque mais amplo a toda uma forma de consideraccedilatildeo da realidade o autor nos demonstra

em diversas passagens do anticristo em que associa cristianismo e budismo agrave mesma

tendecircncia negativa em relaccedilatildeo ao impulso para ser mais proacuteprio de tudo que vive Ou seja

a renuacutencia a este iacutempeto de criaccedilatildeo e expansatildeo teria como substrato uma tendecircncia mais

geral o niilismo propriamente como tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo Desta forma tendo em

vista esclarecer que sua criacutetica ao cristianismo assim como ao budismo tinha no niilismo

um alvo mais geral o autor afirma natildeo querer fazer injusticcedila a estas duas expressotildees

religiosas Isto mesmo quando considera que ldquoAmbas devem ser classificadas entre as

religiotildees niilistasrdquo e logo que ldquoambas satildeo religiotildees de decadecircnciardquo (ACAC I sect20)De

fato o autor ateacute demonstra certa afinidade com os princiacutepios do budismo sobretudo sua

epistemologia que assim como a concepccedilatildeo sustentada por Nietzsche seria ldquoum

fenomenismo estritordquo (ACAC I sect20)

Apesar de sua determinaccedilatildeo se dirigir ao niilismo e de ateacute mesmo demonstrar certa

admiraccedilatildeo pelo budismo87 Nietzsche deixa claro em O Anticristo que o instinto teoloacutegico

seria uma ameccedila subterracircnea agrave vida na medida em que de forma velada propagaria os

valores da negaccedilatildeo da realidade em prol de uma realidade inexistente Nesta leitura o

filoacutesofo considera toda virtude religiosa como uma maacutescara um simulacro para camuflar

os reais propoacutesitos da moral que seria a extinccedilatildeo da vida por meio da supressatildeo de suas

manifestaccedilotildees mais fortes mais sadias Com isso uma desvalorizaccedilatildeo de todo sentimento

de forccedila tem lugar e todo instinto de criaccedilatildeo eacute suplantado a partir do instinto teoloacutegico

Assim tambeacutem a compaixatildeo a virtude cristatilde por excelecircncia eacute vista como um disfarce por

nomes o desejo do nada87 O budismo via de regra eacute considerado por Nietzsche uma forma superior de niilismo passivo Seja emsua consideraccedilatildeo da epistemologia budista como um ldquofenomenismo estritordquo seja em sua consideraccedilatildeo assuas prescriccedilotildees bem ao gosto de Nietzsche como tendo uma prescriccedilatildeo de fundo higiecircnico Vida ao ar livreviagens todas formas de combater uma depressatildeo originada em uma profunda sensibilidade ao sofrimentoesta forma de niilismo exime-se das criacuteticas agudas que o filoacutesofo impotildee ao cristianismo e sua moral Nascomparaccedilotildees que o filoacutesofo apresenta entre o cristianismo e o budismo Nietzsche realccedila o caraacuteter meramenteobjetivo da consideraccedilatildeo budista do mundo que em oposiccedilatildeo ao cristianismo natildeo enfrenta uma luta entre obem e o mal na forma de uma luta contra o pecado

165

meio do qual o niilismo esconderia seu rosto doentio no manto dos valores cristatildeos Como

disfarce por meio do qual seriam inoculados os valores niilistas o instinto teoloacutegico se

expressaria por meio da feacute uma espeacutecie de maacute visatildeo para com a realidade

A este instinto de teoacutelogo eu faccedilo guerra encontrei sua pista em todaparte Quem possui sangue de teoacutelogo no corpo jaacute tem ante todas ascoisas uma atitude enviesada e desonesta O paacutethos que daiacute se desenvolvechama a si mesmo de feacute cerrar os olhos a si mesmo de uma vez portodas para natildeo sofrer da visatildeo da incuraacutevel falsidade Dessa defeituosaoacutetica em relaccedilatildeo agraves coisas a pessoa faz uma moral uma virtude umasantidade vincula a boa consciecircncia agrave falsa visatildeo ndash exige que nenhumaoutra oacutetica possa mais ter valor apoacutes tornar sacrossanta a sua proacutepriausando as palavras ldquoDeusrdquo ldquosalvaccedilatildeordquo ldquoeternidaderdquo (ACAC I sect9)88

Como uma maacute visatildeo para com a falsidade que se transveste de boa consciecircncia a feacute

se expressa como um fechar os olhos para todo defeituoso que se encontra a nosso alcance

Este fechar os olhos para todo defeituoso torna-se um defeito na oacutetica do instinto teoloacutegico

que ignora que a vida depende fundamentalmente de falsidades Do mesmo modo a vida

parece se fortalecer com base nessas falsidades ineliminaacuteveis Esta oacutetica da vida nesse

sentido se confundiria com a oacutetica humana a oacutetica dos valores humanos

Aqui Nietzsche retoma uma concepccedilatildeo que sustenta desde seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira e que permanece no periacuteodo intermediaacuterio de sua obra A concepccedilatildeo

segundo a qual a vida depende fundamentalmente de certos erros para sua manutenccedilatildeo Por

outro lado agrave moral que se fundamenta na feacute nega esta caracteriacutestica fundamental da vida e

por isto se torna uma concepccedilatildeo niilista A esta moral niilista que eacute criada a partir dos

instintos teoloacutegicos estaria vinculada uma perspectiva defeituosa que estimula a natildeo

enxergar o defeituoso na existecircncia e que ao mesmo tempo deturpa o valor de outras

perspectivas A feacute agiria no sentido de fazer parecer toda outra perspectiva todo enxergar a

falsidade na realidade como moralmente defeituosa Esta deturpaccedilatildeo do valor de outras

oacuteticas seria propriamente o que se chama moral religiosa enquanto a negaccedilatildeo de toda

perspectiva que natildeo eacute tornada sacrossanta pela feacute ou seja que natildeo eacute contaminada pela

oacutetica defeituosa da feacute

88 Acompanhamos a traduccedilatildeo de David Jardim Juacutenior para a editora Nova Fronteira

166

Haacute que se pensar que a rejeiccedilatildeo nietzschiana dessa moral assim como da

perspectiva moral que lhe sustenta natildeo se relaciona com um problema teoloacutegico Natildeo

interessa ao filoacutesofo os problemas religiosos assim como a feacute mesma natildeo seria um

problema para o autor de O Anticristo No entanto enquanto parte de um movimento mais

amplo enquanto instrumento para a expansatildeo do niilismo esta perspectiva se torna algo a

ser criticado Importante nesse sentido compreender que a moral teoloacutegica natildeo respeita os

limites da mera religiatildeo se expandindo para diversas aacutereas da experiecircncia humana Motivo

pelo qual Nietzsche afirma encontrar este instinto teoloacutegico em todas as partes

Desencavei o instinto de teoacutelogo em toda parte eacute a mais disseminada aforma realmente subterracircnea de falsidade que existe na Terra O que umteoacutelogo percebe como verdadeiro tem de ser falso aiacute se tem quase queum criteacuterio da verdade Seu mais fundo instinto de conservaccedilatildeo proiacutebeque a realidade receba as honras ou mesmo assuma a palavra em algumponto Ateacute onde vai a influecircncia do teoacutelogo o julgamento de valor estaacute decabeccedila para baixo os conceitos de ldquoverdadeirordquo e ldquofalsordquo estatildeonecessariamente invertidos o que eacute mais prejudicial agrave vida chama-seldquoverdadeirordquo o que a realccedila eleva afirma justifica e faz triunfar chama-se ldquofalsordquohellip se acontece de os teoacutelogos atraveacutes da ldquoconsciecircnciardquo dospriacutencipes (ou dos povos ndash ) estenderem a matildeo para o poder natildeoduvidemos do que no fundo sempre se daacute a vontade de fim a vontadeniilista quer alcanccedilar o poder(ACAC I sect9)

A reflexatildeo que encontramos aqui entre a amplitude da esfera de atuaccedilatildeo dos

instintos teoloacutegicos e a questatildeo da verdade natildeo eacute acidental A radicalidade da criacutetica

nietzschiana a esta fragilidade fundamental da concepccedilatildeo teoloacutegica chega tatildeo longe a

ponto de quase tornar em princiacutepio de verdade a contraposiccedilatildeo agraves suas suposiccedilotildees

Nietzsche percebe na atuaccedilatildeo destes instintos a expansatildeo de uma moral niilista sob

diferentes aspectos da existecircncia humana que se tornam contaminados por um princiacutepio de

desvalorizaccedilatildeo que toma de assalto tudo o que interessaria agrave vida ser tomado como

verdadeiro Assim como uma maacute vontade para tudo que eacute defeituoso enquanto visatildeo

radicalmente contraacuteria aos elementos mais fundamentais de toda visatildeo a concepccedilatildeo

teoloacutegica da realidade distingue-se como visatildeo falsa por definiccedilatildeo Eacute contra esta forma de

maacute perspectiva que Nietzsche impotildee uma concepccedilatildeo de perspectividade de todo conhecer

167

Pois em sua leitura Nietzsche entende como verdadeiro tudo que se reconhece no caraacuteter

perspectivo relativo de toda concepccedilatildeo da realidade

Na leitura apresentada pelo autor a boa consciecircncia cristatilde que teria por base uma

visatildeo defeituosa seria profundamente marcada por uma incapacidade de perceber a

necessidade das perspectivas incapaz de atribuir valor a qualquer outra forma de ver

Assim a feacute nesta leitura seria a covarde negaccedilatildeo do caraacuteter aparente que eacute necessaacuterio agrave

existecircncia como negaccedilatildeo da falsidade inerente a toda forma de vida A suposiccedilatildeo de uma

perspectiva privilegiada proveniente da feacute seria assim um dos defeitos congecircnitos de toda

consideraccedilatildeo teoloacutegica da realidade

A compreensatildeo nietzschiana desta forma de considerar a realidade ao postular que

essa perspectiva limitativa tem sua origem em uma ldquovisatildeo defeituosardquo se associa em seu

pensamento agrave necessidade de se conceber uma forma de valorar que seja contraacuteria agrave loacutegica

do niilismo Em seu julgamento criacutetico o que torna a oacutetica teoloacutegica algo condenaacutevel seria

sua incapacidade em captar a falsidade como elemento fundamental da realidade Por outro

lado esta forma de se compreender as coisas eacute entendida como defeituosa porque lhe falta

o caraacuteter criativo inerente a todo olhar que se entende como um projetar o mundo a partir

de seu ponto de vista

A leitura nietzschiana do caraacuteter epistemoloacutegico da posiccedilatildeo teoloacutegica passa por uma

qualificaccedilatildeo do criteacuterio fisioloacutegico de verdade em contraposiccedilatildeo a uma caracterizaccedilatildeo

negativa dos valores morais Segundo esta leitura assim como a concepccedilatildeo teoloacutegica

constitui seus valores com base em uma atividade instintiva de negaccedilatildeo da vida tambeacutem

uma forma afirmativa de vida constitui seus valores atraveacutes da atuaccedilatildeo de seus instintos

Pois a potecircncia criativa que gera as perspectivas eacute vista pelo filoacutesofo como uma

manifestaccedilatildeo da proacutepria vontade por traacutes da realidade

O que a anaacutelise do instinto teoloacutegico nos ensina eacute que em um sentido fundamental

Nietzsche pensa que toda perspectiva parte de uma determinada configuraccedilatildeo instintual

Satildeo os instintos teoloacutegicos que orientam a formaccedilatildeo de uma moral niilista uma moral que

rejeita a realidade Dessa moral em outros termos desta primeira unidade de formaccedilatildeo de

valores surge a oacutetica que orienta os filoacutesofos metafiacutesicos a buscarem uma outra realidade

que natildeo a realidade das falsidades indispensaacuteveis agrave vida para fundamentar sua concepccedilatildeo

168

de verdade Nesse sentido a verdade mesma natildeo eacute tomada mais do que como um

indicativo de forccedila ou decadecircncia O valor mesmo recai natildeo sobre a veracidade da feacute mas

na configuraccedilatildeo de instintos que impulsiona a feacute em determinadas verdades

Estes instintos satildeo vistos por Nietzsche como manifestaccedilotildees de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedila Deste modo a criaccedilatildeo dos valores correspondente a uma atividade

instintual afirmativa em relaccedilatildeo agrave existecircncia dependeria tambeacutem de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedilas Em sua leitura os valores da moral teoloacutegica nunca satildeo tomados

como orientados para uma forma menos verdadeira de avaliaccedilatildeo da realidade Eles satildeo

considerados inferiores porque direcionados a uma forma de avaliar a vida que constrange

seu crescimento Do mesmo modo devemos supor que os valores criados a partir de uma

perspectiva afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida natildeo seriam mais verdadeiros do que os valores da

moral teoloacutegica No entanto enquanto guiados por uma oacutetica em que a falsidade da

realidade natildeo eacute ignorada estes valores seriam mais afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida

Se tomarmos estes valores como expressatildeo da verdade segundo as diferentes oacuteticas

em anaacutelise entatildeo chegaremos agrave conclusatildeo que o autor de Anticristo oferece uma anaacutelise de

seu valor sem levar em conta sua veracidade propriamente mas sua afinidade com as

exigecircncias da vida Em outras palavras importa mais ao autor o que se toma por

verdadeiro e o motivo pelo qual se toma isto por verdadeiro do que a verdade do que se

toma por verdadeiro Assim desde que ao fim aos valores criados nenhuma realidade

superior estaacute ligada tanto no caso da concepccedilatildeo teoloacutegica como no caso de uma concepccedilatildeo

afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida a veracidade em sentido tradicional natildeo importa para a

consideraccedilatildeo de sua validade

A liccedilatildeo que a anaacutelise dos valores teoloacutegicos nos ensina eacute que a oacutetica de onde uma

determinada moral eacute forjada eacute determinada por uma certa configuraccedilatildeo instintual que

determina seu valor Desde que o filoacutesofo entende que desde sempre nos movemos apenas

em meio a inverdades o fundamental seria caracterizar o valor destas inverdades para a

vida pois ldquoDe fato faz uma grande diferenccedila com que finalidade se mente se com isso

se conserva ou destroacuteirdquo (ACAC I sect58) Por outro lado ao cristianismo parece pertencer

um impulso para a negaccedilatildeo da realidade que nega inclusive esta negaccedilatildeo ela mesma ou

seja a moral cristatilde para o filoacutesofo parece fundamentar-se no esquecimento de seu valor

enquanto interpretaccedilatildeo

169

Na compreensatildeo nietzschiana nessa adoraccedilatildeo do aleacutem como uma doenccedila que se

propaga por meio da cultura o niilismo ameaccedila o futuro do homem na exata medida em

que os cientistas e filoacutesofos consideram avanccedilar em seu conhecimento do mundo O autor

sinaliza o avanccedilo desta concepccedilatildeo sobre as demais esferas da experiecircncia humana atraveacutes

de sua denuacutencia da confluecircncia da filosofia e da religiatildeo assim como no crescente apreccedilo

pela compaixatildeo como virtude uacuteltima na moral Esta compreensatildeo eacute vista por Nietzsche

como contraacuteria a tudo que era tomado como bom senso em filosofia ateacute Kant89 como

atesta o reconhecimento de ilustres pensadores anteriores a si como representantes

destacados da criacutetica agrave compaixatildeo

Atraveacutes dessa leitura todo impulso metafiacutesico eacute visto pelo filoacutesofo como tendecircncia

funesta impulso para o nada disfarccedilado de vontade de verdade Por esse motivo a vontade

de verdade estaria intrinsecamente associada agrave vontade de morte enquanto vontade de que

cesse o vir-a-ser da existecircncia Por outro lado o avanccedilo da concepccedilatildeo filosoacutefica que vecirc na

compaixatildeo a virtude moral por excelecircncia apresenta-se para Nietzsche como sintoma do

avanccedilo do proacuteprio niilismo que passa aos olhos desapercebidos dos filoacutesofos europeus na

figura do melhoramento do homem90

89 A opiniatildeo de Nietzsche acerca da moral kantiana eacute sujeita a alguma variaccedilatildeo no interior de sua obraEmbora aqui Kant apareccedila entre os filoacutesofos ilustres que antes de Nietzsche se contrapuseram agrave compaixatildeocomo virtude em O Anticristo Nietzsche reproduziraacute uma extensa criacutetica agrave moral kantiana a associando auma forma niilista de consideraccedilatildeo do mundo ldquoAlgumas palavras agora contra Kant como moralista Umavirtude tem de ser nossa invenccedilatildeo deve brotar de nossas necessidades naturais para nossa defesa Emqualquer outro caso eacute uma fonte de perigo Tudo que natildeo pertence agrave nossa vida a ameaccedila uma ldquovirtuderdquocomo Kant queria eacute perniciosa ldquoVirtuderdquo ldquodeverrdquo o ldquobem pelo bemrdquo a bondade baseada na impessoalidadeou em uma noccedilatildeo de validez universal ndash tudo isso natildeo passa de quimeras e nelas encontramos apenas umaexpressatildeo de decadecircncia o uacuteltimo colapso da vida o espiacuterito chinecircs de Koumlnigsberg Exatamente o contraacuterio eacuteexigido pelas mais profundas leis da autopreservaccedilatildeo e do desenvolvimento perceber que todo homemencontra sua proacutepria virtude o seu proacuteprio imperativo categoacuterico Uma naccedilatildeo se despedaccedila quandoconfunde o seu dever com o conceito geral de dever Nada provoca mais completo e pungente desastre doque todo dever ldquoimpessoalrdquo todo sacrifiacutecio diante do Moloc da abstraccedilatildeo Pensar-se que ningueacutem achou oimperativo categoacuterico de Kant perigoso para a vidahellip Somente o instinto teoloacutegico o tomou sob suaproteccedilatildeo ndash uma accedilatildeo motivada pelo instinto vital mostra-se uma accedilatildeo correta pela quantidade de prazer quetraz consigo no entanto aquele niilista com as suas entranhas de dogmatismo cristatildeo considera o prazercomo uma objeccedilatildeohelliprdquo (ACAC I sect11)90 No aforismo onze do segundo livro de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Nietzsche opotildee sua concepccedilatildeo de moralcomo obediecircncia aos instintos agrave concepccedilatildeo que equaciona felicidade com a obediecircncia agrave Razatildeo e que entendeo ensinamento da subserviecircncia agrave Razatildeo como uma forma de moral do aperfeiccediloamento Jaacute no livro seacutetimoda mesma obra intitulada Os ldquomelhoradores da humanidaderdquo o autor parte da compreensatildeo da inexistecircnciade ldquofatos moraisrdquo para qualifica a moral como uma maacute interpretaccedilatildeo de determinados fenocircmenos Nessesentido aquilo que os pregadores morais teriam realizado sob a prerrogativa de melhoramento dahumanidade apenas teria significado um amansamento uma debilitaccedilatildeo da forccedila inerente ao homem(GDCI VII sect2)

170

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo

Em um fragmento poacutestumo de 1885 ou 1886 que pertenceu aos planos para um

livro acerca do niilismo europeu (Der europaumlische Nihilismus)91 Nietzsche apresenta uma

reflexatildeo profunda acerca da emergecircncia do niilismo Nessa reflexatildeo o autor pensa que o

niilismo como consequecircncia de um processo em curso de desvalorizaccedilatildeo da realidade

estaria estreitamente relacionado ao fato de que nossa realidade natildeo pode ser desvinculada

de nossa oacutetica de avaliaccedilatildeo

Mais do que a mera desvalorizaccedilatildeo da realidade por conta de sua falsidade

estrutural o niilismo implicaria uma rejeiccedilatildeo do valor de tudo aquilo que natildeo pertenceria agrave

realidade de maneira certa e incorruptiacutevel Em outros termos tudo que eacute acrescentado agrave

realidade por meio da atividade humana eacute tomado em uma leitura niilista como

contaminaccedilatildeo Quase como se por meio de nossa interpretaccedilatildeo da realidade a

destituiacutessemos de valor por acrescentar a ela a limitaccedilatildeo caracteriacutestica de nossa oacutetica

Por outro lado segundo a compreensatildeo nietzschiana uma realidade tal como o

homem a venera em sua eternidade e veracidade natildeo teria valor para noacutes Pois tudo que

tem valor na realidade para o homem eacute produto de sua atividade de interpretaccedilatildeo Para noacutes

tem valor o mundo em que vivemos que criamos que somos Assim o filoacutesofo afirma

que ldquoOcasiona o seu ocaso a oposiccedilatildeo do mundo que noacutes veneramos do mundo em que

noacutes vivemos que noacutes somosrdquo (NFFP 1885 2[131])92 Com isso Nietzsche pretendia

assinalar que diante da eminecircncia de uma forma radical de niilismo teriacuteamos duas opccedilotildees

ou aboliriacuteamos nossa adoraccedilatildeo do mundo ideal ou de noacutes mesmos Segundo sua leitura a

segunda forma seria uma expressatildeo do niilismo cuja emergecircncia o autor considerava uma

certeza como expressatildeo do desenvolvimento do pessimismo inerente agrave valorizaccedilatildeo da

91 Extraiacutedo de (eKGWBNF-18852[131] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1885 mdash Herbst 1886)Exceto menccedilatildeo em contraacuterio para a traduccedilatildeo foram utilizadas as traduccedilotildees de Marco Antocircnio Casanova parao volume VI das traduccedilotildees dos fragmentos poacutestumos da editora Forense Universitaacuteria92 Segundo Araldi (ARALDI 1998 Paacutegs 77) esse aforismo pertence aos planos para elaboraccedilatildeo de A GaiaCiecircncia correspondendo ao aforismo 346 onde Nietzsche diz ldquoNatildeo caiacutemos exatamente com isso nasuspeita de uma oposiccedilatildeo uma oposiccedilatildeo entre o mundo no qual ateacute hoje nos sentiacuteamos em casa com nossasveneraccedilotildees ndash em virtude das quais talvez suportaacutessemos viver ndash e um outro mundo que somos noacutes mesmosnuma inexoraacutevel radical profunda suspeita acerca de noacutes mesmos que cada vez mais e de forma cada vezpior toma conta de noacutes europeus e facilmente poderia colocar as geraccedilotildees vindouras ante essa terriacutevelalternativa lsquoou suprimir suas veneraccedilotildees ou ndash a si mesmosrsquo esta seria niilismo mas aquela natildeo seria tambeacutemndash niilismo Eis a nossa interrogaccedilatildeordquo (FWGC V sect346)

171

realidade segundo os juiacutezos de valor cristatildeo que eram juiacutezos de valor moral baseado na

ldquovontade de verdaderdquo

O diagnoacutestico do filoacutesofo eacute claro se queremos superar o niilismo temos que

escolher entre uma realidade ideal e a realidade de nossas valoraccedilotildees a realidade em que

vivemos que noacutes somos Como forma de se contrapor ao niilismo restaria ao homem uma

valorizaccedilatildeo da realidade de nossas impressotildees como valor em si mesma Estas satildeo as

consequecircncias que se pode extrair das vaacuterias conclusotildees da filosofia nietzschiana acerca da

relaccedilatildeo entre a vida e a verdade Ou seja se nessa leitura a vida apenas pode prosperar no

que eacute perspetivo se a vida depende fundamentalmente de falsidade a realidade ideal seria

um siacutembolo para nossa extinccedilatildeo Assim ao homem interessaria sobretudo abrir matildeo de

uma realidade ideal em prol da realidade de suas proacuteprias avaliaccedilotildees

No entanto a ideia de uma realidade ideal apenas eacute operante na filosofia da

antiguidade Assim como uma forma de traduzir este problema para sua eacutepoca o filoacutesofo

converte a ideia de um colapso da realidade ideal na ideia da morte de Deus O Deus veraz

que eacute traduzido na filosofia moderna como o grande garantidor da verdade substitui na

filosofia contemporacircnea a ideia de uma realidade ideal Com o anuacutencio da morte de Deus

que aparece no fim do periacuteodo intermediaacuterio da obra nietzschiana93 o filoacutesofo identifica o

estado geral do homem moderno com a ausecircncia do valor supremo da vida considerado

ateacute entatildeo como uacutenica garantia de felicidade para o homem num aleacutem-mundo

A passagem em que a morte de Deus eacute revelada na obra nietzschiana de forma mais

expressiva e rica de sentido eacute o aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia Nesta passagem que

ocupa um lugar estrateacutegico no livro trecircs daquela obra logo apoacutes o louvor do horizonte

aberto agraves novas descobertas e antes de uma seacuterie de explicaccedilotildees acerca das supersticcedilotildees

religiosas94 o autor nos potildee diante do evento decisivo da morte de Deus

93 Pela primeira vez em A Gaia Ciecircncia e novamente em Assim Falou Zaratustra94 Para efeito de compreensatildeo o tiacutetulo dos aforismos que se seguem ao 125 satildeo 126 Explicaccedilotildees miacutesticas127 Efeito posterior da antiga religiosidade 128 O valor da oraccedilatildeo 129 As condiccedilotildees para Deus 130 Umadecisatildeo perigosa breve reflexatildeo acerca do fato da decisatildeo cristatilde de achar o mundo feio e ruim que acaba portornar o mundo feio e ruim 131 o cristianismo e o suiciacutedio 132 contra o cristianismo e outros queapresentam sempre a ideia de uma criacutetica agraves crenccedilas religiosas inclusive agraves do cristianismo comosupersticcedilotildees mal fundadas Isto ateacute o 145 que apresenta uma variaccedilatildeo do tema na criacutetica ao vegetarianismoApoacutes este o autor apresenta uma criacutetica ao nacionalismo alematildeo e a seguir volta a atacar o cristianismo

172

O louco saltou no meio deles e os transpassou com os olhos ldquoOnde estaacuteDeus ele chorou eu quero te dizer Noacutes o matamos ndash vocecirc e eu Somostodos seus assassinos Mas como fizemos isso Como pudemos beber omar Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro O quefizemos ao desatar a terra do seu sol Onde eles estatildeo se movendo agoraPara onde vamos Longe de todos os soacuteis Natildeo estamos mergulhandocontinuamente Para traacutes para os lados para frente em todas asdireccedilotildees Existe ainda algum em cima ou para baixo Natildeo estamosvagando como que atraveacutes de um nada infinito Natildeo sentimos na pele osopro do vaacutecuo Natildeo ficou mais frio Natildeo permanece sempre a noite emais noite Natildeo se tem que acender lanternas de manhatilde Natildeo ouvimos obarulho da cova de Deus sendo cavada Natildeo sentimos o cheiro daputrefaccedilatildeo divina - Deuses tambeacutem decompotildeem-se Deus estaacute mortoDeus continua morto E noacutes o matamos Como havemos de nos consolaros assassinos de todos os assassinos O santo e mais poderoso que omundo ateacute entatildeo possuiacutea ele sangrou ateacute a morte em nossas facas - quemvai limpar o este sangue de noacutes Com que aacutegua poderiacuteamos nospurificar A expiaccedilatildeo que jogos sagrados teremos de inventar natildeo amagnitude desta obra muito grande para noacutes Natildeo devemos nos tornarDeuses simplesmente para aparecer digno Nunca houve uma maior accedilatildeondash e quem eacute nascido depois de noacutes pertence a este ato de amor de umamaior histoacuteria de toda a histoacuteria ateacute aqui (FWGC Livro III sect125)

O clima geral de duacutevida em torno do anuacutencio da morte de Deus parece tornar clara

a ideia fundamental de que com a extinccedilatildeo deste fundamento uacuteltimo da veracidade todo

posicionar-se eacute determinantemente abalado Por isso o texto faz menccedilatildeo agrave concepccedilotildees

cientiacuteficas como a ideia da gravitaccedilatildeo da terra em torno do sol o qual ainda se relaciona

com a concepccedilatildeo platocircnica de bem que eacute representada como o sol que ilumina a verdade

e portanto reforccedila a ideia de que o racionalismo da ciecircncia se relaciona com a crise da

verdade representada pela morte de Deus

Deus como siacutembolo de uma realidade ideal inexistente que chega a seu colapso na

filosofia Nietzscheana O que significa neste contexto que toda a busca por certezas ou a

vontade de verdade proacutepria da ciecircncia satildeo interpretados nessa leitura como oriundos de

um empreendimento desprovido de sentido Pois na medida em que o processo mesmo de

desenvolvimento das ciecircncias foi guiado por uma vontade de verdade sobretudo a partir do

seacuteculo XIX entatildeo o que condiciona seu desenvolvimento eacute uma loacutegica interna de auto-

supressatildeo Isto porque eacute o proacuteprio avanccedilo da moralidade cristatilde que condiciona esta

vontade de verdade Por sua vez o aacutepice do desenvolvimento desta moralidade cristatilde eacute a

consciecircncia da falta de sentido da proacutepria vontade de verdade Assim diante da

necessidade que a moralidade cristatilde ocasiona desta efetuar sua proacutepria criacutetica o colapso

173

do edifiacutecio teoacuterico criado pela racionalidade ocidental jaacute podia estar determinado desde a

fundaccedilatildeo de seus alicerces

Eacute a proacutepria exigecircncia de rigor da ciecircncia que eacute uma consequecircncia da moralidade

cristatilde presente neste empreendimento teoacuterico que gera as condiccedilotildees para o colapso de seu

fundamentos Este colapso tem sua expressatildeo mais clara na filosofia nietzschiana na ideia

da morte de Deus no colapso da proacutepria moralidade cristatilde por conta de suas proacuteprias

exigecircncias Por sua vez a ciecircncia que se deixa determinar por essa moralidade encontra

seu colapso no colapso da ideia de um fundamento uacuteltimo para a verdade representado

aqui na ideia de Deus

A destituiccedilatildeo de validade de um sistema de crenccedilas e conhecimento a ciecircncia

mesma perece por forccedila das contradiccedilotildees internas da moralidade a partir da qual se

desenvolveu Atinge seu ponto de validade mais baixo por determinaccedilatildeo de seus proacuteprios

fundamentos morais Ou seja na medida em que o mundo ideal pensado por Nietzsche

como sendo a proacutepria expressatildeo de nosso ponto mais baixo em termos de vitalidade

corresponderia em sua eacutepoca agrave ideia de Deus o filoacutesofo concebe a morte de Deus como

correlato agrave supressatildeo da realidade ideal De maneira que o ldquomaior de todos os eventosrdquo eacute

percebido em sua filosofia como evento marcante no processo de desenvolvimento do

niilismo

2) O cristianismo perecendo de sua moral ldquoDeus eacute a verdaderdquo ldquoDeus eacute oamorrdquo ldquoo Deus justordquo ndash o maior de todos os eventos ndash ldquoDeus estaacute mortordquondash sentido de maneira grosseira A tentativa alematilde de transformar ocris[tianismo] em uma gnose eacute recusada por uma desconfianccedila profundao ldquoinveriacutedicordquo aiacute eacute experimentado da maneira mais forte o possiacutevel(contra Schelling por exemplo) (NFFP 1885 2[131])

Nietzsche analisa a pouca influecircncia desse evento ainda em sua eacutepoca e concluiacute que

este evento ainda era sentido de forma grosseira em contraposiccedilatildeo por exemplo a uma

tentativa de se reorganizar o cristianismo decadente transformando-o em uma expressatildeo

da ciecircncia Em um outro fragmento poacutestumo de 1886 ou 188795 outro plano para o

trabalho intitulado O Niilismo Europeu Nietzsche reflete sobre o niilismo ativo e sua

95 Idem (eKGWBNF-18865[71]) mdash Nachgelassene Fragmente Sommer 1886 mdash Herbst 1887 citado nocapiacutetulo anterior paacuteg 138

174

expressatildeo na moral cristatilde Em sua leitura o fato dessa moral natildeo haver ocasionado um

aumento na indigecircncia ou seja uma intensificaccedilatildeo no empobrecimento intelectual da

Europa favorece sua crenccedila de que tal seria consequecircncia de uma alianccedila entre a

intelectualidade e a moral cristatilde Nesse sentido os eruditos como manifestaccedilotildees do

niilismo ativo teriam mesmo se utilizado dos artifiacutecios da moral cristatilde como meios para

sua conservaccedilatildeo

Estes fragmentos como se vecirc satildeo contemporacircneos ao periacuteodo de preparaccedilatildeo de A

Gaia Ciecircncia periacuteodo em que Nietzsche refletia fortemente acerca da morte de Deus e sua

relaccedilatildeo com o niilismo conceito que no entanto natildeo aparece nos livros anteriores ao livro

cinco daquela obra Assim uma anaacutelise daquele que considerava o maior de todos os

eventos pertencia aos seus planos de anaacutelise do fenocircmeno niilismo evento narrado ainda

nos primeiros livros daquela obra e que portanto haviam sido elaborados de forma

passiacutevel agrave publicaccedilatildeo antes de suas conclusotildees acerca do niilismo terem tomado uma

forma apresentaacutevel

Na medida em que o niilismo enquanto movimento histoacuterico de desvalorizaccedilatildeo

dos valores relaciona-se com o conceito de Deus enquanto fundamento uacuteltimo da

verdade o niilismo mais extremo adquire sentido positivo a partir da queda do uacuteltimo e

mais elevado dos valores que fundamentam a concepccedilatildeo filosoacutefica ocidental Para

Nietzsche o niilismo apenas se torna expressatildeo de um grande risco na Europa por conta

de sua associaccedilatildeo com os valores inerentes a uma concepccedilatildeo moral da realidade

notadamente sua concepccedilatildeo de um mundo do aleacutem apartado do mundo dos fenocircmenos No

entanto eacute esta mesma forma de moralidade que culminando no sentido de uma necessaacuteria

veracidade conduz ao colapso das consideraccedilotildees advindas da forma cristatilde de consideraccedilatildeo

da realidade como diz Araldi

A moral cristatilde eacute o evento determinante do Ocidente No cristianismo ainterpretaccedilatildeo moral da existecircncia e do mundo se impotildee em todo o seusignificado e com pretensatildeo absoluta de domiacutenio A vontade de verdadeou a ambiccedilatildeo metafiacutesica de certeza tem sua gecircnese jaacute em Soacutecrates ePlatatildeo mas eacute no cristianismo que ela desdobra a amplitude de seu sentidoe de seu caraacuteter problemaacutetico e ambiacuteguo A vontade de verdade quenasce da moral cristatilde volta-se contra a moral contra a necessidade dementira e falsificaccedilatildeo do mundo que ela comporta (ARALDI 1998Paacutegs 79)

175

A vontade de verdade impulsionada pela consideraccedilatildeo cristatilde da realidade aponta

para uma criacutetica da consideraccedilatildeo falsa do mundo que eacute inerente agrave moral cristatilde torna-se

eminente a crise da proacutepria concepccedilatildeo de veracidade e do fundamento uacuteltimo dessa

veracidade segundo uma consideraccedilatildeo moral cristatilde Nesse sentido o avanccedilo do niilismo

nos meios intelectuais da Europa estaria vinculado a outro evento histoacuterico de importacircncia

igualmente significativa a morte de Deus

A partir da aproximaccedilatildeo entre a moral cristatilde e o niilismo que eacute tiacutepica do uacuteltimo

periacuteodo de produccedilatildeo da filosofia nietzschiana o filoacutesofo concebe uma possibilidade de

superaccedilatildeo do niilismo no esgotamento vital da concepccedilatildeo cristatilde Com base na afirmaccedilatildeo de

Dostoieacutevski ldquoSe Deus natildeo existe tudo eacute permitidordquo96 Nietzsche vislumbra natildeo o terror do

relativismo moral que parece motivar o romancista russo mas a liberdade de atuaccedilatildeo

teoacuterica independente da necessidade de verdade da vontade de verdade proacutepria do

pensamento racionalista Eacute nesse sentido por exemplo que o filoacutesofo relaciona a ideia da

queda dos fundamentos da necessidade de se crer na verdade com a ideia de uma

liberdade de atuaccedilatildeo improacutepria de homens acostumados com os valores cristatildeos e com a

qual estes teriam entrado em contato pela primeira vez quando adentram os segredos da

seita oriental dos assassinos

Quando os cruzados cristatildeos no Oriente depararam com aquela invenciacutevelOrdem dos Assassinos aquela ordem de espiacuteritos livres par excellencecujos graus inferiores viviam numa obediecircncia que nenhuma ordemmonaacutestica alcanccedilou igual obtiveram de algum modo informaccedilatildeo sobreaquele siacutembolo e senha reservado aos graus superiores como seusecretum ldquoNada eacute verdadeiro tudo eacute permitido (GMGM III sect24)

As questotildees levantadas pela passagem em questatildeo dizem respeito ao verdadeiro

sentido de espiacuterito livre Se considerarmos verdadeiro o que Nietzsche nos diz nessa

passagem em contraposiccedilatildeo aos cientistas os membros da seita dos assassinos seriam

verdadeiros modelos de espiacuteritos livres Para o filoacutesofo isso se deveria sobretudo a sua

libertaccedilatildeo do uacuteltimo dos entraves ao espiacuterito a crenccedila na verdade A suprema sabedoria

96 Expressatildeo utilizada por Dostoieacutevski em sua famosa obra Irmatildeos Karamazov e que impactouprofundamente a reflexatildeo nietzschiana natildeo apenas em seu desenvolvimento da ideia da morte de Deus masainda na reflexatildeo em torno das consequecircncias morais da ausecircncia da crenccedila na verdade

176

expressa na renuacutencia de toda forma de verdade aparece nessa leitura como traccedilo

caracteriacutestico de uma vivecircncia da realidade superior a toda forma de sabedoria advinda do

meacutetodo cientiacutefico

A ecircnfase nietzschiana na expressatildeo ldquonada eacute verdadeiro tudo eacute permitidordquo eacute bastante

expressiva Ela atua no sentido de realccedilar uma revelaccedilatildeo fundamental uma sabedoria

superior reservada apenas aos graus mais elevados da seita dos assassinos Esta sabedoria

ganha sentido na contraposiccedilatildeo desta com aquilo que era considerado sabedoria pelos

autoproclamados uacuteltimos idealistas os cientistas de sua eacutepoca Se estes se consideravam

espiacuteritos livres na medida em que pensavam terem conquistado independecircncia para com

toda forma de dogmatismo o filoacutesofo lhes apresenta ainda uma uacuteltima crenccedila da qual

teriam esquecido de se desvencilhar Seria portanto a partir de sua compreensatildeo do que

significa ser um espiacuterito livre que Nietzsche descreve a distacircncia entre os cientistas e os

membros da seita dos assassinos

Diante da imagem dos membros da seita dos assassinos os quais se libertaram ateacute

mesmo da ideia de verdade algo que os cientistas estariam longe de alcanccedilar Nietzsche

estabelece como criteacuterio uacuteltimo de libertaccedilatildeo da metafiacutesica a renuacutencia da crenccedila na

verdade Eacute a partir da compreensatildeo de que os cientistas ao permanecerem presos agrave

verdade natildeo poderiam reclamar para si o tiacutetulo de espiacuteritos livres que eacute posta em duacutevida o

caraacuteter antimetafiacutesico e ateu da ciecircncia de sua eacutepoca Ao confrontar os cientistas modernos

com sua crenccedila na verdade a qual o autor relaciona como uma uacuteltima expressatildeo do

idealismo os pretensos espiacuteritos livres satildeo tomados como aqueles que natildeo compreendem

ateacute que ponto ainda permanecem presas de uma crenccedila ancestral na verdade Apesar de sua

profissatildeo de feacute contra a autoridade teoloacutegica

De modo geral sem ferir o sentido do texto nietzschiano podemos considerar que

nessa passagem Nietzsche efetua uma reformulaccedilatildeo da expressatildeo de Dostoieacutevski ao

substituir o termo ldquoDeusrdquo pelo termo ldquoverdaderdquo que para o autor poderia ser tomado como

uma traduccedilatildeo literal do sentido de Deus Com isso nos aproximamos da grande

significacircncia de sua concepccedilatildeo da morte de Deus que entendemos como querendo

significar principalmente crise da concepccedilatildeo de verdade A morte de Deus como aacutepice da

desvalorizaccedilatildeo da crenccedila em um mundo verdadeiro traz consigo o reconhecimento de que

a abdicaccedilatildeo da crenccedila na verdade traz de volta a liberdade de atuaccedilatildeo necessaacuteria aos

177

espiacuteritos livres Pois em sentido amplo a morte de Deus enquanto o maior evento da

histoacuteria humana leva consigo todas as certezas

Eacute assim por exemplo que Heidegger em sua avaliaccedilatildeo criacutetica da filosofia

nietzschiana interpreta a morte de Deus como um ponto central do niilismo nietzschiano

articulando este conceito com a ideia da caducidade do sentido97 Para o filoacutesofo em uma

leitura que privilegia a originalidade do pensamento nietzschiano e sua relaccedilatildeo com os

desdobramentos do niilismo esta concepccedilatildeo compreendida como momento histoacuterico

singular poderia mesmo ser resumida na expressatildeo nietzschiana ldquoDeus estaacute mortordquo que

marca um ponto de viragem entre o desenvolvimento posterior e a culminacircncia e extrema

significaccedilatildeo que o niilismo viria a obter no seacuteculo vindouro Para Heidegger se o Deus

Cristatildeo ocupa para a eacutepoca de Nietzsche o lugar de principal representaccedilatildeo do

suprassensiacutevel a denuacutencia da caducidade dessa representaccedilatildeo carrega o sentido de uma

crise na credibilidade do proacuteprio suprassensiacutevel que eacute o traccedilo fundamental do niilismo

Nietzsche emprega a palavra ldquoniilismordquo como o nome para o movimentohistoacuterico por ele reconhecido pela primeira vez que jaacute transpassava demaneira determinante os seacuteculos precedentes e que determina o seuproacuteximo seacuteculo um movimento cuja interpretaccedilatildeo essencial ele concentrana sentenccedila ldquoDeus estaacute mortordquo essa sentenccedila quer dizer o ldquoDeus cristatildeordquoperdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definiccedilatildeo do homem O ldquoDeuscristatildeordquo eacute ao mesmo tempo a representaccedilatildeo diretriz para oldquosuprassensiacutevelrdquo em geral e para as suas diversas interpretaccedilotildees para osideias e para as normas para os ldquoprinciacutepiosrdquo e as ldquoregrasrdquo para asldquofinalidadesrdquo e os ldquovaloresrdquo que satildeo erigidos ldquosobrerdquo o ente a fim de lheldquodarrdquo ao ente na totalidade uma meta uma ordem e ndash como se diz demaneira sucinta ndash um ldquosentidordquo Niilismo eacute aquele processo histoacuterico pormeio do qual o domiacutenio do ldquosuprassensiacutevelrdquo se torna nulo e caduco de talmodo que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido Niilismo eacute ahistoacuteria do proacuteprio ente uma histoacuteria por meio da qual a morte do Deuscristatildeo vem agrave tona de maneira lenta mas irremediaacutevel (HEIDEGGER2014 Paacuteg 482)

Assim na leitura heideggeriana na medida em que Deus torna-se a fundamentaccedilatildeo

do mundo suprassensiacutevel o evento descomunal da morte de Deus significa que a validade

desta realidade caduca deixa de ser atuante Com isso o conceito de Deus que estaria no

97 As polecircmicas em torno da interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana satildeo bastante conhecidasNossa referencia agrave interpretaccedilatildeo de Heidegger natildeo significa uma adesatildeo irrestrita agrave suas posiccedilotildees mas oreconhecimento de que este eacute um autor que natildeo se pode desconsiderar ao propor-se uma interpretaccedilatildeo dopensamento nietzschiano No entanto a interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana eacute tomada aquicom bastante cautela conforme jaacute antecipado na introduccedilatildeo deste trabalho

178

cerne das preocupaccedilotildees nietzschianas especialmente em relaccedilatildeo ao niilismo como a

culminacircncia e preparaccedilatildeo para a superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

quer significar apenas a validade dos valores e do sentido Na interpretaccedilatildeo heideggeriana

o conceito do Deus cristatildeo que ocupa uma posiccedilatildeo central em relaccedilatildeo ao sentido como

norma como lei e como fundamento tem a significacircncia de um agregador de sentido

metafiacutesico Assim como o niilismo como consequecircncia da crenccedila na caducidade dos

valores e das normas significaria o colapso da crenccedila na validade da realidade

suprassensiacutevel que tem seu colapso traduzido na simples expressatildeo ldquoDeus estaacute mortordquo

Com o colapso da crenccedila na verdade que tem seu correlato na moral na crenccedila

cristatilde no Deus garantidor da verdade colapsaria todo o edifiacutecio de sentido da humanidade

que na eacutepoca de Nietzsche estaria fundado no suprassensiacutevel Ainda segundo Heidegger

este problema fundamental seria mesmo o problema nietzschiano por excelecircncia Do

mesmo modo o niilismo como movimento histoacuterico que conduz ao colapso da crenccedila na

verdade representada na figura do Deus cristatildeo seria o meio atraveacutes do qual a reflexatildeo

nietzschiana poderia se constituir em uma leitura acerca do sentido metafiacutesico da

existecircncia

Podemos discordar de Heidegger na medida em que natildeo identificamos na filosofia

nietzschiana a busca por um sentido metafiacutesico da existecircncia98 Ainda assim podemos

concordar com o filoacutesofo na concepccedilatildeo que toma a morte de Deus enquanto

acontecimento filosoacutefico como possuindo um lugar de proeminecircncia entre as conclusotildees

teoacutericas de Nietzsche Do mesmo modo compreendemos que Heidegger compreende bem

esta concepccedilatildeo quando a vincula ao problema do valor e de sua crise que se expressa na

obra nietzschiana na forma do niilismo

98 Sobre a questatildeo da influecircncia de Heidegger na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas do niilismo eda morte de Deus Claudemir Araldi esclarece na nota sete do artigo de que temos nos utilizado em nossainterpretaccedilatildeo ldquoHeidegger ressalta a importacircncia da questatildeo do niilismo no pensamento de Nietzsche ateacute oponto de afirmar lsquoSeu pensamento se vecirc sob o signo do niilismorsquo (Heidegger 5 p 178) O filoacutesofo daFloresta Negra entretanto procura levar a seacuterio Nietzsche como pensador metafiacutesico situando o niilismo nahistoacuteria metafisicamente determinada do Ocidente Criticando Nietzsche Heidegger diraacute que nihil emniilismo eacute um conceito de ser e natildeo de valor Visto que Nietzsche investiga o niilismo a partir da moralHeidegger distancia-se radicalmente do projeto nietzschiano pois remete agrave essecircncia do niilismo agrave Questatildeo doSer Apesar da distacircncia entre os projetos filosoacuteficos de Nietzsche e de Heidegger parece-nos pertinente ainterpretaccedilatildeo heideggeriana do niilismo como um processo fundamental (constituiacutedo de um advento de umdesenvolvimento e por sua superaccedilatildeo) que move a Histoacuteria do Ocidente A Morte de Deus eacute o eventofundamental nesse processo tendo como consequecircncias a ruiacutena do mundo supra-sensiacutevel e a derrocada dosvalores tradicionaisrdquo (ARALDI 1998 Paacutegs 91)

179

No entanto a restituiccedilatildeo do valor agrave esfera do ser que parece ser o ponto

fundamental da interpretaccedilatildeo de Heidegger ultrapassa em muito nossa interpretaccedilatildeo da

filosofia nietzschiana Em nossa compreensatildeo seria a partir de uma reconstruccedilatildeo teoacuterica

do avanccedilo da moral cristatilde em sua eacutepoca que Nietzsche traccedilaria uma iacutentima relaccedilatildeo entre o

aspecto histoacuterico do niilismo e a questatildeo da perspectiva da genealogia dos valores morais99

Nesse sentido em sua leitura da histoacuteria do surgimento e superaccedilatildeo do niilismo

tanto o racionalismo socraacutetico quanto a fundamentaccedilatildeo da crenccedila cristatildeo ocupam lugar

privilegiado na constituiccedilatildeo de uma realidade suprassensiacutevel em que eacute depositada toda a

crenccedila e todos os valores da humanidade100 A morte de Deus seria vista nessa leitura como

uma etapa do processo de negatividade instaurado pela proacutepria loacutegica do niilismo processo

que tem seu fechamento e conclusatildeo jaacute preacute-determinado desde sua origem na criaccedilatildeo do

mundo ideal o qual Nietzsche localiza no racionalismo socraacutetico

Dessa forma o anuacutencio da morte de Deus constitui um dos aspectos de suma

importacircncia no desenvolvimento da dinacircmica proacutepria do niilismo explicitada por

Nietzsche na medida em que aqui se daria o ponto de ruptura em que o niilismo

engendraria a partir de seu progresso sua proacutepria superaccedilatildeo Atraveacutes do processo de

internalizaccedilatildeo da veracidade em seus valores fundamentais o cristianismo teria

possibilitado a tomada de consciecircncia dos paradoxos envolvidos na proacutepria crenccedila na

verdade Assim a morte de Deus representaria a tomada de consciecircncia da derrocada da

metafiacutesica na medida em que potildee abaixo sua pretensatildeo de verdade a validade das

verdades eternas e inalcanccedilaacuteveis ao homem em sua vivecircncia material O conceito de Deus

o fundamento uacuteltimo da verdade para a metafiacutesica que desde Platatildeo faz sua entrada no

reino das preocupaccedilotildees filosoacuteficas por meio da categoria de bem101 colapsa diante do

avanccedilo de uma tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo de todos os valores que eacute impulsionada pela

crenccedila da filosofia em encontrar a verdade objetiva em uma realidade extrafenomecircnica

99 Ainda conforme Araldi sobre a relaccedilatildeo entre a histoacuteria de desenvolvimento do niilismo e sua relaccedilatildeo coma moral cristatilde ldquoEacute a partir da histoacuteria da moral que o filoacutesofo procuraraacute caracterizar e validarmetodologicamente as diversas formas de niilismo Ou seja o niilismo foi cunhado na obra de Nietzsche apartir da investigaccedilatildeo da moral da qual resulta a elaboraccedilatildeo de um novo meacutetodo de anaacutelise da moral oprocedimento genealoacutegicordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 78)100 A histoacuteria de um erro a faacutebula nietzschiana expressa em Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da origem ecolapso da ideia de uma realidade ideal ou mundo verdadeiro pode ser lida em consonacircncia com estainterpretaccedilatildeo de onde se entende em que sentido a morte de Deus pode ser lida como um ponto de viragemem relaccedilatildeo agrave mentira de dois mil anos da idealidade de uma realidade apartada da realidade das perspectivas101 Conforme nota 73 ainda nesse capiacutetulo

180

Em outras palavras Nietzsche entende a concepccedilatildeo concebida no interior do

racionalismo socraacutetico como a imagem da verdade no mundo das ideias como um

ancestral da ideia de Deus que teria sido mais tarde reelaborada pelo cristianismo atraveacutes

da vinculaccedilatildeo da existecircncia de uma verdade com a existecircncia de um fundamento da

verdade Isto porque se Platatildeo compreendeu o conceito de bem como uma ideia divina

como o sol que iluminava todas as verdades este conceito moral e epistemoloacutegico encontra

na modernidade na figura do Deus cristatildeo sua uacuteltima apariccedilatildeo Nesse sentido enquanto

sustentada pelo Deus extraterreno garantidor absoluto da verdade a verdade mesma teria

se tornado divina

Na medida em que a leitura nietzschiana encontra no racionalismo socraacutetico a

origem do processo de desenvolvimento do niilismo identifica no conceito de bem de

Platatildeo uma crenccedila que embora natildeo tivesse na antiguidade o mesmo papel que Deus na sua

eacutepoca esta estreitamente relacionada com a ideia de fundamentaccedilatildeo extraterrena da

verdade Do mesmo modo o supremo geocircmetra concebido pelos modernos como aquele

que garante a validade das verdades eternas desde que as caracteriacutesticas de clareza e

distinccedilatildeo natildeo nos possibilitariam discernir o que eacute real do que eacute sonho sem que a

existecircncia do Deus veraz nos fosse necessaacuteria Com isso tem-se a origem e deslocamento

de uma crenccedila fundamental na idealidade dos valores que se reinventa atraveacutes da histoacuteria

e que ocupa na imagem do Deus cristatildeo seu uacuteltimo desenvolvimento

Do ponto de vista da filosofia nietzschiana no entanto o ponto fundamental do

anuacutencio da morte de Deus seria a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que aparece

como consequecircncia do vaacutecuo criado pelo colapso do sistema moral cientiacutefico ancorado na

ideia de uma realidade ideal Podemos portanto relacionar a morte de Deus enquanto

correlata da morte da verdade com uma representaccedilatildeo do fim das limitaccedilotildees que o proacuteprio

homem se havia imposto Assim quando renuncia agrave crenccedila em uma realidade ideal

inexistente o homem se torna apto a criar sua proacutepria realidade Mais do que isso sua

avaliaccedilatildeo dessa realidade criada da realidade de suas valoraccedilotildees natildeo sofre mais o

constrangimento de uma realidade ideal inexistente com a qual pudesse ser comparada

Nesse sentido a morte de Deus enquanto colapso da seguranccedila do fundamento

significaria a abertura de possibilidades novas de criaccedilatildeo que adveacutem do abandono das

certezas fundamentadas no nada

181

Com a morte de Deus abrem-se caminhos novos nunca trilhados102 E seria

sobretudo por isso que o anuacutencio da morte Deus ocupa o lugar que ocupa em A Gaia

Ciecircncia Pois o anuacutencio da morte de Deus nos revela que haacute um vazio no ponto de

estimaccedilatildeo ideal nada nos constrange a tomar como valiosas nossas proacuteprias estimaccedilotildees

Assim surge a possibilidade do abandono da necessidade de uma escala superior de

avaliaccedilatildeo Motivo porque tambeacutem a ideia da coragem para criar associada agrave ideia de

lanccedilar-se em novos mares eacute constantemente retomada por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia

como um convite para a alegre criaccedilatildeo de sentido que se torna possiacutevel apenas quando

abrimos matildeo das certezas que satildeo aqui representadas na imagem de velhos portos Assim

no aforismo anterior ao citado acima o filoacutesofo anuncia

No horizonte do infinito ndash Deixamos a terra firme e embarcamosQueimamos a ponte ndash mais ainda cortamos todo laccedilo com a terra queficou para traacutes Agora tenha cautela pequeno barco Junto a vocecirc estaacute ooceano eacute verdade que ele nem sempre ruge e agraves vezes se estende comoseda e ouro e devaneio de bondade Mas viratildeo momentos em que vocecircperceberaacute que ele eacute infinito e que natildeo haacute coisa mais terriacutevel que ainfinitude Oh pobre paacutessaro que se sentiu livre e agora se bate nasparedes dessa gaiola Ai de vocecirc se for acometido de saudade da terracomo se laacute tivesse havido mais liberdade ndash e jaacute natildeo existe mais terra(FWGC III sect124)

Aqui anuncia-se um aspecto fundamental do posterior desenvolvimento do niilismo

nietzschiano na aproximaccedilatildeo da necessidade de se libertar de um ponto de vitalidade baixo

com relaccedilatildeo agrave necessidade de se lanccedilar ao sem sentido para criar O anuacutencio da morte de

Deus nos diz que o homem precisa se livrar do medo do desconhecido apresentado pelo

autor como primeira consequecircncia do advento da queda dos fundamentos Eacute este medo que

se torna para o homem liberto das amarras de uma existecircncia ideal o uacutenico impedimento

para sua auto-exultaccedilatildeo Sendo assim a partir da morte de Deus o homem precisa

acostumar-se com a ausecircncia de terra firme conceitos estaacuteveis verdades absolutas pelos

quais se guiar Para ele natildeo haacute mais porto seguro possiacutevel de modo que se pode desconfiar

que aqui a humanidade se encontraria em pior estado do que quando gozava confiante da

102 Se por um lado eacute inquestionaacutevel que a imagem do mar de possibilidades que se abre com o anuacutencio damorte de Deus tem uma significaccedilatildeo moral na obra nietzschiana por outro lado esta imagem comporta aindauma significaccedilatildeo epistemoloacutegica Esta significaccedilatildeo eacute perceptiacutevel na anaacutelise do conjunto do livro em que oaforismo em questatildeo se insere Dentre estes aforismos deve ser destacado o importante aforismo 354 em queNietzsche trata de seu perspectivismo

182

ilusatildeo das verdades permanentes como se naquelas houvesse mais liberdade Nisso tudo se

passa como no estaacutegio passivo do niilismo

Poreacutem a indecisatildeo natildeo poderia durar para sempre e o proacuteprio Nietzsche parece

avanccedilar em seu otimismo na medida em que passa a refletir acerca das possibilidades

abertas pelo colapso da realidade ideal Assim quando o filoacutesofo retomar a ideia da morte

de Deus no livro cinco da mesma obra escrito quase cinco anos apoacutes o livro trecircs103 esta

ideia jaacute estaraacute claramente relacionada agrave ideia de liberdade de criaccedilatildeo tanto na esfera dos

valores quanto na esfera da investigaccedilatildeo teoacuterica No aforismo 343 de A Gaia Ciecircncia o

autor mostrasse cheio de esperanccedilas para com o futuro do homem quando consegue

absorver os efeitos do grande evento da morte de Deus Nessa passagem o autor reflete

sobre as primeiras consequecircncias do anuacutencio da morte de Deus que lanccedila suas ldquoprimeiras

sombras sobre a Europardquo e chega agrave conclusatildeo de que ao menos para os espiacuteritos livres os

poucos corajosos e desejosos o suficiente para ainda criar a morte de Deus representa uma

libertaccedilatildeo a promessa de novos mares abertos

O sentido de nossa jovialidade - O maior acontecimentos recentes- O fato de que ldquoDeus estaacute mortordquo de que a crenccedila no Deus cristatildeoperdeu o creacutedito ndash jaacute comeccedila a lanccedilar suas primeiras sombras sobre aEuropa Ao menos para aqueles poucos cujo olhar cuja suspeita no olhareacute forte e refinada o bastante para esse espetaacuteculo algum sol parece ter seposto alguma velha e profunda confianccedila parece ter se transformado emduacutevida para eles nosso velho mundo deve aparecer cada dia maiscrepuscular mais desconfiado mais estranho ldquomais velhordquo (hellip) De fatonoacutes filoacutesofos e ldquoespiacuteritos livresrdquo ante a notiacutecia de que ldquoo velho Deusmorreurdquo nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nossocoraccedilatildeo transborda de gratidatildeo espanto pressentimento expectativa mdashenfim o horizonte nos aparece novamente livre embora natildeo esteja limpoenfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todoperigo novamente eacute permitida toda a ousadia de quem busca oconhecimento o mar o nosso mar estaacute novamente aberto eprovavelmente nunca houve tanto ldquomar abertordquo (FWGC Livro Vsect343)

Na medida em que o autor identifica os filoacutesofos e os espiacuteritos livres como aqueles

que vislumbram com otimismo ldquogratidatildeo espanto pressentimento expectativardquo o grande

evento da morte de Deus qualifica estes como aqueles capazes de mesmo diante da

103 A Gaia Ciecircncia foi redigida por Nietzsche em trecircs momentos distintos primeiramente em 1881 o quartolivro em 1882 e recebe um novo prefaacutecio e o quinto livro em 1886

183

evidecircncia da mais completa cataacutestrofe experimentada pelo gecircnero humano se lanccedilar agrave

criaccedilatildeo A estes no entanto o filoacutesofo contrasta os entristecidos pelo escurecimento pelo

obscurecimento do proacuteprio sol novamente em uma referecircncia clara agrave antiga concepccedilatildeo

platocircnica do bem Com isso o autor nos apresenta a dualidade do evento da morte de Deus

que por sua vez nos remete agrave jaacute referida ambiguidade do niilismo

Partindo da distinccedilatildeo entre o niilismo passivo e o niilismo ativo podemos

representar dois momentos apresentados em A Gaia Ciecircncia como consequecircncias da morte

de Deus Em uma analogia direta entre a forma como o niilismo ativo se distingue do

niilismo passivo poderiacuteamos dizer que a ideia de que a falta de sentido apresentada aqui

por meio da imagem do novo infinito do mar aberto condiciona duas formas de encarar o

evento da morte de Deus simboliza a possibilidade de superaccedilatildeo da inaccedilatildeo por meio de

uma atitude afirmativa diante da responsabilidade pela criaccedilatildeo

A queda dos fundamentos simbolizada aqui pelo evento da morte de Deus eacute

apresentada como evento ainda incerto que divide a humanidade em dois tipos diferentes

reconhecidos na histoacuteria do conhecimento atraveacutes de duas atitudes opostas diametralmente

Se por um lado a queda dos fundamentos representa para o filoacutesofo da tradiccedilatildeo o fim do

conhecimento e desespero das ciecircncias para os espiacuteritos livres os filoacutesofos do futuro tal

acontecimento representa a afirmaccedilatildeo de ldquotoda ousadia do conhecedorrdquo que agora pode se

lanccedilar sobre um mar de possibilidades Assim em um aforismo do livro cinco de A Gaia

Ciecircncia o filoacutesofo retoma a questatildeo das novas possibilidades de criaccedilatildeo abertas com a

mote de Deus

O mundo tornou-se novamente ldquoinfinitordquo para noacutes na medida em que natildeopodemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitasinterpretaccedilotildees Mais uma vez nos acomete o grande tremor mdash mas quemteria vontade de imediatamente divinizar de novo agrave maneira antiga essemonstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecidocomo ldquoo ser desconhecidordquo Ah estatildeo incluiacutedas demasiadaspossibilidades natildeo divinas de interpretaccedilatildeo nesse desconhecidodemasiada diabrura estupidez tolice de interpretaccedilatildeo mdasha nossa proacutepriahumana demasiado humana que bem conhecemoshellip (FWGC Livro Vsect374)

184

Nesse aforismo em que Nietzsche reflete acerca da pluralidade de perspectivas

inerentes agrave nova forma de contemplar a realidade a partir da morte de Deus surge a

afirmaccedilatildeo do nosso novo infinito de possibilidade de criar e o temor advindo dessa

possibilidade que surge como consequecircncia da exposiccedilatildeo dos perigos agenciados pela

morte de Deus A afirmaccedilatildeo do caraacuteter perspectivo da existecircncia inerente a uma forma de

conceber a realidade que se liberta das certezas fundamentadas na concepccedilatildeo tradicional de

verdade representa a antecipaccedilatildeo do problema fundamental do conflito entre o niilismo o

pessimismo da existecircncia e a proacutepria perspectiva o caraacuteter mais imediato da existecircncia

Em sua leitura do avanccedilo do niilismo como vimos em seccedilotildees anteriores a postura

eminentemente antiniilista de conceber a verdade eacute sempre representada por meio da

referecircncia ao perspectivo ao ponto de vista agrave acuidade do olhar Estas satildeo sempre formas

de interpretar que o autor apontaraacute em oposiccedilatildeo ao racionalismo socraacutetico e ao

cristianismo com o intuito de demarcar a diferenccedila essencial entre os ideais regidos pela

negatividade e a concepccedilatildeo afirmativa da existecircncia Assim a morte de Deus tal como

Nietzsche parece entender este pensamento profundo surge aqui como uma completa

compreensatildeo da ausecircncia de sentido da vida do homem a partir da qual surge na vacacircncia

do trono divino a possibilidade do proacuteprio homem ocupar o lugar de significaccedilatildeo maacutexima

que eacute representada na possibilidade de se divinizar perspectivas

Aleacutem do Deus cristatildeo no entanto tambeacutem outros iacutedolos necessitam ser demolidos

Entre eles os princiacutepios da moral todos eles entendidos na leitura nietzschiana como

estando fundados na crenccedila em uma realidade suprassensiacutevel Ou seja todo princiacutepio

considerado aqui como reminiscecircncia das ideias platocircnicas como formas de valores

superiores ateacute entatildeo Assim em obras posteriores em que o niilismo eacute tratado por

Nietzsche em maior profundidade tais como Para Aleacutem de Bem e Mal Para a Genealogia

da Moral e O Anticristo assim como nos fragmentos contemporacircneos a estas haacute a

indicaccedilatildeo de sintomas pelos quais o acontecimento da morte de Deus e suas consequecircncias

para o futuro do homem satildeo retratadas como o resultado de uma profunda crise

Partindo de uma concepccedilatildeo afirmativa advinda do panorama aberto pela morte de

Deus o filoacutesofo concebe a possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo que eacute marcado pela

crenccedila nas verdades fundamentadas na ideia de bem Assim pode-se afirmar que na

terceira fase da obra nietzschiana o filoacutesofo estaria de posse de tudo que eacute fundamental

185

para a proposiccedilatildeo de uma soluccedilatildeo para o problema do niilismo assim como das possiacuteveis

vias de superaccedilatildeo no pensamento dogmaacutetico

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar

Entre os comentaacuterios do pensamento nietzschiano com frequecircncia nos deparamos

com um tratamento eminentemente criacutetico do sentido de niilismo na obra deste autor Por

estas leituras serem tratadas como uma reflexatildeo acerca dos valores e sua corrupccedilatildeo por

desprezar o aspecto deleteacuterio desse conceito em relaccedilatildeo aos valores epistemoloacutegicos a

anaacutelise do niilismo suportada nestas leituras acaba por mostrar-se uma leitura parcial

Assim na medida em que o niilismo eacute contemplado nestes comentaacuterios exclusivamente

com base em sua implicaccedilatildeo criacutetica enquanto processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores a

ele logo eacute associada a criacutetica nietzschiana agrave moral

Por outro lado um exame atento dos textos nietzschianos demonstraria a forma

como o filoacutesofo relaciona a corrupccedilatildeo dos valores morais com a corrupccedilatildeo dos princiacutepios

epistemoloacutegicos Pois o autor reconhece na concepccedilatildeo tradicional de verdade assim como

a submissatildeo cega da ciecircncia a esta concepccedilatildeo traccedilos de uma moral niilista Uma leitura

neste sentido propiciaria uma interpretaccedilatildeo segundo a qual a desconfianccedila nietzschiana

para com os fundamentos morais da concepccedilatildeo tradicional de verdade acaba por despertar

no filoacutesofo a necessidade de repensar o valor do conhecimento posto que considera que

este teria se enredado com uma vontade de verdade estranha aos fundamentos da proacutepria

vida

Se por um lado o niilismo nietzschiano eacute concebido como a loacutegica de corrupccedilatildeo

dos valores por outro percebe-se que o autor pensa essa desvalorizaccedilatildeo como atingindo

tambeacutem o acircmbito do conhecimento Nesta leitura se Nietzsche rejeita as concepccedilotildees

tradicionais de verdade e conhecimento tal se daria porque reconhece nestas concepccedilotildees

elementos constitutivos de uma vontade de verdade que para o filoacutesofo seriam expressatildeo

de uma moral decadente Tendo em vista a superaccedilatildeo desta moral decadente Nietzsche

contrapotildee agrave concepccedilatildeo tradicional de ciecircncia uma concepccedilatildeo de conhecimento pensada em

186

conformidade com os preceitos da vida Por sua vez em sua explicitaccedilatildeo dos preceitos

internos agrave proacutepria vida o filoacutesofo se utiliza da categoria de vontade de potecircncia uma

interpretaccedilatildeo da realidade em sua loacutegica interna que viabilizaria uma concepccedilatildeo de

conhecimento afeita aos princiacutepios da proacutepria vida

Tendo em vista a superaccedilatildeo do niilismo Nietzsche expotildee a loacutegica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes de um procedimento genealoacutegico chegando a uma

forma de niilismo em que as verdades eternas mesmas concepccedilatildeo que desencadeia o

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores eacute reconhecida como uma concepccedilatildeo sem valor Se

eacute a proacutepria concepccedilatildeo da realidade ideal que confere ao niilismo sua limitaccedilatildeo na medida

que as exigecircncias da concepccedilatildeo de verdade inerente a essa criaccedilatildeo deve culminar em um

exame das concepccedilotildees cientiacuteficas morais e filosoacuteficas que delas eacute dependente entatildeo o

advento do niilismo prepara as condiccedilotildees do surgimento desenvolvimento e queda dos

valores supremos segundo uma dinacircmica de autossuperaccedilatildeo (Selbstaufhebung) dos valores

ideais104

A anaacutelise genealoacutegica do niilismo conduz agrave identificaccedilatildeo de uma dinacircmica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores superiores que potildee em riso a existecircncia humana na medida em

que esta existecircncia apenas pode se dar com base em uma avaliaccedilatildeo segundo uma hierarquia

de dominaccedilatildeo e subjugaccedilatildeo Por sua vez a consideraccedilatildeo do aspecto ativo do niilismo

dentro da dinacircmica de desenvolvimento interna ao niilismo conduz agrave compreensatildeo de que

a destituiccedilatildeo dos valores apesar de atuar de forma debilitante em algumas naturezas

conduzindo ao niilismo passivo e consequentemente agrave criaccedilatildeo de valores morais

decadentes pode ser considerado do ponto de vista de naturezas melhores condicionadas

104 Na leitura heideggeriana toda forma de conceber a realidade segundo princiacutepios enquanto forma deordenamento de comando constitui seus valores e eacute portanto uma forma de moral uma metafiacutesica dosvalores Nesse sentido se Heidegger pensa que toda filosofia posterior a Platatildeo eacute uma concepccedilatildeo metafiacutesicana medida em que pensa o ente a partir de valores dados ou seja se ldquoNesse entendimento toda a filosofiadesde Platatildeo se transforma em uma metafiacutesica dos valoresrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 652) entatildeo tambeacutem afilosofia nietzschiana poderia ser compreendida como uma metafiacutesica dos valores Assim na leituraheideggeriana o confronto de Nietzsche com a metafiacutesica platocircnica faz da filosofia nietzschiana uma formainvertida de platonismo e desse modo ainda uma especulaccedilatildeo metafiacutesica da realidade Ao contrapor-se aessa tese heideggeriana fundamental Scarlett Marton procura analisar a filosofia nietzschiana como umprojeto de filosofia da natureza uma cosmologia em sentido similar agravequele dos filoacutesofos preacute-socraacuteticosNeste sentido a radicalidade da filosofia nietzschiana ldquonatildeo residiria na tentativa de levar a metafiacutesica ateacutesuas uacuteltimas consequecircncias [Heidegger] nem no ensaio de inaugurar novas teacutecnicas de interpretaccedilatildeo[Foucault]rdquo (MARTON 1990 p 13) mas na tentativa de reduzir todos os processos de formaccedilatildeo de valor auma instacircncia especiacutefica a vontade de potecircncia que apoiada em dados cientiacuteficos deve constituir a basedesta cosmologia

187

tornando-se niilismo ativo e conduzindo a uma compreensatildeo interpretativa da realidade

Ou como nos diz Claudemir Araldi

A compreensatildeo nietzschiana da moral como a ldquoteoria das relaccedilotildees dedominaccedilatildeo sob as quais se origina o fenocircmeno lsquovidarsquordquo (JGBBM sect19)implica na admissatildeo da ambiguumlidade do termo a moral pode engendrarum povo e indiviacuteduos superiores ou pode levar agrave decadecircncia dependendode qual fonte os valores satildeo criados da vida afirmativa ou da vida doenteAo examinar a preacute-histoacuteria da moral o periacuteodo da eticidade dos costumes(die Sittlichkeit der Sitte) Nietzsche constata que o processo da eticidadedos costumes tem como termo o indiviacuteduo soberano (das souveraineIndividuum) autocircnomo e extra-moral que por fim se liberta da coaccedilatildeo edos deveres morais a que estava vinculado (GMGM II 2))Compreendida desse modo a moral eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para aautodisciplina e auto-superaccedilatildeo do homem (ARALDI 1998 Paacutegs 79)

Segundo a dinacircmica proacutepria desse movimento tal como Nietzsche a descortina o

niilismo ativo do qual surge a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria sua

radicalizaccedilatildeo na emergecircncia de uma forma de niilismo extremado em que os proacuteprios

princiacutepios da dinacircmica do niilismo satildeo questionados Com a emergecircncia dessa forma de

niilismo extremo que levaria a termo as potencialidades do niilismo ativo uma tendecircncia a

um perecer para tudo aquilo que fenece uma vontade de nada para tudo aquilo que anseia

pelo fim eacute posta em praacutetica por meio da negaccedilatildeo da proacutepria concepccedilatildeo de uma verdade em

si105 que culmina com o grande evento da morte de Deus

De maneira geral o processo histoacuterico de desenvolvimento e radicalizaccedilatildeo do

niilismo eacute concebido por Nietzsche como algo que apenas pode ser conduzido a termo por

meio de sua vivecircncia ateacute o fim atraveacutes da vivecircncia de uma forma radical de niilismo106

Nesse sentido se por um lado o niilismo eacute um mal para as naturezas fraacutegeis aquelas que

105 Eacute neste sentido que Heidegger pensa a realizaccedilatildeo do niilismo ativo como a realizaccedilatildeo de que aquilo quequer perecer deve perecer ldquoEm contrapartida o niilismo lsquoativorsquo interveacutem revoluciona na medida em que seexpotildee a partir do modo de vida ateacute aqui e inspira com razatildeo ainda maior ao lsquoanseio pelo fimrsquo aquilo que querperecerrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Assim se a concepccedilatildeo de uma realidade em si eacute vista na leituranietzschiana como obra de uma vontade cansada que quer perecer a contemplaccedilatildeo do sem sentido dessaconcepccedilatildeo apenas faz perecer essa vontade cansada106 Em sua leitura do problema do niilismo e do papel que esta concepccedilatildeo desempenharia na histoacuteria doocidente Heidegger afirma ldquoPara se tornar completo o niilismo precisa atravessar o lsquoextremorsquordquo(HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Para o filoacutesofo ldquoO lsquoniilismo extremorsquo reconhece que natildeo haacute nenhumalsquoverdade eterna em sirsquo Na medida em que soacute se conforma determinadamente com essa intelecccedilatildeo e em queobserva a decadecircncia dos valores supremos ateacute aqui ele permanece passivordquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg657)

188

dependem do valor das verdades em si por outro ele implica um bem para as naturezas

afeitas agrave necessidade de criaccedilatildeo de valor como apresentaccedilatildeo da possibilidade de um novo

modo de valorar Torna-se entatildeo necessaacuterio compreender de que forma o niilismo ativo

concebido em conformidade com a concepccedilatildeo do fim da verdade que eacute anunciada por

Nietzsche no grande evento da morte de Deus culminaria em uma forma de pensar que ao

mesmo tempo identificada com o niilismo propicia as condiccedilotildees da superaccedilatildeo da dinacircmica

da desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes da renuacutencia agrave criaccedilatildeo de uma realidade ideal

Na medida em que o niilismo passivo eacute pensado por Nietzsche como contraacuterio ao

proacuteprio estabelecimento de valores que eacute preacute-condiccedilatildeo para a vida sua superaccedilatildeo se daria

com base na observaccedilatildeo dos aspectos fortalecedores da vida entre os quais Nietzsche

destaca a perspectividade Nesse sentido a capacidade de criar valores que se entende

desde o princiacutepio apenas como criaccedilotildees portanto valores que natildeo se deixam determinar

pelas exigecircncias da veracidade constituem o acircmago de uma nova moral a partir de

Nietzsche assim como da proacutepria concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento107 Por esta

razatildeo o filoacutesofo pensa a possibilidade de se estabelecerem valores como criaccedilotildees cujo

fundamentos natildeo teriam relaccedilotildees com a concepccedilatildeo tradicional de verdade e que portanto

natildeo reclamam para si um acesso privilegiado a um acircmbito objetivo

Para Nietzsche todas as revoluccedilotildees observadas na modernidade significariam uma

tentativa de ocupar o lugar da veracidade que colapsa conservando as mesmas estruturas e

por isso para o filoacutesofo estariam fadadas ao fracasso Neste ponto o filoacutesofo reflete

acerca da superaccedilatildeo do niilismo e pensa que esta natildeo poderia prescindir de uma

reavaliaccedilatildeo da estrutura mesma de fundamentaccedilatildeo dos valores Nesse sentido a proacutepria

veracidade que o filoacutesofo entendia como a fundamentaccedilatildeo do mundo verdadeiro na figura

de um Deus garantidor da verdade passa por uma revisatildeo Por isso o filoacutesofo pensa que

uma verdadeira superaccedilatildeo do niilismo apenas se tornaria possiacutevel por meio de uma

radicalizaccedilatildeo do niilismo mesmo o que significaria a destruiccedilatildeo dos princiacutepios de

107 Pois como Araldi ressalta haacute traccedilos do niilismo em todas as formas de cultura contemporacircnea inclusiveem teoria do conhecimento ldquoA reflexatildeo de Nietzsche sobre si e sobre sua eacutepoca eacute elaborada filosoficamenteem termos de niilismo O niilismo que se origina e se desenvolve a partir da moral radicaliza-se namodernidade tanto na teoria quanto na praacutetica haacute traccedilos niilistas na teoria do conhecimento na moral nasciecircncias naturais na poliacutetica na esteacutetica (XII 2 (131) Natildeo haacute como fugir desse hoacutespede inquietante que seinstala sorrateiramente em todos os domiacutenios da modernidaderdquo (ARALDI 1998 Paacuteg 87)

189

avaliaccedilatildeo dominantes A ideia de uma superaccedilatildeo do niilismo pelos filoacutesofos do futuro

aparece por exemplo em um aforismo de A Genealogia da Moral

Algum dia poreacutem num tempo mais forte do que esse presente murchoinseguro de si mesmo ele viraacute o homem redentor o homem do grandeamor e do grande desprezo o espiacuterito criador cuja forccedila impulsoraafastaraacute sempre de toda transcendecircncia e toda insignificacircncia cujasolidatildeo seraacute mal compreendida pelo povo como se fosse fuga darealidade quando seraacute apenas a sua imersatildeo absorccedilatildeo penetraccedilatildeo narealidade para que ao retornar agrave luz do dia ele possa trazer a redenccedilatildeodessa realidade sua redenccedilatildeo da maldiccedilatildeo que o ideal existente sobre elalanccedilou Esse homem do futuro que nos salvaraacute natildeo soacute do ideal vigentecomo daquilo que dele forccedilosamente nasceria do grande nojo da vontadede nada do niilismo esse toque de sino do meio-dia e da grande decisatildeoque torna novamente livre a vontade que devolve agrave terra sua finalidade eao homem sua esperanccedila esse anticristatildeo e antiniilista esse vencedor deDeus e do nada ele tem que vir um dia (GMGM II sect24)

Atraveacutes do recurso agrave imagem dos homens do futuro que pensam de forma

divergente do estabelecido pelo ldquoideal vigenterdquo Nietzsche antecipa um ponto de viragem

na histoacuteria dos valores ateacute entatildeo Para o filoacutesofo as diferentes formas do niilismo o

primeiro como uma forma de debilidade uma representaccedilatildeo da incapacidade de fixar

valores verdadeiramente novos o segundo como expressatildeo da forccedila como tendecircncia a

destruiccedilatildeo dos valores antigos representariam a expressatildeo de instintos fundamentais

atuando por traacutes da atividade de criaccedilatildeo de valores e que culminariam na substituiccedilatildeo do

ideal pela criaccedilatildeo Esta revoluccedilatildeo do pensamento se daria como um anuacutencio do meio dia o

momento da menor sombra em que a vontade deixa de ser vontade de verdade e torna-se

vontade livre Esta ideia tem similaridade com o que Nietzsche expotildee na segunda seccedilatildeo do

Ensaio sobre Verdade e Mentira acerca da forma como o intelecto se liberta da pressatildeo da

necessidade e torna-se criador de produccedilotildees artiacutesticas que reconhece como manifestaccedilotildees

mais puras de um princiacutepio natural criador de metaacuteforas108

Na medida em que o filoacutesofo entende que a tendecircncia humana agrave formulaccedilatildeo de

conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural a capacidade de criaccedilatildeo aparece

como impulso para a arte e para as ciecircncias Assim ainda quando qualifica sua eacutepoca como

sendo culturalmente dominada pela primordialidade da ciecircncia portanto como uma eacutepoca

ameaccedilada pelo enrijecimento do esquema conceitual e da cega obediecircncia agrave vontade de

108 Conforme exposto na seccedilatildeo 224 do primeiro capiacutetulo desse trabalho

190

verdade que possibilita a expansatildeo dos domiacutenios das ciecircncias todo esse progresso

cientiacutefico apenas aponta para a emergecircncia de uma nova veracidade que se compreende em

seu caraacuteter criativo Pois apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida humano

tender a uma expansatildeo contiacutenua a atividade criativa do intelecto a que deve-se a

capacidade de conversatildeo de metaacuteforas em conceitos assim como dos produtos artiacutesticos

nunca deixa de atuar nos homens sendo mesmo seu traccedilo caracteriacutestico

No entanto esta forma de niilismo ativo seria marcada pela radicalidade de sua

novidade Esta novidade eacute compreendida como provindo da consciecircncia mesma do

aprofundamento do niilismo sem a qual o filoacutesofo pensa que natildeo seria possiacutevel a inversatildeo

dos valores proacutepria da filosofia do futuro a qual pensa contemplar Ou seja o filoacutesofo

concebe sua proacutepria praacutetica filosoacutefica assim como toda a filosofia do futuro como

expressotildees de uma forma ativa produtiva de niilismo Pois essa filosofia do futuro seria

profundamente determinada pela consciecircncia da natildeo existecircncia de verdades em sentido

tradicional Natildeo admira portanto que sua concepccedilatildeo de conhecimento funde-se na mesma

certeza que para o filoacutesofo inaugura o niilismo

Que natildeo haacute verdades que natildeo haacute constituiccedilatildeo absoluta das coisas quenatildeo haacute ldquocoisa em sirdquo ndash isso mesmo eacute um niilismo e o mais extremoColocar o valor das coisas precisamente em que a esse valor natildeo lhecorresponde nem lhe correspondeu nenhuma realidade senatildeo que eacuteapenas um sintoma de forccedila por parte de quem institui o valor umasimplificaccedilatildeo com o fim da vida (NFFP1887 9 [35])

Por traacutes da compreensatildeo criacutetica acerca do conhecimento suportada na fase madura

de seu pensamento permanece a mesma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que eacute

inerente ao niilismo mais extremo Na medida em que esta estaria fundada na compreensatildeo

fundamental da ausecircncia de verdades e da ausecircncia de um mundo de ldquocoisas em sirdquo como

um ponto de vista exterior a todas as formas de avaliaccedilatildeo a ela corresponderia uma forma

extrema de niilismo Do mesmo modo a compreensatildeo de que nenhum valor corresponde agrave

realidade mas que apresenta-se como resultado de uma avaliaccedilatildeo que toma a vida como

medida compreensatildeo que remonta agraves primeiras investigaccedilotildees do autor acerca da natureza

da concepccedilatildeo tradicional de finalidade natural permanece em seu pensamento da

necessidade de superaccedilatildeo do niilismo Em sua leitura no entanto a desconfianccedila para com

191

a concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute traduzida em uma interpretaccedilatildeo em que seria a forccedila

de quem institui os valores que garantem a validade da concepccedilatildeo suportada

A verdade seria nessa leitura resultante das forccedilas em jogo na sustentaccedilatildeo de uma

determinada concepccedilatildeo Isto sem duacutevida implicaria em uma imposiccedilatildeo posto que eacute a

maior forccedila em accedilatildeo em uma determinada compreensatildeo da realidade natildeo sua veracidade

em sentido tradicional que garante sua superioridade Por sua vez a esta imposiccedilatildeo de

valores corresponderia uma simplificaccedilatildeo ldquocom o fim da vidardquo ou seja uma simplificaccedilatildeo

para efeitos de sobrevivecircncia Pois as valoraccedilotildees possibilitadas pela dominacircncia de uma

determinada forma de compreender a realidade correspondem apenas a uma parcela da

objetividade geral que seria garantida apenas de forma hipoteacutetica pela consideraccedilatildeo do

maior nuacutemero possiacutevel de formas de compreensatildeo da realidade

O aspecto fundamental da compreensatildeo nietzschiana acerca da verdade

compreensatildeo em que a verdade passa a ser entendida como uma restriccedilatildeo da esfera de

criaccedilatildeo de valores agraves necessidades de cada ser interpretante pode ser compreendida como

reflexo de uma concepccedilatildeo nietzschiana de juventude acerca da verdade No entanto eacute

preciso assinalar que na maturidade de seu pensamento a compreensatildeo da dinacircmica

proacutepria do niilismo desempenha um papel fundamental em suas consideraccedilotildees acerca da

natureza do conhecimento e da verdade Pois na medida em que o filoacutesofo pensa que esta

concepccedilatildeo de conhecimento se relaciona intimamente com ldquoO niilismo enquanto negaccedilatildeo

de um mundo verdadeiro de um serrdquo (NFFP 1887 9 [41]) e que por isso mesmo

ldquopoderia ser um modo de pensamento divino (NFFP 1887 9 [41]) podemos concluir que

sua concepccedilatildeo madura apenas se torna possiacutevel mediante a identificaccedilatildeo da dinacircmica

proacutepria de desenvolvimento do niilismo

A concepccedilatildeo expressa por Nietzsche em seus textos de juventude de que a verdade

que nos interessa corresponderia apenas a uma simplificaccedilatildeo para fins da sobrevivecircncia

retorna em seu pensamento de maturidade como fundamento uacuteltimo de seu perspectivismo

Assim sua compreensatildeo madura acerca do conhecimento distingue-se de suas concepccedilotildees

de juventude na medida em que eacute entendida como uma etapa no processo que

caracterizaria uma forma de superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constituiacutedos Segundo esta compreensatildeo apenas conforme uma interpretaccedilatildeo do

192

perspectivismo nietzschiano como representando uma forma divina de pensar se pode

reconhecer um aspecto positivo na admissatildeo nietzschiana de seu niilismo109

Na medida em que a noccedilatildeo de niilismo tem dois sentidos no interior da reflexatildeo

nietzschiana e que passamos de uma forma de niilismo passivo para uma forma afirmativa

de niilismo faz sentido pensar que o autor localizava seu pensamento como uma forma

afirmativa de niilismo Forma que prepara os passos para sua radicalizaccedilatildeo Assim

enquanto uma forma de niilismo fundado na concepccedilatildeo da inexistecircncia da verdade a forma

de niilismo extremo ao qual o pensamento nietzschiano poderia ser relacionado diria

respeito agrave consciecircncia da ausecircncia de verdades consciecircncia que constrange agrave criaccedilatildeo de

valores novos a partir de uma vontade afirmativa Nesse sentido esta forma de niilismo se

distinguiria fortemente de uma forma passiva de niilismo que atuando segundo a vontade

de verdade natildeo se vecirc capaz da criaccedilatildeo de novos valores embora compreenda os valores

antigos como sendo valores fundados em um mundo inexistente

Na leitura nietzschiana a forma mais extrema de niilismo estaria vinculada agrave

concepccedilatildeo de que todas as crenccedilas satildeo falsas Esta forma de compreender segundo a qual

todas as crenccedilas seriam falsas apenas poderia se fundamentar na certeza da inexistecircncia de

uma realidade ideal na certeza da inexistecircncia de um fundamento uacuteltimo da verdade A

esta forma de niilismo corresponderia a negaccedilatildeo de toda certeza assim como a

impossibilidade de toda forma de valoraccedilatildeo Tendo em vista sua sobrevivecircncia o homem

crecirc naquilo que precisa crer para continuar vivendo Assim o homem passa a crer na

veracidade de seus discursos na correspondecircncia de sua linguagem em relaccedilatildeo a uma

realidade ideal em tudo por fim que garanta sua permanecircncia na terra No entanto o que

eacute uma crenccedila Para Nietzsche esta pergunta estaria relacionada ao caraacuteter perspectiviacutestico

da realidade

O que eacute uma crenccedila Como surge Toda crenccedila eacute um tomar-por-verdadeiro ( fuumlr-wahr-halten) A forma extrema do niilismo seria que toda crenccedila todo tomar-por-verdadeiro eacute necessariamente falso porque natildeo haacute em absoluto um mundoverdadeiro Portanto uma aparecircncia perspectivista cuja origem estaacute em noacutesmesmos (enquanto temos necessidade permanentemente de um mundo maisestreito abreviado simplificado ndash que a medida da forccedila eacute o grau em que

109 Segundo uma interpretaccedilatildeo do fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9 [123]) apresentada no iniacutecio destecapiacutetulo

193

podemos admitir a aparencialidade a necessidade da mentira sem sucumbir(NFFP 1887 9[41])

A crenccedila nada mais eacute do que a confianccedila na veracidade de uma concepccedilatildeo para ela

portanto natildeo interessa a veracidade da concepccedilatildeo em jogo Por outro lado para Nietzsche

este tomar por verdadeiro daquilo que necessitamos crer para viver corresponderia a uma

aparecircncia perspectivista da realidade Ou seja a origem da forccedila de toda crenccedila a

capacidade de se tomar por verdadeiro o que eacute necessaacuterio para nossa sobrevivecircncia estaria

em nosso interior E o que determinaria a nobreza do homem seria o fato da natureza o ter

munido de um intelecto capaz de criar estas condiccedilotildees para sua sobrevivecircncia A esta

capacidade corresponderia nossa capacidade de criar uma realidade cada vez mais criacutevel

Mas como Nietzsche antecipa em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira esta potencialidade

do intelecto apenas foi dada ao homem porque este seria o animal mais ameaccedilado o mais

fraacutegil frente as demais espeacutecies o que o teria tornado o animal mais dependente de

aparecircncias para sobreviver

Por outro lado enquanto a fraqueza de um ser vivo possa ser determinada pela

quantidade de acessoacuterios de que este depende para sobreviver a forccedila do homem poderia

ser determinada pela quantidade de ilusotildees de que este depende para sua manutenccedilatildeo Em

outros termos de quantas ilusotildees quantas crenccedilas poderia o homem se livrar sem

sucumbir Posto em termos nietzschiano quatildeo longe o homem poderia se aprofundar no

niilismo sem sucumbir A isto Nietzsche chama experimento a ideia de que algumas

naturezas sucumbem enquanto outras florescem na compreensatildeo de que a vida natildeo tem

valor aleacutem do valor que damos a ela

Nesse sentido a partir da vacuidade de sentido gerada na corrupccedilatildeo das certezas

inerente ao grande evento da morte de Deus o filoacutesofo pensa a possibilidade do

surgimento de uma forma de pensar afirmativa em relaccedilatildeo ao terriacutevel da existecircncia ateacute

mesmo de sua falta de sentido radical A esta forma de pensar Nietzsche as vezes se refere

como pensamento traacutegico as vezes como concepccedilatildeo dionisiacuteaca da realidade Nessa

concepccedilatildeo o filoacutesofo parece vislumbrar o surgimento de uma nova forma de filoacutesofos

Filoacutesofos traacutegicos capazes de apropriar-se de forma ativa de sua potencialidade criativa

superando a negatividade do niilismo atraveacutes de sua consumaccedilatildeo

194

Noacutes os pensantes-que-sentem somos os que de fato e continuamentefazem algo que ainda natildeo existe o inteiro mundo em eterno crescimentode avaliaccedilotildees cores pesos perspectivas degraus afirmaccedilotildees e negaccedilotildeesEsse poema de nossa invenccedilatildeo eacute pelos chamados homens praacuteticos(nossos atores como disse) permanentemente aprendido exercitadotraduzido em carne e realidade em cotidianidade O que quer que tenhavalor no mundo de hoje natildeo o tem em si conforme sua natureza mdash anatureza eacute sempre isenta de valor mdashfoi-lhe dado oferecido um valor efomos noacutes esses doadores e ofertadores O mundo que tem alguminteresse para o ser humano fomos noacutes que o criamos mdashMas justamenteeste saber nos falta e se num instante o colhemos no instante seguintevoltamos a esquececirc-lo desconhecemos nossa melhor capacidade e nossubestimamos um pouco noacutes os contemplativos mdash natildeo somos tatildeoorgulhosos nem tatildeo felizes quanto poderiacuteamos ser (FWGC IV sect301)

O pensamento do futuro portanto seria a retomada de uma forma de filosofia de

artista no sentido em que os novos filoacutesofos deveriam empoderar-se de sua capacidade

criar valor atraveacutes das criaccedilotildees de seu intelecto O uacuteltimo homem aquele que sofre ainda

das consequecircncias negativas da morte de Deus seria incapaz deste empoderamento A ele

se assemelharia um artista que se perde na criaccedilatildeo e por vezes perde o sentido de sua

criaccedilatildeo Inerente a este tipo de filosofia estaria a capacidade de conviver com um grau

elevado de ilusotildees sem deteriorar seu valor por conta da independecircncia dessas ilusotildees de

uma realidade ideal

Em sua reflexatildeo acerca do conhecimento Nietzsche pensa o homem como criador

de valor que por vezes esquece-se dessa propensatildeo de sua natureza Em certo sentido o

filoacutesofo compreende que algumas formas de constituiccedilatildeo vital vinculadas pelo filoacutesofo a

uma moral decadente e a uma ciecircncia dogmaacutetica tornam-se extremamente dependentes do

tipo de verdade concebida no interior de uma concepccedilatildeo platocircnica da realidade enquanto

outras formas segundo Nietzsche melhor constituiacutedas tem sua vitalidade vinculada agrave

negaccedilatildeo desse tipo de realidade ideal A sua noccedilatildeo de experimento assim significaria uma

forma de pensar as manifestaccedilotildees niilistas da cultura como sintomas de enfraquecimento

vital

Nesta leitura a consciecircncia da ausecircncia de verdades absolutas possibilitaria a

criaccedilatildeo de valores novos nos quais temos consciecircncia da falta absoluta de fundamentaccedilatildeo

Sendo assim o pensamento maduro nietzschiano compreendido dentro dos limites de uma

195

consideraccedilatildeo acerca da possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria como base a

consciecircncia de que toda crenccedila eacute essencialmente falsa A esta consciecircncia estaria vinculada

a certeza de que toda crenccedila seria efeito de uma confianccedila na veracidade de uma

concepccedilatildeo e natildeo de sua veracidade propriamente Acreditamos que a referecircncia ao

perspectivo no fragmento poacutestumo citado acima natildeo eacute aleatoacuteria nem mesmo indireta mas

que diz respeito aos princiacutepios que Nietzsche faz constar como elementos fundamentais de

sua compreensatildeo afirmativa do conhecimento Ou seja o questionamento do quanto de

verdade um ser vivente suporta sem sucumbir110 constitui-se como as bases para a

compreensatildeo de um modo divino de pensar

O perspectivismo enquanto pensamento radical que se contrapotildee a toda verdade

absoluta a todo ser enquanto fundamento da existecircncia representaria assim o modo de

pensar divino que afirma de modo criativo a falta de sentido da existecircncia Esta

compreensatildeo da perspectividade de toda suposta verdade refletiria aquilo que Nietzsche

nos diz quando afirma em um fragmento poacutestumo de 1887 ldquoNessa medida o niilismo

poderia como negaccedilatildeo de um mundo verdadeiro de um ser ser um modo de pensar

divinordquo (NFFP 1887 9[41]) Ou seja o perspectivismo nietzschiano enquanto expressatildeo

de um niilismo extremo que nega todo ser e o substitui por aparecircncias que nega toda

verdade e a substitui por interpretaccedilotildees corresponderia a uma forma de pensar que

refletiria um grau maacuteximo de forccedila um grau divino de existecircncia humana

O filoacutesofo relaciona a forma mais extrema de niilismo agrave tomada de consciecircncia da

inexistecircncia de um mundo verdadeiro Esta compreensatildeo da realidade em que o mundo

verdadeiro perde forccedila de significaccedilatildeo a partir do grande evento da morte de Deus pode

110 Atraveacutes de sua concepccedilatildeo de experimento Nietzsche retoma uma ideia fundamental jaacute presente em seuEnsaio sobre Verdade e Mentira e que retorna com frequecircncia em seus escritos posteriores A concepccedilatildeo danecessidade humana de falsidade de um mundo simplificado tornado passiacutevel de comunicaccedilatildeo um mundoque natildeo eacute mais do que a soma dos erros fundamentais necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia Esta concepccedilatildeofundamental para a compreensatildeo nietzschiana que vincula o conhecimento agrave necessidade humana desobrevivecircncia eacute expressa com frequecircncia em seus poacutestumos de 1887 e a ideia apresentada no fragmentopoacutestumo 9[41] de nossa necessidade de um mundo simplificado jaacute havia sido antecipada no aforismo 9[35]em sua segunda seccedilatildeo Neste fragmento em que Nietzsche pensa ldquoO fato de natildeo haver nenhuma verdaderdquo(NFFP 1887 9[35]) como uma consequecircncia positiva do niilismo o filoacutesofo antecipa a ideia de que adesvalorizaccedilatildeo dos valores fundados em uma realidade ideal implica a constataccedilatildeo de um enfraquecimentovital inerente agrave afirmaccedilatildeo dessa realidade Assim a constataccedilatildeo ldquode natildeo haver nenhuma constituiccedilatildeoabsoluta das coisas nenhuma lsquocoisa em sirsquordquo (NFFP 1887 9[35]) implica a investigaccedilatildeo das forccedilas posta emjogo na afirmaccedilatildeo de uma tal realidade Nesse sentido o perspectivismo nietzschiano na medida em que estaacuterelacionado agrave denuacutencia da inexistecircncia de uma realidade ideal apresenta-se como manifestaccedilatildeo de umniilismo extremo e como manifestaccedilatildeo de uma forccedila afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida

196

ser relacionada com a falsidade atribuiacuteda a todas as perspectivas assim como com o

potencial de valor associado ao princiacutepio que gera as perspectivas Desta maneira apesar

da nossa necessidade de perspectivas na medida em que nos desenvolvemos segundo a

necessidade de um mundo simplificado passiacutevel de ser comunicado essa necessidade

poderia ser valorizada como ponto de vista da criaccedilatildeo como arte

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo

Consideradas a obra nietzschiana do ponto de vista cronoloacutegico temos que a partir

de 1880 seu pensamento apresenta uma abordagem diferenciada para os problemas que

havia antecipado em seus escritos de juventude A emergecircncia de conceitos como Vontade

de Poder e Niilismo circunscrevem um periacuteodo em que seu pensamento toma como

fundamento o sentimento de afirmaccedilatildeo do mundo e da vida Nesta leitura a estrateacutegia

nietzschiana de radicalizaccedilatildeo do niilismo se fundamenta em uma nova estrutura conceitual

na qual o filoacutesofo vinha trabalhando jaacute desde seu Assim Falava Zaratustra Assim na

uacuteltima fase de seu pensamento em que Nietzsche estaacute preocupado de maneira especial

com o niilismo assim como em oferecer uma estrateacutegia de superaccedilatildeo deste entram em

jogo conceitos novos com os quais o filoacutesofo tencionava mobilizar uma estrateacutegia de

reversatildeo do processo de decadecircncia moral e cultural em que acreditava que sua eacutepoca

havia se aprofundado111

111 Esta interpretaccedilatildeo natildeo eacute incomum nos comentaacuterios da filosofia nietzschiana Nesse sentido eacute relevanteretomar a conhecida interpretaccedilatildeo heideggeriana para quem o pensamento nietzschiano poderia sercircunscrito a cinco conceitos fundamentais que seriam ldquoOs cinco tiacutetulos principais mencionados ndashlsquoniilismorsquo lsquotransvaloraccedilatildeo de todos os valores ateacute aquirsquo lsquovontade de poderrsquo lsquoeterno retorno do mesmorsquolsquoaleacutem-do homemrsquo ndash mostram a metafiacutesica de Nietzsche em um aspecto a cada vez uno mas respectivamentedeterminante do todordquo (HEIDEGGER 2007 Paacuteg 38) Nessa leitura a opccedilatildeo heideggeriana pelo niilismocomo conceito fundamental do pensamento metafiacutesico nietzschiano e a traduccedilatildeo de outros conceitosnietzschianos fundamentais a partir desse conceito indica um caminho de leitura possiacutevel em que osprincipais expoentes do pensamento nietzschiano relacionam-se a uma tentativa de superaccedilatildeo do niilismo Noentanto na medida em que compreendemos que no pensamento nietzschiano natildeo estamos diante de umauacutenica forma de niilismo posto que seria possiacutevel identificar em seu pensamento um niilismo da verdade umniilismo como antirealismo um niilismo como criacutetica dos fundamentos da religiatildeo um niilismo como criacuteticaaos fundamentos da ciecircncia e por uacuteltimo e talvez mais relevante um niilismo dos valores morais torna-senecessaacuterio ir aleacutem da interpretaccedilatildeo unificante de Heidegger De certa forma posto que o niilismo se apresentaa Nietzsche como mostrando-se a partir de ldquocentena de signosrdquo talvez fosse mais correto dizer que Nietzscheentende o niilismo como uma tendecircncia deteriorante uma doenccedila que perpassa diversas formas de culturahumana manifestando-se atraveacutes da negaccedilatildeo da realidade

197

Estes aspectos conduzem seu pensamento agrave busca pelos modos de se atingir o mais

elevado grau de vivacidade possiacutevel de ser experimentado De maneira geral importa a

Nietzsche neste periacuteodo de sua reflexatildeo oferecer alternativas aos problemas teoacutericos e de

fundo fisioloacutegico112 que o filoacutesofo encontra em sua eacutepoca Eacute nesse momento de sua

produccedilatildeo que o filoacutesofo registra em suas notas em um fragmento poacutestumo que costuma

constar como proacutelogo nos comentaacuterios do niilismo nietzschiano

O que eu relato eacute histoacuteria dos proacuteximos dois seacuteculos Descrevo o que estaacutea caminho o que natildeo pode mais ser diferente o advento do niilismoEssa histoacuteria pode ser relatada desde jaacute pois eacute a necessidade mesma queopera aqui Esse futuro fala agora mesmo atraveacutes de uma centena designos esse destino se anuncia em toda parte para essa muacutesica do futurotodos os ouvidos estatildeo abertos agora mesmo Por algum tempo ateacute agoratoda a nossa cultura europeia se moveu como que em direccedilatildeo a umacataacutestrofe com uma tensatildeo tortuosa que foi crescendo deacutecada por deacutecadaincansavelmente violentamente irrecorrivelmente como uma torrenteque quer alcanccedilar o fim que jaacute natildeo reflete que tem medo de refletir(KSA XIII 11[411])

Neste fragmento o niilismo eacute apresentado como se mostrando atraveacutes de uma

ldquocentena de signosrdquo ou seja como manifestando-se em diversas formas de expressatildeo na

cultura europeia Motivo pelo qual a ele ldquotodos os ouvidos estatildeo abertosrdquo Claramente aqui

o que estaacute em jogo eacute um sentido negativo do niilismo como uma ldquocataacutestroferdquo que se

anuncia por diversos signos Estes signos seriam a crescente tendecircncia decadente

subversora do sentido que Nietzsche enxerga presente na filosofia nas ciecircncias e de modo

geral na moral e que poria em risco a proacutepria existecircncia humana

De fato considerando-se que a moral eacute o grande campo de disputa da reflexatildeo

nietzschiana e que seu uso do termo aparece muitas vezes relacionado agrave sua criacutetica ao

cristianismo enquanto fundamento da moral ocidental entatildeo natildeo teriacuteamos duacutevida acerca

da natureza deste conceito em sua obra Deveriacuteamos concluir que o uso nietzschiano do

112 No fundo os problemas teoacutericos e suas consequecircncias fisioloacutegicas nunca satildeo distintos de forma clara nopensamento nietzschiano que toma a fisiologia dos processos de reflexatildeo como um modelo de reflexatildeo Esteaspecto tambeacutem eacute parte do experimentalismo da postura do filoacutesofo na qual o corpo e suas manifestaccedilotildeesfisioloacutegicas satildeo tomadas como laboratoacuterio de pesquisa Nesse sentido o conhecimento importa ao autor namedida em que possibilita o fortalecimento do tipo humano ao contraacuterio eacute relegado ao plano da especulaccedilatildeosem sentido

198

termo niilismo condiz com uma forma de criticar uma tendecircncia que se encontraria muito

fundamentalmente arraigada nos fundamentos da moral A partir da moral entatildeo o

niilismo enquanto tendecircncia teoacuterica conseguiria expandir-se para os outros terrenos da

cultura humana Nesse sentido na medida em que a ciecircncia e a filosofia se deixam

influenciar por concepccedilotildees morais inoculam o niilismo em suas produccedilotildees

Diante do exposto acreditamos natildeo ser absurdo contemplar o efeito da tendecircncia

niilista nas teorias do conhecimento criticadas por Nietzsche Em termos epistemoloacutegicos

que dizem respeito mais diretamente ao objeto deste trabalho o uso nietzschiano do termo

niilismo estaacute vinculado a uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade e conhecimento

como conceitos vinculados a uma vontade negativa em relaccedilatildeo agrave vida Nesse sentido o

niilismo estaria relacionado ao posicionamento epistemoloacutegico que afirma a possibilidade

de se atingir verdades absolutas com base em uma realidade suprassensiacutevel Ao negar a

possibilidade de se atingir verdades absolutas Nietzsche pretende opor resistecircncia agrave

tendecircncia niilista em teoria do conhecimento vista em sua leitura como um fundamento do

pensamento ocidental presente tanto no racionalismo como na metafiacutesica na religiatildeo e ateacute

mesmo na ciecircncia113

A questatildeo fundamental acerca do niilismo eacute colocada por Nietzsche nos seguintes

termos ldquoO niilismo estaacute agrave porta de onde nos vem esse mais sinistro de todos os

hoacutespedesrdquo (NFFP 1885 2[127]) Esta pergunta pode ser respondida com base nos textos

nietzschianos onde a genealogia do niilismo efetuada por Nietzsche acaba por conduzir ao

otimismo socraacutetico a crenccedila na razatildeo como remeacutedio para a existecircncia como a raiz mais

antiga do niilismo114 Se o filoacutesofo vincula a origem do niilismo a uma tendecircncia

epistemoloacutegica da antiguidade que certamente reflete uma opccedilatildeo moral associada pelo

113 Nietzsche certamente natildeo foi o primeiro a opor resistecircncia agraves concepccedilotildees que pretendem fundamentar oconhecimento em uma esfera exterior agrave realidade material Assim o perspectivismo nietzschiano enquantopostura epistemoloacutegica teria antecedentes histoacutericos em algumas correntes relativistas radicais daantiguidade tais como em Goacutergias famoso sofista nascido em Leontinos na Siciacutelia por volta de 485480aC cuja ceacutelebre negaccedilatildeo da existecircncia do ser assim como a negaccedilatildeo da possibilidade de seu conhecimentoe comunicaccedilatildeo testemunham uma das primeiras criacuteticas radicais agrave categoria de verdade na antiguidade Poroutro lado o relativismo agnoacutestico de Protaacutegoras que o leva a construir seu meacutetodo da antilogia a crenccedila deque natildeo existiria uma soacute verdade sobre os objetos mas duas verdades opostas e igualmente sustentaacuteveisatraveacutes do discurso possivelmente deve ser considerado como uma influecircncia melhor reconhecida nareflexatildeo nietzschiana Isto se daacute por conta dos embates deste sofista com os filoacutesofos disciacutepulos de Soacutecratesque com certeza refletem-se no antiplatonismo radical que Nietzsche reclama para sua filosofia Ao comparara postura nietzschiana com relaccedilatildeo agrave verdade a estas tendecircncias relativistas da antiguidade fica claro que seuposicionamento tem suas origens em uma espeacutecie de relativismo extremado embora natildeo possa ser reduzido aisto posto que tem tambeacutem um caraacuteter construtivo como pretendemos demonstrar a frente

199

filoacutesofo agrave valores decadentes o presente do niilismo para Nietzsche estaria diretamente

vinculado agrave moral cristatilde Motivo pelo qual na sequecircncia do texto jaacute referido o filoacutesofo

afirma que ldquoem uma interpretaccedilatildeo bem determinada na interpretaccedilatildeo moral cristatilde reside

o niilismordquo Ou seja considerando o niilismo um evento histoacuterico o filoacutesofo suscita uma

desconfianccedila acerca de suas bases constitutivas Poreacutem dado que reconhece uma inter-

relaccedilatildeo entre a moral cristatilde e a epistemologia que move a ciecircncia de sua eacutepoca natildeo tem

duacutevidas acerca do presente do niilismo Do mesmo modo por conta de seu caraacuteter de

mascaramento que reproduz de forma dissimulada a mesma tendecircncia presente no

otimismo socraacutetico o autor considera o cristianismo uma versatildeo popular do platonismo

A definiccedilatildeo de niilismo que se segue no poacutestumo em questatildeo pode ser considerada

definitiva ldquoQue significa niilismo ndash Que os valores supremos desvalorizem-se Falta o

fim falta a resposta ao lsquoPor quecircrsquordquo115 Assim ao niilismo estaria associada uma falta

estrutural de referenciais assim como a ausecircncia total de finalidade do devir Na medida

em que entende que o niilismo teve sua apariccedilatildeo nos meios culturais europeus e que nestes

fez residecircncia sem convite e sem se dar por conhecido o autor descreve o niilismo como

ldquoo mais estranho e mais ameaccedilador de todos os hoacutespedesrdquo116 Diante da nota nietzschiana

ldquoNiilismo falta a metardquo deduz-se que toda ausecircncia de objetivos manifesta uma vacuidade

de sentido da accedilatildeo humana para a qual ldquofalta a resposta ao por quecircrsquordquo deixando a accedilatildeo

humana pendendo sob o abismo da indeterminaccedilatildeo Sendo que o homem eacute visto nessa

leitura como ser limitado a uma determinada forma de viver eacute um ser determinado pela

necessidade de diretrizes ldquoO fato de que os valores supremos se desvalorizamrdquo

114 Eacute nesse sentido por exemplo que Heidegger no capiacutetulo de sua obra colossal acerca da filosofianietzschiana inicia sua apresentaccedilatildeo do niilismo por uma apresentaccedilatildeo da filosofia platocircnica HEIDEGGERMartin Nietzsche 2ordf ediccedilatildeo traduccedilatildeo de Marco antocircnio Casanova editora Forense Universitaacuteria Rio deJaneiro 2014 Mais do que isso o platonismo ocupa a primeira posiccedilatildeo nos estaacutegios do importante capiacutetulode Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da histoacuteria de um erro em que o autor apresenta sua versatildeo para a origem daideia de um mundo verdadeiro que estaacute na base do niilismo epistemoloacutegico como a crenccedila na verdade comovalor

115 Idem116 Nesse mesmo fragmento poacutestumo a consciecircncia da aproximaccedilatildeo de uma eacutepoca em que os fundamentosse tornam inoacutecuos eacute expressa por Nietzsche na sentenccedila ldquoo niilismo estaacute a portardquo (KSA XII 2[127])

200

(NFFP1887 9[35])117 ocasiona para ele um ponto de ruptura a partir do qual poucas

possibilidades se lhe apresentam

O que significa que os valores se desvalorizam Primeiramente isto significa que

natildeo haacute na razatildeo um norte a ser seguido uma finalidade determinada que conduza a accedilatildeo

humana Em segundo lugar isto significa que a concepccedilatildeo em que os valores fundamentais

se baseia mostra-se sem valor sem sentido O que seria para Nietzsche resultado de um

processo de anaacutelise da razatildeo que potildee valores sobre estes mesmos valores Assim com a

questatildeo acerca do sentido da falta de sentido do niilismo nietzschiano nos colocamos

diante de uma exposiccedilatildeo clara e determinante de como este deve ser compreendido em

associaccedilatildeo a duas concepccedilotildees fundamentais Primeiramente o niilismo se opotildee a toda

forma de teleologia ele se afirma na constataccedilatildeo da vacuidade de objetivos para a

realidade Em segundo lugar o niilismo estaacute relacionado com uma vacuidade nos valores

uma deterioraccedilatildeo dos valores fundamentais

Nestas duas concepccedilotildees temos um ponto de partida o niilismo significa que os

valores que fundamentam a existecircncia humana os fundamentos necessaacuterios para nossa

accedilatildeo perdem seu valor Para a pergunta fundamental para o sentido da existecircncia nos falta

uma resposta Deste problema fundamental surge a necessidade de se ocupar o vaacutecuo de

sentido para a existecircncia criado pela emergecircncia do niilismo Considerado o problema

dessa maneira a partir de uma compreensatildeo da falta de sentido na existecircncia duas

possibilidades parecem se apresentar ao filoacutesofo Motivo pelo qual ainda no aforismo

mencionada acima o autor traccedila uma distinccedilatildeo entre duas formas do niilismo o niilismo

ativo e o niilismo passivo

Ao niilismo passivo estaria vinculada toda forma de cansaccedilo da existecircncia toda

forma de instinto decadente O filoacutesofo entende o niilismo enquanto maldiccedilatildeo para a

117 eKGWBNF-18879[35] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1887 Em relaccedilatildeo aos aforismospoacutestumos foram consultados os originais na ediccedilatildeo digital das obras e cartas de Nietzsche organizadas porCOLLIMORTINARI Sempre que disponiacuteveis utilizamos as traduccedilotildees dos poacutestumos reunidas na coletacircneade fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI traduzidos por Marco Antocircnio Casanova publicado pelaeditora GEN em parceria com a Forense Universitaacuteria Tambeacutem utilizamos a ediccedilatildeo de fragmentos do espoacuteliode julho de 1882 a inverno de 18831884 traduzidos por Flaacutevio R Kothe e publicada pela editora UNBTambeacutem foram consultados os fragmentos sobre o Niilismo reunidas nas uacuteltimas paacuteginas do volumeNietzsche da coleccedilatildeo os pensadores editora Abril Cultural 1978 com seleccedilatildeo de textos de Geacuterard Lebrun ecom traduccedilotildees Rubens Rodrigues Torres Filho Quando satildeo utilizados fragmentos que natildeo constam nessascoletacircneas a traduccedilatildeo eacute de nossa responsabilidade A indicaccedilatildeo dos poacutestumos segue o seguinte padratildeo(NFFP Ano Nuacutemero do volume das notas poacutestumas e nuacutemero do fragmento)

201

humanidade como estando vinculado a uma necessidade de repouso que se expressa

muitas vezes em uma adoraccedilatildeo de uma realidade inexistente A constituiccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo de verdade como correspondecircncia a uma realidade apartada da realidade

humana estaacute ligada de forma direta a esta forma passiva de niilismo Nesse sentido o

niilismo poderia tambeacutem ser visto como um sinal de forccedila ldquonatildeo suficienterdquo um estado

cansado passivo reativo em relaccedilatildeo agrave realidade A este estado corresponderia uma

afirmaccedilatildeo da idealidade do que se nos apresenta uma sacralizaccedilatildeo dos valores apesar da

consciecircncia de sua ineficiecircncia Nesse sentido o niilismo passivo apresenta-se como uma

forma decadente de valorar a realidade na medida em que se ampara em valores vazios

em que torna o proacuteprio nada como um telos

A esta forma passiva do niilismo Nietzsche vincula as formas negativas de

existecircncia aquelas que se potildee em contradiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave vida O cristianismo eacute como

se sabe considerado pelo autor como um exemplo da manifestaccedilatildeo desse tipo de niilismo

na histoacuteria118 E jaacute no prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche expressa a

radicalidade da contrariedade do cristianismo em relaccedilatildeo agrave vida e a consequente

valorizaccedilatildeo negativa da vida inerente a essa postura

O cristianismo foi desde o iniacutecio essencial e basicamente asco e fastioda vida na vida que apenas se disfarccedilava apenas se ocultava apenas seenfeitava sob a crenccedila em ldquooutrardquo ou ldquomelhorrdquo vida O oacutedio ao ldquomundordquoa maldiccedilatildeo dos afetos o medo agrave beleza e agrave sensualidade um lado-de-laacuteinventado para difamar melhor o lado-de-caacute no fundo um anseio pelonada pelo fim pelo repouso para chegar ao ldquosabaacute dos sabaacutesrdquo (Prefaacuteciosect5 Paacuteg 19)

Ao cristianismo portanto estaria ligado uma forma negativa de niilismo passivo

Consequentemente ao cristianismo estaria ligada uma forma negativa de existecircncia Mas o

niilismo passivo natildeo eacute a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do niilismo Se por um lado

diante da criacutetica ao cristianismo que encontramos no interior da obra nietzschiana nos

veriacuteamos diante da necessidade de atribuir um valor estritamente negativo ao niilismo do

118 Embora o budismo tambeacutem seja apresentado pelo autor em certas passagens notadamente no Anticristocomo uma forma do niilismo passivo na medida em que entende que este fundamentava-se em uma negaccedilatildeoagrave realidade O budismo no entanto distinguir-se-ia do cristianismo na medida em que o cristianismo conduza uma atitude de rejeiccedilatildeo da realidade que eacute estranha ao budismo

202

qual o cristianismo seria a manifestaccedilatildeo mais elevada por outro lado uma tal condenaccedilatildeo

do niilismo por si passa por alto a distinccedilatildeo fundamental entre niilismo ativo e passivo

Mais do que isso a condenaccedilatildeo do niilismo pode ainda ser vista como um aspecto do

niilismo passivo no qual natildeo se apresentaria uma alternativa de superaccedilatildeo Por sua vez ao

niilismo ativo estaria vinculada uma foacutermula da superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo Esta forma

de superaccedilatildeo do niilismo que toma o niilismo mesmo como elemento relaciona-se

intimamente com o projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo dos valores

A esta forma do niilismo segundo Nietzsche estariam vinculados os instintos

afirmativos e criadores Assim ainda no fragmento poacutestumo 9[39] de 1887 Nietzsche

afirma ldquolsquoNiilismorsquo como ideal da mais elevada potencialidade do espiacuterito em parte

destrutivo em parte irocircnicordquo (NFFP 1887 9[39]) Com isso o filoacutesofo daacute a entender que

o niilismo por si natildeo eacute apenas um estado negativo uma fatalidade histoacuterica Pois em sua

leitura quando o valor da existecircncia carece de sentido o niilismo pode ser ldquosinal do poder

elevado do espiacuteritordquo na medida em que ldquoas metas ateacute aquirdquo se mostram inapropriadas para

algueacutem incapazes de satisfazer as ldquoconvicccedilotildeesrdquo ou os ldquoartigos de feacuterdquo do indiviacuteduo

O niilismo ativo se mostra aqui como potencial criativo na medida em que a

consciecircncia da vacuidade dos valores produz valores novos A proacutepria mudanccedila dos

valores sua transformaccedilatildeo seria manifestaccedilatildeo da forccedila da vontade como uma expressatildeo

direta do crescimento do poder daquele que estabelece os valores (NFFP 1887 9[39])

Para o filoacutesofo a caducidade dos valores eacute condicionada pela sua crescente ineficiecircncia

pela sua incapacidade em suprir a vontade do indiviacuteduo em questatildeo dando margem agrave

mudanccedila dos valores Nesse sentido agrave mudanccedila dos valores estaria ligada a um progresso

no poder criativo daqueles que constituem os valores os legisladores o tipo filosoacutefico

cotejado por Nietzsche em seus escritos a partir de Humano demasiado Humano

Esta distinccedilatildeo se mostra fundamental para um estudo aprofundado do pensamento

de Nietzsche e nem sempre estaacute clara nas leituras mais ligeiras da obra deste autor Assim

apesar da criacutetica ao niilismo na filosofia nietzschiana superar enormemente o sentido

afirmativo dessa tendecircncia eacute importante considerar que na leitura nietzschiana do

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores nem todo niilismo eacute um niilismo passivo Posto

203

que no o autor contempla a possibilidade em se falar de um niilismo positivo afirmativo

ou como prefere Nietzsche um niilismo ativo transformador da realidade119

O niilismo ativo como consciecircncia da falta de sentido no mundo que conduz a

criaccedilatildeo de sentido eacute uma forma de niilismo de extrema significaccedilatildeo na filosofia

nietzschiana Sua concepccedilatildeo da vontade de potecircncia enquanto poder criativo inerente agrave

realidade associa-se intimamente a esta concepccedilatildeo e seu experimentalismo estaacute

estreitamente relacionado com a ideia de um atribuir valor as coisas como podemos ver

em um outro fragmento de 1887 no qual o autor declara

Aquele que natildeo eacute capaz de pocircr sua vontade nas coisas que eacute sem forccedila devontade sabe pelo menos dar um sentido agraves coisas isto eacute agrave crenccedila de queelas encerram uma vontade Eacute uma medida para indicar o grau de forccedilade vontade o saber ateacute que ponto podem as coisas carecer de sentido paranoacutes ateacute que ponto suportamos viver num mundo sem sentido (NFFP1887 9[60])

O filoacutesofo aponta para uma capacidade de atribuir sentido para as coisas

pertencente agravequeles capazes de colocar sua vontade nas coisas E essa capacidade eacute

encarada aqui como uma medida para julgar entre posiccedilotildees contraacuterias entre diferentes

quanta de forccedila O experimento aqui consiste em saber ateacute que ponto as coisas podem

carecer de sentido e serem ainda afirmadas ou de outro modo ateacute que ponto uma

constituiccedilatildeo fisioloacutegica suporta a falta de sentido estrutural nas coisas Tal medida natildeo se

distingue fundamentalmente da ideia presente em outras partes da produccedilatildeo nietzschiana

nas quais o autor relaciona o eterno retorno enquanto extrema forma de niilismo como a

falta de sentido mais elevada e o questionamento acerca do quanto de verdade algueacutem

pode suportar Neste experimento eacute constatado o proacuteprio fato de que a medida da forccedila eacute

quanto podemos admitir da necessidade da mentira sem perecer120

Mesmo diante da constataccedilatildeo da falta de sentido da existecircncia o filoacutesofo chega a

uma conclusatildeo fundamental segundo a qual uma determinada vontade pode ser expressa

em um ato positivo no sentido de sustentar uma crenccedila tomaacute-la por verdade independente

de ser ela verdade ou natildeo Assim considerado a partir dessa perspectiva o niilismo eacute

119 A diferenciaccedilatildeo entre niilismo ativo e passivo eacute expressa por Nietzsche no fragmento poacutestumo(NFFP1887 9[35]) citado a frente (Conforme ainda A Vontade de Poder Paacuteg 36) 120 Vide por exemplo o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[41])

204

ressignificado tornando-se a negaccedilatildeo do mundo do ser o mundo ideal contraposto ao

mundo real da ausecircncia de sentido Natildeo eacute sem importacircncia o fato de que seraacute justamente

nessa superaccedilatildeo da necessidade de um aleacutem enquanto fonte de sentido da existecircncia que o

filoacutesofo encontraraacute a forma mais adequada ao espiacuterito livre

Com base nesta concepccedilatildeo do niilismo ativo pode-se pensar a desconfianccedila acerca

da possibilidade de se nos representarmos a realidade em sua inteireza proacutepria do

perspectivismo como fundamento de uma concepccedilatildeo do conhecimento como criaccedilatildeo A

consideraccedilatildeo frequente nos textos nietzschianos especialmente a partir de A Gaia Ciecircncia

de uma forma de conhecimento como associada agrave audaacutecia da criaccedilatildeo e da experimentaccedilatildeo

assume um novo sentido que lhe afasta da mera consideraccedilatildeo do relativismo inerente agrave

consideraccedilatildeo de que todo conhecimento afirma-se como uma mera interpretaccedilatildeo

Na leitura do filoacutesofo quando uma determinada estrateacutegia epistemoloacutegica vista

aqui apenas como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia torna-se uma obsessatildeo no homem por

exemplo quando a vontade de verdade se sobrepotildee agrave vontade de vida quando o

conhecimento se torna para o homem uma ilusatildeo e uma fuga a ele se vinculam instintos

contraacuterios agrave manutenccedilatildeo da vida E dessa forma se abriria a possibilidade de uma forma

de niilismo Eacute contra o niilismo desta concepccedilatildeo que Nietzsche se volta ao pensar o

conhecimento segundo uma compreensatildeo perspectivista

A este niilismo oriundo da consciecircncia da desvalorizaccedilatildeo dos valores

epistemoloacutegicos ou seja a consciecircncia da inconsistecircncia dos conceitos tomados ateacute entatildeo

como os mais certos vincula-se a possibilidade de criar Esta criaccedilatildeo no entanto natildeo eacute

mais tomada como verdade tais como as criaccedilotildees da ciecircncia e da filosofia dogmaacutetica A

criaccedilatildeo aqui passa a ser vista como de fato eacute apenas uma forma de valorar a realidade

segundo as capacidades e limitaccedilotildees do homem Daiacute o perspectivismo

Nessa leitura entra em jogo uma forma de conceber a criaccedilatildeo que difere da

falsificaccedilatildeo a qual Nietzsche atribuiacute agrave ciecircncia e a filosofia dogmaacutetica No fundo tal como

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira o autor trabalha aqui com duas possibilidades

inerentes agrave inesgotaacutevel capacidade humana de figuraccedilatildeo De um lado teriacuteamos o homem

dos conceitos que se embrenha nas criaccedilotildees do intelecto sem se dar conta da falsidade de

sua atuaccedilatildeo acabando por ficar preso nas redes de seu proacuteprio dogmatismo para o qual

205

natildeo vecirc saiacuteda mesmo quando se torna consciente da falsidade de seus conceitos Aqui

Nietzsche fala propriamente em uma falsificaccedilatildeo da realidade posto que a atitude para

com os produtos do conhecimento implicaria na crenccedila na veracidade destes produtos

A esta atitude para com os produtos do intelecto o autor confronta o modo de

proceder do homem intuitivo do artista do filoacutesofo do futuro do espiacuterito livre todos

variaccedilotildees em torno de uma mesma compreensatildeo do papel do filoacutesofo Segundo Nietzsche

por agir para com os produtos do intelecto de maneira conscientemente artiacutestica o homem

que se liberta do dogmatismo da ciecircncia e da filosofia natildeo falsearia a realidade mas apenas

a dissimularia Deste modo o que estaacute em jogo natildeo eacute mais a falsidade dos produtos da

atuaccedilatildeo perspectivista humana mas a crenccedila em sua veracidade A ideia de

experimentalismo em Nietzsche estaacute estreitamente relacionada a esta compreensatildeo da

atuaccedilatildeo do intelecto Isto porque o filoacutesofo pensa seu experimentalismo como o

questionamento do quanto o homem poderia se aprofundar no niilismo ou seja quanto ele

poderia tornar-se consciente do caraacuteter meramente artiacutestico de seus conceitos de suas

verdades sem sucumbir

Uma filosofia experimental tal como eu a vivo antecipaexperimentalmente ateacute mesmo as possibilidades de um niilismo radicalsem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negaccedilatildeo no natildeoem uma vontade de natildeo Ela quer em vez disso atravessar ateacute ao inversondash ateacute a um dionisiacuteaco dizer - sim ao mundo tal como eacute sem descontoexceccedilatildeo e seleccedilatildeo ndash quer o eterno curso circular ndash as mesmas coisas amesma loacutegica e iloacutegica do encadeamento Supremo estado que umfiloacutesofo pode alcanccedilar estar dionisiacamente diante da existecircncia ndashminha foacutermula para isso eacute amor fati (NFFP XIII 16 [32])121

Se o que o filoacutesofo diz aqui eacute dito com relaccedilatildeo ao mundo ldquosem desconto exceccedilatildeo e

seleccedilatildeordquo entatildeo tambeacutem implicaria um radical dizer-sim ateacute agrave pequenez de nossa

perspectiva humana Nesse sentido o amor fati tambeacutem significaria amar nossa

perspectiva em seu caraacuteter aparente sem sucumbir Segundo a compreensatildeo nietzschiana

em que aspectos das ciecircncias naturais satildeo tomados como suporte teoacuterico o perspectivismo

apareceria como uma postura em relaccedilatildeo ao conhecimento mais proacutexima das exigecircncias da

121 Foi utilizada a traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres filho do espoacutelio do Outono de 1888 constante novolume das obras selecionadas de Nietzsche para a coleccedilatildeo os pensadores

206

proacutepria vida Pois na medida em que uma espeacutecie aparece para o filoacutesofo como

dependente de uma consideraccedilatildeo da realidade segundo suas necessidades seria a proacutepria

perspectividade que potencializaria o desenvolvimento daquela espeacutecie Em contrapartida

a confusatildeo entre o tomar como perspectivo o que eacute necessaacuterio agrave vida e o tomaacute-lo como

verdadeiro caracterizaria uma forma de vida decadente

Na medida em que o autor pensa a transvaloraccedilatildeo como esse movimento que busca

o inverso a partir do que eacute dado ou seja que considera que a chegada em um estaacutegio

superior de afirmaccedilatildeo apenas se torna possiacutevel quando se supera um estaacutegio radical de

negaccedilatildeo a passagem necessaacuteria pelo niilismo radical se torna uma parte importante de seu

procedimento de experimentaccedilatildeo Pois para o filoacutesofo o niilismo apresenta-se como uma

fase um estaacutegio no caminho da afirmaccedilatildeo mais radical o dionisiacuteaco dizer sim Nesse

sentido fundamental o experimentalismo nietzschiano estaria vinculado a uma tentativa de

superaccedilatildeo do niilismo radical

Como o fragmento acima citado demonstra a utilizaccedilatildeo dos termos ldquofilosofia

experimentalrdquo e ldquoamor fatirdquo pertencem ao periacuteodo dos uacuteltimos escritos nietzschianos em

que o filoacutesofo jaacute esboccedila uma tentativa de reconstruccedilatildeo de sua proacutepria obra122 A esta

tentativa pertence tambeacutem e de forma especial o conceito de transvaloraccedilatildeo o qual

vinculamos em nossa interpretaccedilatildeo agrave superaccedilatildeo do niilismo por meio de uma vivecircncia do

niilismo radical ou seja a tentativa de superar o niilismo atraveacutes do niilismo mesmo

122 Como sugere Charles Andler em ANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Paris Gallimard 1958vol 2 p 13

207

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas

Qualquer interpretaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano enfrenta uma dificuldade

inicial peculiar a escassez de referecircncias a esta concepccedilatildeo tanto em textos publicados em

vida quanto na obra poacutestuma do filoacutesofo O termo ldquoperspectivismordquo aparece propriamente

apenas em poucas passagens da obra nietzschiana publicada O primeiro exemplo de

apariccedilatildeo deste termo que gostariacuteamos de analisar encontra-se no sect 354 de A Gaia Ciecircncia

que eacute de tal modo frequente em todos comentadores que trabalham a temaacutetica do

perspectivismo a ponto de quase ser considerada como um ponto de partida oficial dos

comentaacuterios do perspectivismo nietzschiano

Nesta passagem o perspectivismo eacute associado ao ldquofenomenalismordquo no que o autor

pretende como sendo uma afirmaccedilatildeo do caraacuteter amplamente restritivo que a consciecircncia

assume em seu pensamento Nesta consideraccedilatildeo das limitaccedilotildees de sua concepccedilatildeo de

consciecircncia que eacute afirmada em aberta contraposiccedilatildeo ao tratamento epistemoloacutegico

tradicional e seu par conceitual sujeitoobjeto o conceito de perspectivismo natildeo eacute no

entanto oferecido como uma contribuiccedilatildeo original mas eacute apresentado como um traccedilo

caracteriacutestico do pensamento do autor

Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendoa natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemosnos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado ndash quetudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralorelativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-seconsciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeosuperficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo (FWGC Livro V sect354)

Com sua referecircncia ao ldquoFenomenalismordquo de suas concepccedilotildees o autor de A Gaia

Ciecircncia demarca o acircmbito da investigaccedilatildeo a que se propotildee o aparecimento das realidades

em estudo Interessa ao autor portanto o estudo daquilo que se apresenta a noacutes em nossa

experiecircncia Mais ainda o autor assume o caraacuteter restritivo de sua investigaccedilatildeo do tema

208

posto que eacute tomado como advindo de uma perspectiva limitada Do mesmo modo

consciente de que a atuaccedilatildeo da consciecircncia123 conduz a uma superficializaccedilatildeo daquilo que eacute

investigado por meio dela o autor denomina perspectivismo a sua apropriaccedilatildeo do objeto

na medida em que sua apropriaccedilatildeo desse objeto como toda aproximaccedilatildeo de qualquer

objeto por meio da consciecircncia apenas pode se dar de modo a falsear tornar comunicaacutevel

generalizar

Ao entender que sua filosofia esta demarcada por um fenomenalismo e um

perspectivismo o autor reconhece que sua abordagem dos problemas filosoacuteficos natildeo estaacute

alheia ao conhecimento de que toda posiccedilatildeo filosoacutefica apenas pode se dar por meio de uma

grande reduccedilatildeo e simplificaccedilatildeo da realidade Nesta compreensatildeo da necessaacuteria reduccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo operada pela consciecircncia encontramos elementos da abordagem que

Nietzsche adota em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra Moral

Notadamente a afirmaccedilatildeo do caraacuteter falsificador da atuaccedilatildeo da organizaccedilatildeo intelectual

humana124

Em ambos textos o autor parece partir do reconhecimento do avanccedilo das ciecircncias

naturais Esta abordagem eacute significativa porque a partir dela a consciecircncia apareceria para

noacutes como um fenocircmeno entre outros cada vez melhor conhecido e natildeo mais como

substacircncia separada da realidade125 Nesta leitura a consciecircncia atuando no sentido de

123 Vale ressaltar que Nietzsche aplica aqui a anaacutelise da consciecircncia de um modo distinto da tradiccedilatildeo Obrassobre a consciecircncia a razatildeo o entendimento humano satildeo comuns desde a modernidade mas o autor doEnsaio Sobre Verdade e Mentira trabalha com este conceito em um sentido fisioloacutegico e de certo modoevolucionista que distoa da concepccedilatildeo metafiacutesica da consciecircncia tal como esta foi entendida pela tradiccedilatildeoEsta interpretaccedilatildeo parte da consideraccedilatildeo do Ensaio Sobre Verdade e Mentira no sentido Extra-moral cujatemaacutetica e desenvolvimento eacute semelhante as do aforismo em questatildeo A consciecircncia aparece nessa concepccedilatildeocomo um oacutergatildeo do aparato humano uma adaptaccedilatildeo bioloacutegica que cumpre um papel essencial na manutenccedilatildeode nossa espeacutecie O trato naturalista que Nietzsche aplica a consciecircncia seraacute desenvolvido adiante124 Em ambos textos Nietzsche trabalha com a ideia de que o aparato racional humano ao constituir alinguagem simplifica a realidade em prol da sobrevivecircncia humana Ou seja ao inveacutes de estar voltado para averdade como se a realidade estivesse constituiacuteda de forma racional e apenas racionalmente pudesse serdesvelada a razatildeo humana trabalharia no sentido de tornar racional algo muito mais complexo do que a razatildeopossa compreender Assim na tentativa de converter esta complexidade pura em algo passiacutevel decomunicaccedilatildeo a razatildeo operaria uma ldquoviolecircnciardquo para com a realidade propriamente Note-se que toda estaexplicaccedilatildeo parece sugerir que haacute um algo que eacute traduzido em linguagem por meio de uma simplificaccedilatildeo Noentanto a existecircncia desse ldquoalgordquo se deveria muito mais a uma limitaccedilatildeo da linguagem com relaccedilatildeo ao que ofiloacutesofo tenta dizer do que propriamente uma crenccedila de Nietzsche em uma realidade em si que eacute traduzidaem linguagem por meio desta simplificaccedilatildeo Esperamos que isto fique claro no decorrer de nossa exposiccedilatildeoPor fim uma importante ressalva a ser feita diz respeito ao termo utilizado para se referir ao oacutergatildeoresponsaacutevel pela criaccedilatildeo da linguagem em ambos textos Em se Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzscherefere-se a esta faculdade como intelecto (Intelect) e no aforismo em questatildeo de A Gaia Ciecircncia o filoacutesofoconsidera a consciecircncia a estrutura responsaacutevel por esta conversatildeo125 Nesse sentido o autor do aforismo estaacute em conformidade com o essencial da leitura de Lange dafilosofia e do modo como a aplicaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico conduziria a um afastamento cada vez maior das

209

gerar comunicaccedilatildeo conduz a uma reduccedilatildeo cada vez maior de todos os aspectos internos

tudo que haacute de mais individual na vida humana a uma generalizaccedilatildeo passiacutevel de ser

tornada comum Este aspecto generalizante faz com que fiquemos impedidos de nos

relacionar com os eventos verdadeiros ateacute mesmo de nossa proacutepria existecircncia pessoal

Assim perspectivamos o que haacute de verdadeiro acerca de nossa proacutepria constituiccedilatildeo interna

que eacute individual e natildeo passiacutevel de comunicaccedilatildeo na tentativa de nos tornarmos conscientes

de acontecimentos cuja ocorrecircncia natildeo permitiria generalizaccedilatildeo126

A anaacutelise nietzschiana se destaca pela associaccedilatildeo entre perspectivismo e

consciecircncia como uma forma de inversatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Ou seja se a tradiccedilatildeo

compreende que seria o elemento racional humano o elemento potencializador do

conhecimento Nietzsche quer problematizar a natureza desta concepccedilatildeo de conhecimento

que para o filoacutesofo natildeo se relacionaria com a descoberta de verdades disponiacuteveis agrave razatildeo

Sua reflexatildeo criacutetica portanto diz respeito agrave anaacutelise de nossa capacidade de conhecer e do

oacutergatildeo que a tradiccedilatildeo considera responsaacutevel por este conhecimento

Este movimento se realiza com o mesmo sentido com que a tradiccedilatildeo teria operado a

criacutetica ao sensualismo como a desqualificaccedilatildeo dos oacutergatildeos dos sentidos como fonte do

conhecimento Ou seja assim como a tradiccedilatildeo desqualifica os sentidos como fonte de

conhecimento por considerar que sua afinidade com o movimento comprometeria sua

capacidade de revelar qualquer coisa verdadeira Nietzsche desqualifica a consciecircncia

como fonte de conhecimento e suspeita de suas certezas como se natildeo se tratasse de algo

proacuteprio da realidade Assim o primeiro aspecto de uma teoria perspectivista do

conhecimento trata da natureza de nossa consciecircncia a qual natildeo eacute considerada na leitura

nietzschiana como oacutergatildeo para a verdade Desde que sua funccedilatildeo estaria relacionada agrave

generalizaccedilatildeo a vulgarizaccedilatildeo a igualaccedilatildeo do natildeo igual

supersticcedilotildees metafiacutesicas tal como a concepccedilatildeo tradicional de consciecircncia Esta passa a ser analisada tambeacutemaqui em sua geraccedilatildeo e desenvolvimento como fenocircmeno e natildeo mais como substacircncia eterna e imortal126 Este argumento da ignoracircncia no qual somos mantidos em relaccedilatildeo agrave nossa constituiccedilatildeo interna eacute caro aNietzsche para sua negaccedilatildeo de que obtemos qualquer acesso agrave verdade assim como que esta verdade se nosdaacute a conhecer atraveacutes da consciecircncia Este argumento jaacute aparece em seu Ensaio Sobre Verdade e Mentira nosentido Extra-moral em um sentido muito proacuteximo do utilizado na passagem da Gaia Ciecircncia citada acimaldquoO que sabe propriamente o homem sobre si mesmo Sim seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-secompletamente como se estivesse em uma vitrina iluminada Natildeo lhe cala a natureza quase tudo mesmosobre seu corpo para mantecirc-lo agrave parte das circunvoluccedilotildees dos intestinos do fluxo raacutepido das correntessanguiacuteneas das intrincadas vibraccedilotildees das fibras exilado e trancado em uma consciecircncia orgulhosa charlatatildeEla atirou fora a chave e ai da fatal curiosidade que atraveacutes de uma fresta foi capaz de sair uma vez docubiacuteculo da consciecircncia e olhar para baixo e agora pressentiu que sobre o implacaacutevel o aacutevido o insaciaacutevel oassassino repousa o homem na indiferenccedila de seu natildeo-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorsode um tigrerdquo (WLSVM sect1)

210

O aparato cognitivo humano aparece aqui como a ferramenta atraveacutes da qual nossa

espeacutecie se livra da pluralidade e extrema individualidade a fim operacionalizar uma cadeia

de comando produtiva Em outros termos este aparato teria evoluiacutedo em funccedilatildeo de uma

estrateacutegia de sobrevivecircncia tipicamente humana estrateacutegia em que estaria envolvida a

dissimulaccedilatildeo de elementos da realidade127 para efeitos de comunicaccedilatildeo Assim a

consciecircncia que eacute tomada pela filosofia moderna como instrumento revelador da verdade

passa a ser considerada como instrumento ldquomascaradorrdquo oacutergatildeo que cria metaacuteforas a partir

da verdade multifacetada e em constante mudanccedila

E esta seria a passagem na obra nietzschiana em que o termo perspectivismo

aparece com maior clareza Na grande quantidade de notas epistemoloacutegicas reunidas nos

poacutestumos nietzschianos cumpre notar que o termo perspectivismo eacute mencionado apenas

raras vezes O tratamento destas passagens como constituindo um conjunto de notas

epistemoloacutegicas no entanto nada tem a ver com a determinaccedilatildeo dada por seu autor a estas

Este tratamento relaciona-se com uma apreciaccedilatildeo destes textos como constituindo uma

profunda reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento suas consequecircncias e pressupostos

Sobressai entre estas passagens o fragmento 7[60] de fins de 1886 e iniacutecios de 1887

bastante conhecido dos comentadores e ao qual fazemos repetidas referecircncias nesse

trabalho

Contra o positivismo que fica no fenocircmeno ldquosoacute haacute fatosrdquo eu diria natildeojustamente natildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildees [Interpretationen] Natildeopodemos verificar nenhum fato ldquoem sirdquo talvez seja um absurdo quereruma tal coisa ldquoTudo eacute subjetivordquo dizeis mas jaacute isso eacute interpretaccedilatildeo[Auslegung] O ldquosujeitordquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

127 Estes argumentos satildeo apresentados por Nietzsche em oposiccedilatildeo ao que a tradiccedilatildeo postulava motivo peloqual o autor se vecirc na necessidade de fazer referecircncia a um objeto ideal tal como a realidade na tentativa deprovar que se a consciecircncia evolui no sentido de propiciar a comunicaccedilatildeo entatildeo seu funcionamentonecessariamente envolve a eliminaccedilatildeo de elementos do real a fim de criar realidades que possam sercomunicadas Assim sua hipoacutetese eacute apresentada para demonstrar que nosso elemento racional natildeo poderiaser algo afeito agrave natureza veraz da realidade como um oacutergatildeo para a verdade mas que sua atuaccedilatildeo apenas serestringiria agrave criaccedilatildeo de verdades que possam ser comunicadas A permanecircncia na filosofia de juventude deNietzsche deste elemento uacuteltimo absolutamente individual eacute resultado da influecircncia da filosofia metafiacutesicade Schopenhauer e torna parte da filosofia nietzschiana passiacutevel de ser relacionada a uma forma depensamento metafiacutesico No entanto acreditamos que ainda na juventude Nietzsche sustenta uma reflexatildeoeminentemente criacutetica para com toda forma de metafiacutesica Jaacute em 1872 atraveacutes da influecircncia naturalistaobtida da leitura de Lange Nietzsche se vecirc de posse de um arsenal de argumentos cientiacuteficos que lhepossibilitam recusar qualquer recurso a uma explicaccedilatildeo metafiacutesica De que o filoacutesofo se afasta jaacute naqueleperiacuteodo de uma concepccedilatildeo metafiacutesica de verdade temos como testemunho os textos analisados nos primeiroscapiacutetulos deste trabalho em que o filoacutesofo procura responder agrave diversas questotildees referentes agrave verdade combase nos resultados das ciecircncias naturais notadamente na anaacutelise dos oacutergatildeos dos sentidos

211

inventado posto por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes dainterpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacutetese (NFFP 1886-1887 7[60])

A passagem citada eacute geralmente interpretada como a negaccedilatildeo da possibilidade do

conhecimento independentemente do sujeito que conhece e de sua constituiccedilatildeo especiacutefica

Assumimos esta interpretaccedilatildeo como propiacutecia agrave elucidaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

que vem a filiaacute-lo aos resultados da filosofia kantiana Poreacutem com isso natildeo queremos dizer

que o autor destas notas permanece preso agraves consequecircncias teoacutericas a que Kant chega

Pois ao passo que Nietzsche entende o conhecimento como trabalho ativo da consciecircncia

em sua postulaccedilatildeo mais tardia esta ideia se liga agrave inutilidade em se conceber uma realidade

natildeo interpretativa

Ainda que com estas ressalvas Nietzsche conserva algo do espiacuterito da primeira

criacutetica kantiana ao assumir que todo conhecer seria produto da atuaccedilatildeo do sujeito Ou seja

que o conhecimento teria expressatildeo fenomecircnica como apropriaccedilatildeo de eventos natildeo

racionalizaacuteveis de acordo com nossa perspectiva de sujeito O que de partida afastaria a

possibilidade de que em algum momento de nossas formulaccedilotildees teoacutericas estejamos lidando

com fatos brutos ou verdades puras desinteressadas o que jaacute denunciaria o caraacuteter

racional dos elementos por detraacutes da interpretaccedilatildeo Como se pode notar esta constataccedilatildeo jaacute

estaacute presente no aforismo 354 da Gaia Ciecircncia analisado acima

Nesta leitura o conhecimento do mundo pode apenas ser visto como uma

possibilidade quando levamos em consideraccedilatildeo que conhecimento natildeo eacute a explicitaccedilatildeo do

sentido do mundo sua realidade uacuteltima Natildeo haacute um sentido por traacutes mas uma

multiplicidade de sentidos em um mundo permanentemente em mudanccedila impossiacutevel de

apreender de uma vez por todas O que nos conduz agrave necessidade de considerar outra

apariccedilatildeo do termo perspectivismo nos poacutestumos nietzschianos

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade

Em uma anotaccedilatildeo poacutestuma Nietzsche questiona a crenccedila dos fiacutesicos em um mundo

verdadeiro Crenccedila que o filoacutesofo julga subjacente agraves teorias das ciecircncias como um todo

Nesta leitura o mundo aparente enquanto o mundo disponiacutevel para cada um segundo suas

212

capacidades de apreensatildeo se revelaria como paacutelido reflexo deste mundo dos fatos A

criacutetica nietzschiana agraves ciecircncias aqui cumpre os mesmos estaacutegios de sua criacutetica agrave filosofia

dogmaacutetica Assim do mesmo modo que o filoacutesofo houvera criticado a concepccedilatildeo de um

mundo platocircnico das ideias rebate aqui a concepccedilatildeo de aacutetomos que eacute tomada como uma

mera ficccedilatildeo para fins da ciecircncia

Os fiacutesicos acreditam em um ldquomundo verdadeirordquo agrave sua maneira umafirme sistematizaccedilatildeo de aacutetomos igual para todos os seres [Wesen] e commovimentos necessaacuterios ndash de modo que para eles o ldquomundo aparenterdquose reduz ao lado acessiacutevel a cada ser [Wesen] segundo sua espeacutecie do ser[Sein] universal e universalmente necessaacuterio (acessiacutevel e tambeacutem aindapreparado ndash feito ldquosubjetivordquo) Mas com isso enganam-se o aacutetomo quepostulam eacute deduzido a partir da loacutegica daquele perspectivismo daconsciecircncia ndash tambeacutem ele proacuteprio eacute portanto uma ficccedilatildeo subjetiva Essaimagem de mundo que eles projetam natildeo eacute em absoluto essencialmentedistinta da imagem de mundo subjetiva ela soacute eacute construiacuteda com sentidosestendidos pelo pensar mas absolutamente com nossos sentidos Porfim sem sabecirc-lo omitiram algo da constelaccedilatildeo justamente o necessaacuterioperspectivismo em virtude do qual cada centro de forccedila - e somente ohomem - constroacutei a partir de si todo o mundo restante isto eacute medeapalpa forma pela sua forccedila Esqueceram de computar essa forccedila quepotildee perspectivas no ldquoser verdadeirordquo [ldquowahre Seinrdquo] Dito na linguagemda escola o ser-sujeito Eles acham que este foi ldquodesenvolvidordquo que veiode acreacutescimo - Mas o quiacutemico ainda o usa tal eacute o ser-especiacutefico quedetermina o agir e reagir de tal e qual maneira sempre de acordo(NFFP 188814 [186])

Segundo esta leitura tudo o que eacute fato para noacutes jaacute seria o resultado do trabalho

ativo da consciecircncia o que natildeo garante que hajam fatos por traacutes do que nos eacute dado como

objeto de conhecimento Esta afirmaccedilatildeo tem como consequecircncia mais radical a negaccedilatildeo de

um mundo a ser interpretado um mundo para aleacutem das interpretaccedilotildees Isso explica a

negaccedilatildeo do mundo aparente junto agrave negaccedilatildeo do mundo verdadeiro tal como se observa na

passagem de Crepuacutesculo dos Iacutedolos cujo subtiacutetulo histoacuteria de um erro denuncia a

falsidade por traacutes da constituiccedilatildeo do conceito de mundo verdadeiro Processo em que

segundo Nietzsche a filosofia kantiana ocupa uma etapa importante128

128 Esta passagem eacute parte do livro Trecircs do Crepuacutesculo dos Iacutedolos a ldquoRazatildeordquo em filosofia onde Nietzschediz ldquo3 O mundo verdadeiro - inatingiacutevel indemonstraacutevel despromoviacutevel mas o proacuteprio pensamento disso -um consolo uma obrigaccedilatildeo um imperativo (No fundo o velho sol mas visto atraveacutes da neblina e doceticismo A ideia tornou-se elusiva paacutelida noacuterdica koumlnigsbergiana)rdquo O aspecto ldquokoumlnigsbergianordquo domundo real eacute claro refere-se agrave concepccedilatildeo kantiana do mundo ldquonoumenalrdquo

213

Com o que fica dito nestas observaccedilotildees jaacute nos aproximamos dos elementos

fundamentais de uma compreensatildeo perspectivista da verdade tal como acreditamos poder

extrair do pensamento nietzschiano Primeiramente a afirmaccedilatildeo norteadora de que natildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildees que regula a compreensatildeo da verdade em questatildeo como

contraacuterio tanto ao conceito de verdade herdado da tradiccedilatildeo quanto a uma concepccedilatildeo de

verdade com base na atuaccedilatildeo desinteressada do pesquisador presente na concepccedilatildeo

positivista da filosofia

De fato a pretensatildeo positivista de localizar fatos brutos no efetivo sua esperanccedila

de atingir os fatos eternos por traacutes das coisas ultrapassa os limites impostos pelas

consideraccedilotildees criacuteticas nietzschianas Nesta leitura a renuacutencia a qualquer origem natildeo

investigada assim como a negaccedilatildeo da permanecircncia de qualquer fundamento uacuteltimo satildeo

componentes ineliminaacuteveis Por traacutes desta consideraccedilatildeo criacutetica haacute uma compreensatildeo baacutesica

segundo a qual em nossa atividade cognoscitiva temos sempre apenas interpretaccedilotildees de

acontecimentos que nos satildeo dados sem forma racional anterior sendo necessaacuterio tornaacute-los

conscientes o que significa nesta leitura categorizaacute-los segundo os ditames de nossa

racionalidade o que jaacute seria acreacutescimo na constituiccedilatildeo de nossas interpretaccedilotildees Em outras

palavras a consideraccedilatildeo da realidade segundo a pressuposiccedilatildeo de fatos seria um defeito do

qual cumpriria ao filoacutesofo se libertar sempre que este pretendesse uma aproximaccedilatildeo

cientiacutefica da realidade

A elucidaccedilatildeo dos erros fundamentais dos quais os filoacutesofos devem se libertar eacute um

aspecto frequente nas obras nietzschianas Em sua Genealogia da Moral estes erros

fundamentais aparecem como traccedilos de um ideal que guiaria as formulaccedilotildees dogmaacuteticas

em filosofia A partir de sua concepccedilatildeo do caraacutecter perspectivo de todo conhecimento ao

filoacutesofo interessaria antes de tudo criticar a concepccedilatildeo metafiacutesica da verdade como uma

posiccedilatildeo que concebe algo tatildeo absurdo quanto uma visatildeo do nada Com isso a posiccedilatildeo

nietzschiana implicaria a compreensatildeo de que natildeo haacute verdade que natildeo seja em si uma

perspectiva e de que de modo aproximado natildeo haacute conhecimento que natildeo parta de uma

motivaccedilatildeo

Esta compreensatildeo de uma a motivaccedilatildeo a guiar todo posicionamento filosoacutefico estaacute

presente em um dos relatos mais abrangentes acerca do caraacuteter perspectivo do

conhecimento no aforismo doze da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral Neste

texto Nietzsche rejeita a ldquoposiccedilatildeo asceacutetica que se potildee a filosofarrdquo como uma forma de

214

negaccedilatildeo da vida que descarregaraacute seu arbiacutetrio ldquoNaquilo que eacute experimentado do modo

mais seguro como verdadeiro como realrdquo ou seja que em sua tentativa de perverter a

proacutepria verdade ldquobuscaraacute o erro precisamente ali onde o autecircntico instinto de vida situa

incondicionalmente a verdaderdquo (GMGM III sect12) Com isso com as ldquoresolutas inversotildees

das perspectivasrdquo operada pelo ideal asceacutetico que se potildee a filosofar a tradiccedilatildeo teria

procurado operar uma negaccedilatildeo da verdade de que haacute ldquoapenas uma visatildeo perspectiva

apenas um lsquoconhecerrsquo perspectivordquo (GMGM III sect12)

Na medida em que a tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute entendida aqui como tendo se alinhado a

um ideal de negaccedilatildeo da corporeidade Nietzsche interpreta toda a filosofia antiga como a

tentativa de promover uma falsificaccedilatildeo uma corrupccedilatildeo uma simplificaccedilatildeo da verdadeira

objetividade129 que implicaria na pluralidade de perspectivas inerente a toda corporeidade

O traccedilo distintivo desta falsificaccedilatildeo seria a imaginaccedilatildeo de uma objetividade ideal uma

realidade das verdades eternas e imutaacuteveis Segundo a compreensatildeo nietzschiana no

entanto a objetividade como apreensatildeo dos objetos em sua forma natildeo interpretativa seria

inalcanccedilaacutevel para noacutes Objetividade nesse sentido implicaria uma ausecircncia de

necessidades um desinteresse que natildeo eacute caracteriacutestico da atividade teoacuterica Assim o autor

afirma em Genealogia da Moral

Devemos afinal como homens do conhecimento ser gratos a taisresolutas inversotildees das perspectivas e valoraccedilotildees costumeiras com que oespiacuterito de modo aparentemente sacriacutelego e inuacutetil enfureceu-se consigomesmo por tanto tempo ver assim diferente querer ver assim diferente eacuteuma grande disciplina e preparaccedilatildeo do intelecto para a sua futura

129 Entende-se por objetivismo a concepccedilatildeo filosoacutefica que associa conhecimento verdadeiro aoconhecimento dos objetos independente da apreensatildeo de seres conscientes Em um sentido kantianoobjetividade significa a qualidade dos objetos em-si independentes das condiccedilotildees de constituiccedilatildeo de taisobjetos para a experiecircncia Contemporaneamente a vertente filosoacutefica que entende que o valor de verdade deasserccedilotildees acerca da realidade depende da existecircncia de tais objetos se chama realismo em contraposiccedilatildeo agravecorrente anti-realista a qual se constitui em torno da negaccedilatildeo dessa dependecircncia Tal como o objetivismo operspectivismo nietzschiano ao menos em sua formulaccedilatildeo mais primitiva parece requerer uma interpretaccedilatildeoda realidade como algo natildeo interpretativo ou objetivo De acordo com essa interpretaccedilatildeo falar emperspectivismo significa dizer que natildeo temos acesso agraves coisas como elas satildeo para aleacutem de nossainterpretaccedilatildeo A existecircncia de uma realidade objetiva a partir do projeto criacutetico kantiano se relacionaintimamente com a postulaccedilatildeo das coisas em si entidades anteriores a constituiccedilatildeo do fenocircmeno daexperiecircncia Bem se vecirc que Nietzsche natildeo eacute indiferente a polecircmica em torno das coisas em si e embora parteconsideraacutevel de suas teorias sobre a verdade pareccedilam repousar na dependecircncia de tais objetos seupensamento se filia claramente a corrente anti-realista no sentido de que sustenta em boa parte de suaproduccedilatildeo uma criacutetica incisiva as coisas em si No entanto a afirmaccedilatildeo frequente em seu Ensaio sobreVerdade e Mentira de que nossas afirmaccedilotildees do mundo consideradas verdadeiras satildeo de fato metaacuteforas deque a verdade natildeo passa ao final de uma ilusatildeo tem em seu caraacuteter iacutentimo a necessidade de falsear taisverdades e afirmaccedilotildees

215

ldquoobjetividaderdquo ndash a qual natildeo eacute entendida como ldquoobservaccedilatildeodesinteressadardquo (um absurdo sem sentido) mas como a faculdade de terseu proacute e seu contra sob controle e deles poder dispor de modo a saberutilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas einterpretaccedilotildees afetivas De agora em diante senhores filoacutesofosguardemo-nos bem contra a antiga perigosa faacutebula conceitual queestabelece um ldquopuro sujeito do conhecimento isento de vontade alheio agravedor e ao tempordquo guardemo-nos dos tentaacuteculos de conceitos contraditoacuterioscomo ldquorazatildeo purardquo ldquoespiritualidade absolutardquo ldquoconhecimento em sirdquo ndashtudo isto pede que se imagine um olho que natildeo pode absolutamente serimaginado um olho voltado para nenhuma direccedilatildeo no qual as forccedilasativas e interpretativas as que fazem com que ver seja ver-algo devemestar imobilizadas ausentes exige-se do olho portanto algo absurdo esem sentido Existe apenas uma visatildeo perspectiva apenas um ldquoconhecerrdquoperspectivo e quanto mais olhos diferentes olhos soubermos utilizarpara esta coisa tanto mais completo seraacute no ldquoconceitordquo dela nossaldquoobjetividaderdquo (GMGM III sect12)

Ora se toda investigaccedilatildeo se orienta por um objeto a idealizaccedilatildeo da pesquisa

desinteressada natildeo faria nenhum sentido Do mesmo modo a objetividade enquanto

propriedade de um objeto ideal exterior a todo interesse seria uma criaccedilatildeo tornada

operante por meio da negaccedilatildeo do verdadeiro aspecto da objetividade sua perspectividade

Ou seja se toda apreensatildeo da realidade apenas se daacute de acordo com interesses

determinados entatildeo soacute nos restaria ansiar por uma objetividade na forma determinada pela

comparaccedilatildeo das diversas perspectivas sendo que jamais alcanccedilaremos a objetividade

absoluta dado serem inuacutemeras as perspectivas inuacutemeras as interpretaccedilotildees possiacuteveis

Enquanto tentativa de atingir uma realidade ideal o ideal asceacutetico se mostra como

uma forma fracassada de se fazer filosofia No entanto a atuaccedilatildeo dos filoacutesofo segundo os

preceitos deste ideal trariam como consequecircncia positiva a preparaccedilatildeo para uma forma de

pesquisar afeita agrave diversidade de perspectivas Nesta leitura a objetividade passa a ser

compreendida como uma idealizaccedilatildeo uma hipoteacutetica reuniatildeo de todas as perspectivas

possiacuteveis Para o autor o exerciacutecio de novas perspectivas no caso a perspectiva do ideal

asceacutetico prepararia o terreno para uma nova compreensatildeo do conhecimento dos conceitos

e da objetividade e a proacutepria restriccedilatildeo dos termos conhecimento objetividade e conceito

que encontramos nesta passagem implica uma interpretaccedilatildeo perspectiva de conceitos da

tradiccedilatildeo

Pretender conhecer a essecircncia em si do mundo eacute um disparate pois conhecer eacute

exatamente apropriar-se tornar uma coisa no que ela eacute de fato e natildeo desvendar sua

216

essecircncia uacuteltima Tal ldquodesvelamentordquo se fosse possiacutevel seria qualquer coisa mas nunca

conhecimento Eacute a proacutepria imposiccedilatildeo das necessidades do ser que interpreta que faz com

que ver se torne visatildeo de algo Se natildeo haacute interpretaccedilatildeo independente das necessidades de

quem interpreta e se essas necessidades satildeo para cada indiviacuteduo o valor para ele entatildeo

toda interpretaccedilatildeo seria consequecircncia natildeo apenas de uma perspectiva mas tambeacutem de um

conjunto de valores Por sua vez a razatildeo o proacuteprio instrumento que segundo a tradiccedilatildeo nos

conduziria agrave verdade eterna por traacutes das coisas distorce inevitavelmente o real

Nessa interpretaccedilatildeo as conclusotildees de Nietzsche acerca da natureza perspectiva do

conhecimento satildeo contrapostas frontalmente agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal

como a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental a consolidou Desde os princiacutepios da filosofia a

atividade de conhecer eacute interpretada como o esforccedilo humano na tentativa de descortinar a

realidade de sua aparente transitoriedade e assim revelar sua verdade objetiva posta por

traacutes das coisas O ideal de verdade a determinaccedilatildeo da accedilatildeo a partir da postulaccedilatildeo de fins da

razatildeo e a dicotomia entre mundo verdadeiro e o mundo aparente seriam os elementos

identificados por Nietzsche como constitutivos da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

Dentre estes elementos constitutivos destaca-se o proacuteprio ideal de verdade o qual em

Aleacutem do Bem e do Mal eacute tomado como ldquoa ceacutelebre veracidade que ateacute agora todos os

filoacutesofos reverenciaramrdquo (JGBBM I sect 01) e que em Genealogia da Moral apresenta-se

como ldquoa feacute no proacuteprio ideal asceacuteticordquo (GMGM III sect 24)

Seraacute justamente contra este ideal de verdade que tem suas origens ligadas

diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta a Nietzsche como fundamento

constituidor do niilismo o objeto privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual o

filoacutesofo mobilizaraacute sua concepccedilatildeo de interpretaccedilatildeo Por outro lado quando em Genealogia

da Moral Nietzsche representa a interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja

renuacutencia os cientistas pensam obter sua honra como uma tendecircncia agrave ldquoviolentar ajustar

abreviar omitir preencher imaginar falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do

interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma uma criacutetica jaacute suportada em seus escritos de

juventude que naquele momento se apresentava na forma da explicitaccedilatildeo da formaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional de verdade e da constituiccedilatildeo da linguagem como uma forma de

dissimulaccedilatildeo da realidade

A defesa nietzschiana da interpretaccedilatildeo como forma mais adequada de verdade

estaria ligada a uma criacutetica ao ideal tradicional de verdade que jaacute se encontrava na filosofia

217

de juventude do autor Nessa leitura sua criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade se daacute

na forma de uma defesa da interpretaccedilatildeo como noccedilatildeo mais adequada do que a verdade

poderia significar e como posiccedilatildeo contraacuteria agrave noccedilatildeo de verdade encampada por valores

niilistas Esta criacutetica tambeacutem reclamaria em sua criacutetica que os ldquopensadores mais fortes

mais vitais ainda sedentos de vidardquo viessem a ldquotomar partido contra a aparecircncia e

pronunciar jaacute com altivez a palavra lsquoperspectivarsquordquo (JGBBM I sect10)

Por outro lado assim como a concepccedilatildeo de verdade vinculada agrave valores de

decadecircncia teria no platonismo suas primeiras origens tambeacutem a dicotomia entre mundo

verdadeiro e mundo aparente130 outro aspecto fundamental da concepccedilatildeo niilista vinculada

por Nietzsche a um ldquoniilismo e sinal de uma alma em desespero mortalmente cansadardquo

(JGBBM I sect10) teria suas raiacutezes no racionalismo socraacutetico Em sua criacutetica a esta

dicotomia fundamental o autor atribui um cansaccedilo e desilusatildeo essencial conducente ao

nada como forma de repouso a toda consideraccedilatildeo da necessidade de se defender a

existecircncia de uma realidade apartada da realidade das perspectivas e da interpretaccedilatildeo

Mas se a realidade do aleacutem-mundo teria sua origem no platonismo o filoacutesofo

reconhece sua sacralizaccedilatildeo na crenccedila cristatilde de um mundo do aleacutem A determinaccedilatildeo da accedilatildeo

a partir da postulaccedilatildeo de fins da razatildeo131 como uma forma de estabelecer-se virtudes a

partir da razatildeo que se vincula a uma concepccedilatildeo teoloacutegica e que na modernidade vincula-se

tanto agrave ideia cristatilde de um Deus como fonte do bem quanto na concepccedilatildeo moralista agrave ideia

de uma tendecircncia ao bem inerente agrave racionalidade teria encontrado tambeacutem no platonismo

sua origem e estiacutemulo na equaccedilatildeo que faz equivaler razatildeo virtude e felicidade

Em todas estes posicionamentos criacuteticos o ponto em comum seria a compreensatildeo

nietzschiana da razatildeo como elemento falseador do caraacuteter perspectivo da realidade Assim

o filoacutesofo enxerga na supervalorizaccedilatildeo da razatildeo um risco para a cultura e contra a

decadecircncia uma maacute ferramenta posto que a crenccedila na razatildeo natildeo eacute vista pelo filoacutesofo como

uma forma de se contrapor a algo que ela mesma figura com necessidade Ou seja em sua

leitura quando os filoacutesofos e moralistas fazem da razatildeo um meio para sair do processo de

decadecircncia ldquoelegem como meio como salvaccedilatildeordquo algo que ldquoeacute apenas mais uma expressatildeo

da deacutecadencerdquo (GDCI II sect11) Assim em sua contraposiccedilatildeo a toda forma de

130 Conforme (JGBBM I sect10) e a importante seccedilatildeo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Como o verdadeiro mundoacabou por se tornar uma faacutebula em que a filosofia platocircnica ocupa o primeiro estaacutegio do processo decriaccedilatildeo do ideal131 Esta ideia fundamental eacute narrada em Crepuacutesculo do Iacutedolos na seccedilatildeo sobre O problema de Soacutecrates sect10

218

melhoramento do homem toda forma de estabelecimento de virtudes por meio de uma

supervalorizaccedilatildeo da razatildeo Nietzsche defende a proeminecircncia dos instintos como forma de

julgar as accedilotildees humanas Pois entende que ldquoTer de combater os instintos ndash eis a foacutermula da

deacutecadencerdquo mas ldquoenquanto a vida ascende felicidade eacute igual a instintordquo (GDCI II sect11)

Com isso o filoacutesofo acredita opor-se ao platonismo assim como agrave proacutepria tradiccedilatildeo

filosoacutefica na medida em que faz sobressair o corpo em contraposiccedilatildeo agrave razatildeo e a ideia de

objetividade deduzida a partir dela

Se a noccedilatildeo de objetividade segundo a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

seria apenas um valor que perde sentido com a constataccedilatildeo da inexistecircncia de uma

realidade ideal entatildeo sempre que se credita possuir ou pelo menos ter direito de atingir a

interpretaccedilatildeo definitiva opera-se no interior de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica e como tal

apenas uma ilusatildeo O conhecimento soacute tem sentido se considerado em suas limitaccedilotildees

enquanto conhecimento humano determinado pelo conjunto de interesses que guiam sua

busca Do ponto de vista de uma realidade objetiva no entanto ele natildeo pode ser

totalizante

Por isso na continuaccedilatildeo do fragmento poacutestumo citado acima Nietzsche nos diz

ldquoTanto quanto a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute conheciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outra maneira ele natildeo tem nenhum sentido atraacutes de si mas sim inuacutemeros

sentidos lsquoperspectivismorsquordquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Haacute tantos sentidos ldquopor traacutesrdquo da

realidade quantas interpretaccedilotildees possiacuteveis da mesma Pois o sentido eacute sempre um sentido

para algueacutem nunca um sentido ldquoem-sirdquo Assim ao mesmo tempo em que Nietzsche afirma

que o conhecimento humano eacute possiacutevel ele nega a pretensatildeo de se atingir uma verdade

absoluta Logo haacute tantas formas de conhecimento quantas forma de configuraccedilatildeo de

necessidades especiacuteficas

Natildeo admira que a concepccedilatildeo tradicional de verdade compreendida por Nietzsche

como tendo suas origens ligadas diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta

ao filoacutesofo como fundamento constituidor do niilismo tenha se tornado o objeto

privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual este mobiliza sua concepccedilatildeo de

interpretaccedilatildeo Tendo renunciado agrave possibilidade de obter um conhecimento coerente com

os princiacutepios da vida a partir da razatildeo Nietzsche passa a compreender o conhecimento

como expressatildeo de uma determinada forma de valoraccedilatildeo da realidade Posto que natildeo

219

havendo fatos por traacutes das coisas conhecer natildeo pode ser algo como esta objetividade

imaginada pelas cabeccedilas metafiacutesicas

Conhecer na interpretaccedilatildeo nietzschiana seria o mesmo que interpretar segundo os

padrotildees humanos de acordo com a atuaccedilatildeo dos instintos que guiam nossas opccedilotildees teoacutericas

Ou seja o conhecimento eacute sempre consequecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de

necessidades o que significa uma determinada ordenaccedilatildeo das necessidades internas ao

indiviacuteduo Isto no entanto de modo algum elimina a possibilidade de outras

interpretaccedilotildees

A criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave incapacidade desta em

reconhecer adequadamente os limites da perspectiva a qual o filoacutesofo vecirc como elemento

ineliminaacutevel de toda formulaccedilatildeo teoacuterica e que aparece para o filoacutesofo como viacutecio inerente

a toda forma de consideraccedilatildeo dogmaacutetica Assim quando Nietzsche representa a

interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja renuacutencia os cientistas pensam obter

sua honra como uma tendecircncia ldquoa violentar ajustar abreviar omitir preencher imaginar

falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma

suas concepccedilotildees de juventude acerca da formaccedilatildeo da verdade e da constituiccedilatildeo da

linguagem como uma forma de dissimulaccedilatildeo da realidade defendendo essa concepccedilatildeo

como componente de sua proacutepria compreensatildeo do conhecimento contraacuteria agrave noccedilatildeo de

verdade niilista

Com isso reconhece-se que sua defesa da interpretaccedilatildeo estaacute ligada a sua criacutetica ao

ideal tradicional de verdade Certamente esta atitude natildeo qualifica um posicionamento

teoacuterico determinado em relaccedilatildeo agrave verdade embora surja como reflexo de uma criacutetica ao

sentido tradicional de verdade Com isso a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma

forma de se elevar para aleacutem das consideraccedilotildees em torno da noccedilatildeo tradicional de verdade e

sua relaccedilatildeo com a perspectividade inerente a toda consideraccedilatildeo da realidade pode ser vista

como um posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade sem

no entanto estabelecer-se como outra forma de verdade Considerando-se o pensamento

nietzschiano em sua totalidade considerando-se especialmente o progresso de suas

consideraccedilotildees criacuteticas acerca do conhecimento e da verdade o que nos eacute apresentado eacute

uma compreensatildeo do conhecimento que reduz sua validade agraves instacircncias de sua

enunciaccedilatildeo sem que com isso se destitua qualquer afirmaccedilatildeo de seu valor em relaccedilatildeo agraves

demais afirmaccedilotildees necessaacuterias agrave sobrevivecircncia

220

O foco das criacuteticas nietzschianas agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento recai

completamente sobre a razatildeo e seu caraacuteter limitado Limitaccedilatildeo que conduz a uma

concepccedilatildeo de realidade como mundo verdadeiro Neste sentido desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas sua criacutetica ao conhecimento estaacute relacionada agrave apresentaccedilatildeo de nosso

aparato intelectual como parte de nosso aparato bioloacutegico e assim como algo que se

desenvolve em torno de nossa necessidade de sobrevivecircncia e natildeo a favor de uma verdade

objetiva

O perspectivismo nietzschiano especialmente na forma como fica exposto no

aforismo doze de Genealogia da Moral carrega consigo a ideia de que todas as

perspectivas satildeo limitadas nesse sentido natildeo verdadeiras Nem por isso falsas pois em

segundo plano agrave exposiccedilatildeo do perspectivismo permanece a ideia de que a objetividade

como a totalidade de perspectivas eacute algo que se pode conceber sem contradiccedilatildeo como a

totalidade de perspectivas possiacuteveis Em outro sentido o conhecimento como a tradiccedilatildeo o

entende como a visatildeo unilateral de uma verdade existente de forma independente do ato

de conhecer se torna uma perspectiva inferior exatamente por que abre matildeo da

multiplicidade de perspectivas inerente agrave ideia de objetividade cotejada por Nietzsche Ou

seja embora natildeo represente em si mesma uma teoria acerca do conhecimento nem

implique a criacutetica ao conhecimento tradicional como distorccedilatildeo da realidade o

perspectivismo nietzschiano utiliza-se da metaacutefora da perspectiva para promover o

reconhecimento do caraacuteter natildeo-fundacional do conhecimento assim como caracterizar

como contraditoacuteria a ideia de uma realidade em si mesma

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores

Consideramos a questatildeo do valor como uma questatildeo fundamental para o

pensamento nietzschiano com base na qual se poderia entender sua concepccedilatildeo de verdade

pois esta gira em torno da necessidade de desconsiderar a concepccedilatildeo tradicional da

verdade afim de estabelecer algo de suma importacircncia para a determinaccedilatildeo de um valor

superior ou seja a proacutepria vida Para Nietzsche o problema dos valores estaria

relacionado ao fato de que na histoacuteria da filosofia a questatildeo dos valores morais foi tomada

221

como a proacutepria questatildeo do valor Assim ao refletir sobre isso o filoacutesofo afirma que ldquoA

ldquoAvaliaccedilatildeo moralrdquo ateacute onde eacute algo social mede erroneamente o homem a partir de seus

efeitosrdquo (NF FP 1887 9 [55]) Ou seja que a apreciaccedilatildeo dos valores de um ponto de

vista dos valores morais reduz a questatildeo mais ampla dos valores a uma consideraccedilatildeo que

leva apenas os efeitos praacuteticos da avaliaccedilatildeo moral dentro de um contexto no qual a

sociabilidade eacute tomada como um estado natural o filoacutesofo procura desfazer essa confusatildeo

pensando a natureza do valor em seu surgimento e totalidade

Por outro lado a consideraccedilatildeo dos valores em uma avaliaccedilatildeo exterior agrave proacutepria

sociabilidade se distinguiria fundamentalmente de uma compreensatildeo dos valores como

determinaccedilatildeo objetiva fora dos homens Nessa leitura a interpretaccedilatildeo dos valores morais

como os valores em si como a uacutenica forma de valor eacute confrontada por uma explicitaccedilatildeo

dos valores como resultado de um processo fisioloacutegico avaliaccedilatildeo que expotildee os valores

morais como algo pertencente apenas a um tipo bastante determinado de valor

Nesta interpretaccedilatildeo do problema dos valores em geral os valores morais

corresponderiam apenas a uma forma da categoria mais ampla dos valores Assim os

valores natildeo seriam realidades independentes dos homens mas produtos de sua atuaccedilatildeo

interpretativa poisldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas com a interpretaccedilatildeordquo (NF

FP 18851886 2 [77]) A interpretaccedilatildeo nietzschiana dos valores assim exclui a validade

de uma consideraccedilatildeo de um ldquosentido no em sirdquo na medida em que considera os valores

como decorrecircncias de nossa interpretaccedilatildeo Todo sentido passa a ser considerado nessa

leitura como algo relacional e perspectivo Os valores morais aparecem aqui como

resultado de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica como a interpretaccedilatildeo que substitui a

interpretaccedilatildeo religiosa decadente (NFFP 1887 9 [60])

A partir da intuiccedilatildeo fundamental de que todo valor seria produto de uma

interpretaccedilatildeo ou seja de que todo valor corresponderia a uma avaliaccedilatildeo portanto de que

toda moral deve alcanccedilar seu instante de superaccedilatildeo em uma nova taacutebua de valores (ZAZa

III Das antigas e novas taacutebuas sect02) Nietzsche contempla a possibilidade de uma

afirmaccedilatildeo incondicional do mundo e da vida na atividade criativa de valores Os valores

morais satildeo entendidos aqui como valores de conservaccedilatildeo consolidados por uma

determinada tradiccedilatildeo dos quais competiria ao homem se livrar na medida que potildee o

fortalecimento da vida a frente de sua conservaccedilatildeo Este pensamento que se coloca na

222

contramatildeo de tudo o que se fez desde a cultura racional do socratismo-platonismo ateacute o

presente traduz a maacutexima expressatildeo da afirmaccedilatildeo da vida na aceitaccedilatildeo de seu caraacuteter

ficcional

Em sua leitura Nietzsche qualifica o valor como ponto de vista fundamental

segundo os ditames das necessidades de algo que queira permanecer no curso do devir

Assim em um fragmento poacutestumo o filoacutesofo afirma ldquoO ponto de vista do lsquovalorrsquo eacute o ponto

de vista das condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e aumento com respeito a formaccedilotildees complexas de

relativa duraccedilatildeo da vida no seio do devirrdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) Em outros termos

a vida aparece para Nietzsche como condiccedilatildeo de possibilidade de toda avaliaccedilatildeo posto que

ela eacute preacute-requisito para toda avaliaccedilatildeo Para tudo que pretende durar na existecircncia assume

valor aquilo que possibilita esta duraccedilatildeo Por isso o filoacutesofo pensa desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas a verdade como correlata a um valor desde que esta seria parte

fundamental na estrateacutegia de sobrevivecircncia humana

O problema do perspectivismo se relaciona com o problema do valor jaacute na

suposiccedilatildeo nietzschiana de que toda interpretaccedilatildeo seria o produto de nossas necessidades

Assim o filoacutesofo escreve ldquoSatildeo nossas necessidades as que interpretam o mundo nossos

impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de acircnsia de domiacutenio cada um

tem sua perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os demais impulsosrdquo (NF

FP 1886-1887 7[60]) Na medida em que cada impulso tem seu proacute e seu contra a ele

estaria relacionada uma determinada ordenaccedilatildeo de valores uma determinada hierarquia

Sua vontade tem como moacutevel acima de tudo o estabelecimento de seus proacutes e contras

como norma geral Ou seja toda perspectiva tem como razatildeo de existir o estabelecimento

de valores a partir de si Neste sentido natildeo haacute valor extra-perspectivo Do mesmo modo

que natildeo haacute perspectiva que natildeo implique valores Com isso podemos ver que a perspectiva

e o valor estatildeo intimamente relacionados no pensamento nietzschiano

Valores satildeo estabelecidos na medida em que sua capacidade de fazer algo

permanecer na existecircncia eacute comprovada Assim quando uma determinada configuraccedilatildeo de

forccedilas se mostra propiacutecia agrave manutenccedilatildeo da vida em seu entorno se agrupam cada vez mais

forccedilas o que acaba conduzindo agrave formaccedilatildeo de centros de domiacutenio ldquolsquovalorrsquo eacute

essencialmente o ponto de vista para o aumento ou a diminuiccedilatildeo destes centros de domiacutenio

(NFFP 1887-1888 11[73]) O valor configura perspectivas na medida em que tende a

223

agrupar forccedilas em torno de um determinado centro de domiacutenio que passa a se fazer valer

como uma perspectiva de dominaccedilatildeo Uma perspectiva nesse sentido seria justamente o

ponto de vista de uma determinada ordenaccedilatildeo das forccedilas inerentes a uma realidade

segundo os ditames de sua manutenccedilatildeo ou crescimento

Se toda forma de avaliar depende das condiccedilotildees de manutenccedilatildeo de um determinado

tipo de vida entatildeo toda filosofia enquanto conjunto de valores enquanto reflexo de uma

determinada valoraccedilatildeo corresponderia a um determinado conjunto de necessidades

inerentes a um modo de vida pois ldquopor traacutes de toda loacutegica e de sua aparente soberania de

movimentos existem valoraccedilotildees ou falando mais claramente exigecircncias fisioloacutegicas para

a preservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vidardquo (JGBABM I sect03) Assim a

substituiccedilatildeo de uma filosofia niilista por uma forma perspectivista de filosofia

corresponderia no pensamento nietzschiano agrave substituiccedilatildeo de uma forma decadente de

valoraccedilatildeo que tem no conjunto de suas necessidades uma necessidade de nada suportada

pela crenccedila em uma realidade ideal por uma forma ascendente de avaliaccedilatildeo que tem na

multiplicidade e na mudanccedila suas necessidades essenciais

A substituiccedilatildeo de uma esfera ideal de constituiccedilatildeo dos valores pela vida tomada

aqui como escala segundo a qual os proacuteprios valores se constituem possibilitaria uma

avaliaccedilatildeo dos valores que difere completamente da avaliaccedilatildeo tradicional segundo a qual

haveriam valores dados e irrevogaacuteveis Pois segundo uma compreensatildeo dos valores que

toma a vida como criteacuterio as condiccedilotildees em que algo tem que se firmar mudam Nesse

sentido eacute natural que tambeacutem os valores mudem posto que natildeo haacute sentido exterior a uma

escala de necessidades nem nenhuma escala determinante na esfera do devir

A cada momento para cada espeacutecie verdadeiro eacute apenas aquilo que possibilita sua

conservaccedilatildeo Seraacute justamente esta interpretaccedilatildeo do valor que possibilitaraacute ao filoacutesofo opor-

se tanto agrave moral dogmaacutetica quanto agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica de conhecimento Um valor

segundo a tradiccedilatildeo criticada por Nietzsche seria justamente o bem em si mesmo uma

ideia a qual o filoacutesofo se opotildee fortemente O mesmo ocorreria com a verdade em si que

segundo esta compreensatildeo teria por problema fundamental sua dependecircncia em relaccedilatildeo agrave

defesa niilista de uma realidade criada que torna sem valor a realidade dos fenocircmenos

224

Ateacute onde se compreende o que Nietzsche considera problemaacutetico no dogmatismo

filosoacutefico tradicional fica claro que ele entende que a grande falha da filosofia tradicional

teria sido seu entendimento da verdade como algo localizaacutevel de forma definitiva ainda

que em uma realidade externa agrave realidade dos fenocircmenos Esta realidade externa aos

fenocircmenos no entanto natildeo houvera aparecido para a tradiccedilatildeo como uma realidade criada

do mesmo modo que a realidade a partir dos sentidos A partir de sua consideraccedilatildeo criacutetica

da razatildeo como parte do esquema de simplificaccedilatildeo da realidade Nietzsche se coloca em

condiccedilotildees de questionar justamente este caraacuteter simplificado da realidade concebida a

partir da razatildeo aprofundado uma criacutetica que a tradiccedilatildeo filosoacutefica apenas havia comeccedilado

Assim no prefaacutecio de Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche explica brevemente o que ele

chama de ldquoo erro do dogmatismordquo Apoacutes sua pequena anedota acerca do despreparo dos

filoacutesofos dogmaacuteticos para abordar uma mulher o filoacutesofo diz

Falando seriamente haacute boas razotildees para esperar que toda dogmatizaccedilatildeoem filosofia natildeo importando o ar solene e definitivo que tenhaapresentado natildeo tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa deiniciantes e talvez esteja proacuteximo o tempo em que se perceberaacute quatildeopouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutasconstruccedilotildees filosofais que os dogmaacuteticos ergueram ndash alguma supersticcedilatildeopopular de um tempo imemorial (como a supersticcedilatildeo da alma que comosupersticcedilatildeo do sujeito e do Eu ainda hoje causa danos) talvez algumjogo de palavras alguma seduccedilatildeo da gramaacutetica ou temeraacuteriageneralizaccedilatildeo de fatos muito estreitos muito pessoais demasiadohumanos (JGBABM Proacutelogo sect1)

Em sua leitura o autor denomina dogmaacutetico tudo aquilo que se segue agrave criaccedilatildeo das

sublimes e absolutas criaccedilotildees filosoacuteficas com base em fatos pessoais idiossincrasias

filosoacuteficas coisa humana demasiado humana A proacutepria criaccedilatildeo platocircnica do reino das

ideias fundamento e ponto de partida de toda concepccedilatildeo niilista parece fornecer o modelo

deste tipo de construccedilatildeo filosoacutefica dogmaacutetica Motivo pelo qual em sua leitura o autor

indica a invenccedilatildeo do ldquopuro espiacuterito e do bem em sirdquo como um erro de dogmaacutetico o ldquopior o

mais persistente e perigoso dos erros ateacute aquirdquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Do mesmo

modo a criaccedilatildeo da moralidade decorrente da criaccedilatildeo dogmaacutetica das noccedilotildees de ldquoo bemrdquo e

ldquoo malrdquo seria mais a frente abordada por Nietzsche e com maior profundidade em

Genealogia da Moral

225

O que determina a importacircncia das poucas indicaccedilotildees acerca do que o autor entende

como sendo o dogmatismo da concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute o bastante para conectar

a fabricaccedilatildeo da moralidade ao problema do dogmatismo e sua superaccedilatildeo na consideraccedilatildeo

do caraacuteter perspectivo da existecircncia Assim em uma outra passagem do proacutelogo de Aleacutem

do Bem e do Mal Nietzsche considera que o erro dogmaacutetico de Platatildeo surgiu de sua

incapacidade em adotar um perspectivismo adequado ldquoCertamente significou pocircr a

verdade de ponta-cabeccedila e negar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica de toda vida falar do

espiacuterito e do bem como o fez Platatildeordquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Para Nietzsche portanto a

luta para superar o erro dogmaacutetico platocircnico e toda moralidade decorrente desse erro

significava pocircr a verdade de volta sob seus peacutes e afirmar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica

de toda a vida

De fato nesta leitura tambeacutem a verdade enquanto componente de uma estrateacutegia

especiacutefica de sobrevivecircncia natildeo poderia ter seu valor determinado absolutamente Assim

como parte de uma estrateacutegia de sobrevivecircncia tiacutepica de uma espeacutecie que busca se manter

no curso do devir o conhecimento humano tambeacutem corresponderia a um ponto de vista

determinado de valores proacuteprios De fato toda ciecircncia e filosofia ateacute entatildeo teria seu valor

vinculado agrave conservaccedilatildeo da vida Motivo pelo qual para Nietzsche a loacutegica por exemplo

soacute eacute importante porque nosso modo de vida depende dela fundamentalmente Isto natildeo

significa que a realidade seja ela mesma loacutegica ou que se comporte de forma loacutegica

apenas que a realidade assume valor para noacutes na exata medida em que podemos aplicar a

loacutegica a ela

Por outro lado conceitos fundamentais da fiacutesica tambeacutem apenas adquiririam

sentido para noacutes por sua utilidade praacutetica natildeo por sua veracidade De um modo geral toda

forma de compreensatildeo da realidade segundo instacircncias fixas seria reflexo desta mesma

conversatildeo da realidade em elementos uacuteteis para a conservaccedilatildeo da vida pois ldquonatildeo haacute

unidades uacuteltimas duradouras natildeo haacute aacutetomos natildeo haacute mocircnadas tambeacutem aqui lsquoo ente [das

Seiende]rsquo foi introduzido primeiro por noacutes (por razotildees praacuteticas uacuteteis segundo a

perspectiva)rdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) A criacutetica nietzschiana a esta perspectiva por

sua vez natildeo diria respeito a seu caraacuteter perspectivo Pois posto que todo conhecimento eacute

perspectivo seria necessaacuterio possuir uma verdade no sentido que o filosofo rejeita para

entatildeo questionar a perspectividade de uma posiccedilatildeo

226

No entanto o fato desta perspectiva adotar como interesse praacutetico a conservaccedilatildeo

motivo pelo qual se apoia em conceitos imobilistas aparece como algo criticaacutevel para

Nietzsche que reconhece nestes conceitos criaccedilotildees de menor valor Nesse sentido o

perspectivismo nietzschiano distingue-se fundamentalmente de uma teoria pragmaacutetica da

verdade Pois o filoacutesofo considera toda utilidade enquanto princiacutepio para a conservaccedilatildeo

como manifestaccedilatildeo de valores de decadecircncia Na leitura do filoacutesofo o princiacutepio de

utilidade conduziria agrave criaccedilatildeo de valores imobilistas e estes por sua vez conduziriam agrave

criaccedilatildeo de uma realidade extra-fenomecircnica logo acaba por se configurar em uma forma

dogmaacutetica de filosofia ou ciecircncia Desta maneira se pode entender a criacutetica agrave concepccedilatildeo

tradicional de utilidade presente no final do aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

Natildeo temos nenhum oacutergatildeo para o conhecer para a ldquoverdaderdquo noacutesldquosabemosrdquo (ou cremos ou imaginamos) exatamente tanto quanto podeser uacutetil ao interesse da grege humana da espeacutecie e mesmo o que aqui sechama ldquoutilidaderdquo eacute afinal apenas uma crenccedila uma imaginaccedilatildeo etalvez precisamente a fatiacutedica estupidez da qual um dia pereceremos(FWGC IV sect354)

Posto que o filoacutesofo compreende que toda forma de conhecimento conduz agrave

admissatildeo de erros fundamentais conclui que a proacutepria utilidade seria um erro talvez o erro

fundamental de que um dia sucumbiremos Nesta leitura Nietzsche percebe que o homem

enquanto animal de rebanho persegue por comodidade valores de conservaccedilatildeo valores

dos quais se o homem deve se livrar do niilismo precisa abandonar Em seu lugar

competiria ao homem estabelecer o conhecimento sob o fundamento de valores de

aumento da forccedila de crescimento Estes valores estatildeo vinculados ao risco satildeo valores

experimentais os quais o filoacutesofo do futuro deveria acolher em detrimento dos valores de

decadecircncia Nesta leitura o problema com a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento seria

sua renuacutencia ao caraacuteter perspectivo de todo conhecimento

Tomada sua reflexatildeo criacutetica em sentido amplo eacute possiacutevel ver em seus ataques aos

filoacutesofos que lhe precedem uma condenaccedilatildeo de toda tentativa de dizer a verdade vistas

aqui como um ato que constrange interpretaccedilotildees diversas a uma unificaccedilatildeo improcedente

o que condiciona o sentido da verdade a um posicionamento dogmaacutetico Assim parte de

227

sua criacutetica agrave metafiacutesica se fundamentaria no fato de que esta atraveacutes da busca pelos

fundamentos uacuteltimos teria conduzido a filosofia a estipular um deux ex machina na figura

de concepccedilotildees tais como a concepccedilatildeo de causa sui

A causa sui eacute a mais bela contradiccedilatildeo jaacute cogitada uma espeacutecie deviolaccedilatildeo e golpe mortal agrave loacutegica Poreacutem o orgulho ilimitado do homemconduziu-o a um emaranhamento cada vez maior no intrincado absurdo odesejo do ldquolivre arbiacutetriordquo entendido no sentido superlativo e metafiacutesicoque domina ainda (por desgraccedila nos ceacuterebros semi-cultivados) que eacute anecessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidade de seusatos e natildeo atribuiacute-la a Deus ao mundo agrave hereditariedade agrave sorte agravesociedade esta causa sui natildeo eacute mais que a necessidade de ser algueacutem ecom esta audaacutecia intreacutepida que supera agrave do baratildeo de Muumlnchhausen tentatirar a si mesmo do pacircntano do nada puxando seus proacuteprios cabelos eentrar na luz da existecircncia (JGBABM Livro I sect21)

O que o autor nos apresenta em sua leitura criacutetica das concepccedilotildees antagocircnicas de

livre-arbiacutetrio e determinismo eacute uma mesma crenccedila de base na causalidade A causalidade eacute

vista pelo autor como um condicionamento das concepccedilotildees que se pretendem natildeo

condicionais de causa e efeito Mais especificamente a crenccedila em que todos os atos

humanos ou bem seriam produtos de uma escolha ou bem satildeo resultados da atuaccedilatildeo de

causas externas agrave vontade humana o que acaba por conduzir agrave compreensatildeo de que toda

causa deva ter um efeito reciacuteproco Esta compreensatildeo da realidade que eacute a compreensatildeo

de base dos naturalistas quando se baseiam no meacutetodo mecanicista eacute tida aqui como um

erro de interpretaccedilatildeo oriundo da crenccedila na necessidade de uma dicotomia de princiacutepios

Assim o filoacutesofo apela para que tal concepccedilatildeo seja abandonada

Se algueacutem chegasse a vislumbrar a neacutescia rusticidade do famoso conceitodo ldquolivre arbiacutetriordquo ateacute chegar a afastaacute-lo do seu espiacuterito eu lhe rogariaque desse mais um passo e afastasse de seu ceacuterebro o contraacuterio dessepseudoconceito isto eacute o ldquodeterminismordquo que conduz ao mesmo abusodas noccedilotildees de causa e efeito Natildeo eacute preciso cometer o erro de tornarcondicionados causa e efeito como fazem os naturalistas (e todos quesequem seu meacutetodo de pensar) segundo as cretinices mecanicistas emvoga que querem que toda causa impulsione e pressione ateacute produzir umefeito (JGBABM Livro I sect21)

228

A crenccedila na causalidade na lei que rege as accedilotildees humanas com a mesma

regularidade com que rege os eventos da natureza seria por sua vez um reflexo na crenccedila

na oposiccedilatildeo entre falsidade e verdade Estas concepccedilotildees surgem de uma consideraccedilatildeo

mecanicista da realidade que opotildee duas esferas governadas pela mesma lei de necessidade

Razatildeo pela qual em seu pensamento antimetafiacutesico Nietzsche buscaria ao contraacuterio da

concepccedilatildeo tradicional minar o dualismo fundamental que divide o mundo em uma

realidade superior agrave realidade dada pelos sentidos e desta forma instaurar a validade

perspectiva como uacutenica pretensatildeo possiacutevel ao conhecimento humano

Atraveacutes da constataccedilatildeo da hegemonia da interpretaccedilatildeo satildeo igualadas todas as

concepccedilotildees acerca da realidade como sendo igualmente falsas sendo que satildeo oriundas de

uma consideraccedilatildeo perspectiva A ausecircncia de fundamento uacuteltimo que surge da anaacutelise

perspectivista das concepccedilotildees tradicionais expotildee o absurdo de se buscar a verdade uacuteltima

Mediante esta reflexatildeo a proacutepria oposiccedilatildeo entre interpretaccedilatildeo e mundo verdadeiro eacute

esvaziada de sentido Posto que natildeo havendo texto ou seja natildeo havendo uma realidade

ideal com base na qual julgar a realidade das avaliaccedilotildees natildeo haacute necessariamente

interpretaccedilatildeo Assim ao padratildeo de avaliaccedilatildeo da realidade segundo os criteacuterios de verdade e

falsidade Nietzsche contrapotildee a hipoacutetese de se interpretar a realidade conforme diferentes

valores os quais natildeo se distinguiriam de maneira dicotocircmica mas se diferenciariam

conforme a um padratildeo correlato ao padratildeo de uma avaliaccedilatildeo esteacutetica

Aqui se nos apresenta o seguinte problema o que caracteriza a condiccedilatildeo

perspectiva de toda vida como o ponto correto de consideraccedilatildeo da realidade Ou seja se

tudo que temos satildeo interpretaccedilotildees como a consideraccedilatildeo nietzschiana da primordialidade

das perspectivas pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo melhor do que a interpretaccedilatildeo

platocircnica Estariacuteamos aqui diante de uma consideraccedilatildeo dogmaacutetica da perspectividade da

existecircncia em Nietzsche Quando considerada a criacutetica nietzschiana a toda forma de

determinaccedilatildeo de verdade como certeza este natildeo parece ser o caso

O perspectivismo nietzschiano implicaria assim na afirmaccedilatildeo de que toda

justificaccedilatildeo de nossas crenccedilas depende de um contexto dado a partir de outras crenccedilas que

passam por verdadeiras quando no fundo satildeo apenas consideradas incontestaacuteveis para o

momento Assim a defesa nietzschiana de suas posiccedilotildees de suas concepccedilotildees filosoacuteficas

em especial natildeo partiria de uma consideraccedilatildeo de sua veracidade mas de uma afirmaccedilatildeo

229

contextual que tomaria a vida como criteacuterio absoluto e sobre o qual nenhum outro criteacuterio

poderia ser estabelecido Isto no entanto por vezes pode parecer insuficiente posto que a

defesa da posiccedilatildeo nietzschiana parece requerer uma base para a qualificaccedilatildeo desta como

superior ou entatildeo o filoacutesofo incorreria em uma forma menos expliacutecita de dogmatismo

Assim certamente o filoacutesofo natildeo poderia dizer que sua perspectiva eacute verdadeira baseada

apenas no modo como as coisas lhe parecem Mesmo que natildeo conte com uma base objetiva

ou neutra deve dar conta do porquecirc de sua perspectiva dever ser confiada antes de outra

Desde que Nietzsche claramente faz afirmaccedilotildees de verdade que ele acredita que satildeo

apoiadas por seu perspectivismo sem no entanto explicar o que exatamente as torna

verdadeiras o filoacutesofo introduz embora experimentalmente o problema da verdade tal

como este surgiu entre os gregos e que culminaria na elaboraccedilatildeo platocircnica do mundo das

ideias Mas um relato decisivo acerca do que realmente seria a verdade nunca esteve entre

os planos do filoacutesofo que ao inveacutes de propor uma concepccedilatildeo proacutepria de verdade preferiu

esclarecer um problema inerente agraves formas tradicionais da concepccedilatildeo de verdade132

Ao oferecer uma criacutetica extensa do equiacutevoco que Nietzsche considera comum entre

os filoacutesofos que lhe precedem de que algo possa ser afirmado objetivamente fora de

qualquer perspectiva sua reflexatildeo em torno da verdade constitui-se apenas de forma

negativa Desta maneira suas posiccedilotildees filosoacuteficas seriam reconhecidas como hipoacuteteses

interpretaccedilotildees que natildeo reclamariam nenhuma vantagem em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees que o

filoacutesofo critica a natildeo ser pelo fato de se reconhecerem como interpretaccedilotildees o que se torna

possiacutevel na medida em que suas concepccedilotildees natildeo se deixam guiar por uma vontade de

verdade moralmente decadente

O perspectivismo nietzschiano assim deve ser avaliado como contraproposta a

uma forma de conhecimento tradicional associada por Nietzsche a uma tendecircncia niilista

de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a uma consideraccedilatildeo negativa da

realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a proacutepria perspectividade Na defesa

desta contraproposta apresentada de modo experimental mais do que uma anaacutelise da

verdade de posicionamentos filosoacuteficos interessa a Nietzsche a anaacutelise do valor desses

posicionamentos

230

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas

O problema da verdade que aparece ao filoacutesofo desde suas primeiras incursotildees

filosoacuteficas como um problema fundamental assume um caraacuteter duplo em sua reflexatildeo

madura Esta mudanccedila apenas pode ser produzida quando Nietzsche confronta o problema

do niilismo que condiciona uma mudanccedila de sentido da concepccedilatildeo de vida em seu

pensamento agora natildeo mais pensada apenas enquanto instacircncia bioloacutegica mas tambeacutem

como instacircncia de fundamentaccedilatildeo de valores Se em Zur Teleologie motivada pelo

problema da questatildeo teoloacutegica o filoacutesofo pensa a vida apenas como algo que pode ser

mantido agora ela lhe aparece como algo que natildeo apenas se deve manter mas que tambeacutem

deve ser fortalecida Assim quando tomada a vida como determinante para a

caracterizaccedilatildeo dos valores primeiramente haveriam os valores de manutenccedilatildeo da vida e

depois aqueles valores que tornam a vida mais forte Os primeiros valores que estariam

vinculados a criaccedilatildeo de uma realidade ideal e conceitos imobilistas seriam valores

inferiores em relaccedilatildeo agrave vida Em contraposiccedilatildeo a estes os valores de afirmaccedilatildeo da vida

seriam aqueles que a fortalecem Nesse sentido a perspectividade enquanto fundamento de

uma compreensatildeo da realidade que rejeita toda forma de imobilismo estaria vinculada de

maneira necessaacuteria ao fortalecimento da vida caracterizando um posicionamento superior

quando em comparaccedilatildeo ao posicionamento dogmaacutetico

Para Nietzsche portanto o fundamental de um posicionamento filosoacutefico seria seu

potencial afirmativo da vida natildeo sua veracidade Em sua interpretaccedilatildeo criacutetica da

concepccedilatildeo tradicional de verdade interessaria ao filoacutesofo opor vida e valores e desta

forma questionar o valor dos valores afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida em oposiccedilatildeo aos

valores que satildeo essenciais para nossa sobrevivecircncia Neste sentido no fragmento poacutestumo

7[8] que tem por tiacutetulo ldquoNiilismordquo escrito entre o final de 1886 e a primavera de 1887 e

que corresponderia ao terceiro capiacutetulo do terceiro livro dos planos para a obra Vontade de

Potecircncia Nietzsche apresenta este como sendo seu verdadeiro problema que apenas em

sua filosofia se teria feito consciente

231

Suportei ateacute aqui uma tortura todas as leis segundo as quais a vida sedesenvolve pareciam-me estar em contradiccedilatildeo com os valores em virtudedos quais noacutes nos mantemos vivos Natildeo parece ser o estado do qualmuitos sofrem conscientemente apesar disso quero reunir os sinais apartir dos quais suponho que esse eacute o caraacuteter fundamental o problematraacutegico propriamente dito de nosso mundo moderno e a indigecircnciasecreta a causa ou a interpretaccedilatildeo de todas as nossas indigecircncias Esseproblema tornou-se consciente em mim (NFFP 18861887 7 [08])

Na medida em que se considera que entre as leis em que a vida se desenvolve se

inclui a proacutepria consideraccedilatildeo perspectiva da realidade que se opotildee frontalmente agrave nossa

necessidade de aparecircncias que ocupam na loacutegica de nossa sobrevivecircncia um lugar de

importacircncia iacutempar natildeo pode haver duacutevida de que neste fragmento estamos diante do

questionamento acerca do valor mesmo de uma consideraccedilatildeo perspectiva dos valores em

relaccedilatildeo ao valor das proacuteprias aparecircncias Se a caracterizaccedilatildeo da perspectiva como condiccedilatildeo

inerente agrave vida pode ser vista como contraposiccedilatildeo a um mal-entendido da verdade que o

autor identifica nas posiccedilotildees dogmaacuteticas entatildeo os valores suportados pela consideraccedilatildeo

tradicional da verdade estariam ligados agrave manutenccedilatildeo da vida e os valores de uma

consideraccedilatildeo perspectivista da vida estariam ligados a uma forma de valorar segundo

valores que tornam a vida mais forte

O perspectivismo nietzschiano por sua vez desde que tem em seus fundamentos

uma reavaliaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de verdade pode ser visto como uma forma de

reflexatildeo radical natildeo apenas acerca do conhecimento e da verdade mas tambeacutem dos

valores como criaccedilotildees oriundas de uma perspectiva limitada e que natildeo tem importacircncia

para aleacutem da esfera de sua criaccedilatildeo O que torna o mundo dos valores enquanto mundo da

criaccedilatildeo humana segundo sua perspectiva como uacutenica realidade para aleacutem da consideraccedilatildeo

de uma realidade verdadeira assim como de uma realidade como aparecircncia Nesse sentido

a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma forma de reverter completamente a noccedilatildeo

tradicional da natureza da verdade e da perspectiva pode ser vista como um

posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade ainda que com

isto se acentue a contradiccedilatildeo entre aquilo que propicia a sobrevivecircncia humana em relaccedilatildeo

ao que a torna mais forte

Ao propor a ideia de que a realidade seja interpretada segundo uma escala de

inuacutemeros valores o filoacutesofo adianta-se em sua missatildeo de instituir um antiplatonismo

232

radical ao atacar a concepccedilatildeo de mundo verdadeiro A concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana do

conhecimento nesse sentido corresponderia a uma tentativa de analisar a possibilidade de

se considerar qualquer posicionamento teoacuterico como passiacutevel de ser localizado dentro de

uma escala valorativa de infinitos graus infinitos valores para usar a terminologia

nietzschiana em que no grau mais baixo se encontraria o posicionamento menos

afirmativo em relaccedilatildeo agrave vida posto que tende a uma concepccedilatildeo de mundo verdadeiro Pois

na medida em que o mundo verdadeiro que fundamentaria as concepccedilotildees cientiacuteficas e

filosoacuteficas agraves quais Nietzsche se opotildee eacute criticado como a maior das falsidades jaacute criada os

valores que repousam sobre este fundamento satildeo forccedilados a uma reavaliaccedilatildeo Sua negaccedilatildeo

do mundo verdadeiro representaria a ruptura com a mentira de seacuteculos que instituiu um

mundo separado da realidade material como forma de fugir ao caraacuteter limitado de nossas

formulaccedilotildees teoacutericas

A necessidade de uma alteraccedilatildeo do criteacuterio de avaliaccedilatildeo surge da constataccedilatildeo

nietzschiana do colapso do sistema valorativo tradicional suportado pela filosofia

metafiacutesica pela ciecircncia naturalista e pela concepccedilatildeo religiosa Quanto a esta necessidade a

leitura nietzschiana da filosofia tradicional eacute muito clara em sua suposiccedilatildeo de que o

dualismo ontoloacutegico teria levado a pesquisa filosoacutefica a sua exaustatildeo o que se daacute atraveacutes

do confronto entre a inexistecircncia de uma realidade idealizada e a hegemonia da

interpretaccedilatildeo

Para pensar a relaccedilatildeo intriacutenseca entre o conhecimento e os afetos subjacentes agrave

consciecircncia eacute necessaacuterio retornar com ecircnfase especial ao paraacutegrafo 333 de A Gaia

Ciecircncia onde o autor apresenta um suposto tiacutetulo que de fato corresponde a uma citaccedilatildeo

de Espinosa O que significa conhecer Non ridere non lugere nequi detestari sed

intelligere A passagem do Tractatus Politicus de Spinoza aparece aqui como a forma mais

contraacuteria agrave concepccedilatildeo de conhecimento que o autor almeja defender Em contraposiccedilatildeo agrave

ideia de conhecimento como cessaccedilatildeo dos afetos o autor diraacute que o conhecimento natildeo

surge a partir de um apagamento dos impulsos de rir lamentar e detestar mas sim de uma

certa tomada de consciecircncia dos uacuteltimos estaacutegios da luta desses impulsos

A noacutes nos chega agrave consciecircncia apenas as uacuteltimas cenas de conciliaccedilatildeo eajuste de contas desse longo processo e por isso achamos que intelligere eacutealgo conciliatoacuterio justo bom essencialmente contraacuterio aos impulsos

233

enquanto eacute apenas uma certa relaccedilatildeo dos impulsos entre si (FWGC IVsect333)

Conhecer portanto natildeo seria deixar calar os instintos mais iacutentimos do pesquisador

mas o chegar agrave consciecircncia destes estados iacutentimos Pois o que move o conhecimento eacute

precisamente o duelo entre esses instintos de modo que o resultado desse duelo produz

algo diferente novo e que sobreveacutem ao pesquisador como uma faiacutesca que surge do contato

entre duas espadas Ora destes estados iacutentimos o pesquisador reconhece apenas os uacuteltimos

momentos logo ele natildeo eacute sujeito de conhecimento exceto em uma acepccedilatildeo muito precaacuteria

Para todos os efeitos o pesquisador eacute apenas instrumento dos instintos que nele lutam e

atraveacutes dele chegam a uma conformaccedilatildeo especiacutefica segundo a natureza de seus instintos

Esta eacute de fato a caracteriacutestica uacuteltima do tipo de conhecimento defendido por

Nietzsche e estaacute em iacutentima associaccedilatildeo com sua concepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia De

fato a luta dos instintos eacute uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia que nesse sentido

seria a verdadeira responsaacutevel pela interpretaccedilatildeo que chega ao pesquisador em seus

estaacutegios finais como conhecimento Na vontade que Nietzsche pensa como subjacente a

toda concepccedilatildeo racional de natureza nada como a verdade existe Por isso o filoacutesofo diz

ldquoGuardemo-nos de dizer que haacute leis da natureza Haacute apenas necessidades natildeo haacute ningueacutem

que comande ningueacutem que obedeccedila ningueacutem que transgridardquo (FWGC III sect109) Assim

visto a questatildeo ainda de outro modo o conhecimento natildeo seria o cessar das contradiccedilotildees

inerentes aos instintos em luta como se estaria tentado a deduzir diante da concepccedilatildeo

apresentada por Nietzsche como sendo a de Spinosa Mas antes o apaziguar dessas

contradiccedilotildees por meio da consciecircncia mediante a pressatildeo de uma necessidade nossa uma

coaccedilatildeo bioloacutegica que aspira a um cessar dos instintos

A coaccedilatildeo subjetiva que impede de contradizer eacute uma coaccedilatildeo bioloacutegica oinstinto de utilidade que haacute em concluir assim como concluiacutemos tornou-se para noacutes uma segunda natureza somos quase esse instinto Mas queingenuidade querer extrair daiacute a demonstraccedilatildeo de que possuiacutemos umaverdade em si O fato de natildeo ser possiacutevel a contradiccedilatildeo eacute prova de umaincapacidade e natildeo de uma ldquoverdaderdquo (NFFP 1888 14[152])

234

Apesar de o apaziguamento dos instintos que se daacute no sujeito surgir como o efeito

de uma potecircncia ordenadora constituinte da proacutepria consciecircncia aqui natildeo se expressa uma

capacidade superior como por vezes a tradiccedilatildeo do pensamento deixa entender A ela estaacute

ligada a necessidade de simplificar uma realidade caoacutetica para fins de comunicaccedilatildeo Com

isso natildeo se expressa uma potecircncia uma capacidade para a verdade mas uma limitaccedilatildeo

Concebemos verdades com uma determinada regularidade natildeo por uma maior capacidade

interpretativa mas por uma maior dependecircncia de regularidade em relaccedilatildeo a outras

espeacutecies naturais

() O mundo imaginaacuterio do sujeito da substacircncia da ldquorazatildeordquo etc eacutenecessaacuterio haacute em noacutes uma potecircncia ordenadora simplificadora quefalsifica e separa artificialmente ldquoVerdaderdquo eacute a vontade de tornar-sesenhor da multiplicidade das sensaccedilotildees (NFFP 1887 09[189])

Dependemos de estabilidade para viver assim criamos um mundo imaginaacuterio da

substacircncia Com isso nenhuma verdade eacute atingida a natildeo ser que se tome por verdade

aquilo que eacute necessaacuterio para nossa existecircncia Segundo Nietzsche esse teria sido o erro da

tradiccedilatildeo ateacute entatildeo tomar por verdadeiro o que eacute necessariamente verdadeiro para noacutes

Nessa leitura o conhecimento tal como este foi perseguido pela tradiccedilatildeo estaria

relacionado a uma impotecircncia para criar que encontra na vontade de verdade a mateacuteria

prima para a construccedilatildeo do outro mundo

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir Em outras palavras o filoacutesofo compreende que o bem e o mal

natildeo estatildeo colocados de uma vez por todas no real pois jaacute em sua filosofia de juventude

conclui que a realidade natildeo possui ordem ou desordem Assim o mundo se o

considerarmos em si mesmo independente do homem natildeo eacute afeito a coisas como erro

verdade mentira bom ou ruim

235

Na leitura nietzschiana a realidade natildeo possui valor em si valores natildeo-humanos

Todo valor eacute decorrecircncia da atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo

com ilusotildees interpretaccedilotildees muito proacuteprias ligadas desde sua origem a ordem de suas

necessidades Por isso o filoacutesofo afirma ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie ()

traz entatildeo um esplecircndido cortejo de motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer

esquecer que no fundo eacute impulso instinto tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1)

Assim Nietzsche concebe o mundo como uma decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de

sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se carregado de sentido a partir da existecircncia

humana Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto eacute por definiccedilatildeo

sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana natildeo eacute guiada

por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima instacircncia a accedilatildeo

humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento

Nessa leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a

finalidade a moralidade o sentido satildeo tomadas pro Nietzsche com instacircncias do instinto

de conservaccedilatildeo nos seres humanos Os diferentes valores natildeo passam de padronizaccedilotildees

humanas inexistentes no mundo mesmo pois como nos diz o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas

que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a

lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse

mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre fizemos ou seja

mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim a uma atribuiccedilatildeo

humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de sobrevivecircncia de

uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

A necessidade do mundo necessaacuterio da substacircncia condiciona nossa busca pelo

conhecimento como a busca pelo conhecimento deste mundo antropomorficamente

necessaacuterio Mas posto que a existecircncia desse mundo eacute dependente de nossa atuaccedilatildeo a este

mundo natildeo corresponderia nenhuma realidade em si Assim a concepccedilatildeo de conhecimento

combatida por Nietzsche se relaciona intimamente com a tendecircncia niilista que se

propaga do campo da moral para o campo do conhecimento Em sua concepccedilatildeo

perspetivista que confronta o fato de que natildeo haacute outro mundo o elemento criativo

plasmador de interpretaccedilotildees torna-se o ponto central No entanto a negaccedilatildeo de um outro

mundo distingue-se da negaccedilatildeo de uma realidade em si que seria jaacute certo

236

comprometimento com aquilo que se tenciona negar Por outro lado a afirmaccedilatildeo de nosso

mundo de interpretaccedilotildees eacute coerente com o sentido mais iacutentimo da reflexatildeo nietzschiana

conforme o autor esclarece em um fragmento poacutestumo a ideia que regeu sua obra

Que o valor do mundo reside em nossa interpretaccedilatildeo (ndash que em algumoutro lugar talvez sejam possiacuteveis ainda outras interpretaccedilotildees que natildeo ashumanas ndash) que as interpretaccedilotildees ateacute aqui satildeo avaliaccedilotildeesperspectiviacutesticas graccedilas agraves quais noacutes nos mantemos na vida ou seja navontade de poder de crescimento de poder que toda elevaccedilatildeo do homemtraz consigo a superaccedilatildeo de interpretaccedilotildees mais estreitas que todaintensificaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo do poder alcanccediladas abrem novas perspectivase conclamam a que se acredite em novos horizontes ndash isto eacute algo queatravessa meus escritos O mundo que em alguma medida nos dizrespeito eacute falso isto eacute natildeo eacute nenhum fato mas uma sedimentaccedilatildeo e umarrendondamento a partir de uma soma mais magra de observaccedilotildees eleestaacute em ldquofluxordquo como algo que deveacutem como uma falsidade que semprese translada novamente que nunca se aproxima da verdade pois ndash natildeo haacutenenhuma ldquoverdaderdquo (NFFP 18851886 2 [108])

Aqui eacute necessaacuterio voltar-se para a definiccedilatildeo nietzschiana de niilismo na tentativa

de entender radicalmente sua negaccedilatildeo do outro mundo Nietzsche diz ldquoo niilista eacute o

homem que julga que o mundo tal como eacute natildeo deveria existir e o mundo tal qual deveraacute

ser natildeo existerdquo (NFFP 1887 9[60]) O niilista portanto seria aquele que defende a

existecircncia de uma realidade idealizada com base na negaccedilatildeo da realidade imperfeita que eacute

nossa criaccedilatildeo Assim se pensarmos em uma posiccedilatildeo que tenciona superar o niilismo

estamos diante da necessidade natildeo de negar um outro mundo mas de afirmar o mundo

que eacute nossa criaccedilatildeo Pois o nosso mundo objetivo enquanto totalidade de perspectivas eacute

afirmado na consideraccedilatildeo perspectivista nietzschiana como o uacutenico mundo existente

Em contraposiccedilatildeo ao niilista que natildeo consegue aceitar o mundo como totalidade de

perspectivas por consideraacute-lo inferior ao mundo ideal inexistente o filoacutesofo perspectivista

seria aquele que apreende um mundo que entende desde o comeccedilo como produto de sua

atuaccedilatildeo criativa no mundo Desta maneira a ele se assemelha o homem das metaacuteforas

intuitivas do ensaio sobre verdade e mentira para quem as metaacuteforas constituem em seu

caraacuteter mesmo de metaacuteforas o material de sua existecircncia poeacutetica Ao homem da ciecircncia no

ensaio em questatildeo corresponderia o niilista que tenta apoiar-se em uma perspectiva

definitiva uacutenica verdadeira apesar de igualmente ilusoacuteria

237

Conforme referido anteriormente a vontade de verdade constitui uma impotecircncia

para criar que encontra reflexo na afirmaccedilatildeo de que o mundo que deveria ser jaacute eacute e jaacute estaacute

aiacute Atraveacutes dessa concepccedilatildeo a vontade que move a afirmaccedilatildeo da existecircncia do mundo

ideal exclui-se da criaccedilatildeo do mundo e age tatildeo-somente em sua antecipaccedilatildeo Poreacutem na

medida em que se assume que este mundo o mundo aparente natildeo deveria existir caiacutemos

no niilismo Por outro lado haacute tambeacutem um niilismo em uma criacutetica agrave vontade de verdade

tal como a empreendida por Nietzsche Ela se configura como a afirmaccedilatildeo de que o mundo

tal como deveraacute ser ou tal como deveria ser natildeo existe Dessa maneira estamos sempre no

limiar entre um niilismo ativo e um passivo na medida em que assumimos a necessidade

de criar um mundo na ausecircncia deste ou nos ausentamos desta requisiccedilatildeo Eacute nesse terreno

que encontramo-nos quando com Nietzsche nos embrenhamos na anaacutelise genealoacutegica da

verdade como falsidade

A posiccedilatildeo criacutetica nietzschiana assume sua maior radicalidade na tentativa de

subverter todos os dualismos a partir da reavaliaccedilatildeo de toda duplicidade de consideraccedilotildees

da realidade como sendo produto da crenccedila em instacircncias superiores Na medida em que

seu ataque ao dualismo de valores inerente agrave concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional se torna

cada vez mais radical o colapso da crenccedila em uma realidade superior se torna o meio pelo

qual ficaria exposta a existecircncia exclusiva de um mundo aparente Nesse sentido a

destituiccedilatildeo de validade do mundo verdadeiro e com ela a invalidaccedilatildeo de sua contraparte o

mundo aparente considerado como mundo falso coloca nossas afirmaccedilotildees no terreno da

interpretaccedilatildeo sem texto

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva

Em sua obra acerca da verdade na filosofia nietzschiana Clark sustenta que a

problemaacutetica presente nesse pensamento em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade

teria se tornado um dos grandes temas de discussatildeo da filosofia desse autor De fato esta

preocupaccedilatildeo fundamental encontra-se com frequecircncia na obra nietzschiana Sobretudo em

seus uacuteltimos livros notadamente em Aleacutem do Bem e do Mal e Genealogia da Moral

Apesar disso rigorosamente falando o filoacutesofo natildeo oferece em contraposiccedilatildeo a esta

238

concepccedilatildeo tradicional uma concepccedilatildeo proacutepria plenamente desenvolvida acerca da

natureza da verdade Em seu lugar Nietzsche teria optado por oferecer uma criacutetica de

amplo alcance acerca das noccedilotildees tradicionais de objetividade e correspondecircncia Ao que

tudo indica o filoacutesofo esperava dessa forma iniciar um amplo diaacutelogo acerca do valor da

verdade para a filosofia contemporacircnea

O questionamento pelo valor das perspectivas e da proacutepria possibilidade de uma

perspectiva do valor relaciona-se agrave necessidade de julgar qual o fundamento da criacutetica

nietzschiana a outras concepccedilotildees partindo-se da admissatildeo nietzschiana de suas proacuteprias

conclusotildees filosoacuteficas como sendo decorrecircncias de uma perspectiva determinada Em

outras palavras trata-se da busca pela validade das concepccedilotildees nietzschianas em

detrimento de sua possiacutevel veracidade busca que se torna necessaacuteria desde que ao

interpretarmos algumas das passagens mais conhecidas da produccedilatildeo nietzschiana vemos

que o proacuteprio Nietzsche pareceu natildeo se incomodar com a consideraccedilatildeo de suas suposiccedilotildees

como interpretaccedilotildees Como vemos por exemplo na seguinte passagem

Mas como disse isso eacute interpretaccedilatildeo natildeo texto e bem poderia viralgueacutem que com intenccedilatildeo e arte de interpretaccedilatildeo opostas soubesse lerna mesma natureza tendo em vista os mesmos fenocircmenos precisamentea imposiccedilatildeo tiranicamente impiedosa e inexoraacutevel de reivindicaccedilotildees depoder ndash um inteacuterprete que lhes colocasse diante dos olhos o caraacuteter natildeoexcepcional e peremptoacuterio de toda ldquovontade de poderrdquo em tal medidaque quase toda palavra inclusive a palavra ldquotiraniardquo por fim parecesseimproacutepria ou uma metaacutefora debilitante e moderadora ndash demasiadohumana e que no entanto terminasse por afirmar sobre esse mesmomundo o mesmo que vocecircs afirmam isto eacute que ele tem um cursoldquonecessaacuteriordquo e ldquocalculaacutevelrdquo mas natildeo porque nele vigoram leis e simporque faltam absolutamente as leis e cada poder tira a cada instantesuas uacuteltimas consequecircncias Acontecendo de tambeacutem isto ser apenasinterpretaccedilatildeo ndash e vocecircs se apressaratildeo em objetar isso natildeo ndash bem tantomelhor (JGBABM I 22)

O ldquotanto melhorrdquo ao fim da conhecida passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que nos

parece emblemaacutetica do tipo de posicionamento criacutetico que predomina nos escritos

nietzschianos indica que Nietzsche natildeo pretendia ao se contrapor agraves posiccedilotildees das quais

discordava apresentar uma posiccedilatildeo mais verdadeira Isto porque o filoacutesofo se volta contra

a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica Assim considerar as

239

concepccedilotildees nietzschianas do ponto de vista de uma investigaccedilatildeo acerca da verdade destas

posiccedilotildees natildeo parece ser uma atitude produtiva desde que a proacutepria caracterizaccedilatildeo do

filoacutesofo de suas concepccedilotildees como interpretaccedilotildees parece negar a possibilidade de que estas

sejam verdadeiras e que o filoacutesofo rejeita ou natildeo parece se incomodar nem mesmo em

rejeitar a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica

Se por um lado a duacutevida acerca da seriedade com que Nietzsche enfrenta a posiccedilatildeo

dos fiacutesicos parece ser reforccedilada pelo fato do filoacutesofo tomar suas proacuteprias concepccedilotildees como

interpretaccedilotildees e natildeo fatos uma leitura mais atenta poderia demonstrar que o filoacutesofo

reconhece na proacutepria possibilidade de se apresentar novas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de

criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Desta maneira na passagem citada a

concepccedilatildeo de vontade de potecircncia tomada como hipoacutetese contraacuteria agrave opccedilatildeo das ciecircncias

pela compreensatildeo da natureza como algo conforme a uma legalidade natural eacute considerada

pelo proacuteprio Nietzsche uma interpretaccedilatildeo E para o filoacutesofo parece tanto melhor que

assim seja posto que isto concorda com a suposiccedilatildeo inicial de que apenas hajam

interpretaccedilotildees Portanto quando rejeita a posiccedilatildeo dos fiacutesicos a qual considera estar

vinculada a uma concepccedilatildeo moral da verdade o proacuteprio Nietzsche parece rejeitar a

verdade de sua suposiccedilatildeo hipoteacutetica

Isto ocorre porque a criacutetica nietzschiana ao posicionamento dos fiacutesicos se daacute no

interior de uma consideraccedilatildeo que toma a proacutepria necessidade de verdade que para o

filoacutesofo move a ciecircncia como uma rejeiccedilatildeo moral do valor mesmo das interpretaccedilotildees

Nesta leitura a confianccedila das ciecircncias ainda aparece para o filoacutesofo como reflexo da antiga

vontade de verdade como um traccedilo indeleacutevel do niilismo que suporta estas posiccedilotildees

Assim por exemplo em um fragmento do mesmo periacuteodo de elaboraccedilatildeo de Aleacutem do Bem

e do Mal Nietzsche reflete que haacute um traccedilo niilista nas ciecircncias naturais em seu

causalismo e mecanicismo na crenccedila na ldquoconformidade a leisrdquo (NFFP 1885-1886

2[131]) Para o filoacutesofo estes traccedilos niilistas permaneceriam ainda na poliacutetica e na

economia poliacutetica como reflexo de uma falta de inocecircncia e confianccedila no direito de cada

um Do mesmo modo na histoacuteria em sua confianccedila no ldquofatalismo e no darwinismordquo

(NFFP 1885-1886 2[131]) em sua tentativa desesperada de ldquoinserir interpretativamente

a razatildeo e a divindaderdquo (NFFP 1885-1886 2[131]) em sua leitura de um suposto

progresso da humanidade

240

Em seu julgamento das ciecircncias e seu pendor niilista para uma vontade de verdade

o filoacutesofo faz observar entre parecircnteses que tambeacutem aqui se faz necessaacuterio o

fenomenalismo na compreensatildeo do caraacuteter como maacutescara desde que ldquonatildeo haacute nenhum

fatordquo (NFFP 1885-1886 2[131]) Na medida em que mais do que estabelecer uma

concepccedilatildeo mais verdadeira de verdade interessa a Nietzsche questionar os compromissos

morais inerentes agrave vontade de verdade sua filosofia torna-se uma teoria criacutetica da verdade

um posicionamento criacutetico em relaccedilatildeo a toda vontade de verdade inerente agrave ciecircncia e agrave

filosofia tradicional O que natildeo significa a defesa de uma determinada teoria da verdade

mas a investigaccedilatildeo da proacutepria verdade como valor

O posicionamento eminentemente criacutetico de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave verdade faz

emergir uma concepccedilatildeo negativa de verdade desde que sua criacutetica a este conceito perpassa

boa parte de suas obras revelando natildeo uma opccedilatildeo teoacuterica mas o contraste entre uma moral

que se rejeita e uma determinada concepccedilatildeo de verdade que eacute compreendida pelo filoacutesofo

como aliada a uma forma decadente de consideraccedilatildeo da realidade Assim quando

Nietzsche sugere em outra passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que natildeo haacute uma parede

divisoacuteria entre a verdade e a aparecircncia fica claro que o filoacutesofo concebe a verdade apenas

como uma espeacutecie de aparecircncia pondo em duacutevida a tradicional distinccedilatildeo entre a verdade e

o aparente como valores distintos

Eacute um simples preconceito acreditar que a verdade eacute melhor que aaparecircncia eacute inclusive a mais infundada que existe Deve-se confessaacute-lo avida natildeo seria possiacutevel sem toda uma engrenagem de apreciaccedilotildees e deaparecircncias e se se suprimisse o ldquomundo aparenterdquo com toda aindignaccedilatildeo voltada contra ele por certos filoacutesofos supondo-se que istofosse possiacutevel nada restaria tampouco de nossa ldquoverdaderdquo Pois o quenos obriga a admitir que exista uma parede divisoacuteria entre o ldquoverdadeirordquoe o ldquofalsordquo Natildeo bastaria admitir graus de aparecircncia como quem falassede matizes e harmonia mais ou menos claros ou obscuros valoresdiferentes para empregar a linguagem dos pintores Por que o mundo emque vivemos natildeo poderia ser fictiacutecio E se objetasse ainda que toda ficccedilatildeodeve ter um autor natildeo se poderia responder com toda franqueza ldquoPorquecircrdquo A expressatildeo ldquodeve terrdquo natildeo constitui tambeacutem parte da ficccedilatildeo Natildeose pode permitir um pouco de ironia com o sujeito com o predicado ecom o objeto O filoacutesofo natildeo tem razatildeo de declarar-se rebelde contra aconfianccedila cega concedida agrave gramaacutetica Respeito muito aos governantesporeacutem natildeo seria a hora da filosofia renunciar um pouco agrave feacute nosgovernantes (JGBABM Livro II sect34)

241

Ao opor-se criticamente agrave indignaccedilatildeo demonstrada pelos filoacutesofos tradicionais ao

enganoso mundo aparente como uma forma de erro que deveria ser suprimido Nietzsche

apresenta natildeo uma forma diversa de verdade mas uma compreensatildeo diversa da relaccedilatildeo

entre verdade e aparecircncia Pensar que a supressatildeo do mundo aparente ocasiona a supressatildeo

da verdade leva a crer que a verdade pode ser vista como uma forma de aparecircncia Em

outro sentido Nietzsche pensa como inoacutecua a distinccedilatildeo tradicional entre verdade e

aparecircncia posto que considera que natildeo possuiacutemos o suficiente para traccedilar uma tal

distinccedilatildeo Assim a realidade poderia ser representada natildeo mais segundo o dualismo

verdadeiro e falso mas como uma composiccedilatildeo de diferentes tons de aparecircncia

Com esta simples metaacutefora das cores Nietzsche torna possiacutevel pensar a

diferenciaccedilatildeo de valor entre a verdade e o aparente como algo que natildeo remete a

consideraccedilatildeo de diferentes graus de afastamento de uma realidade idealizada mas que

torna a proacutepria aparecircncia o grau a ser levado em consideraccedilatildeo na diferenciaccedilatildeo de tons da

realidade Com isso o filoacutesofo pode oferecer uma leitura diferenciada da relaccedilatildeo entre

valor verdade e aparecircncia sem no entanto necessitar estabelecer uma teoria tradicional

acerca da verdade E se for necessaacuterio definir o perspectivismo nietzschiano deve-se

pensaacute-lo natildeo como uma teoria da verdade mas como um posicionamento criacutetico em

relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que toma a distinccedilatildeo em graus de aparecircncia

como um traccedilo necessaacuterio de toda consideraccedilatildeo da realidade Em relaccedilatildeo ao

conhecimento por outro lado o perspectivismo pode ser pensado como uma relaccedilatildeo para

com a disposiccedilatildeo dos diferentes valores a capacidade de dispor de diferentes valores de

aparecircncia como modo de constituiccedilatildeo de uma determinada interpretaccedilatildeo

Seria possiacutevel portanto pensar que assim como nessa passagem de Aleacutem do Bem

e do Mal a concepccedilatildeo tradicional de ldquovalor de verdaderdquo se torna sem sentido na filosofia

nietzschiana na medida em que o autor considera a verdade mesma apenas um grau de

aparecircncia que poderia corresponder a uma forma conveniente de falsidade De tal maneira

que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso na filosofia nietzschiana seria reduzida a uma

especulaccedilatildeo do valor de determinadas aparecircncias assim como de sua combinaccedilatildeo para as

necessidades especiacuteficas inerentes a uma determinada organizaccedilatildeo de forccedilas Organizaccedilatildeo

que pode ser interpretada como um sujeito

Pois para Nietzsche o sujeito natildeo seria ldquoalgo dado senatildeo algo inventado e

acrescentado algo posto por traacutesrdquo ou seja tambeacutem uma interpretaccedilatildeo Assim por meio da

242

discordacircncia nietzschiana de que o mundo como uma ficccedilatildeo dependa de um autor

correlata agrave negaccedilatildeo de que ldquouma interpretaccedilatildeo necessite de um inteacuterpreterdquo (NFFP 1886-

1887 7[60]) o filoacutesofo estabelece como ponto de partida para sua compreensatildeo do mundo

como uma interpretaccedilatildeo que o ldquosujeitordquo natildeo seria algo distinto daquilo que se procura

conhecer e que se tem considerado como produto da atuaccedilatildeo do sujeito Em grande

medida a criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo que toma a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia

como uma distinccedilatildeo ldquodualoacutegicardquo indevida parte de uma consideraccedilatildeo do sujeito como

uma aparecircncia

Em sua consideraccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo tradicional de sujeito Nietzsche reflete

acerca do proacuteprio sujeito como sendo objeto de uma avaliaccedilatildeo perspectivista que como

tal natildeo poderia ser tomado como fundamento para o estabelecimento de uma distinccedilatildeo tatildeo

fundamental quanto a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia Neste sentido o filoacutesofo

compreende a concepccedilatildeo tradicional de sujeito como estando fundada em uma

desconsideraccedilatildeo do necessaacuterio perspectivismo a compreensatildeo da realidade como produto

de nossa avaliaccedilatildeo

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano surge no pensamento desse autor agrave margem de uma

consideraccedilatildeo criacutetica das concepccedilotildees tradicionais de conhecimento e verdade mas que nem

por isso constitui uma teoria do conhecimento ou da verdade antagocircnica agraves concepccedilotildees

tradicionais Nestes diferentes momentos a criacutetica agrave verdade efetuada pelo autor parece ser

orientada por uma noccedilatildeo caracteriacutestica acerca do valor que subjaz agraves nossas afirmaccedilotildees

sobre a realidade o que impede mesmo a formulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo alternativa de

verdade posto que para o autor o problema da concepccedilatildeo tradicional residiria na

necessidade mesma de verdade Ou seja compreendemos que com seu perspectivismo o

filoacutesofo natildeo pretendeu oferecer uma nova concepccedilatildeo de verdade mas iniciar um

questionamento acerca do valor da verdade para nossa sobrevivecircncia Do mesmo modo

mais do que estabelecer uma teoria do conhecimento interessava agrave Nietzsche o problema

do valor na filosofia

243

No entanto esta compreensatildeo eacute gestada atraveacutes dos diversos periacuteodos da filosofia

nietzschiana Apenas assumindo a forma de uma teoria dos valores por assim dizer na fase

madura do pensamento deste autor A relaccedilatildeo entre criacutetica da concepccedilatildeo tradicional da

verdade e teoria do valor que seria o perspectivismo propriamente apenas se torna

possiacutevel porque na maturidade do pensamento nietzschiano a reflexatildeo acerca do caraacuteter

perspectivo da avaliaccedilatildeo se associa a uma compreensatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos

valores Assim em sua abordagem do problema da desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria

inerente agrave dinacircmica que o autor reconhece nos meios intelectuais europeus de sua eacutepoca e

que em diversos fragmentos poacutestumos nomeia como niilismo embora sem expor

propriamente o que seria o niilismo132 fica clara a tentativa do filoacutesofo de descobrir uma

forma de se contrapor a um processo de decadecircncia que potildee em risco a cultura e a proacutepria

humanidade como organizaccedilatildeo cultural

Sendo assim o perspectivismo nietzschiano que tal como o niilismo seria uma

tese da maturidade do pensamento nietzschiano que careceu de desenvolvimento na obra

publicada pode ser pensado como uma parte fundamental de uma estrateacutegia mais ampla de

combate agrave dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria comum ao niilismo A questatildeo

do valor das perspectivas na filosofia nietzschiana e por sua vez a questatildeo da

perspectividade dos valores estaria dessa forma intimamente relacionada com a questatildeo

acerca do valor da verdade que na concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento substitui a

questatildeo do valor de verdade Esta reflexatildeo criacutetica acerca do sentido tradicional de verdade

se reflete na projeccedilatildeo nietzschiana de uma filosofia do futuro

132 Apesar de constituir objeto de importacircncia reconhecidamente elevada no interior do pensamentonietzschiano de modo geral o tema do niilismo foi tratado apenas de forma obliacutequa na obra desse autorVide por exemplo o comentaacuterio de Lebrun no volume Nietzsche da coleccedilatildeo os pensadores Paacuteg 378 Nessapassagem o comentador e coorganizador do volume em questatildeo das obras selecionadas trata de formaresumida o tema do estado geral da obra nietzschiana a interrupccedilatildeo dessa obra por sua doenccedila e o status dospoacutestumos ldquoAteacute agora escolhi os textos com uma dupla intenccedilatildeo 1ordm) despertar no leitor o gosto por um autorque se queria lsquoextemporacircneorsquo 2ordm) preservaacute-lo dos contrassensos estuacutepidos de que Nietzsche tanto sofreu(anti-semita preacute-nazista etc) ndash A dificuldade agora eacute a seguinte Nietzsche quando foi atingido peladoenccedila estava preparando a obra que considerou a fundamental A Vontade de Potecircncia ndash Os editorespublicaram sob esse tiacutetulo um livro contestado e sem duacutevida contestaacutevel do ponto de vista filoloacutegico poisos fragmentos estatildeo agrupados sem levar em conta sua dataccedilatildeo Em sua ediccedilatildeo criacutetica Coli e Montinaripreferiram dispensar estes textos tatildeo arbitrariamente selecionados entre os fragmentos poacutestumos deNietzsche ndash Como aqui repito trata-se apenas de despertar no leitor o gosto e a curiosidade por Nietzschepermiti-me ndash os eruditos me perdoem ndash escolher em A Vontade de Potecircncia e nos textos poacutestumos osfragmentos referentes a dois temas que a obra publicada soacute aborda obliquamente o niilismo e o eternoretornordquo

244

A ideia de que o futuro do pensamento ocidental seria marcado pela renuacutencia agrave

ideia de verdade em sentido tradicional mais do que tudo condiciona a aposta

nietzschiana na emergecircncia dos espiacuteritos livres Assim por meio da compreensatildeo de uma

iacutentima relaccedilatildeo entre este processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores e a necessidade de se

superar a concepccedilatildeo tradicional de verdade a questatildeo dos valores se insere na reflexatildeo

nietzschiana acerca dos problemas em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade O

abandono da concepccedilatildeo tradicional de verdade era uma esperanccedila do filoacutesofo esperanccedila

fundada na compreensatildeo da necessidade de se superar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos

valores que em sua eacutepoca se espalhava por todas as esferas da cultura europeia

Ao lado do problema da verdade a questatildeo acerca dos valores ocuparia um papel

fundamental na consideraccedilatildeo nietzschiana acerca do conhecimento E mesmo Maudemarie

Clark apesar de declarar natildeo pretender se aprofundar sobre o problema do valor defende

que este se oferece como uma posiccedilatildeo nietzschiana fundamental que apareceria lado a

lado ao problema da verdade no interior da especulaccedilatildeo nietzschiana

Apesar da ecircnfase recente acerca de suas afirmaccedilotildees sobre a verdadepoucos negariam que a importacircncia fundamental de Nietzsche estaacuteconectada com aquilo que ele tem a dizer acerca dos valoresespecialmente ao desafio que ele oferece aos valores recebidos Seudesafio aos valores recebidos parece repousar em afirmaccedilotildees como aseguinte que a moralidade eacute uma expressatildeo do ressentimento e danegaccedilatildeo da vida que a vida em si mesma eacute vontade de poder quefilosofia religiatildeo e moralidade estatildeo entre as mais refinadas formas dessavontade que a civilizaccedilatildeo ocidental encontra-se sob o grave perigoadvindo da morte de Deus e o niilismo que a esta estaacute ligada Natildeo eacuteminha preocupaccedilatildeo aqui explicar como exatamente tais afirmaccedilotildeesdesafiam os valores recebidos mas aparentemente eacute claro que estasafirmaccedilotildees natildeo podem se contrapor aos valores recebidos a menos quesejam tomados como verdadeiros (CLARK 1990 Paacuteg 03)

Nesta interessante passagem da extremamente importante obra de Clark a autora

lanccedila-se agrave anaacutelise da verdade ao mesmo tempo em que apenas apresenta o problema do

valor na filosofia nietzschiana Segundo esta compreensatildeo a concepccedilatildeo nietzschiana

acerca da verdade apareceria como sendo o fundamento da criacutetica nietzschiana aos valores

recebidos Isto porque o valor da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de moral

dependeria do valor de verdade de suas proacuteprias concepccedilotildees Pois para a autora seria

245

absurdo pensar que o autor oferece uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional sem estar de posse

de uma concepccedilatildeo mais verdadeira

Sendo assim Maudemarie Clark natildeo nega a importacircncia das consideraccedilotildees

nietzschianas acerca dos valores mas utiliza-se do contexto em que a criacutetica nietzschiana

aos valores eacute formulada como exemplo do modo como o filoacutesofo muitas vezes parece

argumentar com base em afirmaccedilotildees que refletem um determinado compromisso com a

verdade Ou seja apesar de reconhecer a importacircncia fundamental do problema dos

valores a autora apenas insinua a importacircncia de na tentativa de se fundamentar a criacutetica

nietzschiana aos valores recebidos da tradiccedilatildeo ou agrave moralidade tradicional que satildeo os

grandes pontos a serem combatidos pela filosofia nietzschiana estabelecer o sentido de

verdade na filosofia desse autor Isto eacute claro aceitando-se que a menos que se considerem

as afirmaccedilotildees nietzschianas contraacuterias agrave moral tradicional e seus valores como estando

fundadas em uma forma de verdade toda sua criacutetica torna-se sem sentido

Considerando-se a obra nietzschiana como um todo torna-se evidente que a

questatildeo do valor aparece no pensamento desse autor como um ponto fundamental O

niilismo nietzschiano orbita naturalmente em torno da questatildeo do valor e da desvalorizaccedilatildeo

dos valores fundamentais Motivadas por essa compreensatildeo do niilismo suas obras mais

conhecidas conduzem a uma reavaliaccedilatildeo do valor da moral Do mesmo modo concepccedilotildees

nietzschianas fundamentais como sua concepccedilatildeo do super-homem apenas podem ser

compreendidas mediante a consideraccedilatildeo de uma necessaacuteria transvaloraccedilatildeo dos valores

Outra concepccedilatildeo nietzschiana fundamental a morte de Deus aparece sob uma nova luz

quando considerada do ponto de vista de uma necessaacuteria consideraccedilatildeo do problema dos

valores Segundo esta leitura compreendemos o anuacutencio da morte de Deus nas obras

nietzschianas do periacuteodo intermediaacuterio como uma concepccedilatildeo que se baseia na derrocada

do valor da verdade assim como na necessidade de se estabelecer novos valores por meio

dos quais qualificar a verdade

Se estamos corretos em nossa interpretaccedilatildeo entatildeo temos que repensar a reflexatildeo de

Maudemarie Clark Pois quando a autora considera o valor da criacutetica nietzschiana agrave moral

como fundamentalmente dependente da compreensatildeo do autor do sentido de verdade ela

submete a questatildeo do valor a uma anaacutelise da questatildeo da verdade Virtualmente invertendo a

ordem dos fatores em sua reflexatildeo acerca da filosofia nietzschiana Na medida em que

246

concordamos com a autora em que uma correta caracterizaccedilatildeo do sentido de verdade seria

fundamental para a determinaccedilatildeo do sentido da criacutetica nietzschiana aos valores

entendemos ainda que uma compreensatildeo preexistente acerca da natureza dos valores

perpassa a investigaccedilatildeo nietzschiana acerca da moral Ou seja de certo modo seria a

conclusatildeo nietzschiana acerca da dependecircncia da moral que subjaz a uma forma tradicional

de verdade a qual o filoacutesofo jaacute considera problemaacutetica que estaacute na base de sua

compreensatildeo criacutetica acerca dos valores morais

Nesta compreensatildeo do problema enfatizamos a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

verdade como valor Caracterizaccedilatildeo que aparece na obra do filoacutesofo desde seus primeiros

escritos como objeto de criacuteticas A partir da denuacutencia desta consideraccedilatildeo moral da

verdade tributada agrave concepccedilatildeo tradicional o filoacutesofo assume uma posiccedilatildeo criacutetica e

negativa para com toda caracterizaccedilatildeo definitiva da verdade Este caraacuteter criacutetico cuja

expressatildeo maacutexima se daacute na rejeiccedilatildeo em apresentar uma teoria proacutepria acerca da verdade

faz com que seu pensamento assuma a feiccedilatildeo de uma aproximaccedilatildeo pessimista do potencial

humano para o conhecimento

O caraacuteter criacutetico da reflexatildeo nietzschiana acerca da verdade e do conhecimento

conduz a uma consideraccedilatildeo negativa destas instacircncias em que o perspectivo se destaca

como contraposiccedilatildeo agrave possibilidade de se atingir uma visatildeo objetiva da realidade Como

consequecircncia as conclusotildees apresentadas por Nietzsche especialmente em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia

Por sua vez o caraacuteter pessimista de sua consideraccedilatildeo sobre o conhecimento aparece

nesse contexto como reverberaccedilatildeo da criacutetica ao racionalismo da filosofia ocidental

herdeira de Soacutecrates e de seu otimismo infundado denunciados desde O Nascimento da

Trageacutedia A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e agrave filosofia com

esta comprometida enquanto expressatildeo de uma ldquovontade de verdaderdquo moralmente

decadente e na qual a figura de Soacutecrates desponta como grande signo e sintoma diria

respeito a uma criacutetica mais fundamental ao valor do conhecimento como expressatildeo de uma

determinada moral

247

De fato interessa ao filoacutesofo questionar em primeiro lugar a reduccedilatildeo da verdade a

um valor moral e em segundo lugar a reduccedilatildeo do valor a uma caracterizaccedilatildeo

simplificadora em que todo valor aparece apenas como valor moral Tal como o filoacutesofo

expressa em um fragmento do periacuteodo intermediaacuterio ldquoOra mas o valor ateacute aqui sobretudo

o valor da filosofia (lsquoda vontade de verdadersquo) estava baseado em juiacutezos moraisrdquo (NFFP

1885-1886 2[131] 4) Assim em sua consideraccedilatildeo criacutetica os valores morais aparecem

como uma simplificaccedilatildeo de valores mais fundamentais valores para a vida enquanto

valores de crescimento e de conservaccedilatildeo Aos valores morais implicaria o lugar entre os

valores de conservaccedilatildeo portanto seriam considerados valores de uma ordem inferior Por

outro lado a caracterizaccedilatildeo tradicional da verdade que condiciona a verdade a uma forma

de valor moral torna esta igualmente um valor de conservaccedilatildeo

O conhecimento torna-se nessa leitura em consequecircncia da adoccedilatildeo de verdades

como valores morais um mero instrumento para a conservaccedilatildeo perdendo sua

caracteriacutestica criativa vinculada a valores mais elevados de fortalecimento da vida

Motivos pelos quais o pessimismo epistemoloacutegico na filosofia nietzschiana que surge

como uma desconfianccedila com relaccedilatildeo ao conhecimento como remeacutedio para a existecircncia e

como atitude afirmativa torna-se frequente na obra do filoacutesofo

A desconfianccedila nietzschiana para com a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional do

conhecimento fundamenta-se em uma compreensatildeo criacutetica desta posiccedilatildeo que a toma

como estando em contrariedade em relaccedilatildeo agrave vida Esta caracterizaccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo

tradicional de conhecimento oriunda de uma avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e seu compromisso

com valores de decadecircncia se refletiraacute em sua reflexatildeo em uma atitude pessimista para

com o potencial humano para o conhecimento Por sua vez o pessimismo em relaccedilatildeo ao

papel do conhecimento na vida humana fundamento da vocaccedilatildeo antiplatocircnica de sua

filosofia conduz seu pensamento agrave negaccedilatildeo da identificaccedilatildeo entre o real e o racional assim

como agrave negaccedilatildeo da possibilidade de se estabelecer uma forma afirmativa de conhecimento

a partir do uso da razatildeo

Esta compreensatildeo criacutetica do sentido de conhecimento na tradiccedilatildeo no entanto natildeo

chegaria a caracterizar uma filiaccedilatildeo nietzschiana a alguma forma de ceticismo Posto que

248

Nietzsche conduziu diversas criacuteticas agrave postura ceacutetica em sua obra133 Por outro lado esta

caracterizaccedilatildeo critica conduz a reflexatildeo nietzschiana a uma tentativa de reavaliaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional do conhecimento por meio da qual o filoacutesofo pretendia libertar o

conhecimento de seu compromisso com valores de decadecircncia valores filiados a uma

compreensatildeo niilista da realidade

Sendo assim ainda que as conclusotildees apresentadas pelo autor acerca do

conhecimento e consequentemente o valor eminentemente negativo atribuiacutedo ao

conhecimento como tendecircncia moral e como expressatildeo de valores decadentes culmine em

uma apreciaccedilatildeo pessimista da possibilidade do conhecimento na medida em que a verdade

como valor mais elevado acaba sofrendo uma destituiccedilatildeo de valor as uacuteltimas expressotildees

do pensamento nietzschiano nos potildeem diante da possibilidade de um sentido criativo para

o conhecimento o que nos apresenta um potencial afirmativo do conhecimento para a

humanidade

Neste sentido acabamos por concluir que a consideraccedilatildeo criacutetica nietzschiana acerca

do conhecimento conduz a uma compreensatildeo do conhecimento como algo vinculado ao

potencial criativo humano Ou seja na medida em que Nietzsche liberta o conhecimento de

suas funccedilotildees de conservaccedilatildeo do ser humano que o aprisionam em uma realidade

convencionada simulada este passa a ser caracterizado como uma forma de atividade

artiacutestica ligada agrave criaccedilatildeo de valores Considerada assim a concepccedilatildeo de conhecimento que

Nietzsche poderia defender entende-se que ela tem de estar de acordo com o tipo de

filoacutesofo que o autor pressupotildee como sendo o filoacutesofo do futuro aquele que o autor elege

como seu sucessor espiritual

Motivos pelos quais Josef Simon em sua leitura da filosofia nietzschiana apresenta

as caracteriacutesticas de uma possiacutevel continuidade da filosofia nietzschiana em relaccedilatildeo agrave

tradiccedilatildeo Em sua leitura a filosofia nietzschiana se voltaria fundamentalmente contra dois

133 A relaccedilatildeo de Nietzsche com o ceticismo eacute bastante controversa resistindo em algumas passagens de suaobra uma avaliaccedilatildeo positiva da atitude ceacutetica em contraposiccedilatildeo a outras passagens em que o autor se mostraabertamente criacutetico do ceticismo De maneira bastante resumida poderia ser dito que o posicionamentonietzschiano com relaccedilatildeo ao conhecimento reflete certos aspectos da postura ceacutetica na exata medida em querejeita a abstenccedilatildeo ceacutetica propriamente Em outras palavras enquanto o filoacutesofo elogia um certocomedimento em se posicionar acerca da verdade tiacutepico de uma postura ceacutetica rejeita a inaccedilatildeo inerente a umconformismo ligado agrave uma rejeiccedilatildeo em opinar diante da compreensatildeo dos limites do conhecimento possiacutevelPara maiores informaccedilotildees sobre essa relaccedilatildeo conflituosa recomendamos a tese e doutoramento de RogeacuterioLopes de 2008 que consta na bibliografia e que serviu enormemente na elaboraccedilatildeo desta tese

249

aspectos da filosofia tradicional a questatildeo do valor que estaacute diretamente relacionada ao

correto proceder e a questatildeo do conhecimento Nesse sentido a questatildeo da verdade na

filosofia nietzschiana deveria ser compreendida agrave luz da concepccedilatildeo tradicional de verdade

Mais corretamente a busca irrevogaacutevel pela verdade que seria o traccedilo distintivo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica ateacute Nietzsche eacute considerado aqui o valor mesmo que eacute questionado na

filosofia nietzschiana

A filosofia contra a qual Nietzsche e seu conceito de filoacutesofo querem secolocar eacute uma filosofia que acima de tudo reflete sobre duas coisassobre a verdade e sobre o correto proceder (rechte Handeln) Por isso eacuteimportante refletir que a autocompreensatildeo contra a qual Nietzsche sevolta deve ser entendida em seu caraacuteter duplo A busca pela verdadedeve em si mesma ser considerada um valor Sem questionamentoacerca de se em cada caso este impulso para a verdade corresponderia aum procedimento correto A esse respeito diz Nietzsche o que o filoacutesofocomo ele o entende deveria fazer ldquoconhecer o que eacute necessaacuterio fazerrdquo(SIMON 1992 paacuteg 02 grifo do autor)

Segundo Simon a filosofia nietzschiana aquela que o autor pressupotildee como sendo

a filosofia a ser adotada pelos filoacutesofos do futuro deveria estar relacionada ao problema do

valor mesmo da verdade Na leitura do autor verdade e valor vatildeo de matildeos dadas na

filosofia nietzschiana na medida em que esta se mostraria como uma profunda reflexatildeo

acerca dos fundamentos do correto agir Pois para Nietzsche natildeo haacute nenhum conhecimento

puro o qual por meio de uma verdade pura nos seria acessiacutevel

Segundo a compreensatildeo de Simon a negaccedilatildeo de uma forma pura de conhecimento

significa na filosofia nietzschiana que o conhecimento natildeo pode ser libertado de seus preacute-

conceitos filosoacuteficos de sua visatildeo filosoacutefica de seus necessaacuterios ldquofundamentos iniciaisrdquo

Em comparaccedilatildeo agraves valoraccedilotildees nele contidas natildeo pode haver liberdade de avaliaccedilatildeo mas

apenas uma transvaloraccedilatildeo Por meio dessa transvaloraccedilatildeo atraveacutes da qual a filosofia

dominaria a ciecircncia em um tal sentido que permaneceria capaz de reavaliar suas

ldquoconcepccedilotildeesrdquo de base fixa ldquorestringirrdquo o ldquoilimitado instinto de conhecimento da unidade

(SIMON 1992 paacuteg 02) No entanto se compreendermos que o valor da verdade nessa

leitura seu valor moral em contraposiccedilatildeo ao seu valor para a constituiccedilatildeo de uma

250

estrateacutegia que propicia a ampliaccedilatildeo da potecircncia da vida eacute uma questatildeo fundamental que

conecta as concepccedilotildees nietzschianas de juventude agraves suas concepccedilotildees de maturidade

sobretudo por meio de uma consideraccedilatildeo do sentido tradicional de verdade e sua relaccedilatildeo

com as exigecircncias mesmas da vida estariacuteamos entatildeo de posse de um eixo de interpretaccedilatildeo

fundamental para caracterizar o posicionamento nietzschiano acerca do conhecimento e

em consequecircncia o fundamento do julgamento nietzschiano negativo em relaccedilatildeo agraves

concepccedilotildees morais

Desta maneira se as conclusotildees apresentadas por Nietzsche em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia na maturidade de seu pensamento a

verdade enquanto valor de manutenccedilatildeo da vida eacute confrontada com uma caracterizaccedilatildeo da

perspectiva como elemento de fortalecimento da vida Ainda segundo esta leitura valores

de manutenccedilatildeo da vida assumiriam uma posiccedilatildeo inferior com relaccedilatildeo aos valores de

fortalecimento da vida

Esta forma de compreensatildeo do problema dos valores jaacute aparece em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira onde uma das funccedilotildees primordiais da linguagem seria a criaccedilatildeo

de hierarquias Por sua vez no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia que em grande medida

retoma os argumentos apresentados no ensaio vemos Nietzsche novamente estabelecer a

cadeia de comando como uma das principais motivaccedilotildees para a criaccedilatildeo da linguagem Esta

ideia retornaraacute ainda em Genealogia da Moral na ideia da relaccedilatildeo conflituosa entre o

senhor e o escravo assim como na reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da

revoluccedilatildeo dos escravos Nestas passagens da obra nietzschiana uma mesma ideia eacute trazida

agrave luz a ideia de que as hierarquias de valor satildeo os instrumentos por meio dos quais se

estabelecem as relaccedilotildees de comando Por outro lado esta ideia aparece na filosofia

nietzschiana como reflexo de sua compreensatildeo da funccedilatildeo primordial do poder criativo

humano como algo relacionado agrave criaccedilatildeo de valores

Segundo esta leitura o proacuteprio niilismo considerado uma forma de ordenaccedilatildeo

cultural segundo a premecircncia de valores que se desvalorizam que perdem sua vitalidade

por forccedila de seu uso continuado refletiria ainda algo da ideia traduzida por Nietzsche na

imagem dos conceitos como moedas que perdem seu troquel e que passam a valer como

metal e natildeo mais como moedas Assim como os conceitos enquanto formas enfraquecidas

251

das intuiccedilotildees originaacuterias conserva ainda algo do potencial criativo inerente agrave organizaccedilatildeo

humana os valores de decadecircncia do niilismo seriam tambeacutem ao fim e ao cabo

expressotildees desse potencial Mas que apropriados por uma constituiccedilatildeo fisioloacutegica doente

expressam-se por meio da negaccedilatildeo mesma de seu elemento criativo que daacute lugar a uma

exaltaccedilatildeo de uma ilusoacuteria origem extramundana

Em outras palavras na medida em que a humanidade tornando-se cada vez mais

linguiacutestica cada vez mais dependente de uma realidade conceitual deixa de lado a

capacidade de constituir valores afirmativos abandona a potecircncia primordial de sua funccedilatildeo

criativa e passa a reproduzir valores com base em uma hierarquia da decadecircncia Por sua

vez o perspectivismo representaraacute a tentativa nietzschiana de revalidar a capacidade

criativa por meio da exposiccedilatildeo do caraacuteter artiacutestico existente em todo conhecimento Nesta

leitura o perspectivismo passaria a ser visto como tendo seus fundamentos na crenccedila de

que a criaccedilatildeo de valores eacute uma atividade inerente agrave organizaccedilatildeo humana

O problema da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal como este problema foi

apresentado na filosofia de juventude nietzschiana visto retrospectivamente pelo autor no

prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia representaria a tentativa dogmaacutetica de

estabelecer valores universais Desta maneira esta concepccedilatildeo de conhecimento passa a ser

compreendida como o contra perspectivismo por excelecircncia Eacute com base nesse tipo de

reflexatildeo acerca do conhecimento que Nietzsche jaacute no acima mencionado prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia trataraacute lado a lado o problema do pessimismo e a tentativa

socraacutetica de soluccedilatildeo do problema

E a ciecircncia mesma a nossa ciecircncia ndash sim o que significa em geralencarada como sintoma da vida toda a ciecircncia Para que pior ainda deonde ndash toda ciecircncia Como Eacute a cientificidade talvez apenas um temor euma escapatoacuteria ante o pessimismo Uma suacutetil legiacutetima defesa contra ndash averdade E amoralmente uma astuacutecia Oacute Soacutecrates Soacutecrates foi esteporventura o teu segredo ironista misterioso foi esta porventura a tuandash ironia (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14)

Com isso o autor que reflete acerca de sua obra de estreia com olhos voltados para

os problemas da maturidade do seu pensamento aponta para a insuficiecircncia de uma

concepccedilatildeo de conhecimento racionalista frente ao crescente pessimismo o niilismo

252

extremo oriundo da compreensatildeo da ausecircncia de valores na proacutepria existecircncia Nessa

reflexatildeo tardia acerca de seu pensamento de juventude o autor reflete acerca do otimismo

da razatildeo que eacute apresentada aqui como expressatildeo desesperada de cansaccedilo de ldquoinstintos que

se dissolvem anaacuterquicosrdquo (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14) Nesse sentido todo o

empreendimento cientiacutefico expresso aqui em um questionamento pela ldquonossa ciecircnciardquo eacute

tomado pelo autor com suspeita

Nessa reflexatildeo em que Nietzsche identifica como um dos problemas fundamentais

de O Nascimento da Trageacutedia o problema da ciecircncia e sua relaccedilatildeo com a arte a criaccedilatildeo

artiacutestica eacute concebida como a atitude humana que permitiria a superaccedilatildeo do pessimismo

inerente agrave existecircncia De tal maneira que a arte enquanto atitude superior a toda forma de

racionalizaccedilatildeo passaria a ser identificada como o local mesmo em que a ciecircncia deveria

ser pensada Posto que a ciecircncia mesma parece natildeo estar afeita a fazer sua criacutetica Mas a

arte por sua vez deveria se submeter ela tambeacutem a uma instacircncia superior tendo apenas

a vida como criteacuterio de julgamento

Estas satildeo por fim as caracteriacutesticas de uma filosofia perspectivista tal como

Nietzsche poderia tecirc-la formulado Uma compreensatildeo artiacutestica do valor que se potildee acima

da ciecircncia posto que deve determinar seu valor a partir de uma avaliaccedilatildeo das exigecircncias da

vida Assim se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas em sua filosofia de juventude nos potildee diante de uma forma de

niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo apenas ao niilismo

mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento

conduziria o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo Este niilismo exuberante surge em

consequecircncia da compreensatildeo de que desde que estamos diante de uma infinita

possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar aberto o homem pode assumir a

funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch schaffendes Subjekt segundo a

terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA 1 p 883]) Isto porquecirc ao nos

darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo humana nos descobrimos que

ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM V sect192) O oposto ao niilismo

deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano entendido como a afirmaccedilatildeo de

253

uma incondicional vontade de criar que se subleva na filosofia nietzschiana como

expressatildeo de uma tentativa de combater os valores de decadecircncia

254

5 Conclusatildeo

A compreensatildeo do conhecimento que encontramos entre as uacuteltimas reflexotildees

nietzschianas enquanto postura que nega as certezas e que retira da existecircncia qualquer

sentido e finalidade preacute-determinados qualquer essecircncia a ser desvendada associa-se a

uma anaacutelise da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores interna agraves concepccedilotildees metafiacutesicas

constituindo-se em uma postura acerca do conhecimento em que eacute negada a possibilidade

de se atingir verdades uacuteltimas e absolutas Assim a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

realidade como vontade de potecircncia configura um mundo em que a existecircncia de fatos em

si eacute aniquilada Nessa leitura todo acontecimento seria decorrecircncia do jogo de forccedilas que

buscam se afirmar a todo custo Desta maneira natildeo haacute acontecimentos modelos nem

nenhuma forma de previsatildeo dos acontecimentos Pois para o filoacutesofo antes que um fato

seja percebido ele precisa ser projetado pela dinacircmica das forccedilas interna agrave vontade de

potecircncia

Sob a luz dessa compreensatildeo podemos ver que a criacutetica nietzschiana agrave moral e agrave

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento satildeo consequecircncias de uma compreensatildeo estrutural

acerca da muacutetua relaccedilatildeo entre valor e conhecimento Nesse sentido a criacutetica nietzschiana agrave

moral apareceria como uma consequecircncia da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees

tradicionais de conhecimento e verdade E estas em consequecircncia da criacutetica nietzschiana agrave

concepccedilatildeo tradicional de valor

Acima de tudo eacute a pretensatildeo de um conhecimento desinteressado que estaacute em jogo

nestas criacuteticas Para o filoacutesofo um conhecimento orientado pelos instintos errados perverte

no pesquisador a noccedilatildeo de utilidade Assim o instinto que motiva o pesquisador asceacutetico

conduziria agrave formulaccedilatildeo de um mundo de estabilidade que surge da negaccedilatildeo do mundo

aparente fazendo parecer o conhecimento de verdades uacuteltimas mais necessaacuterio do que o

conhecimento das aparecircncias

255

Suponha que um desejo corporal de contradiccedilatildeo e anti-natureza sejalevado a filosofar sobre o que ele vai perder seu iacutentimo arbitraacuteria Emque o mais seguro de todos para ser verdade eacute percebido como real eleestaacute procurando o erro apenas quando o verdadeiro instinto de vida averdade atribui agrave maioria absoluta (GMGM Livro III sect12)

Com base nesta compreensatildeo negativa da atuaccedilatildeo do ideal asceacutetico a interpretaccedilatildeo

nietzschiana da natureza do conhecimento configura-se como uma forma de renuacutencia a

qualquer pretensatildeo de verdade definitiva acentuando mesmo que a filiaccedilatildeo entre

conhecimento e a vontade de verdade natildeo seria algo automaacutetico natural mas decorrente da

permanecircncia na histoacuteria do pensamento de uma postura que identifica ambos

procedimentos Ainda segundo esta compreensatildeo criacutetica somente em uma acepccedilatildeo

decadente fraca o conhecimento poderia ser considerado apropriaccedilatildeo da objetividade

desejo de atingir a realidade uacuteltima por traacutes de cada aparecircncia

Posto que conhecer a verdade se torna algo contraditoacuterio na leitura nietzschiana

desde que conhecer aqui significa interpretar segundo os ditames da consciecircncia e nossas

necessidades bioloacutegicas a identificaccedilatildeo que torna redundante a expressatildeo conhecimento da

verdade seria a uacuteltima expressatildeo de um movimento moral decadente em que a busca da

verdade se sobrepotildee agrave pulsatildeo criativa onde a busca de estabilidade se eleva acima do

impulso afirmativo que nos impulsiona a desdobrar a realidade em formas sempre novas

Desta maneira a atividade do pesquisador passa a ser pensada em uma relaccedilatildeo de

proximidade com a atividade artiacutestica em seu caraacuteter criativo em contraposiccedilatildeo ao

procedimento teoacuterico que se norteia pela busca de verdades uacuteltimas A oposiccedilatildeo que

Nietzsche atribui ao pesquisador contemplativo em relaccedilatildeo ao teoacuterico da criaccedilatildeo jaacute

aparece em seu Assim Falava Zaratustra atraveacutes da condenaccedilatildeo da concepccedilatildeo de um

imaculado conhecimento

ldquopara mim seria a coisa mais elevada (assim diz a si mesmo o vosso falsoespiacuterito) olhar a vida sem cobiccedila e natildeo como catildees com a liacutengua de fora

Ser feliz na contemplaccedilatildeo com a vontade morta isento de capacidade ede apetite egoiacutesta frio de corpo mas com os olhos embriagados de luaPara mim seria o melhor (assim se engana a si mesmo o enganado) amara terra como a luz a ama e tocar na sua beleza apenas com os olhos

Eis o que eu chamo o imaculado conhecimento de todas as coisas natildeoquerer das coisas mais do que poder estar diante delasrdquo hipoacutecritas

256

afetados e lascivos Falta-vos a inocecircncia do desejo e por isso caluniais odesejo

Voacutes natildeo amais a terra como criadores como geradores satisfeitos de criar(ZaZA Livro II Do imaculado Conhecimento)

Este aspecto da postura nietzschiana poderia ser confundido com uma espeacutecie de

subjetivismo se jaacute natildeo tiveacutessemos visto por meio da referecircncia aos poacutestumos que

Nietzsche se previne de tal criacutetica ao alegar que jaacute haacute interpretaccedilatildeo ao se subentender um

sujeito que conhece ldquoO lsquosujeitorsquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais inventado posto

por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia

hipoacuteteserdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Ora se Nietzsche rejeita a ideia de um sujeito por

traacutes das interpretaccedilotildees concepccedilatildeo entendida aqui como parte de uma interpretaccedilatildeo que

seguindo os ditames da loacutegica e da gramaacutetica teria sido tornado hegemocircnica134 entatildeo o

perspectivismo natildeo poderia ser confundido com uma teoria subjetivista da verdade

De fato a criacutetica agrave suposiccedilatildeo da categoria de sujeito como algo necessaacuterio para o

processo do conhecimento considerada em contraposiccedilatildeo com a afirmaccedilatildeo da hegemonia

da interpretaccedilatildeo levanta duas perguntas inevitaacuteveis ldquoquem interpretardquo e ldquoaquele que

interpreta interpreta o quecircrdquo Se natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees eacute necessaacuterio

estabelecer o que se interpreta e quem interpreta A resposta nietzschiana a ambas as

questotildees estaacute diretamente relacionada agrave sua teoria da vontade de potecircncia Segundo esta a

interpretaccedilatildeo seria o resultado da atividade de um complexo de forccedilas de pulsotildees que

cada uma por sua vez tem sua proacutepria interpretaccedilatildeo e gostaria de impocirc-la sobre as outras

interpretaccedilotildees

Segundo esta leitura em que seriam nossas necessidades a interpretar a realidade

segundo a pressatildeo de nossa necessidade de sobrevivecircncia cada forccedila tentaria se afirmar

como valor sob as demais forccedilas agrupando-se em comunidades com um objetivo em

comum constituindo na medida deste agrupamento determinadas escalas de avaliaccedilatildeo

Esta ambiccedilatildeo despoacutetica das vontades segundo a qual mesmo a palavra dominaccedilatildeo

apareceria como uma interpretaccedilatildeo paacutelida seria o fundo irracional de toda formaccedilatildeo de

valor

134 De fato parte fundamental da teoria perspectivista acerca do conhecimento se baseia na criacutetica deNietzsche a categoria de sujeito Nesta interpretaccedilatildeo estamos de acordo com a opiniatildeo de Antocircnio Marquesque vecirc no sujeito auto-afirmativo da modernidade a matriz do perspectivismo considerado em sua acepccedilatildeo deteoria do conhecimento em Nietzsche (MARQUES 2003 paacuteg 16)

257

Se um sujeito eacute uma representaccedilatildeo segundo uma certa organizaccedilatildeo das forccedilas entatildeo

toda interpretaccedilatildeo que parte de um sujeito seria uma forma destas forccedilas se imporem como

norma Assim as interpretaccedilotildees satildeo ferramentas atraveacutes das quais cada sujeito tenta

implantar sua forma de ver o mundo cada interpretaccedilatildeo eacute a tentativa de imposiccedilatildeo de um

mundo verdadeiro mas tal interpretaccedilatildeo sempre carrega consigo seu ponto de vista o que

fica impliacutecito quando da associaccedilatildeo de vaacuterias subjetividades que em conjunto tentam

fazer valer como mundo verdadeiro o mundo compartilhado entre tais subjetividades

Desta forma o perspectivismo apareceria como uma forma complexa de especificidade ou

seja como a manifestaccedilatildeo da especificidade de uma certa interpretaccedilatildeo mediante a

consideraccedilatildeo da multiplicidade de forccedilas que atuam em sua formulaccedilatildeo como Nietzsche

nos faz perceber em um poacutestumo de 1888

O perspectivismo eacute soacute uma forma complexa de especificidade - meumodo de ver eacute que cada corpo especiacutefico anseia por tornar-se senhor detodo espaccedilo por estender sua forccedila (-- sua vontade de poder) e repelirtudo que obsta agrave sua expansatildeo Mas ele se depara continuamente com omesmo ansiar de outros corpos e termina por arranjar-se (ldquounificar-serdquo)com aqueles que lhe satildeo aparentados o bastante ndash assim eles conspiramentatildeo juntos pelo poder E o processo segue adiante (NFFP 188814[186])

Decorre da passagem citada que na organizaccedilatildeo das pulsotildees que tentam se

estabelecer como estruturas determinantes em um processo de assimilaccedilatildeo da realidade

surgem novas interpretaccedilotildees que tentam impor-se como verdade uacuteltima Seria desse modo

por exemplo que o pensamento filosoacutefico compreendendo o sujeito como estrutura

fundamental da psique humana associa-se ao pensamento fiacutesico que estipula o aacutetomo

como estrutura fundamental da mateacuteria Ambas as interpretaccedilotildees satildeo oriundas de um

mesmo impulso a verdade definitiva e estaacutevel que na filosofia nietzschiana natildeo se

encontra em parte alguma da realidade Assim ele nega tanto o aacutetomo quanto o sujeito

atocircmico denunciando-os como interpretaccedilotildees grosseiras de um processo muito mais

complexo Mas se de fato ocorre dessa forma entatildeo sempre restaraacute a duacutevida de se o

perspectivismo enquanto ela mesma uma representaccedilatildeo complexa da especificidade de

suas conclusotildees deveria ou natildeo ser aceito como posiccedilatildeo verdadeira

258

Do mesmo modo apesar de a validade do perspectivismo enquanto posiccedilatildeo acerca

do conhecimento permanecer inalterada em face do caraacuteter interpretativo de suas

conclusotildees parece persistir a contradiccedilatildeo entre a aceitaccedilatildeo da validade das posiccedilotildees

oriundas do ascetismo cientiacutefico e sua condenaccedilatildeo moral que eacute proacutepria do perspectivismo

A oposiccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano para com o ideal asceacutetico se daria por

meio da anaacutelise genealoacutegica do ideal asceacutetico que o filoacutesofo executa nas trecircs dissertaccedilotildees

que compotildee a Genealogia da Moral

Nesta anaacutelise genealoacutegica o filoacutesofo filia o comportamento de negaccedilatildeo da

corporeidade o caraacuteter mais imediato da vida ao meacutetodo de pesquisa e criteacuterio de validade

que fundamentam a ciecircncia positiva e o pensamento metafiacutesico Desta maneira na medida

em que sua reflexatildeo pretende oferecer uma reavaliaccedilatildeo dos princiacutepios do ideal asceacutetico

seu perspectivismo oferece-se justamente como uma exaltaccedilatildeo do corpo A contraposiccedilatildeo

nietzschiana ao ideal asceacutetico passaria entatildeo a fundamentar-se nesta exaltaccedilatildeo da

corporeidade de onde sua contraposiccedilatildeo agrave tal postura mediante a especulaccedilatildeo de uma

atividade cientiacutefica e filosoacutefica seria contraacuteria aos princiacutepios desta Ou seja se a

condenaccedilatildeo moral do ideal asceacutetico se fundamenta em uma investigaccedilatildeo desse segundo os

princiacutepios do perspectivismo nietzschiano entatildeo esta condenaccedilatildeo natildeo pode ser tomada

como tendo um fundamento verdadeiro mas apenas um fundamento especiacutefico relacional

A criacutetica ao ideal asceacutetico assim como a descriccedilatildeo de seus fundamentos como

parte do perspectivismo nietzschiano natildeo poderia ser aceito como certeza mas apenas

como manifestaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica gestada a partir dos valores que

norteiam a reflexatildeo nietzschiana Esta contradiccedilatildeo soacute pode ser solucionada aparentemente

pela consideraccedilatildeo de uma opiniatildeo especiacutefica de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave postura

metafiacutesicocientiacutefica e sua adesatildeo ao programa asceacutetico Por outro lado esta posiccedilatildeo eacute

suportada pelo caraacuteter experimental de toda filosofia nietzschiana

A concepccedilatildeo nietzschiana de experimentalismo supotildee que nesse caso natildeo se trata

tanto de se colocar em uma perspectiva mais elevada mas de deslocar perspectivas poder

se movimentar entre interpretaccedilotildees divergentes com certa liberdade A esse respeito

Muumlller-Lauter esclarece que Nietzsche baseado no constante questionar de todas as suas

posiccedilotildees eacute levado a assumir o caraacuteter experimental de sua filosofia sem com isso rejeitar

sua validade Atraveacutes das perguntas fundamentais sobre a validade e alcance das posiccedilotildees

nietzschianas Muumlller-Lauter representa a posiccedilatildeo experimental do pensamento

259

nietzschiano como a inclusatildeo de sua filosofia enquanto interpretaccedilatildeo vaacutelida entre outras

interpretaccedilotildees vaacutelidas

A perspectividade de toda interpretaccedilatildeo torna-se um problema que porfim ricocheteia sobre o proacuteprio filosofar nietzschiano quando pensamosque entre as inumeraacuteveis interpretaccedilotildees de um texto natildeo haacute ldquonenhumainterpretaccedilatildeo lsquocorretarsquordquo Natildeo temos qualquer direito de admitir umldquoconhecedor absolutordquo ldquoo caraacuteter perspectivo enganoso pertence agraveexistecircnciardquo Entatildeo toda explicaccedilatildeo do mundo eacute tambeacutem umainterpretaccedilatildeo perspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos doque aquela que compreende todo acontecer do mundo como o caos devontade de poder cooperantes e combatentes Em consequecircncia disso ldquoordquomundo concebido como uma soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeoperspectivista do mundo ao lado de inuacutemeras outras Em face dafundamental relatividade de explicar-o-mundo o que poderia ser aduzidoem favor da ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiano (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacuteg 126)

Se natildeo haacute algo como uma posiccedilatildeo definitiva nem em se tratando do conhecimento

nem em se tratando de nada mais entatildeo em nosso agir limitado soacute nos caberia o papel

experimental segundo o qual vivemos para testar possibilidades sem garantias de soluccedilatildeo

de problemas teoacutericos Nesta leitura a preocupaccedilatildeo fundamental de um pesquisador

comprometido com a vida natildeo pode ser a sua elucidaccedilatildeo definitiva mas a praacutetica de

meacutetodos que lhe possibilitem experimentar um maior contato com a vida atraveacutes do

sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia Assim concordamos com o modo de ver de Scarlet

Marton para quem o pensamento nietzschiano natildeo pode ser analisado independentemente

de seu caraacuteter experimental Posto que aqui se trataria de uma postura frente ao

conhecimento e sua relaccedilatildeo com a vida que justifica o experimentalismo de sua filosofia

assim como sua opccedilatildeo pelo meacutetodo de escrita que o filoacutesofo adotou

Ora perspectivismo e experimentalismo estatildeo de certa formarelacionados Tanto Loumlwith quanto Kaufmann ressaltam o caraacuteterfundamentalmente experimental do pensamento nietzschiano e insistemno fato de o filoacutesofo ter colocado o estilo aforismaacutetico a serviccedilo de seuexperimentalismo Os aforismos tentativas renovadas de refletir sobrealgumas questotildees possibilitariam experimentos com o proacuteprio pensarSatildeo vaacuterios os textos em que Nietzsche convida o leitor agrave experimentaccedilatildeoseja por entender que noacutes humanos natildeo passamos de experiecircncias ou por

260

acreditar que natildeo nos devemos furtar a fazer experiecircncias com noacutesmesmos Em Para aleacutem de bem e mal refere-se aos novos filoacutesofos comoexperimentadores como os que tecircm o dever ldquodas cem tentativas das cemtentaccedilotildees da vidardquo E num fragmento poacutestumo chega a declarar ldquosempreescrevi minhas obras com todo o meu corpo e minha vida ignoro o quesejam problemas lsquopuramente espirituaisrsquordquo (IX 4 (285)) Concebendo avida como possibilidade de ldquoexperimentaccedilatildeo de conhecimentordquo percorremuacuteltiplos caminhos (MARTON 1990 paacuteg 22)

Nietzsche daacute exemplo de sua consideraccedilatildeo experimental acerca do conhecimento

atraveacutes de sua proacutepria praacutetica filosoacutefica que lhe levou a optar por uma forma de expressatildeo

contraacuteria a todas as determinaccedilotildees uacuteltimas o que confere a seus trabalhos o caraacuteter de pilha

de escombros sobretudo se comparado com os elegantes edifiacutecios teoacutericos da tradiccedilatildeo

metafiacutesica Sua assistematicidade e sua opccedilatildeo pelo aforismo satildeo exemplos vivos da

atividade de uma mente inquieta que jamais procurou a calma de determinaccedilotildees absolutas

mas que fez de sua filosofia um manifesto de uma praacutetica experimental plena e afinada

com sua vida nocircmade Nesse sentido Schacht conclui que

A abordagem perspectivista de Nietzsche estaacute ligada ao caraacuteterexperimental que segundo ele esse tipo de pensamento filosoacutefico possuiO problema eacute tratado pelo filoacutesofo de forma experimentalmenteprovisoacuteria e aberta A conclusatildeo de seus argumentos a respeito deproblemas especiacuteficos em quaisquer de seus trabalhos nunca eacute completaou final pois permanece sempre aberta agrave revisatildeo quando investigaccedilotildeesposteriores forem conduzidas envolvendo outras abordagens quepoderiam iluminar ainda mais a questatildeo135 (SCHACHT 1996 Paacuteg154)

Assim sua filosofia em seu caraacuteter mais refinado enquanto pensamento acerca do

valor da verdade ou seja da verdade vista como valor requer uma nova visatildeo do

verdadeiro onde a crenccedila no mundo ideal no ldquomundo verdadeirordquo comportaria a maior

falsidade a mais grosseira covardia e assim se torna o erro por excelecircncia A coragem de

que deve ser dotado todo pesquisador se mede pela sua sauacutede sua sauacutede pela sua toleracircncia

135 ldquoNietzsches perspectivist approach is connected with the ldquoexperimentalrdquo character he ascribes to hiskind of philosophical thinking His treatment of problems is avowedly merely provisional and openended Theupshot of what he has to say about specific problems in any of these works is never complete and final for italways remains open to revision when subsequent investigations are undertaken involving yet otherapproaches that may shed further light upon themrdquo

261

a verdade como renuacutencia a todo finalismo a toda acircnsia pelo conhecimento verdadeiro A

verdade se encontra sempre aleacutem no proibido para onde tendem os ldquosem medordquo

Quanta verdade suporta quanta verdade ousa um espiacuterito Cada vez maispara mim tornou-se isso a medida de valor Erro (a crenccedila no ideal) natildeo eacutecegueira erro eacute covardiacada conquista cada passo adiante noconhecimento eacute consequecircncia da coragem da dureza consigo da limpezaconsigohellip eu natildeo refuto os Ideais apenas ponho luvas diante delesNitimur in vetitum com esse signo venceraacute um dia minha filosofia poisateacute agora proibiu-se em princiacutepio somente a verdade (EHEH Proacutelogosect 2)

O perspectivismo torna-se assim uma descriccedilatildeo provisoacuteria das concepccedilotildees de

verdade e conhecimento que pode ser extraiacuteda do pensamento nietzschiano e que supotildee a

fragilidade de qualquer postulaccedilatildeo de verdades Por isso esta interpretaccedilatildeo natildeo pretende

ser definitiva mas reconhece na impossibilidade de se chegar a uma resposta definitiva um

elemento fundamental da eacutetica da pesquisa o uacuteltimo teste para o pesquisador realmente

comprometido com a pesquisa

A proacutepria distinccedilatildeo moral entre bem e mal nada mais representaria assim do que

um esquecimento do caraacuteter perspectivo desses valores da desconsideraccedilatildeo da atuaccedilatildeo da

capacidade criativa que eacute natildeo apenas a principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo de valores mas a

principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo da proacutepria realidade de seu tornar-se real Dado que o

mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo que aqui natildeo se distingue mais da criaccedilatildeo do

mundo e com ele do proacuteprio homem o reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo como a

aceitaccedilatildeo de que natildeo podemos evitar o fato de que nossa atividade confere valor agrave

realidade porque nossa proacutepria realidade incluiacutedos noacutes mesmos dependemos da avaliaccedilatildeo

em um niacutevel fundamental Assim seja como elemento mais fundamental da constituiccedilatildeo

humana seja como caraacuteter mesmo da existecircncia a criaccedilatildeo se sobrepotildee aos valores posto

que lhes eacute anterior Se essa avaliaccedilatildeo por sua vez apenas se realiza mediante a

perspectividade que eacute o caraacuteter mesmo da existecircncia entatildeo a perspectiva aparece ao lado

da vida como valor fundamental para o homem

Como se vecirc esta compreensatildeo da moral se distancia de toda concepccedilatildeo moral que

pressupotildee o conhecimento do bem e do mal que pressupotildee haver encontrado esse

conhecimento fora de si O moralista dogmaacutetico aqui age como um criador que ignora sua

262

criaccedilatildeo ou que tenciona fazecirc-la passar como proacuteprio reflexo de uma realidade superior

Tambeacutem por isso toda caracterizaccedilatildeo do bem e do mal como coisas em si como ideias

normativas seriam falsificaccedilotildees da realidade do criar Pois valores mesmo os valores

morais apenas podem ser concebidos como criaccedilotildees nunca como realidades

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir E eacute este conhecimento que se revela a Zaratustra como um

despertar de uma crenccedila que adormece e que conduz agrave superaccedilatildeo dos antigos valores da

antiga distinccedilatildeo do bem e mal como algo fixo independente de interpretaccedilatildeo Em

contraposiccedilatildeo agrave crenccedila na fixidez das concepccedilotildees acerca do bem e do mal o profeta do

super-homem ensina ldquoSoacute o que cria o fim dos homens e o que daacute o sentido e futuro agrave terra

soacute esse cria o bem e o mal de todas as coisasrdquo (ZAZa III Das antigas e novas taacutebuas

sect2) Esta contraposiccedilatildeo fundamental entre uma moral dogmaacutetica e uma moral como

reconhecimento das superaccedilotildees de cada povo oferece um modelo de como se relacionam

no pensamento nietzschiano sua concepccedilatildeo perspectivista e sua criacutetica a uma concepccedilatildeo

dogmaacutetica de conhecimento

E seraacute esse mesmo ldquocriar o fim dos homensrdquo que relacionando-se intimamente com

a capacidade criativa por traacutes da formaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que compotildeem as diferentes

perspectivas que daraacute margem agrave concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento como criaccedilatildeo

Assim considerados todos os principais conceitos da obra nietzschiana na melhor das

hipoacuteteses como hipoacuteteses e na pior delas como produtos de uma atividade poeacutetica inerente

a toda accedilatildeo humana tal qual qualquer obra de arte como considerar com seriedade seu

pensamento Tudo sendo dito se toda verdade eacute abandonada por Nietzsche qual poderia

ser sua doutrina Resta ainda algo que se possa chamar uma doutrina em seu pensamento

Aqui seria preciso ouvir o autor

Qual pode ser a nossa doutrina ndash Que ningueacutem daacute ao ser humano suascaracteriacutesticas nem Deus nem a sociedade nem seus pais e ancestraisnem ele proacuteprio (ndash o contra-senso dessa uacuteltima ideia rejeitada foi

263

ensinado como lsquoliberdade inteligiacutevelrsquo por Kant e talvez jaacute por Platatildeo)Ningueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado porse achar nessas circunstacircncias nesse ambiente A fatalidade do seu sernatildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacute Ele natildeo eacuteconsequecircncia de uma intenccedilatildeo uma vontade uma finalidade proacutepriascom ele natildeo se faz a tentativa de alcanccedilar um lsquoideal de ser humanorsquo ouum lsquoideal de felicidadersquo ou um lsquoideal de moralidadersquo ndash eacute absurdo quererempurrar o seu ser para uma finalidade qualquer Noacutes eacute que inventamos oconceito de lsquofinalidadersquo na realidade natildeo se encontra finalidadehellip Cadaum eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndashnatildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser poisisto significaria julgar medir comparar condenar o todohellip Mas natildeoexiste nada fora do todo ndash O fato de que ningueacutem mais eacute feitoresponsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causaprima de que o mundo natildeo eacute uma unidade nem como sensorium nemcomo lsquoespiacuteritorsquo apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacutenovamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-serhellip O conceito de lsquoDeusrsquofoi ateacute agora a maior objeccedilatildeo agrave existecircnciahellip Noacutes negamos Deus noacutesnegamos a responsabilidade em Deus apenas assim redimimos o mundondash (GDCI VI sect8)

Por fim natildeo faria sentido a defesa de uma doutrina do perspectivismo dentro da

filosofia nietzschiana porque o filoacutesofo mesmo rejeita o valor de toda doutrina Em outras

palavras o filoacutesofo compreende que verdade e o erro natildeo estatildeo colocados de uma vez por

todas no real Pois jaacute em sua filosofia de juventude conclui que a realidade natildeo possui

ordem ou desordem Assim o mundo se o considerarmos em si mesmo independente do

homem natildeo eacute afeito a coisas como erro verdade mentira bem ou mal

O que Nietzsche reconhece como sua uacuteltima doutrina eacute a inocecircncia do devir sua

falta de propoacutesito Para tanto o autor se prende agrave ideia de uma inexistecircncia absoluta de um

ser absoluto ou uma existecircncia fora do todo que eacute o acircmbito do perspectivo Nessa leitura a

realidade natildeo possuiria valor em si valores natildeo-humanos Todo valor eacute decorrecircncia da

atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo com interpretaccedilotildees muito

proacuteprias ligadas desde sua origem agrave ordem de suas necessidades Por isso o filoacutesofo afirma

ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie () traz entatildeo um esplecircndido cortejo de

motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer esquecer que no fundo eacute impulso instinto

tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1) Assim Nietzsche concebe o mundo como uma

decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se

carregado de sentido a partir da existecircncia humana

264

Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto seria por

definiccedilatildeo sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana

natildeo eacute guiada por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima

instacircncia a accedilatildeo humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento Nessa

leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a finalidade a

moralidade o sentido satildeo tomados pro Nietzsche com instacircncias do instinto de

conservaccedilatildeo nos seres humanos

Se natildeo haacute por fim um sentido uacuteltimo para o homem entatildeo os diferentes valores

natildeo passam de padronizaccedilotildees humanas inexistentes no mundo mesmo Pois como nos diz

o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a

relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e

entremesclar nas coisas esse mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre

fizemos ou seja mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim

a uma atribuiccedilatildeo humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de

sobrevivecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

Em Nietzsche de modo contraacuterio agravequele da tradiccedilatildeo ocidental de pensamento a

crenccedila se torna mais importante do que a verdade O valor da verdade em sua leitura

estaria vinculado agrave vida e seu fortalecimento que dependem mais fundamentalmente da

crenccedila do que na verdade contida nela Neste sentido desde que o filoacutesofo entende que a

condiccedilatildeo de tudo que vive eacute a perspectividade julga mais provaacutevel encontrar a verdade na

pluralidade de perspectivas do que na hipoacutetese de uma verdade imoacutevel apartada das

condiccedilotildees em que a vida mesma teria se originado e evoluiacutedo Por esta razatildeo Nietzsche

entende toda tentativa de aproximaccedilatildeo da verdade das filosofias anteriores como o esforccedilo

frustrado de captar uma objetividade inexistente em si que apenas pode existir na

totalidade de perspectivas que por sua vez seria inapreensiacutevel

Mas se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas especialmente em sua filosofia de juventude nos potildee diante

de uma forma de niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo

apenas ao niilismo mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento conduziria

265

o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo

Este niilismo exuberante surge em consequecircncia da compreensatildeo de que desde que

estamos diante de uma infinita possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar

aberto o homem pode assumir a funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch

schaffendes Subjekt segundo a terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA

1 p 883]) Isto porquecirc ao nos darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo

humana noacutes descobrimos que ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM

V sect192) O oposto ao niilismo deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano

entendido como a afirmaccedilatildeo de uma incondicional vontade de criar que se subleva nesse

pensamento como expressatildeo de uma tentativa de combater os valores do niilismo

266

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Behler Wolfgang Muumlller-Lauter Heinz Wenzel Ed Walter de Gruyter Berlin New York

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BORNEDAL Peter The Surface and the Abyss Nietzsche as Philosopher of Mind and

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Monographien und Texte zur Nietzsche-Forschung Band 19 Walter de Gruyter Berlin-

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Edsbuchhandlung Hermann Heyfelder Berlin 1885

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organizador von Volker Gerhardt Ed Akademische Berlin 2010

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Geistes Neuere Aufsaumltze zu Nietzsches Philosophie der Zukunft organizador Jan-

Christoph Heilinger Nikolaos Loukidelis Ed De Gruyter Berlin New York 2011

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republicada com a autorizaccedilatildeo do autor conforme copyright by Edmund Gettier 1966

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Editora da Unicamp Campinas 1997

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Ed Herbert Grundman Bonn 1976

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Paris 1966

HAAR Michel Nietzsche et la meacutetaphysique Ed Gallimard Paris 1993

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KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist (Vierten

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uumlbersetzen vom dem Franzoumlsischen von Patrick Baum DenkMal Ed Bonn 2004

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Friedrich Nietzsches Gedankewelt nach begriffen und namen aus dem text entwicket von

Richard Oehler Saumlmtliche Werk in Zwoumllf Baumlnden Alfred Kroumlner Ed Band XII Stuttgart

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Benedito Nunes 3ordf ediccedilatildeo revisada Ed Editora universitaacuteria UFPA Beleacutem 2001

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SCHACHT Richard Nietzschersquos Kind of Philosophy in The Cambridge Companion to

Nietzsche Ed Cambridge University Press Cambridge (paacuteginas 151-179) 1996

SCHATZKI Theodore Ancient and Naturalistic Themes in Nietzschersquos Ethics In

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SCHRIFT Alan D Between Perspectivism and Philology Genealogy as Hermeneutic

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Identity Mimesis and the Uumlbertragung of Cultures in Nietzschersquos Early Thought In

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SIMON Josef Das neue Nietzsche-Bild Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr

die Nietzsche-Forschung Band 21 Herausgeber Heinz Wenzel Walter de Gruyter Berlin

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Alethiologie auf dem Hintergrund der Kantischen Kritik Nietzsche Studien

Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Gedenkband fuumlr Mazzino

Montinari Band 18 Walter de Gruyter Berlin New York 1989 (Paacutegs 242-259)

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____________ Grammatik und Wahrheit Uumlber das Verhaumlltnis Nietzsches zur

spekulativen Satzgrammatik der metaphysischen Tradition Nietzsche Studien

Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 1 Walter de Gruyter Berlin

New York 1972 (Paacutegs 01-26)

SOLOMON Robert C Nietzsche ad hominem Perspectivism personality and

ressentiment in The Cambridge Companion to Nietzsche Ed Cambridge University

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SOUSA Maria Cristina dos Santos Demoacutecrito O racionalismo como representaccedilatildeo

artiacutestica do mundo segundo o Filoacutesofo Friedrich Nietzsche In Kalagatos V4 nordm 7

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Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo Ed De Gruyter Berlin

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___________________ Darwin Darwinismus Nietzsche Zum Problem der

Evolution In Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung

Band 16 Ed Walter de Gruyter Berlin New York 1987 (paacuteginas 0264-0287)

STRAUSS Leo Note on the Plan of Nietzschersquos Beyond Good and Evil In Studies in

Platonic Political Philosophy With an Introduction by Thomas Pangle The University of

Chicago Press Chicago 1983 (paacuteginas 174-191)

TEO Thomas Friedrich Albert Lange On Neo-Kantianism Socialist Darwinism and

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doutoramento defendida junto ao Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UNICAMP

orientador Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo 2014

___________________ A Filosofia da Filosofia de Nietzsche uma releitura de F

Kaubach revista Sofia Vol 3 Nordm 2 JulhoDezembro Vitoacuteria 2014 (paacuteginas 216-231)

WERNER Johannes Maximilian Erkenntnis un Wahrheit Nietzsches Destruktion de

Erkenntnistheorie als Konsequenz des Verlustes verbindlicher Wahrheit Ed Peter

Lang Frankfurt am Main Bern New York 1986

WILCOX John T Nietzsche Scholarship and ldquoThe Correspondence Theory of Truthrdquo

The Danto Case Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-

Forschung Band 15 Walter de Gruyter Berlin New York 1986 (paacuteginas 337-357)

WISE Isaac M The Cosmic God A fundamental philosophy in popular lectures

Office American Israelite and Deborah Cincinati-Ohio 1876

WOHLFART Guumlnter Zusatz zum Titel ein Nietzsche-Brevier Ed Koumlnigshausen amp

Neuman Wuumlrzburg 1991

YOUNG Julian Nietzschersquos philosophy of art Ed Cambridge University PressCambridge 1992

276

Erklaumlrung

Hiermit versichere ich an Eides statt dass ich die vorliegenden Dissertation selbststaumlndig

und ohne unzulaumlssige Inanspruchnahme Dritter verfasst habe Ich habe dabei nur die

angegebenen oder unveroumlffentlichten Quellen und Hilfsmittel verwendet und die aus

diesen woumlrtlich inhaltlich oder sinngemaumlszlig entnommenen Stellen als solche den

wissenschaftlichen Anforderungen entsprechend kenntlich gemacht Die Versicherung

selbststaumlndiger Arbeit gilt auch fuumlr Zeichnungen Skizzen oder graphische Darstellungen

Die Arbeit wurde in gleicher oder aumlhnlicher Form weder derselben noch einer anderen

Pruumlfungsbehoumlrde vorgelegt und auch noch nicht veroumlffentlicht Mit der Abgabe der

elektronischen Fassung der endguumlltigen Version der Arbeit nehme ich zur Kenntnis dass

diese mit Hilfe eines Plagiatserkennungsdienstes auf enthaltene Plagiate uumlberpruumlft und

ausschlieszliglich fuumlr Pruumlfungszwecke gespeichert wird Es ist mir bekannt dass wegen einer

falschen Versicherung bereits erfolgte Promotionsleistungen fuumlr unguumlltig erklaumlrt werden

und eine bereits verliehene Doktorwuumlrde entzogen wird

Fortaleza 03 de Abril de 2019

_________________________________________________

Joatildeo Pereira da Silva Neto

Kandidat fuumlr Promotion in Philosophie an der Federal University of Cearaacute und Kandidat

fuumlr Promotion in Philosophie bei Fakultaumlt fuumlr Kultur und Sozialwissenschaften von der

FernUniversitaumlt in Hagen

277

Page 3: A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas

JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO

A PERSPECTIVA DO VALOR

E O VALOR DAS PERSPECTIVAS

FORTALEZA

2019

Tese apresentada como requisito parcial agrave

obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia junto

ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Instituto de Cultura e Arte - ICA

Universidade Federal do Cearaacute ndash UFC

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Conhecimento e

Linguagem

A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DASPERSPECTIVAS

DISSERTATION

zur Erlangung

des akademischen Grades eines Doktors der Philosophie (Dr phil) im Rahmen des FILORED-Doppelpromotionsprogramms

der Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissenschaften der FernUniversitaumlt in Hagen sowie der Universidade Federal do Cearaacute Instituto de Cultura e Arte

Programa de Poacutes-graduacatildeo em Filosofiacutea

vorgelegt von

Joatildeo Pereira da Silva Neto

aus Fortaleza

Betreuer Prof Dr Thomas Soumlren Hoffmann (Hagen)Prof Dr Fernando R de Moraes Barros (Fortaleza)

Promotionsfach Philosophie

RESUMO

A presente tese tem por objetivo uma investigaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas acerca da

verdade e do conhecimento tomando como eixos de investigaccedilatildeo o problema dos valores e

a relaccedilatildeo entre a perspectiva e a vida no pensamento nietzschiano Esta investigaccedilatildeo que

partindo dos textos de juventude nietzschianos chega ateacute seus uacuteltimos escritos poacutestumos

acompanha o entrelaccedilamento das conclusotildees nietzschianas acerca da concepccedilatildeo tradicional

de verdade e o niilismo Nesta leitura o conhecimento aparece como uma forma de

atividade humana que passa por uma reavaliaccedilatildeo a partir das conclusotildees nietzschianas

acerca da necessidade de se superar o niilismo Para Nietzsche a concepccedilatildeo de

conhecimento tradicional estaria fundada em valores que satildeo produzidos a partir da

necessidade de conservaccedilatildeo da espeacutecie humana entendidos pelo filoacutesofo como

ineficientes para sobrepujar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores Assim a menos que

a ciecircncia e a filosofia se libertassem das amarras de uma concepccedilatildeo de verdade e

conhecimento que culminaria na imobilizaccedilatildeo da vontade todo procedimento filosoacutefico e

cientiacutefico estaria fadado a uma corrupccedilatildeo inevitaacutevel de seus fundamentos e valor O

perspectivismo eacute entendido aqui como a caracteriacutestica fundamental de uma forma de se

fazer filosofia que afastando-se do dogmatismo da filosofia tradicional e da ciecircncia

aproxima-se de uma forma de arte Desta maneira o perspectivismo nietzschiano teria na

criaccedilatildeo dos valores seu objeto fundamental Assim com base na pressuposiccedilatildeo de uma

futura filosofia dos valores que tem seus fundamentos na compreensatildeo da perspectiva

como atitude comprometida com valores de fortalecimento da vida o filoacutesofo procura

contrapor-se agrave hegemonia da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento que tem seus

fundamentos em valores de decadecircncia

Palavras chave Verdade conhecimento perspectiva valor perspectivismo

ABSTRACT

The aim of this thesis is to investigate Nietzschersquos conceptions about truth and knowledge

taking the problem of values and the relation between perspective and life in Nietzschersquos

thinking as research axes This research starting from the Nietzschean texts of youth

reaches its last posthumous writings accompanying the interweaving of the Nietzschean

conclusions about the traditional conception of truth and nihilism In this reading

knowledge appears as a form of human activity that undergoes a reappraisal based on the

Nietzschean conclusions about the need to overcome nihilism For Nietzsche the

conception of traditional knowledge would be based on values that are produced from the

need of conservation of the human species that are understood by the philosopher as

inefficient to overcome the value devaluation process Thus unless science and philosophy

were freed from the bonds of a conception of truth and knowledge that would culminate in

the immobilization of the will every philosophical and scientific procedure would be

doomed to an unavoidable corruption of its foundations and value Perspectivism is

understood here as the fundamental characteristic of a way of making philosophy which

moving away from the dogmatism of traditional philosophy and science approaches itself

of an art form In this way the Nietzschean perspectivism would have in the creation of

values its fundamental object Thus based on the presupposition of a future philosophy of

values which has its foundations in the understanding of perspective as an attitude

committed to life-strengthening values the philosopher seeks to opposite itself to the

hegemony of the traditional conception of knowledge which has its foundations in values

of decadence

Keywords Truth knowledge perspective value perspectivism

Iacutendice

Introduccedilatildeo10

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia21

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica28

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia38

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica52

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana68

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral74

21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira78

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade92

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor108

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana113

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo124

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor143

31 O niilismo como crise dos valores morais146

32 Os niilismos nietzschianos150

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade162

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo177

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar192

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo203

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas215

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade219

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores228

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas238

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva245

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo250

5 Conclusatildeo262

6 BIBLIOGRAFIA274

Notas sobre as citaccedilotildees da obra de Nietzsche

Para a citaccedilatildeo das obras de Nietzsche adotamos a convenccedilatildeo proposta pela ediccedilatildeo

criacutetica das obras completas do filoacutesofo em NIETZSCHE Saumlmtliche Werke Kritische

Studienausgabe in 15 Baumlnden editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari BerlimNew

York Walter de Gruyter 1988 doravante referida como KSA Os tiacutetulos das obras do autor

satildeo dados entre parecircnteses por meio de siglas em alematildeo seguidas de siglas em portuguecircs

para facilitar a leitura das referecircncias

GTNT ndash Die Geburt der Tragoumldie O Nascimento da Trageacutedia (1872)

PHGFT ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen A Filosofia na EacutepocaTraacutegica dos Gregos (1873)

WLVM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinne Sobre Verdade eMentira no Sentido Extra-moral (1873)

MAMHDH ndash Menschliches Allzumenschliches Band I Humano Demasiado HumanoVol I (1878)

MA ndash Morgenroumlte Aurora (18801881)

FWGC ndash Die froumlhliche Wissenschaft A Gaia Ciecircncia (188182 e 1886)

ZaZA ndash Also sprach Zarathustra Assim Falou Zaratustra (188385)

JGBABM ndash Jenseits von Gut und Boumlse Para Aleacutem de Bem e Mal (188586)

GMGM ndash Zur Genealogie der Moral Para a Genealogia da Moral (1887)

GDCI ndash Goumltzen-Daumlmmerung Crepuacutesculo dos Iacutedolos (1888)

ACAC ndash Der Antichrist O Anticristo (1888)

EHEH ndash Ecce Homo (1888)

As referecircncias seratildeo as usuais em estudos sobre Nietzsche 1) Na maioria delas o

algarismo araacutebico apoacutes o signo ldquosectrdquo indicaraacute o aforismo ou seccedilatildeo da obra 2) Na maioria

delas o algarismo romano anterior ao araacutebico remeteraacute ao livro podendo indicar um

capiacutetulo ou uma dissertaccedilatildeo a depender da forma escolhida por Nietzsche para a divisatildeo

da obra citada 3) Para as referecircncias aos fragmentos poacutestumos nos casos de citaccedilotildees da

ediccedilatildeo de estudo ColliMontinari o algarismo romano indicaraacute o volume da ediccedilatildeo KSA e

o araacutebico o nuacutemero do fragmento Quando ao inveacutes da ediccedilatildeo KSA for utilizada outra

ediccedilatildeo para a citaccedilatildeo dos fragmentos poacutestumos seraacute utilizada a notaccedilatildeo (NFFP ano do

fragmento grupo [nuacutemero do fragmento]) Exceccedilatildeo feita as citaccedilotildees referentes a partir da

ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas de juventude de Nietzsche organizadas por

METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a sigla BAW seguida do nuacutemero

do volume em algarismos hindu-araacutebicos e da indicaccedilatildeo da paacutegina em algarismos hindu-

araacutebicos Sempre que disponiacutevel seguimos as traduccedilotildees para o portuguecircs das obras de

Nietzsche jaacute publicadas a maioria por Paulo Ceacutesar de Sousa para a Editora Companhia das

Letras agraves quais fazemos referecircncia tambeacutem por meio de siglas Outras traduccedilotildees utilizadas

satildeo as seguintes

Obras incompletas Trad e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho seleccedilatildeo de textos de

Geacuterard Lebrun posfaacutecio de Antocircnio Candido Satildeo Paulo Abril Cultural 2ordf ed 1979 (col

Os Pensadores)

O nascimento da trageacutedia Trad de Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras

1999

Assim falou Zaratustra Trad de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995

Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-

Dumaraacute 2000

O Anticristo Trad de David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016

Para a citaccedilatildeo dos poacutestumos foram utilizadas as traduccedilotildees

Fragmentos poacutestumos 1885-1887 Vol VI Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova editora

Forense Universitaacuteria Rio de Janeiro 2013

Fragmentos do espoacutelio junho de 1882 a inverno de 18831884 Traduccedilatildeo de Flaacutevio R

Kothe Editora UNB Brasiacutelia 2004

Fragmentos poacutestumos 1885-1889 2ordf Edicioacuten Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego

Saacutenchez Meca traduccioacuten introduccioacuten y notas de Juan Luis Vermal y Joan B Llinares

editora Editorial Technos Madrid 2008

0

Introduccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano eacute frequentemente relacionado agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo Esta sentenccedila que apesar de natildeo ocorrer em nenhuma obra

publicada reuacutene concisatildeo e profundidade tiacutepicas da filosofia nietzschiana aparece

recorrentemente entre os poacutestumos de 1885-1886 Uma apariccedilatildeo importante desta

expressatildeo se daacute em (NFFP 1885-1886 2[131]) onde apoacutes refletir acerca da possibilidade

de se comparar a ldquoantiacutetese do mundo que veneramos e do mundo que vivemos que mdash

somosrdquo Nietzsche conclui que apenas restariam duas saiacutedas para o homem ldquoeliminar ou

bem nossas veneraccedilotildees ou bem a noacutes mesmosrdquo

Abdicar da alta estima que dedicamos agrave realidade nessa leitura significa tomar a

realidade como aquilo que ela de fato eacute apenas um resultado de nossa avaliaccedilatildeo Assim o

reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo aparece para Nietzsche como a aceitaccedilatildeo de que

nossa proacutepria realidade depende da avaliaccedilatildeo em um niacutevel fundamental como uma ilusatildeo

que podemos reconhecer como tal mas da qual natildeo poderiacuteamos nos desvencilhar Por outro

lado para o filoacutesofo a compreensatildeo da realidade como dependente de nossa forma de

compreender estaacute diretamente ligada agrave compreensatildeo do valor desta mesma realidade assim

como de nossa capacidade de criar uma realidade a partir de nossas necessidades Ou seja

na leitura do filoacutesofo dado que o mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo nossa veneraccedilatildeo

em nossa consideraccedilatildeo da realidade nos restaria abdicar da alta estima que dedicamos agrave

nossa avaliaccedilatildeo ou abdicar de nossa existecircncia o que seria exatamente o niilismo1 Nesta

leitura a abdicaccedilatildeo de si mesmo como ponto de valoraccedilatildeo de veneraccedilatildeo seria a forma

mais elevada de desvalorizaccedilatildeo dos valores necessaacuterios agrave vida comumente identificados

1 A etimologia nos diz que ldquoniilismordquo (Nihilismus em alematildeo) proveacutem do latim nihil que significaexatamente nada De onde se poderia deduzir que o niilismo diz respeito a afirmaccedilatildeo do nada ou em certosentido a negaccedilatildeo de tudo O significado do termo niilismo na atualidade estaacute ligado de forma irredutiacutevel agravefilosofia nietzschiana No entanto a compreensatildeo nietzschiana mesma do niilismo eacute profundamente marcadapela literatura russa de quem a maioria dos comentadores acredita que o autor teria tomado o termo Sabe-seque Dostoievski a quem Nietzsche leu bastante utilizou o termo e mais do que isso caracterizou muito desua obra pela permanecircncia de uma certa ausecircncia de Deus ausecircncia que em Nietzsche estaraacute ligada de formainextrincaacutevel com o niilismo No entanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que autiliza para caracterizar um de seus personagens em seu romance Pais e Filhos

1

pelo filoacutesofo como o caraacuteter aparente e perspectivo da proacutepria realidade Assim o filoacutesofo

conclui que a ausecircncia de fatos seria decorrecircncia da necessidade de avaliar

A reflexatildeo nietzschiana acerca da inexistecircncia de fatos puros como realidades em

si independentes de uma estrutura de avaliaccedilatildeo se torna uma constante no periacuteodo em que

Nietzsche elabora A Gaia Ciecircncia e Assim Falava Zaratustra2 Nesse sentido podemos

afirmar que a criacutetica aos fatos como consideraccedilatildeo contraacuteria ao caraacuteter interpretativo da

realidade se reconhece como uma ideia fundamental presente na filosofia nietzschiana em

um momento decisivo da evoluccedilatildeo do pensamento desse autor

Natildeo por acaso a apariccedilatildeo mais amplamente reconhecida desta expressatildeo eacute aquela

do fragmento poacutestumo 7[60] de final de 1886 e iniacutecio de 1887 em que Nietzsche diz

ldquoContra o positivismo que permanece no fenocircmeno lsquoapenas haacute fatosrsquo eu diria natildeo precisamente

natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) A compreensatildeo fundamental da

realidade como interpretaccedilatildeo traccedilo comum ao desenvolvimento da concepccedilatildeo nietzschiana

de conhecimento e que como os poacutestumos testemunham estaacute ligada agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute

fatosrdquo eacute entendida aqui como a afirmaccedilatildeo de que natildeo haacute verdades fundamentais e que

portanto toda aproximaccedilatildeo do mundo apenas pode ser feita por meio de uma consideraccedilatildeo

perspectivista

A curiosa contraposiccedilatildeo nietzschiana entre fatos e hipoacuteteses contraposiccedilatildeo que estaacute

presente na citaccedilatildeo e que nela anuncia algo de fundamental acerca de seu posicionamento

com relaccedilatildeo ao conhecimento e sua relaccedilatildeo com a realidade revela um traccedilo fundamental

de seu pensamento que aparece jaacute em seus escritos de juventude e que em sua filosofia

madura eacute apresentada na forma da adoccedilatildeo de hipoacuteteses como fundamentos de sua

filosofia3 De maneira geral eacute possiacutevel compreender esta abordagem por meio da adoccedilatildeo

de hipoacuteteses como concepccedilotildees fundamentais em sua filosofia como um traccedilo caracteriacutestico

2 A expressatildeo ldquonatildeo haacute fatosrdquo volta a aparecer com um sentido aproximado do sentido expresso no fragmentocitado anteriormente no fragmento poacutestumo 2[175] em que Nietzsche reflete acerca da superioridade dascausas internas em relaccedilatildeo agraves causas externas para a nossa interpretaccedilatildeo da realidade3 Com isso apenas queremos dizer que diferentemente do que ocorre em uma concepccedilatildeo filosoacuteficaconvencional em que seus conceitos principais devem ser tomados de forma dogmaacutetica os conceitosfundamentais da filosofia nietzschiana seja o conceito de Vontade de Potecircncia seja o conceito de eternoretorno seja ateacute mesmo o proacuteprio perspectivismo assumem uma expressatildeo que se diferencia daapresentaccedilatildeo de uma verdade dogmaacutetica Por exemplo o conceito nietzschiano de Vontade de Potecircncia eacuteapresentado como hipoacutetese no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal o eterno retorno por meio de umavisatildeo em Zaratustra e de uma suposiccedilatildeo no aforismo 341 de A Gaia Ciecircncia o proacuteprio perspectivismo eacuteapresentado no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia como ldquoo perspectivismo como eu o entendordquo

2

de sua filosofia perspectivista Ou seja ao compreender e interpretar a realidade a seu

modo e ao estar ciente desta determinaccedilatildeo fundamental de suas ideias o filoacutesofo teria

adotado certas suposiccedilotildees como fundamento de suas concepccedilotildees mais iacutentimas posto que

percebe natildeo poder ir aleacutem de uma apresentaccedilatildeo de verdades com caraacuteter bastante limitado

na medida em que seu pensamento se fundamenta apenas em avaliaccedilotildees especiacuteficas

Nesse sentido quando o filoacutesofo afirma na continuaccedilatildeo do fragmento citado ldquona

medida em que a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outro modo natildeo tem um sentido por traacutes de si senatildeo inumeraacuteveis

sentidosrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) e finaliza com a palavra ldquoperspectivismordquo indicaria

que esta interpretaccedilatildeo deveria ser entendida como sendo uma espeacutecie de abordagem

perspectiva do conhecimento Com isso um problema fundamental se apresenta Seria

possiacutevel para Nietzsche efetuar a criacutetica das concepccedilotildees que rejeita sendo que sua filosofia

natildeo se entende como uma descriccedilatildeo de fatos mas apenas como mais uma interpretaccedilatildeo

Compreendemos o perspectivismo4 nietzschiano5 como um tema privilegiado da

obra deste filoacutesofo Apesar desta concepccedilatildeo natildeo haver recebido em sua obra o

desenvolvimento e acabamento que se esperaria de uma concepccedilatildeo fundamental Ateacute

mesmo por conta desta falta de um acabamento da compreensatildeo nietzschiana do

perspectivismo esta concepccedilatildeo conta em sua investigaccedilatildeo com dificuldades interpretativas

bastante especiacuteficas Entre estas dificuldades o problema de sua validade enquanto uma

teoria do conhecimento6 segundo a qual a tese perspectivista seria povoada de problemas

4 Por perspectivismo nietzschiano compreendemos uma noccedilatildeo vinculada agrave compreensatildeo do filoacutesofo de quenatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees Esta compreensatildeo relaciona-se a uma reflexatildeo acerca do caraacuteterperspectivo determinado de todo pretenso conhecimento sendo por isso mesmo frequentemente referidoentre os comentaacuterios da filosofia nietzschiana como uma espeacutecie de teoria do conhecimento Assim segundoCox por exemplo ldquo(hellip) o termo foi usado jaacute em 1906 pelos editores da Vontade de poder para descrever ateoria do conhecimento de Nietzsche e posteriormente foi retomado por Vaihinger em 1911 por Heideggerem 1930 por Morgan em 1940 por Danto na deacutecada de 1960 e em quase todos os comentaristas europeus eanglo-americano desde entatildeordquo (COX 1999 paacuteg 110) 5 Concepccedilatildeo inacabada que pertence de maneira necessaacuteria ao pensamento de maturidade de Nietzsche masque tem suas raiacutezes em suas primeiras incursotildees sobre o problema da verdade e do conhecimento6 O aparente paradoxo do perspectivismo se coloca na forma de sua autorreferecircncia que eacute expresso assim emA Companion to Epistemology no verbete Perspectivism ldquoEacute Frequentemente afirmado que o perspectivismose autorrefuta Se a tese de que todos os pontos de vista satildeo interpretaccedilotildees eacute verdadeira entatildeo argumenta-sehaacute ao menos um ponto de vista que natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Se por outro lado a tese eacute ela mesma umainterpretaccedilatildeo entatildeo natildeo haacute razatildeo para acreditar que ela eacute verdadeira e se segue novamente que nem todoponto de vista eacute uma interpretaccedilatildeordquo O conjunto de questotildees que se extrai da anaacutelise deste problemafundamental tem sido o tema de extensos trabalhos de autores como Maudemarie Clark Heidegger Derrida eKaufmann soacute para citar alguns comentadores da filosofia nietzschiana Mais ainda Reginster em Theparadox of Perspectivism assinala que os uacuteltimos vinte anos da pesquisa nietzschiana realizados em liacutengua

3

teoacutericos com base nos quais se costuma considerar agrave posiccedilatildeo nietzschiana acerca do

conhecimento como inescusavelmente paradoxal

Este problema pode ser resumido por meio da consideraccedilatildeo do modo como a

negaccedilatildeo da verdade proacutepria do perspectivismo nietzschiano parece condenar a proacutepria

consideraccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano como verdadeiro Neste sentido o

perspectivismo nietzschiano apareceria como uma versatildeo atualizada do paradoxo do

mentiroso Pois parece decorrer dos proacuteprios princiacutepios do perspectivismo nietzschiano

segundo os quais todas as formulaccedilotildees teoacutericas devem ser tomadas como meras

interpretaccedilotildees desprovidas de validade que o proacuteprio perspectivismo natildeo pode ter

validade Partindo desse tipo de princiacutepio como seria possiacutevel para Nietzsche validar suas

proacuteprias afirmaccedilotildees acerca da moral assim como da natureza constitutiva do mundo e da

proacutepria verdade se o filoacutesofo a partir de seu proacuteprio julgamento em relaccedilatildeo agraves teorias

filosoacuteficas e cientiacuteficas atribui a esse gecircnero de afirmaccedilotildees o caraacuteter meramente

interpretativo

Ao confrontar este problema Nehamas defende a reivindicaccedilatildeo nietzschiana pela

superioridade de suas posiccedilotildees com base em sua interpretaccedilatildeo do perspectivismo

nietzschiano como a negaccedilatildeo de que todas as afirmaccedilotildees seriam iguais Nesse sentido na

medida em que uma interpretaccedilatildeo se mostre mais afirmativa da vida em um determinado

contexto segundo a interpretaccedilatildeo de Nehamas esta interpretaccedilatildeo se tornaria uma

interpretaccedilatildeo superior Pois para o comentador o perspectivismo nietzschiano natildeo requer

que todas as perspectivas sejam igualmente vaacutelidas mas apenas que cada perspectiva

mereccedila consideraccedilatildeo

A posiccedilatildeo de Nehamas oferece uma forte resistecircncia agrave afirmaccedilatildeo da

autorreferencialidade7 na medida em que em sua leitura a proacutepria consideraccedilatildeo do

perspectivismo como sendo uma releitura do paradoxo do mentiroso seria errocircnea Dado

que esta identificaccedilatildeo decorreria de uma interpretaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo nietzschiana de que

todas as afirmaccedilotildees satildeo interpretaccedilotildees com a afirmaccedilatildeo de que toda interpretaccedilatildeo eacute falsa o

que nunca foi a intenccedilatildeo de Nietzsche De fato a tese nietzschiana implica apenas a

negaccedilatildeo de que qualquer afirmaccedilatildeo seja verdadeira e natildeo de que alguma interpretaccedilatildeo seja

inglesa foram dominados pelo paradoxo do perspectivismo7 A ideia de que o perspectivismo refutar-se-ia a si mesmo quando aplicado ao perspectivismo sua proacutepriaproibiccedilatildeo de que hajam verdades

4

falsa Assim em sua exposiccedilatildeo do problema do perspectivismo como sendo autorreferente

o autor oferece a seguinte exposiccedilatildeo

Suponhamos que caracterizemos o perspectivismo nietzschiano como a tese (P)de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Agora nos parece que se (P) eacuteverdadeira e se toda afirmaccedilatildeo eacute de fato uma interpretaccedilatildeo isto se aplicaria agraveproacutepria (P) Neste caso (P) tambeacutem torna-se uma interpretaccedilatildeo Mas se isto eacuteassim entatildeo nem toda afirmaccedilatildeo precisa ser uma interpretaccedilatildeo e (P) parecehaver se refutado (NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Esta exposiccedilatildeo do problema da autorreferencialidade natildeo ofereceria no entender de

Nehamas um problema especial para a posiccedilatildeo nietzschiana Isto porque o comentador

consegue oferecer uma distinccedilatildeo fundamental entre ser uma interpretaccedilatildeo e ser uma

afirmaccedilatildeo falsa Apenas com base em uma concepccedilatildeo de verdade que entende toda

afirmaccedilatildeo como possuindo um valor determinado se poderia pensar que admitir que uma

posiccedilatildeo natildeo eacute verdadeira significa afirmar sua falsidade Por outro lado a exposiccedilatildeo de

Nehamas do problema que acreditamos refletir fielmente a concepccedilatildeo nietzschiana nos

potildee diante da possibilidade de considerar uma afirmaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo

mantendo indeterminado seu valor de verdade

Ainda assim nosso argumento pode mostrar que (P) eacute verdadeiramente falsaapenas se assumirmos que sendo uma interpretaccedilatildeo (P) pode ser falsa e queportanto ela eacute de fato falsa Esta uacuteltima conclusatildeo verdadeiramente refutaria (P)pois se a tese de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo eacute de fato falsa entatildeo defato algumas afirmaccedilotildees verdadeiramente natildeo satildeo interpretaccedilotildees Mas aconclusatildeo de que (P) eacute de fato falsa natildeo se segue do fato de que (P) eacute ela mesmauma interpretaccedilatildeo Isto eacute alcanccedilado apenas por meio de uma inferecircncia invaacutelidaatraveacutes da equalizaccedilatildeo como acima do fato de que (P) eacute uma interpretaccedilatildeo eportanto possivelmente falsa com o fato de ela eacute verdadeiramente falsa(NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)

Por outro lado a afirmaccedilatildeo nietzschiana de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

decorre de uma falsificaccedilatildeo da realidade comporta outras dificuldades Segundo

Maudemarie Clark a defesa de Nehamas da posiccedilatildeo nietzschiana pretende mais do que o

autor admite Para a autora a posiccedilatildeo que Nehamas defende de que Nietzsche faz de sua

filosofia uma obra literaacuteria e que portanto ldquocomo todo outro escritor Nietzsche queria

5

que sua audiecircncia aceitasse suas afirmaccedilotildeesrdquo (NEHAMAS 1999 Paacuteg 33) compromete a

defesa da filosofia nietzschiana com a tese da falsificaccedilatildeo

Segundo Clark se Nietzsche tem motivos para querer que sua audiecircncia aceite suas

posiccedilotildees isso apenas seria possiacutevel porque o autor acredita que sua interpretaccedilatildeo seria a

verdadeira e que todas as outras interpretaccedilotildees seriam uma versatildeo falsificada de uma

ldquorealidade verdadeirardquo Assim a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo de Nehamas para Clark nos

compromete com uma versatildeo do perspectivismo que o torna vulneraacutevel agraves proacuteprias

objeccedilotildees contra as quais o autor queria defendecirc-lo (CLARK 1990 Paacuteg 158) Ao assumir

que haacute um todo que incorpora todas as interpretaccedilotildees Nehamas assumiria que existe uma

verdade completa da qual as perspectivas seriam apenas uma imagem necessariamente

falsa Se este eacute o caso no entanto ele estaacute assumindo a posiccedilatildeo fundamentalista com a

qual ele discordou de que existem algumas visotildees que natildeo satildeo interpretaccedilotildees natildeo apenas

aquelas que podem existir

Em sua leitura do perspectivismo Clark acredita achar uma soluccedilatildeo para o

problema do conflito entre a negaccedilatildeo da existecircncia de uma posiccedilatildeo verdadeira e o valor de

verdade dessa negaccedilatildeo ela mesma Sua soluccedilatildeo consistiria na interpretaccedilatildeo da posiccedilatildeo

nietzschiana como sendo a defesa de que eacute possiacutevel afirmar verdadeiramente sem que com

isso se pretenda afirmar algo que seja verdadeiro para todos Segundo essa interpretaccedilatildeo a

tese da falsificaccedilatildeo ou seja a ideia de que o conhecimento eacute limitado e falsificado pela

perspectiva de onde ele parte eacute uma caracteriacutestica da filosofia nietzschiana de juventude

que o autor posteriormente abandona com o amadurecimento de sua concepccedilatildeo

perspectivista

Minha soluccedilatildeo para estes problemas tecircm sido remover a tese dafalsificaccedilatildeo para as obras nietzschianas de juventude e interpretar ametaacutefora da perspectiva como um instrumento retoacuterico desenvolvidopara ajudar-nos a superar a desvalorizaccedilatildeo do conhecimento humanoenvolvida na tese da falsificaccedilatildeo De acordo com minha interpretaccedilatildeo ocaraacuteter perspectivo do conhecimento eacute perfeitamente compatiacutevel comalgumas interpretaccedilotildees sendo verdadeiras e ela natildeo introduz nenhumparadoxo ou autorreferecircncia O Perspectivismo eacute obviamente umaverdade perspectiva mas isso natildeo implica que qualquer afirmaccedilatildeoconcorrente seja tambeacutem verdadeira (CLARK 1990 Paacuteg 158)

6

Com isso a autora acredita oferecer uma interpretaccedilatildeo do perspectivismo que natildeo

seria suscetiacutevel de nenhuma das criacuteticas que Nehamas aponta nem das criacuteticas que ela

mesma aponta na interpretaccedilatildeo de Nehamas Sua interpretaccedilatildeo da filosofia nietzschiana

pressupotildee que seu perspectivismo em sua apariccedilatildeo na obra de maturidade do filoacutesofo natildeo

recai na acusaccedilatildeo do conhecimento como falsificaccedilatildeo da realidade Em outras palavras

Clark sustenta que Nietzsche natildeo tem nenhum problema em fazer afirmaccedilotildees verdadeiras

e ao mesmo tempo natildeo dogmaacuteticas mas que se espera que sejam verdadeiras para todos

No entanto esta posiccedilatildeo parece colidir frontalmente com uma extensa quantidade de

testemunho textual8 Na medida em que passagens da obra de maturidade nietzschiana

refletem as mesmas ideias de sua filosofia de juventude a suposiccedilatildeo de Clark de que em

sua filosofia perspectivista Nietzsche rejeita a tese da falsificaccedilatildeo enfrenta seacuterias

dificuldades

O perspectivismo nietzschiano se ergue como uma estrateacutegia de combate contra

todo antropomorfismo da ciecircncia e nesse sentido ele reduz o que nos distancia das outras

espeacutecies e que permanece na tradiccedilatildeo como nosso elemento identificador agrave condiccedilatildeo de

mero oacutergatildeo natural Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela

exposiccedilatildeo do caraacuteter perspectivo de nossas verdades universais Nietzsche opotildee-se agrave

pretensatildeo de atingir a verdade absoluta por meio de um instrumento necessariamente

relativo Pretensatildeo que o filoacutesofo pensa representada pelas filosofias racionalistas que lhe

antecedem

Segundo esta compreensatildeo o caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da

realidade repousaria sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o

filoacutesofo realiza pensando opor assim a toda a tradiccedilatildeo racionalista que segundo

Nietzsche teria preferido voltar-se contra os oacutergatildeos dos sentidos na constataccedilatildeo dos

limites da consciecircncia Sua anaacutelise de tudo que ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro

submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo desdobramento do mundo em substacircncia

inteligiacutevel a anaacutelise de sua origem e desenvolvimento Atraveacutes de uma anaacutelise naturalista

da consciecircncia ele expotildee o processo de formaccedilatildeo da linguagem como a forma de

8 Leia-se sobretudo o aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal e oaforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral que seratildeo comentados mais a frente

7

apreender uma realidade sempre em mudanccedila atraveacutes de metaacuteforas que lhe confiram um

caraacuteter fixo e comunicaacutevel

A soluccedilatildeo do problema da autorreferencialidade apresentado por Nehamas nos

parece maios adequado aos objetivos deste trabalho Assim natildeo voltaremos a discutir este

problema nos capiacutetulos a seguir No entanto reconhecemos que o problema envolvido na

autorreferencialidade do perspectivismo nietzschiano tem rendido diversos comentaacuterios

importantes tornando-se assim um panorama privilegiado na investigaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana Maudemarie Clark parece concordar com esta interpretaccedilatildeo quando afirma

que o perspectivismo nietzschiano seria sua doutrina mais amplamente aceita aleacutem de ser

a contribuiccedilatildeo mais oacutebvia do pensamento nietzschiano para o cenaacuterio intelectual da

atualidade

ldquoperspectivismordquo eacute a afirmaccedilatildeo de que todo conhecimento eacute perspectivoNietzsche tambeacutem caracteriza valores como perspectivos mas eu devoestar preocupada aqui apenas com seu perspectivismo concernente aoconhecimento O uacuteltimo constitui sua contribuiccedilatildeo mais oacutebvia ao cenaacuteriointelectual da atualidade a doutrina nietzschiana mais amplamente aceita9

(CLARK 1995 Paacuteg 127)

Poreacutem seria necessaacuterio acrescentar que o perspectivismo nietzschiano natildeo se limita

a uma compreensatildeo do conhecimento como algo perspectivo mas diz respeito mais

propriamente ao problema dos valores A negaccedilatildeo nietzschiana da concepccedilatildeo tradicional de

verdade parte do pressuposto de que esta teria se tornado algo intimamente relacionado

aos valores e que com estes ela perde seu sentido na tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo que ignora este aspecto partindo de uma interpretaccedilatildeo do

perspectivismo nietzschiano apenas do ponto de vista de sua validade enquanto teoria

epistemoloacutegica perde de vista uma interpretaccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano

e torna tambeacutem menos rica de sentido essa importante contribuiccedilatildeo nietzschiana para o

cenaacuterio filosoacutefico contemporacircneo

9 No original ldquorsquoPerspectivismrsquo is the claim that all knowledge is perspectival Nietzsche also characterizesvalues as perspectival but I shall be concerned here only with his Perspectivism regarding knowledge Thelatter constitutes his most obvious contribution to the current intellectual scene the most widely acceptedNietzschean doctrinerdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) As traduccedilotildees de obras de comentadores seratildeo todas denossa responsabilidade exceto menccedilatildeo em contraacuterio

8

Ao se colocar em jogo o valor das perspetivas portanto natildeo se pode reduzir esta

questatildeo a uma investigaccedilatildeo da validade do perspectivismo como tese acerca do

conhecimento Como se o que estivesse em jogo fosse apenas a avaliaccedilatildeo do valor de

nossas formulaccedilotildees acerca da realidade Pelo contraacuterio desde que se compreende que estas

formulaccedilotildees natildeo se relacionam com algo como a verdade em sentido absoluto o valor das

perspectivas em relaccedilatildeo a uma suposta realidade em si estaacute desde sempre posto por

Nietzsche como sendo nenhum Assim considerada a questatildeo do ponto de vista de nossa

estimaccedilatildeo de nossa valoraccedilatildeo mesma de uma suposta realidade verdadeira como algo

superior entatildeo temos que o valor das perspectivas natildeo se potildee de forma independente

daquele que avalia

O perspectivismo nietzschiano neste sentido natildeo se reduz a uma anaacutelise do valor

de verdade das perspectivas Mais do que isso o que se potildee em questatildeo eacute o valor que

atribuiacutemos agraves nossas estimaccedilotildees em certo sentido ao valor que atribuiacutemos agrave proacutepria

verdade quando nos recusamos a compreender o proacuteprio homem como ponto de vista da

avaliaccedilatildeo Desta maneira se o filoacutesofo compreende que a realidade eacute um produto de nossa

avaliaccedilatildeo e que apenas seria possiacutevel para noacutes abdicar da avaliaccedilatildeo ou de noacutes mesmos de

nossa existecircncia10 entatildeo o processo de percepccedilatildeo da realidade que eacute inerente agrave sua

consideraccedilatildeo perspectiva do conhecimento estaacute estreitamente ligada com o papel do

homem enquanto criador de valor

Nesta leitura os problemas na investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

notadamente a questatildeo de sua autorreferecircncia podem ser entendidos como decorrentes de

se tratar este tema meramente do ponto de vista de uma anaacutelise do conhecimento e da

verdade sobretudo por se tratar de um autor reconhecido por sua atitude criacutetica em relaccedilatildeo

a ambos Mais do que pensarmos se o perspectivismo nietzschiano pode ser verdadeiro

sem se contradizer eacute preciso pensar que o tipo de ldquovalor de verdaderdquo que o filoacutesofo parece

assumir no interior de sua concepccedilatildeo perspectivista se potildee em um niacutevel superior de

reflexatildeo ao proacuteprio valor que a tradiccedilatildeo atribui agrave verdade

Com isso a afirmaccedilatildeo de Clark de que ldquoNietzsche tambeacutem caracteriza valores

como perspectivosrdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) ganha uma nova dimensatildeo e importacircncia

Pois a partir dessa reflexatildeo podemos pensar que sua menccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o

10 O que para Nietzsche seria exatamente niilismo conforme (NFFP 1885-1886 2[131])

9

perspectivismo e o valor pode apontar para a compreensatildeo de que Nietzsche caracteriza os

valores como perspectivos e que assim o faz porque parte de uma consideraccedilatildeo perspectiva

do conhecimento Ou seja se Nietzsche pensa os valores como perspectivos natildeo eacute absurdo

pensar que sua consideraccedilatildeo da moral seja forjada em meio a uma consideraccedilatildeo do

conhecimento como algo dependente da perspectividade Do mesmo modo natildeo seria

absurdo pensar que a fundamentaccedilatildeo de sua criacutetica agrave moral e ao niilismo natildeo dependeria de

um esclarecimento acerca da ldquoveracidaderdquo de suas proacuteprias concepccedilotildees mas de seu ldquovalorrdquo

em um sentido que jaacute entende a perspectividade de todo ldquovalorarrdquo

A criacutetica nietzschiana a uma certa compreensatildeo do conhecimento e da verdade esta

relacionada agrave compreensatildeo de que tais concepccedilotildees partem de uma consideraccedilatildeo moral

decadente Eacute neste sentido que em um fragmento poacutestumo de finais de 1885 e iniacutecio de

1886 o filoacutesofo compreende todo erro das ciecircncias como estando relacionados a um

pressuposto fundamental ldquoO pressuposto de que tudo ocorre tatildeo moralmente no fundo das

coisas que a razatildeo humana continua em seu direitordquo (NFFP 1885-1886 2[132]) Ou seja

para Nietzsche a crenccedila na ciecircncia como instrumento revelador da realidade estaria

relacionada a uma compreensatildeo da realidade como produto de uma razatildeo divina e que

portanto a razatildeo humana estaria ldquoem seu direitordquo quando tenta se aprofundar nessa

realidade Mas para o filoacutesofo esta seria apenas ldquouma ingenuidade e uma pressuposiccedilatildeo

pequeno-burguesa a ressonacircncia do efeito da crenccedila na veracidade divinardquo (NFFP 1885-

1886 2[132])

Partindo dessa compreensatildeo inicial nossa tese consiste na tentativa de oferecer uma

investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano sob a oacutetica de uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo

entre verdade conhecimento e valor A investigaccedilatildeo do valor das perspectivas que

entendemos como uma questatildeo que se sobrepotildee ao problema da verdade na filosofia

nietzschiana constitui-se por isso mesmo como ponto de originalidade do pensamento

nietzschiano em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo das investigaccedilotildees acerca da verdade ao estabelecer na

proacutepria perspectividade o valor das nossas aproximaccedilotildees da realidade

Neste sentido a tese passa por trecircs momentos Em um primeiro momento

pretendemos efetuar uma interpretaccedilatildeo criacutetica de duas obras nietzschianas de juventude as

notas preparatoacuterias Zur Teleologie e O Ensaio Sobre Verdade e Mentira em sentido Extra

10

Moral11 a fim de descortinar os elementos fundamentais da consideraccedilatildeo criacutetica

nietzschiana para com as concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento Em um

segundo momento o niilismo eacute analisado como ponto de ruptura na filosofia nietzschiana

que fornece o estiacutemulo para uma abordagem do conhecimento que torna mais expliacutecita a

relaccedilatildeo entre este e o valor Na medida em que a dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constrange a uma reavaliaccedilatildeo da verdade mesma como valor o niilismo conduz a uma

forma de avaliaccedilatildeo da realidade que se distingue da avaliaccedilatildeo tradicional por conta de sua

ecircnfase no caraacuteter criativo do conhecimento em contraposiccedilatildeo ao caraacuteter descritivo do

conhecimento na concepccedilatildeo tradicional Em um terceiro momento o perspectivismo eacute

avaliado como contraproposta agrave forma de conhecimento tradicional associada por

Nietzsche a uma tendecircncia niilista de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a

uma consideraccedilatildeo negativa da realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a

proacutepria perspectividade

11 Daqui para frente nomeado simplesmente ldquoEnsaio sobre Verdade e Mentirardquo

11

1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia

Em uma carta de 03 de abril de 1868 dirigida a Erwin Rohde Nietzsche faz uma

declaraccedilatildeo a seu amigo acerca da possibilidade de doutorar-se em filosofia possibilidade

que embora natildeo levada a termo pelo autor legou agrave posteridade uma seacuterie de notas

preparatoacuterias cuja interpretaccedilatildeo traz importantes consequecircncias para o estudo do

perspectivismo nietzschiano como veremos a seguir Na carta em questatildeo nos deparamos

com a seguinte afirmaccedilatildeo do jovem Nietzsche ldquoAdemais tenho pensado que poderia

doutorar-me tambeacutem um dia em filosofia e assim justificar posteriormente minha carteira

de estudante em Bonn e Leipzig onde sempre perambulava como stud philosrdquo (KSB II p

265)12 Na carta em questatildeo observa-se o interesse do jovem estudante de filologia claacutessica

de Bonn em vir a doutorar-se futuramente em filosofia disciplina que haacute muito lhe

interessava profundamente especialmente apoacutes seu contato com a obra de Schopenhauer

A indicaccedilatildeo de que o jovem estudante realmente se interessava pelo tema e de que

jaacute realizara alguns preparativos em adiantamento volta a aparecer em uma menccedilatildeo a este

trabalho em outra correspondecircncia dessa vez em uma carta endereccedilada a Paul Deussen

(KSB II p 269) escrita alguns dias apoacutes a carta acima mencionada Com isso pode-se

deduzir que o que era apenas uma ideia vaga viera a tornar-se um projeto melhor

elaborado Nietzsche que desde haacute muito se achava interessado em questotildees filosoacuteficas e

que com a leitura de Schopenhauer e Lange se torna especialmente interessado na filosofia

de Kant anuncia seu interesse em questotildees especiacuteficas que relaciona com a filosofia

kantiana por forccedila das interpretaccedilotildees daqueles autores

Quando vocecirc a propoacutesito receber ao final deste ano minha tese dedoutorado perceberaacute que o problema dos limites do conhecimento seexplica em diversos pontos Meu tema eacute ldquoo conceito de orgacircnico desde

12 No original ldquoUumlbrigens hat mich dies auf den Einfall gebracht auch einmal philosophisch zu promovierenund so meiner Studentenkarte in Bonn und Leipzig noch nachtraumlglich zu ihrem Rechte zu verhelfen ich binnaumlmlich immer als stud philos spazieren gegangenrdquo (KSB II p 265) Curt Paul Janz naquela que eacutepossivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche comenta que nesta eacutepoca este cogitara abandonar osestudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzsche biographie Enfance JeunesseLes Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

12

Kantrdquo metade filosoacutefico metade ciecircncia da natureza (halbphilosophisch halb naturwissenschaftlich) Meus preparativos(Vorarbeiten) jaacute estatildeo quase concluiacutedos (KSB II p 269)13

Na carta a Deussen Nietzsche deixa entrever em seus planos para a dissertaccedilatildeo

elementos fundamentais de uma abordagem do problema do conhecimento Entre estes

elementos destaca-se o fato de que tal dissertaccedilatildeo partiria do ponto de vista de um estudo

dos limites dos oacutergatildeos da sensibilidade humana Com isso aleacutem de esclarecer o sentido de

sua interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana este trabalho tambeacutem possibilita uma compreensatildeo

precisa acerca de suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas naquele periacuteodo de seu pensamento

Motivo pelo qual alguns comentadores concordam que as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie14 ajudam a situar a filosofia do jovem Nietzsche no horizonte de uma ampla

discussatildeo filosoacutefica Marques por exemplo assevera que a discussatildeo sobre a teleologia

coloca Nietzsche em consonacircncia com o programa teoacuterico da modernidade por acercar-se

do grande embate entre as concepccedilotildees leibniziana e cartesiana ou seja do antagonismo

entre teleologia de proveniecircncia aristoteacutelica e o mecanicismo15

Para Marques a filosofia de Nietzsche sobretudo no que diz respeito a sua ldquoteoria

do conhecimentordquo estaria relacionada a um processo de radicalizaccedilatildeo da autoafirmaccedilatildeo do

sujeito moderno Neste sentido enquanto autor que leva ao aacutepice esse processo de

radicalizaccedilatildeo processo que teria se iniciado na modernidade sobretudo com Descartes

13 Apesar de declarar que seus preparativos encontravam-se jaacute bastante adiantados considerando-se arelaccedilatildeo de Nietzsche com Deussen seria plausiacutevel especular que o autor da carta estivesse contandovantagem de seus planos filosoacuteficos que na verdade encontravam-se ainda longe de ser concluiacutedos sendoque algumas de suas partes ainda encontravam-se em seus estaacutegios iniciais como demonstra o estado dasnotas que nos foram legadas Vale ainda ressaltar que esta correspondecircncia como jaacute foi discutido na seccedilatildeo234 desta tese denuncia um interesse fortiacutessimo de Nietzsche pelos resultados de sua leitura de A Histoacuteriado Materialismo de Albert Lange de cujas ideias a dissertaccedilatildeo planejada pelo filoacutesofo encontra-se fartamentepermeada14 A coletacircnea de notas estaacute registrada na ediccedilatildeo completa de Colli e Montinari nos apontamentos 1868 62[3] - 62 [57] Cf NIETZSCHE F Werke Kritische Gesamtausgabe (KGW) 36 Baumlnde Herausgeben GiorgioColli e Mazzino Montinari Berlim De Gruyter 1967-2001 Bd I 15 As concepccedilotildees da filosofia antiga na medida em que se distinguem por uma compreensatildeo racional darealidade satildeo marcadas pela ideia de uma finalidade intriacutenseca a esta mesma realidade sendo Aristoacuteteles esua concepccedilatildeo das causas finais um marco deste tipo de pensamento Por outro lado com a concepccedilatildeoatomiacutestica inaugura-se na antiguidade ainda uma forma de se conceber a realidade como um produto dasinteraccedilotildees mecacircnicas de seus primeiros elementos Surge assim o embate entre s concepccedilotildees teleoloacutegicas emecacircnicas da realidade Marques resume esse antagonismo no seguinte dilema ldquo[] ou o mundo eacuteconstituiacutedo por uma multiplicidade de espontaneidades absolutas que em si tecircm inscritas a finalidade de seuagir ou o mundo seraacute sempre a obra de um Deus criador de uma obra imperfeitardquo (Marques 2003 p 22)Dando continuidade a este embate filosoacutefico aparecem na modernidade as concepccedilotildees de Leibniz e suateoria de mundo como harmonia preestabelecida por Deus e Descartes que pensava o mundo das realidadesextensas como tendo sua formaccedilatildeo determinada de maneira mecacircnica

13

Nietzsche se inseriria na tradiccedilatildeo racionalista criacutetica Por meio de uma anaacutelise

eminentemente histoacuterica das assim chamadas ldquoteses teleoloacutegicas sobre a historicidaderdquo

(MARQUES 2003 Paacuteg 43) Marques realiza uma apresentaccedilatildeo da condiccedilatildeo antinocircmica da

razatildeo moderna em sua interioridade em que Nietzsche se inseriria ao questionar a validade

dos produtos que a razatildeo se apresenta como sua proacutepria realidade

Neste contexto se destacariam as notas preparatoacuterias para Zur Teleologie como

testemunho textual de que jaacute em sua obra de juventude Nietzsche entra em contato com

questotildees de suma importacircncia para o pensamento moderno Este contato com problemas de

primeira ordem da filosofia moderna para Marques tornam o autor das notas preparatoacuterias

natildeo apenas um herdeiro dos problemas do pensamento moderno mas um pensador

moderno que leva ao aacutepice questotildees fundamentais da filosofia moderna

Esta tese pelo que tomamos notiacutecia atraveacutes da leitura dos fragmentos que nos

foram legados caso tivesse sido concluiacuteda poderia vir a ser considerada como sua

primeira incursatildeo por alguns dos temas mais importantes de sua filosofia Nas notas em

questatildeo satildeo adiantadas muitas de suas concepccedilotildees fundamentais as quais seriam

amadurecidas e posteriormente reelaboradas de forma mais rigorosa adquirindo o estilo

caracteriacutestico dos escritos do filoacutesofo Por meio de um lento refinamento e preparaccedilatildeo no

sentido de conferir um apelo original a estas ideias elas viriam a se popularizar como um

conjunto de reflexotildees acerca da natureza dos limites do conhecimento humano Com isso

aquilo que apenas fora esboccedilado de modo precaacuterio nas notas preparatoacuterias viria a

constituir um fundamento seguro para o posterior desenvolvimento da reflexatildeo

nietzschiana em torno dos problemas com relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e

conhecimento

No entanto por vaacuterias razotildees dentre as quais destacam-se certamente sua

convocaccedilatildeo para o serviccedilo militar e o consequente ferimento que o deixa impossibilitado

por semanas Nietzsche natildeo conseguiraacute levar este plano agrave conclusatildeo Ciente da

impossibilidade de levar seus planos adiante o jovem professor declararaacute em uma carta

endereccedilada a Rohde ldquoAssim querido amigo repito nossas perspectivas natildeo deram certo

[]rdquo (KSB II p 272)16 Apesar do naufraacutegio de seus planos ficaram registrados em seus

16 No original ldquoAlso lieber Freund nochmals unsere Aussichten sind zu nichterdquo (KSB II p272) CurtPaul Janz (naquela que eacute possivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche) comenta que nesta eacutepocaeste cogitara abandonar os estudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzschebiographie Enfance Jeunesse Les Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208

14

cadernos de notas o conjunto de rascunhos que comporiam sua tese acerca dos limites do

orgacircnico a partir de Kant

Os preparativos para a dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant

compotildeem-se de uma seacuterie de notas e indicativos de leitura Estas referecircncias agrupadas por

Nietzsche satildeo compostas de alguns paraacutegrafos extraiacutedos da literatura que o autor das notas

considera leitura baacutesica para sua exposiccedilatildeo aqui incluiacutedos trechos da Criacutetica da Faculdade

do Juiacutezo de Kant e alguns apontamentos de textos extraiacutedos de obras em que a filosofia se

relaciona com temas das ciecircncias naturais Este material variado dentre o qual destacam-se

algumas relaccedilotildees de ideias e conclusotildees a serem comprovadas pela exposiccedilatildeo foram

reunidas apenas muito tardiamente em um dos muitos esforccedilos de conservaccedilatildeo da obra

nietzschiana ficando entatildeo conhecidas pela criacutetica do pensamento nietzschiano sob o tiacutetulo

de Zur Teleologie

As notas constituem material fundamental para a compreensatildeo da imbricada relaccedilatildeo

de Nietzsche com as principais influecircncias de seu pensamento com as quais entra em

contato jaacute na juventude Dentre estas influecircncias destacam-se uma seacuterie de autores das

ciecircncias naturais pesquisadores materialistas com os quais Nietzsche estabelece contato

atraveacutes de sua leitura de Friedrich Albert Lange O proacuteprio Lange representa uma

influecircncia fundamental para Nietzsche naquele periacuteodo e suas ideias acerca da filosofia

kantiana assim como de sua relaccedilatildeo com as ciecircncias garantem o estiacutemulo para a tentativa

de dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico Esta eacute por exemplo a interpretaccedilatildeo de

Elisabeth Foumlrster-Nietzsche a qual relata

Existe (hellip) um resumo de um trabalho ldquoacerca do conceito de orgacircnicodesde Kantrdquo com que meu irmatildeo durante sua convalescenccedila em marccedilo eabril (1866) se ocupou Ele tinha provavelmente retirado o estiacutemulo paraesse trabalho da Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange oqual ele leu imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo e o qual ele estudounovamente em fevereiro de 186817

A obra de Lange a qual impactou fortemente Nietzsche representava uma espeacutecie

de reconstruccedilatildeo da histoacuteria do materialismo centrada na figura de Kant O fato de

Nietzsche pretender elaborar uma dissertaccedilatildeo acerca das relaccedilotildees entre a filosofia kantiana

17 Conforme Elisabeth Foumlrster-Nietzsche Das Leben Nietzsches Leipzig Verlag von C G Naumann 1895LN 1 269

15

e os estudos recentes acerca dos oacutergatildeos da sensibilidade humana logo apoacutes sua leitura da

obra de Lange natildeo poderia ser confundida como mera coincidecircncia Outra forte evidecircncia

de que Albert Lange foi uma forte inspiraccedilatildeo para esse trabalho encontra-se nas listas de

leituras a serem realizadas parte importante das notas que nos foram legadas Entre os

autores pertencentes a estas listas a serem pesquisadas praticamente todos satildeo cientistas e

filoacutesofos dos quais Nietzsche tomou conhecimento atraveacutes de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo de Albert Lange

Nosso interesse nessa coleccedilatildeo de apontamentos para a dissertaccedilatildeo de Nietzsche se

justifica por vaacuterias razotildees Para aleacutem da importacircncia de rever escritos que ajudam a

descortinar um pouco de seu pensamento de juventude essas notas ajudam a descortinar o

caraacuteter prematuro do posicionamento filosoacutefico desse autor com relaccedilatildeo agrave temas

fundamentais para seu pensamento maduro Percebe-se em boa parte da argumentaccedilatildeo

sustentada nessas notas assim como no material que o autor escolhe para suportar esta

argumentaccedilatildeo que o filoacutesofo jaacute naquela eacutepoca demonstrou certa preocupaccedilatildeo com temas

fundamentais elaborados em profundidade em sua filosofia madura Por outro lado a

discussatildeo do tema da teleologia o potildee em contato com uma temaacutetica fundamental da

filosofia de todos os tempos

Do mesmo modo quando anuncia a Deussen sua intenccedilatildeo de escrever uma

dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant o jovem estudante insinua a

disposiccedilatildeo em trabalhar com um conjunto de questotildees que jaacute compotildeem suas preocupaccedilotildees

fundamentais acerca da natureza do conhecimento Estas questotildees estatildeo intimamente

relacionadas com a criacutetica ao conhecimento expressa em sua obra de maturidade como

testemunho de que Nietzsche natildeo consegue resolver estas questotildees mesmo muitos anos

apoacutes suas primeiras incursotildees no tema

O aspecto epistemoloacutegico da investigaccedilatildeo a ser empreendida jaacute desponta nos

trechos de correspondecircncia citados em que Nietzsche se refere agrave questatildeo dos ldquolimites do

conhecimentordquo e sua relaccedilatildeo com a ldquosensibilidade humanardquo Estas questotildees implicam uma

anaacutelise do papel dos sentidos na constituiccedilatildeo do conhecimento do mesmo modo que

conduzem a uma consideraccedilatildeo do necessaacuterio condicionamento do que pode ser conhecido

pelas limitaccedilotildees da proacutepria sensibilidade humana Nesse sentido a reflexatildeo nietzschiana

expressa nestas notas aponta claramente para uma concepccedilatildeo de conhecimento como algo

determinado pelo aparato fisioloacutegico humano Tendo em vista estes aspectos fundamentais

16

do trabalho em questatildeo eacute possiacutevel identificar traccedilos precursores da compreensatildeo

nietzschiana acerca do conhecimento notadamente na questatildeo da determinaccedilatildeo do que

pode ser conhecido pelo homem segundo a natureza de sua constituiccedilatildeo natural18

De que estes fragmentos comportam informaccedilotildees importantes acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de conhecimento de seu juiacutezo acerca da metafiacutesica das relaccedilotildees entre a

linguagem e a conceitualidade temos o relato de Crawford para quem uma leitura atenta

das notas preparatoacuterias oferece um contato indispensaacutevel com todas estas concepccedilotildees tais

como elas aparecem no pensamento nietzschiano de juventude

Um olhar atento nessas notas acerca da teleologia eacute essencial para minhaposterior discussatildeo porque elas demonstram quatildeo fundamentalmente aepistemologia de Nietzsche eacute baseada em sua teoria da linguagem Nelasnoacutes encontramos a contiacutenua criacutetica de Nietzsche agrave metafiacutesica na qual eleusa como principal ferramenta sua compreensatildeo dos limites da linguageme conceptualidade Nietzsche equaciona pensamento teleoloacutegico compensamento metafiacutesico Em sua carta a Deussen o proacuteprio Nietzscheenfatiza natildeo exatamente o orgacircnico ou o teleoloacutegico mas acima distoele explora a ldquorelatividade consciente do conhecimentordquo e o ldquoponto doslimites do conhecimentordquo Veremos ateacute que ponto Nietzsche se apropriada ideia langeana de que qualquer que seja nossa abordagem dos limitesdo conhecimento o que resta para aleacutem satildeo palavras expressotildees e ummundo de relaccedilotildees mas nunca a verdade em si (CRAWFORD 1988Paacuteg 106)

Para aleacutem destas questotildees no entanto as notas sobre teleologia trazem informaccedilotildees

fundamentais acerca da relaccedilatildeo de Nietzsche com as concepccedilotildees otimista e pessimista sua

consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a toda presunccedilatildeo de racionalidade na natureza e sua ideia

de que esta racionalidade seria antes o resultado de nossa atuaccedilatildeo no mundo do que uma

caracteriacutestica da natureza ela mesma Como se vecirc estes satildeo temas que prenunciam os

caminhos percorridos pelo autor no desenvolvimento de sua filosofia resumidos nos

aspectos de caraacuteter filosoacutefico do trabalho pretendido

18 A limitaccedilatildeo da sensibilidade humana como um traccedilo determinante daquilo que pode ser conhecido pelohomem eacute uma conclusatildeo fundamental das notas a qual percorre uma longa trajetoacuteria ateacute se tornar um aspectofundamental da compreensatildeo nietzschiana do caraacuteter perspectivo de todo conhecimento Isto eacute na medida emque se considera que o perspectivismo nietzschiano estaria ligado agrave sugestatildeo fundamental de que cada umconhece do mundo segundo sua perspectiva a qual eacute determinada fundamentalmente pela sua constituiccedilatildeofisioloacutegica Como fundamento dessa compreensatildeo na filosofia nietzschiana de maturidade observe-se o queeacute dito no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia onde Nietzsche reflete acerca do desenvolvimento dos estudos dafisiologia e dos animais e de como esses estudos nos aproximam da ldquopremonitoacuteria suspeita de Leibnizrdquo ouseja do fato de que cada indiviacuteduo pode conhecer apenas a partir de sua perspectiva

17

Por outro lado a curiosa escolha de fontes para a tese sinaliza o interesse de

Nietzsche mesmo naquele periacuteodo prematuro de seu pensamento em temas das ciecircncias

naturais ou antes para as respostas das ciecircncias naturais para problemas filosoacuteficos

bastante de acordo com o espiacuterito que animou o renascimento do materialismo em sua

eacutepoca Aparentemente cansado do idealismo que reinava nas concepccedilotildees filosoacuteficas

daquele periacuteodo e ainda sob a influecircncia de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Nietzsche enxerga nas ciecircncias naturais um caminho seguro para livrar a filosofia de sua

maacute compreensatildeo acerca de questotildees fundamentais acerca da natureza

Se considerarmos a concepccedilatildeo kantiana acerca dos juiacutezos teleoloacutegicos como o

objeto principal das nota preparatoacuterias que serviraacute como mote para a criacutetica nietzschiana agrave

proacutepria concepccedilatildeo de Teleologia temos aqui uma antecipaccedilatildeo de uma criacutetica fundamental

que o filoacutesofo desenvolveraacute em sua filosofia madura Nesta preacutevia de sua criacutetica agrave

concepccedilatildeo teleoloacutegica que como Crawford aponta eacute associada por Nietzsche a uma

concepccedilatildeo metafiacutesica nos deparamos com noccedilotildees fundamentais que seriam posteriormente

conformadas em modos proacuteprios da filosofia nietzschiana Nesse sentido as notas servem

como um primeiro esboccedilo um primeiro deparar-se de Nietzsche com questotildees as quais o

filoacutesofo ofereceraacute como resposta em sua filosofia madura seu perspectivismo No entanto

na medida em que o projeto de Zur Teleologie foi abandonado com a mesma intensidade

com que fora elaborado as notas que compotildeem o que nos foi legado deste projeto nos

fornecem apenas um indicativo de como jaacute em 1868 Nietzsche compreendia o problema

dos limites do conhecimento

A nosso ver nas notas em questatildeo o autor ensaia uma espeacutecie de protoacutetipo do

perspectivismo na medida em que considera que o orgacircnico seria apenas uma noccedilatildeo

ficcional forjada pelo intelecto e que portanto os produtos subjetivos da razatildeo natildeo

passariam de ficccedilotildees de produtos esteacuteticos forjados a partir da capacidade criativa inerente

a tudo que vive Ou seja apesar de ser questionaacutevel por conta sobretudo da leitura

enviesada e de segunda matildeo da obra kantiana leitura que eacute fundamentada com base nas

interpretaccedilotildees de Kuno Fischer Albert Lange e Schopenhauer entre outros Zur Teleologie

apresenta alguns pontos de vista de grande relevacircncia para o aprofundamento das questotildees

acerca da compreensatildeo nietzschiana dos problemas com a concepccedilatildeo tradicional de

conhecimento

18

Vaacuterias satildeo os problemas apresentados nas notas que mais tarde seriam elaborados

de forma mais apropriada por Nietzsche Primeiramente temos nestas notas preparatoacuterias a

apresentaccedilatildeo de uma noccedilatildeo de organismo como multiplicidade noccedilatildeo que tambeacutem no

periacuteodo maduro de seu pensamento se relacionaraacute com seu perspectivismo Em segundo

lugar em Zur Teleologie eacute realizada a denuacutencia da natureza ficcional e utilitaacuteria da

concepccedilatildeo de teleologia que como outras concepccedilotildees tomadas por Nietzsche como

oriundas de uma consideraccedilatildeo metafiacutesica um conceito de caraacuteter universal que a tradiccedilatildeo

acredita se circunscrever no acircmbito puramente cognitivo eacute considerada naquele texto

como o produto de uma perspectiva limitada

A discussatildeo desenvolvida em Zur Teleologie sobre a finalidade da natureza colocara

Nietzsche diante de um dos principais problemas que sua filosofia precisara administrar o

problema do valor dos produtos subjetivos da razatildeo Toda a argumentaccedilatildeo nietzschiana em

torno das concepccedilotildees de teleologia e mecanicismo se justifica quase que exclusivamente

por apontar para esse problema A resposta para esse problema passa pela questatildeo do

niilismo discutida mais a frente e pela consideraccedilatildeo do perspectivismo como uma forma

de pensar os produtos da razatildeo como tendo valor a partir de uma consideraccedilatildeo de seu valor

bioloacutegico mas tambeacutem como expressatildeo da forccedila vital inerente a criaccedilatildeo de valor objetos

do capiacutetulo final deste trabalho

Estes elementos fazem de Zur Teleologie um objeto de interesse fundamental para

nossa investigaccedilatildeo Pois na medida em que o autor investiga a possibilidade de se rejeitar

concepccedilotildees tais como o juiacutezo teleoloacutegico sem que em seu lugar seja necessaacuterio recorrer a

outra qualquer concepccedilatildeo de cunho metafiacutesico percorre hipoacuteteses que em sua filosofia

madura se relacionaram ao questionamento acerca do embate entre valor vital e valor de

verdade de determinadas concepccedilotildees Esta forma de conceber o problema do valor de

concepccedilotildees metafiacutesicas antecipa a discussatildeo em torno da validade dos produtos da

atividade criativa humana como objetos de valor vital e os problemas oriundos de se tomar

este valor como estando vinculado a um valor de verdade absoluto

11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica

19

Para a elaboraccedilatildeo de sua criacutetica da questatildeo teleoloacutegica no conjunto de notas que

comentaremos a seguir Nietzsche parte de uma leitura particular das filosofias de Kant

Albert Lange e Schopenhauer Mais especificamente sua argumentaccedilatildeo em torno da

concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo que constitui-se em um tema de importacircncia significativa

para ao desenvolvimento posterior de sua concepccedilatildeo de conhecimento eacute fundamentada em

uma releitura das posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer a partir de uma fundamentaccedilatildeo

cientiacutefica que o autor retira de sua leitura da obra de Lange Assim considerada a tradiccedilatildeo

filosoacutefica em torno do problema do qual Nietzsche pretende se aproximar a relevacircncia da

tentativa nietzschiana de se inserir na questatildeo acerca da teleologia eacute condicionada pelo

aspecto semifilosoacutefico e semi- cientiacutefico de seus argumentos

Para resumir uma questatildeo maior do que o espaccedilo que temos para apresentaacute-la

diriacuteamos que pelo menos desde a modernidade19 partidos disputam acerca da organizaccedilatildeo

da realidade no sentido de interpretar essa realidade ou bem como o resultado da

interaccedilatildeo dos aacutetomos ou bem de maneira teleoloacutegica ou seja como se esta se dispusesse

segundo uma finalidade uacuteltima Eacute neste embate teoacuterico que as colocaccedilotildees de Nietzsche

pretendem se situar De modo geral os fundamentos para a compreensatildeo nietzschiana do

problema da teleologia naquele momento de sua produccedilatildeo seriam as conclusotildees

apresentadas por Kant na segunda seccedilatildeo de sua Criacutetica do Juiacutezo acerca do Juiacutezo

Teleoloacutegico e as criacuteticas de Schopenhauer e Albert Lange a essas conclusotildees

No entanto se sua reflexatildeo se prendesse a estas referecircncias teoacutericas o conjunto de

fragmentos em questatildeo teria pouco interesse em nossa investigaccedilatildeo O que nos importa

aqui aleacutem da opiniatildeo nietzschiana acerca desses temas eacute sua interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees

mencionadas Motivo pelo qual necessitamos reconstruir minimamente as concepccedilotildees que

inspiraram Nietzsche na tentativa de entender como sua reflexatildeo pode ser tomada como

uma novidade em relaccedilatildeo ao problema da teleologia Neste sentido talvez natildeo seja absurdo

retomar a apresentaccedilatildeo schopenhaueriana do problema

No apecircndice para sua obra maacutexima em que concentra sua criacutetica da filosofia

kantiana Schopenhauer define o problema da teleologia como a disputa entre uma posiccedilatildeo

materialista e uma posiccedilatildeo teiacutesta acerca da produccedilatildeo do mundo Com essa apresentaccedilatildeo do

19 Propriamente falando a questatildeo remonta agrave antiguidade com a concepccedilatildeo aristoteacutelica das causas finaisassumindo na idade meacutedia uma feiccedilatildeo teoloacutegica por meio da ideia de um ser criador da realidade conformeuma inteligecircncia a semelhanccedila da humana Mas na criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica emboraestes ancestrais da questatildeo natildeo sejam ignorados ocupam papel secundaacuterio se comparados com os autoresque precedem imediatamente Kant

20

problema o autor prepara o terreno para a inclusatildeo de Kant na discussatildeo a partir de sua

concepccedilatildeo teleoloacutegica como um ponto de virada que torna sem sentido as posiccedilotildees dos

partidos em disputa Diz Schopenhauer

Ateacute Kant havia-se estabelecido para si o verdadeiro dilema entrematerialismo e teiacutesmo vale dizer entre a assunccedilatildeo de que um acaso cegoou uma inteligecircncia ordenadora de fora segundo fins e conceitos tenhaproduzido o mundo neque dabatur tertium (Natildeo havia terceirapossibilidade) Por isso ateiacutesmo e materialismo eram a mesma coisa Daiacutea duacutevida se poderia existir um ateu isto eacute uma pessoa que pudesserealmente confiar ao acaso cego a tatildeo extraordinaacuteria ordenaccedilatildeo finaliacutesticada natureza em especial a orgacircnica (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg637)

O problema acerca da produccedilatildeo do mundo eacute apresentada aqui como estando

diretamente relacionada agrave pergunta pelos princiacutepios ou fins norteadores de uma tal

produccedilatildeo Se concordamos com Schopenhauer entatildeo seria necessaacuterio admitir que natildeo

haveriam diferenccedilas fundamentais entre o ateiacutesmo e o materialismo na medida em que o

materialismo seria a explicaccedilatildeo da origem do mundo por meio de causas meramente

fiacutesicas sem a intercessatildeo divina Ou seja ambas interpretaccedilotildees rejeitam a ideia de que

Deus estaria reduzido a agente criador do mundo conforme um plano sumamente

inteligente Do mesmo modo em ambas as leituras parece subsistir a ideia de que o mundo

eacute tal como se nos apresenta

O problema da criaccedilatildeo do mundo tal como eacute posto por Schopenhauer implica na

compreensatildeo do modo como o mundo fora ordenado Nessa leitura ou bem esta ordenaccedilatildeo

se deu por acaso ou bem cumpria os ditames de uma inteligecircncia superior guiada por

finalidades a que se devia tal ordenaccedilatildeo A questatildeo mesma da natureza desta ordenaccedilatildeo natildeo

eacute posta em duacutevida jaacute que para ambos os partidos em disputa ela pareceria evidente na

contemplaccedilatildeo do mundo Teria sido em meio a essa disputa que Kant teria surgido e

mudado o foco da questatildeo por meio da distinccedilatildeo entre fenocircmenos e coisas em si

A validade daquela premissa maior disjuntiva daquele dilema entrematerialismo e teiacutesmo assenta-se na assertiva de que o mundo existentediante de noacutes eacute o das coisas em si por conseguinte natildeo existiria outraordem de coisas senatildeo empiacuterica Poreacutem depois que o mundo e suaordenaccedilatildeo se tornou via Kant mero fenocircmeno cujas leis se encontram

21

principalmente nas formas de nosso intelecto a existecircncia e a essecircnciadas coisas e do mundo natildeo precisam mais ser explanadas conformeanalogia das mudanccedilas percebidas ou efetuadas por noacutes NO mundo Nemaquilo que apreendemos como meio e fim teria nascido em consequecircnciade um tal conhecimento Portanto Kant privando o teiacutesmo de seufundamento mediante a importante distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa emsi abriu por outro flanco o caminho para as explanaccedilotildees completamentediversas e mais profundas sobre a existecircncia (SCHOPENHAUER 1966paacuteg 638)

Para Schopenhauer portanto ateacute Kant apenas se podia discutir a questatildeo da

produccedilatildeo do mundo de duas formas ou bem o mundo eacute produto de uma criaccedilatildeo divina ou

obra do acaso Isto porque o modelo para a compreensatildeo da criaccedilatildeo das coisas era a

atuaccedilatildeo do homem em uma realidade que se considerava a realidade ela mesma Por outro

lado a partir da compreensatildeo de que o mundo que estaacute a disposiccedilatildeo para a criaccedilatildeo por

parte da inteligecircncia eacute justamente o mundo dos fenocircmenos torna-se sem sentido a

analogia entre a inteligecircncia divina e a humana

As duas uacutenicas alternativas ateacute entatildeo ou bem o mundo teria sido constituiacutedo

segundo uma inteligecircncia exterior ou bem seria o resultado de causas mecacircnicas pareciam

insuficientes para dar conta do problema da produccedilatildeo do mundo tanto assim que a questatildeo

natildeo chegava a uma soluccedilatildeo Ao apresentar assim o problema o autor potildee em relevo a

filosofia kantiana como um ponto de ruptura com as correntes de pensamento anteriores

que discerniam apenas de forma dualiacutestica o problema

A inserccedilatildeo de Kant nessa disputa deu-se por meio da compreensatildeo segundo a qual

os seres orgacircnicos natildeo seriam passiacuteveis de compreensatildeo apenas segundo modelos

mecacircnicos porque em sua natureza estaria incluiacuteda uma espeacutecie de necessidade

inexplicaacutevel segundo a necessidade mecacircnica tradicional Ou seja no reino inorgacircnico

diferentemente do reino orgacircnico tudo se reduziria agrave relaccedilatildeo de causas e efeitos segundo a

qual os processos de originaccedilatildeo e desenvolvimento seriam passiacuteveis de serem

compreendidos Para salientar esta questatildeo o filoacutesofo utiliza o caso da cristalizaccedilatildeo a qual

considera uma espeacutecie de crescimento no reino do inorgacircnico

A formaccedilatildeo ocorre pois por uma uniatildeo repentina isto eacute por umasolidificaccedilatildeo raacutepida e natildeo por uma passagem progressiva do estado fluido

22

ao soacutelido mas como que por um salto cuja passagem tambeacutem eacutedenominada cristalizaccedilatildeo (KANT 2016 Paacuteg 211)

A referecircncia kantiana ao processo de cristalizaccedilatildeo eacute pensada como meio de

contrastar o desenvolvimento e relaccedilatildeo entre as partes nos seres inorgacircnicos em relaccedilatildeo ao

mesmo processo nos seres orgacircnicos Para Kant a cristalizaccedilatildeo que nos seres inorgacircnicos

diz respeito ao processo de passagem do estado fluido para o soacutelido e que poderia ser

compreendido como uma forma de crescimento e desenvolvimento no reino inorgacircnico

natildeo seria correlato ao crescimento e desenvolvimento dos seres do reino orgacircnico Posto

que no reino orgacircnico ocorreria uma troca de causaccedilotildees entre o todo e as partes e vice-

versa que natildeo se observa no reino inorgacircnico Segundo o exemplo kantiano haveria uma

muacutetua dependecircncia na geraccedilatildeo das folhas de uma aacutervore em relaccedilatildeo agrave proacutepria aacutervore

contrariamente ao que se observa na realidade inorgacircnica O crescimento das folhas

depende da aacutervore mas o desenvolvimento das aacutervores igualmente depende do

desenvolvimento das folhas

Assim no entender de Kant a causalidade tradicional segundo a qual para cada

efeito deveria haver uma causa determinante natildeo corresponderia ao tipo de necessidade

que se observa na formaccedilatildeo e crescimento de seres organizados Os seres orgacircnicos em

sua leitura seriam determinados por um princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproco que apenas

poderia ser compreendida em conformidade com uma ideia de fim natural Eacute com base

nesse princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproca que no paraacutegrafo 65 da Criacutetica da faculdade do

juiacutezo que parece ter inspirado especialmente as concepccedilotildees criticadas por Nietzsche em

suas notas preparatoacuterias Kant prepara o caminho para sua definiccedilatildeo de um fim natural

Por isso para um corpo dever ser ajuizado em si e segundo a uma formainterna eacute necessaacuterio que as partes do mesmo se produzam umas agraves outrasreciprocamente em conjunto tanto segundo a sua forma como na sualigaccedilatildeo e assim produzam um todo a partir da sua proacutepria causalidadecujo conceito por sua vez e inversamente (num ser que possuiacutesse acausalidade adequada a um tal produto) poderia ser causa dele mesmosegundo um princiacutepio e em consequecircncia a conexatildeo das causaseficientes poderia ser ajuizada simultaneamente como efeito mediantecausas finais (KANT 2016 Paacuteg 239)

23

A explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos assim requer um elemento estranho agrave explicaccedilatildeo

dos seres inorgacircnicos Para a explicaccedilatildeo do desenvolvimento das plantas que eacute o exemplo

preferido pelo filoacutesofo nosso entendimento requer uma concepccedilatildeo de fim natural que

contrasta com a causalidade mecacircnica na medida em que causas eficientes devem ser

tomadas tambeacutem como ldquoefeitos mediante causas finaisrdquo logo a uma concepccedilatildeo de fim

natural das partes em relaccedilatildeo ao todo Nesse sentido ldquoEste princiacutepio que eacute ao mesmo

tempo a definiccedilatildeo dos seres organizados eacute o seguinte um produto organizado da natureza

eacute aquele em que tudo eacute fim e reciprocamente meio Nele nada eacute em vatildeo sem fim ou

atribuiacutevel a um mecanismo natural cegordquo (KANT 2016 Paacuteg 242) Diferentemente do

reino inorgacircnico em que se observa que para cada causa corresponde um efeito que se

torna independente da causa originaacuteria no sentido de que natildeo seria retroativo em relaccedilatildeo a

essa causa cada parte de um ser organizado eacute causa e fim do ser organizado enquanto

totalidade

O exemplo escolhido por Kant o de uma planta de cujas folhas eacute ao mesmo

tempo fim e meio expressa claramente a ideia de necessidade de uma causa final diretora

das causas em jogo nas partes e no todo Posto que o desenvolvimento das folhas eacute efeito

da planta mas como o desenvolvimento da proacutepria planta depende do desenvolvimento

das folhas o desenvolvimento das folhas tambeacutem seria causa do desenvolvimento da

planta Esta concepccedilatildeo de uma coisa como fim de si mesma segundo Kant possuiacutea apenas

uma analogia com a causalidade enquanto ldquoconceito constitutivo de nosso entendimentordquo

ou seja enquanto forma de nosso entendimento Pois no tipo de causalidade que se

observaria no reino orgacircnico na reciprocidade de causaccedilatildeo que se observa na relaccedilatildeo entre

os seres orgacircnicos e suas partes teriacuteamos um residuum um fragmento natildeo explicado do

fenocircmeno sempre que o pensaacutessemos segundo o conceito inteligiacutevel de causalidade

O problema da teleologia natural surge quando considerado o tipo de ldquocausalidaderdquo

atuante no reino orgacircnico em que parece atuar uma espeacutecie de finalidade que apenas seria

compreensiacutevel segundo a analogia de uma inteligecircncia superior Para esta finalidade

superior a ldquocausalidaderdquo corresponderia como categoria superior Assim ao menos

metodologicamente pareceria viaacutevel a suposiccedilatildeo de uma inteligecircncia superior como forma

de se compreender a causalidade atuante na natureza orgacircnica

Por outro lado enquanto a concepccedilatildeo de uma inteligecircncia formativa exterior esteja

para muito aleacutem de nossa capacidade de conhecimento posto que a sua universalidade a

24

colocaria para aleacutem dos limites do conhecimento empiacuterico recai sob a concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza o mesmo veto jaacute estabelecido na primeira criacutetica kantiana para as

ideias de Deus Liberdade e Alma Desta forma explica-se de que maneira a faculdade do

juiacutezo eacute aproximada por Kant da razatildeo teoacuterica e da razatildeo praacutetica Por meio de um uso

regulativo da concepccedilatildeo de conveniecircncia a fins que deve diferenciaacute-la do uso constitutivo

que o intelecto faz de seus conceitos Kant estabelece o uso do princiacutepio teleoloacutegico como

meacutetodo analoacutegico e acessoacuterio para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

O conceito de uma coisa enquanto fim natural em si natildeo eacute por isso umconceito constitutivo do entendimento ou da razatildeo No entanto pode serum conceito regulativo para a faculdade de juiacutezo reflexiva para orientar ainvestigaccedilatildeo sobre objetos desta espeacutecie segundo uma analogia remotacom nossa causalidade segundo fins em geral refletir sobre o seu maisalto fundamento o que natildeo serviria para o conhecimento da natureza oude seu fundamento originaacuterio mas muito mais do conhecimento daquelanossa faculdade racional praacutetica com a qual por analogia noacutesconsideraacutevamos a causa daquela conformidade a fins (KANT 2016 Paacuteg241-242)

O propoacutesito de Kant assim natildeo se confunde com a descriccedilatildeo da finalidade natural

Menos ainda com a proposiccedilatildeo da existecircncia de uma causalidade superior Por meio da

suposiccedilatildeo de uma finalidade natural o filoacutesofo da criacutetica apenas pensava constituir o

intelecto com mais um instrumento para a compreensatildeo da natureza o que fica claro no

paraacutegrafo 68 da Criacutetica da faculdade do juiacutezo em que o autor trata da teleologia como um

princiacutepio interno da natureza

Neste paraacutegrafo Kant parte da definiccedilatildeo na constituiccedilatildeo das ciecircncias de seus

princiacutepios internos ou princiacutepios constitutivos e os princiacutepios externos aqueles que

encontram sua fundamentaccedilatildeo em outras ciecircncias Com essa distinccedilatildeo o autor pretende

considerar o princiacutepio teleoloacutegico como princiacutepio externo agrave ciecircncia da natureza como um

princiacutepio assessoacuterio agrave ciecircncia da fiacutesica tal qual as ciecircncias matemaacuteticas Ou seja mais do

que traccedilar consideraccedilotildees epistemoloacutegicas Kant procura afastar-se da concepccedilatildeo de fim na

natureza como produto de uma inteligecircncia externa

A distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si aparece aqui como elemento fundamental

dessa compreensatildeo Pois eacute atraveacutes de seu posicionamento transcendental que o autor busca

separar a teleologia da teologia e assim abrir caminho para um uso cientiacutefico do princiacutepio

25

teleoloacutegico no estudo da natureza Este uso cientiacutefico meramente metodoloacutegico distingue-

se completamente das explicaccedilotildees teiacutestas da natureza

Diferentemente da compreensatildeo teoloacutegica que parte da pressuposiccedilatildeo de uma

inteligecircncia superior como fonte da finalidade natural o autor entende que apesar de nosso

entendimento carecer de um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos

conceber uma inteligecircncia exterior como causa da finalidade natural estaacute muito aleacutem da

capacidade cognitiva humana Por conta das limitaccedilotildees tiacutepicas de nossa forma de

considerar a realidade natildeo se pode saber se haacute um ser sumamente inteligente que criou a

natureza posto que tal existecircncia por definiccedilatildeo natildeo pode ser objeto de entendimento Do

mesmo modo seria impossiacutevel saber se caso um tal ser sumamente inteligente existisse

teria constituiacutedo a realidade segundo os princiacutepios de uma inteligecircncia anaacuteloga agrave

inteligecircncia humana Schopenhauer compreendeu bem essa distinccedilatildeo kantiana e natildeo

deixou de prestar sua homenagem a Kant pela sabedoria de suas conclusotildees

Kant tem plena razatildeo no assunto tambeacutem era necessaacuterio que apoacutes tersido mostrado que o conceito de causa e efeito natildeo se aplica ao todo danatureza em geral segundo sua existecircncia tambeacutem fosse mostrado queconforme sua iacutendole a natureza natildeo pode ser pensada como efeito deuma causa guiada por motivos (conceito de finalidade) Caso se pense nagrande plausibilidade da prova fisico-teoloacutegica que ateacute mesmoVOLTAIRE considerava irrefutaacutevel era da maior importacircncia mostrarque o subjetivo de nossa apreensatildeo para o qual Kant reivindicou espaccedilotempo e causalidade estende-se tambeacutem ao nosso julgamento dos corposnaturais e por conseguinte a necessidade que sentimos em pensaacute-loscomo surgidos premeditadamente segundo conceitos de finalidade logopor uma via ONDE A REPRESENTACcedilAtildeO DOS MESMOS TERIAPRECEDIDO SUA EXISTEcircNCIA eacute de origem tatildeo subjetiva quanto aintuiccedilatildeo do espaccedilo a expor-se objetivamente a qual entretanto natildeo podevaler como verdade objetiva (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 661)

Conforme o entendimento de Schopenhauer ao limitar o alcance do conceito de

finalidade agrave esfera da compreensatildeo humana Kant teria posto termo a credibilidade da

prova fiacutesico-teoloacutegica segundo a qual todo existente dependia de uma inteligecircncia

criadora Kant teria alcanccedilado esta vitoacuteria ao pressupor apenas de modo metodoloacutegico a

existecircncia de uma finalidade superior como uma exigecircncia do entendimento humano que

natildeo se sabe se pode obter um equivalente na realidade Nietzsche no entanto parece natildeo

26

ter tomado como suficiente o papel regulativo que Kant confere ao princiacutepio de fim

natural

A discordacircncia nietzschiana da compreensatildeo kantiana do problema natildeo eacute incidental

Pelo contraacuterio a forma como Kant reproduz o problema da teleologia apresenta-se ao autor

das notas preparatoacuterias como modelo da teoria a ser criticada Assim jaacute nas primeiras

linhas de Zur Teleologie o autor enuncia sua discordacircncia com o pensamento kantiano

ldquoKant tenta provar lsquoque haacute uma necessidade para pensar organismos como premeditados

quer dizer pensaacute-los em termos de conceitos de conformidade a finsrsquo apenas posso aceitar

que isto eacute uma forma de explicar-se a teleologiardquo (BAW 3 paacuteg 130)20 O que indica que o

filoacutesofo por seus proacuteprios motivos certamente apropria-se de forma inovadora da

distinccedilatildeo kantiana entre constitutivo e regulativo

Na medida em que se propotildee a efetuar uma reduccedilatildeo do conceito de explicaccedilatildeo a

uma concepccedilatildeo interpretativa entendimento que jaacute antecipa uma compreensatildeo

perspectivista Nietzsche pensa o conceito de finalidade natural como uma

antropomorfizaccedilatildeo desnecessaacuteria Nesse sentido tambeacutem o conceito de conveniecircncia a

fins para o autor das notas preparatoacuterias deveria ser compreendido como um aspecto

interpretativo mais do que um aspecto descritivo da natureza Um fato marcante para o

jovem Nietzsche eacute que em sua leitura o proacuteprio Kant deveria ter realizado a criacutetica das

concepccedilotildees reguladoras

O autor das notas preparatoacuterias compreende que se Kant natildeo o fez seria porque se

deixou levar por uma consideraccedilatildeo da concepccedilatildeo teleoloacutegica como expressatildeo de um

conhecimento do qual o autor da criacutetica sabia desde o princiacutepio natildeo ter direito Assim o

autor das notas preparatoacuterias engloba Kant em sua criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como

um antropomorfismo ingecircnuo embora seja muito provaacutevel que o proacuteprio Kant tenha

criticado as mesmas concepccedilotildees sob a mesma alegaccedilatildeo

De fato na medida em que considera sem sentido o recurso kantiano aos juiacutezos

explicativos Nietzsche enxerga no caraacuteter indeterminado do modo humano de

compreensatildeo da natureza a ausecircncia de um princiacutepio que justifique a admissatildeo dos

produtos de nossa consideraccedilatildeo da realidade como verdades inquestionaacuteveis A

conveniecircncia a fins na natureza eacute entatildeo reduzido elo autor a uma expressatildeo do modo

20 As notas Zur Teleologie satildeo citadas a partir do terceiro volume da ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas dejuventude de Nietzsche organizadas por METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a siglaldquoBAW 3rdquo e conforme sua paginaccedilatildeo As traduccedilotildees satildeo de nossa responsabilidade

27

humano de compreensatildeo do reino do orgacircnico Compreendida pelo autor das notas

preparatoacuterias como uma criaccedilatildeo do intelecto condicionada pelo proacuteprio aparelho conceitual

e perceptivo do homem a finalidade na natureza natildeo passaria de uma ficccedilatildeo que cumpre

um papel na ordenaccedilatildeo humana da realidade mas que fora desta ordenaccedilatildeo poderia natildeo ter

nenhum significado

Em Zur Telelologie A disposiccedilatildeo do reino orgacircnico segundo a ideia de uma

conveniecircncia a fins eacute tomada como produto de uma ldquoimaginaccedilatildeo estendidardquo uma ficccedilatildeo

criada pelo homem para poder regular seu conhecimento e suas accedilotildees Desde que para o

autor das notas preparatoacuterias o conceito de conformidade a fins eacute considerado um produto

esteacutetico esta concepccedilatildeo passa a ser a expressatildeo de um poder inconsciente que cria e se

serve do conhecimento para as funccedilotildees vitais como fortalecimento crescimento

preservaccedilatildeo Esta interpretaccedilatildeo diverge significativamente da interpretaccedilatildeo kantiana na

qual a noccedilatildeo de uma teleologia natural eacute pensada como um conceito subjetivo fundamental

para o uso da razatildeo

Nas notas preparatoacuterias Nietzsche ainda natildeo adianta a tese que nortearaacute seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira de que este tipo de ordenaccedilatildeo da natureza cumpre um papel

fundamental na conservaccedilatildeo do gecircnero humano A ideia fundamental nas notas eacute que uma

finalidade na natureza apenas eacute vista como uma forma especial de finalidade porque

tomamos a conservaccedilatildeo da vida como uma finalidade especial Assim o autor afirma no

apontamento 62[29] ldquoAqui verifica-se que acabamos de chamar proposital o que eacute viaacutevel

O segredo eacute apenas lsquovidarsquordquo(BAW 3 Paacuteg 380) Ao comentar as notas em questatildeo Lopes

identifica nesta concepccedilatildeo um certo pendor para a teoria de Lange na medida em que o

autor das notas preparatoacuterias amplia o escopo dos juiacutezos reflexivos tornando-os uma

questatildeo de utilidade bioloacutegica

Tambeacutem aqui Nietzsche deve ser visto como um herdeiro do programa deLange ao problematizar a distinccedilatildeo kantiana entre uso regulativo edeterminante dos juiacutezos Nietzsche daacute um passo decisivo rumo a umacompreensatildeo ficcional generalizada dos processos de assimilaccedilatildeo humanado mundo Os conceitos mobilizados pelos juiacutezos determinantes(Nietzsche fornece uma lista algo aleatoacuteria destes conceitos na passagemacima) satildeo igualmente regulativos e pertencem agrave mesma estrateacutegiaantropomoacuterfica de apropriaccedilatildeo do mundo (LOPES 2008 Paacuteg 153)

28

Assim a compreensatildeo de base de que os conceitos satildeo criaccedilotildees humanas

condicionadas pela organizaccedilatildeo humana que eacute um traccedilo comum a ambas obras de

juventude nietzschianas tanto seu Ensaio sobre Verdade e Mentira quanto as notas

preparatoacuterias representaria uma releitura de uma conclusatildeo fundamental da filosofia de

Albert Lange Ou seja a apropriaccedilatildeo da concepccedilatildeo kantiana de uso regulativo dos

conceitos na forma de uma consideraccedilatildeo bioloacutegica uma apropriaccedilatildeo em que os interesses

para a vida entram em jogo representaria uma interpretaccedilatildeo nietzschiana das

consideraccedilotildees de Albert Lange o qual para Lopes ldquorestringe a fantasia especulativa ao

acircmbito do discurso edificante e da ficccedilatildeo conceitualrdquo (LOPES 2008 Paacuteg 152)

O que estaacute sendo dito aqui eacute que tanto para Albert Lange quanto para o jovem

autor das notas preparatoacuterias conceitos como o conceito de finalidade natural cumpririam

um importante papel na apropriaccedilatildeo humana da realidade Com o amadurecimento da

reflexatildeo nietzschiana uma consequecircncia mais geral desta forma de compreensatildeo do

problema conduziraacute agrave ideia de que natildeo haacute conhecimento no sentido tradicional mas

somente interpretaccedilatildeo criaccedilatildeo de ilusotildees segundo a determinaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo e

conforme a necessidade humana de dominaccedilatildeo da natureza Os juiacutezos explicativos

pressupostos por Kant em sua criacutetica do juiacutezo tornam-se sem sentido na reflexatildeo do jovem

Nietzsche devendo ser substituiacutedos pela categoria de interpretaccedilatildeo Esta compreensatildeo do

papel da interpretaccedilatildeo como uma afirmaccedilatildeo dos limites da compreensatildeo humana antecipa

os traccedilos fundamentais da madura compreensatildeo nietzschiana do conhecimento

12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia

Como apresentamos na seccedilatildeo anterior a redaccedilatildeo das notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie tem nas reflexotildees de Kant e Schopenhauer uma inspiraccedilatildeo contiacutenua No entanto

em sua investigaccedilatildeo do problema teleoloacutegico o autor das notas busca conferir uma

abordagem diferenciada ao problema Esta abordagem diferenciada em parte se deveria a

uma constante reflexatildeo em torno das descobertas das ciecircncias naturais Ou seja a novidade

da abordagem nietzschiana se explica em parte no caraacuteter semicientiacutefico que o autor

29

pretendia conferir a sua tese No entanto no plano filosoacutefico qual seria a natureza das

divergecircncias de Nietzsche com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer

Na medida em que a criacutetica nietzschiana a toda forma de teleologia baseia-se em

uma consideraccedilatildeo do caraacuteter antropomoacuterfico da proacutepria ideia de conveniecircncia a fins21 a

interpretaccedilatildeo kantiana apareceria como modelo de uma forma ingecircnua de interpretaccedilatildeo

teleoloacutegica por desconsiderar a atuaccedilatildeo do intelecto na formaccedilatildeo daquilo que

compreendemos como a ideia de organismo Nessa criacutetica o autor acompanha de perto a

Schopenhauer a quem se refere ao apontar que ldquoA simples ideia eacute distribuiacuteda na

multiplicidade de partes e condiccedilotildees do organismo mas resta intacta na junccedilatildeo necessaacuteria

das partes e funccedilotildeesrdquo (BAW 3 paacuteg 372)

A divergecircncia do autor das notas com relaccedilatildeo agrave Kant portanto eacute posta nos

primeiros momentos de sua reflexatildeo sua abordagem do problema entende-se como um

afastamento de Kant na medida em que o autor das notas pretende efetuar a reduccedilatildeo da

ideia de finalidade natural a um traccedilo da proacutepria constituiccedilatildeo humana A afirmaccedilatildeo

nietzschiana de que Kant deveria ser compreendido como um filoacutesofo filiado a uma

corrente teleoloacutegica em filosofia (BAW Paacuteg 372) estaacute diretamente ligada a esta forma de

compreensatildeo do problema Para Nietzsche a defesa de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica como

necessaacuteria para a compreensatildeo da natureza tal como esta noccedilatildeo apareceria na Criacutetica do

Juiacutezo soacute poderia ser admitida como uma maneira de definir o conceito de teleologia

A denuacutencia da filosofia kantiana como uma forma de defesa da teleologia parte da

compreensatildeo de que Kant chega em sua investigaccedilatildeo da finalidade natural a uma

conclusatildeo natildeo fundamentada Em sua anaacutelise das conclusotildees da Criacutetica do Juiacutezo

Nietzsche identifica uma transposiccedilatildeo indevida da anaacutelise da realidade fenomecircnica para

21 Crawford observa o caraacuteter antropomoacuterfico por traacutes da proacutepria consideraccedilatildeo da ideia de conveniecircncia afins tal como Nietzsche entende essa ideia ldquoAo levarmos em consideraccedilatildeo o primeiro ponto nos planos daobra de Nietzsche lsquoconceito de conveniecircncia a finsrdquo (Begriff der Zweckmaumlssigkeit BAW 3 Paacuteg 392) noteque ele qualifica a palavra conveniecircncia a fins (Zweckmaumlssigkeit Crawford traduz este termo por expedience)como o conceito de conveniecircncia a fins Nietzsche cita Kant duas vezes a partir da Criacutetica do Juiacutezo acerca dopapel fundamental dos conceitos lsquoNoacutes temos completa ideia apenas do que podemos fazer e cumprir deacordo com nossos conceitosrsquo A isso Nietzsche responde lsquoo que se encontra aleacutem dos conceitos eacutecompletamente incompreensiacutevelrsquo Tendo em vista superar o fato de que os seres humanos se potildee diante dodesconhecido eles inventam lsquoconceitos os quais apenas reuacutenem uma soma de caracteriacutesticas aparentes asquais poreacutem natildeo conseguem apreender as coisasrsquo Nietzsche entatildeo enfatiza a natureza provisional daconceitualidade com relaccedilatildeo aos elementos baacutesicos de uma consideraccedilatildeo teleoloacutegica ao escrever lsquoEntre estesestatildeo forccedila mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causa final Estes natildeo satildeo partes mas apenas juiacutezosreflexivosrsquordquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 110)

30

uma realidade superior apartada do mundo orgacircnico o que representaria um salto loacutegico

com base na pressuposiccedilatildeo da necessidade de se considerar fins na natureza Para o autor

das notas preparatoacuterias portanto Kant natildeo teria conseguido superar a interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica do problema teleoloacutegico

O tratamento do problema da teleologia nas notas preparatoacuterias que se oferece

como a transiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica para uma interpretaccedilatildeo eminentemente

epistemoloacutegica converge para uma forma de reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento

e dos limites da capacidade de compreensatildeo humana Assim em sua leitura Nietzsche

concebe a origem da ideia de finalidade exterior como uma superexaltaccedilatildeo da

racionalidade humana que por meio da analogia entre a inteligecircncia constituidora da

natureza com a nossa organizaccedilatildeo conduz a uma compreensatildeo da realidade segundo

princiacutepios finaliacutesticos

Para o jovem Nietzsche a suposiccedilatildeo de uma realidade organizada mediante uma

inteligecircncia exterior seria um antropomorfismo ingecircnuo Tal antropomorfismo que faz

com que se conceba a ideia de finalidade como um traccedilo ineliminaacutevel da realidade

conduziria inevitavelmente a uma concepccedilatildeo teleoloacutegica da realidade Competiria agrave criacutetica

da concepccedilatildeo teleoloacutegica desvelar este antropomorfismo por meio da fundamentaccedilatildeo da

compreensatildeo desta ideia como uma forma humana de compreensatildeo da realidade Nesse

sentido na medida em que a concepccedilatildeo teleoloacutegica diria respeito a nosso modo de

enxergar a realidade e natildeo agrave realidade tal como ela poderia ser em si mesma Nietzsche

trata do problema mediante um tratamento segundo uma anaacutelise das condiccedilotildees de

percepccedilatildeo das finalidades e natildeo de sua realidade necessaacuteria que seria a pretensatildeo por traacutes

das aproximaccedilotildees racionalistas

Segundo a leitura apresentada por Nietzsche nas notas preparatoacuterias a explicaccedilatildeo

kantiana do mundo orgacircnico parece reclamar um recurso agraves coisas em si para sua

justificaccedilatildeo Nesse sentido o jovem autor das notas preparatoacuterias se volta contra Kant e a

favor de Schopenhauer quando afirma ldquoA ideia expandida acima confere a explicaccedilatildeo da

conveniecircncia a fins externa A coisa em si deve lsquomostrar sua unidade na aceitaccedilatildeo de todas

as partesrsquordquo (BAW 3 paacuteg 373) O filoacutesofo compreende que se a natureza apenas nos pode

ser compreensiacutevel mediante a ideia de uma necessidade ou uma propensatildeo natural a fins

31

isto deveria ser creditado a uma caracteriacutestica de nossa forma de compreender o mundo e

natildeo agrave realidade ela mesma

A ideia de uma finalidade natural ideia na qual Kant teria se baseado para sua

defesa da adoccedilatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico norteador da investigaccedilatildeo da natureza

aparece nessa leitura como a transposiccedilatildeo de um elemento da consideraccedilatildeo humana da

natureza para a proacutepria natureza A criacutetica nietzschiana a interpretaccedilatildeo teleoloacutegica kantiana

portanto baseia-se na ideia de que a referecircncia ou o pressuposto da experiecircncia humana

como condiccedilatildeo de constituiccedilatildeo da natureza natildeo pode ser entendido senatildeo como a

radicalizaccedilatildeo de um caraacuteter aleatoacuterio como uma antropomorfizaccedilatildeo da natureza Esta

criacutetica no entanto apenas pode ser adiantada por Nietzsche na medida em que o autor

julga insuficiente o recurso kantiano agrave distinccedilatildeo entre conceito explicativo e conceito

regulativo Ou seja Nietzsche pensa que a admissatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico ainda que

meramente como uma ferramenta auxiliar no estudo da natureza torna a concepccedilatildeo

kantiana como modelo de toda forma de defesa ingecircnua do princiacutepio de finalidade externa

Mas como compreender a relaccedilatildeo intriacutenseca entre as partes e o todo em um

organismo senatildeo por meio de uma ideia de finalidade Assim como na leitura

schopenhaueriana Nietzsche entende que esta accedilatildeo de junccedilatildeo seria uma accedilatildeo realizada

pelo intelecto e natildeo uma caracteriacutestica dos organismos Deste modo o autor das notas

afirma ldquoA conveniecircncia a fins do orgacircnico a regularidade do inorgacircnico satildeo acrescentadas

agrave natureza atraveacutes de nossa compreensatildeordquo (BAW 3 paacuteg 373) Nesse sentido a

conveniecircncia a fins identificada por Kant na realidade orgacircnica corresponderia apenas a

uma transposiccedilatildeo do modo humano de compreensatildeo da natureza agrave proacutepria natureza

A conformidade de opiniatildeo entre Nietzsche e Schopenhauer natildeo eacute total Esta

concordacircncia com Schopenhauer aparece nas notas preparatoacuterias quase que de forma

instrumental especialmente para a criacutetica da posiccedilatildeo kantiana Por outro lado o

desenvolvimento da reflexatildeo nietzschiana conduz a uma criacutetica ao recurso

schopenhaueriano agrave vontade como instacircncia em que a ideia de unidade se fundamentaria

Nessa leitura a compreensatildeo schopenhaueriana da ideia de conflito na natureza como uma

reflexo da atuaccedilatildeo do intelecto que se resolveria na ideia uacutenica de vontade eacute apresentada

como implicando em dificuldades teoacutericas incontornaacuteveis que apenas por meio do recurso

a uma vontade ao mesmo tempo muacuteltipla e una seria solucionaacutevel

32

A interpretaccedilatildeo schopenhaueriana da conformaccedilatildeo das partes ao todo aparece em

sua filosofia como resposta ao problema da adequaccedilatildeo dos organismos em relaccedilatildeo agraves preacute-

condiccedilotildees de sua existecircncia Nesta abordagem tambeacutem eacute levada em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo

entre as partes do organismo em relaccedilatildeo ao organismo como um todo tal como esta relaccedilatildeo

eacute expressa por Kant na Criacutetica do Juiacutezo e que seria justamente o que fundamenta a

concepccedilatildeo teleoloacutegica expressa naquela obra22 Para Schopenhauer o instinto animal seria

a perfeita representaccedilatildeo da figuraccedilatildeo da finalidade na natureza Pois os animais embora

natildeo possam se figurar uma finalidade por natildeo serem racionais parecem agir segundo uma

finalidade sua manutenccedilatildeo

De maneira geral o instinto dos animais nos fornece o melhoresclarecimento para a restante teleologia da natureza Pois se o instinto eacutecomo se fosse um agir conforme um conceito de fim no entantocompletamente destituiacutedo dele assim tambeacutem todos os quadros danatureza se assemelham aos feitos conforme a um conceito de fim e noentanto completamente destituiacutedos dele Em realidade tanto nateleologia externa quanto na interna da natureza aquilo que temos depensar como meio e fim eacute em toda parte apenas o FENOcircMENO DAUNIDADE DA VONTADE UNA EM CONCORDAcircNCIA CONSIGOMESMA que apareceu no espaccedilo e no tempo para o nosso modo deconhecimento (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Como se explica esta correlaccedilatildeo temporal assim como sua reciprocidade A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta finalidade natural se daacute por meio da conformidade dos

fenocircmenos em relaccedilatildeo a uma objetividade originaacuteria da Vontade Una Como a passagem

deixa claro toda teleologia natural seria apenas o reflexo de uma harmonia da Vontade Una

que aparece no fenocircmeno segundo os ditames do intelecto Pois se toda ideia de fim na

natureza seria apenas manifestaccedilatildeo da Vontade Una no tempo e espaccedilo para nosso

conhecimento isto significa que a teleologia natildeo corresponde ao modo de ser da realidade

mas apenas ao modo humano de interpretar esta Vontade Una enquanto fenocircmeno A

explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta relaccedilatildeo aprofunda a suposiccedilatildeo kantiana de uma

finalidade natural que faria convergir as necessidades das partes de um organismo agraves

necessidades do organismo propriamente

22 Conforme jaacute analisado em seccedilatildeo anterior deste capiacutetulo

33

Se Kant enxerga nos organismos uma relaccedilatildeo reciacuteproca de causaccedilatildeo finaliacutestica uma

muacutetua dependecircncia e conformaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo e vice-versa

Schopenhauer entende essa relaccedilatildeo como reflexo da objetivaccedilatildeo dos fenocircmenos no tempo

segundo uma mesma Ideia diretora na Vontade Una De tal forma que a conformidade

entre as exigecircncias para o surgimento e manutenccedilatildeo de cada espeacutecie em seu ambiente

assim como entre as espeacutecies mesmas apareceria como a expressatildeo de uma objetivaccedilatildeo da

vontade segundo o tempo que natildeo eacute uma categoria da Vontade Una ela mesma eterna e

imutaacutevel mas do entendimento humano

Por conseguinte tendo em mente nossa presente consideraccedilatildeo sobre omodo como a objetivaccedilatildeo da Vontade se distribui em Ideias o curso dotempo eacute totalmente sem significaccedilatildeo e as Ideias cujos FENOcircMENOSapareceram mais cedo no tempo segundo a lei da causalidade agrave qualestatildeo submetidas como fenocircmenos natildeo possuem nenhum direito preacutevioem face daquelas Ideias cujos fenocircmenos apareceram mais tarde e quesatildeo a bem-dizer justamente as objetivaccedilotildees mais perfeitas da Vontade eque tecircm de se adaptar agraves objetivaccedilotildees anteriores tanto quanto estas a elas(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em outros termos se a sucessatildeo temporal corresponde apenas a um modo do

intelecto representar entatildeo natildeo haacute que se espantar a perfeita correlaccedilatildeo entre o

aparecimento de uma espeacutecie e as condiccedilotildees de seu aparecimento Mais ainda esta relaccedilatildeo

de acomodaccedilatildeo natildeo apenas se expressaria na relaccedilatildeo entre o fenocircmeno precedente e o que

lhe sucede mas tambeacutem de forma retrospectiva

Nesse sentido a explanaccedilatildeo dada tambeacutem tem de ser usadaretrospectivamente e devemos natildeo apenas assumir que cada espeacutecie seadapta agraves circunstacircncias encontradas previamente mas tambeacutem estasprecedendo as espeacutecies no tempo levam igualmente em conta os seresque ainda estatildeo por vir Pois se trata de uma uacutenica e mesma Vontade quese objetiva no mundo Esta natildeo conhece tempo algum visto que a figuratemporal do princiacutepio de razatildeo natildeo pertence a ela nem agrave sua objetividadeoriginaacuteria as Ideias mas soacute agrave maneira como estas satildeo conhecidas pelosindiviacuteduos ndash eles mesmos transitoacuterios ndash isto eacute aos fenocircmenos das Ideias(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)

Em sua interpretaccedilatildeo Schopenhauer pensa a relaccedilatildeo de reciprocidade entre

organismo e ambiente como algo que deve ser posto em antecipaccedilatildeo ao surgimento do

34

organismo de tal maneira que ldquoEm conformidade com tudo isso cada fenocircmeno teve de

se adaptar ao ambiente no qual apareceu e este por seu turno teve de adaptar-se agravequele

embora cada fenocircmeno ocupe muito mais tardiamente uma posiccedilatildeo no tempordquo

(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 226) Nesta leitura a finalidade natural eacute representada

pelo autor como exigecircncia necessaacuteria nesta adequaccedilatildeo reciacuteproca entre organismo e

ambiente De tal maneira que ou se pressupotildee uma finalidade natural a guiar o surgimento

dos organismos ou seriacuteamos levados a pensar que cada fenocircmeno natural anteciparia no

tempo as necessidades dos fenocircmenos que lhe sucedem e estes reciprocamente agravequeles

Ora se a Vontade Una natildeo estaacute sujeita ao curso do tempo a sucessatildeo temporal

embora seja fundamental na compreensatildeo dos fenocircmenos natildeo lhe diz respeito Na Vontade

Una natildeo haveria reflexo para a aparente adequaccedilatildeo entre os fenocircmenos que se sucedem

porque o tempo natildeo tem realidade na Vontade Se natildeo haacute sucessatildeo temporal na Vontade

natildeo pode haver uma pressuposiccedilatildeo de adequaccedilatildeo entre a ordem dos fenocircmenos Seria

assim o intelecto que conferiria aos fenocircmenos os aspectos antecipatoacuterios que conferimos

a toda coincidecircncia entre um determinado conjunto de caracteriacutesticas necessaacuterias e o

surgimento da espeacutecie mesma dependente destas caracteriacutesticas

O princiacutepio de razatildeo norteador do surgimento dos fenocircmenos no tempo segundo

Schopenhauer garante o surgimento dos fenocircmenos enquanto conformidade a uma

predeterminaccedilatildeo antecipada na unidade da Vontade Com isso o filoacutesofo parece adiantar

uma ideia de harmonia dos fenocircmenos enquanto objetivaccedilatildeo da Vontade Pois em sua

leitura ldquoTodas as partes da natureza se encaixam pois eacute uma Vontade UNA que aparece

em todas elasrdquo (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227) A explicaccedilatildeo da adequaccedilatildeo das

espeacutecies ao ambiente portanto pressupotildee a harmonia preestabelecida na unidade da

Vontade que se apresentaria para os princiacutepios da razatildeo segundo o aspecto subjetivo de

uma teleologia natural

Nietzsche seraacute certamente influenciado por esta compreensatildeo do problema da

teleologia embora com ressalvas A manutenccedilatildeo da vida de um animal como princiacutepio de

finalidade seraacute por exemplo problematizado por Nietzsche Em sua leitura o autor das

notas preparatoacuterias questiona a superioridade da manutenccedilatildeo da vida de um organismo em

relaccedilatildeo agrave manutenccedilatildeo de uma substacircncia inorgacircnica Seria necessaacuterio pensar que a

manutenccedilatildeo de um ser vivo requer maior conveniecircncia a fins do que a manutenccedilatildeo de uma

rocha em unidade consigo mesma ou a finalidade neste caso como em tantos outros

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apareceria aqui apenas como resultado de uma antropomorfizaccedilatildeo e de uma

supervalorizaccedilatildeo da complexidade envolvida com tudo que diz respeito agrave vida O autor das

notas tende para a segunda resposta

Para Nietzsche que parece enxergar nas consideraccedilotildees de Kant e Schopenhauer

apenas a passagem de um modo necessaacuterio de compreensatildeo da realidade para uma

suposiccedilatildeo da proacutepria realidade com que se daria uma improcedente antropomorfizaccedilatildeo da

natureza A diferenccedila de posicionamento aqui diz respeito agrave radicalidade da interpretaccedilatildeo

nietzschiana que problematiza tanto a suposiccedilatildeo kantiana da necessidade de uma

teleologia natural como modo de explicaccedilatildeo da natureza quanto a suposiccedilatildeo

schopenhaueriana de uma unidade da vontade como modo de justificaccedilatildeo da correlaccedilatildeo

entre os fenocircmenos no tempo Por outro lado Nietzsche julga problemaacutetica a conciliaccedilatildeo

schopenhaueriana da ideia de conflito e a pressuposiccedilatildeo de uma unidade na Vontade

Na leitura do autor das notas preparatoacuterias o grande problema da interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana diria respeito agrave tentativa do filoacutesofo em conciliar a unidade da vontade

com a ideia de conflito na natureza Schopenhauer pensa natildeo apenas a harmonia derivada

da unidade da vontade mas o proacuteprio conflito como necessaacuterios para a manutenccedilatildeo das

espeacutecies Nesse sentido nem mesmo a adaptaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo dos fenocircmenos destroem o

conflito que eacute essencial agrave vontade seria ainda a fonte das guerras interminaacuteveis de

extermiacutenio dos indiviacuteduos

No entanto a adaptaccedilatildeo e a acomodaccedilatildeo reciacuteproca dos fenocircmenos quesurgem dessa unidade natildeo podem anular o conflito intriacutensecoanteriormente exposto o qual aparece na luta geral da natureza e eacuteessencial agrave Vontade Aquela harmonia vai soacute ateacute onde torna possiacutevel aCONSERVACcedilAtildeO do mundo e de seus seres os quais sem ela haacute muitotempo teriam se extinguido Em consequecircncia se em virtude daquelaharmonia e acomodaccedilatildeo as ESPEacuteCIES no reino orgacircnico e as FORCcedilASUNIVERSAIS DA NATUREZA no reino inorgacircnico se conservam lado alado e ateacute se apoiam reciprocamente por outro lado o conflito interno agraveVontade que se objetiva por meio de todas aquelas ideias mostra-senuma guerra interminaacutevel de extermiacutenio dos INDIVIacuteDUOS de cadaespeacutecie e na luta constante dos FENOcircMENOS das forccedilas da naturezaentre si como abordamos antes O cenaacuterio e o objeto dessa batalha eacute amateacuteria que eles se empenham por arrebatar uns dos outros bem como oespaccedilo e o tempo cuja uniatildeo pela forma da causalidade eacute propriamentea mateacuteria como foi exposto no primeiro livro (SCHOPENHAUER2005 paacuteg 227-228)

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Na leitura nietzschiana a suposiccedilatildeo do mundo orgacircnico entendido na acepccedilatildeo

schopenhaueriana como representaccedilatildeo de uma unidade harmocircnica em que a proacutepria luta

pela existecircncia desempenharia um papel importante eacute rejeitada na consideraccedilatildeo da

impropriedade em se considerar uma ideia de luta dos indiviacuteduos como compatiacutevel com a

ideia de uma unidade da vontade Com isso a justificaccedilatildeo para a ideia de unidade que se

daria na concepccedilatildeo schopenhaueriana de vontade resumida por Nietzsche na citaccedilatildeo

ldquotodas as partes da natureza encontram umas as outras por que haacute uma vontaderdquo (BAW 3

paacuteg 373) eacute contraposta a uma concepccedilatildeo da realidade como sendo inerentemente

muacuteltipla

A soluccedilatildeo schopenhaueriana aparece para o autor das notas como a tentativa de

deslocar a questatildeo acerca da finalidade natural em vez de resolver o problema

propriamente Nessa leitura criacutetica Schopenhauer teria atraveacutes da pressuposiccedilatildeo de uma

unidade da vontade transferido o problema da teleologia para outra realidade em que a

ideia de finalidade natural acabaria por ocasionar mais problemas Esta divergecircncia criacutetica

pode ser tomada como um exemplo da complexidade da influecircncia schopenhaueriana sobre

a filosofia nietzschiana de juventude

Naquele momento de sua trajetoacuteria intelectual apesar do que se toma conhecimento

atraveacutes da leitura de O Nascimento da Trageacutedia23 Nietzsche jaacute se encontrava em um

patamar criacutetico em relaccedilatildeo agrave filosofia schopenhaueriana Para o jovem leitor de Albert

Lange autor que influenciou de maneira profunda sua interpretaccedilatildeo da filosofia

schopenhaueriana a sentenccedila que resume esta filosofia seria a seguinte ldquoA vontade sem

fundamento e sem conhecimento se revela por meio de um aparato de representaccedilatildeo como

mundordquo24 Na concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana esta sentenccedila enquanto resumo da filosofia

schopenhaueriana carregaria todos os viacutecios daquele sistema Assim em sua criacutetica agrave

23 Sabe-se que a obra de estreia do filoacutesofo foi composta a luz das influecircncias de Schopenhauer e Wagnertambeacutem um schopenhaueriano Esta influecircncia aparece ali de modo expliacutecito e natildeo questionado ou sejaacriacutetico O que levaria a supor que naquele momento Nietzsche ainda natildeo houvera enxergado os problemascom a filosofia schopenhaueriana No entanto a publicaccedilatildeo dos poacutestumos daquele periacuteodo nos descortinamum filoacutesofo jaacute bastante ciente das contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano Testemunhos desta tomada deconsciecircncia nietzschiana dos problemas da filosofia schopenhaueriana satildeo o texto em estudo assim comoZur Schopenhauer do mesmo periacuteodo e que foi publicado na mesma ediccedilatildeo dos fragmentos poacutestumosnietzschianos de seu periacuteodo de juventude que estamos estudando24 Conforme a seguinte passagem em Zur Schopenhauer ldquoDer grundlose erkenntnisslose Wille offenbartsich unter einen Vorstellungsapparat gebracht als Weltrdquo (BAW Paacuteg 353) As notas Zur Schopenhauer satildeonotas remanescentes de um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana que Nietzsche elaborou na mesmaeacutepoca de redaccedilatildeo das notas Zur Teleologie Todas as vezes que este texto for citado seraacute acompanhado dapaginaccedilatildeo da ediccedilatildeo BAW da qual jaacute vinhamos extraindo passagens de Zur Teleologie e como as citaccedilotildeesdesse todas as traduccedilotildees daquele seratildeo de nossa responsabilidade

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Schopenhauer Nietzsche procura desvelar as contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano

por meio da anaacutelise desta sentenccedila agrave luz da obra do filoacutesofo

Em sua investigaccedilatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana Nietzsche toma o

empreendimento filosoacutefico de Schopenhauer como ldquouma tentativa de explicar o mundo por

meio de um fator aceitordquo (BAW Paacuteg 352) em que ldquoa coisa em si mesma se torna uma de

suas possiacuteveis formasrdquo (BAW Paacuteg 352) Ou seja tratava-se sobretudo de uma

interpretaccedilatildeo da realidade que toma as coisas em si como ao menos uma de suas

expressotildees possiacuteveis Isto apesar de para o autor das notas criacuteticas o empreendimento

filosoacutefico schopenhaueriano natildeo ter sido encarado por Schopenhauer como uma tentativa

(BAW Paacuteg 352) na medida em que este julgou a coisa em si como estando aberta para si

(BAW Paacuteg 352) A falha do autor de O Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em

encarar seu empreendimento como uma tentativa se deveria ao fato deste ldquonatildeo ter querido

perceber as negras contraditoriedades na regiatildeo onde a individualidade cessardquo (BAW Paacuteg

352)

Na medida em que tenta descrever a realidade em termos de ldquoVontaderdquo e

ldquoRepresentaccedilatildeordquo Schopenhauer natildeo se daacute conta de que ldquoO impulso de obscurecimento

produzido pelo mecanismo de representaccedilatildeo revela-se como mundordquo (BAW Paacuteg 352)

uacutenica forma pela qual o mundo da Vontade poderia permanecer velado para o homem

posto que ldquoEsta unidade natildeo estaacute incluiacuteda sob o principium individuationisrdquo (BAW Paacuteg

352) Assim se o traccedilo fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute sua descriccedilatildeo do

mundo como representaccedilatildeo e como tal algo passiacutevel de conhecimento esta hipoacutetese

repousaria fortemente na impossibilidade de se desvelar o mundo como Vontade

Por estas dificuldades assim como sua imbricaccedilatildeo com o proacuteprio nuacutecleo das

consideraccedilotildees schopenhauerianas Nietzsche considera este conjunto de consideraccedilotildees na

medida em que se considerava como sistema como estando ldquocheio de furosrdquo25 Para o

autor das notas sobre Schopenhauer estas falhas poderiam ser exploradas com sucesso

fundamentalmente de quatro diferentes formas Primeiramente em que Schopenhauer natildeo

supera Kant onde pretende superaacute-lo e conserva uma concepccedilatildeo do em si da qual natildeo tinha

direito pois tal como o proacuteprio Schopenhauer havia apontado com relaccedilatildeo ao sistema

kantiano por conta das proacuteprias implicaccedilotildees de seu sistema tal concepccedilatildeo deveria ser

25 Diante da pretensatildeo schopenhaueriana em ter posto termo ao sistema kantiano com seu proacuteprio sistemaNietzsche se questiona ldquo(hellip) wie in aller Welt ein Mensch mit einem so durchloumlcherten System zu solchenPraumltensionen komm[e]rdquo (BAW Paacuteg 354)

38

abandonada Em segundo lugar ao permanecer assim tatildeo proacuteximo a Kant Schopenhauer

apenas substitui as coisas em si daquele pela categoria de Vontade o que segundo

Nietzsche apenas pocircde ser realizado por meio de uma ldquointuiccedilatildeo poeacuteticardquo (BAW Paacuteg 354)

cuja derivaccedilatildeo natildeo possuiacutea provas loacutegicas que pudessem satisfazer o proacuteprio

Schopenhauer posto que este natildeo fora convencido no caso da filosofia kantiana Em

terceiro lugar Nietzsche acusa Schopenhauer de derivar os predicados de sua coisa em si

de uma oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos predicados das representaccedilotildees Assim se as

representaccedilotildees tecircm como sua marca a temporalidade a espacialidade e a multiplicidade a

Vontade deveria ser Una indeterminada espacialmente e eterna Mas como poderia

Schopenhauer reclamar uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre as representaccedilotildees e a Vontade sem

declarar tal oposiccedilatildeo agraves representaccedilotildees como predicado daquela A quarta criacutetica que eacute

uma consequecircncia das trecircs anteriores seria mais complexa Nietzsche a descreve do

seguinte modo

No entanto pode-se postular para o creacutedito de Schopenhauer contra astrecircs objeccedilotildees uma possibilidade de poder triacuteplice pode haver uma coisaem si de todo modo apenas no sentido de que na aacuterea de transcendecircnciatudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute possiacutevel Essapossiacutevel coisa em si pode ser a vontade uma possibilidade que por surgirda junccedilatildeo de duas possibilidades nada mais eacute do que o poder negativo daprimeira possibilidade ou seja jaacute um bom passo em direccedilatildeo ao outropolo o que significa impossibilidade Elevamos este conceito de umapossibilidade sempre decrescente uma vez mais ao admitirmos ospredicados da vontade que Schopenhauer tomava como pertencentes agraveela apenas porque uma oposiccedilatildeo eacute improvaacutevel entre coisa em si eaparecircncia mas ainda pode ser pensada Contra tal noacute de possibilidadestodo pensamento eacutetico poderia explicar-se mas mesmo contra essepretexto eacutetico ainda se poderia objetar que o pensador que estaacute diante doenigma do mundo natildeo tem outro meio senatildeo oferecer palpites naesperanccedila de que um momento de elevada consciecircncia poraacute a palavra emseus laacutebios Uma palavra que oferece a chave para esse texto que repousaainda natildeo lido diante de todos os olhos o qual chamamos de mundoSeria este mundo vontade - Aqui estaacute o ponto em que devemos fazernosso quarto ataque A urdidura e a trama schopenhauerianas seemaranham em suas matildeos na menor parte como resultado de certa faltade taacutetica de seu autor mas principalmente porque o mundo natildeo se deixaprender tatildeo facilmente ao sistema como Schopenhauer havia esperado naprimeira inspiraccedilatildeo da descoberta Na sua velhice ele se queixou de queo problema mais difiacutecil da filosofia natildeo havia sido resolvido em suaproacutepria filosofia Ele quis dizer a questatildeo referente agraves fronteiras daindividuaccedilatildeo (BAW Paacuteg 354-355)

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O autor de Zur Schopenhauer conclui que o sistema schopenhaueriano estaria

sujeito aos mesmos argumentos que Schopenhauer teria utilizado contra Kant segundo o

qual o que eacute predicado de um objeto segundo o princiacutepio de atuaccedilatildeo do sujeito natildeo poderia

ser predicado da coisa em si Como Nietzsche sugere no proacuteprio caso de Schopenhauer os

atributos de atemporalidade unidade e a falta de causa atributos que o autor de O mundo

como Vontade e como Representaccedilatildeo atribui agrave Vontade mostram-se improacuteprios da

realidade da Vontade se ela eacute como Nietzsche pensa a traduccedilatildeo schopenhaueriana do em

si kantiano

As criacuteticas apontadas por Nietzsche ao sistema schopenhaueriano e que tomam

parte ainda em suas notas Zur Teleologie datildeo testemunho de um profundo

amadurecimento de sua opiniatildeo para com Schopenhauer Como resultado deste

amadurecimento surge a rejeiccedilatildeo das tentativas de Schopenhauer de descrever o sentido

dos predicados da vontade como completamente inapreensiacuteveis e transcendentes Na

medida em que Nietzsche entra em contato com a criacutetica de Albert Lange agrave filosofia

kantiana e que absorve a ideia de que os predicados dos objetos aparecem na realidade

como resultado da nossa organizaccedilatildeo o autor passa a rejeitar o uso de formas gramaticais

como prova da atualidade de qualquer sistema filosoacutefico Assim na medida em que as leis

da existecircncia da Vontade schopenhaueriana natildeo se submetem agraves mesmas leis de formaccedilatildeo

dos fenocircmenos a ela natildeo poderiam ser atribuiacutedos predicados tais como unidade e

atemporalidade que natildeo tem sentido fora da esfera dos fenocircmenos

Como exemplo desta abordagem criacutetica Nietzsche oferece uma interpretaccedilatildeo de O

Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em que certas passagens entrariam em

conflito com a delimitaccedilatildeo schopenhaueriana das fronteiras da individuaccedilatildeo tal como estes

limites aparecem definidos em passagens como a seguinte ldquoA unidade daquela Vontade

(hellip) em que temos reconhecido o ser interior do mundo fenomecircnico eacute uma unidade

metafiacutesica Consequentemente o conhecimento deste eacute transcendente o que significa

dizer ele natildeo repousa sobre as funccedilotildees de nosso intelecto e natildeo eacute portanto passiacutevel de

compreensatildeo por elesrdquo (BAW Paacuteg 357) Assim natildeo faz sentido em falar-se em unidade

fora de nossa esfera de compreensatildeo da realidade natildeo podendo este atributo ser relegado agrave

esfera da vontade

Com base nessa interpretaccedilatildeo em suas notas criacuteticas sobre a filosofia

schopenhaueriana Nietzsche escreve ldquoSchopenhauer estaacute completamente correto quando

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ele mesmo sustenta contra esta operaccedilatildeo em geral mas aparentemente natildeo em seu proacuteprio

caso que lsquode fora natildeo se possa nunca chegar agrave essecircncia das coisas natildeo importa como se

busque vencer sobre imagens e nomesrsquordquo (BAW Paacuteg 358) Para Nietzsche a atribuiccedilatildeo

schopenhaueriana dos predicados de unidade eternidade e liberdade que satildeo os trecircs

predicados que Schopenhauer atribui agrave Vontade natildeo seria senatildeo retoacuterica vazia Pois estes

predicados seriam no fundo indivisiacuteveis e alinhados uns com os outros e com nossa

organizaccedilatildeo Sendo assim sempre se poderia perguntar qual o sentido destes predicados

fora de nossa esfera de organizaccedilatildeo qual sua validade na esfera da vontade

Em sua leitura portanto Nietzsche permanece fortemente criacutetico da concepccedilatildeo

schopenhaueriana das fronteiras da representaccedilatildeo assim como de toda tentativa de

expressatildeo linguiacutestica do que se encontraria para aleacutem desta fronteira26 Com isso seu

julgamento final sobre a atribuiccedilatildeo de predicados proacuteprios da realidade fenomecircnica agrave

Vontade levada a cabo por Schopenhauer baseia-se fortemente na interpretaccedilatildeo da

linguagem como algo que surge e se desenvolve em unidade com as exigecircncias do homem

vivendo em um determinado contexto social assim como em uma realidade determinada

por sua organizaccedilatildeo e suas necessidades fisioloacutegicas O escopo desta criacutetica cujo cerne

pode ser tambeacutem vislumbrado em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira e que diria respeito

ao veto de conhecimento e atribuiccedilatildeo de predicados agrave realidade que se potildee para aleacutem da

experiecircncia compotildee o essencial de sua compreensatildeo perspectivista do conhecimento em

sua filosofia madura

Retornando agraves notas preparatoacuterias veremos que a interpretaccedilatildeo criacutetica nietzschiana

das concepccedilotildees de Kant e Schopenhauer aproxima-se de uma consideraccedilatildeo perspectivista

da teleologia Isto porque nessa leitura a finalidade natural passa a ser interpretada natildeo

como um aspecto da natureza mas apenas como um modo de se considerar uma realidade

inapreensiacutevel de acordo com os ditames de nossa capacidade de conhecer que eacute

fundamentalmente determinada pelo esquema de nossa sensibilidade Ao fim e ao cabo

26 Como Crawford aponta Nietzsche obteacutem este argumento linguiacutestico contra a noccedilatildeo de um primeiropensamento transcendental do mundo de Lange Stack por sua vez escreve sobre este argumentoldquoLinguagens humanas (para Lange e Nietzsche) se desenvolveram primeiramente para efeitos de relaccedilotildees einteraccedilotildees sociais satildeo perpassadas por lsquopersonificaccedilotildeesrsquo e antropomorfismos e evoluiacuteram para efeitos dedescriccedilatildeo e designaccedilatildeo de objetos e eventos encontrados na experiecircncia A linguagem entatildeo eacute projetada paraefeitos de necessidade praacutetica em um mundo fenomecircnico da experiecircncia O uso de tal linguagem para referir-se agrave ou lsquofiguraccedilatildeorsquo de entidades transcendentais ou um mundo transcendental natildeo supera sua associaccedilatildeoproacutexima com a realidade fenomecircnicardquo (STACK Lange and Nietzsche Paacuteg 66) Apud (CRAWFORD 1988Paacuteg 99)

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natildeo se trata de uma abordagem totalmente original uma divergecircncia verdadeira com

relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees que Nietzsche critica Muito desta abordagem se deve ao modo como

Kant principia a conversatildeo do problema teleoloacutegico de uma reflexatildeo sobre a constituiccedilatildeo

da realidade em um problema acerca de nossa necessidade de compreensatildeo da realidade

segundo a ideia de uma finalidade natural Do mesmo modo como uma grande parte das

criacuteticas apresentadas pelo autor das notas depende de sua leitura de Schopenhauer Em

contraposiccedilatildeo a estes autores no entanto Nietzsche compreende a permanecircncia da ideia de

uma finalidade natural nas respectivas abordagens criticadas como um uacuteltimo resquiacutecio de

dependecircncia da concepccedilatildeo teleoloacutegica metafiacutesica

A critica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica portanto parte do pressuposto de

que esta teria tomado a finalidade natural como uma realidade objetiva que cumpria

explicar e cuja explicaccedilatildeo mais plausiacutevel seria a ideia de uma inteligecircncia superior

criadora Tendo em vista superar as dificuldades apontadas nas abordagens de Kant e

Schopenhauer Nietzsche se apropria do problema teleoloacutegico de maneira eminentemente

criacutetica para com qualquer suposiccedilatildeo de uma realidade exterior agrave realidade da experiecircncia

Neste sentido o autor apoia-se fortemente nas ciecircncias naturais sempre que julga

necessaacuterio mantendo o lado filosoacutefico da discussatildeo nos limites de uma compreensatildeo

epistemoloacutegica do problema Assim quando comparada ao modo como o problema da

teleologia eacute tratado nas filosofias de Schopenhauer e Kant onde eacute praticamente reduzido agrave

questatildeo sobre a finalidade em seres orgacircnicos27 nas notas preparatoacuterias vemos que

27 A ideia de uma consideraccedilatildeo epistemoloacutegica jaacute apareceria nas consideraccedilotildees de Schopenhauer da criacuteticado juiacutezo kantiana mas Nietzsche parece natildeo se aperceber dessa consideraccedilatildeo Na Criacutetica da faculdade doJuiacutezo em um paraacutegrafo sobre o qual Nietzsche parece ter se detido longamente Kant afirma ldquoPor isso osseres organizados satildeo os uacutenicos na natureza que ainda que tambeacutem soacute se considerem por si e sem umarelaccedilatildeo com outras coisas tecircm poreacutem de ser pensados como possiacuteveis enquanto fins daquela mesmanatureza e por isso como aqueles que primeiramente proporcionam uma realidade objetiva ao conceito deum fim que natildeo eacute um fim praacutetico mas sim um fim da natureza e desse modo agrave ciecircncia da natureza ofundamento para uma teleologia isto eacute um modo de ajuizamento dos seus objetos segundo um princiacutepioparticular que doutro modo natildeo estariacuteamos autorizados a nela introduzir (porque natildeo se pode de maneiranenhuma compreender a priori a possibilidade de uma tal espeacutecie de causalidade)rdquo (KANT 2016 Paacuteg 242)Por sua vez Schopenhauer na parte de sua criacutetica da filosofia kantiana em que se volta para a Criacutetica doJuiacutezo mais especificamente a criacutetica do juiacutezo teleoloacutegico escreve ldquoTodo a Criacutetica da Faculdade de Juiacutezoquer dizer apenas uma coisa embora os corpos organizados necessariamente apareccedilam a noacutes como se fossemcompostos segundo um conceito preacutevio de finalidade de modo algum temos a autorizaccedilatildeo de assumir istoobjetivamente Pois nosso intelecto ao qual as coisas satildeo dadas de fora e que portanto jamais conhece ointerior delas (mediante o qual nascem e existem) mas soacute o seu lado exterior natildeo pode tornar apreensiacuteveluma certa iacutendole proacutepria aos produtos orgacircnicos da natureza a natildeo ser por analogia na medida em que oscompara com as obras humanas produzidas intencionalmente cuja iacutendole eacute determinada por um conceito definalidade Essa analogia eacute suficiente para nos tornar compreensiacutevel a concordacircncia de todas as suas partescom o todo e assim serve como fio condutor para sua investigaccedilatildeo mas de maneira alguma a analogia podeser tomada como fundamento de explanaccedilatildeo da origem e da existecircncia de tais corpos A necessidade de assim

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Nietzsche traduz o problema da teleologia em termos de um problema do conhecimento na

medida em que reduz toda teleologia a uma forma de conceber a natureza em vez de

pensaacute-la como uma caracteriacutestica da natureza

O autor entende que a uacutenica soluccedilatildeo satisfatoacuteria para a compreensatildeo do problema

teleoloacutegico seria a reduccedilatildeo do conceito de finalidade natural uma concepccedilatildeo de fundo

ontoloacutegico em uma categoria do entendimento humano uma realidade eminentemente

epistemoloacutegica de cuja existecircncia objetiva natildeo se teria a menor necessidade nem direito de

supor Assim o autor das notas preparatoacuterias pensa adiantar uma interpretaccedilatildeo original do

problema quando opera a reduccedilatildeo do conceito de finalidade a uma forma de compreensatildeo

da realidade Essa diferenccedila fundamental o tratamento eminentemente epistemoloacutegico de

um problema de fundo ontoloacutegico prenuncia uma importante virada no pensamento

nietzschiano A abordagem nietzschiana em que toda forma de explicaccedilatildeo idealista eacute posta

em suspeita conduz agrave conclusotildees teoacutericas que apenas em sua filosofia de maturidade

assumiraacute total importacircncia Nesta reavaliaccedilatildeo do problema entram em jogo a confrontaccedilatildeo

da realidade como produccedilatildeo humana com as concepccedilotildees racionalistas que satildeo tomadas

pelo autor das notas preparatoacuterias como soluccedilotildees ingecircnuas justamente por

desconsiderarem o quanto de humano haacute nelas

13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica

Um problema fundamental decorrente da concepccedilatildeo teleoloacutegica da natureza o qual

Nietzsche apresenta como uma dificuldade essencial de toda concepccedilatildeo teleoloacutegica seria a

dificuldade em atingir uma compreensatildeo que unifica o real para aleacutem da distinccedilatildeo

artificial e arbitraacuteria entre o que se apresenta de forma teleoloacutegica e o que se apresenta de

forma natildeo teleoloacutegica Este problema eacute apresentado pelo autor nas notas do seguinte

modo ldquoA maior dificuldade eacute a unificaccedilatildeo da teleologia e do mundo natildeo teleoloacutegicordquo

(BAW 3 paacuteg 373) Com a apresentaccedilatildeo do problema nesses termos o autor busca

evidenciar de que modo com base em uma concepccedilatildeo teleoloacutegica se poderia explicar a

os conceber eacute de origem subjetivardquo (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 660) Schopenhauer leva a cabo assimuma interpretaccedilatildeo subjetiva da teleologia kantiana da qual Nietzsche parece natildeo ter se apercebido comoveremos na anaacutelise das notas Zur Teleologie

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existecircncia de objetos que natildeo parecem justificar-se segundo nenhuma finalidade Nesse

sentido a existecircncia de realidades natildeo convenientes a fins seria o ponto aleacutem do qual

nenhuma concepccedilatildeo teleoloacutegica ateacute entatildeo teria conseguido ir Em Zur Teleologie

Nietzsche concebe esse problema como tendo certa similaridade com o problema referente

agrave relaccedilatildeo entre a causalidade natural e a questatildeo da liberdade humana como o proacuteprio Kant

houvera observado

O espaccedilo de que dispomos nesse trabalho natildeo possibilita um estudo exaustivo da

teoria do gosto kantiana Desta forma o que se segue agrave guisa de resumo e introduccedilatildeo agrave

compreensatildeo kantiana da concepccedilatildeo de teleologia apenas pretende uma breve

consideraccedilatildeo dos problemas abordados por Kant na terceira Criacutetica assim como uma breve

reflexatildeo acerca do lugar dos juiacutezos teleoloacutegicos naquela discussatildeo Uma comparaccedilatildeo entre

a primeira e a segunda criacutetica mostra que a determinaccedilatildeo dos limites da experiecircncia

humana em comparaccedilatildeo agraves exigecircncias do agir praacutetico acentua um abismo insuperaacutevel

entre o domiacutenio praacutetico e o teoacuterico em filosofia A Criacutetica do Juiacutezo representa assim o

esforccedilo kantiano pela conciliaccedilatildeo entre os acircmbitos praacutetico e teoacuterico por meio da anaacutelise do

juiacutezo do belo

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

Este abismo aparece ao autor da terceira criacutetica como uma lacuna teoacuterica a ser

superada mediante o estudo do juiacutezo de gosto Nesse sentido tendo em vista a integraccedilatildeo

dos dois saberes o filoacutesofo de Koumlnigsberg elabora um meio de superaccedilatildeo da distacircncia que

separa os dois acircmbitos da investigaccedilatildeo filosoacutefica o acircmbito do teoacuterico e do praacutetico A

constituiccedilatildeo da ponte de ligaccedilatildeo entre os dois acircmbitos do saber humano poreacutem depende

de uma compreensatildeo profunda dos elementos do saber humano como sendo limitados pela

fenomenalidade que contrasta com o acircmbito da liberdade

44

Toda a nossa faculdade de conhecimento possui dois domiacutenios o dosconceitos da natureza e o do conceito de liberdade na verdade nos doisela eacute legisladora a priori Ora de acordo com isto tambeacutem a Filosofia sedivide em teoacuterica e praacutetica mas o territoacuterio em que o seu domiacutenio eacuteerigido e a sua legislaccedilatildeo exercida eacute sempre soacute a globalidade dos objetosde toda a experiecircncia possiacutevel na medida em que forem tomadossimplesmente como simples fenocircmenos eacute que sem isso natildeo poderia serpensada qualquer legislaccedilatildeo do entendimento relativamente agravequeles(KANT 2016 Paacuteg 05)

Na passagem citada em que a faculdade de julgar eacute apresentada pelo autor como

legislaccedilatildeo a priori cuja esfera de atuaccedilatildeo se distingue tanto da legislaccedilatildeo do entendimento

quanto da razatildeo praacutetica a esfera de atuaccedilatildeo da razatildeo teoacuterica assim como a da accedilatildeo praacutetica

satildeo determinantes O juiacutezo de gosto por sua vez seria apenas reflexivo Na medida em que

a esfera de validade de sua legislaccedilatildeo abrangeria apenas o contingente e as leis empiacutericas

particulares

Ora toda a contradiccedilatildeo poreacutem desaparece se eu digo o juiacutezo de gostofunda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral daconformidade a fins subjetiva da natureza para a faculdade do juiacutezo) apartir do qual poreacutem nada pode ser conhecido e provado acerca doobjeto porque este conceito eacute em si indeterminaacutevel e inadequado para oconhecimento mas o juiacutezo ao mesmo tempo alcanccedila justamente por esseconceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juiacutezosingular que acompanha imediatamente a intuiccedilatildeo) porque o seuprinciacutepio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode serconsiderado como o substrato suprassensiacutevel da humanidade (KANT2016 Paacuteg 201-202)

Na segunda parte da terceira criacutetica a parte da obra referente agrave analiacutetica do belo a

legalidade do contingente eacute encontrada no conceito aacuterido de conformidade a fins que faz

do objeto belo apreciado um exemplo e natildeo uma lei geral Dado que a conformidade a fins

eacute vista na Natureza apenas do ponto de vista artiacutestico A conformidade a fins eacute aqui

entendida por Kant como o caraacuteter proacuteprio do orgacircnico sem o qual nenhum organismo

poderia ser compreendido Na medida em que o filoacutesofo distingue o produto das relaccedilotildees

dos elementos inorgacircnicos como o resultado das interaccedilotildees mecacircnicas de seus elementos

ele enfatiza o caraacuteter finaliacutestico dos elementos da natureza orgacircnica Posto que o belo eacute um

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produto da natureza e que toda criaccedilatildeo artiacutestica eacute dita bela na medida em que nela se

reconhece uma familiaridade com a natureza se poderia entender em que sentido uma obra

artiacutestica natildeo pode ser o produto de interaccedilotildees mecacircnicas mas apenas o resultado da accedilatildeo

humana consciente que pretende um fim

Por isso o filoacutesofo define o gecircnio como aquele dotado de uma faculdade produtora

cuja obra eacute a arte bela A arte bela como foi dito eacute para Kant uma analogia com a

Natureza cuja beleza o gecircnio procura penetrar A obra de arte bela parece ser assim objeto

da natureza que por meio da razatildeo se insere no reino das produccedilotildees humanas Neste

sentido a analogia entre a bela produccedilatildeo artiacutestica e a natureza apenas eacute possiacutevel se se

pensa a natureza como uma produccedilatildeo do aparato categorial humano cuja legalidade estaacute

no contingente e no exemplo

A anaacutelise esteacutetica kantiana que desemboca na questatildeo do gosto ou uma faculdade

de apreciaccedilatildeo esteacutetica reconhecida faz com que Kant entre em contato com um juiacutezo

esteacutetico fundamentado na sensaccedilatildeo de prazer Algo subjetivo mas que ao mesmo tempo

seria passiacutevel de ser reproduzido Assim a anaacutelise kantiana do gosto conduz a duas

conclusotildees aparentemente verdadeiras embora contraditoacuterias segundo as quais o gosto

seria subjetivo e ao mesmo tempo objetivo A objetividade do juiacutezo de gosto porquanto

tal juiacutezo pertenccedila a esfera subjetiva natildeo seria passiacutevel de determinaccedilatildeo objetiva

A forccedila do argumento kantiano repousa na sugestatildeo de que para que o gosto

pudesse vir a ser objeto de discussatildeo o que implica uma possiacutevel concordacircncia este deve

fundar-se em conceitos Desta forma com base na suposiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre coisas

em si e fenocircmenos suposiccedilatildeo que surge como conclusatildeo da primeira criacutetica kantiana o

filoacutesofo teria procurado superar a dificuldade envolvida na determinaccedilatildeo de uma certa

objetividade do juiacutezo de gosto Para o autor da terceira criacutetica a possibilidade de

determinaccedilatildeo da objetividade de um juiacutezo subjetivo tanto na questatildeo da filosofia praacutetica

quanto na questatildeo dos juiacutezos esteacuteticos apenas pode se dar com base na suposiccedilatildeo da

existecircncia de objetos necessaacuterios para a justificaccedilatildeo destes juiacutezos Suposiccedilatildeo que aqui

assume um caraacuteter apenas hipoteacutetico na medida em que o filoacutesofo compreende que destes

natildeo podemos ter conhecimento objetivo28

28 Este raacutepido resumo do problema justamente pela brevidade carece de muitos esclarecimentos eaprofundamentos No entanto aqui pretendemos apenas oferecer uma breve apreciaccedilatildeo dos problemasenfrentados por Kant na terceira criacutetica sobretudo do ponto de vista da consideraccedilatildeo nietzschiana destes

46

Por outro lado a hipoacutetese de uma possiacutevel objetividade dos juiacutezos de gosto contaria

com uma hipoacutetese contraacuteria aleacutem de bastante plausiacutevel de que aquilo que agrada natildeo

agrada universalmente natildeo se podendo chegar a um consenso absoluto em termos de

gosto Esta antinomia aparentemente insoluacutevel na medida em que aponta para uma tese e

uma antiacutetese igualmente plausiacuteveis eacute resumida por Kant na possibilidade de se fundar o

gosto em conceitos Pois fica provado na esfera da anaacutelise esteacutetica que se o gosto deve ser

tomado como algo que se funda em conceitos ele poderia ser determinado segundo

demonstraccedilotildees e assim natildeo seria passiacutevel de disputa Por outro lado se este natildeo se funda

em conceitos natildeo eacute passiacutevel de disputa igualmente pois natildeo seria possiacutevel alcanccedilar uma

concordacircncia Assim segundo o autor da Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo essa saiacuteda deveria

ser considerada ainda que a contragosto como uma forma de libertar o juiacutezo do gosto de

sua antinomia

Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)

A soluccedilatildeo para as antinomias do juiacutezo de gosto encontrar-se-ia portanto para aleacutem

dos limites do sensiacutevel Do mesmo modo na medida em que os juiacutezos teleoloacutegicos se

fundamentariam no ldquoconceito de um fim na naturezardquo a ele tambeacutem estaria ligado a

necessidade de um recurso esfera do suprassensiacutevel da qual segundo Kant embora natildeo se

possa ter um conceito exato deve-se admitir a existecircncia Este recurso agrave esfera do

suprassensiacutevel natildeo escaparaacute ao autor das notas sobre teleologia o qual rejeitaraacute este tipo de

soluccedilatildeo como um tipo de antropomorfizaccedilatildeo infundada Em sua leitura que eacute perpassada

por uma atitude de franca hostilidade a todo recurso ao suprassensiacutevel a soluccedilatildeo para o

problema da finalidade na natureza apenas poderia ser contemplada na compreensatildeo dos

limites do conhecimento humano Limites segundo as notas preparatoacuterias muito

rigidamente demarcados e que se restringiriam agrave esfera da causalidade mecacircnica

problemas

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Em sua compreensatildeo do problema da conformidade a fins no reino orgacircnico

compreensatildeo que o autor das notas determina como sendo ao mesmo tempo semifilosoacutefica

e semicientiacutefica a suposiccedilatildeo mesma da finalidade natural estaria ligada a uma maacute

compreensatildeo da realidade Maacute compreensatildeo que teria sido motivada por uma

desconsideraccedilatildeo do papel da razatildeo na organizaccedilatildeo dos elementos que compotildeem nossa

forma de conceber o mundo

Nietzsche pensa naquele momento que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel

como forma de justificar a existecircncia de uma finalidade na natureza estaria ligada a uma

recusa em aceitar o mecanicismo como meacutetodo adequado para a investigaccedilatildeo do orgacircnico

Esta recusa por sua vez seria decorrecircncia de um preconceito em favor do que vive

considerado nessa leitura como algo mais complexo do que o pertencente ao reino

inorgacircnico Mais ainda Nietzsche considera a suposiccedilatildeo de fins na natureza uma

decorrecircncia de uma transgressatildeo do princiacutepio de razatildeo miacutenima Estaacute transgressatildeo se daria

no recurso o qual o autor das notas pensa que teria sido utilizado pelos defensores da ideia

de uma finalidade natural a uma razatildeo superior Para o autor das notas este recurso natildeo se

justificaria pois tal problema poderia ser satisfatoriamente resolvida com base em um

princiacutepio mais simples

Conformidade interna a fins Vemos uma maacutequina complicada que semantecircm a si mesma e natildeo podemos vislumbrar outra estrutura quepudesse constituir-se de modo mais simples isto significa apenas amaacutequina se manteacutem por si mesma assim ela eacute conforme a umafinalidade Um julgamento acerca de ldquouma finalidade superiorrdquo natildeopodemos fazer Podemos no melhor das hipoacuteteses decidir acerca de umarazatildeo mas natildeo temos direito a indicar se eacute uma razatildeo superior ou inferior(BAW 3 paacuteg 373)

A ideia kantiana de que a forma de causalidade reciacuteproca atuante nos seres

orgacircnicos apenas poderia ser compreendida por meio do recurso a uma razatildeo superior eacute

rejeitada por Nietzsche por meio da compreensatildeo de que nessa leitura a ideia de finalidade

sofre uma supervalorizaccedilatildeo indevida Para dar sentido a esta rejeiccedilatildeo o autor das notas

preparatoacuterias faz uso de uma espeacutecie de princiacutepio de Ockham29 segundo o qual a

29 Para Guilherme de Ockham o Princiacutepio da Parcimocircnia o que ficou conhecido na tradiccedilatildeo como Navalhade Ockham significava que ldquoeacute desperdiacutecio fazer com mais o que pode ser feito com menosrdquo Embora natildeo

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atribuiccedilatildeo de um princiacutepio exterior no caso em questatildeo uma razatildeo superior que pensa uma

finalidade superior agravequela que o homem pode compreender natildeo procede de uma conclusatildeo

loacutegica mas de uma ilusatildeo que atua por forccedila de um grosseiro antropomorfismo Este

antropomorfismo consistiria na defesa de uma razatildeo superior defesa por meio da qual o

defensor da finalidade natural nada mais faria do que pocircr em praacutetica uma exaltaccedilatildeo da

razatildeo

Segundo a compreensatildeo do autor das notas preparatoacuterias no entanto este tipo de

afirmaccedilatildeo de uma finalidade externa superior natildeo se sustenta em uma anaacutelise da razatildeo

porque ldquoapenas temos experiecircncia do meacutetodo da naturezardquo (BAW 3 paacuteg 374) e nunca de

finalidades Desta maneira quando nos confrontamos com um produto da natureza a sua

finalidade apenas nos aparece como o produto de um meacutetodo sem sentido nunca como

uma necessidade loacutegica Por outro lado a ideia de uma finalidade superior apenas nos

aparece quando somos confrontados com a vida Para Nietzsche esta deduccedilatildeo de uma

finalidade superior na manutenccedilatildeo da vida natildeo obedeceria qualquer loacutegica mas talvez

uma certa arrogacircncia de espeacutecie Pois na medida em que pertencemos ao grupo dos

ldquoviventesrdquo possuiacutemos um preconceito com relaccedilatildeo ao que eacute vivo

Segundo a compreensatildeo nietzschiana a vida seria o grande segredo que reclamaria

em sua explicaccedilatildeo a ideia de uma finalidade natural Isto na medida em que ao nos

depararmos com um ser vivo como noacutes somos cegados pelo orgulho e queremos enxergar

na nossa existecircncia algo mais do que a pura atuaccedilatildeo de causas e efeitos Assim este

comportamento natildeo encontraria nenhum suporte loacutegico e a vida poderia como os demais

tenha sido inventado por Ockham o princiacutepio da Navalha teve seu nome ligado em especiacutefico a este filoacutesofopor sua larga utilizaccedilatildeo no sistema que desenvolveu (JUNGES 2005 Paacuteg 03) Conforme nota cinco doartigo Deus e a metafiacutesica em Ockham e Nietzsche ldquoA expressatildeo lsquoNavalha de Ockhamrsquo surgiu no seacuteculoXVI sugerindo que mediante tal Navalha Ockham lsquoencurtava as barbas de Platatildeorsquo numa referecircncia direta aodualismo que ele suprimia com sua negaccedilatildeo da existecircncia dos universais Com essa concepccedilatildeo as essecircnciaspassavam a ser apenas elucubraccedilotildees deslocando o eixo da metafiacutesica para um empirismo nominalista jaacute queOckham dizia serem os universais apenas nomes dados agraves coisas criados pela mente de seu autor e o querealmente havia eram as singularidades e o que poderia ser experimentado pelos sentidos humanosrdquo(JUNGES 2005 Paacuteg 16)Com relaccedilatildeo agrave proximidade entre as filosofias de Ockham e Nietzsche Jungesafirma ldquoAqui apenas podemos comparar entre nossos dois filoacutesofos em questatildeo o fato de que ambosapontavam a concretude da vida como indiscutiacutevel fundamental renegando a metafiacutesica como expedientepara um entendimento do mundo em si A mentira do outro mundo era paralisante desnecessaacuteria O vieacutesantimetafiacutesico de Ockham e Nietzsche denota a importacircncia da criacutetica do mundo ocidental em seus escritos(hellip) Quanto agrave existecircncia dos universais amplamente negada por Ockham acreditamos ser seuposicionamento bastante proacuteximo ao de Nietzsche Isso porque Ockham num vieacutes de declarado cunhoaristoteacutelico pensava os universais como impossiacuteveis sob uma justificativa loacutegica natildeo passando de palavrasque denominavam sentidos por noacutes criados abstraccedilotildees ou ficccedilotildees da mente humanardquo (JUNGES 2005Paacuteg 14)

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eventos naturais ser explicado sem o recurso a uma finalidade natural Pois aiacute natildeo operaria

nenhuma ideia de conveniecircncia a fins apenas uma supervalorizaccedilatildeo do fenocircmeno vida

Ficamos impressionados entatildeo com a complexidade e conjecturamos (pormeio de uma analogia humana) uma sabedoria especial nisto O querealmente eacute maravilhoso para noacutes realmente satildeo os viventes orgacircnicos etodos os meios para mantecirc-los chamamos conforme a fins Por quesuspendemos o conceito de conformidade a fins no mundo inorgacircnicoPorque temos aqui apenas unidades natildeo partes correlacionadas atuandoumas com as outras (BAW 3 paacuteg 374)

Em outras palavras a proacutepria distinccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico nada mais

seria do que o produto de nosso preconceito para com o que vive sem o qual suas partes

assim como as partes dos elementos do reino inorgacircnico tambeacutem seriam vistas como

unidades e natildeo oacutergatildeos Nossa ideia de uma finalidade superior adveacutem de uma

incompreensatildeo fundamental acerca do fenocircmeno vida por conta de nosso preconceito para

com o que vive Sendo que apenas por esse motivo natildeo nos vemos na necessidade de um

recurso a uma finalidade para a explicaccedilatildeo do reino inorgacircnico Posto que entre os

produtos possiacuteveis da atuaccedilatildeo das partes da natureza tambeacutem os organismos seriam uma

possibilidade Isso independente da complexidade envolvida desde que para o autor

ldquoAcaso pode encontrar a mais bela melodiardquo (BAW 3 paacuteg 374) Disso decorre a hipoacutetese

nietzschiana de que a vida mesma pudesse ser compreendida como o produto de forccedilas

atuando ao acaso segundo uma causalidade mecacircnica Ou seja independente da

complexidade envolvida tudo poderia ser obra do acaso

Nesta suposiccedilatildeo encontramos o surgimento de uma concepccedilatildeo fundamental

segundo a qual toda realidade que se nos apresenta de forma orgacircnica poderia ser produto

da atuaccedilatildeo de forccedilas ao acaso Assim com a alusatildeo ao acaso associada agrave ideia da atuaccedilatildeo

de relaccedilotildees causais Nietzsche opera uma explicaccedilatildeo do surgimento do orgacircnico sem

recorrer a qualquer instacircncia externa ao orgacircnico sem nenhum recurso a uma finalidade

externa Solucionada assim a questatildeo do surgimento da realidade orgacircnica por meio do

recurso a uma associaccedilatildeo entre causalidade mecacircnica e acaso restaria explicar como um

ser orgacircnico poderia sustentar-se sem uma finalidade interna

50

Respondida a questatildeo do surgimento do orgacircnico para o autor a ideia por traacutes de

sua manutenccedilatildeo parece uma questatildeo friacutevola que apenas poderia ser despertada no interior

de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica que sempre suscita muitas questotildees sem sentido30 A

resposta adequada para este problema livre de um preconceito tendencioso a enxergar uma

explicaccedilatildeo finaliacutestica onde este tipo de explicaccedilatildeo natildeo teria lugar se daacute por meio do

recurso agrave ideia de que a finalidade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto

Recorrendo novamente agrave filosofia schopenhaueriana Nietzsche sustenta a

identificaccedilatildeo de uma finalidade por traacutes da manutenccedilatildeo dos seres orgacircnicos como

consequecircncia da atuaccedilatildeo do intelecto Eacute nesse sentido que o autor das notas sobre

teleologia afirma ldquovemos um meacutetodo para alcanccedilar um objetivo ou mais exatamente

vemos a existecircncia e seus meios e decidimos que esses meios satildeo conformes a fins O

reconhecimento de uma razatildeo elevada certamente natildeo a de uma razatildeo superior ainda natildeo

se potildee aquirdquo (BAW 3 paacuteg 374) Ou seja o fato de que organismos se mantenham

conforme a sua proacutepria manutenccedilatildeo natildeo implica a ideia de uma finalidade superior porque

a manutenccedilatildeo do organismo eacute um fim apenas para o organismo e natildeo um fim superior

O tipo de explicaccedilatildeo adotada por Nietzsche neste ponto de sua exposiccedilatildeo que toma

como base uma explicaccedilatildeo natildeo teleoloacutegica do reino orgacircnico teria como interesse mais

profundo lanccedilar as bases para uma investigaccedilatildeo das questotildees naturais sem o recurso a uma

realidade ideal apartada das relaccedilotildees de necessidade Esta compreensatildeo do problema

portanto natildeo pode ser desvinculado de um interesse praacutetico fundamental Ou seja com a

eliminaccedilatildeo da teleologia e a consequente restituiccedilatildeo das questotildees orgacircnicas ao reino do

orgacircnico surgiria a possibilidade de se eliminar o mundo das ideias que como vimos

aparece como fundamento para a soluccedilatildeo da questatildeo teleoloacutegica no procedimento kantiano

na Criacutetica do Juiacutezo Nesse sentido o autor das notas sobre teleologia afirma ldquoo colocar de

lado da teleologia tem um valor praacutetico Eacute apenas uma questatildeo de recusar o conceito de

uma razatildeo superior assim jaacute nos satisfazemosrdquo (BAW 3 paacuteg 374) Por interesse praacutetico

o autor soacute poderia compreender uma compreensatildeo da liberdade que natildeo implique o recurso

a uma realidade suprassensiacutevel

Nos parece que o ponto fundamental a ser considerado aqui eacute que em Zur

Teleologie Nietzsche parece reconhecer a atuaccedilatildeo de um princiacutepio metafiacutesico na tendecircncia

30 Tais questotildees seriam por exemplo a compreensatildeo do mundo como um organismo vivo e da origem domal questotildees cuja rejeiccedilatildeo ecoara na obra madura de Nietzsche

51

para a soluccedilatildeo das questotildees teleoloacutegicas por meio das coisas em si Assim ao afastar a

questatildeo de uma razatildeo superior o autor entende que a soluccedilatildeo do problema teleoloacutegico sem

o recurso a uma realidade suprassensiacutevel tornaria possiacutevel a anaacutelise de questotildees referentes

agrave liberdade sem o recurso a uma concepccedilatildeo idealista Mesmo se o alvo de sua criacutetica eacute a

ideia de uma finalidade natural a tendecircncia a uma explicaccedilatildeo idealista desta finalidade natildeo

seria menos questionaacutevel

Enfatizamos este ponto porque embora a negaccedilatildeo de uma realidade ideal apenas se

torne atuante na filosofia madura nietzschiana jaacute nas notas preparatoacuterias esta rejeiccedilatildeo

encontra plena expressatildeo na ideia de que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel para a

soluccedilatildeo de problemas teoacutericos repousa em uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel Tendecircncia

que mais do que uma explicaccedilatildeo teoacuterica seria oriunda de questotildees praacuteticas na medida em

que estaria relacionada agrave concepccedilatildeo kantiana da necessidade de se reservar um espaccedilo para

a liberdade em uma realidade para aleacutem dos fenocircmenos De tal maneira que se a soluccedilatildeo

kantiana para o problema da teleologia interna repousa no mesmo tipo de distinccedilatildeo entre o

mundo dos fenocircmenos e o mundo das coisas em si em que Kant faz repousar sua soluccedilatildeo

do problema da liberdade entatildeo a soluccedilatildeo meramente mecacircnica do problema da teleologia

poderia apontar para uma soluccedilatildeo mecacircnica tambeacutem para o problema da liberdade

Por outros termos o reconhecimento do combate agraves coisas em si como uma parte

fundamental do combate a uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel do ponto de vista teoacuterico

tem suas primeiras origens jaacute entre as obras do periacuteodo de juventude da filosofia

nietzschiana31 Podemos ver assim que Nietzsche jaacute na primeira fase de seu pensamento

potildee em accedilatildeo uma estrateacutegia de combate agrave metafiacutesica que precede em algumas deacutecadas a

sua rejeiccedilatildeo do niilismo que o filoacutesofo considera um traccedilo inerente a toda consideraccedilatildeo

idealista No entanto naquele periacuteodo de sua reflexatildeo o autor ainda natildeo chega a confrontar

todos os riscos inerentes a sua posterior consideraccedilatildeo do niilismo propriamente

Se eacute certo que tatildeo cedo quanto em suas notas preparatoacuterias o autor jaacute confronta o

problema da finalidade e o associa com a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente

mecacircnica destas entatildeo podemos dizer que jaacute nesse momento o autor contrapotildee

fortemente o recurso a toda realidade em si como uma forma equivocada de explicaccedilatildeo

Logo em suas primeiras incursotildees pela questatildeo teleoloacutegica podemos enxergar uma

31 Como atestaria tambeacutem o texto criacutetico Zur Schopenhauer jaacute referido na seccedilatildeo anterior

52

antecipaccedilatildeo dessa temaacutetica que mais tarde se transformaraacute no questionamento acerca do

valor de concepccedilotildees idealistas para a vida Ou seja jaacute naquele periacuteodo de sua reflexatildeo

filosoacutefica Nietzsche interpreta o mundo das ideias como uma criaccedilatildeo humana

fundamentada em uma supervalorizaccedilatildeo da razatildeo

Contraacuterio ao posicionamento metafiacutesico que faz repousar ldquoA valorizaccedilatildeo da

teleologia em sua avaliaccedilatildeo do humano mundo das ideiasrdquo (BAW 3 paacuteg 375) o autor

parte para uma consideraccedilatildeo esteacutetica da teleologia ldquoTeleologia eacute como otimismo um

produto esteacuteticordquo (BAW 3 paacuteg 375) Esta compreensatildeo implica que tanto a teleologia

quanto o otimismo seriam criaccedilotildees humanas segundo um impulso poeacutetico fundamental

Fica claro entatildeo que jaacute em seu ensaio sobre a teleologia em Kant Nietzsche estaacute de posse

da ideia de que o mundo das ideias corresponderia apenas a um produto esteacutetico um

produto da atuaccedilatildeo do potencial criativo humano e que essa ideia fundamental estaria

ligada a um otimismo na contemplaccedilatildeo da realidade Da mesma forma o autor das notas jaacute

parece estar de posse de uma compreensatildeo apurada do caraacuteter interpretativo dessa forma

de se considerar a realidade

Partindo de uma avaliaccedilatildeo criacutetica da questatildeo teleoloacutegica que toma a compreensatildeo

kantiana expressa na criacutetica do juiacutezo como modelo Nietzsche estabelece uma forte

oposiccedilatildeo agrave tendecircncia idealista que faz ver nos problemas referentes agrave vida uma explicaccedilatildeo

extra-fenomecircnica Ao opor-se a este tipo de explicaccedilatildeo o autor entende que tanto a

regularidade observada no reino inorgacircnico como a conveniecircncia a fins que se observa no

reino orgacircnico seriam produtos da apropriaccedilatildeo da razatildeo e natildeo caracteriacutesticas da realidade

mesma Pois para o autor das notas preparatoacuterias ldquoNatildeo temos direito a qualquer

julgamento sobre a intencionalidade maiorrdquo (BAW 3 paacuteg 375) e ldquoA teleologia assim como

o otimismo satildeo produtos esteacuteticosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) Com este tipo de afirmaccedilatildeo o autor

das notas Zur Telelologie pretende dizer que nem uma intencionalidade superior nem uma

consideraccedilatildeo otimista da realidade teriam fundamentos em elementos objetivos da

realidade Pelo contraacuterio tanto a consideraccedilatildeo otimista quanto a consideraccedilatildeo da realidade

segundo a pressuposiccedilatildeo de uma finalidade seriam produtos de uma apropriaccedilatildeo da

realidade segundo os modos da organizaccedilatildeo intelectual humana32

32 O termo ldquoperspectivismordquo natildeo aparece nas notas propriamente No entanto eacute possiacutevel perceber que seNietzsche naquela eacutepoca natildeo utiliza o termo perspectivismo para caracterizar uma apropriaccedilatildeo da realidadesegundo as instacircncias racionais o que corresponderia a uma falsificaccedilatildeo da realidade o termo eacute

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Para o autor das notas preparatoacuterias afastada a hipoacutetese da superioridade da vida

em relaccedilatildeo agrave natureza inorgacircnica a suposiccedilatildeo de uma finalidade como explicaccedilatildeo do

orgacircnico em nada pareceria superior a uma explicaccedilatildeo mecacircnica De fato qual a diferenccedila

entre uma explicaccedilatildeo mecacircnica e uma explicaccedilatildeo finaliacutestica da natureza quando afastada a

hipoacutetese de uma verdade superior agrave que toda explicaccedilatildeo da natureza deve-se se reportar O

que estaacute sendo colocado em duacutevida por Nietzsche aqui de fato seria a proacutepria validade de

um juiacutezo reflexivo teleoloacutegico Neste sentido como Lopes afirma o autor das notas

preparatoacuteria se colocaria em direta confrontaccedilatildeo agrave compreensatildeo kantiana da distinccedilatildeo entre

juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos

O caraacuteter indeterminado desta categorizaccedilatildeo permite a Nietzschequestionar um dos grandes dogmas do kantismo a antiacutetese entremecanismo e teleologia ou melhor entre juiacutezo determinante e juiacutezoreflexivo Ao longo de boa parte das notas preparatoacuterias Nietzscheparece aderir agrave concepccedilatildeo dicotocircmica de Kant que restringe o conceitode explicaccedilatildeo ao emprego da causalidade mecacircnica expressa no juiacutezodeterminante Contudo na progressatildeo das notas Nietzsche toma umadireccedilatildeo inversa e sugere uma reduccedilatildeo das causas mecacircnicas a causasfinais e do uso constitutivo ao uso reflexivo da faculdade de julgar(LOPES 2008 paacuteg 150)

O que Lopes sugere eacute que a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos determinantes e juiacutezos

reflexivos passa a ser questionada por Nietzsche em sua rejeiccedilatildeo de que se possa explicar

a natureza orgacircnica por meio de uma concepccedilatildeo finaliacutestica Paras compreensatildeo desse

problema torna-se necessaacuteria um retorno agrave terceira criacutetica kantiana A Criacutetica da

Faculdade do Juiacutezo de Kant pode ser entendida fundamentalmente como uma

investigaccedilatildeo criacutetica acerca de uma certa classe de juiacutezos chamados reflexionantes Os

juiacutezos reflexivos satildeo pesados por Kant em oposiccedilatildeo aos juiacutezos determinantes ou juiacutezos

cientiacuteficos

praticamente a uacutenica coisa que falta para efetuar uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento expresso nas notaspreparatoacuterias e seu posterior perspectivismo Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo desconsiderar que naquele periacuteodo daobra nietzschiana a atribuiccedilatildeo de uma perspectividade em consideraccedilatildeo da apropriaccedilatildeo da realidade segundoos ditames da razatildeo corresponde a um anacronismo Mas os argumentos que o autor apresenta nas notaspreparatoacuterias conduzem a uma conclusatildeo fundamental que sem duacutevida seraacute retomada em seuperspectivismo a ideia de que toda ordem que se observa na realidade corresponde apenas a uma apropriaccedilatildeoracional da realidade e natildeo agrave realidade ela mesma

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Tal princiacutepio natildeo pode ser senatildeo este como leis universais da naturezatecircm seu fundamento em nosso entendimento que as prescreve agrave natureza(ainda que somente segundo o conceito universal dela como natureza) asleis empiacutericas particulares no que diz respeito agravequilo que nelas eacute deixadoindeterminado pelas leis universais da natureza precisam serconsideradas segundo uma tal unidade [nach einer solchen Einheitbetrachtet werden muumlssen] como se [als ob] um entendimento (aindaque natildeo o nosso) as tivesse dado com vistas agrave [zum Behuf] nossafaculdade de conhecimento para tornar possiacutevel um sistema daexperiecircncia segundo leis da natureza particulares Natildeo que desse modoum tal entendimento tivesse realmente que ser admitido (KANT 2016Paacuteg 11)

Os juiacutezos determinantes se diferenciariam dos juiacutezos reflexivos na medida em que

satildeo orientados por um universal Nesse sentido a terceira criacutetica kantiana que parte da

constataccedilatildeo de que um certo uso judicativo supotildee determinadas condiccedilotildees que natildeo satildeo as

mesmas que fundam nossos juiacutezos objetivos e a maioria dos nossos juiacutezos subjetivos33 Na

continuaccedilatildeo do texto do qual eacute extraiacutedo a citaccedilatildeo acima Kant refere-se aos juiacutezos e ao

33 Conforme Pedro Costa Rego a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos objetivos e juiacutezos subjetivos diria respeitofundamentalmente a validade universal de certos juiacutezos em comparaccedilatildeo agrave validade meramente subjetiva deoutros ldquoPor juiacutezos objetivos entende Kant ateacute sua investigaccedilatildeo na terceira Criacutetica juiacutezos de validadeuniversal Objetividade e universalidade se confundem na medida em que 1) um juiacutezo objetivo eacute um juiacutezofundado em conceitos do entendimento ou da razatildeo 2) as categorias como formas de conceitos empiacutericos eas ideias da razatildeo satildeo elementos pertencentes agrave subjetividade como tal 3) juiacutezos que tecircm como fundamentode determinaccedilatildeo princiacutepios pertencentes a priori agrave subjetividade satildeo vaacutelidos para todos os sujeitos Que todojuiacutezo objetivo seja universal isso jamais seraacute problema para Kant O que entretanto a anaacutelise do gostorevelaraacute impreciso seraacute a formulaccedilatildeo completa ateacute entatildeo vaacutelida para a relaccedilatildeo entre a objetividade e auniversalidade do juiacutezo a saber que universalidade seja condiccedilatildeo necessaacuteria e suficiente para a objetividadede um juiacutezordquo (REGO 2006 Paacuteg 217) Em outras palavras Rego entende que a criacutetica do Juiacutezo se torna ummarco na filosofia kantiana na medida em que nesta criacutetica a distinccedilatildeo entre objetivo e subjetivo eacute elevada aum novo patamar ldquoFundamentar a pretensatildeo de universalidade erguida pelo uso habitual do predicado lsquobelorsquoeacute indicar no elemento da subjetividade como tal o fundamento de determinaccedilatildeo natildeo-objetivo de tal usojudicativo Se isso natildeo for possiacutevel o juiacutezo de gosto natildeo se diferencia do juiacutezo de agradabilidade privada enatildeo haacute argumento contra a tese do empirismo esteacutetico Se for possiacutevel natildeo eacute mais preciso aderir agrave insensatezracionalista de um gosto loacutegico e demonstraacutevel para mostrar que os prazeres esteacuteticos natildeo satildeo todos iguaisEm suma a relaccedilatildeo entre universalidade subjetiva e juiacutezo de gosto eacute uma relaccedilatildeo reivindicada A lsquoAnaliacuteticada Faculdade do Juiacutezo Esteacuteticarsquo eacute uma exposiccedilatildeo da reivindicaccedilatildeo de universalidade subjetiva que apenas ojuiacutezo de gosto ergue e uma deduccedilatildeo do direito do uso dessa reivindicaccedilatildeordquo (REGO 2006 Paacuteg 218) Emoutras palavras com base na sugestatildeo de que o juiacutezo de belo eacute comumente relacionado natildeo a um gostoparticular e nesse sentido subjetivo mas a uma certa universalidade entatildeo Kantpensa a possibilidade de seanalisar juiacutezos que apesar de natildeo poderem reclamar um caraacuteter universal posto que natildeo seriam vinculados aum universal nem tivessem fundamentos na constituiccedilatildeo transcendental ainda assim parecem se relacionarcom algum tipo de objetividade A criacutetica da faculdade de julgar assim se constituiria enquanto estudopropriamente desta objetividade tal como Rego afirma ldquo(hellip) a universalidade de um juiacutezo que tem comofundamento de determinaccedilatildeo natildeo um conceito mas o poder de julgar enquanto tal Sendo esse juiacutezojustamente o juiacutezo de gosto sobre o belo fica explicada a relaccedilatildeo entre lsquouniversalidade subjetivarsquo lsquojuiacutezo degostorsquo e lsquofaculdade do juiacutezorsquo e compreende-se no mesmo movimento por que a Esteacutetica de Kant eacute a parteprincipal de uma obra chamada lsquocriacutetica da faculdade de julgarrsquordquo (REGO 2006 Paacuteg 219)

55

nosso poder de produzi-los como se aqui se trata-se de uma definiccedilatildeo que aqui eacute chamada

de subsunccedilatildeo O juiacutezo como subsunccedilatildeo apresenta-se ainda segundo a introduccedilatildeo da

terceira criacutetica em dois modos baacutesicos o determinante e o reflexionante Para Kant os

juiacutezos reflexionantes natildeo tecircm todos a mesma natureza e os mesmos fins Essa diversidade

permite a Kant classificaacute-los em dois grupos o dos esteacuteticos que tem por finalidade o

belo e o dos teleoloacutegicos que tem por finalidade o telos da natureza

Certamente satildeo estes uacuteltimos que interessam mais prontamente a Nietzsche em

Zur Telelologie Os juiacutezos teleoloacutegicos na medida em que se distinguem dos juiacutezos

esteacuteticos por seu objeto e por uma certa objetividade que se fundamentaria na natureza satildeo

definidos por Kant como juiacutezos cientiacuteficos ldquoA faculdade de juiacutezo teleoloacutegica [] procede

como sempre acontece no conhecimento teoacuterico segundo conceitos [] Por isso segundo

a sua aplicaccedilatildeo pertence agrave parte teoacuterica da filosofiardquo (KANT 2016 Paacuteg 27) Assim na

medida em que a condiccedilatildeo de reflexionante e por conseguinte a presenccedila do princiacutepio da

Zweckmaumlssigkeit e a conformidade a uma intenccedilatildeo cognoscitiva satildeo considerados traccedilos

distintivos do juiacutezo reflexionante teleoloacutegico em relaccedilatildeo aos juiacutezos reflexionantes esteacuteticos

estes satildeo tomados por Kant o juiacutezo de conhecimento de um telos na natureza e portanto

um juiacutezo conceitual A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica kantiana rejeita

justamente a possibilidade de que juiacutezos reflexionantes teleoloacutegicos sejam tomados como

juiacutezos determinantes como juiacutezos cientiacuteficos Isto porque em sua leitura apenas

explicaccedilotildees mecacircnicas da natureza corresponderiam a um tratamento verdadeiramente

cientiacutefico da natureza

Nietzsche compreende jaacute em Zur Teleologie que apenas podemos compreender do

mundo aquilo que criamos que incluiacutemos no mundo De tal maneira que nosso

conhecimento natildeo se confunde com uma estrateacutegia de traduccedilatildeo da natureza como se esta

se tratasse de um texto dado que a noacutes competiria decifrar Em sua leitura conhecimento

tem muito ais a ver com criaccedilatildeo do que com explicaccedilatildeo Eacute nesse sentido por exemplo que

em um fragmento poacutestumo em que o filoacutesofo reflete acerca de um texto kantiano acerca da

distinccedilatildeo entre juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos Nietzsche escreve

(hellip) soacute podemos compreender plenamente aquilo que noacutes mesmospodemos construir e trazer agrave existecircncia segundo conceitos Deste modo

56

apenas o matemaacutetico pode ser plenamente compreendido (ou sejacompreensatildeo formal) Estamos de resto face ao desconhecido Paraadministraacute-lo o homem inventa conceitos que apenas unificam umasomatoacuteria de propriedades que se manifestam mas natildeo tocam a coisa Aeles pertencem fora mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causafinal Eles natildeo satildeo juiacutezos constitutivos mas tatildeo somente juiacutezos reflexivos(KGW I4 paacuteg 565)

Neste fragmento o que estaacute sendo posto eacute a possibilidade de reduccedilatildeo dos juiacutezos

determinantes Para o filoacutesofo na medida em que o homem em sua investigaccedilatildeo da

natureza nunca toca o acircmago das coisas mas pelo contraacuterio sempre trabalha no interior de

realidades por ele criadas tais como aacutetomos sujeitos objetos e todas as categorias com

que se tencione descrever agrave natureza a proacutepria razatildeo sempre estaria atuando de maneira

reflexiva sobre seus proacuteprios produtos Com isso a classe kantiana dos juiacutezos

determinantes a qual dependeria da admissatildeo ainda que apenas metodoloacutegica de uma

realidade extrafenocircmenica estaria de fato esvaziada de objetos Isto natildeo se confunde no

entanto com um alargamento do conceito de explicaccedilatildeo Natildeo se trata de propor que juiacutezos

explicativos deem conta de juiacutezos de finalidade mas o contraacuterio Nietzsche compreende

que juiacutezos explicativos de fato natildeo satildeo possiacuteveis

Retornando agrave anaacutelise levada a cabo pelo autor em Zur Teleologie em que esta

compreensatildeo se mostra presente a conveniecircncia a fins na natureza tal como estaacute foi

imposta ao reino orgacircnico natildeo passaria do produto de um juiacutezo reflexivo uma

consideraccedilatildeo subjetiva que confere leis agrave natureza sem as retirar dela Isto por que

Nietzsche rejeita a ideia de uma inteligecircncia superior como algo que deva ser aceito como

necessaacuterio para a compreensatildeo da natureza desde que para o autor eliminada a distinccedilatildeo

infundada entre realidade orgacircnica e realidade inorgacircnica esta poderia ser compreendida

em sua inteireza por meio da admissatildeo de causas meramente mecacircnicas Assim a

suposiccedilatildeo de uma finalidade na natureza tal como Kant a concebe natildeo diria respeito senatildeo

a uma investigaccedilatildeo da razatildeo com base em seus proacuteprios produtos

Como se pode ver o projeto de investigaccedilatildeo do conceito de orgacircnico a partir de

Kant potildee Nietzsche jaacute em 1868 em contato com uma postura proacutexima agravequela que

caracterizaraacute o periacuteodo maduro de seu pensamento34 Esta postura seria determinada pela

34 Notadamente com as ideias expressas pelo autor no aforismo 14 Aleacutem do Bem e do Mal ldquoComeccedila adespontar em cinco seis ceacuterebros talvez a ideia de que tambeacutem a fiacutesica eacute apenas uma interpretaccedilatildeo e

57

compreensatildeo de que as leis da natureza ou conceitos gerais como o de ldquoorgacircnicordquo natildeo satildeo

mais do que ilusotildees produzidas pelo intelecto Na rejeiccedilatildeo nietzschiana das concepccedilotildees

kantianas entram em accedilatildeo ideias contundentes de A Histoacuteria do Materialismo que teratildeo

um longo amadurecimento na reflexatildeo nietzschiana e que acabaratildeo por fundamentar sua

concepccedilatildeo madura acerca do conhecimento assim como da relaccedilatildeo do conhecimento com

a metafiacutesica O fato de o autor das notas referir-se diversas vezes a passagens do texto

langeano para reforccedilar suas posiccedilotildees como por exemplo ao afirmar que ldquoOrdem e

desordem natildeo se encontram na naturezardquo (BAW 3 paacuteg 375) e que ldquoAtribuiacutemos efeitos agrave

causalidade dos quais as causas relacionadas natildeo vemosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) apenas

reforccedila a compreensatildeo de que Nietzsche reflete longamente sobre as concepccedilotildees de Albert

Lange Dessa reflexatildeo a ideia de que toda atribuiccedilatildeo de finalidade na realidade seria um

produto da atuaccedilatildeo poeacutetica humana eacute o resultado mais importante para o texto em estudo

A rejeiccedilatildeo da vida como elemento especial da realidade aparece nessa

compreensatildeo como exemplo da profundidade da influecircncia do materialismo de Lange na

reflexatildeo nietzschiana No lugar de uma concepccedilatildeo otimista em relaccedilatildeo agrave realidade o autor

sustenta uma posiccedilatildeo segundo a qual o acaso seria a uacuteltima fundamentaccedilatildeo da existecircncia

de tudo o que aparece Assim ao considerar que das inuacutemeras possibilidades de

combinaccedilatildeo dos elementos naturais tambeacutem o orgacircnico aparece como possiacutevel o autor das

notas estaacute rejeitando toda necessidade de uma finalidade superior como forma de

explicaccedilatildeo para a vida No lugar de finalidade a vida aparece como tendo seu surgimento e

manutenccedilatildeo condicionados por causas puramente materiais

Para o autor das notas sobre teleologia tudo que existe deve existir posto que deve

ter as condiccedilotildees de sua existecircncia impressas em seu surgimento A apariccedilatildeo do orgacircnico

natildeo representaria nesse sentido nenhum milagre mas apenas uma apariccedilatildeo natural de algo

de cujas causas se desconhece em todo ou em parte Por outro lado o desconhecimento das

causas que ocasionam o seu surgimento natildeo correspondem a um milagre mas apenas a

uma limitaccedilatildeo no conhecimento destas causas

disposiccedilatildeo do mundo (nisso nos acompanhando permitam lembrar) e natildeo uma explicaccedilatildeo do mundoporeacutem na medida em que se apoia na crenccedila nos sentidos ela passa e deveraacute passar durante muito tempopor algo mais isto eacute por explicaccedilatildeordquo (JGBABM I sect14)

58

Coisas existem entatildeo elas devem existir o que significa que elas devemter as condiccedilotildees para a existecircncia Quando o homem faz algo estes meiosfazem este algo capaz de existecircncia ele pensa acerca das condiccedilotildees sobas quais isto pode se dar Ele chama as condiccedilotildees para a existecircncia daobra acabada conveniente a fins apoacutes o fato Portanto ele tambeacutem chamaas condiccedilotildees de existecircncia das coisas convenientes a fins o que querdizer apenas com a pressuposiccedilatildeo de que eles surgem do mesmo modoque as obras humanas Quando um homem sorteia um nuacutemero de umacaixa e este natildeo eacute seu nuacutemero ele natildeo eacute nem conforme a fins e neminconforme a fins mas como se diz acaso (zufaumlllig) o que quer dizersem pensamento precedente Poreacutem as condiccedilotildees dessa existecircncia satildeodadas (BAW 3 paacutegs 375-376)

Tudo que surge no reino do orgacircnico pertence agrave realidade porque causa mecacircnicas

determinam seu surgimento e natildeo por conta de um intelecto superior que determina sua

existecircncia Esta suposiccedilatildeo confronta diretamente a concepccedilatildeo kantiana segundo a qual a

causalidade mecacircnica natildeo poderia explicar o reino do orgacircnico Assim ao citar Kant

quando diz ldquoA organizaccedilatildeo da natureza natildeo tem nenhuma analogia com qualquer

causalidade que conheccedilamosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) e ldquoUm organismo eacute aquilo em que tudo

eacute intercambiaacutevel tanto o fim quanto os meiosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) Nietzsche jaacute estaacute em

condiccedilotildees de negar estas exigecircncias Ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo aceitaacutevel para a origem

do orgacircnico o autor das notas preparatoacuterias vecirc em Kant apenas uma supervalorizaccedilatildeo do

racional fundamentada em uma concepccedilatildeo infundada do orgacircnico como algo superior agrave

natureza inorgacircnica

14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana

O autor das notas sobre teleologia apresenta em sua leitura do problema do

orgacircnico assim como sua relaccedilatildeo com o inorgacircnico uma interpretaccedilatildeo em que nem a

realidade mecacircnica nem a orgacircnica pertenceriam agrave realidade em si Para o jovem

Nietzsche ambas aproximaccedilotildees do problema tanto a teleoloacutegica quanto a mecacircnica

representariam apenas reflexos de nosso ponto de vista seriam assim produtos de nossa

organizaccedilatildeo Com isso eacute possiacutevel ver que nesta concepccedilatildeo intercalam-se aspectos da

rejeiccedilatildeo nietzschiana das realidades em si e de sua concepccedilatildeo do conhecimento como

59

tendo suas limitaccedilotildees em nossa organizaccedilatildeo Estas satildeo ideias caras a Nietzsche que

decorrem sobretudo de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo

Agravequela altura o autor estaacute certo de que a partir de nosso ponto de referecircncia do

ponto de vista da natureza humana apenas somos capazes de conhecer por meio de

relaccedilotildees causais ou seja ldquoapenas conhecemos mecanismosrdquo e natildeo organismos Com isso

Nietzsche adianta sua conclusatildeo final para o caso dos organismos e da teleologia portanto

uma rejeiccedilatildeo da posiccedilatildeo kantiana e uma reafirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo langeana

O que Kant afirma ele afirma com base em uma maacute analogia que deacordo com essa ideia natildeo haacute nada similar agraves relaccedilotildees de conveniecircncia afins dos organismos A conveniecircncia a fins surge como um caso especialdo possiacutevel formas sem fim surgem o que quer dizer por meio de junccedilatildeomecacircnica entre estas incontaacuteveis formas poderia haver tambeacutem algumascapazes de vida (BAW 3 paacuteg 378-379)

Na citaccedilatildeo fica expliacutecita a compreensatildeo nietzschiana segundo a qual apenas por

meio de uma analogia improcedente entre o modo como o homem cria com a forma como

as coisas satildeo criadas na natureza Kant teria podido sustentar sua concepccedilatildeo teleoloacutegica35

Assim a uacutenica forma de rejeitar o surgimento dos organismos por meios mecacircnicos seria a

suposiccedilatildeo de uma conformidade a fins incoerente como Nietzsche estaacute convencido de

haver demonstrado

Na compreensatildeo nietzschiana Kant teria recorrido a uma realidade extrafenomecircnica

como modo de justificar a existecircncia de uma inteligecircncia diretora por conta de sua rejeiccedilatildeo

de que organismos complexos pudessem surgir por meios mecacircnicos Mas como o autor da

Criacutetica do Juiacutezo poderia sustentar este recurso a uma realidade superior se em sua filosofia

teoacuterica teria negado a possibilidade de conhecimento de qualquer coisa que se pusesse para

aleacutem dos fenocircmenos Assim ao oferecer uma rejeiccedilatildeo sistemaacutetica das concepccedilotildees

kantianas acerca do orgacircnico Nietzsche pensava sustentar aquilo que considerava ser uma

posiccedilatildeo eminentemente kantiana Posiccedilatildeo segundo a qual ldquoo que se encontra para aleacutem de

nossos conceitos eacute completamente impossiacutevel de conhecerrdquo (BAW 3 paacuteg 378-379)

35 A analogia eacute bastante conhecida na histoacuteria da defesa de concepccedilotildees teleoloacutegicas na forma de umaconcepccedilatildeo de design inteligente segundo a qual toda criaccedilatildeo complexa implica a existecircncia de um criadorinteligente

60

Vimos em seccedilatildeo anterior que naquele periacuteodo de seu pensamento Nietzsche

escreve um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana em que ataca justamente este

ponto Assim negada a possibilidade de acesso cognitivo a uma realidade superior o que

restaria seria a afirmaccedilatildeo de que o conceito de orgacircnico eacute apenas um conceito humano que

natildeo encontra reflexos na realidade objetiva Assim Nietzsche afirma ldquoa ideia de totalidade

eacute obra nossa Aqui repousa a fonte de nossa representaccedilatildeo de finalidadesrdquo (BAW 3 paacuteg

379) A totalidade da natureza orgacircnica agrave qual Kant pensava que as partes se referiam de

forma finaliacutestica seria apenas um produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo

De fato para o autor das notas preparatoacuterias a proacutepria constituiccedilatildeo do orgacircnico

passa por categorias humanas como a categoria de unidade e de totalidade Sem a ideia de

totalidade tambeacutem a ideia kantiana de finalidade orgacircnica cairia por terra Mas se a

finalidade natural natildeo tem sua explicaccedilatildeo em uma realidade extrafenomecircnica porque natildeo

temos acesso a uma tal realidade isto natildeo quer dizer que o orgacircnico natildeo possa ter sua

origem explicada Esta explicaccedilatildeo no entanto natildeo poderia ser dada de forma definitiva

posto que se fundamentaria em nossa organizaccedilatildeo Assim Para Nietzsche a origem do

orgacircnico apenas pode ser dada de forma hipoteacutetica36 e a hipoacutetese defendida pelo autor das

notas seria uma combinaccedilatildeo de mecanicismo e causalismo A ideia da origem do orgacircnico

por meio da atuaccedilatildeo de relaccedilotildees causais que se dariam ao acaso eacute formulada pelo autor das

notas com base em sua rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo de uma inteligecircncia diretora por traacutes da

criaccedilatildeo da realidade

A origem do orgacircnico eacute uma origem hipoteacutetica em que noacutes imaginamosum entendimento humano como presente Agora o conceito de orgacircnicoeacute tambeacutem apenas humano deve-se apontar a analogia de que o que eacute

36 Na adoccedilatildeo nietzschiana de uma hipoacutetese como resposta agrave suposiccedilatildeo contraacuteria que no caso das notas sobreteleologia eacute a hipoacutetese teleoloacutegica eacute possiacutevel perceber traccedilos de semelhanccedila com a madura concepccedilatildeonietzschiana de vontade de potecircncia e sua defesa hipoteacutetica no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do MalCertamente que a defesa de hipoacuteteses natildeo constitui elemento original na filosofia de um autor comoNietzsche o qual sempre apresenta em seus escritos mais questionamentos do que respostas Mas o fato dofiloacutesofo natildeo defender posiccedilotildees dogmaacuteticas pode ser um elemento mais significativo do que parece a primeiravista podendo significar uma resoluta renuacutencia agrave defesa de posiccedilotildees dogmaacuteticas Atitude que a partir deAleacutem do Bem e do Mal se torna expliacutecita Chama a nossa atenccedilatildeo sobretudo o fato de Nietzsche apresentaresta concepccedilatildeo de maneira hipoteacutetica nessa passagem o que remete agrave forma como o autor apresenta a suaconcepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia como hipoacutetese adversaacuteria da concepccedilatildeo mecanicista dos fiacutesicos No casoem questatildeo a hipoacutetese resumida por Nietzsche como a hipoacutetese acerca da origem do orgacircnico segundo aqual o mesmo princiacutepio diretor que atua na manutenccedilatildeo do orgacircnico atuaria em sua criaccedilatildeo eacute contraposta aideia de uma associaccedilatildeo de mecanicismo e acaso que o autor entende como capaz de originar mesmo asformas mais complexas do orgacircnico

61

capaz de vida surge dentre uma multiplicidade daquelas possibilidadesincapazes de vida Com o quecirc nos aproximamos da soluccedilatildeo doorganismo Vemos o tanto quanto eacute capaz de vida surgir e se manter evemos o meacutetodo Suposto que a forccedila que opera para tornar a vida capazde existecircncia a traz para a existecircncia e a manteacutem do mesmo modo isto eacutemuito irracional Mas esta eacute a pressuposiccedilatildeo da teleologia (BAW 3 paacuteg379)

Diante do absurdo da suposiccedilatildeo de que um mesmo princiacutepio guiado pelas mesmas

premissas atuaria na origem e na manutenccedilatildeo de um ente orgacircnico o autor apresenta a

concepccedilatildeo segundo a qual apenas nossa forma de compreender o orgacircnico poderia

justificar esta distorccedilatildeo fundamental A partir dessa rejeiccedilatildeo fundamental da ideia de uma

inteligecircncia diretora e da hipoacutetese de que um mesmo princiacutepio atuasse na origem e na

manutenccedilatildeo dos seres vivos Nietzsche passa a levar em consideraccedilatildeo o problema

epistemoloacutegico fundamental apresentado na Criacutetica do Juiacutezo Assim na continuidade do

conjunto de fragmentos poacutestumos que compotildeem as notas preparatoacuterias para Zur

Teleologie o autor pretende estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas

categorias de causa e efeito

Atraveacutes do recurso agrave categoria de causalidade e a propriedade do meacutetodo de

investigaccedilatildeo mecanicista Nietzsche rejeita a oposiccedilatildeo entre as categorias de unidade e

multiplicidade Esta oposiccedilatildeo com base na qual a explicaccedilatildeo kantiana da necessidade de

um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos se fundamentaria seria de

fato o rela motivo pelo qual o autor das notas preparatoacuterias teria inserido Kant entre os

defensores da teleologia Na leitura do autor das notas preparatoacuterias apesar da ideia

simples do organismo se apresentar a noacutes como o proacuteprio organismo esta ideia se potildee para

aleacutem da multiplicidade de partes e estados que compotildeem o organismo sem que com isso

se perca a sua identidade

Por isso o filoacutesofo cita uma passagem de A Histoacuteria do Materialismo em que

Lange discute as concepccedilotildees naturalistas de Goethe ldquolsquoToda coisa vivarsquo nos diz Goethe lsquoeacute

natildeo uma singularidade mas uma pluralidade mesmo se no entanto ela aparece a noacutes

como um indiviacuteduo ela permanece uma coleccedilatildeo de seres vivos independentesrsquordquo (BAW 3

Paacuteg 376) Com base nessa interpretaccedilatildeo Nietzsche argumenta que tal natildeo se daria se o

organismo natildeo fosse um elemento estrutural da natureza mas ao contraacuterio a unidade

62

estrutural do orgacircnico fosse um produto de nosso intelecto e natildeo uma caracteriacutestica da

natureza

Este seria o real motivo porque o foco da criacutetica nietzschiana agrave teleologia naquele

momento recaia sobre a concepccedilatildeo tradicional de orgacircnico Pois na medida em que a

tradiccedilatildeo representava a visatildeo da natureza como sendo formada por unidades independentes

que se organizariam para constituir um todo complexo a dicotomia entre a multiplicidade

das partes e a unidade do organismo seria fundamental para a compreensatildeo do mundo

orgacircnico Portanto a verdadeira oposiccedilatildeo natildeo se daria entre uma concepccedilatildeo mecacircnica e

uma concepccedilatildeo teleoloacutegica dos organismos mas entre uma concepccedilatildeo que se baseia na

ideia tradicional de organismos aqueles que pretendem um esclarecimento da natureza

mediante a elucidaccedilatildeo da categoria de orgacircnico e as concepccedilotildees mecacircnicas que

pretendem estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas categorias de causa e

efeito (BAW 3 paacuteg 130)

Acompanhando a interpretaccedilatildeo de Fischer para quem ldquoO que a razatildeo conhece da

natureza atraveacutes de seus conceitos natildeo eacute nada mais do que o efeito de forccedilas em

movimento ou seja seu mecanismordquo(BAW 3 paacuteg 377) Nietzsche adianta uma

explicaccedilatildeo do mundo orgacircnico que pressupotildee apenas uma forma de causalidade mecacircnica

retomando assim a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente mecacircnica dos

organismos Nesse sentido o autor chega a admitir apenas a explicaccedilatildeo mecacircnica como

explicaccedilatildeo cientiacutefica como demonstra a citaccedilatildeo de Fischer que encontramos como

fundamento de sua posterior argumentaccedilatildeo ldquoO que natildeo pode ser conhecido por meio de

um ponto de vista meramente mecacircnico natildeo pertence agrave ciecircncia naturalrdquo (BAW 3 paacuteg

377) Com base na suposiccedilatildeo apenas de princiacutepios mecacircnicos na explicaccedilatildeo da realidade

orgacircnica Nietzsche desqualifica toda forma de explicaccedilatildeo teleoloacutegica da natureza como

sendo uma explicaccedilatildeo natildeo cientiacutefica

Ainda em conformidade com Fischer e Lange Nietzsche escreve ldquoexplicar

mecanicamente significa explicar a partir de causas externasrdquo (BAW 3 paacuteg 377) Desta

maneira o autor das notas preparatoacuterias reforccedila a ideia de que toda suposiccedilatildeo de uma

teleologia interna repousa apenas em um preconceito ocasionado por uma super-

valorizaccedilatildeo da razatildeo Esta interpretaccedilatildeo do problema teleoloacutegico eacute contraposta agrave

interpretaccedilatildeo apresentada por Kant na criacutetica do Juiacutezo segundo a qual ldquoA especificaccedilatildeo

63

(da natureza) natildeo pode ser explicada atraveacutes de causas naturaisrdquo (BAW 3 paacuteg 377)

Nietzsche conclui que as causas internas as quais Kant necessariamente precisa recorrer

em sua explicaccedilatildeo dos organismos na figura da finalidade seriam o mesmo que

representaccedilotildees ideias as quais se recorre para atribuir uma explicaccedilatildeo ao que natildeo eacute

passiacutevel de conhecimento

No entanto desde que a elas corresponderia apenas um ldquoponto de vistardquo e um

ponto de vista natildeo pode ser confundido com um conhecimento objetivo a explicaccedilatildeo dos

seres orgacircnicos por meio da ideia de conveniecircncia a fins corresponderia apenas agrave uma

perspectiva limitada Se como Nietzsche nesse ponto chega a afirmar ldquoo princiacutepio de um

tal ponto de vista necessaacuterio deve ser um conceito da razatildeordquo (BAW 3 paacuteg 377) entatildeo

toda forma de explicaccedilatildeo da natureza corresponderia apenas a sua sujeiccedilatildeo ao mecanismo

representacional humano Logo toda explicaccedilatildeo da natureza repousaria em uma forma de

representaccedilatildeo mais ou menos subjetiva ocasionada pelo modo mesmo como a razatildeo

constitui seus produtos Por outro lado a proacutepria compreensatildeo das coisas mediante uma

explicaccedilatildeo causal seria ainda uma limitaccedilatildeo relativa apenas ao nosso modo de

compreensatildeo porque ldquoDevido a nossa organizaccedilatildeo apenas podemos compreender uma

origem mecacircnica das coisasrdquo (BAW 3 paacuteg 378)

As notas preparatoacuterias para a tese sobre teleologia assim parece apresentar como

seu resultado final uma compreensatildeo do caraacuteter limitado de toda forma de compreensatildeo da

realidade Posto que todo conhecimento da realidade apenas pode ser tomado como uma

representaccedilatildeo segundo a forma humana de apreensatildeo desta realidade entatildeo ou bem o

conhecimento propriamente natildeo eacute possiacutevel ou apenas pode ser tomado como

conhecimento uma forma humana de representaccedilatildeo da realidade Em um outro texto do

periacuteodo de juventude Nietzsche se voltaraacute para os problemas referentes agrave verdade e ao

conhecimento mas agora entraram em cena novas variaacuteveis tais como a linguagem e o

valor moral das nossa representaccedilotildees da realidade Desta forma na medida em que

compreendemos que a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do conhecimento diz respeito a

uma avaliaccedilatildeo do valor do conhecimento entatildeo o Ensaio sobre Verdade e Mentira

apresentaraacute em relaccedilatildeo agrave Zur Teleologie elementos que atestam um progresso

consideraacutevel no caminho da formulaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

64

2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral

O Ensaio sobre Verdade e Mentira escrito poacutestumo ditado por Nietzsche a um

amigo em 1873 portanto um ano apoacutes a publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia

testemunha a preocupaccedilatildeo do jovem filoacutesofo com temas relacionados aos problemas do

conhecimento e da verdade Nesse sentido como um primeiro exemplo da abordagem

destes problemas na filosofia nietzschiana pretendemos interpretar este ensaio como o

ponto de partida para diversas concepccedilotildees acerca da natureza do conhecimento Como a

leitura do ensaio deixa claro o autor retira estas concepccedilotildees de seu contato com as ciecircncias

naturais de sua eacutepoca O que significa que assim como no caso das notas Zur Teleologie o

Ensaio sobre Verdade e Mentira assume um aspecto que se poderia qualificar

parafraseando Nietzsche como semifilosoacutefico e semicientiacutefico

Tanto nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie quanto no Ensaio sobre Verdade

e Mentira Nietzsche demonstra um profundo interesse pelas disputas em torno de temas

comuns agraves ciecircncias naturais Se nas notas sobre teleologia o autor se relaciona intimamente

com diversas teorias acerca da natureza do orgacircnico no ensaio aparecem representadas

teses sobre evoluccedilatildeo das espeacutecies e sobre a funccedilatildeo bioloacutegica de determinadas estruturas do

aparato humano De tal forma estes textos demonstram a preponderacircncia de questotildees

relacionadas ao conhecimento em uma interpretaccedilatildeo que aproxima essa temaacutetica dos

estudos bioloacutegicos que natildeo se pode deixar de relacionaacute-los aos desdobramentos que o

autor apresenta no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

No aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia encontramos os traccedilos centrais da teoria do

conhecimento suportada por Nietzsche no periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento

Nesses traccedilos natildeo encontraremos a meu ver mudanccedilas significativas em relaccedilatildeo ao modo

como o conhecimento eacute tratado em sua filosofia de juventude notadamente em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira O objeto do aforismo eacute a criacutetica agrave concepccedilatildeo de consciecircncia

apresentado aqui discretamente como o problema do tornar-se consciente desde que

Nietzsche rejeita a ideia de uma consciecircncia independente do ldquotornar-se conscienterdquo Uma

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resultante desse problema como se pode notar facilmente eacute a concepccedilatildeo de consciecircncia

como objeto de um conhecimento absolutamente certo de si mesma37

O perspectivismo e o fenomenalismo aparecem aqui como a indicaccedilatildeo de que

apenas como fenocircmeno apenas no seu aparecer enquanto o nosso tornar-se consciente a

consciecircncia pode ser objeto de conhecimento38 E como fenocircmeno que eacute nos diz

Nietzsche39 esta seria passiacutevel de uma anaacutelise apenas parcial posto que apenas pode ser

reconhecida por noacutes como um produto de nossa organizaccedilatildeo A anaacutelise do processo de

formaccedilatildeo da consciecircncia tal como estaacute se daraacute aqui tal como se deu a anaacutelise do intelecto

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira passa pelo questionamento acerca da utilidade do

aparato cognitivo humano

Os textos em questatildeo representariam sobretudo um posicionamento criacutetico de

Nietzsche com relaccedilatildeo agrave concepccedilotildees tradicionais de conhecimento Do mesmo modo estes

textos se utilizam amplamente de concepccedilotildees derivadas das ciecircncias naturais como forma

de se contrapor a tais concepccedilotildees tradicionais Em sua abordagem evolutiva ou seja que

toma como referecircncia a evoluccedilatildeo bioloacutegica da espeacutecie humana a consciecircncia eacute tomada

como um oacutergatildeo cuja principal funccedilatildeo estaria relacionada agrave criaccedilatildeo da linguagem A

linguagem por sua vez seria compreendida como uma peccedila fundamental na estrateacutegia de

sobrevivecircncia que se tornou mais eficiente para os homens Assim encontraremos no

aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o questionamento ldquopara quecirc precisamente consciecircnciardquo

37 Como se sabe o conceito de consciecircncia assim como a possibilidade de seu conhecimento certocompotildee o argumento central da filosofia cartesiana a qual influenciou fortemente toda a filosofia moderna Acriacutetica agrave modernidade e sua concepccedilatildeo racionalista portanto comeccedila em Nietzsche pela criacutetica da concepccedilatildeoracionalista de consciecircncia e com a apresentaccedilatildeo dos elementos inconscientes por traacutes da formaccedilatildeo daconsciecircncia que ele apresenta no aforismo em questatildeo38 Eacute importante notar que estes termos satildeo utilizados aqui por Nietzsche com a maacutexima precauccedilatildeo comobem observa Stegmaier ldquoEs ist einer der seltenen Faumllle in denen er im veroumlffentlichten Werk solche Terminibenutzt und er umstellt sie denn auch sogleich mit deutlichen Einschraumlnkungen bdquoDies ist der eigentlichePhaumlnomenalismus und Perspektivismus wie ich ihn versteherdquo (STEGMAIER Werner NietzschesBefreiung der Philosophie Kontextuelle Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo IIUrsprungsfragen zur Aufloumlsung von scheinbar letztem Halt De Gruyter (Berlin Boston) 2012 Paacuteg 280)Como Stegmaier tambeacutem nos diz essa eacute uma das poucas passagens onde podemos contemplar a utilizaccedilatildeodestes termo por Nietzsche

39 Como explica Stegmaier ldquoDer Begriff sbquoPhaumlnomenalismuslsquo war vor allem auf Kants Lehre gemuumlnzt dasswir es niemals mit sbquoDingen an sichlsquo sondern immer nur mit sbquoErscheinungenlsquo sbquoPhaumlnomenenlsquo zu tun haumlttenauch dieser sbquo-ismuslsquo wurde wie viele andere zunaumlchst von Kritikern jener Lehre aufgebracht und dann auchzu ihrer Verteidigung und Fortbildung benutztrdquo Idem

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Este questionamento que de certo modo jaacute encontra fora respondido no Ensaio sobre

Verdade e Mentira tem no aforismo em questatildeo uma resposta hipoteacutetica ldquoPara fins de

comunicaccedilatildeordquo

Consideramos que a concepccedilatildeo presente no ensaio de uma evoluccedilatildeo do intelecto

com base na necessidade de uma vida coletiva a qual por sua vez torna-se cada vez mais

dependente de uma linguagem pode ser lida aqui como uma variaccedilatildeo do questionamento

suportado por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia A similaridade de objetos assim como da

resposta torna possiacutevel estabelecer uma certa continuidade entre o periacuteodo de juventude e

o periacuteodo intermediaacuterio da reflexatildeo nietzschiana Continuidade que se natildeo pode se

confundir com a supressatildeo das discordacircncias pode servir de base para a ideia de que

apesar de uma certa variaccedilatildeo na abordagem as ideias acerca das relaccedilotildees entre o

conhecimento e a linguagem permanecem praticamente intocadas com o desenvolvimento

do pensamento nietzschiano

A primeira dificuldade que se nos apresenta no estudo do ensaio em questatildeo eacute o

uso ambiacuteguo de verdade a que este daacute lugar40 A originalidade do ensaio que como o tiacutetulo

40 No capiacutetulo de seu livro dedicado ao estudo do ensaio sobre verdade e mentira Bornedal se daacute conta dessaconhecida dificuldade e identifica trecircs (ou quatro) sentidos de verdade no ensaio em questatildeo ldquolsquoverdadersquo eacuteuma bem conhecida pedra no caminho para os comentadores do ensaio de juventude de Nietzsche Muitoscomentadores veem Nietzsche se contradizendo porque ele introduz muitos conceitos diferentes eincompatiacuteveis de verdade Concordamos que Nietzsche realmente introduz diferentes noccedilotildees de lsquoverdadersquo eestamos aptos a numerar no ensaio exatamente trecircs (ou quatro dependendo de como se conta) destas taisnoccedilotildees de verdade verdade como veracidade (truthfulness) verdade como ilusatildeo (que se divide em duasformas porque a verdade pode ser uma ilusatildeo devida agrave percepccedilatildeo ou uma ilusatildeo devida aos conceitos) everdade como a coisa em si Poreacutem ao introduzir estes trecircs ou quatro conceitos de verdade natildeo percebemosuma contradiccedilatildeo em Nietzsche desde que as noccedilotildees tecircm diferentes definiccedilotildees aplicaccedilotildees e contextosrdquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 32-33) No entanto apresentamos uma versatildeo um pouco diferente dasconcepccedilotildees de verdade segundo Bornedal porque este associa uma concepccedilatildeo de coisas em si com umaconcepccedilatildeo de verdade segundo Nietzsche quando nos parece que o autor do ensaio nega esta relaccedilatildeo emtodos os momentos que se refere agraves coisas em si Bornedal parece incorrer em uma interpretaccedilatildeo corriqueirada filosofia de juventude de Nietzsche a qual nos contrapomos de que nesta fase o filoacutesofo postula-se aexistecircncia de coisas em si como um elemento necessaacuterio de sua negaccedilatildeo do conhecimento verdadeiro Com oadendo de que Bornedal faz observaccedilotildees fundamentais no sentido de esclarecer que na reflexatildeo nietzschianadaquele periacuteodo este jaacute se relacionaria com uma versatildeo criacutetica da coisa em si de acordo com asinterpretaccedilotildees de Lange e Hemholtz da filosofia kantiana Versatildeo criacutetica em que o que se potildee para aleacutem dosfenocircmenos natildeo teria relaccedilotildees com uma realidade transcendente mas apenas com o complexo bruto natildeotraduzido de estiacutemulos nervosos Em resumo a coisa em si a qual Nietzsche faria referecircncia no ensaio teriamais a ver com os estiacutemulos nervosos por traacutes das percepccedilotildees humanas ou ldquoNesta reformulaccedilatildeoepistemoloacutegico-cientiacutefica do pensamento kantiano a coisa em si eacute mais do que simplesmente o enigmaacuteticolsquoXrsquo de Kant ele ainda eacute certamente enigmaacutetico mas agora ele eacute compreendido como impressotildees sensiacuteveisimpressas em noacutes lsquosob a pelersquo como diria Schopenhauer A coisa em si eacute tatildeo incompreensiacutevel e inacessiacutevelcomo sempre mas agora sua incompreensibilidade tinha uma explicaccedilatildeo fisioloacutegico-cientiacuteficardquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 41)

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anuncia tem como tema a verdade e a mentira vistas de um ponto de vista extramoral

residiria no fato de que a anaacutelise destes temas em contraposiccedilatildeo agraves abordagens

tradicionais buscaria situar-se em um patamar de exterior agrave moral A primeira denuacutencia do

texto portanto denuacutencia que jaacute se encontra em seu tiacutetulo diz respeito a insinuaccedilatildeo da

moral em questotildees relativas agrave verdade e a mentira Para o autor do ensaio o

questionamento pela forma como a moral se confunde com a verdade e a mentira jaacute

representaria um passo fundamental na determinaccedilatildeo do que sejam de fato verdade e

mentira

Seu posicionamento distingue-se aos estudos anteriores dessas concepccedilotildees

filosoacuteficas que o autor julga terem sido analisados dentro de uma apreciaccedilatildeo estritamente

moral Assim o autor do ensaio procura qualificar tanto a verdade quanto a mentira como

instacircncias cuja a origem natildeo se relacionaria com algum reino moral Seria somente a partir

das consequecircncias negativas deste uso que surgiria o impulso moral agrave verdade Pois para o

autor do ensaio a verdade em uma primeira acepccedilatildeo estaria relacionada agrave veracidade ou

o uso correto de designaccedilotildees produzidas pelo intelecto a partir de metaacuteforas Em outro

sentido a verdade seria uma ilusatildeo decorrente de se tomar por verdadeiro uma percepccedilatildeo

ou um conceito de algo Por fim a verdade estaria relacionada ao uso dos termos

acordados em uma comunidade tornando-se aquilo que a tradiccedilatildeo entendeu como verdade

com todo o peso moral que esta concepccedilatildeo assume a partir de um haacutebito de interiorizaccedilatildeo

das consequecircncias do uso incorreto dos termos acordados Eacute assim que para o autor a

mentira poderia a princiacutepio ser tomada como o uso incorreto de designaccedilotildees acordadas

em sociedade

Poderia ser dito entatildeo que a originalidade do texto em questatildeo reside no

questionamento do julgamento moral positivo acerca da verdade e o correlato julgamento

negativo com relaccedilatildeo agrave mentira que encontramos nas abordagens tradicionais dos

problemas da verdade Se a verdade eacute universalmente e objetivamente preferiacutevel agrave

mentira e o autor estaacute bem longe de acreditar nisso sua preferecircncia deve ser dada por algo

estranho agrave moral que ao contraacuterio do que se imagina natildeo eacute eterna e portanto anterior agrave

criaccedilatildeo da verdade e da mentira Para o autor do ensaio pelo contraacuterio a moral seria uma

decorrecircncia da criaccedilatildeo da verdade e da mentira

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21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira

No ensaio sobre verdade e mentira o intelecto eacute concebido apenas como um

instrumento uma construccedilatildeo orgacircnica um oacutergatildeo voltado para a sobrevivecircncia do ser

humano No que se vecirc claramente uma rejeiccedilatildeo de qualquer finalidade exterior agrave

sobrevivecircncia humana41 Esta renuacutencia ao conhecimento como finalidade a indicaccedilatildeo de

que ao contraacuterio do que a tradiccedilatildeo imagina o intelecto natildeo seria o uacuteltimo grau de

desenvolvimento bioloacutegico prepara o cenaacuterio para o desmascaramento do homem como

ponto culminante da criaccedilatildeo

Naquelas notas preparatoacuterias para uma dissertaccedilatildeo em filosofia o autor buscava

uma explicaccedilatildeo mecacircnica capaz de suplantar a explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo natural

Analogamente no ensaio em estudo a biologia a lei natural de desenvolvimento dos

organismos apareceraacute como instrumento interpretativo para estruturas sobre as quais o

idealismo fundamentava o que o autor considerava as mais tresloucadas concepccedilotildees Mais

ainda em sua exposiccedilatildeo do desenvolvimento do intelecto como oacutergatildeo para a linguagem o

autor desconsidera a possibilidade de qualquer finalidade superior assim como reduz a

importacircncia do oacutergatildeo em questatildeo a uma finalidade fisioloacutegica Com isso o autor parece

pocircr em uso um entendimento criacutetico com relaccedilatildeo agrave teleologia que seria similar ao

apresentado nas jaacute referidas notas sobre teleologia

Uma conclusatildeo fundamental que pode ser extraiacuteda do ensaio eacute que o conhecimento

representado aqui na forma do grande edifiacutecio de conceitos da qual a ciecircncia seria uma

expressatildeo natildeo se confunde em Nietzsche como um produto da verdade Na verdade

como a construccedilatildeo que toma por material os conceitos que satildeo algo como cristalizaccedilotildees de

metaacuteforas adequadas a ciecircncia eacute apenas uma construccedilatildeo humana para fins de

sobrevivecircncia humana que natildeo tem um valor absoluto e cujo valor para outras espeacutecies eacute

questionaacutevel Ora se aprofundarmos a metaacutefora da teia da aranha em relaccedilatildeo ao

conhecimento para o homem veremos que a ciecircncia humana eacute tatildeo verdadeira para a aranha

quanto a teia desta para noacutes Algo simplesmente natildeo encaixa na comparaccedilatildeo porque o

41 Quando tomada a questatildeo da finalidade como centro de reflexatildeo de Nietzsche naquele momento de suaproduccedilatildeo eacute importante repensar a criacutetica agrave concepccedilatildeo de finalidade como explicaccedilatildeo dos organismos talcomo esta reflexatildeo aparece em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie analisadas no toacutepico anterior

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filoacutesofo entende que ambas criaccedilotildees apenas correspondem agraves necessidades de cada espeacutecie

e natildeo tecircm valor algum fora de suas perspectivas

Nesse sentido longe de ser o objeto proacuteprio do ser humano seu uacuteltimo alvo e

finalidade no universo diante do qual todo universo deveria se dobrar o conhecimento eacute

tomado pelo autor como uma relaccedilatildeo antropomoacuterfica uma estrateacutegia de sobrevivecircncia

criada com o uacutenico intuito de conservar por um breve momento a mais na existecircncia a

espeacutecie mais ameaccedilada de todas Assim por meio de uma faacutebula apresentada jaacute no

primeiro paraacutegrafo do ensaio Nietzsche apresenta uma visatildeo pessimista com relaccedilatildeo ao

conhecimento

Em algum remoto rincatildeo do universo que se desaacutegua fulgurantementeem inumeraacuteveis sistemas solares havia uma vez um astro no qualanimais astuciosos inventaram o conhecimento Foi o minuto maisaudacioso e hipoacutecrita da ldquohistoacuteria universalrdquo mas no fim das contas foiapenas um minuto Apoacutes alguns respiros da natureza o astro congelou-see os astuciosos animais tiveram de morrer Algueacutem poderia desse modoinventar uma faacutebula e ainda assim natildeo teria ilustrado suficientementebem quatildeo lastimaacutevel quatildeo sombrio e efecircmero quatildeo sem rumo e semmotivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza houveeternidades em que ele natildeo estava presente quando ele tiver passadomais uma vez nada teraacute ocorrido (WLVM sectI paacuteg 25)42

Esta faacutebula da criaccedilatildeo do conhecimento humano que consta como poacutertico de

entrada do ensaio daacute mostras do tom irocircnico a ser utilizado para com o intelecto humano e

para com o proacuteprio conhecimento em todo o escrito Disto jaacute tomamos notiacutecia pela ecircnfase

do autor no termo ldquohistoacuteria universalrdquo mencionado entre aspas como a ironizar a

arrogacircncia necessaacuteria para chamar universal uma histoacuteria que eacute narrada a partir de nossa

perspectiva limitada criaturas destinadas a sumir ao fim de apenas alguns respiros do

universo Do mesmo modo o uso da faacutebula como que para demarcar o limite hipoteacutetico de

toda essa formulaccedilatildeo arbitraacuteria e antropocecircntrica guarda bastante do tom irocircnico utilizado

pelo autor para tratar do conhecimento em seus textos da fase madura43

42 As citaccedilotildees satildeo da traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros do Ensaio sobre Verdade e Mentira da editoraHedra conforme consta na bibliografia Entre parecircnteses eacute indicado o texto por WLVM a indicaccedilatildeo deparaacutegrafo e a paacutegina da traduccedilatildeo em estudo43 Por outro lado o recurso agrave faacutebula como instrumento expositivo nesse ensaio se torna importante porquerepresenta a permanecircncia no pensamento do autor de um recurso discursivo com o qual este se opotildee agravesdescriccedilotildees com pretensatildeo cientiacutefica Este recurso eacute especialmente comum em textos nietzschianos em que o

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O sentido do primeiro paraacutegrafo do texto torna-se assim claro e rico de sentido o

autor do ensaio natildeo vecirc com benevolecircncia o conhecimento humano assim como natildeo atribui

grande importacircncia ao intelecto humano Toda esta postura denuncia um afastamento da

tradiccedilatildeo na medida em que aquela eacute marcada pela ecircnfase nessas instacircncias meramente

humanas Por isso o autor acrescenta que este intelecto lastimaacutevel sombrio e efecircmero o

qual ldquohouve eternidades em que ele natildeo estava presenterdquo e que ldquoquando ele tiver passado

mais uma vez nada teraacute ocorridordquo (WLVM sectI paacuteg 25) natildeo tem nenhuma missatildeo

especial no universo para aleacutem da sobrevivecircncia humana

O intelecto nos diz o autor natildeo alcanccedila nada para aleacutem de sua funccedilatildeo bioloacutegica a

criaccedilatildeo de ilusotildees capazes de facilitar a sobrevivecircncia humana No entender de Nietzsche

apenas o homem toma este intelecto de forma tatildeo ldquopateacuteticardquo centrando o universo nesse

instrumento de sobrevivecircncia Como uma mosca que fundamentasse o universo em seu

voar o homem mede todo o universo a partir de sua perspectiva limitada e enganosa Esse

pathos a sensaccedilatildeo de que o mundo pode ser explicado por meio de uma tatildeo limitada

ferramenta teria sido justamente o motivo de tantos erros em filosofia Erros os quais

seria funccedilatildeo do ensaio questionar tomando como instrumento criacutetico uma anaacutelise bioloacutegica

do desenvolvimento humano e suas estruturas perceptivas

Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela exposiccedilatildeo do

caraacuteter perspectivo de nossas pretensas verdades universais Nietzsche coloca-se frente agrave

pretensatildeo de verdade representada pelas filosofias racionalistas identificada pelo autor do

ensaio como a pretensatildeo de atingir a verdade absoluta atraveacutes de um instrumento

necessariamente relativo humano Assim por meio de uma consideraccedilatildeo perspectiva do

conhecimento a defesa do caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da realidade

repousaraacute sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o filoacutesofo

realiza por meio da constataccedilatildeo dos limites do intelecto em contrariedade a toda a tradiccedilatildeo

racionalista que preferiu se voltar contra os oacutergatildeos dos sentidos Sua anaacutelise de tudo que

autor reflete acerca dos problemas da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O uso da faacutebula emcontraposiccedilatildeo a uma descriccedilatildeo dos fatos assinala um certo caraacuteter provisoacuterio ou hipoteacutetico com que se podetratar do tema do conhecimento sem que seja necessaacuteria a defesa de uma concepccedilatildeo proacutepria que se entendecomo definitiva Ou seja o recurso nietzschiano agrave faacutebula assim como seu recurso agraves hipoacuteteses marcam aoposiccedilatildeo criacutetica do autor a toda forma de tratamento dogmaacutetico Do mesmo modo este modo peculiar deargumentar eacute utilizado pelo filoacutesofo como demonstraccedilatildeo de que eacute possiacutevel opor-se a uma posiccedilatildeo dogmaacuteticasem recorrer a uma outra posiccedilatildeo dogmaacutetica Este recurso pode ser compreendido desta forma comomanifestaccedilatildeo praacutetica do experimentalismo nietzschiano

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ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo

desdobramento do mundo em substacircncia inteligiacutevel agrave anaacutelise de sua origem e

desenvolvimento

O contato nietzschiano com autores das ciecircncias naturais contato que teria sido

mediado pela leitura de A Histoacuteria do Materialismo de Albert Lange proporciona uma

investigaccedilatildeo do intelecto com base na interpretaccedilatildeo deste como um oacutergatildeo voltado para a

sobrevivecircncia humana Para o autor do ensaio sua funccedilatildeo mais comum eacute a geraccedilatildeo de

linguagem que nessa leitura significa a modelagem de estruturas natildeo comunicaacuteveis dentro

de conceitos passiveis de serem convertidos em sons Nesta leitura o processo de

formaccedilatildeo da linguagem eacute examinado com base na suposiccedilatildeo de que esta teria evoluiacutedo sob

a pressatildeo da necessidade humana Assim a linguagem teria sido criada esse desenvolvido

natildeo com base na descriccedilatildeo da realidade mas na simplificaccedilatildeo de uma forma de realidade

Esta simplificaccedilatildeo teria se dado sobretudo na supressatildeo da mobilidade que nos eacute

apresentada pelos sentidos por meio de metaacuteforas que conferem um caraacuteter fixo e

comunicaacutevel a estas impressotildees fundamentais Mas a linguagem apenas se torna uma

funccedilatildeo orgacircnica importante na medida em que o homem passa a depender de outros

homens para sua sobrevivecircncia E se o intelecto tem como funccedilatildeo fundamental a criaccedilatildeo da

linguagem eacute natural compreender que este enquanto estrutura propriamente humana que

se originou e desenvolveu segundo nossas necessidades naturais ocupe um papel

secundaacuterio no conjunto de nossas atividades orgacircnicas

Seraacute apenas a partir deste gecircnero de anaacutelise da utilidade do intelecto e seus

produtos que passam a ser encarados no Ensaio Sobre Verdade e Mentira como

instrumentos adequados agraves necessidades humanas que Nietzsche poderaacute efetuar uma

criacutetica evolutiva do conhecimento humano Ou seja com esta anaacutelise que toma o intelecto

natildeo como oacutergatildeo para a verdade mas como estrutura voltada para uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia Nietzsche desenvolve uma criacutetica da razatildeo baseada em sua utilidade

bioloacutegica44

44 Haacute uma dificuldade interpretativa em Nietzsche quanto agrave categoria de razatildeo De modo adverso aos autoresque lhe antecedem e que satildeo uma clara influecircncia na sua teoria sobre a verdade e o conhecimento tais comoKant e Schopenhauer Nietzsche natildeo desenvolve uma elucidaccedilatildeo dos mecanismos da razatildeo e natildeo sepreocupa em fazer uma distinccedilatildeo entre o que sejam intuiccedilatildeo entendimento intelecto e razatildeo que para atradiccedilatildeo que ele perpetua tem um papel fundamental Tal se daacute entre outros motivos pela negaccedilatildeo dasfaculdades espirituais que eacute comum a todos os escritos sobre o conhecimento de Nietzsche Do mesmomodo para descrever a faculdade que daacute origem agrave linguagem ele adota um termo no Ensaio Sobre Verdade eMentira (Intellektintelecto) e outro no sect354 de A Gaia Ciecircncia (Bewusstseinsconsciecircncia) A mudanccedila do

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Nesta criacutetica em que o intelecto natildeo eacute mais visto como fonte da veracidade do

mundo mas como um oacutergatildeo que evoluiu segundo as exigecircncias de uma estrateacutegia de

sobrevivecircncia proacutepria de nossa espeacutecie o filoacutesofo considera que o conhecimento humano

como parte de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia Como tal o conhecimento humano natildeo

teria uma origem divina extramundana mas sim um surgimento na histoacuteria do mesmo

modo que um dia teraacute seu fim Como estrutura bioloacutegica o intelecto seria para o homem

algo correlato ao chifre ou agraves presas para outras espeacutecies45 uma formaccedilatildeo fisioloacutegica

adaptativa que se associa a uma estrateacutegia de sobrevivecircncia especiacutefica

Esta compreensatildeo eacute pensada como para subverter a compreensatildeo do intelecto como

algo divino Compreensatildeo que fundamentaria a compreensatildeo da verdade como um

produto do intelecto tambeacutem como algo divino Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo que entende que

o intelecto foi moldado para a verdade Nietzsche compreende que ldquoSeu efeito mais geral eacute

engano ndash mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caraacuteterrdquo

(WLVM sect1) Assim a compreensatildeo do intelecto como instrumento possibilita a

compreensatildeo da verdade como algo relacionado agrave sobrevivecircncia humana

O modo de operaccedilatildeo do intelecto que estaria relacionado ao condicionamento de

um nuacutemero ilimitado de objetos a uma quantidade limitada de conceitos torna possiacutevel ao

autor do ensaio sustentar uma relaccedilatildeo estrutural entre a verdade e o falseamento da

realidade Se a verdade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto entatildeo a ela estaria

relacionada natildeo uma descriccedilatildeo mais adequada da realidade mas o falseamento dessa

realidade mais proveitoso para a espeacutecie humana A constante suposiccedilatildeo nietzschiana de

nossa dependecircncia do erro que encontraremos em diversos textos do filoacutesofo em todas as

termo em uso sugere uma progressatildeo de sua reflexatildeo e um afastamento da filosofia de Schopenhauer O usodo termo ldquointelectordquo se adequaria melhor a descriccedilatildeo da atuaccedilatildeo da razatildeo em consonacircncia com a teoria doconhecimento em Schopenhauer na eacutepoca em que ele escreve o ensaio enquanto que o uso de consciecircnciasucinta a denuacutencia de um problema que se alastraria em meio a intelectualidade da Europa a eacutepoca de A GaiaCiecircncia o tornar-se consciente mais racional cada vez mais ldquolinguiacutesticordquo em conclusatildeo cada vez menosverdadeiro45 Aparentemente Nietzsche toma essa analogia entre os chifres e a razatildeo de Schopenhauer Assim em seuensaio sobre verdade e mentira nos diz ldquoComo um meio para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo o intelectodesenrola suas principais forccedilas na dissimulaccedilatildeo pois esta constitui o meio pelo qual os indiviacuteduos maisfracos menos vigorosos conservam-se como aqueles aos quais eacute denegado empreender uma luta pelaexistecircncia com chifres e presas afiadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 27) O que eacute certo eacute que esta noccedilatildeo do intelectocoincide com a hipoacutetese de Schopenhauer de que a razatildeo eacute um instrumento para a sobrevivecircncia humanasendo um testemunho indiscutiacutevel da influecircncia de Schopenhauer na teoria perspectivista de Nietzsche Noentanto cumpre observar que o fato de Nietzsche relacionar o uso da consciecircncia a um certoenfraquecimento da espeacutecie humana assim como a consideraccedilatildeo com fortes traccedilos evolucionistas queencontramos em sua reflexatildeo satildeo indiacutecios de uma apropriaccedilatildeo da teoria schopenhaueriana que natildeo se reduzsimplesmente as consideraccedilotildees do autor de O Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo

73

fases de sua produccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada desta compreensatildeo fundamental

Acompanhemos o autor em sua descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo da linguagem

Diante da pluralidade estrutural da realidade a linguagem eacute criada pelo intelecto

mediante a compreensatildeo de muitos objetos em uma mesma categoria sem que com isso

seja respeitada nenhuma lei estrutural A uacutenica lei que parece guiar esta compreensatildeo seria

a forma especiacutefica de vida humana Nesse sentido a funccedilatildeo primordial do intelecto estaria

relacionada ao estabelecimento de metaacuteforas para os objetos com os quais nos deparamos

em nosso meio Por este motivo o autor do ensaio considera o intelecto o autor das mais

sublimes ilusotildees desde que seria ele o responsaacutevel pela constituiccedilatildeo das metaacuteforas que se

tornam em conceitos

Afastada a hipoacutetese de que a funccedilatildeo do intelecto estivesse relacionada ao

desvelamento do real o autor do ensaio se volta para sua real funccedilatildeo a potencializaccedilatildeo da

sobrevivecircncia humana Para Nietzsche dois seriam os expedientes empregados pelo

intelecto para alcanccedilar uma maior permanecircncia do mais fraco dos animais na existecircncia a

criaccedilatildeo da linguagem e a autojustificaccedilatildeo do intelecto Esta autojustificaccedilatildeo se daria no

sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de seu papel e de seu alcance Atraveacutes desta

autojustificaccedilatildeo do intelecto A dignidade tributada ao intelecto pela tradiccedilatildeo seria a mais

poderosa ilusatildeo de que o proacuteprio intelecto eacute capaz Pois seria justamente esta ilusatildeo que lhe

conferiria uma nobreza tatildeo desmensurada quando comparada agrave sua real importacircncia A

importacircncia dessa supervalorizaccedilatildeo do intelecto estaacute relacionada no pensamento

nietzschiano com sua criacutetica ao racionalismo da tradiccedilatildeo Assim dada a importacircncia de se

submeter o intelecto a uma avaliaccedilatildeo criacutetica agrave luz de suas reais funccedilatildeo e origem Nietzsche

se volta com frequecircncia em seu ensaio contra esta supervalorizaccedilatildeo do intelecto Jaacute nos

primeiros paraacutegrafos esta arrogacircncia do intelecto eacute abordada por meio da faacutebula do

surgimento do intelecto Do mesmo modo em uma passagem bastante conhecida do

ensaio Nietzsche se voltaraacute com irocircnica admiraccedilatildeo e espanto contra as capacidades do

intelecto Assim o autor conclui

Eacute curioso pensar que isso seja levado a efeito pelo intelecto precisamenteele que foi outorgado apenas como instrumento auxiliar aos maisinfelizes fraacutegeis e evanescentes dos seres para conservaacute-los um minutona existecircncia da qual teriam todos os motivos para fugir tatildeo rapidamentequanto o filho de Lessing (WLVM sectI paacuteg 26)

74

A autojustificaccedilatildeo do intelecto seria assim a grande ilusatildeo que subjaz a todas as

outras ilusotildees criadas pelo proacuteprio intelecto Pois esta seria uma ilusatildeo fundamental que lhe

garante sua veracidade por meio da qual se disfarccedila sua real aplicaccedilatildeo Por fim a proacutepria

crenccedila que a tradiccedilatildeo depositou na capacidade do intelecto em revelar a verdade seria

ainda uma consequecircncia deste modo de proceder do intelecto em sua avaliaccedilatildeo de si

mesmo

Mas por que o homem se deixa enganar pela ilusatildeo do intelecto em sua

autojustificaccedilatildeo Isto se daacute no entender de Nietzsche porque o valor do homem teria se

associado no decorrer da formaccedilatildeo da sociedade ao proacuteprio valor do intelecto Desta

forma o homem compartilharia com o intelecto a ilusoacuteria importacircncia que lhe eacute atribuiacuteda

por meio de avaliaccedilatildeo deste sobre si Por outro lado a confianccedila no intelecto fornece meios

para o homem sustentar uma compreensatildeo limitada acerca do universo circundante e de

seus horrores indescritiacuteveis Tudo isso faz contribui para que o animal humano se sinta natildeo

apenas seguro mas orgulhoso de seu lugar na existecircncia

Aquela audaacutecia ligada ao conhecer e sentir que se acomoda sobre osolhos e sentidos dos homens qual uma neacutevoa ofuscante ilude-os quantoao valor da existecircncia na medida em que traz em si a mais envaidecedoradas apreciaccedilotildees valorativas sobre o proacuteprio conhecer Seu efeito maisuniversal eacute engano ndash todavia os efeitos mais particulares tambeacutem trazemconsigo algo do mesmo caraacuteter (WLVM sectI paacuteg 27)

Ao valor do conhecimento enquanto produto da avaliaccedilatildeo de si mesmo do

intelecto se vincula o valor mesmo que o intelecto se atribui Dessa forma o homem passa

a depender para sua sobrevivecircncia do engano na estimaccedilatildeo do valor do intelecto Em

outros termos se poderia dizer que a proacutepria criaccedilatildeo da perspectiva humana assim como a

atribuiccedilatildeo de valor que lhe conferimos seria obra do intelecto

Por meio desta atuaccedilatildeo do intelecto em que engano e valor surgem como criaccedilotildees

de igual importacircncia o homem consegue natildeo apenas fixar-se na existecircncia mas envolvido

nesse pathos valorando a existecircncia a partir dessa perspectiva atinge o cume de sua

vitalidade em um orgulho que natildeo encontra paralelos em sua real situaccedilatildeo como animal

75

ameaccedilado Assim a perspectiva do intelecto se autoafirma como o proacuteprio valor da

existecircncia humana

Em seus estaacutegios mais primitivos portanto toda a potecircncia criativa inerente ao

intelecto estaria ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia estaria a serviccedilo da vida No

entanto com o uso constante do intelecto este passa a afastar-se dos interesses para a vida

passa a constituir uma realidade apartada da realidade da vida fazendo repousar o valor de

sua perspectiva em valores de negaccedilatildeo da vida No entanto enquanto ainda estaacute vinculado

agrave vida a funccedilatildeo primordial do intelecto humano eacute o engano que ele aplica de maneira

muito especiacutefica no segundo expediente que este utiliza para conservar nossa existecircncia a

linguagem Antes de entrarmos na questatildeo da linguagem poreacutem seria interessante analisar

a relaccedilatildeo entre a verdade e o engano nos primeiros estaacutegios de anaacutelise da atuaccedilatildeo do

intelecto

Inicialmente Nietzsche considera um fato fundamental acerca do homem que este

natildeo admira a verdade acima de todas as coisas Como prova deste fato eacute apresentado o

argumento segundo o qual nada mais agrada o homem comum do que deixar-se enganar

em sonhos todas as noites O Haacutebito de sonhar natildeo tem via de regra nenhum tipo de

repreensatildeo moral nenhum homem procura vencer esse haacutebito por consideraacute-lo imoral

Eles se acham profundamente imersos em ilusotildees e imagens oniacutericas seuolho desliza apenas ao redor da superfiacutecie das coisas e vecirc ldquoformasrdquo suasensaccedilatildeo natildeo leva agrave verdade em nenhum lugar mas antes se satisfaz emreceber estiacutemulos e tocar por assim dizer um teclado sobre o dorso dascoisas Para tanto o homem consente agrave noite e atraveacutes de toda uma vidaser enganado em sonho sem que seu sentimento moral jamais tentasseevitar isso natildeo obstante deve haver homens que pela forccedila de vontadedeixaram de roncar (WLVM sectI paacuteg 27)

O exemplo do sonho sugere que o deixar-se enganar por si natildeo eacute motivo de

reprimenda moral sendo necessaacuterio acrescentar algum outro elemento ao engano para

tornaacute-lo repreensiacutevel Se pensamos na verdade como consequecircncia de um impulso moral

como entender que ldquoagrave noite e durante toda uma vidardquo o homem se permita deixar enganar

em sonhos sem que isto estimule um sentimento moral que talvez nos convencesse da

necessidade de deixar de sonhar Por outro lado para Nietzsche ocorreria no homem

76

quando em sonhos o mesmo que ocorre quando este estaacute desperto ambos nunca estariam

de fato diante de realidades Para ambos apenas se apresentariam ilusotildees embora as

ilusotildees do homem desperto se mostrem mais persistentes

Ou seja para o autor do ensaio mesmo quando desperto o tatear do homem pelo

mundo apenas carrega os traccedilos confusos de dados obtidos por meio de um aparato

sensiacutevel ruacutestico seu tatear confuso natildeo atinge o cerne do mundo atinge apenas como que

apenas as costas das coisas Tanto eacute assim que mesmo acerca de noacutes mesmos nosso objeto

mais proacuteximo noacutes pouco sabemos pois apenas coletamos dados obtusos de um mundo

interior fabulado e os agrupamos toscamente em teorias complicadas E eacute com base nesses

dados obtusos que o homem constroacutei suas verdades sem que no entanto nada nele rejeite

essa conduta Ou seja nenhum princiacutepio moral inato o faz recuar dessas ilusotildees

Em sua confrontaccedilatildeo da tradiccedilatildeo Nietzsche desvela a atuaccedilatildeo figuradora do

intelecto que em vez de nos guiar no caminho reto da verdade como se pressupunha que

este deveria fazer eacute ele mesmo a principal fonte de ilusotildees Para o autor do ensaio seria

por forccedila do intelecto que um estiacutemulo logo se torna uma imagem Posteriormente esta

imagem eacute traduzida em sons na medida em que temos necessidade de comunicar a outros

o que nos representamos Todo este processo que deriva da atuaccedilatildeo de um potencial

criativo humano vinculado ao intelecto revela-se na atividade da produccedilatildeo da linguagem

Nesse processo a simplificaccedilatildeo do mundo circundante em foacutermulas mais ou menos

passiacuteveis de comunicaccedilatildeo constitui os passos fundamentais para o estabelecimento da

linguagem e posteriormente da verdade

Ora se o intelecto atua no sentido de uma cada vez maior dependecircncia de ilusotildees

dado que como Nietzsche natildeo se cansa de repetir a criaccedilatildeo de ilusotildees seria sua funccedilatildeo

primordial entatildeo o que se estaacute atacando aqui no fundo seria a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo Posto que

este tipo de anaacutelise que eacute conduzida por Nietzsche durante todo o ensaio tambeacutem tem

seus efeitos negativos para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade que teria se tornado

dependente de uma compreensatildeo do intelecto como potencializador do conhecimento

verdadeiro

Por meio desta criacutetica o filoacutesofo ataca a concepccedilatildeo metafiacutesica e moral que e a

proacutepria concepccedilatildeo tradicional de verdade fundada na ideia de que a verdade teria como

77

suas origens nobres a racionalidade assim como um sentimento moral inato a esta

vinculado O autor do ensaio substitui esta noccedilatildeo da verdade como reflexo de uma

racionalidade e uma moralidade perfeita pela ideia da nossa necessidade de erro de

enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia

Esta necessidade fundamenta de erro e ilusatildeo cede lugar a uma valorizaccedilatildeo da verdade

apenas na medida em que esta proacutepria verdade tambeacutem eacute tida como uma forma de erro

uma forma de ilusatildeo

Com isso poderiacuteamos concluir que a verdade parece natildeo ser o produto mais direto

de todo este processo criativo do intelecto e que portanto todos os produtos do intelecto

deveriam ser tomados como mentiras No entanto sabe-se que haacute uma distinccedilatildeo

fundamental entre verdade e mentira que natildeo pode ser simplesmente reduzida a uma

forma de distinccedilatildeo entre modos diferentes de ilusatildeo posto que se observa entre os homens

uma preferecircncia pela verdade Assim em meio ao cenaacuterio apresentado ateacute aqui pelo autor

do ensaio se poderia perguntar onde surge o apreccedilo pela verdade entre os homens se estes

evoluem em uma cada vez maior dependecircncia de erros e ilusotildees Para Nietzsche

enquanto o homem faz uso do intelecto apenas de forma ocasional natildeo haacute a necessidade de

um questionamento pela verdade ou pela mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua

nos niacuteveis mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe

em imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido

de tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo Como surge entatildeo a verdade e a mentira O autor do ensaio condiciona o

surgimento destes ao surgimento da comunidade quando o homem por teacutedio e

necessidade procura o conviacutevio com outros homens

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

78

Apenas quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com

outros homens o intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um

mundo que se nos daacute a conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado

pela criaccedilatildeo de estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo

assim como a posterior comunicaccedilatildeo de um mundo que se deve compartilhar satildeo os preacute-

requisitos para a intercompreensatildeo e posterior hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana Ateacute

entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma necessidade moral

inata o coage a dizer a verdade necessidade que apenas surgiraacute a partir da convivecircncia

com outros seres humanos

Eacute preciso estar atento aos movimentos que Nietzsche potildee em jogo neste momento

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e a

razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo No entanto se jaacute eacute espantosa a forccedila do intelecto enquanto fonte

de enganos sobre a natureza real do mundo e seus riscos seraacute apenas na formaccedilatildeo das

condiccedilotildees da coexistecircncia coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se

verdadeiramente poderoso

A linguagem pensada no ensaio como estrateacutegia para que se estabeleccedila entre os

homens um acordo de paz seria a peccedila fundamental para a sobrevivecircncia de um animal

que natildeo teria como responder aos riscos da natureza sozinho O homem torna-se animal

gregaacuterio animal linguiacutestico e animal moral tudo a partir dos poderes de dissimulaccedilatildeo do

intelecto Apenas com base no respeito ao uso acordado dos signos da linguagem torna-se

possiacutevel a coexistecircncia Esta torna-se a claacuteusula fundante do acordo de paz estabelecido

pelos homens da qual decorrem as demais normas A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em

contraposiccedilatildeo aos valores que regem a existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro

modelo no uso adequado das designaccedilotildees acordadas pela sociedade

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva das

79

coisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade se estabelece quando o homem troca a linguagem das imagens mentais

proacuteprias de sua existecircncia individual por imagens compartilhaacuteveis representadas por

signos coletivamente determinados46 Por meio do acordo entre os homens sua decisatildeo

coletiva em aplicar as mesmas metaacuteforas nas mesmas circunstancias satildeo fixados o sentido

do que se toma como verdadeiro assim como a condenaccedilatildeo do que natildeo eacute A adesatildeo ao

acordo implica no abandono do uso individual dos signos linguiacutesticos pois o uso adequado

das designaccedilotildees acordadas eacute o que agora se toma como verdadeiro o descumprimento

dessa regra eacute o que agora se chama mentir A verdade assim torna-se decorrecircncia da

aceitaccedilatildeo e cumprimento dessa primeira claacuteusula

Dessa primeira relaccedilatildeo estrutural da primeira divisatildeo da sociedade em membros

dignos e indignos da sociedade ou seja aqueles que usam corretamente as designaccedilotildees

acordadas e aqueles que deturpam os sentidos das designaccedilotildees surge o primeiro juiacutezo

moral Segundo esse juiacutezo a verdade enquanto favoraacutevel agrave convivecircncia gregaacuteria eacute boa A

mentira por sua vez enquanto prejudicial agrave convivecircncia gregaacuteria passa a ser tomada como

maacute Nesse sentido o mentiroso aquele que ldquoserve-se das designaccedilotildees vaacutelidas as palavras

para fazer o imaginaacuterio surgir como efetivordquo (WLVM sectI paacuteg 30) natildeo eacute tanto

repreendido por ferir alguma sensibilidade moral mas por comprometer o acordo de paz

fundamental estabelecido

Atraveacutes dessa leitura Nietzsche ataca frontalmente a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua

confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo O filoacutesofo

46 Para Constacircncio a transposiccedilatildeo do terrenos dos signos para o terreno das palavras como um primeiroestaacutegio para a criaccedilatildeo dos conceitos representaria ainda um primeiro estaacutegio para o surgimento da razatildeoem sentido tradicional ldquoUm signo representa ou se coloca como outra coisa embora natildeo como uma coacutepia deoutra coisa ndash e menos que tudo como uma coacutepia adequada disto ndash mas antes de tudo como umarepresentaccedilatildeo simplificada conectada abreviada disto Esta representaccedilatildeo abreviada funciona como um tipode ferramenta fixa que nos permite rapidamente nos referirmos a ou designar aquilo para o qual o simbolorepresenta (zu be-zeichen) Assim ao falar em palavras em termos de lsquosignosrsquo Nietzsche escreve que lsquoahistoacuteria da linguagem eacute a a histoacuteria de um processo de abreviaccedilatildeorsquo (JGBABM IV sect268) Mais importantedo que isso Nietzsche acredita que os conceitos emergem dos signos e que aquilo que chamamos de lsquorazatildeorsquo(por exemplo aquilo que Schopenhauer chama de lsquorazatildeorsquo) eacute essencialmente nossa habilidade de desenvolverpensamentos abstratos com base em signos e conceitos Como escreve explicitamente Nietzsche em umanota poacutestuma de 1884-1885 lsquoprimeiramente signos (Zeichen) entatildeo conceitos (Begriffe) finalmente razatildeo(Vernunft) no sentido convencional (NL 1884-1885 KSA 11 30[10]rdquo (CONSTAcircNCIO 2012 Paacuteg 201)

80

ataca do mesmo modo a concepccedilatildeo que nos foi imposta pela tradiccedilatildeo de que a verdade

deriva de um sentimento moral inato Em seu lugar o autor do ensaio pressupotildee a nossa

necessidade de erro de enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa

estrateacutegia de sobrevivecircncia que apenas atraveacutes da pressatildeo de outras necessidades mais

prementes se curva diante de uma necessidade moral posteriormente constituiacuteda

Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e

a razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta

distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos

que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa

compreensatildeo do mundo Mas a partir da consideraccedilatildeo nietzschiana do conhecimento

pode-se identificar ainda por traacutes disso a atuaccedilatildeo do intelecto que molda o mundo como

percebemos dentro de padrotildees que podem nos ser conhecidos e uacuteteis Tudo isso dito fica

faacutecil ver que estas natildeo satildeo nem de perto as condiccedilotildees mais favoraacuteveis para o surgimento

da verdade tal como a tradiccedilatildeo entende este conceito Com isso poderiacuteamos concluir que a

verdade parece natildeo ser o produto mais direto de todo este processo criativo do intelecto e

que portanto todos os produtos do intelecto deveriam ser tomados como mentiras

Poreacutem o autor do ensaio nos diz que ateacute aqui ainda natildeo estamos diante de um

questionamento acerca da mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua nos niacuteveis

mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe em

imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido de

tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que

em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano

propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo

em falsificaccedilatildeo

Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)

81

Ateacute entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma

necessidade moral inata o coage a dizer a verdade eacute apenas a partir da convivecircncia com

outros seres humanos que surgiria a obrigaccedilatildeo de se dizer a verdade No entanto se dessa

perspectiva o intelecto eacute necessaacuterio agrave sobrevivecircncia enquanto fonte de enganos sobre a

natureza real do mundo e seus riscos eacute na formaccedilatildeo das condiccedilotildees da coexistecircncia

coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se verdadeiramente poderoso Pois

quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com outros homens o

intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um mundo que se nos daacute a

conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado pela criaccedilatildeo de

estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo e posterior

comunicaccedilatildeo de um mundo satildeo os preacute-requisitos para a intercompreensatildeo e posterior

hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana

Assim pela simplificaccedilatildeo do real e possibilitaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo a linguagem

desempenha entre os homens o papel de um acordo de paz no sentido em que faz com que

estes possam entrar em acordo Como claacuteusula desse acordo por meio da linguagem eacute

fixado o sentido do que se toma como verdadeiro atraveacutes do qual a coexistecircncia se torna

possiacutevel A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em contraposiccedilatildeo aos valores que regem a

existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro modelo no uso adequado das designaccedilotildees

acordadas pela sociedade A verdade torna-se decorrecircncia da aceitaccedilatildeo e cumprimento

dessa primeira claacuteusula

Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva dascoisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)

A verdade surge assim pela primeira vez quando satildeo criadas as leis da linguagem

Em contraposiccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo anterior o homem que vive coletivamente em rebanho

pode dizer a verdade Pois agora ele pode designar de acordo com uma norma

coletivamente instituiacuteda o que natildeo lhe era dado fazer quando em sua existecircncia individual

Do mesmo modo poreacutem agora ele tambeacutem pode mentir quando rompe o acordo acerca

82

dos usos permitidos dos termos fixados na tentativa de tornar real ou fazer parecer real o

que natildeo eacute Da reflexatildeo acerca das leis da linguagem acordada coletivamente surge a

compreensatildeo de que a mentira apenas conduz agrave consequecircncias negativas em uma

convivecircncia gregaacuteria e natildeo universalmente Em outro sentido quando se deixa enganar em

sonhos o homem natildeo mente propriamente Pois nesse estado preacute-linguiacutestico ele apenas

dissimula quando se deixa enganar nos sonhos O homem que se deixa enganar em sonhos

natildeo mente porque natildeo age em natildeo-conformidade com leis da linguagem embora seja

enganado pela atividade criativa proacutepria de sua constituiccedilatildeo mais iacutentima

O ensaio conduz a uma reavaliaccedilatildeo das origens da verdade que tornam nula sua

dignidade fundamental A verdade natildeo seria algo de primordial posto que antes da verdade

jaacute haviam as ilusotildees uacuteteis agrave sobrevivecircncia Nesse sentido as ilusotildees pertencem a uma

existecircncia humana mais primitiva preacute-gregaacuteria da qual natildeo nos desvinculamos Pelo

contraacuterio posto que nos tornamos cada vez mais gregaacuterios mais linguiacutesticos nos

tornamos tambeacutem cada vez mais dependentes de ilusotildees e de enganos A vida ateacute onde

falamos em vida humana das condiccedilotildees necessaacuterias para a sobrevivecircncia e fortalecimento

do gecircnero humano depende fundamentalmente de ilusatildeo Ou seja as ilusotildees tecircm um valor

fundamental em relaccedilatildeo agrave vida natildeo por serem mais verdadeiras do que as ilusotildees da

verdade mas por serem mais fundamentais

No prosseguimento do ensaio Nietzsche especula acerca do valor das primeiras

intuiccedilotildees que logo satildeo convertidas pelo intelecto em metaacuteforas Para o autor estas

primeiras intuiccedilotildees teria um valor superior ao valor das metaacuteforas por conta de serem

condiccedilotildees de fortalecimento do tipo mais individual de vida Estas metaacuteforas

fundamentais no entanto satildeo substituiacutedas pelos conceitos por meio do uso da linguagem

O que conduz agrave criaccedilatildeo da ciecircncia como empreendimento comprometido com as falsas

criaccedilotildees do intelecto

22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade

Ao considerar o valor da verdade como sendo uma decorrecircncia de seu valor para a

sobrevivecircncia o Ensaio sobre Verdade e Mentira pode ser visto em grande parte como o

83

palco para o confronto entre uma explicaccedilatildeo essencialista e uma apresentaccedilatildeo cientiacutefica da

verdade Assim na apresentaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca do surgimento da linguagem

Nietzsche apoia-se fortemente em explicaccedilotildees oriundas das ciecircncias bioloacutegicas as quais

geralmente apresenta como contraposiccedilotildees agrave crenccedila tradicional que filia as palavras agraves

entidades ideais exteriores agrave existecircncia fisioloacutegica humana

Assim em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche caracteriza o desejo

sincero pela verdade como sendo o produto de um processo de internalizaccedilatildeo dos usos da

linguagem Nessa leitura a verdade ela mesma tal como a tradiccedilatildeo a representa natildeo seria

desejaacutevel ao homem mais do que pelo seu valor como conservador da sociabilidade

motivo pelo qual o autor do ensaio contrasta a ideia de uma verdade verdadeiramente

desinteressada com a utilidade bioloacutegica da verdade Aqui o conhecimento puro eacute tomado

como algo estranho agrave investigaccedilatildeo da verdade

Num sentido semelhantemente limitado o homem tambeacutem quer apenas averdade Ele quer as consequecircncias agradaacuteveis da verdade queconservam a vida frente ao puro conhecimento sem consequecircncias ele eacuteindiferente frente agraves verdades possivelmente prejudiciais e destruidorasele se indispotildee com hostilidade inclusive (WLVM sectI paacuteg 30)

Natildeo eacute a verdade logo aquilo que nos atraiacute mas seu poder de conservar a paz entre

os homens Mas quais seriam as leis da verdade correlativas as leis da linguagem Sabe-

se que estas leis satildeo produto de uma existecircncia coletiva satildeo as bases do acordo que faz

cessar a guerra de todos contra todos tornando possiacutevel a coexistecircncia paciacutefica Nesse

sentido as leis da verdade difeririam fundamentalmente daquilo que a tradiccedilatildeo pensa delas

Na medida em que esta parece pensar as leis da verdade em conformidade com a loacutegica

como instacircncia exterior ao terreno das necessidades humanas segundo a qual toda forma

de engano eacute afastada

Na acepccedilatildeo tradicional os filoacutesofos entendem o engano como a condiccedilatildeo

perniciosa que deteriora a verdade Nada mais longe do entender do autor do ensaio que

entende que as leis da verdade natildeo protegem a verdade mas sim o viacutenculo social que

propicia a coexistecircncia paciacutefica Por isso ele nos diz ldquoNisso os homens natildeo evitam tanto

ser ludibriados quanto lesados pelo engano Mesmo nesse niacutevel o que eles odeiam

84

fundamentalmente natildeo eacute o engano mas as consequecircncias ruins hostis de certos gecircneros

de enganosrdquo (WLVM sect1 paacuteg 29-30) A concepccedilatildeo nietzschiana da utilidade da verdade

se opotildee aqui a uma tradiccedilatildeo que entende que o homem seria guiado por um impulso

honesto para a verdade

Para o autor esta imagem do impulso honesto para a verdade se fixou na cultura

apoacutes seacuteculos de uso das leis da linguagem que tornaram sem forma os preceitos mais

ruacutesticos dessas leis como que tornando fugidio o sentido por traacutes da rejeiccedilatildeo quase que

instintiva que o homem moderno sente pela mentira No entanto em sua investigaccedilatildeo

extramoral da verdade Nietzsche conclui que mesmo em um niacutevel subconsciente natildeo seria

tanto a verdade que almejamos mas as vantagens para a convivecircncia paciacutefica que se

originam do uso da verdade convencionada No mesmo sentido nossa repulsa pela

mentira natildeo eacute mais do que o produto de um longo processo de internalizaccedilatildeo do terror

pelas consequecircncias da mentira

Motivo pelo qual o autor do ensaio nos diz que somos completamente indiferentes

ldquofrente ao puro conhecimento sem consequecircnciasrdquo Pois um tal tipo de conhecimento natildeo

implica em vantagem ou desvantagem para nossa sobrevivecircncia jaacute que natildeo implica em

conflito aberto com as normas da coletividade Diante de uma verdade prejudicial entatildeo o

homem se encolhe como faria diante de um engano Por meio dessas observaccedilotildees o autor

pretende demonstrar que eacute a utilidade para a sociabilidade e como esta eacute condiccedilatildeo

necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo agrave sobrevivecircncia que condiciona o pathos do conhecimento e

natildeo sua verdade No mais a linguagem enquanto produto dessa relaccedilatildeo entre o

entendimento humano e nossa necessidade de sobrevivecircncia seria apenas mais um tipo de

ilusatildeo

Como produto do intelecto a linguagem se constitui como um mecanismo de

simplificaccedilatildeo do real Nesse sentido as relaccedilotildees da linguagem natildeo podem refletir de

maneira exata o mundo que simplifica As relaccedilotildees da linguagem que a princiacutepio tem por

objetivo apenas a sociabilidade natildeo traduzem o real de forma exata O que o autor do

Ensaio expressa na forma do questionamento ldquoas designaccedilotildees e as coisas se recobremrdquo

(WLVM sect1 paacuteg 29-30) que recebe imediatamente uma resposta negativa e uma seacuterie de

contraexemplos

85

Nessa leitura criacutetica da formaccedilatildeo da linguagem o autor conclui que em primeiro

lugar seria um forte contraexemplo agrave ideia de que a linguagem espelha o real o fato de

que quando analisada pormenorizadamente toda linguagem apresenta diversas

arbitrariedades em sua constituiccedilatildeo Outro argumento marcante seria o fato objetivo da

existecircncia de diversas liacutenguas Assim o autor procura demonstrar que natildeo atingimos a

verdade por meio da linguagem ateacute porque este natildeo eacute seu objetivo sua razatildeo de existir

Nesse sentido as coisas e nossas designaccedilotildees natildeo satildeo intercambiaacuteveis mais do que por

termos assim convencionado e mais tarde esquecido que assim o convencionamos

passando a acreditar que assim o seja de fato

Apenas por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a imaginarque deteacutem uma verdade no grau ora mencionado Se ele natildeo esperacontentar-se com a verdade sob a forma da tautologia isto eacute comconchas vazias entatildeo iraacute permutar eternamente ilusotildees por verdades Oque eacute uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como umacausa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificadado princiacutepio de razatildeo Como poderiacuteamos caso tatildeo somente a verdadefosse decisiva na gecircnese da linguagem caso apenas o ponto de vista dacerteza fosse algo decisoacuterio nas designaccedilotildees como poderiacuteamos noacutes natildeoobstante dizer a pedra eacute dura como se esse ldquodurardquo ainda nos fosseconhecido de alguma outra maneira e natildeo soacute como um estiacutemulototalmente subjetivo (WLVM sectI paacuteg 29-30)

Na medida em que a dureza de uma pedra nos aparece apenas como efeito de uma

causa desconhecida sendo que aqui mesmo a aplicaccedilatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito jaacute eacute

uma abstraccedilatildeo e que essa dureza apenas diz respeito a noacutes jamais seria possiacutevel sustentar a

verdade da simples afirmaccedilatildeo ldquoa pedra eacute durardquo com base nos princiacutepios inerentes agrave verdade

de acordo com a tradiccedilatildeo Isto se deveria ao fato de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade

parte de uma consideraccedilatildeo do ldquoponto de vista da certezardquo como algo ldquodecisoacuterio nas

designaccedilotildeesrdquo (WLVM sectI paacuteg 29-30) Por outro lado quando proferimos este tipo de

afirmaccedilatildeo apenas nos utilizamos das designaccedilotildees acordadas no sentido de facilitar a

comunicaccedilatildeo de sensaccedilotildees totalmente subjetivas

Nietzsche pensa que sensaccedilotildees como a dureza de uma pedra variam

necessariamente de indiviacuteduo para indiviacuteduo E nem o fato de podermos alcanccedilar uma

designaccedilatildeo coletiva para transmitir essa sensaccedilatildeo individual muda o fato fundamental da

individualidade da sensaccedilatildeo Portanto as designaccedilotildees que se atinge por meio do

86

procedimento do intelecto ou seja por meio da simplificaccedilatildeo da realidade pouco tem que

ver com certezas Como se poderia falar de certezas quando se sabe que diante da

absoluta individualidade das sensaccedilotildees natildeo pode haver objetividade possiacutevel47 O que o

intelecto realiza nesse sentido ele apenas o pode realizar por meio de transgressotildees

arbitraacuterias tendo em vista propiciar a comunicaccedilatildeo segundo um processo de simplificaccedilatildeo

arbitraacuterio

Estas transgressotildees arbitraacuterias que satildeo amplamente empregadas na criaccedilatildeo da

linguagem atingem seu ponto maacuteximo de abstraccedilatildeo quando a proacutepria ciecircncia passa a

apoiar-se no uso convencionado dessas transgressotildees como validaccedilatildeo para aleacutem de sua

adequaccedilatildeo com quaisquer coisas que sejam seu objeto Por outro lado quando Nietzsche

considera que ldquoA reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como uma causa fora de noacutes jaacute eacute o

resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacuteg

29-30) somos levados a refletir acerca do que foi dito no capiacutetulo anterior acerca do

princiacutepio de razatildeo Ou seja tal como em suas notas para Zur Teleologie Nietzsche aqui

reflete criticamente acerca da impropriedade em se inferir a existecircncia de algo para aleacutem de

nossa esfera de conhecimento

Esta preocupaccedilatildeo eacute ainda o reflexo de uma importante questatildeo da filosofia criacutetica o

problema em torno dos limites de nosso conhecimento Este mesmo problema jaacute havia sido

discutido por Nietzsche em Zur Schopenhauer como o problema das fronteiras da

individuaccedilatildeo segundo a terminologia schopenhaueriana A conclusatildeo apresentada no

ensaio eacute coerente com o tratamento apresentado anteriormente pelo autor

Para o autor do ensaio o estiacutemulo nervoso eacute a uacutenica coisa que pode ser deduzida

com base na fisiologia de nossa constituiccedilatildeo nervosa como causa da sensaccedilatildeo Isto porque

natildeo se poderia conhecer qualquer coisa fora da esfera de nossas sensaccedilotildees que estariam

como que na regiatildeo do em si kantiano Nesse sentido o filoacutesofo parece fazer coincidir os

limites de nossa sensibilidade e os limites de nosso conhecimento em estreita similaridade

com a posiccedilatildeo kantiana que como se sabe determinava os limites do conhecimento aos

limites da experiecircncia possiacutevel Assim a determinaccedilatildeo dos limites do conhecimento em

uma leitura semifilosoacutefica e semicientiacutefica assim como este objetivo se apresentava para o

47 No capiacutetulo deste trabalho acerca do perspectivismo nietzschiano deveremos voltar a este ponto com baseno conhecido aforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral

87

autor do das notas para Zur Teleologie parece permanecer um objetivo para o autor do

ensaio sobre verdade e mentira

A suposiccedilatildeo da existecircncia de uma entidade da qual natildeo temos direito de supor nada

Em outras palavras a suposiccedilatildeo de algo aleacutem dos estiacutemulos nervosos de algum objeto que

propicia este estiacutemulo jaacute estaria fora das consideraccedilotildees do autor do ensaio Para aleacutem

destes limites pensa o autor do ensaio qualquer afirmaccedilatildeo eacute uma temeraacuteria aplicaccedilatildeo

injustificada do princiacutepio de razatildeo suficiente De modo geral isto conduz a conclusatildeo

epistemoloacutegica de que natildeo se poderia fundamentar a veracidade de nossa afirmaccedilatildeo em

algo que se potildee para aleacutem dos estiacutemulos nervosos uacuteltima coisa que ainda se pode

considerar como causa das sensaccedilotildees

Qualquer tentativa de transpor estes limites recebe aqui o mesmo veto que o autor

das notas preparatoacuterias para Zur Teleologie atribuiacutea agrave tentativa de se estabelecer a

existecircncia de uma finalidade natural48 Com isso Nietzsche estabelece uma duacutevida essencial

acerca da origem dos estiacutemulos nervosos Duacutevida que natildeo poderia ser sanada por nenhum

tipo de procedimento cientiacutefico ou filosoacutefico posto que seu esclarecimento necessitaria de

dados externos agrave esfera de nossa sensibilidade Destas conclusotildees se origina um forte

argumento para a fundamentaccedilatildeo da opiniatildeo do autor de que na criaccedilatildeo das designaccedilotildees

nunca estariacuteamos tratando com certezas

A hipoacutetese de uma realidade objetiva por traacutes da criaccedilatildeo da linguagem recebe ainda

uma criacutetica mais forte que diz respeito aos diferentes idiomas ldquoDispostas lado a lado as

diferentes liacutenguas mostram que nas palavras o que conta nunca eacute a verdade jamais uma

expressatildeo adequada pois do contraacuterio natildeo haveriam tantas liacutenguasrdquo (WLVM sectI paacuteg

31) Ou seja para o autor do ensaio se a linguagem fosse de fato criada com base em uma

realidade objetiva entatildeo os diferentes idiomas postos lado a lado deveriam demonstrar

mais coincidecircncias do que no geral demonstram Em uacuteltima instacircncia natildeo eacute uma

realidade objetiva o que condiciona a criaccedilatildeo da linguagem mas o uso da linguagem

enquanto meio de comunicaccedilatildeo Sendo assim a criaccedilatildeo das linguagens natildeo diz respeito a

um compromisso com o verdadeiro eacute seu soacute que determina as condiccedilotildees de verdade

48 Conforme a discussatildeo sobre as notas preparatoacuterias na seccedilatildeo 213 desse trabalho

88

A hipoacutetese contraacuteria de que a linguagem seria proveniente de um compromisso

fundamental com a verdade eacute rejeitada com base na compreensatildeo de que se tal hipoacutetese

fosse verdadeira todos os idiomas teriam que se comportar como derivaccedilotildees de uma liacutengua

primordial da qual os diferentes ramos se afastam Algo que o autor do ensaio estaacute longe

de considerar verdadeiro Assim atraveacutes do recurso agrave figura do criador da linguagem

Nietzsche estabelece uma hipoteacutetica origem para a linguagem condizente com sua

suposiccedilatildeo de que esta estaria diretamente ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia Por outro

lado o fato de que Nietzsche nessa consideraccedilatildeo fabulosa da origem da linguagem

sustentar a hipoacutetese de uma falsificaccedilatildeo da natureza na criaccedilatildeo das palavras estaria

diretamente relacionado agrave sua suposiccedilatildeo de que a verdade mesma tal como se pretende

que esta exista fora das relaccedilotildees da linguagem jamais estaria ao alcance deste criador e

nem mesmo lhe seria objeto especial de preocupaccedilatildeo

Esta parte da investigaccedilatildeo nietzschiana eacute singularmente importante Isto porque a

referecircncia nietzschiana agraves coisas em si tal como esta referecircncia frequentemente aparece no

ensaio faz deste texto nietzschiano objeto de constantes insinuaccedilotildees do compromisso do

autor com uma realidade em si Os comentadores que tomam o uso das coisas em si nos

textos nietzschianos de juventude como testemunho de seu compromisso com estas

categorias entendem que a rejeiccedilatildeo nietzschiana da pretensatildeo de verdade da linguagem

repousa sobre a negaccedilatildeo de que esta consiga referir-se a uma realidade objetiva Ou seja

Nietzsche utilizaria as coisas em si para negar que a linguagem possa dizer algo sobre tais

entidades

Do mesmo modo para estes comentadores apenas com base em um recurso a uma

realidade objetiva o autor poderia sustentar sua constante criacutetica dos produtos do intelecto

como falsificaccedilotildees Nesta leitura se os produtos do intelecto satildeo falsificaccedilotildees eacute necessaacuterio

que eles falsifiquem algo Como aqui se trata de uma reflexatildeo acerca da verdade entatildeo

essa falsificaccedilatildeo representaria um fracasso na correspondecircncia entre os produtos do

intelecto e aquilo que o intelecto tenta reproduzir Eacute nesse espiacuterito que Clark afirma em sua

obra sobre Nietzsche e a verdade

A aceitaccedilatildeo de Nietzsche da teoria metafiacutesica da correspondecircncia parecebastante oacutebvia tanto quando ele nega que a linguagem pudesse expressar

89

a verdade porque natildeo se preocupa com a ldquocoisa-em-sirdquo quanto quandoele critica a ldquoverdade antropomoacuterficardquo por natildeo conter ldquonem um uacutenicoponto que seria lsquoverdadeiro em sirsquo ou realmente e universalmente vaacutelidaslsquopara aleacutem de todos os seres humanosrsquordquo em ambos os casos eleclaramente assume que a realidade eacute independente dos seres humanos eque aquilo que falha em corresponde a esta realidade natildeo pode serverdadeiro A questatildeo permanece como se o uso da expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentidokantiano e assim como se ele interpreta-se a verdade como independentede seres humanos no sentido necessaacuterio para tornaacute-lo um realistametafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85)

Ao analisar a filosofia de juventude nietzschiana notadamente seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira Clark submete o pensamento sobre a verdade do autor a uma

interpretaccedilatildeo eminentemente metafiacutesica assegurada pela sua aceitaccedilatildeo do princiacutepio de

correspondecircncia Segundo essa leitura a concepccedilatildeo nietzschiana de que as palavras

representam uma falsificaccedilatildeo da realidade seria dependente da defesa de uma realidade em

si segundo a qual poderia ser negado que as designaccedilotildees e as coisas coincidam Caso em

que a constante referecircncia do filoacutesofo agraves coisas em si como na seguinte passagem ldquoA

lsquocoisa em sirsquo (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequecircncias) tambeacutem

eacute para o criador da linguagem algo totalmente inapreensiacutevel e pelo qual nem de longe

vale a pena esforccedilar-serdquo (WLVM sect1 paacuteg 31) estaria justificada49

No entanto para aleacutem do fato de tratar-se aqui de uma faacutebula da origem da

linguagem o que de si jaacute colocaria em risco a suposiccedilatildeo de uma consideraccedilatildeo seacuteria da

parte de Nietzsche da concepccedilatildeo de coisas em si temos ainda que na medida em que

49 Andreacute Luiacutes Mota Itaparica em seu artigo As objeccedilotildees de Nietzsche ao Conceito de Coisa em Si(kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 307-320) toma como certa a admissatildeo nietzschiana dacategoria de coisa em si em sua filosofia de juventude ldquoA esse respeito natildeo haacute duacutevida de que entre ostemas kantianos discutidos por Nietzsche a questatildeo sobre o estatuto da coisa em si eacute particularmenterelevante para a elaboraccedilatildeo de sua proacutepria filosofia jaacute que ela tem como um dos seus objetivos em suaforma madura a criacutetica agrave noccedilatildeo de uma realidade independente de qualquer perspectiva Por esse motivo acompreensatildeo de Nietzsche desse problema tambeacutem se tornou um dos assuntos mais debatidos e controversosentre seus inteacuterpretes De forma geral e com naturais diferenccedilas de ecircnfase os comentadores tendem aidentificar na filosofia de Nietzsche uma trajetoacuteria que o levaria da admissatildeo de um conceito de coisa em siem sua juventude ateacute uma negaccedilatildeo da coisa em si considerada como uma concepccedilatildeo contraditoacuteria em suafilosofia madura A discordacircncia entre os comentadores surge quando se pergunta se o conceito de coisa emsi que Nietzsche critica eacute exatamente aquilo que Kant entendia por coisa em sirdquo (ITAPARICA 2013 Paacutegs308-309) Claramente Itaparica segue aqui a indicaccedilatildeo de Clark de que A questatildeo permanece como se o usoda expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentido kantiano eassim como se ele interpretasse a verdade como independente de seres humanos no sentido necessaacuterio paratornaacute-lo um realista metafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85) conforme citaccedilatildeoda paacutegina anterior

90

verificamos uma certa continuidade entre este escrito com relaccedilatildeo a textos do mesmo

periacuteodo de produccedilatildeo tais como as jaacute referidas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie e

Zur Schopenhauer nos parece proveitoso nos afastarmos dessa leitura50 Isto porque

consideramos que com base na leitura que o autor do ensaio efetua da filosofia kantiana

nessa eacutepoca uma tal concepccedilatildeo como a da realidade das coisas em si seria insustentaacutevel51

A compreensatildeo do sentido do uso nietzschiano da concepccedilatildeo de coisas em si no

ensaio passa pela anaacutelise dos jaacute referidos textos Nesta leitura a referecircncia criacutetica a esta

concepccedilatildeo sempre se daacute de modo criacutetico e muitas vezes irocircnico Com base em uma

reavaliaccedilatildeo criacutetica das coisas em si presente sobretudo nas primeiras impressotildees criacuteticas

acerca da obra kantiana52 o autor do ensaio na passagem acima mencionada procuraria

indicar que o reino da verdade por princiacutepio estaria fora do alcance e da esfera de

interesses do criador da linguagem Motivo pelo qual em sua exposiccedilatildeo das origens da

linguagem a partir do intelecto esta natildeo teria nada que ver com a verdade tal como a

tradiccedilatildeo a concebe posto que natildeo eacute criada tendo por base o mundo das ldquocoisas em sirdquo53

Aleacutem desses motivos o uso de aspas para indicar esta concepccedilatildeo kantiana pode ser tomado

como uma indicaccedilatildeo da ironia com quecirc o autor toma o conceito de coisas em si na

passagem em questatildeo do mesmo modo como faz inuacutemeras vezes em que o autor se refere

a esta concepccedilatildeo em sua obra madura

50 Na carta de 1866 citada anteriormente em que Nietzsche apresenta a seu amigo Baratildeo von Gersdorff osresultados de suas leituras de A Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange o filoacutesofo jaacute demonstrauma certa compreensatildeo criacutetica da concepccedilatildeo kantiana de coisas em si Na correspondecircncia em questatildeoNietzsche afirma ldquo(hellip) Entatildeo a verdadeira natureza das coisas as coisas em si natildeo apenas nos satildeodesconhecidas mas ateacute mesmo o conceito delas seria nada mais nada menos do que a uacuteltima encarnaccedilatildeo deuma contradiccedilatildeo condicionada por nossa organizaccedilatildeo da qual natildeo sabemos se tem qualquer sentido paranossa experiecircnciardquo (BVN-1866 517 ndash carta a Carl von Gesdorf de fins de agosto de 1886) Por outro ladoem um fragmento dos rascunhos para A Filosofia na eacutepoca Traacutegica dos Gregos Nietzsche escreve de umaforma que evidencia um uso metodoloacutegico das coisas em si ldquo(hellip) Certamente esta unidade uacuteltima dolsquoindeterminadorsquo o choque original de todas as coisas apenas pode ser descrito negativamente pelo homemcomo algo ao qual nenhum predicado pode ser dado fora do existente mundo do tornar-se e para a qualportanto as lsquocoisas em sirsquo kantianas podem ser igualmente aplicadasrdquo (PHG-4 sect4) Acredito que o uso queo autor faz das coisas em si no ensaio em estudo seria tambeacutem uma espeacutecie de uso metodoloacutegico destaconcepccedilatildeo kantiana A traduccedilatildeo dos fragmentos eacute de nossa responsabilidade51 O que parece concordar com as diversas criacuteticas que essa concepccedilatildeo recebe na filosofia nietzschiana dematuridade que inclusive satildeo antecipadas em muitos fragmentos dos primeiros anos de sua reflexatildeo comoas jaacute mencionadas cartas que antecipam a possibilidade de produccedilatildeo de uma tese acerca dos limites doorgacircnico a partir de Kant 52 Com as quais Nietzsche entra em contato atraveacutes de sua leitura de filoacutesofos criacuteticos de Kant notadamenteAlbert Lange e Schopenhauer53 Uma ideia recorrente do ensaio que eacute melhor compreendida a partir da comparaccedilatildeo nietzschiana entre ouso da palavra ldquofolhardquo com a ideia de uma folha fundamental com base na qual todas as folhas seriamconfeccionadas mas como que ldquopor matildeos inaacutebeisrdquo

91

Mais ainda a referecircncia de que tais entidades como coisas em si corresponderiam

ao mundo das verdades sem consequecircncias as mesmas verdades que o autor anteriormente

afirmava serem indiferentes ao homem torna ainda mais visiacutevel o trato irocircnico para com

estas entidades As quais natildeo corresponderiam a um objeto especial da filosofia tal como a

tradiccedilatildeo parece tecirc-las entendido Estas entidades que natildeo possuem relaccedilotildees com outras

entidades nos seriam totalmente indiferentes aleacutem de incompreensiacuteveis Logo o criador

da linguagem se sua motivaccedilatildeo fosse propiciar a sobrevivecircncia natildeo poderia apoiar-se em

um tal terreno das verdades incompreensiacuteveis e inuacuteteis para a comunicaccedilatildeo entre os

homens

Pelo contraacuterio segundo o autor do ensaio ldquoEle designa apenas as relaccedilotildees das

coisas com os homens e para expressaacute-las serve-se da ajuda das mais ousadas metaacuteforasrdquo

(WLVM sectI paacuteg 29-32) Nada aqui traz qualquer relaccedilatildeo com a verdade eterna e

imutaacutevel pois natildeo se trata de uma tentativa de alcanccedilar um reino especial da verdade mas

apenas de tornar comunicaacutevel as relaccedilotildees das coisas enfim o que nos pode ser uacutetil nas

coisas Se o objeto da criaccedilatildeo da linguagem nada tem que ver com a verdade o que dizer

do instrumento as metaacuteforas com as quais satildeo construiacutedas as designaccedilotildees das coisas

Diga-se de passagem natildeo quaisquer metaacuteforas mas ldquoas mais ousadasrdquo como o autor faz

questatildeo de ressaltar

Estas metaacuteforas seriam as mais ousadas porque no entender do autor do ensaio

seriam as mais distantes daquilo que se conveacutem chamar verdade Segundo Nietzsche a

loacutegica da criaccedilatildeo da linguagem sugere a passagem de estiacutemulos nervosos para imagens

mentais que logo seriam traduzidas em sons A transposiccedilatildeo das imagens mentais em sons

por meio do intelecto obedece a necessidade de comunicar uma impressatildeo individual e

natildeo a qualquer tipo de correspondecircncia De fato em todo esse processo a coisa mesma natildeo

entra em questatildeo O autor afirma que natildeo se pode tomar sua existecircncia como causa das

sensaccedilotildees Do mesmo modo posto que a criaccedilatildeo das palavras eacute determinada por uma

necessidade de comunicar e que nesta criaccedilatildeo o intelecto opera com base nas mais

ousadas transposiccedilotildees natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo causal entre a coisa e a palavra que a

nomeia Menos ainda uma relaccedilatildeo de correspondecircncia Assim nos diz Nietzsche ldquoO que eacute

uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em sons Mas deduzir do estiacutemulo

nervoso uma causa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do

92

princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacutegs 30-31) Portanto a deduccedilatildeo da existecircncia de algo

como coisas em si para aleacutem do estiacutemulo nervoso que daacute margem agrave criaccedilatildeo das palavras

seria ir aleacutem do que permite o princiacutepio de razatildeo do mesmo modo que seria um erro

considerar-se coisas em si como causas dos fenocircmenos Em ambos os casos estariacuteamos

diante de um uso indevido do princiacutepio de razatildeo ao supormos uma causa onde nada nos

possibilita uma tal suposiccedilatildeo

Portanto na criaccedilatildeo das palavras em cada conversatildeo em cada metaacutefora ocorre a

transposiccedilatildeo para um terreno novo totalmente adverso do ponto de partida como nos diz

Nietzsche ldquoDe antematildeo um estiacutemulo nervoso transposto em uma imagem Primeira

metaacutefora A imagem por seu turno remodelada num som Segunda metaacutefora E a cada

vez um completo sobressalto de esferas em direccedilatildeo a uma outra totalmente diferente e

novardquo (WLVM sectI paacuteg 32) Com isso a proacutepria pretensatildeo de dizer a verdade conforme

uma concepccedilatildeo de verdade que toma como princiacutepio a relaccedilatildeo entre as coisas e as palavras

passa a ser analisada como um desatino porque desconsideraria todo o processo indicado

pelo autor

Notaacutevel que em sua explicaccedilatildeo da origem da linguagem o autor fundamente-se

amplamente em teorias das ciecircncias naturais como fica claro em sua reduccedilatildeo do mundo a

meros estiacutemulos nervosos Do mesmo modo seu uso dos experimentos de Chladni54 acerca

54 Nietzsche demonstra em seus escritos poacutestumos ter se interessado enormemente pelas experiecircncias deChladini Assim em uma nota poacutestuma de 1872 o filoacutesofo afirma ldquoSondern die feinsten Ausstrahlungen vonNerventhaumltigkeit auf einer Flaumlche gesehn sie verhalten sich wie die Chladnirsquoschen Klangfiguren zu demKlang selbst so diese Bilder zu der darunter sich bewegenden Nerventhaumltigkeit Das allerzarteste sichSchwingen und Zittern Der kuumlnstlerische Prozeszlig ist physiologisch absolut bestimmt und nothwendigrdquo(NFFP 1872 19[79]) Assim Nietzsche pensa as reproduccedilotildees visuais da atividade nervosa como umaespeacutecie de reflexo da atividade artiacutestica por traacutes da atividade humana Esta atividade artiacutestica demonstrariatal como as figuras sonoras de Chladini uma perfeita harmonia Esta ideia volta a ser reproduzida em umanota mais curta no fragmento poacutestumo (NFFP 1872 19[140]) Em um outro fragmento daquele periacuteodo ofiloacutesofo reflete sobre a relaccedilatildeo entre as leis da multiplicidade e sua expressatildeo em foacutermulas numeacutericas comouma metaacutefora Neste sentido a reproduccedilatildeo das leis da natureza em expressotildees numeacutericas guardaria a mesmarelaccedilatildeo de similaridade que as figuras de Chladini com o som que as gerou ldquoBesonders die Zahl dieAufloumlsung aller Gesetze in Vielheiten ihr Ausdruck in Zahlenformeln ist eine μεταφορά wie jemand dernicht houmlren kann die Musik und den Ton nach den Chladnischen Klangfiguren beurtheiltrdquo (NFFP 187219[237]) Seraacute exatamente esta ideia que retornaraacute no Ensaio sobre Verdade e Mentira A ideia de que asfiguras de Chladini guardariam a mesma similaridade com os sons que lhe geram que os sons guardariamcom os estiacutemulos nervosos que lhe originam ldquoMan kann sich einen Menschen denken der ganz taub ist undnie eine Empfindung des Tones und der Musik gehabt hat wie dieser etwa die Chladnischen Klangfiguren imSande anstaunt ihre Ursachen im Erzittern der Saite findet und nun darauf schwoumlren wird jetzt muumlsse erwissen was die Menschen den Ton nennen so geht es uns allen mit der Sprache (WLVM sect01) Para umaexcelente explicaccedilatildeo dos experimentos de Chladni e sua relaccedilatildeo com a teoria da linguagem de Nietzscherecomendo a muito clara explicaccedilatildeo do Professor Fernando Barros na nota trecircs na traduccedilatildeo em uso doEnsaio Sobre Verdade e Mentira (WLVM sectI paacutegs 32-33)

93

da acuacutestica indica que ainda entreteacutem estreitos laccedilos com as ciecircncias naturais Assim

como jaacute mencionado temos que considerar que na confecccedilatildeo do ensaio suas leituras

acerca das ciecircncias tal como nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie possibilitam a

Nietzsche um patamar argumentativo para se contrapor agraves correntes idealistas de

investigaccedilatildeo do conhecimento e da verdade

Em complemento ao que foi dito acerca das coisas em si no Ensaio sobre Verdade e

Mentira devemos abordar o uso do termo ldquoterreno das essencialidadesrdquo no referido ensaio

A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade parte da denuacutencia de uma

compreensatildeo errocircnea dos filoacutesofos que tomam a linguagem como algo que eacute criado como

reflexo da verdade objetiva Nessa leitura pelo recurso a uma concepccedilatildeo da criaccedilatildeo da

linguagem como processo de traduccedilatildeo arbitraacuteria de estiacutemulos nervosos em imagens e dai

em sons o autor do ensaio procura refutar qualquer sugestatildeo de uma necessaacuteria relaccedilatildeo

entre a linguagem e uma realidade original da qual esta seria reflexo Assim o autor

defende a suposiccedilatildeo de que toda vez que nos utilizamos a linguagem para nos referirmos agrave

realidade ignoramos completamente estas relaccedilotildees arbitraacuterias das quais a linguagem deve

sua existecircncia

A concepccedilatildeo tradicional da linguagem por outro lado parece fundamentar-se em

uma origem quase maacutegica da linguagem como se ela espelha-se uma relaccedilatildeo de parentesco

entre a inteligecircncia criadora da realidade e nossa inteligecircncia Nesse espelhamento da

realidade ideal da qual as imagens que nosso intelecto nos apresentam seriam algo como

reflexo imperfeito das proacuteprias coisas surgiria a relaccedilatildeo de correspondecircncia pressuposta

em toda afirmaccedilatildeo verdadeira O autor do ensaio no entanto esforccedila-se por destituir de

vaidade esta origem mitoloacutegica da linguagem No lugar de um terreno da objetividade o

autor faz questatildeo de enfatizar que sempre que usamos a linguagem estamos no terreno das

metaacuteforas

Acreditamos saber algo acerca das proacuteprias coisas quando falamos deaacutervores cores neve e flores mas com isso nada possuiacutemos senatildeometaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agravesessencialidades originais Tal como o som sob a forma de figura de areiaassim se destaca o enigmaacutetico ldquoXrdquo da coisa em si uma vez comoestiacutemulo nervoso em seguida como imagem e por fim como som Dequalquer modo o surgimento da linguagem natildeo procede pois

94

logicamente sendo que o inteiro material no qual e com o qual o homemda verdade o pesquisador o filoacutesofo mais tarde trabalha e edifica temsua origem se natildeo em alguma nebulosa cucolacircndia em todo caso natildeo naessecircncia das coisas (WLVM sectI paacuteg 35)

Mais do que o falante comum o homem da verdade eacute enganado aqui por ser o mais

dependente das essencialidades originais para sua atividade As supostas coisas em si que

o proacuteprio Kant pensou apenas como um ldquoXrdquo enigmaacutetico natildeo representariam qualquer

papel na criaccedilatildeo da linguagem Na leitura nietzschiana apresentada no ensaio portanto a

linguagem natildeo procede de forma loacutegica mas seria o resultado de arbitraacuterias transposiccedilotildees

de metaacuteforas Do mesmo modo ela natildeo procede de qualquer essencialidade mas de um

estiacutemulo nervoso em primeira instacircncia e de uma imagem criada a partir desse estiacutemulo

em segunda instacircncia Com isso o autor do ensaio natildeo afirma nada acerca de uma relaccedilatildeo

entre as essencialidades e a linguagem como forma de qualificar uma teoria da verdade

mais correta do que a tradicional mas apenas rejeita a teoria que faz decorrer a linguagem

dessas supostas essencialidades55

A preocupaccedilatildeo fundamental do autor o motivo pelo qual retoma com frequecircncia

sua teoria acerca da linguagem diz respeito a sua preocupaccedilatildeo com um us bastante

especiacutefico da linguagem o uso cientiacutefico Assim seu objetivo final eacute demonstrar que toda

ciecircncia eacute construiacuteda com base em relaccedilotildees pouco explicadas com abstraccedilotildees arbitraacuterias

com palavras de cuja origem natildeo se poderia garantir a veracidade Nesse sentido seu

uacuteltimo alvo seria a constataccedilatildeo de que aquilo com que o homem da verdade trabalha e

edifica aquilo com que o filoacutesofo constroacutei suas belas teorias metafiacutesicas natildeo proveacutem do

reino das ideias mas de uma seacuterie de processos pouco racionais

O conceito por exemplo o material com que segundo o autor do ensaio satildeo

construiacutedas as teorias cientiacuteficas e filosoacuteficas seria ainda um produto deste tipo de relaccedilatildeo

de simplificaccedilatildeo e falsificaccedilatildeo que natildeo se prende a qualquer racionalidade Uma palavra se

55 No fragmento poacutestumo 19 [165] do mesmo periacuteodo da obra em estudo Nietzsche parece refletir acercado caraacuteter das supostas essecircncias das coisas ldquoconhecemos apenas uma realidade ndash a dos pensamentos E seisso fosse a essecircncia das coisas Se memoacuteria e sensaccedilatildeo fossem o material das coisardquo O uso de exclamaccedilotildeese todo o contexto do fragmento parece sugerir que Nietzsche usa o termo essecircncia como origem das coisas oque por sinal tambeacutem poderia ser um sentido utilizado no proacuteprio texto do Ensaio Sugestatildeo que me parecemais provaacutevel do que a ideia de que naquela altura de seu desenvolvimento intelectual o autor aindasuportasse alguma crenccedila em essecircncias em sentido metafiacutesico Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na seletade fragmentos poacutestumos publicados em adendo a traduccedilatildeo em estudo Paacuteg 70

95

torna um conceito no entender de Nietzsche na medida em que seu uso se torna cada vez

mais especializado servindo para designar progressivamente objetos cada vez mais

gerais Em sua leitura contraacuteria agravequela da concepccedilatildeo tradicional acerca da formaccedilatildeo da

linguagem o conceito por meio da solidificaccedilatildeo de uma palavra quando ela perde a

flexibilidade adequada agraves necessidades da comunicaccedilatildeo cotidiana passando a designar um

conjunto de objetos em vez de um objeto individual Desta maneira uma palavra torna-se

um conceito ldquoagrave medida que natildeo deve servir a tiacutetulo de recordaccedilatildeo para a vivecircncia

primordial completamente singular e individualizada agrave qual deve seu surgimentordquo

(WLVM sectI paacuteg 35) Ou seja no processo de criaccedilatildeo dos conceitos um esquecimento do

uso individual da palavra tem efeito convergindo na aplicaccedilatildeo desta palavra em contextos

cada vez mais especializados o que significa um afastamento cada vez maior da realidade

da qual o conceito eacute derivado

Pode se ver assim que na leitura nietzschiana um conceito natildeo designa um

objeto mas um conjunto do qual o objeto eacute um exemplo Deste modo todo conceito seria

essencialmente uma generalizaccedilatildeo Mas o esquecimento desse caraacuteter geneacuterico em que

toda individualidade dos objetos eacute deixada de lado conduz agrave arbitraacuteria igualaccedilatildeo do

individual uma supressatildeo das caracteriacutesticas individuais dos objetos e uma supervaloraccedilatildeo

dos conceitos que passam a assumir o caraacuteter de uma realidade condizente com a realidade

ela mesma

Em contraposiccedilatildeo a essa ideia o autor do ensaio supotildee todas as coisas como sendo

individuais em um niacutevel indescritiacutevel Logo um conceito jamais poderia ser considerado

uma coisa e sua formaccedilatildeo corresponderia a mais um estaacutegio de afastamento da linguagem

daquilo que esta deveria designar Nesse sentido a criaccedilatildeo de conceitos por meio da

destituiccedilatildeo de individualidade dos objetos estaria relacionada a mais uma transposiccedilatildeo

arbitraacuteria Pois quando designamos diversos objetos sob um mesmo termo como quando

utilizamos a palavra folha para designar vaacuterios objetos individuais nos esquecemos de que

algo como ldquoa folhardquo por exemplo natildeo existe O que existem satildeo folhas todas diferentes

umas das outras Mas a transposiccedilatildeo natildeo paacutera aiacute pois na criaccedilatildeo do conceito a atribuiccedilatildeo

de realidade do conceito representa mais um grau de afastamento das verdades individuais

96

Nesse sentido a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma realidade conceitual eacute

comparada agrave ideia de meras criaccedilotildees arbitraacuterias do intelecto que teria seu fundamento nos

produtos mais fundamentais da apreensatildeo dos estiacutemulos nervosos uacutenica realidade agrave qual o

filoacutesofo estaria de acordo em admitir em sua leitura As implicaccedilotildees dos problemas

decorrentes de uma consideraccedilatildeo essencialista dos conceitos eacute apresentada por Nietzsche

traveacutes da consideraccedilatildeo de qualidades como a honestidade que surgiria da desconsideraccedilatildeo

de uma grande gama de eventos individuais os quais satildeo conceituados como uma

qualidade determinante de um indiviacuteduo

Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que sechamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildeesindividualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos poromissatildeo do desigual e passamos a designar dessa feita como accedilotildeeshonestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occultacom o nome honestidade (WLVM sectI paacuteg 36)

Assim surgiria o conceito de honestidade como qualidade daquilo que eacute honesto

como nos diz o autor do ensaio O autor do ensaio se vale aqui uma vez mais de uma forte

ironia como veiacuteculo para uma ideia fundamental Dizer que a honestidade eacute a qualidade

daquilo que eacute honesto natildeo diz mais sobre a honestidade do que dizer que o oacutepio faz dormir

por conta de sua virtus dormitiva Nesse exemplo satildeo vaacutelidos os mesmos problemas que

Nietzsche enxerga no caso da criaccedilatildeo de conceitos a partir de objetos Assim o processo de

cunhagem do conceito de honestidade cumpriria os mesmos estaacutegios do processo de

cunhagem do conceito de ldquofolhardquo com a exceccedilatildeo de que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de

algo como a honestidade eacute mais oacutebvia do que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de uma folha

primordial

O autor do ensaio procura por meio deste gecircnero de argumentos contrapor-se agrave

crenccedila arraigada entre os filoacutesofos de que os conceitos seriam derivados de alguma

realidade supra-terrena Em contraposiccedilatildeo a esta ideia o autor entende que a origem dos

conceitos se deveria a uma igualaccedilatildeo do desigual no uso da linguagem A atribuiccedilatildeo de

existecircncia aos conceitos seria o uacuteltimo degrau em uma escala progressiva de esquecimento

de seu uso individual Ou seja apenas por meio de um esquecimento acerca da origem

97

desses conceitos assim como de seu uso individual seria possiacutevel atribuir uma existecircncia

desconexa de seu uso a tais entidades inexistentes De todo modo o que se vecirc no ensaio eacute

uma progressiva destituiccedilatildeo de validade dos fundamentos que suportam a concepccedilatildeo da

existecircncia dos conceitos

Por outro lado se o autor natildeo nega explicitamente a existecircncia objetiva dos

conceitos isto se deveria apenas ao receio de incorrer em uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica

Assim no lugar da rejeiccedilatildeo destes o autor utiliza-se de argumentos criacuteticos baseados nas

limitaccedilotildees da capacidade humana de conhecer como forma de demonstrar que devido a

proacutepria natureza de nossa constituiccedilatildeo estamos impedidos de conhecer algo como

conceitos ou coisas me si

A inobservacircncia do individual e efetivo nos fornece o conceito bemcomo a forma ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas econceitos e portanto tambeacutem quaisquer gecircneros mas tatildeo somente umldquoXrdquo que nos eacute inaccessiacutevel e indefiniacutevel Pois ateacute mesmo nossa oposiccedilatildeoentre o indiviacuteduo e gecircnero eacute antropomoacuterfica e natildeo adveacutem da essecircncia dascoisas ainda que natildeo arrisquemos dizer que ela natildeo lhe corresponde issoseria efetivamente uma asserccedilatildeo dogmaacutetica e como tal tatildeoindemonstraacutevel quanto o seu contraacuterio (WLVM sectI paacuteg 36)

Nada sabemos da essecircncia das coisas nem mesmo se tais essecircncias existem

Apenas uma fuga dos limites da efetividade pode sugerir a existecircncia de tais essecircncias

Dizer que natildeo haacute distinccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros no reino das essecircncias seria fazer

uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica e assim ferir o preceito kantiano de limitaccedilatildeo do conheciacutevel agrave

esfera dos fenocircmenos No entanto tudo poderia se passar de modo que estas se

comportassem exatamente do modo como a tradiccedilatildeo acredita e nesse sentido esta

realidade poderia refletir as relaccedilotildees de gecircnero e indiviacuteduo que Nietzsche procura

qualificar como antropomoacuterficas Pois como mencionado no capiacutetulo anterior Nietzsche

aceita jaacute em Zur Schopenhauer que tal como na citaccedilatildeo do ensaio acima ldquopode haver uma

coisa em sirdquo mas essa possibilidade apenas eacute referida porque o filoacutesofo compreende que

ldquona aacuterea de transcendecircncia tudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute

possiacutevelrdquo (BAW Paacuteg 354-355) A existecircncia de coisas em si nesse sentido seria apenas

possiacutevel

98

Devemos considerar entretanto que tal como o autor argumenta em Zur

Schopenhauer eacute apenas negativa E que essa probabilidade conta praticamente como

desvantagem para a concepccedilatildeo das coisas em si Desta maneira tal como em sua reflexatildeo

acerca da multiplicidade e individualidade em Zur Teleologie aqui tambeacutem o autor

renuacutencia oferecer qualquer posiccedilatildeo determinada acerca do caraacuteter em si da existecircncia por

considerar esta uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Mas aqui como nas notas preparatoacuterias o filoacutesofo

rejeita toda argumentaccedilatildeo que parte da consideraccedilatildeo destas realidades preferindo manter-

se no limite do efetivo e do individual Para tanto apoia-se com frequecircncia nas ciecircncias da

natureza como a se tratar aqui de modelo seguro para sua determinaccedilatildeo do caraacuteter

antropomoacuterfico destas determinaccedilotildees A investigaccedilatildeo da natureza com base em preceitos

cientiacuteficos neste caso a investigaccedilatildeo natural da origem da linguagem e dos conceitos

demonstra que nossa diferenciaccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros eacute uma decorrecircncia de

diversas transposiccedilotildees arbitraacuterias entre metaacuteforas de reinos muito distintos de existecircncia

Por esses motivos procuramos por meio de nossa interpretaccedilatildeo romper com a ideia

de uma defesa nietzschiana do reino das essencialidades como fundamento de suas

afirmaccedilotildees concepccedilatildeo que acreditamos que o autor substitui pela ideia de uma

investigaccedilatildeo natural das origens da linguagem e da verdade Com isso com a

contraposiccedilatildeo nietzschiana agrave progressiva inclusatildeo de conceitos nas realidades cientiacuteficas e

filosoacuteficas o autor efetuaria uma de suas primeiras denuacutencias da progressiva destituiccedilatildeo de

valor da realidade pelas concepccedilotildees racionalistas Em sua leitura na medida em que

passamos a depositar total confianccedila em uma realidade conceitual na medida em que

fazemos depender nossa existecircncia desse gecircnero de criaccedilatildeo arbitraacuteria passamos a rejeitar

uma forma mais original de existecircncia que se fundamentaria no valor de nossas criaccedilotildees

enquanto criaccedilotildees

23 O pathos da verdade ou a verdade como valor

Todo o progresso alcanccedilado pelo autor do ensaio ateacute aqui serve de preparaccedilatildeo para

a postulaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca da verdade Hipoacutetese a que o autor do ensaio chega

99

atraveacutes de uma investigaccedilatildeo extramoral da verdade e da mentira que culmina em uma

anaacutelise das origens da linguagem A relaccedilatildeo estabelecida pelo autor entre a linguagem e a

verdade possibilita uma anaacutelise do valor da verdade como decorrecircncia das origens mesmas

da linguagem Nesse sentido a partir do momento que Nietzsche conclui que a verdade

surge em consequecircncia do uso da linguagem como uma decorrecircncia das leis das

designaccedilotildees coletivas a concepccedilatildeo da verdade formulada no ensaio natildeo pode ser

desvinculada de sua anaacutelise das origens da linguagem

A que conclusotildees o estudo das origens da linguagem conduz Ora se o autor

percebe que a linguagem seria o produto de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias de

metaacuteforas primeiramente de estiacutemulos nervos em imagens mentais e posteriormente destas

em sons a verdade que eacute compreendida pela tradiccedilatildeo como uma propriedade da

linguagem em relaccedilatildeo a um objeto tambeacutem teria sua validade derivada destas

transposiccedilotildees arbitraacuterias Se a linguagem eacute este conjunto de transposiccedilotildees arbitraacuterias

tambeacutem a verdade acaba por constituir-se como um conjunto de metaacuteforas que devem sua

origem a tais transposiccedilotildees arbitraacuterias

O que eacute pois a verdade Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemiasantropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas queforam realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e queapoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildeesdas quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaramdesgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel eagora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais comomoedas (WLVM sectI paacuteg 37)

Eacute fundamental atentar para o sentido que o autor atribui agraves verdades aqui As

verdades ou seja as afirmaccedilotildees tomadas com verdadeiras dentro das normas linguiacutesticas

convencionadas ainda que preservem todas as exigecircncias que um teoacuterico tradicional queira

prescrever para o que seja verdadeiro carregam consigo os viacutecio da linguagem Nesse

sentido toda verdade afirmada seria sempre o produto de um esquecimento das origens das

palavras Sendo assim a conclusatildeo a que o posicionamento criacutetico nietzschiano chega eacute de

que as verdades seriam o contraacuterio do que se pensou delas ateacute entatildeo Com isso a

concepccedilatildeo tradicional finda destituiacuteda de validade

100

Verdades neste caso satildeo ilusotildees do tipo mais profundo porque nela se ignora seu

efeito ilusoacuterio Assim naquele momento de sua produccedilatildeo Nietzsche toma as verdades

como uma parcela inserida no conjunto maior das ilusotildees das metaacuteforas de cuja origem

metafoacuterica se esquece para bem da comunicaccedilatildeo Com isso tem-se uma caracterizaccedilatildeo

provisoacuteria do sentido da verdade no Ensaio sobre Verdade e Mentira enquanto ilusotildees das

quais comodamente nos esquecemos que satildeo ilusotildees para fins gregaacuterios Sendo assim a

verdade corresponderia a algo como um conjunto de mentiras convencionadas cujo valor

haacute muito tempo deixou de relacionar-se com sua origem

A veracidade diria respeito entatildeo a uma relaccedilatildeo entre designaccedilotildees que por sua

vez satildeo produtos de transposiccedilotildees arbitraacuterias Portanto a relaccedilatildeo de veracidade natildeo

corresponderia a uma relaccedilatildeo de proximidade com um mundo essencial incognosciacutevel mas

representaria a internalizaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo linguiacutestica mediante a pressatildeo da

necessidade Mas como se pode explicar isso Qual o sentido de termos como metaacutefora e

ilusatildeo nessa argumentaccedilatildeo

Para exemplificar diriacuteamos que haacute expressotildees cujo significado usual suplanta sua

origem A existecircncia de expressotildees que perpetuam-se na liacutengua por seu uso e cujo sentido

se sobrepotildee agraves origens de onde obtinha seu sentido a princiacutepio parece ser um fenocircmeno

facilmente observaacutevel em todos os idiomas Assim quando chamamos a liacutengua portuguesa

ldquoa uacuteltima flor do Laacuteciordquo utilizamos uma expressatildeo que poderia significar uma flor literal

nascida no Laacutecio origem poeacutetica da qual a expressatildeo deve sua origem56 Aqui no entanto

tal expressatildeo perde toda ligaccedilatildeo com seu sentido poeacutetico passando a representar o idioma

que eacute comparado a uma flor Nesse sentido esta expressatildeo poderia ser tomada como uma

metaacutefora para a liacutengua portuguesa

No caso nietzschiano no entanto as metaacuteforas tecircm o sentido que lhes eacute atribuiacutedo na

comparaccedilatildeo com o que pretendem significar mas natildeo um sentido independente porque o

que lhes daacute origem eacute algo que natildeo tem sentido propriamente independente do que se quer

comunicar Isto porque o sentido poeacutetico destas expressotildees teria sido a muito tempo

esquecidas As metaacuteforas que fundamentam a concepccedilatildeo de verdade que Nietzsche busca

56 A expressatildeo agora praticamente em desuso pertence ao o soneto ldquoLiacutengua Portuguesardquo do poeta brasileiroOlavo Bilac Neste soneto Olavo Bilac escreve no primeiro verso ldquoUacuteltima flor do Laacutecio inculta e belardquoreferindo-se ao idioma Portuguecircs como a uacuteltima liacutengua derivada do Latim Vulgar idioma falado na regiatildeo doLaacutecio na Itaacutelia principalmente por soldados rasos e comerciantes dai o adjetivo ldquoincultardquo utilizado porOlavo Bilac

101

descrever satildeo metaacuteforas em um sentido muito especial portanto Isto porque usualmente

uma metaacutefora guarda uma relaccedilatildeo de sentido com o que tenta significar aleacutem de um

sentido literal independente o que natildeo ocorre com as metaacuteforas dos estiacutemulos nervosos

que segundo Nietzsche seriam as imagens mentais Do mesmo modo tambeacutem os sons

tomados como metaacuteforas das metaacuteforas que satildeo as imagens mentais natildeo guarda uma

relaccedilatildeo de sentido com elas Por fim os conceitos que seriam metaacuteforas das quais se perde

completamente ateacute a lembranccedila de que deveriam se reportar a algo aparecem como

metaacuteforas muito mais esmaecidas em relaccedilatildeo agraves primeiras metaacuteforas

Agora o que o autor do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sugerir eacute que a

verdade enquanto uso verdadeiro de designaccedilotildees linguiacutesticas guarda exatamente este

mesmo tipo de relaccedilatildeo com suas origens Grosso modo a verdade natildeo seria mais do que a

sobreposiccedilatildeo do uso de expressotildees linguiacutesticas sobre sua origem que eacute sem sentido e

incomunicaacutevel Nietzsche procura assim desvincular o apreccedilo pela verdade de qualquer

origem nobre que lhe tenha sido atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo Ainda assim determinadas a

origem e o significado da verdade faltaria ao autor explicar a tendecircncia natural agrave verdade

ou o impulso agrave verdade que para a tradiccedilatildeo eacute como que uma marca distintiva da

humanidade entre os outros animais

Toda a histoacuteria da origem da verdade apresentada pelo autor sugere apenas a

obrigatoriedade de se falar a verdade como uma obrigaccedilatildeo moral assumida perante a

sociedade na tentativa de evitar as consequecircncias negativas do engano para a

sociabilidade A identificaccedilatildeo da verdade como um tipo de engano consentido em grupo

ou ldquodito moralmente da obrigaccedilatildeo de mentir conforme uma convenccedilatildeo consolidada

mentir em rebanho num estilo a todos obrigatoacuteriordquo (WLVM sect1 paacuteg 37) natildeo afasta a

necessidade de se explicar as origens do pathos da verdade do sentimento moral que a

tradiccedilatildeo associou agrave verdade e que constrange o seu uso

A referecircncia nietzschiana a este pathos ou seja o forte sentimento que estaacute ligado

em noacutes agrave obediecircncia de certas regras na praacutetica discursiva se deveria a um lento processo

de internalizaccedilatildeo destas mesmas regras por forccedila do receio de recair em uma maacute

disposiccedilatildeo por parte da comunidade Nesse sentido por exemplo o fato de nos sentirmos

mal ao mentir e nos sentirmos bem ao falar a verdade estaria relacionado a uma instintiva

recordaccedilatildeo das consequecircncias da mentira para seu praticante Assim a origem desse

102

pathos estaria relacionada natildeo a um desejo inato pela verdade mas a um receio

inconsciente de rejeiccedilatildeo Por outro lado o pathos da verdade poderia ser relacionado ao

sentimento advindo da constataccedilatildeo da falta de apreccedilo pelas consequecircncias da mentira Ou

seja quando confrontado com o lugar legado pela sociedade aos mentirosos ao mesmo

tempo que eacute motivado cada vez mais a fazer uso de tantas abstraccedilotildees quantas se lhe

apresentem o homem cultiva em seu iacutentimo a necessidade de verdade

O homem que vive em rebanho passa entatildeo a ser fortemente incentivado a criar

formas de comunicar todo acesso consciente agraves intuiccedilotildees agraves impressotildees repentinas e

individuais com que se depara Certamente este esforccedilo em comunicar o que eacute individual

representa tambeacutem um progressivo afastamento do que eacute individual na medida em que se

deve esquecer a individualidade das impressotildees na esperanccedila de melhor comunicaacute-las

Assim o homem de rebanho troca estas impressotildees originais por conceitos E pelo uso de

conceitos cada vez mais ldquodesbotados e friosrdquo o homem passa a se distinguir em sua

comunidade como portador de um conjunto cada vez maior de veracidade

O resultado mais imediato desse pathos da verdade seria a constituiccedilatildeo de

hierarquias que posteriormente evoluiriam e viriam a se tornar nosso ordenamento juriacutedico

e social distintivos da existecircncia em rebanho que se contrapotildee ao modo de existir

individual Disso dependeria fundamentalmente o modo humano de existir assim como

nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No entanto na medida em

que esta progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma progressiva falsificaccedilatildeo das

impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva dependecircncia do homem para

com a linguagem

A partir do reforccedilo do costume de se dizer a verdade cumpriria ao homem

enquanto pretende ser um homem da verdade aplicar os conceitos segundo a forma

convencionada tomando cuidado em ldquojamais atentar contra a ordenaccedilatildeo de castas bem

como contra a sequecircncia das classes hierarquicamente organizadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 39)

Nesse sentido a preservaccedilatildeo da verdade significaria tambeacutem preservaccedilatildeo das hierarquias

Em outras palavras na medida em que a vida humana passa progressivamente a girar em

torno da sociabilidade necessariamente o cultivo da linguagem passa a relacionar-se com a

preservaccedilatildeo das cadeias de comando pois a linguagem se relaciona intimamente com as

cadeias de reproduccedilatildeo de valor

103

24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana

Segundo a aproximaccedilatildeo do homem a outras espeacutecies de animais que Nietzsche

torna operante em todo o ensaio a razatildeo mesma que goza de alta consideraccedilatildeo por parte da

tradiccedilatildeo racionalista passa a ser entendida como um instrumento fornecido pela natureza

para melhor adaptaccedilatildeo do homem Dela dependeria fundamentalmente o modo humano

de existir assim como nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No

entanto na medida em que a progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma

progressiva falsificaccedilatildeo das impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva

dependecircncia do homem para com a linguagem um tornar-se cada vez mais linguiacutestico

logo cada vez mais consciente Na leitura nietzschiana no entanto isto natildeo faria do

homem um animal superior mas apenas um animal mais dependente de ilusotildees

Com isso a intenccedilatildeo de Nietzsche seria confrontar a secular distinccedilatildeo do homem

como animal racional O autor do ensaio combate a interpretaccedilatildeo segundo a qual o homem

seria um animal superior por conta de sua racionalidade ao afirmar que a distinccedilatildeo entre os

seres humanos e os outros animais consistiria em outras qualidades menos oacutebvias Pois ao

contraacuterio do que imagina a tradiccedilatildeo natildeo eacute uma tendecircncia agrave verdade e ao conhecimento que

distingue o homem dos outros animais mas sua necessidade de ilusotildees de aparecircncias Ao

atacar as bases daquilo que a tradiccedilatildeo toma como traccedilo distintivo do ser humano sua

propensatildeo para a verdade sua racionalidade Nietzsche pretende sujeitar o intelecto a sua

funccedilatildeo como instrumento para a sobrevivecircncia Esta estrateacutegia argumentativa a defesa de

uma interpretaccedilatildeo do intelecto enquanto oacutergatildeo para a linguagem se opotildee a uma estrateacutegia

que o autor do ensaio pretende tornar natildeo operante a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do intelecto

que se confunde com uma explicaccedilatildeo teleoloacutegica

Eacute nesse contexto que surge a imagem da teia de conceitos A cadeia de conceitos

que possibilita a ciecircncia seria o ponto mais elevado da estrateacutegia de sobrevivecircncia descrita

no ensaio A teia conceitual vista nessa leitura enquanto construccedilatildeo humana seria

104

aparentada com a teia da aranha por ser igualmente engenhosa57 De fato a teia conceitual

da ciecircncia aparece na leitura de Nietzsche como um claro exemplo da engenhosidade

arquitetocircnica humana que superaria em engenhosidade e sutileza a teia da aranha na

medida em que eacute tecida em material mais eteacutereo apesar de igualmente flexiacutevel e resistente

Aqui cabe muito bem admirar o homem como um formidaacutevel gecircnio daconstruccedilatildeo capaz de erguer sobre fundamentos instaacuteveis e como quesobre a aacutegua corrente um domo de conceitos infinitamente complicadopor certo a fim de manter-se firmemente em peacute sobre tais fundamentoscumpre ser uma construccedilatildeo como que feita com teias de aranhasuficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas e firme obastante para natildeo ser despedaccedilada pelo sopro do vento Como gecircnio daconstruccedilatildeo o homem eleva-se muito acima da abelha na seguinte medidaesta uacuteltima constroacutei a partir da cera que ela recolhe da natureza ao passoque o primeiro a partir da mateacuteria muito mais delicada dos conceitos queprecisa fabricar a partir de si mesmo Aqui cumpre admiraacute-lo muito masnatildeo somente por causa de seu impulso agrave verdade ao conhecimento purodas coisas (WLVM sectI paacuteg 40)

O significado da metaacutefora nietzschiana da teia relaciona-se natildeo apenas ao fato de

exemplificar uma forma sofisticada de estrateacutegia de sobrevivecircncia mas ao aspecto

definidor da realidade em ambos os casos Ou seja tanto a teia da aranha quanto o palaacutecio

conceitual da ciecircncia humana os quais constituem estrateacutegias de sobrevivecircncia para seus

criadores evoluem junto com a espeacutecie cuja sobrevivecircncia possibilitam Assim do mesmo

modo que a aranha e sua teia evoluem em uma iacutentima relaccedilatildeo a ponto da teia ser para a

aranha seu mundo posto que seu aparato sensorial evoluiu no sentido de uma limitaccedilatildeo de

sua realidade agrave sua teia o mundo de conceitos seria para o homem seu mundo

Nesse sentido a metaacutefora da teia eacute uma representaccedilatildeo poeacutetica do caraacuteter

perspectivo do conhecimento na filosofia nietzschiana Pois a perspectiva humana eacute

formada por aquilo que se lhe apresenta como objeto de conhecimento em uma primeira

acepccedilatildeo mas tambeacutem pela teia conceitual que eacute construiacuteda como modo de apreensatildeo

daquilo que se lhe apresenta ao conhecimento

57 O uso de animais nos escritos nietzschianos eacute sempre muito rico de sentido Em especial esta reflexatildeoacerca das semelhanccedilas entre os mecanismos de sobrevivecircncia do homem e da aranha constitui uma dasprimeiras apariccedilotildees de uma imagem poeacutetica constantemente retomada na filosofia nietzschiana acerca doconhecimento De fato muitas vezes a referecircncia agrave aranha ou a referecircncia a teia conceitual humanaaparecem como indicativos dos momentos na obra nietzschiana em que o autor reflete acerca doconhecimento

105

A genialidade da raccedila humana consistiria assim natildeo na veracidade de seus

construtos teoacutericos mas na capacidade de construir estruturas mais fraacutegeis e ao mesmo

tempo mais duradouras que outras espeacutecies naturais e que lhe possibilitam apreender o

mundo a sua volta Assim sua aparente tendecircncia ao conhecimento e agrave verdade seria

apenas mais uma ilusatildeo Uma ilusatildeo que lhe faz admirar seu construto teoacuterico do mesmo

modo que uma aranha aprende a estimar sua teia Nessas comparaccedilotildees as construccedilotildees

teoacutericas dos seres humanos natildeo aparecem em um grau superior agravequelas dos outros animais

o que confere ao texto a impressatildeo de que aqui o autor estivesse comparando estrateacutegias de

sobrevivecircncia sem desmerecer nenhuma delas

Na leitura nietzschiana portanto a propensatildeo ao conhecimento proacutepria do homem

seu impulso agrave verdade consistiria apenas em uma espeacutecie de truque da razatildeo A busca pela

verdade que tradicionalmente se tomava como a missatildeo sagrada do homem eacute vista pelo

autor do ensaio como um resultado de seu proceder racional Isto se daria porque para

Nietzsche o procurar e encontrar da ldquoverdaderdquo no interior do domiacutenio da razatildeo natildeo

poderia ter outro resultado senatildeo a descoberta de verdades criadas pela proacutepria razatildeo Dado

que a criaccedilatildeo de conceitos pelo homem condiciona o tipo de coisa designada e nada haacute de

especial em encaixar uma coisa em sua designaccedilatildeo conceitual pois o proacuteprio conceito eacute

um esquecimento da designaccedilatildeo original da coisa

Se crio a definiccedilatildeo de mamiacutefero e aiacute entatildeo apoacutes inspecionar um camelodeclaro veja eis um mamiacutefero com isso uma verdade decerto eacute trazida agraveplena luz mas ela possui um valor limitado digo ela eacute antropomoacuterficade fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse ldquoverdadeiroem sirdquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homem Emprinciacutepio o pesquisador dessas verdades procura apenas a metamorfosedo mundo nos homens esforccedila-se por uma compreensatildeo do mundo vistocomo uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das hipoacuteteses granjeiapara si o sentimento de uma assimilaccedilatildeo Agrave semelhanccedila do astroacutelogo queobserva as estrelas a serviccedilo dos homens e em conformidade com suafelicidade e sofrimento assim tambeacutem um tal pesquisador observa omundo inteiro como conectado ao homem como o ressoar infinitamentefragmentado de um som primordial do homem como a coacutepiareduplicada de uma imagem primordial do homem (WLVM sectI paacuteg40-41)

106

Como afirma o autor nada haacute de ldquoverdadeiro em si58rdquo nesse tipo de procedimento

apesar disso parecer desesperador aos filoacutesofos mais antigos Tudo se daacute aqui no terreno

antropomoacuterfico dos conceitos e natildeo no terreno da pesquisa desinteressada da verdade Pois

o pesquisador deixando de lado o caraacuteter metafoacuterico de suas primeiras imagens as quais

lhe servem de objeto atua como se estivesse diante da realidade ela mesma sem se dar

conta que apenas testemunha uma verdade antropomoacuterfica Assim ele atua em erro de

princiacutepio ao fim ldquoeis seu procedimento ter o homem por medida de todas as coisas algo

que ele faz poreacutem partindo do erro de acreditar que teria tais coisas como objetos puros

diante de sirdquo (WLVM sectI paacuteg 41) Estes objetos puros natildeo satildeo colocados diante do

homem mais do que pela proacutepria razatildeo que procura nesses objetos a verdade Isto a razatildeo

faz de maneira inconsciente na medida em que ldquoEle se esquece pois das metaacuteforas

intuitivas originais tais como satildeo metaacuteforas e as toma pelas proacuteprias coisasrdquo (WLVM

sectI paacuteg 41)

O modo pelo qual Nietzsche chega aos conceitos diverge profundamente do modo

como a filosofia metafiacutesica os concebe Se a tradiccedilatildeo concebe os conceitos como uma

pressuposiccedilatildeo necessaacuteria a partir da constataccedilatildeo que a verdade deve ser eterna e imutaacutevel

Nietzsche concebe estas entidades como a imobilizaccedilatildeo dos impulsos originais por meio

de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias que culmina com o esquecimento desta mesma

cadeia A compreensatildeo dos conceitos como esta ldquocalcificaccedilatildeordquo das palavras a

internalizaccedilatildeo de palavras devido seu uso continuado na praacutetica comunicativa culminaria

na compreensatildeo da ciecircncia como construto que tem por seus elementos menores os

conceitos Nesse sentido se os conceitos natildeo teriam relaccedilatildeo com uma forma mais

verdadeira de representar a realidade tambeacutem a ciecircncia natildeo poderia ter esperanccedilas de

representar a realidade de um modo mais verdadeiro

Para o autor do ensaio o conceito seria apenas um produto tardio oriundo de nossa

pouca memoacuteria e deve-se notar em uacuteltima instacircncia produto de nossa sensibilidade

limitada Pois se natildeo percebemos as mudanccedilas constantes na realidade isso se deveria a

uma limitaccedilatildeo fundamental de nossos sentidos que satildeo marcados pela estabilidade como

58 O proacuteprio uso do termo ldquoverdadeiro em sirdquo entre aspas nesse trecho do Ensaio assim como os outrostermos relacionados (efetivo e universalmente vaacutelido) daacute a ideia de que Nietzsche nega que seusantagonistas os adeptos da concepccedilatildeo tradicional de verdade em algum momento tenham atingido seusobjetivos em sua pesquisa filosoacutefica Mas de maneira alguma o uso destes termos torna o autorcomprometido com a crenccedila nesse tipo de conceitos

107

necessidade fundamental Posto que nossos sentidos se desenvolveram em acordo com

nossa necessidade de estabilidade eles nos conferem em associaccedilatildeo com o intelecto a

estabilidade sem a qual natildeo poderiacuteamos sobreviver Assim apenas pela omissatildeo da

realidade em sua natureza mutaacutevel podemos conceber um mundo de estabilidade Por outra

parte somente porque desprezamos a originalidade de cada entidade o que significaria sua

natildeo existecircncia objetiva podemos conceber os conceitos

Nesse sentido os conceitos constituem a perspectiva verdadeira para o homem

capaz de lhe garantir uma existecircncia ateacute certo ponto feliz posto que o colocam para aleacutem

da terriacutevel circunstacircncia de sua existecircncia enquanto espeacutecie ameaccedilada O palaacutecio

conceitual criado pelo intelecto que atua por forccedila da capacidade do intelecto de criar

ilusotildees eacute concebido aqui como uma proteccedilatildeo que manteacutem a autoconsciecircncia segura do

risco de confrontar o desconhecido sob o qual descansa A ideia dos terrores sobre os quais

o homem constitui sua existecircncia natildeo eacute nova na literatura nietzschiana e o autor apenas

retoma aqui uma ideia que jaacute houvera exposto em O Nascimento da Trageacutedia59 onde por

meio da reproduccedilatildeo de uma extensa passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo

o autor pretende vincular sua interpretaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana do veacuteu de Maia

(hellip) Seu olho deve ser lsquosolarrsquo em conformidade com a sua origemmesmo quando mira coleacuterico e mal-humorado paira sobre ele aconsagraccedilatildeo da bela aparecircncia E assim poderia valer em relaccedilatildeo a Apoloem um sentido excecircntrico aquilo que Schopenhauer observou a respeitodo homem colhido no veacuteu de Maia na primeira parte de O mundo comovontade e representaccedilatildeo ldquoTal como em meio ao mar furioso queilimitado em todos os quadrantes ergue e afunda vagalhotildees bramantesum barqueiro estaacute sentado em seu bote confiando na fraacutegil embarcaccedilatildeoda mesma maneira em meio a um mundo de tormentos o homemindividual permanece calmamente sentado apoiado e confiante noprincipium individuationis [princiacutepio de individuaccedilatildeo]rdquo Sim poder-se-iadizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressatildeo a inabalaacutevelconfianccedila nesse principium e o tranquilo ficar aiacute sentado de quem neleestaacute preso e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplecircndidaimagem divina do principium individuationis a partir de cujos gestos eolhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ldquoaparecircnciardquojuntamente com a sua belezardquo (GTNT I sect1)

59 A citaccedilatildeo eacute da traduccedilatildeo de J Guinsburg para a editora Companhia das Letras conforme bibliografia

108

Na passagem em questatildeo Nietzsche relata os poderes de Apolo na medida em que

este eacute tomado como o impulso artiacutestico por traacutes da criaccedilatildeo da realidade oniacuterica como uma

representaccedilatildeo mitoloacutegica do principium individuationis Segundo a interpretaccedilatildeo

schopenhaueriana que Nietzsche acompanha em sua referecircncia a situaccedilatildeo do homem

mediante a confianccedila depositada no princiacutepium individuationis eacute comparaacutevel a de um

homem que em meio a um mar bravio se prende a seu bote com a seguranccedila de que nele

repousa sua uacutenica esperanccedila de sobrevivecircncia

No Ensaio sobre Verdade e Mentira por sua vez o intelecto eacute representado como

uma fonte de conforto e orgulho para o homem Isto porque o homem participa na

exaltaccedilatildeo do intelecto que eacute apresentada para ele por meio da autojustificaccedilatildeo do intelecto

Nesse sentido o orgulho advindo da compreensatildeo do intelecto sobre si mesmo torna-se

uma taacutebua de salvaccedilatildeo que protege o homem da compreensatildeo da perenidade de todo

conhecimento Isto seria alcanccedilado por meio da caracteriacutestica capacidade de iludir do

intelecto que faz o homem repousar em sua teia conceitual que foi criada como sua esfera

de atuaccedilatildeo na realidade

Somente pelo esquecimento desse mundo metafoacuterico apenas peloenrijecimento e petrificaccedilatildeo de uma massa imageacutetica que qual umliacutequido fervente desaguava originalmente em torrentes a partir dacapacidade primitiva da fantasia humana tatildeo somente pela crenccedilaimbatiacutevel de que este sol esta janela esta mesa satildeo uma verdade em siem suma apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e comefeito enquanto sujeito artisticamente criador ele vive com certatranquilidade com alguma seguranccedila e consequecircncia se pudesse sairapenas por um instante das redomas aprisionadoras dessa crenccedila entatildeosua ldquoautoconsciecircnciardquo desapareceria de imediato (WLVM sectI paacuteg 42)

Em outros termos a elevada estima para com o conhecimento seria apenas o

produto de um desconhecimento fundamental acerca de suas origens O proacuteprio valor da

ciecircncia dependeria fundamentalmente desta ignoracircncia fundamental Por outro lado o

desvelamento das origens da ciecircncia que eacute alcanccedilada no ensaio a anaacutelise dos fundamentos

mesmos de onde ela surge faz perceber que natildeo eacute o conhecimento o grande diferencial do

homem em relaccedilatildeo aos demais animais mas sua criatividade artiacutestica Natildeo apenas a

109

ciecircncia seria produto desta criatividade artiacutestica fundamental mas o proacuteprio valor que

atribuiacutemos a ciecircncia como produto do intelecto seria decorrecircncia desta criatividade

Nesse movimento portanto ao mesmo tempo que Nietzsche expotildee a ciecircncia como

natildeo sendo digna de sua reputaccedilatildeo faz da criatividade humana o seu grande potencial Esta

forma de conceber a ciecircncia em relaccedilatildeo agrave arte guarda certa similaridade com a forma como

o autor pensa essa relaccedilatildeo em O Nascimento da Trageacutedia O que nos chama atenccedilatildeo aqui

no entanto eacute que se naquela obra o autor tomava partido pela arte se era o artista

Nietzsche que falava ali aqui o autor realiza a criacutetica da ciecircncia utilizando-se de uma

anaacutelise que privilegia o uso de concepccedilotildees cientiacuteficas Isto significaria que jaacute naquele

periacuteodo de sua produccedilatildeo o filoacutesofo fazia um uso da ciecircncia como produto da criatividade

artiacutestica humana

A consciecircncia do valor da ciecircncia como produto artiacutestico no entanto eacute algo que soacute

se torna possiacutevel a partir da criacutetica do intelecto como produtor de ilusotildees Assim podemos

perceber que a autoconsciecircncia enquanto a imagem do homem criada a partir do potencial

criativo do intelecto em sua autojustificaccedilatildeo tem importacircncia significativa na consideraccedilatildeo

do valor da ciecircncia Sendo assim os alicerces de nosso edifiacutecio conceitual repousariam natildeo

sobre uma fundaccedilatildeo segura na verdade mas sobre uma representaccedilatildeo do intelecto como

elemento revelador da verdade Mediante a desintegraccedilatildeo da autoconsciecircncia um exerciacutecio

que ateacute certo ponto eacute levado a cabo nesta passagem do ensaio outras perspectivas

despontariam para o homem como igualmente vaacutelidas

Exigi-lhe esforccedilo inclusive admitir para si mesmo o fato de que o insetoou o paacutessaro percebem um mundo totalmente diferente daquele percebidopelo homem sendo que a pergunta por qual das duas percepccedilotildees demundo eacute a mais correta natildeo possui qualquer sentido haja visto que pararespondecirc-la a questatildeo teria de ser previamente medida com criteacuterioatinente agrave percepccedilatildeo correta isto eacute de acordo com um criteacuterio que natildeoestaacute agrave disposiccedilatildeo A mim me parece em todo caso que a percepccedilatildeocorreta ndash que significaria a expressatildeo adequada de um objeto no sujeito ndasheacute uma contraditoacuteria absurdidade pois entre duas esferas absolutamentediferentes tais como entre sujeito e objeto natildeo vigora nenhumacausalidade nenhuma exatidatildeo nenhuma expressatildeo mas acima de tudouma relaccedilatildeo esteacutetica digo uma transposiccedilatildeo sugestiva uma traduccedilatildeobalbuciante para uma liacutengua totalmente estranha Algo que requer dequalquer modo uma esfera intermediaacuteria manifestamente poeacutetica einventiva bem como uma forccedila mediadora (WLVM sectI paacuteg 42)

110

O que se percebe nessa passagem eacute uma preacutevia reflexatildeo acerca do caraacuteter limitado

de nossa compreensatildeo da realidade assim como uma criacutetica do valor de nossas estimaccedilotildees

da realidade com base em uma concepccedilatildeo da consciecircncia que eacute desde sempre apenas um

produto da autojustificaccedilatildeo do intelecto Destituiacuteda de validade a ciecircncia passa a ser

compreendida como algo que deve seu valor apenas a uma concepccedilatildeo dogmaacutetica acerca do

entendimento humano Desta interpretaccedilatildeo criacutetica surge a possibilidade de que existam

outras perspectivas outras concepccedilotildees de mundo fora da concepccedilatildeo humana Por outro

lado toda tentativa de julgamento destas outras perspectivas eacute confrontada com a

suposiccedilatildeo de que esta criacutetica ela mesma seria realizada a partir do intelecto Logo natildeo

poderia ter validade fora da esfera de justificaccedilatildeo do intelecto

A denuacutencia do caraacuteter antropomoacuterfico das criaccedilotildees teoacutericas humanas abriria assim

tereno para a postulaccedilatildeo nietzschiana das demais perspectivas como possibilidades

Apenas considerando-se o que fora dito anteriormente levando-se em consideraccedilatildeo

inclusive a reflexatildeo acerca dos diferentes modos de sensibilidade animal investigaccedilatildeo

com a qual Nietzsche entra em contato a partir de sua leitura de A Histoacuteria do

Materialismo eacute possiacutevel pesar a complexidade dos argumentos que compotildeem esta

sentenccedila

Grosso modo o problema poderia ser colocado do seguinte modo admitindo-se

como certa a hipoacutetese de que o homem natildeo seja a medida de todas as coisas que de certo

modo eacute a alma deste ensaio como ficariam as outras perspectivas diante da perspectiva

humana Ou seja considerando-se a possibilidade de que outras espeacutecies possam ver o

mundo sob formas muito diferentes da nossa e essa possibilidade eacute amplamente

respaldada pelas investigaccedilotildees das ciecircncias naturais agravequela eacutepoca como julgar se a nossa

seria a mais correta O uacutenico modo para o autor seria a comparaccedilatildeo com a perspectiva

correta No entanto tal perspectiva natildeo estaacute ao alcance A proacutepria especulaccedilatildeo acerca de

uma tal perspectiva seria um absurdo60 Na medida em que examinamos estaacute reflexatildeo tecircm-

60 Nesta passagem Nietzsche adianta uma reflexatildeo fundamental para seu perspectivismo que eacute referida noaforismo 374 de A Gaia Ciecircncia intitulado ldquonosso novo infinitordquo Naquela conhecida passagem o autorafirmaraacute ldquoNatildeo podemos enxergar aleacutem de nossa esquina eacute uma curiosidade desesperada querer saber queoutros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haverrdquo (FWGC V sect374) com isso retomando a reflexatildeode juventude acerca das formas como os insetos ou os paacutessaros enxergam a realidade Das conclusotildees que oautor retira dessa impossibilidade falaremos no uacuteltimo capiacutetulo

111

se como certo que o autor natildeo admite a possibilidade de que se possa comparar

perspectivas porque natildeo estamos de posse de uma pedra de toque definitiva o criteacuterio

atinente com que se poderia determinar qual seria a perspectiva correta

Embora sua consideraccedilatildeo do papel do intelecto na apropriaccedilatildeo do mundo pela

humanidade soacute se torne possiacutevel em uma filosofia que conhece a criacutetica efetuada por Kant

Nietzsche se opotildee a essa filosofia ao contrastar a confianccedila do filoacutesofo de Koumlnigsberg na

capacidade da razatildeo em julgar a si mesma com a suspeita de que como instrumento

plasmador de ilusotildees o intelecto eacute pouco confiaacutevel para estabelecer a verdade de qualquer

coisa especialmente sobre si mesmo

Para que a consciecircncia viesse a efetuar sua proacutepria criacutetica seria necessaacuterio que esta

se desloca-se para aleacutem de sua proacutepria perspectiva para julgar as demais perspectivas

como se aqui se trata-se de uma perspectiva absoluta Ou ainda que este se coloca-se em

uma relaccedilatildeo de proximidade com o conhecimento verdadeiro em sentido metafiacutesico que

este se colocasse em uma relaccedilatildeo ideal com a coisa em si o que lhe seria impossiacutevel posto

que a proacutepria concepccedilatildeo de coisas em si repudia a possibilidade de atuaccedilatildeo do intelecto

Assim a hipoacutetese de que o intelecto pudesse efetuar sua proacutepria criacutetica que de certo modo

se encontra subjacente agrave consideraccedilatildeo criacutetica kantiana ainda reconhece na razatildeo humana

um sentido para a verdade que lhe eacute totalmente estranho

Como o autor defende desde que o homem da verdade estaacute imbuiacutedo em sua

perspectiva da verdade natildeo lhe eacute faacutecil contemplar a sugestatildeo de que outras perspectivas

sejam sempre possiacuteveis Pois o investigador que toma a seacuterio a possibilidade da verdade

natildeo pode imaginar que esta seja subjetiva61 Mas se tal fosse possiacutevel o autor aponta a

saiacuteda seria necessaacuterio entender-se com a objetivaccedilatildeo mais adequada da realidade

Para o autor do ensaio poreacutem esta sugestatildeo seria um absurdo na medida em que tal

criteacuterio natildeo nos estaria disponiacutevel Pois seria necessaacuterio ter um acesso privilegiado ao

mundo das verdades para daiacute entatildeo postular qual perspectiva se lhe aproxima mais Mas

61 Esta passagem reflete ideias que seriam retomadas por Nietzsche em seu pensamento maduronotadamente na seguinte passagem de seu espoacutelio ldquoO intelecto natildeo pode ele mesmo criticar-se justamenteporque natildeo pode ser comparado com intelectos diferentemente constituiacutedos e porque sua capacidade deconhecer viria agrave luz somente em face da lsquoverdadeira realidadersquo [wahren Wirklichkeit] isto eacute porque paracriticar o intelecto precisariacuteamos ser um ser mais elevado com lsquoconhecimento absolutorsquo Isto jaacute pressupotildeeque haveria algo um lsquoem sirsquo para aleacutem de todas as espeacutecies de perspectivas de consideraccedilatildeo e deapropriaccedilatildeo sensiacutevel-espiritual ndash mas a deduccedilatildeo psicoloacutegica da crenccedila em coisas nos proiacutebe falar de lsquocoisasem sirsquordquo (WMVP Livro III sect473)

112

da relaccedilatildeo entre um objeto e um sujeito uma imensidatildeo de possibilidades criativas se

coloca natildeo sendo a objetividade uma decorrecircncia necessaacuteria Assim o autor toma toda

objetivaccedilatildeo como uma decorrecircncia esteacutetica sempre que eacute produto da atuaccedilatildeo de instacircncias

criativas sem as quais o objeto mesmo natildeo aparece ao sujeito

Nestas consideraccedilotildees satildeo adiantadas muitas concepccedilotildees que seratildeo retomadas por

Nietzsche em seu pensamento de maturidade Entre estas ideias talvez a mais significativa

seja a concepccedilatildeo do poder criativo do intelecto A sugestatildeo nietzschiana de que na

apariccedilatildeo dos fenocircmenos entram em jogo forccedilas criativas conduz agrave conclusatildeo de que a

interpretaccedilatildeo nunca eacute um produto espontacircneo no sentido de uma decorrecircncia natural uma

maacutegica apariccedilatildeo de um algo para um sujeito Toda aparecircncia eacute sempre um resultado uma

regulaccedilatildeo natural de uma forccedila criativa inerente ao intelecto

Mesmo aquilo que Nietzsche toma como base de sua teoria da linguagem a

tranposiccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em uma imagem eacute tomado em sentido hipoteacutetico

Sendo assim tal relaccedilatildeo natildeo seria uma decorrecircncia necessaacuteria mas apenas um haacutebito

adquirido mediante a contiacutenua repeticcedilatildeo desta atividade Desta forma o autor do ensaio

procura evitar qualquer referecircncia a uma realidade que vaacute aleacutem dos limites do que pode ser

conhecido Mantendo-se nos limites do que eacute exposto no ensaio percebe-se que Nietzsche

ateacute mesmo evita usar termos como fenocircmeno e aparecircncia pois compreende que estes ainda

poderiam ser confundidos com a ideia de que algo no mundo empiacuterico esteja relacionado

com um reino original de onde brotasse nosso conhecimento das coisas

A palavra aparecircncia conteacutem muitas tentaccedilotildees daiacute eu evitaacute-la sempre quepossiacutevel pois natildeo eacute verdade que a essecircncia das coisas aparece no mundoempiacuterico Um pintor cujas matildeos lhe faltassem e quisesse ainda assimexpressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelaraacute nessatroca de esferas muito mais sobre a essecircncia das coisas do que aquilo querevela o mundo empiacuterico A proacutepria relaccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso coma imagem gerada natildeo eacute em si algo necessaacuterio mas quando justamente amesma imagem foi gerada milhotildees de vezes e foi herdada por muitasgeraccedilotildees de homens ateacute que por fim aparece junto agrave humanidade inteirasempre na sequecircncia da mesma ocasiatildeo entatildeo ela termina por adquirir aofim e ao cabo o mesmo significado para o homem como se fosse aimagem exclusivamente necessaacuteria e como se aquela relaccedilatildeo do estiacutemulonervoso original com a imagem gerada constituiacutesse uma firme relaccedilatildeocausal assim como um sonho que se repete eternamente seria semduacutevida sentido e julgado como efetividade Mas o enrijecimento e a

113

petrificaccedilatildeo de uma metaacutefora natildeo asseguram coisa alguma agrave suanecessidade e justificaccedilatildeo exclusiva (WLVM sectI paacuteg 42-43)

Em outros termos a regularidade que se observa na transposiccedilatildeo dos estiacutemulos

nervosos em imagens mentais pode ser vista como mais um efeito da atuaccedilatildeo do intelecto

Esta regularidade no entanto pouco significa para a veracidade dessas relaccedilotildees E assim

seria um erro loacutegico entender a regularidade dessas transposiccedilotildees como um argumento a

favor de sua certeza Pois um sonho que nos aparecesse com a mesma regularidade natildeo

seria mais real por isso

Como podemos ver as uacuteltimas conclusotildees da primeira parte do ensaio parecem

apontar para um forte ceticismo Segundo esta leitura natildeo haveriam certezas nas relaccedilotildees

da linguagem porque estas se constituem na transposiccedilatildeo de esferas do mundo dos

estiacutemulos ao mundo das imagens Por outro lado seria essa possibilidade de criar uma

realidade ao lado da realidade mais fundamental das intuiccedilotildees fundamentais segundo uma

certa regularidade natural que nos possibilita estabelecer as bases para nossa criaccedilatildeo da

linguagem Isto eacute certo na medida em que a hipoacutetese acerca da criaccedilatildeo da linguagem nos

fornece uma explicaccedilatildeo plausiacutevel que se fundamenta em um processo evolucionaacuterio e

seletivo que acabaria por criar um tesouro de metaacuteforas coerentes

Por outro lado o ensaio deixa claro que a relaccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute uma

relaccedilatildeo esteacutetica e natildeo epistemoloacutegica Com isso o autor quer dizer que o processo segundo

o qual constituiacutemos nossa perspectiva eacute um processo criativo que se desenrola pela

atividade mesma de uma esfera intermediaacuteria poeacutetica e inventiva uma forccedila mediadora

para a qual neste momento o autor natildeo tinha um nome Por outro lado uma concepccedilatildeo

definitiva acerca da realidade como o homem aspira eacute uma ilusatildeo Pois tudo que merece o

nome de realidade seria apenas o produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo intelectual e

crer no contraacuterio conduziria ao idealismo mais arbitraacuterio

O que nos interessa mais diretamente ateacute aqui eacute o fato de que este mundo dos

conceitos criados a partir de um mundo de intuiccedilotildees originais passa a constituir-se por

conta de nossa crescente dependecircncia da ciecircncia como o mundo que merece valor Nesse

sentido necessariamente o mundo mais fundamental das intuiccedilotildees perde valor em relaccedilatildeo

ao mundo organizado segundo a hierarquia de valores inerente a uma consideraccedilatildeo

114

cientiacutefica da realidade Este eacute um estaacutegio fundamental no desenvolvimento do niilismo em

que o proacuteprio mundo dos conceitos a medida que a ciecircncia torna-se cada vez mais criacutetica

tambeacutem tem seu valor desvalorizado

Assim se considerarmos que no ensaio em questatildeo Nietzsche se detecircm ainda que

de maneira pouco sistemaacutetica com o problema da desvalorizaccedilatildeo do mundo dos conceitos

entatildeo podemos considerar a segunda parte do ensaio como a apresentaccedilatildeo de uma

possibilidade de superaccedilatildeo do problema da desvalorizaccedilatildeo dos produtos da atividade

criativa humana atraveacutes da comparaccedilatildeo de duas formas antagocircnicas de consideraccedilatildeo da

realidade a do homem da verdade e a do homem intuitivo Este passo eacute fundamental

porque representa a possibilidade cotejada na filosofia de maturidade nietzschiana de se

valorizar o conhecimento como criaccedilatildeo em detrimento do conhecimento que se

desconhece como criaccedilatildeo forjada na ilusatildeo

25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo

Em sua leitura criacutetica Nietzsche conclui que apesar de sua fundamental relaccedilatildeo

com a sobrevivecircncia o uso da linguagem implicaria em consequecircncias negativas em

relaccedilatildeo agrave vida Isto na medida em que passa a constituir um modo de vida que culmina na

desvalorizaccedilatildeo do mundo de intuiccedilotildees originais A simplificaccedilatildeo da realidade para fins de

comunicaccedilatildeo o que Nietzsche considera um processo fundamental na formaccedilatildeo da

linguagem conduz a uma dependecircncia crescente em uma realidade conceitual que se potildee

ao lado da realidade das impressotildees fundamentais Como este processo eacute progressivo

como o homem paulatinamente se esquece de sua realidade individual e passa a pensar

dentro de uma rede determinada de conceitos a realidade conceitual acabaria por substituir

em importacircncia e valor a realidade mais fundamental daquelas impressotildees fundamentais

Esta forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo da ciecircncia com o reino mais fundamental

das impressotildees seria o reflexo de um problema constante na especulaccedilatildeo nietzschiana a

substituiccedilatildeo da vida pela vida racionalmente mediada Isto porque apesar de a reduccedilatildeo da

realidade a conceitos passo fundamental para a constituiccedilatildeo da linguagem expressar-se

115

por meio de um mecanismo psicoloacutegico de defesa destinado a sustentar um ser no mundo

por mais um pouco de tempo este mesmo processo eacute entendido como culminando em um

abandono das relaccedilotildees mais fundamentais com a realidade da qual a vida mesma se

apresentaria como impressotildees individuais

Em um certo sentido o uso de conceitos que tornam o homem um ser cada vez

mais linguiacutestico cada vez mais consciente tornam-no com isso cada vez mais dependente

das ilusotildees fundamentais inerentes ao uso da linguagem Esta eacute a natureza do risco da

progressiva conscientizaccedilatildeo do homem seu paulatino tornar-se mais linguiacutestico tal como

este risco seraacute apresentado em A Gaia Ciecircncia Dessa maneira a superestimaccedilatildeo da razatildeo

conduz a uma confianccedila na razatildeo que acaba por tornar a realidade conceitual um objeto de

crenccedila o que por sua vez conduz agrave destituiccedilatildeo de validade da realidade mais original das

impressotildees originais

Podemos antever na exposiccedilatildeo nietzschiana o modo como a expressatildeo

cientificamente mediada da realidade tomada aqui como produto da sugestiva apariccedilatildeo dos

conceitos que correspondem ao enrijecimento de metaacuteforas adequadas embora providencie

uma base segura para a investigaccedilatildeo cientiacutefica acaba constituindo-se como uma limitaccedilatildeo

para a atuaccedilatildeo humana Pois para Nietzsche a investigaccedilatildeo levada a cabo dentro dos

limites conceituais natildeo atinge senatildeo um tipo de verdade bastante limitado Os conceitos

pensados no ensaio como fossilizaccedilotildees de palavras tem uma origem descortinada por

Nietzsche no esquecimento do uso de determinadas noccedilotildees gerais Assim sua existecircncia

estaacute necessariamente restrita agrave histoacuteria de seu uso Palavras analogamente se tornam

valores fixos com os quais construiacutemos uma rede de estabilidade onde podemos viver e

estabelecer hierarquias de comando

Nessa leitura a comunicaccedilatildeo pode ser vista como tendo sua determinaccedilatildeo na

necessidade de medir algo contra outra coisa uma impressatildeo com uma representaccedilatildeo

sonora desta representaccedilatildeo Como uma sequecircncia de siacutembolos que devem corresponder a

outra sequecircncia de siacutembolos de modo a definir e medir e criar uma referecircncia

reciprocamente entre eles Assim se por um lado o homem pode pesquisar dentro de seu

ciacuterculo antropomoacuterfico com base em conceitos tanto no sentido de uma investigaccedilatildeo que

contemplasse as menores grandezas quanto as maiores sem nunca encontrar uma

contradiccedilatildeo por outro lado este tipo de pesquisa nunca o afastaria das condiccedilotildees de

116

possibilidade jaacute dadas pela forma como a linguagem eacute constituiacuteda Do mesmo modo esta

atividade investigativa nunca possibilitaria um conhecimento adequado da realidade

mesma que eacute justamente a pretensatildeo de todo conhecimento

Ainda assim o conhecimento que se torna atuante atraveacutes do progressivo uso dos

conceitos na medida em que corresponde a uma perspectiva tipicamente humana constitui

uma forma estabelecida de ciecircncia Mais do que isso eacute possiacutevel que nunca tenha havido

na histoacuteria da humanidade uma outra forma de ciecircncia Assim de um certo modo a

caracteriacutestica mesma do humano consistiria na capacidade do intelecto em constituir

imagens em conceitos expediente por meio do qual se tornaria possiacutevel a ciecircncia Nessa

leitura a capacidade de constituir em conceitos uma realidade comunicaacutevel mais do que

objeto de censura da parte de Nietzsche aparece no ensaio quase como motivo de

assombro

Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capacidadede volatilizar as metaacuteforas intuitivas num esquema de dissolver umaimagem num conceito portanto no acircmbito daqueles esquemas torna-sepossiacutevel algo que nunca poderia ser alcanccedilado sob a eacutegide das primeirasimpressotildees intuitivas erigir uma ordenaccedilatildeo piramidal segundo castas egradaccedilotildees criar um novo mundo de leis privileacutegios subordinaccedilotildeesdelimitaccedilotildees que agora faz frente ao outro mundo intuitivo das primeirasimpressotildees como o mais consolidado universal conhecido humano eem virtude disso como o mundo regulador e imperativo (WLVM sectIpaacuteg 38)

Eacute natural que diante das dificuldades enfrentadas pelo criador da linguagem nos

vejamos diante deste imponente edifiacutecio com assombro e admiraccedilatildeo Ainda assim aquilo

de que noacutes nos assombramos natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise senatildeo de noacutes mesmos Assim com

certa admiraccedilatildeo o filoacutesofo descreve a capacidade humana de ldquovolatilizar metaacuteforas

intuitivasrdquo ou seja de desgastar impressotildees fundamentais tornando-as conceitos como a

base para a criaccedilatildeo de um mundo cuja realidade compete com a realidade do mundo das

intuiccedilotildees fundamentais

Para Nietzsche a hierarquia fundamental que caracterizaria o modo humano de

existir depende desta capacidade de conferir realidade a uma ordenaccedilatildeo de valores

fundamentais independentes do mundo de impressotildees originais para o qual esse mundo de

117

conceitos torna-se o esquema compreensivo Com isso o mundo fundamental das intuiccedilotildees

passa a fazer frente ao mundo inventado dos conceitos ldquocomo o mundo regulador e

imperativordquo por meio do qual o homem constitui sua ciecircncia Assim com a caracterizaccedilatildeo

da ciecircncia como o empreendimento que toma como realidade a realidade conceitual o

autor antecipa uma importante conclusatildeo do ensaio em questatildeo na apreciaccedilatildeo do problema

do valor dos conceitos cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave vida que aqui eacute representada na forma das

intuiccedilotildees fundamentais

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a primeira parte do Ensaio sobre Verdade e

Mentira e a segunda A primeira parte do ensaio pode ser interpretada como a apresentaccedilatildeo

do posicionamento criacutetico do autor para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade Dentro

deste posicionamento satildeo apresentadas as hipoacuteteses nietzschianas acerca das origens da

linguagem da verdade e do valor moral atribuiacutedo agrave verdade Nesse sentido a primeira

parte culmina em uma criacutetica ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade A segunda

parte do ensaio parte dessa consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a uma vida norteada pelas

concepccedilotildees conceituais e a ela confronta um modo de vida mais original fundamentado

nas impressotildees originais Assim a primeira parte do ensaio a parte teoacuterica prepara o

terreno para um problema de cunho praacutetico o conflito intriacutenseco a dois modos de

existecircncia a do homem cientiacutefico e a do homem intuitivo

O homem cientiacutefico recebe uma caraterizaccedilatildeo negativa jaacute em consequecircncia das

criacuteticas nietzschianas ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade Deste modo na

segunda parte do ensaio o autor continua a descrever esta concepccedilatildeo de realidade de

maneira pouco elogiosa Por outro lado a esta concepccedilatildeo da realidade eacute apresentada uma

concepccedilatildeo antagocircnica que eacute representada aqui como constituinte de um tipo de existecircncia

em a capacidade de criaccedilatildeo eacute valorizada em detrimento da necessidade de conceitos O que

eacute dito aqui do homem intuitivo natildeo se distingue daquilo que no periacuteodo intermediaacuterio da

filosofia nietzschiana Nietzsche diraacute dos espiacuteritos livres

O autor do ensaio inicia a segunda parte do texto por meio de uma apresentaccedilatildeo da

linguagem e dos conceitos como produtos de uma atividade de simplificaccedilatildeo da realidade

Nesta apresentaccedilatildeo o processo de criaccedilatildeo da linguagem eacute caracterizado como tendo suas

fases evolutivas marcadas pela criaccedilatildeo de metaacuteforas que culminaria na criaccedilatildeo dos

conceitos Por sua vez os conceitos se entrelaccedilariam se relacionariam de modo a criar

118

uma rede de compreensatildeo em que a realidade eacute traduzida em ciecircncia No entanto se os

conceitos satildeo como o autor pensa petrificaccedilotildees das intuiccedilotildees originais que se daria atraveacutes

de vaacuterias transposiccedilotildees arbitraacuterias entatildeo a ciecircncia seria uma construccedilatildeo produzida com

base nestas mesmas transposiccedilotildees arbitraacuterias

O processo de produccedilatildeo dos conceitos que tem por finalidade preparar os

elementos necessaacuterios para a constituiccedilatildeo da ciecircncia eacute marcado pela compressatildeo de

informaccedilatildeo Os conceitos seriam esta forma mais compacta de se preservar a realidade

embora uma realidade mais aacuterida do que o terreno original das primeiras impressotildees que

lhe datildeo origem Nesse sentido a ciecircncia enquanto rede compreensiva de conceitos

enquanto verdadeira piracircmide conceitual torna-se uma representaccedilatildeo aacuterida de todo o

mundo empiacuterico Este mundo empiacuterico no entanto que nessa altura nada mais eacute do que o

mundo sob uma perspectiva antropomoacuterfica A realidade da ciecircncia aparece como um

reflexo paacutelido da realidade mais original das impressotildees Por ser paacutelido poreacutem este

reflexo torna-se mais cocircmodo ao olhar miacuteope do cientista

Qual o caraacuteter deste empobrecimento da realidade narrado por Nietzsche Em quecirc

esta piracircmide de conceitos deixa a desejar em relaccedilatildeo agrave realidade mais fundamental das

metaacuteforas intuitivas Para Nietzsche um dos problemas com o tornar-se mais linguiacutestico

mais dependente do esquema conceitual caracteriacutestico das ciecircncias seria o fato de que a

proacutepria linguagem natildeo eacute vista como um meio seguro para expressar a diferenccedila Como

uma forma de fixaccedilatildeo do real os conceitos se relacionam intimamente com a similaridade

entre as impressotildees fundamentais que no fundo nunca satildeo de fato similares Assim por

exemplo dois homens que apontassem para um objeto e que usam a mesma designaccedilatildeo

para nomeaacute-lo poderiam entender-se perfeitamente Mas algo eacute sempre deixado de lado

nessa comunicaccedilatildeo e natildeo eacute possiacutevel dizer de fato o que cada um vecirc Porque haacute uma

diferenccedila fundamental em seus modos de perceber intuitivamente o mundo que natildeo eacute

capturado pelos conceitos

Na traduccedilatildeo da realidade das metaacuteforas intuitivas em conceitos para o autor do

ensaio se daacute uma falsificaccedilatildeo fundamental da realidade A traduccedilatildeo da natureza nas leis da

fiacutesica eacute um exemplo recorrentemente utilizado na obra nietzschiana para demarcar o tipo

de simplificaccedilatildeo que eacute operada pela ciecircncia As leis da fiacutesica representam a ciecircncia apenas

do ponto de vista do fiacutesico nunca do ponto de vista da natureza ela mesma De modo que

119

tudo que eacute expresso pela fiacutesica eacute verdadeiro apenas no interior da fiacutesica Do mesmo modo

se as leis da fiacutesica natildeo podem ser equivocadas isto apenas significa que desde que estas

leis satildeo uma imposiccedilatildeo segundo a norma convencionada de aplicaccedilatildeo de conceitos nada

dizem acerca da natureza mesmo pois expressam apenas um sistema de relaccedilotildees fechado

Por outro lado o que haacute de verdadeiramente significativo nas leis da natureza

seriam as relaccedilotildees de sucessatildeo e nuacutemero que satildeo expressotildees do tempo e espaccedilo portanto

aplicaccedilotildees de conceitos humanos Ou seja as leis da natureza satildeo criaccedilotildees nossas tal qual

a regularidade numeacuterica que eacute produzida ldquocom aquela necessidade com a qual a aranha

tece sua teiardquo (WLVM sectI paacuteg 45) Lembremos que em suas notas preparatoacuterias para

Zur Teleologie o filoacutesofo nos falava das leis da fiacutesica como uacutenico modo de compreensatildeo

da natureza para os homens62

Mas porque as leis da fiacutesica satildeo criaccedilotildees humanas capazes de oferecer uma

explicaccedilatildeo da natureza Porque satildeo criadas com esse propoacutesito No entanto as leis da

fiacutesica satildeo produtos de nossa atividade criativa condicionadas pela regularidade numeacuterica

que eacute inerente ao nosso intelecto e natildeo carateriacutesticas da proacutepria natureza Sendo assim

poderiacuteamos nos perguntar o que eacute expresso nestas determinaccedilotildees numeacutericas Para

Nietzsche a mesma regularidade que eacute o traccedilo do intelecto o traccedilo caracteriacutestico de nossa

atividade criativa sobre o mundo que seria o uacutenico conteuacutedo das leis da natureza Isto

seria de fato uma explicaccedilatildeo da natureza Mas uma explicaccedilatildeo dentro de um ponto de

vista63

Por fim tem-se que as leis da fiacutesica seriam a forma mais avanccedilada de falsificaccedilatildeo

da natureza por meio da qual se constitui nossa ciecircncia natural Nesse sentido se por um

lado esta domesticaccedilatildeo das imagens em conceitos coincide com uma maior falsificaccedilatildeo da

realidade por outro apenas por meio desta falsificaccedilatildeo seria possiacutevel constituir a ciecircncia

enquanto um edifiacutecio de riacutegidos conceitos e hierarquizaccedilatildeo Desta maneira repercutindo

uma ideia apresentada em suas notas preparatoacuterias para a dissertaccedilatildeo sobre teleologia

62 Em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie Nietzsche reuacutene uma seacuterie de citaccedilotildees da obra deFischer tendo em vista estabelecer como ponto de partida de sua proacutepria concepccedilatildeo sobre os organismosque noacutes apenas podemos conhecer o que eacute mecacircnico (BAW 3 Paacuteg 377) Em outras palavras para o homemapenas o que se revela em relaccedilotildees de necessidade seria passiacutevel de conhecimento Embora como as notasparecem significar conhecimento a partir de um ponto de vista mecacircnico ao que o autor acrescenta ldquoEineBetrachtungsweise ist noch keine Erkenntnissrdquo ou seja ldquoUm ponto de vista ainda natildeo eacute conhecimentordquo(BAW 3 Paacuteg 377)63 Vide nota anterior

120

Nietzsche reduz toda regularidade da natureza a regularidade dos conceitos que aparece

para o autor como o reflexo de nossa proacutepria constituiccedilatildeo

Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetoacuteria dos planetas eno processo quiacutemico coincide no fundo com aquelas propriedades quenoacutes mesmos introduzimos nas coisas de sorte que com issoimpressionamos a noacutes mesmos Disso se segue por certo que aquelaformaccedilatildeo artiacutestica de metaacuteforas que em noacutes daacute iniacutecio a toda sensaccedilatildeo jaacutepressupotildee tais formas e portanto realiza-se nelas somente a partir dafirme persistecircncia dessas formas primordiais torna-se possiacutevel esclarecercomo pocircde assim como outrora ser novamente erigido um edifiacutecio deconceitos feito com as proacuteprias metaacuteforas Tal edifiacutecio eacute pois umaimitaccedilatildeo das relaccedilotildees de tempo espaccedilo e nuacutemero sobre o solo dasmetaacuteforas (WLVM sectI paacuteg 45)

Toda a impressionante ordenaccedilatildeo da natureza seria assim um reflexo de nosso

ponto de vista determinado natildeo se podendo tributar agrave natureza qualquer regularidade

proacutepria Por outro lado o autor esforccedila-se em demonstrar que um conceito natildeo tem

realidade ldquoa-histoacutericardquo pois sua existecircncia estaacute necessariamente restrita a histoacuteria de seu

uso Por sua vez o proacuteprio mundo de conceitos e de hierarquia que eacute a ciecircncia seria um

mundo humano construiacutedo com base em leis de regularidade que a proacutepria regularidade de

nossa constituiccedilatildeo lhe impotildee Como Nietzsche afirma ldquoEm princiacutepio o pesquisador dessas

verdades procura apenas a metamorfose do mundo nos homens esforccedila-se por uma

compreensatildeo do mundo visto como uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das

hipoacuteteses granjeia para si o sentimento de uma assimilaccedilatildeordquo (WLVM sectI paacuteg 40) De

tal modo a existecircncia humana passa a depender destas associaccedilotildees automaacuteticas que os

conceitos passam a valer na existecircncia humana como verdadeiras entidades Ainda assim

tatildeo distantes os conceitos estatildeo das metaacuteforas que lhe datildeo origem que facilmente

descremos dessa origem Com a mesma facilidade com que o homem perde de vista o fato

de que todo conceito e portanto toda ciecircncia tem como sua origem uma ilusatildeo

ocasionada por uma atividade criativa inerente agrave constituiccedilatildeo humana

Enquanto cada metaacutefora intuitiva eacute individual e desprovida de seucorrelato e por isso sabe sempre eludir a todo rubricar o grande edifiacuteciodos conceitos exibe a inflexiacutevel regularidade de um columbaacuterio romano e

121

exala na loacutegica aquela dureza e frieza que satildeo proacuteprias agrave matemaacuteticaAquele que eacute baforado por essa frieza mal acreditaraacute que mesmo oconceito ossificado e octogonal como um dado e tatildeo rolante como estepermanece tatildeo-somente o resiacuteduo de uma metaacutefora sendo que a ilusatildeo datransposiccedilatildeo artiacutestica de um estiacutemulo nervoso em imagens se natildeo eacute amatildee eacute ao menos a avoacute de todo conceito (WLVM sectI paacutegs 38-39)

Exatamente nisso os conceitos se diferenciam das metaacuteforas intuitivas Enquanto as

metaacuteforas intuitivas satildeo eventos singulares desprovidos de sentido aleacutem de sua apariccedilatildeo

os conceitos satildeo criaccedilotildees que devem servir de modelo para interpretaccedilatildeo da realidade em

formas fixas segundo uma riacutegida loacutegica Os elementos constitutivos de todas as ciecircncias

relacionam-se uns aos outros para formar estruturas que estatildeo ancoradas a outros

conceitos que conduzem a um fundamento riacutegido que se presume ser um ldquoinstantacircneordquo do

mundo em que realmente vivemos Um instantacircneo de forma loacutegica e epistemologicamente

exata por assim dizer Mas se levarmos a seacuterio esse pensamento como fica a realidade

Onde estaacute o mundo em que realmente vivemos Neste instantacircneo Seraacute que ele teria sido

simplesmente captado por completo em nossa representaccedilatildeo conceitual da realidade A

resposta do autor eacute claramente negativa para todas estas questotildees

O processo que culmina na produccedilatildeo da ciecircncia tem para Nietzsche uma loacutegica

determinada segundo a qual ldquo() a linguagem trabalha na construccedilatildeo dos conceitos desde

o princiacutepio e em periacuteodos posteriores a ciecircnciardquo (WLVM sectI paacuteg 46) Assim a

linguagem eacute considerada nessa leitura como um passo inicial no processo de produccedilatildeo da

ciecircncia que teraacute seu modo de operaccedilatildeo determinado por essa mesma loacutegica Eacute esta loacutegica

que determina que a busca de regularidade proacutepria da ciecircncia culmine em um

esquecimento da realidade para aleacutem da regularidade atribuiacuteda a ela Ou seja tendo em

vista uma cada vez melhor adaptaccedilatildeo da realidade agraves necessidades humanas notadamente

a necessidade de comunicaccedilatildeo a ciecircncia opera com conceitos cada vez menos relacionados

agrave realidade original das metaacuteforas intuitivas

Nesse processo a proacutepria similaridade da constituiccedilatildeo humana parece cooperar na

medida em que ocasiona que sempre vejamos o mundo de uma perspectiva muito

semelhante posto que condicionada pela mesma organizaccedilatildeo64 Apesar disso a tendecircncia

64 A ideia da conformidade da constituiccedilatildeo do aparato perceptivo humano como motivo da regularidade dasexperiecircncias compartilhadas pelos homens eacute reforccedilada no Fragmento poacutestumo 19 [157] do mesmo periacuteododa obra citada ldquoO imenso consenso dos homens acerca das coisas comprova a uniformidade de seu aparatoperceptivordquo Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na paacutegina 67 da obra em estudo

122

humana agrave formulaccedilatildeo de conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural da qual a

proacutepria criaccedilatildeo de conceitos seria dependente

A caracterizaccedilatildeo da dependecircncia humana do esquema conceitual possibilita a

Nietzsche qualificar sua eacutepoca enquanto uma eacutepoca culturalmente dominada pela

primordialidade da ciecircncia como uma eacutepoca ameaccedilada pela crescente dependecircncia do

esquema conceitual fruto do intelecto Pois o autor identifica na incapacidade humana em

trabalhar apenas com as metaacuteforas poeacuteticas originais incapacidade que torna-se algo

inerente ao modo de vida que passa a caracterizar a humanidade uma crescente perda de

vitalidade na forma de uma crescente deterioraccedilatildeo da capacidade de ver segundo a

pluralidade de perspectivas possiacuteveis Assim para o autor do ensaio que confirmaraacute essa

suspeita em obras posteriores apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida

humana caracterizar-se por um processo de crescente adoecimento do homem a

consideraccedilatildeo da realidade segundo a realidade dos conceitos tende a uma expansatildeo

contiacutenua Pois a atividade dissimuladora do intelecto responsaacutevel pela conversatildeo de

metaacuteforas intuitivas em conceitos tende a uma atividade contiacutenua

Esta atividade criativa estruturalmente ligada ao intelecto chega a tornar-se nos

homens seu traccedilo caracteriacutestico Assim este traccedilo positivo do intelecto na medida em que

eacute manifestaccedilatildeo do potencial criativo inerente agrave atividade humana revela-se como potencial

artiacutestico incansaacutevel E ainda quando estabelecido o outro mundo dos conceitos cientiacuteficos

a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas permanece ativa e pronta para desempenhar seus

artifiacutecios em terrenos ainda inexplorados pelas ciecircncias

Tal impulso agrave formaccedilatildeo de metaacuteforas esse impulso fundamental dohomem ao qual natildeo se pode renunciar nem por um instante jaacute que comisso renunciar-se-ia ao proacuteprio homem natildeo eacute em verdade subjugado eminimamente domado pelo fato de um novo mundo firme e regular ter-lhe sido construiacutedo qual uma fortificaccedilatildeo a partir de seus produtosvolatilizados o mesmo eacute dizer os conceitos (WLVM sectI paacutegs 46-47)

Nesta leitura o autor identifica a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas com uma forccedila

que natildeo se deteacutem mesmo diante do soacutelido palaacutecio de conceitos da ciecircncia Ou seja apesar

da preponderacircncia da ciecircncia em determinadas eacutepocas o poder dissimulador do intelecto

permanece ativo e a disposiccedilatildeo Apenas o pesquisador o homem da verdade que associa

123

seu modo de vida ao proacuteprio desenvolvimento do palaacutecio conceitual da ciecircncia

permaneceria alienado dessa atividade propriamente artiacutestica do intelecto Mesmo que

enquanto homem natildeo possa ignorar a atuaccedilatildeo dessa potencialidade criativa que

constantemente lhe forccedila a confrontar suas certezas com outras tantas formas de verdade

Nesse sentido o pesquisador da verdade seria o homem mais ameaccedilado pela constante

intromissatildeo de verdades estranhas em seu sistema de compreensatildeo do mundo

Se o homem de accedilatildeo une sua vida agrave razatildeo e a seus conceitos para natildeo serarrastado e natildeo se perder a si mesmo o pesquisador de sua parteconstroacutei sua cabana junto agrave torre da ciecircncia para que possa prestar-lheassistecircncia e encontrar ele proacuteprio amparo sob o baluarte agrave suadisposiccedilatildeo E com efeito ele necessita de amparo pois haacute forccedilasterriacuteveis que lhe irrompem constantemente e que opotildee agraves verdadescientiacuteficas ldquoverdadesrdquo de um tipo totalmente diferente com as maisdiversas espeacutecies de emblemas (WLVM sectI paacuteg 46)

O homem de accedilatildeo nesse sentido identifica-se de forma instrumental com o palaacutecio

de conceitos mas o homem da ciecircncia o pesquisador faz desse palaacutecio a razatildeo mesma de

sua existecircncia Assim por conta da dependecircncia crescente neste construto teoacuterico para o

homem da ciecircncia este lhe pareceraacute sempre mais e mais real Na medida em que o homem

da ciecircncia dedica sua vida agrave construccedilatildeo do palaacutecio de conceitos e que faz sua vida

depender desse palaacutecio conceitual embora no fundo estes mesmos conceitos sejam ainda o

resultado dos enganos mais criativos natildeo pode fugir das ldquoverdadesrdquo de tipo distinto aos

conceitos cientiacuteficos que como resultado da atuaccedilatildeo do intelecto sempre se lhe

apresentam

O que o autor relata aqui eacute a presenccedila fundamental da forccedila criadora de metaacuteforas

como princiacutepio que natildeo se encerra na produccedilatildeo das verdades cientiacuteficas mas que

permanece ativa para aleacutem da consolidaccedilatildeo desse empreendimento Assim apesar de a

razatildeo conduzir inevitavelmente a uma certa imobilizaccedilatildeo da accedilatildeo na medida em que o

homem se deixa conduzir unicamente por seu princiacutepio falsificador com isso natildeo

chegamos a um pessimismo em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana mas agrave conclusatildeo de que apenas

podemos ser guiados por intuiccedilotildees que satildeo produtos de nossa capacidade poeacutetica e que

encontram seu valor nessa capacidade poeacutetica

124

Por meio da reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a atividade cientiacutefica e a atividade

criativa de metaacuteforas inerente agrave existecircncia humana Nietzsche ressalta o papel da forccedila

criativa que atua na construccedilatildeo das metaacuteforas a qual o autor considera uma forccedila poeacutetica

ineliminaacutevel nos homens A abordagem desse potencial criativo poderia ser lida como

complemento ao que Lange expressa sob a questatildeo do potencial criativo do ideal no

capiacutetulo de A Histoacuteria do Materialismo acerca do ponto de vista do ideal e deste modo

estaria relacionada agrave questatildeo mais fundamental acerca da inevitabilidade da tendecircncia

metafiacutesica no homem65

De modo geral o que Nietzsche nos apresenta ao confrontar o homem da verdade

com o homem intuitivo seria um reflexo da ideia langeana de que a forccedila poeacutetica no ser

humano seria um complemento necessaacuterio agrave atividade do homem teoacuterico66 Assim o autor

65 Em sua filosofia de maturidade Nietzsche considera que Kant assim como Schopenhauer teriam sidotragados para uma consideraccedilatildeo seacuteria das coisas em si por conta da necessidade moral que subjaz agraves suasfilosofias Essa necessidade moral teria sido de acordo com a interpretaccedilatildeo criacutetica de Nietzsche o peso quearrastou a filosofia desses autores para o abismo da inevitabilidade metafiacutesica Nesse sentido a segundagrande influecircncia na interpretaccedilatildeo nietzschiana da filosofia kantiana Fr A Lange acompanha Kant naproibiccedilatildeo do conhecimento do que se coloca para aleacutem da experiecircncia possiacutevel embora atribua um papelimportante para as realidades ideais como fontes de estiacutemulo na pesquisa cientiacutefica e inspiraccedilatildeo nas esferaspoeacutetica e moral Assim ele nos diz ldquoUma coisa eacute certa que o homem tem necessidade de completar arealidade com um mundo ideal que o mesmo cria e que para tais criaccedilotildees concorrem as mais altas e nobresfunccedilotildees de sua inteligecircnciardquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 586) Assim estes produtos das mais altas e nobresfunccedilotildees da inteligecircncia humana natildeo deveriam ser desperdiccedilados mas ter seu uso restrito ao acircmbito praacuteticoMotivo pelo quecirc as uacuteltimas seccedilotildees de sua obra satildeo dedicadas agrave descriccedilatildeo do uso adequado dessa propensatildeonatural especialmente no que diz respeito agrave religiosidade que tem um papel fundamental enquanto fonte devalores morais na proposta langeana ldquo(hellip) e chegamos a crer que esta tese da associaccedilatildeo da religiatildeo com aarte e a metafiacutesica seraacute adotada de modo geral em um tempo natildeo muito distante e ainda nos parece que estasrelaccedilotildees satildeo reconhecidas ou ao menos pressentidas pelos mais entusiastas em uma medida muito maisampla do que se admite ordinariamenterdquo (Tomo II 4 II Paacuteg 521) Por outro lado como se sabe o combateagrave religiosidade exatamente por conta dos valores morais associados a essa praacutetica humana eacute objeto degrande destaque na filosofia nietzschiana na qual a destruiccedilatildeo da metafiacutesica aparece como objeto central Noentanto eacute possiacutevel observar que o que Nietzsche afirma acerca do potencial das metaacuteforas intuitivas serelaciona intimamente como o que Lange diz acerca da atuaccedilatildeo do potencial poeacutetico humano ldquoA visatildeo deconjunto que converte os fatos em ciecircncias e a ciecircncia em sistema eacute um fruto da livre siacutentese e proveacutemportanto da mesma origem que a criaccedilatildeo do ideal mas enquanto este dispotildee em completa liberdade damateacuteria a siacutentese apenas tem o domiacutenio do movimento a liberdade de sua origem que emana do espiacuteritopoeacutetico do homem e estaacute por outro lado encarregado da tarefa de estabelecer a maior harmocircnia possiacutevelentre os fatores necessaacuterios do conhecimento subtraiacutedos a nosso caprichordquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 578)66 De modo geral os elementos que Nietzsche absorve de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo deAlbert Lange satildeo resumidos pelo filoacutesofo em uma carta escrita a Carl von Gersdoff seu amigo ecorrespondente de longa data A carta em questatildeo que foi datada de fins de agosto de 1866 reflete asimpressotildees que Nietzsche conservava de sua leitura da obra de Lange ldquoFinalmente devemos mencionartambeacutem Schopenhauer pelo qual eu ainda tenho a maior simpatia O que pode ser encontrado nele foirecentemente esclarecido para mim por uma fonte diferente o excelente e muito instrutivo entre os seusHistoacuteria do Materialismo e criacutetica de sua importacircncia para o presente Fr A Lange 1866 Aqui encontramosum kantiano e um investigador da natureza altamente esclarecido Os seus resultados podem ser resumidosnas trecircs seguintes sentenccedilas 1-O mundo sensiacutevel eacute o produto da nossa organizaccedilatildeo 2-Nossos oacutergatildeos visiacuteveis(fiacutesicos) satildeo como todas as outras partes do mundo fenomecircnico somente imagens de um objeto

125

do ensaio nos apresenta uma concepccedilatildeo dessa forccedila criativa essencial segundo a qual em

alguns momentos da histoacuteria em que o intelecto conseguiria libertar-se da indigecircncia do

modo conceitual de viver ele atuaria na livre construccedilatildeo de produtos diretos das intuiccedilotildees

fundamentais As aacutereas afeitas a essa atividade nos diz Nietzsche seriam as aacutereas da

criaccedilatildeo dos mitos e das artes o que reflete a ideia Langeana de que natildeo apenas a filosofia

mas tambeacutem a arte e a religiatildeo tecircm livre acesso ao terreno dos conceitos67 Ao defender

essa concepccedilatildeo langeana fundamental Nietzsche descreve o modo como o intelecto natildeo

circunspecto aos limites da criaccedilatildeo dos conceitos busca uma fuga na criaccedilatildeo de ilusotildees

embelezadoras enriquecedoras da existecircncia humana tanto na arte quanto na criaccedilatildeo de

mitos

Ele busca um novo acircmbito para sua accedilatildeo e um outro regato sendo que oencontra no mito e em linhas gerais na arte Perpetuamente mistura asrubricas e as divisoacuterias dos conceitos ao introduzir novas transposiccedilotildeesmetaacuteforas metoniacutemias perpetuamente demonstra o aacutevido desejo deconfigurar o mundo agrave disposiccedilatildeo do homem desperto sob uma forma tatildeocoloridamente irregular inconsequentemente desarmocircnica instigante eeternamente nova como a do mundo do sonho (WLVM sectI paacuteg 47)

Assim na medida em que o intelecto se liberta da indigecircncia de sua atuaccedilatildeo

segundo a pressatildeo da necessidade de sobrevivecircncia sua atividade se volta para a criaccedilatildeo de

desconhecido 3-A nossa verdadeira organizaccedilatildeo permanece desconhecida para noacutes bem como as coisasexternas reais Noacutes apenas temos o produto de ambos perante noacutes (KSB 2 p 159-160) A referida citaccedilatildeoassim como as proacuteximas passagens mencionadas desta mesma carta satildeo uma traduccedilatildeo nossa de textopertencente agrave coleccedilatildeo de cartas de Nietzsche na ediccedilatildeo eletrocircnica de suas obras completas (eKGB) sob asigla BVN 1886 517 A mesma carta foi publicada no segundo volume da coletacircnea completa das obras deNietzsche organizada por Colli-Mortinari sob a sigla (KSB 2 p 159-160) Nesse trecho em que Nietzschefaz uma exposiccedilatildeo entusiaacutestica de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo podemos ver o quanto o jovemprofessor de filologia apreciou o livro de seu colega de Bonn e disciacutepulo de Ritschl Havia apenas um anoque o jovem filoacutelogo houvera descoberto O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo e acreditava ver a perfeitaqualificaccedilatildeo das ideias de Schopenhauer como herdeiro direto da filosofia kantiana no livro de Lange 67 O percurso investigativo que toma como ponto de partida a estrutura humana de apreensatildeo da realidadetem suas raiacutezes na antiguidade do pensamento No entanto a consideraccedilatildeo da estrutura racional responsaacutevelpela constituiccedilatildeo da realidade em objeto de apreensatildeo mental eacute um traccedilo caracteriacutestico da filosofia modernaque foi legado agrave filosofia posterior na forma do questionamento pelo sujeito do conhecimento Esta estruturapor traacutes da formaccedilatildeo da realidade que foi apresentada por Kant em A Criacutetica da Razatildeo Pura na forma dosujeito transcendental foi nomeada por Lange como nossa organizaccedilatildeo psicofiacutesica estrutura que surge emseu pensamento como um produto ressignificado daquela concepccedilatildeo kantiana Esta concepccedilatildeo que surge naespeculaccedilatildeo langeana acerca dos avanccedilos dos estudos dos oacutergatildeos dos sentidos e da fisiologia que apareceespecialmente no terceiro capiacutetulo do segundo volume de sua Histoacuteria do Materialismo seraacute o modelo dainvestigaccedilatildeo que seraacute assumida na filosofia nietzschiana na forma de uma concepccedilatildeo naturalista genealoacutegicae fenomenoloacutegica da consciecircncia

126

produtos esteacuteticos relacionados agrave criaccedilatildeo de mitos e obras artiacutesticas Eacute difiacutecil natildeo ver nessa

passagem os efeitos da leitura de Nietzsche da obra de Albert Lange o qual via os ideais da

razatildeo como produtos diretos da atividade poeacutetica do intelecto Assim a concepccedilatildeo do

potencial criativo humano e a importacircncia que esse potencial possui na filosofia desses

autores constituiria um traccedilo caracteriacutestico em ambas filosofias assim como um importante

passo na compreensatildeo da relaccedilatildeo desses autores com o idealismo Tal semelhanccedila entre as

reflexotildees desses autores pode ser pensada sem prejuiacutezo algum como uma continuidade de

objetivos entre ambos pensamentos apesar das necessaacuterias diferenccedilas de abordagem

Para Nietzsche em uma cultura em que a arte da dissimulaccedilatildeo natildeo foi sublimada

pela obsessatildeo pela verdade torna-se possiacutevel ao intelecto libertar-se da necessidade de

sobrevivecircncia e atuar segundo a sua inclinaccedilatildeo original ldquoO intelecto esse mestre da

dissimulaccedilatildeo acha-se pois livre e desobrigado de todo seu serviccedilo de escravo sempre que

pode enganar sem causar prejuiacutezo e festeja entatildeo suas Saturnais nunca ele eacute mais

opulento rico orgulhoso versaacutetil e arrojadordquo (WLVM sectI paacuteg 48) Para o intelecto que

liberta-se da necessidade de sobrevivecircncia ldquoEm comparaccedilatildeo com o que fazia antes agora

tudo o que faz traz em si a dissimulaccedilatildeo assim como sua conduta anterior trazia em si a

deformaccedilatildeo Copia a vida humana mas a toma por uma coisa boa e parece estar

plenamente satisfeito com elardquo (WLVM sectI paacuteg 49) Nesse sentido na medida em que o

intelecto liberta-se das amarras da necessidade e da necessidade de prover os elementos

garantidores da coexistecircncia gregaacuteria atua no sentido de uma criaccedilatildeo de sentido individual

da realidade independente da atuaccedilatildeo dos conceitos Com isso antecipa-se na reflexatildeo

nietzschiana uma resposta para o proacuteprio pessimismo inerente a uma consideraccedilatildeo da

realidade segundo os preceitos das ciecircncias

Ao contrapor a atuaccedilatildeo do intelecto segundo a pressatildeo da sobrevivecircncia que

implica na criaccedilatildeo dos conceitos e por fim na criaccedilatildeo da ciecircncia com a atividade do

intelecto em sua liberdade o autor relaciona duas atividades tatildeo distintas quanto a

falsificaccedilatildeo e a dissimulaccedilatildeo Nessa leitura a ciecircncia implicaria em uma falsificaccedilatildeo da

realidade na medida em que cria um mundo que se coloca lado a lado com o mundo mais

originaacuterio das intuiccedilotildees fundamentais que faz passar como mais verdadeiro do que o

mundo que daacute origem agrave realidade dos conceitos cientiacuteficos em uma clara atitude de

falsificaccedilatildeo Por outro lado a atividade dissimuladora do intelecto se caracteriza por um

127

embelezamento da realidade intuitiva originaacuteria o qual natildeo se explica mas se expressa de

acordo com belas imagens de sonhos

Em uma profunda reflexatildeo acerca do potencial criativo do intelecto que se liberta

de suas funccedilotildees habituais Nietzsche defende a opiniatildeo que estas funccedilotildees habituais natildeo satildeo

sua funccedilatildeo primordial posto que estas parecem se opor ao ilimitado potencial criativo do

intelecto Na compreensatildeo do filoacutesofo muito mais afeito a este potencial criativo ilimitado

do intelecto seria o papel fundamental na criaccedilatildeo de sentido a que este se entrega quando

liberto da necessidade de dissimular Ou seja mais do que propiciar a manutenccedilatildeo do

homem por meio de uma crescente falsificaccedilatildeo da realidade segundo as necessidades da

ciecircncia o intelecto teria surgido pela necessidade do homem de sentido

Em comparaccedilatildeo agrave necessidade humana de sentido o proacuteprio palaacutecio da ciecircncia

visto de um ponto de vista teoacuterico como a maior realizaccedilatildeo da humanidade seria apenas

uma ocupaccedilatildeo secundaacuteria do intelecto Assim a este palaacutecio conceitual corresponderia a

negaccedilatildeo da realidade poeacutetica inerente agrave existecircncia humana Mais do que constituir-se no

proacuteprio sentido para o homem o palaacutecio da ciecircncia seria visto como uma prisatildeo

momentacircnea para o intelecto como uma muleta para o homem como uma falsificaccedilatildeo

necessaacuteria agrave sobrevivecircncia e nada mais

Aquele enorme entablamento e andaime de conceitos sobre o qual ohomem necessitado se pendura e se salva ao longo da vida eacute para ointelecto tornado livre apenas um cadafalso e um brinquedo para seusmais audaciosos artifiacutecios (hellip) ele entatildeo revela que natildeo necessitadaqueles expedientes da indigecircncia e que agora natildeo eacute conduzido porconceitos mas por intuiccedilotildees (WLVM sectI paacuteg 49)

Reaparece aqui a ideia comum ao Nascimento da Trageacutedia de que a arte e natildeo a

ciecircncia seria a verdadeira atividade inerente ao potencial criativo humano Ou seja ao

afirmar que na criaccedilatildeo de mitos e produccedilotildees artiacutesticas o intelecto natildeo eacute conduzido por

conceitos mas por intuiccedilotildees e que nisso consistiria sua libertaccedilatildeo Nietzsche reafirma uma

valorizaccedilatildeo da arte comum agravequele periacuteodo de sua produccedilatildeo filosoacutefica Embora natildeo nomeie

os partidos eacute impossiacutevel natildeo relacionar os lados em disputa com os representantes de duas

formas de vida jaacute apresentados em sua obra de estreia o racionalista socraacutetico e o homem

128

traacutegico68 Assim em passagens que parecem retomar o tema fundamental de O Nascimento

da Trageacutedia a contraposiccedilatildeo entre o homem intuitivo grego e o cientista desenganado pela

ciecircncia Nietzsche passa a descrever nas passagens subsequentes do ensaio de que modo a

criaccedilatildeo contiacutenua de ilusotildees favoreceu o homem grego antigo

Analisado a luz das reflexotildees posteriores do filoacutesofo O Nascimento da

Trageacutedia passa a ser interpretado como um experimento em que as oacuteticas da arte e da

ciecircncia satildeo confrontadas com a vida como instacircncia de valoraccedilatildeo suprema Na medida em

que por meio de uma espeacutecie de confronto entre as oacuteticas da arte e da ciecircncia o autor

consegue oferecer um questionamento do valor da ciecircncia antecipa a conclusatildeo de que a

crenccedila no valor inquestionaacutevel da ciecircncia estaria fundamentado em uma compreensatildeo

eminentemente moral da realidade Assim o problema do valor da ciecircncia estaria fundado

em uma interpretaccedilatildeo moral que camufla a necessidade do questionamento verdadeiro o

problema da ciecircncia como valor

A ciecircncia apenas consegue se impor como valor segundo Nietzsche porque nesta

avaliaccedilatildeo parte-se de um princiacutepio moral Do ponto de vista de um princiacutepio vital no

entanto a ciecircncia se mostraria como algo inferior agrave arte Desta maneira antecipando um

tema que seraacute tratado em profundidade em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche

teria compreendido jaacute em O Nascimento da Trageacutedia que a valorizaccedilatildeo da verdade em

detrimento da mentira atende a uma determinaccedilatildeo de ordem moral

Ora se a verdade eacute concebida no Ensaio sobre Verdade e Mentira como uma opccedilatildeo

metafiacutesica que tornou-se objeto de estima isto apenas teria se dado porque a tradiccedilatildeo

metafiacutesica parte de uma avaliaccedilatildeo moral decadente a mesma moral que em sua revisatildeo de

O Nascimento da Trageacutedia eacute associada pelo autor a uma consideraccedilatildeo cristatilde da realidade

A vontade de verdade ou seja o sincero desejo de verdade natildeo se determinaria por uma

melhor apreciaccedilatildeo teoacuterica Menos ainda por uma recusa teoacuterica da ilusatildeo Pelo contraacuterio a

vontade de verdade seria consequecircncia de um apego moral agrave verdade e uma recusa moral

agraves consequecircncias imorais que podem provir da mentira Assim uma dimensatildeo moral que

sustenta a valorizaccedilatildeo da ficccedilatildeo da ciecircncia em detrimento da ficccedilatildeo da arte justamente o

68 Em uma visatildeo retrospectiva de sua obra de estreia tanto em Ecce Homo no primeiro paraacutegrafo da seccedilatildeosobre O Nascimento da Trageacutedia quanto no prefaacutecio tardio para aquela obra escrito em 1886 e publicadojunto agrave traduccedilatildeo em estudo sob o nome de ldquoTentativa de autocriacuteticardquo paraacutegrafo segundo Nietzsche se refereaos grandes temas daquele livro como sendo o confronto entre uma visatildeo de mundo racionalista otimista euma visatildeo de mundo traacutegica dionisiacuteaca que considera o pessimismo da vida como um tocircnico para a vida

129

que vem agrave tona quando a primeira eacute examinada pelo meacutetodo perspectivista do jogo de

oacuteticas69 ensaiado em O Nascimento da Trageacutedia seria a grande redescoberta de Nietzsche

quando reflete retrospectivamente acerca daquela obra

Com base nesta releitura criacutetica da concepccedilatildeo de ciecircncia sustentada em O

Nascimento da Trageacutedia o otimismo teoacuterico passa a ser interpretado como a tentativa de

por meio de uma intenccedilatildeo moral elevar a valoraccedilatildeo inerente a ilusotildees como verdade e

ciecircncia O problema seria que estas mesmas verdade e ciecircncia por si mesmas teriam

pouco valor quando avaliada em relaccedilatildeo a sua adequaccedilatildeo agrave realidade No entanto por meio

de uma associaccedilatildeo com a moral o domiacutenio teoacuterico se sobrepotildee agrave proacutepria natureza como

posiccedilatildeo de maior valor

A segunda parte do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sustentar-se nesta

mesma posiccedilatildeo em que as ilusotildees da ciecircncia satildeo tomadas como tendo sido erigidas como

novos valores em detrimento das ilusotildees da arte Permanece no ensaio a suspeita de que

apenas com base em uma interpretaccedilatildeo moral a ciecircncia poderia ser pensada como superior

agrave arte Consideradas do ponto de vista de seu valor para a vida no entanto com base em

uma esfera de avaliaccedilatildeo diferente da esfera de avaliaccedilatildeo da moral decadente Nietzsche

pensa que os produtos da arte deveriam ser tomados como objetos de maior valor porque

reconhecem-se como produtos de uma atividade criativa mais proacutexima da realidade

individual

Com isso o autor confronta duas formas de vida diametralmente opostas do ponto

de vista da vida e da sobrevivecircncia De um lado o homem da verdade o pesquisador de

outro o homem intuitivo o artista traacutegico Atraveacutes da apresentaccedilatildeo do confronto entre o

homem intuitivo e o homem da verdade o filoacutesofo parece refletir sobre o confronto de

duas eacutepocas diferentes a eacutepoca grega claacutessica e a dele proacuteprio Nesta comparaccedilatildeo a

realidade da Greacutecia do periacuteodo claacutessico aparece como o feliz produto de uma consideraccedilatildeo

artiacutestica da realidade de uma eacutepoca em que o homem se deixava guiar por belas imagens

de uma realidade vista sob a oacutetica da criaccedilatildeo artiacutestica e dos mitos

69 A ideia do jogo de oacuteticas eacute uma contribuiccedilatildeo de Dalla Vechia em sua tese de doutoramento (VECHIA2005 Paacuteg 84)

130

Haacute eacutepocas em que o homem racional e o homem intuitivo colocam-selado a lado um com medo da intuiccedilatildeo outro ridicularizando a abstraccedilatildeoo uacuteltimo eacute tatildeo irracional quanto o primeiro eacute inartiacutestico Ambos contamimperar sobre a vida este sabendo encarar as mais baacutesicas necessidadesmediante precauccedilatildeo sagacidade e regularidade aquele como ldquoheroacuteisobre-exaltadordquo passando ao largo de tais necessidades e tomando porreal somente a vida dissimulada em aparecircncia e beleza Onde o homemintuitivo tal como na antiga Greacutecia alguma vez manipula suas armasmais violentamente e mais vitoriosamente do que seu oponente entatildeosob circunstacircncias favoraacuteveis pode tomar forma uma cultura e fundar-seo domiacutenio da arte sobre a vida aquela dissimulaccedilatildeo aquele repuacutedio agraveindigecircncia aquele brilho das intuiccedilotildees metafoacutericas e em linhas geraisaquela imediatez do engano seguem todas as manifestaccedilotildees de tal vidaNem a casa nem a maneira de andar nem a vestimenta nem a jarra deargila evidenciam que foi a necessidade que os inventou tudo se passacomo se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime eum oliacutempico desanuviamento bem como uma espeacutecie de jogo com aseriedade (WLVM sectI paacutegs 50-51)

Em sua reflexatildeo acerca da Greacutecia claacutessica o autor nos apresenta a opccedilatildeo entre a

dependecircncia do mundo conceitual da verdade e a superabundacircncia de vida advinda da

atividade criativa do intelecto Deste modo esta parte do ensaio corresponde ao confronto

entre duas formas de saberes distintas o conhecimento intuitivo e o conhecimento

racional70 Na leitura nietzschiana do problema do conhecimento considerando-se

especialmente o papel das construccedilotildees poeacuteticas na filosofia e na ciecircncia a forccedila criativa

que origina as metaacuteforas aparece como um elemento ineliminaacutevel da constituiccedilatildeo humana

Esta forccedila criativa atuaria tanto no homem da verdade quanto no poeta e criador de mitos

Aqui nos deparamos com a aridez da ciecircncia diante do potencial criativo inerente ao

indiviacuteduo que toma como suporte as metaacuteforas intuitivas Esta imagem do confronto entre

modos de vida antagocircnicos divididos pela sua postura diante dos produtos do intelecto

fecha o ensaio

70 A distinccedilatildeo nietzschiana entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento racional que encontramosfortemente representado no ensaio parte da distinccedilatildeo schopenhaueriana das duas formas de saberes nointerior do princiacutepium individuationis que satildeo apresentados por Crawford em sua obra sobre as origens dateoria nietzschiana da linguagem no capiacutetulo dois acerca de Schopenhauer ldquoO sujeito ou o principiumindividuationis tinha dois modos de conhecimento o conhecimento da percepccedilatildeo (ou conhecimentointuitivo) e o conhecimento abstrato da percepccedilatildeo ou seja conhecimento racional O que pode existir fora doprincipium individuationis a coisa em si natildeo pode nunca ser conhecida (embora posteriormente em minhadiscussatildeo descobriremos que Schopenhauer afirma identificar a essecircncia da coisa em si mesma sob o nomeda vontade) Dentro das representaccedilotildees o sujeito pode apenas conhecer suas percepccedilotildees e o que eleconceitualiza e pensa acerca destas percepccedilotildees como objetos Assim representaccedilotildees significam maisprecisamente ndash objeto para o sujeito Poreacutem o sujeito ele mesmo eacute tambeacutem necessariamente apenas objetopara sua proacutepria consciecircncia que conhecerdquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 24)

131

Enquanto o homem conduzido por conceitos e abstraccedilotildees apenas rechaccedilapor meio destes a infelicidade sem granjear para si mesmo umafelicidade a partir das abstraccedilotildees enquanto ele se esforccedila ao maacuteximo paralibertar-se da dor o homem intuitivo situado no interior de uma culturajaacute colhe de suas intuiccedilotildees aleacutem da defesa contra tudo que eacute mal umailuminaccedilatildeo contiacutenua e caudalosa juacutebilo redenccedilatildeo Por certo sofre commais intensidade quando sofre sim sofre ateacute com mais assiduidadeporque natildeo sabe aprender a partir da experiecircncia voltando a cair sempreno mesmo buraco em que jaacute havia caiacutedo Ele eacute assim tatildeo irracional nosofrimento quanto na felicidade grita alto e natildeo dispotildees de qualquerconsolo Quatildeo diferentemente ali se coloca sob o mesmo reveacutes o homemestoico versado na experiecircncia que se governa atraveacutes de conceitos Eleque de mais a mais soacute busca probidade verdade liberdade frente aosenganos e proteccedilatildeo contra as incursotildees ardilosas executa agora nainfelicidade a obra-prima da dissimulaccedilatildeo tal como aquele na felicidadenatildeo carrega um rosto humano trecircmulo e movente mas uma espeacutecie demaacutescara com digna simetria de traccedilos natildeo grita e tampouco muda suavoz uma vez sequer Se uma vultosa nuvem de chuva desaacutegua sobre eleenrola-se em seu manto e passo a passo caminha lentamente paradebaixo dela (WLVM sectI paacutegs 51-52)

Se levarmos a seacuterio a hipoacutetese de que Nietzsche se utiliza dessa imagem para

expressar uma reflexatildeo acerca de sua eacutepoca percebe-se que esta aparece como sendo

marcada pelo cientificismo e pessimismo inerentes agrave concepccedilatildeo cientiacutefica da realidade O

que ocorre agora quando confrontados o homem das intuiccedilotildees e homem da verdade o

homem racional O homem de ciecircncia aparece como uma forma mais dependente das

construccedilotildees conceituais do que o homem comum na medida em que os conceitos satildeo sua

proacutepria vida Para o homem da verdade a construccedilatildeo do edifiacutecio da ciecircncia eacute sua missatildeo

no mundo Missatildeo aacuterdua sem duacutevida na medida em que ele eacute constantemente assaltado

por ldquoverdadesrdquo muito dispares das verdades cientiacuteficas lhe satildeo inspiradas pela mesma

natureza a que deve toda sua construccedilatildeo teoacuterica

Ao contraacuterio do homem comum que utiliza-se dos conceitos de uma forma

pragmaacutetica como ferramentas para ancoraacute-lo na existecircncia coletiva o homem que se

compraz nas metaacuteforas intuitivas utiliza-se do intelecto com mais liberdade O intelecto

nesses casos atuaria como um artista que em curtos intervalos de liberdade goza seus

dotes artiacutesticos com mais prazer possibilitando a fruiccedilatildeo de se deixar enredar pelas ilusotildees

sempre que estas dissimulaccedilotildees da realidade podem ser desfrutadas sem prejuiacutezo agrave

sociabilidade Nestes casos nessa atividade livre do homem que se deixa levar por sua

natureza poeacutetica natildeo haacute restriccedilotildees para a forccedila criativa do intelecto O uso que faz das

132

mesmas metaacuteforas e metoniacutemias que possibilitam a ciecircncia eacute mais rico porque natildeo eacute

regulado por nenhuma necessidade de sobrevivecircncia da qual liberta-se o intelecto nessa

atividade

Em oposiccedilatildeo agrave atividade segundo a qual o intelecto criava as ilusotildees necessaacuterias agrave

sociabilidade condicionado pela pressatildeo da sobrevivecircncia sob as quais o homem atuava no

sentido de deturpar a realidade ou seja deformaacute-la e moldaacute-la para seu benefiacutecio agora

ele a dissimula a embeleza de maneira conscientemente mentirosa A distinccedilatildeo entre

deturpaccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo aqui eacute assinalada pelo fato de que a consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto difere fundamentalmente de uma consideraccedilatildeo dos produtos do

intelecto que natildeo os compreende como ilusotildees No caso em que o homem intuitivo

reconhece suas criaccedilotildees como algo falso natildeo se trata de mentira como falsificaccedilatildeo mas

como adereccedilo como dissimulaccedilatildeo portanto Assim para o autor do ensaio a mentira da

arte e do mito se diferenciariam da mentira da ciecircncia pela consciecircncia da falsidade dos

produtos do intelecto em contraposiccedilatildeo agrave aridez da ciecircncia que toma suas construccedilotildees

como estando relacionadas agrave verdade

O homem da ciecircncia assim confronta uma posiccedilatildeo delicada Na medida em que

mesmo quando as verdades poeacuteticas e mitoloacutegicas confrontam seu conhecimento da

realidade conceitual natildeo poderia renunciar a esta natureza criativa Pois a renuacutencia desta

forccedila plasmadora de metaacuteforas invalidaria o proacuteprio palaacutecio de conceitos que tambeacutem

deve sua existecircncia a ela Assim ele eacute forccedilado a contemplar as verdades criadas como

formas de dissimulaccedilatildeo do real verdades cuja similaridade com as verdades cientiacuteficas

recusa-se a ver pois natildeo pode identificar o aspecto conscientemente enganoso nas

verdades cientiacuteficas Assim acometido por esta influecircncia de seu potencial criativo o

homem da verdade resistiria a tomar a ciecircncia tambeacutem como mito e criaccedilatildeo artiacutestica sem

no entanto conseguir diferenciaacute-las de maneira definitiva Mais fortemente entatildeo este se

apegaria ao mito da ciecircncia

133

3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor

O niilismo aparece apenas de forma fugidia entre os fragmentos poacutestumos do

periacuteodo intermediaacuterio da filosofia nietzschiana71 O proacuteprio Nietzsche demonstrou ter

consciecircncia do quatildeo tarde esta concepccedilatildeo problemaacutetica se torna presente em seu

pensamento quando afirma em um fragmento poacutestumo pertencente ao seu uacuteltimo periacuteodo

de produccedilatildeo ldquoSomente tarde tem-se coragem para aquilo que realmente se sabe Entendi

somente haacute pouco que eu fui desde o fundo ateacute aqui niilistardquo (KSA XII 9[123]) Ainda no

mesmo fragmento o filoacutesofo aponta para uma interpretaccedilatildeo de sua compreensatildeo do

niilismo como um pensamento da perda de valor dos valores fundamentais motivo porque

identifica sua proacutepria reflexatildeo como indiacutecio de um pensamento que carecia de metas falta

que foi disfarccedilada pela incriacutevel energia com que teria se dedicado a atingir aquilo que

enxergava como metas

A precariedade de fontes textuais na obra publicada de certa forma constitui uma

limitaccedilatildeo da compreensatildeo de um conceito tatildeo importante cuja interpretaccedilatildeo permanece

sempre como um fragmento do que tal concepccedilatildeo poderia ter significado uma perspectiva

limitada diante das possibilidades a que seu criador poderia tecirc-lo elevado Tamanha a

escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada que acreditamos o que se encontra

entre estas natildeo permitiria uma caracterizaccedilatildeo adequada desta concepccedilatildeo nietzschiana

Ainda mais grande parte do significado do niilismo nietzschiano estaacute ligado agrave dificuldade

71 A primeira apariccedilatildeo registrada do termo ldquoNiilismordquo ocorre em uma correspondecircncia do filoacutesofo de 1881com Heinrich Koumlsenlitz na qual o filoacutesofo escreve ldquoIch bedarf aller Arten Gesundheit mdash es ist mir etwas zutief inrsquos Herz gegangen dieser bdquoherzbrecherische Nihilismusldquo Nun bleiben wir tapfer Treugesinnt F Nldquo Acredibilidade desta carta no entanto eacute questionaacutevel uma vez que teria sido alterada em 1888 Um ensaiopreacutevio de um aforismo que mais tarde seria trabalhado pelo autor aparece em 1882 no qual estaacute registradobdquoDie Freunde des Lebens Nihilismus als kleines Vorspiel Unmoumlglichkeit der Philosophie Wie derBuddhismus unproduktiv und gut macht so wird auch Europa unter seinem Einfluszlig muumlde Die Guten dasist die Ermuumldungldquo (NF FP 1882 2 [4]) Este registro eacute importante porque nele apesar de sua brevidade jaacutese percebem elementos que mais tarde o filoacutesofo relacionaraacute adequadamente com o niilismo Outro registrodo termo naquele ano eacute feito em bdquoAlle Art von wahnsinniger Entartung houmlherer Naturen (zB Nihilismus)kommt an ihn heran Zarathustra 2 mdash bdquodie Lehre der ewigen Wiederkehrldquo mdash zunaumlchst zerdruumlckend fuumlr dieEdleren scheinbar das Mittel sie auszurotten mdash denn die geringeren weniger empfindlichen Naturenbleiben uumlbrigldquo (NF FP 1884 27 [23]) A partir de 1885 o termo torna-se bastante frequente e jaacute seexpressa com alguma clareza em sua determinaccedilatildeo conceitual

134

encontrada pelo filoacutesofo em abordar este tema Ou seja a proacutepria relutacircncia nietzschiana

em abordar tema tatildeo profundo eacute um sinal de que o autor natildeo encontrou em seu periacuteodo

produtivo meio de expressatildeo adequado para tatildeo grande concepccedilatildeo72

Ao julgar como vaacutelido para a discussatildeo do pensamento nietzschiano apenas o que o

filoacutesofo publicou ou seja o que seria representativo de seu pensamento concreto amputa-

se a dificuldade inerente agrave complexidade e variedade de significados de seus escritos

deixa-se de lado o fato de que o proacuteprio Nietzsche parece natildeo ter encontrado uma forma

adequada de tratar alguns dos temas que aborda Assim a proacutepria tentativa de abordar o

niilismo apenas com base nestas raras passagens constituiria uma deturpaccedilatildeo de seu

sentido

Apesar da vaga referecircncia ao niilismo na obra publicada natildeo permitir uma

caracterizaccedilatildeo adequada deste conceito esta referecircncia nos potildee em contato com uma

concepccedilatildeo que julgamos fundamental para a interpretaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo de

conhecimento pelos motivos que seratildeo apresentados nesse capiacutetulo Entatildeo como

proceder Ora se a ausecircncia de referecircncias na obra publicada nesse como em outros temas

da filosofia nietzschiana apresenta-se como limite interpretativo entatildeo concepccedilotildees

fundamentais de seu periacuteodo maduro se perderiam posto que este periacuteodo eacute interrompido

sem aviso preacutevio pela doenccedila de Nietzsche Assim percebemos que tal ausecircncia de

referecircncias pode e deve ser remediada pelo uso dos escritos poacutestumos do filoacutesofo

72 Acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte de sua obra fundamental que natildeo pode vir a lume por contade seu colapso mental ao niilismo Temos notiacutecia dessa obra fundamental em Genealogia da Moral ldquoBastaBasta Deixemos essas curiosidades e complexidades do espiacuterito moderno nas quais haacute tanto para rir quantopara aborrecer-se pois nosso problema o problema da significaccedilatildeo do ideal asceacutetico pode dispensaacute-las ndashque tem ele a ver com o hoje e o ontem Tais coisas seratildeo por mim tratadas em outro contexto com maiorprofundidade e severidade (sob o tiacutetulo de lsquoHistoacuteria do Niilismo europeursquo numa obra que estou preparandoA vontade de poder Ensaio de transvaloraccedilatildeo de todos os valores)rdquo (GMGM III sect27) Como se vecircNietzsche anuncia a pretensatildeo de tratar do tema do niilismo em uma obra futura que foi abandonada emmeio a sua preparaccedilatildeo Apoacutes o abandono desse projeto monumental o filoacutesofo decidiu aproveitar suas notasna composiccedilatildeo de um projeto mais modesto um livro possivelmente intitulado Versuch einer Umwertungaller Werte (Tentativa de Transvaloraccedilatildeo de todos os Valores) tiacutetulo que encontra-se as vezes na posiccedilatildeoprincipal as vezes como subtiacutetulo em diversos rascunhos Esta obra seria composta de quatro livros cadaqual contendo quatro ensaios dos quais apenas O Anticristo veio a ser escrito acompanhado do prefaacutecio Noentanto em um dos primeiros esforccedilos de popularizar a obra nietzschiana Elisabeth Foster-Nietzsche a irmatildedo filoacutesofo solicitou a Peter Gast uma organizaccedilatildeo dos fragmentos dos projetos abandonados que forampublicados sob o tiacutetulo de Der Wille zur Macht Estes fragmentos passaram por vaacuterias ediccedilotildees sempre comprofundos questionamentos acerca da autenticidade das notas da ordem em que foram postos assim como deseu papel no interior da obra nietzschiana Estes questionamentos vem dividindo os comentadores da obranietzschiana desde a publicaccedilatildeo destes textos

135

Por outro lado interpretar o niilismo sem considerar o fato de que aqui estamos

diante de uma hipoacutetese natildeo desenvolvida em sua integridade nos faria perder de vista a

complexidade desta concepccedilatildeo Concepccedilatildeo para a qual como afirmamos o proacuteprio

Nietzsche natildeo julgou encontrar uma forma adequada ou definitiva de abordagem Assim

devemos partir do pressuposto de que dizer o que Nietzsche pretendia expressar quando se

referia ao niilismo significa muitas vezes apenas isso interpretar o que ele poderia querer

dizer mas natildeo disse Nesse sentido o que aqui se pretende como uma correta compreensatildeo

desse importante conceito ao qual acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte daquela

que considerou sua obra fundamental73 depende fortemente da interpretaccedilatildeo de seus

fragmentos poacutestumos

Acreditamos que este uso quando pautado por uma reflexatildeo criacutetica acerca da

limitaccedilatildeo de tais textos oferece uma leitura mais aproximada do pensamento nietzschiano

do que a mera exclusatildeo do tema por falta de referecircncias poderia oferecer Esta reflexatildeo

criacutetica por sua vez deve pautar-se pela consciecircncia de que apesar de nos propormos a

amenizar a escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada recorrendo aos

fragmentos poacutestumos estamos cientes de que aqui se trata de uma concepccedilatildeo inacabada

que eacute apresentada atraveacutes de textos que o autor natildeo julgou prontos para a publicaccedilatildeo

Mas por que nos debruccedilarmos sobre o niilismo quando o objeto de nosso estudo eacute

o perspectivismo nietzschiano Acreditamos que uma tentativa de interpretaccedilatildeo do niilismo

nietzschiano apesar de natildeo poder reclamar para si o status de interpretaccedilatildeo correta

sobretudo por conta da multiplicidade de sentidos possiacuteveis para o termo niilismo na obra

nietzschiana tem uma vantagem fundamental em nossa leitura A proacutepria incerteza acerca

desse tema se mostra como objeto de experimentaccedilatildeo por meio da qual seria possiacutevel ler

os escritos nietzschianos como a manifestaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo afirmativa do niilismo

que por sua vez se relacionaria com uma concepccedilatildeo afirmativa do perspectivismo No

73 Obra que como foi mencionado na nota anterior natildeo pode vir a lume por conta de seu colapso doadoecimento de Nietzsche Poreacutem entre os poacutestumos de 1888 constam diversos planos para A vontade dePotecircncia tentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valores que preenchem diversas anotaccedilotildees de Nietzsche eque levam o niilismo seriamente em consideraccedilatildeo notadamente em (NFFP 1887 9[127]) e (NFFP 1885-1887 9[164]) Em (NFFP 1887 9[127]) Nietzsche faz constar a seguinte ordem de capiacutetulos em um esboccedilopara a obra em questatildeo O advento do niilismo que se dividiria em A loacutegica do niilismo A autosuperaccedilatildeo doniilismo e Superadores e Superados No segundo fragmento mencionado sob o tiacutetulo A vontade de poder esubtiacutetulo Tentativa de uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Nietzsche faz constar uma ordem de livrossendo o primeiro intitulado O niilismo como consequecircncia dos valores supremos existentes ateacute agora osegundo intitulado Criacutetica dos valores supremos existentes ateacute agora o terceiro A autosuperaccedilatildeo do niilismo eo quarto Os superadores e os superados

136

mais se reconhecemos no tratamento nietzschiano de temas como a verdade e o

conhecimento a permanecircncia de um questionamento acerca do valor destas concepccedilotildees

natural que nos questionemos acerca das consequecircncias teoacutericas da perda de valor destas

segundo a loacutegica proacutepria do niilismo descrita por Nietzsche

Na uacuteltima fase de seu pensamento Nietzsche entende os valores morais associados

a uma concepccedilatildeo moral de ciecircncia e conhecimento como valores de decadecircncia Segundo

esta compreensatildeo o filoacutesofo passa a interpretar os valores morais como formas negativas

em relaccedilatildeo agrave vida Este julgamento do valor negativo destas concepccedilotildees em relaccedilatildeo agrave vida

se daacute no contexto de uma interpretaccedilatildeo em que a vida mesma eacute percebida como uacuteltima

forma de se instituir valores

A reflexatildeo nietzschiana neste ponto se volta contra tudo o que a tradiccedilatildeo entenderia

como sendo o homem e sua missatildeo sua finalidade Aqui a racionalidade associada pelo

autor agraves condiccedilotildees de formaccedilatildeo e ascensatildeo dos valores da deacutecadence74 eacute posta em cheque

pela consideraccedilatildeo do homem como ser de criaccedilatildeo Para o filoacutesofo se o conhecimento ainda

se reconhece como atividade que define o humano conhecer natildeo eacute mais entendido como a

procura por explicaccedilotildees mas como o processo de criaccedilatildeo de valor Estes valores criados

pelo homem em sua atividade interpretativa seriam os fundamentos natildeo apenas do

conhecimento mas na medida em que constituem para o homem sua realidade do proacuteprio

homem Neste contexto aparecem as tentativas nietzschianas de vincular ao conhecimento

agrave ousadia da criaccedilatildeo agrave coragem de empreender experimentos com o pensamento com o

proacuteprio niilismo arriscando tentativas de superaccedilatildeo de toda negatividade

Mediante esta interpretaccedilatildeo nos deparamos com uma leitura do perspectivismo

nietzschiano em que este deixa de ser interpretado como concepccedilatildeo puramente criacutetica

tornando-se uma concepccedilatildeo criativa Ou seja enquanto expressatildeo afirmativa que surge de

uma profunda criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento o perspectivismo

nietzschiano relaciona-se com uma forma afirmativa de niilismo tornando-se tambeacutem uma

forma afirmativa de perspectivismo

74 Em um fragmento poacutestumo da primavera de 1888 Nietzsche diraacute ldquoO niilismo natildeo eacute causa mas apenas aloacutegica da deacutecadencerdquo (NFFP XII 14 [86])

137

31 O niilismo como reflexo da crise dos valores morais

Tratar do tema do niilismo nietzschiano implica em reconhecer como uma

dificuldade inicial o fato desta concepccedilatildeo pertencer de forma necessaacuteria aos planos

filosoacuteficos interrompidos por Nietzsche De partida eacute necessaacuterio reconhecer que com base

na escassa base textual disponiacutevel natildeo se pode pretender afirmar categoricamente o que o

autor pretendia dizer quando utilizava a expressatildeo niilismo75 Se a escassez de referecircncias

na obra publicada do autor pode lanccedilar duacutevidas acerca da importacircncia desta concepccedilatildeo

para a compreensatildeo do pensamento nietzschiano esta duacutevida eacute amenizada pelo rico

material produzido pelos comentaacuterios da obra nietzschiana76 Do mesmo modo o peso que

o autor atribui ao conceito em questatildeo quando a ele se refere em sua obra parece constituir

evidecircncia da grande importacircncia dessa concepccedilatildeo

As vagas apariccedilotildees do niilismo mesmo nos escritos poacutestumos refletem uma ideia

que retorna com frequecircncia na mente do filoacutesofo mas para a qual este natildeo parece encontrar

um modo de expressatildeo que decirc conta de sua grandeza Entre estes escritos essa apariccedilatildeo se

daacute com frequecircncia na forma de uma previsatildeo o anuacutencio de um grande perigo para a

humanidade Ao niilismo estaria vinculado um processo de aprofundamento para a

humanidade uma linha que apoacutes cruzada mudaria completamente a realidade e o proacuteprio

ser humano Assim por exemplo o niilismo aparece em um fragmento de marccedilo de 1887

carregado de fatalidade e de prenuacutencio de cataacutestrofe

Grandes coisas exigem que delas nos calemos ou que delas falemos comgrandeza grandeza a saber cinicamente e com inocecircncia O que eunarro eacute a histoacuteria dos dois proacuteximos seacuteculos Descrevo o que vem o que

75 A compreensatildeo nietzschiana do niilismo eacute profundamente marcada pela literatura russa de onde a maioriados comentaristas acredita que o autor teria entrado em contato com o termo Sabe-se que Dostoieacutevski foium autor importante para Nietzsche Um bdquoPsychologeldquo segundo a expressatildeo do fiacuteloacutesofo (GDCI I sect46) aquem Nietzsche leu e costumava recomendar a leitura (Vide correspondecircncia do filoacutesofo notadamenteBVN-1887798 BVN-1887800 BVN-1887812 BVN-1887814 BVN-1887845 BVN-18881130 BVN-18881134 BVN-18881151 BVN-18881160 Ver tambeacutem (WA CW Epilog) (AC AC I sect31)) Noentanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que o utiliza para caracterizar um de seuspersonagens em seu romance Pais e Filhos 76 De acordo com Kaulbach Nietzsche foi o responsaacutevel por abrir os olhos de sua geraccedilatildeo (e das vindouras)para a experiecircncia limite que atravessa o homem moderno ndash o niilismo ldquoEsta experiecircncia consiste nadesilusatildeo da feacute do povo na tradiccedilatildeo platocircnico-cristatilde de um lsquomundo realrsquo na razatildeo do Ser fundada no Sercujo sentido pode ser descoberto pelo homem []rdquo (KAULBACH 1990 p 210)

138

natildeo poderaacute deixar de vir o advento do niilismo Esta histoacuteria jaacute pode sercontada pois eacute a necessidade mesma que estaacute aqui em obra Este futurofala jaacute atraveacutes de cem signos este destino anuncia-se em toda parte paraesta muacutesica do futuro todos os ouvidos jaacute estatildeo atentos (NFFP 188711[411])

Como se vecirc no fragmento em questatildeo Nietzsche considera a aproximaccedilatildeo do

niilismo mais profundo como uma certeza como algo que se anuncia jaacute por meio de ldquocem

signosrdquo Embora seja apresentado como risco a este natildeo eacute vinculada nenhuma forma de

resistecircncia nenhuma possibilidade de evitaacute-lo posto que em seu progresso seria a proacutepria

necessidade quem opera O mesmo tom premonitoacuterio o anuacutencio da aproximaccedilatildeo de uma

grande crise aparece por vezes na obra publicada No proacutelogo de A Genealogia da Moral

por exemplo o filoacutesofo pensa o niilismo como uma ameaccedila iminente como o grande

perigo que se acerca da humanidade

Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim umadesconfianccedila cada vez mais radical um ceticismo cada vez maisprofundo Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para ahumanidade sua mais sublime seduccedilatildeo e tentaccedilatildeo ndash a quecirc ao nada ndash precisamente nisso enxerguei o comeccedilo do fim o ponto morto o cansaccediloque olha para traacutes a vontade que se volta contra a vida a uacuteltima doenccedilaanunciando-se terna e melancoacutelica eu compreendi a moral da compaixatildeocada vez mais se alastrando capturando e tornando doentes ateacute mesmo osfiloacutesofos como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietantecultura europeia como o seu caminho sinuoso em direccedilatildeo a um novobudismo a um budismo europeu a um ndash niilismohellip (GMGM proacutelogosect05)

Como uma forma europeia de budismo o que aqui significa como uma forma

europeizada de negaccedilatildeo da realidade o niilismo se expressaria como a manifestaccedilatildeo de um

profundo cansaccedilo contra o qual Nietzsche se opunha quase que de forma instintiva Do

mesmo modo o filoacutesofo via como avanccedilo da ameaccedila niilista a expansatildeo da moral da

compaixatildeo que alcanccedilava ldquoateacute mesmo os filoacutesofosrdquo como o grande sintoma que apenas

ele pensava haver identificado77 Natildeo haacute duacutevidas de que aqui o filoacutesofo identifica no

77 Nietzsche pensa a moral da compaixatildeo como uma novidade no acircmbito da moral que para o autor semprehavia sido estabelecida com base na negaccedilatildeo dos valores que tornam uma forma de vida possiacutevel quepossibilitam seu crescimento e expansatildeo Assim na continuaccedilatildeo da passagem citada Nietzsche identifica emoutros filoacutesofos uma certa desconfianccedila com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo como virtude ldquoPois essa modernapreferecircncia e superestimaccedilatildeo da compaixatildeo por parte dos filoacutesofos eacute algo novo justamente sobre o natildeo-valor

139

niilismo o grande adversaacuterio de sua filosofia assim como o fundamento da sua criacutetica agraves

concepccedilotildees filosoacuteficas que lhe cercam

Este posicionamento teoacuterico manifesto na maioria dos casos na forma de criacutetica agraves

concepccedilotildees estabelecidas foi entendido desde entatildeo como um ceticismo crescente que

foi posteriormente associado de forma definitiva com seu perspectivismo No entanto o

aparente ceticismo por traacutes de seu posicionamento seria apenas a manifestaccedilatildeo de um

criticismo crescente em relaccedilatildeo aos valores que fundamentam as ciecircncias e posiccedilotildees

filosoacuteficas dogmaacuteticas Natildeo seria esse ceticismo a renuacutencia em descobrir novas verdades o

que seria contraacuterio agrave concepccedilatildeo mesma de conhecimento em Nietzsche mas a perda de

crenccedila nas concepccedilotildees filosoacuteficas O ceticismo eacute usado aqui como manifestaccedilatildeo

fundamental de repuacutedio a tudo que era tido haacute eacutepoca de Nietzsche como ciecircncia e como

sabedoria Natildeo agrave sabedoria e a ciecircncia elas mesmas no entanto

O ceticismo de suas concepccedilotildees de juventude nos diz Nietzsche no comeccedilo do

proacutelogo teria crescido em oposiccedilatildeo a ldquoos instintos de compaixatildeo abnegaccedilatildeo sacrifiacuteciordquo os

quais o filoacutesofo entende que Schopenhauer teria idolatrado acima de todas as coisas

ldquodourado divinizado idealizadordquo (GMGM proacutelogo sect5) Assim o aparente ceticismo da

posiccedilatildeo nietzschiana natildeo se poderia confundir com uma renuacutencia com relaccedilatildeo a toda forma

de verdade Mas apenas como uma suspeita que se estende a todas as avaliaccedilotildees morais

esteacuteticas e filosoacuteficas de sua eacutepoca tomadas em sua leitura como expressotildees do niilismo

O primeiro valor que se torna objeto de criacutetica aqui a compaixatildeo aparece como

elemento constitutivo de uma moral que seduz para o nada e que eacute reproduzida pela

filosofia como expressatildeo de uma moralidade superior Ao identificar o niilismo como uma

tendecircncia para desvalorizar valores essa concepccedilatildeo desempenha um papel fundamental na

criacutetica nietzschiana da moralidade Criacutetica segundo a qual o niilismo que aparece para o

autor da genealogia como uma forma europeia de budismo eacute interpretada como uma

tendecircncia agrave supervalorizaccedilatildeo do nada camuflada na forma de uma adoraccedilatildeo da apoacutes a

morte

da compaixatildeo os filoacutesofos estavam ateacute agora de acordo Menciono apenas Platatildeo Spinoza La Rochefoucaulde Kant quatro espiacuteritos tatildeo diversos quanto possiacutevel um do outro mas unacircnimes em um ponto na poucaestima da compaixatildeordquo (GMGM proacutelogo sect05)

140

Por sua vez ao relacionarmos o que eacute dito aqui com o que o filoacutesofo apresenta em

seu Anticristo percebe-se uma certa continuidade Neste sentido a compaixatildeo aparece

naquela obra como princiacutepio moral que se propaga a outras esferas da atividade humana A

compaixatildeo teria se tornado assim elemento fundamental para a criacutetica dos valores morais

cristatildeos na medida em que ela eacute percebida como algo que expande sua zona de alcance a

todas as concepccedilotildees teoacutericas que se deixaram infectar pelo instinto teoloacutegico Motivo pelo

qual em O Anticristo Nietzsche afirma enxergar o instinto teoloacutegico em toda parte

(ACAC I sect09)

Por outro lado na medida em que a verdade aparece em sua leitura como um valor

fundado em uma concepccedilatildeo moral desde que a veracidade aparece aqui como

reverberaccedilatildeo da moralidade como expressatildeo mesma do desenvolvimento de uma forma de

moralidade as questotildees referentes agrave sua compreensatildeo da verdade e do conhecimento

comeccedilam a se relacionar com a dinacircmica proacutepria do niilismo Nessa leitura a veracidade a

exigecircncia da vontade de verdade que aparece aqui como consequecircncia da moralidade

ocasiona que a proacutepria interpretaccedilatildeo moral do mundo passa a ser vista como falsa ou seja

que os valores que suportam essa interpretaccedilatildeo perdem seus valores Como diz Araldi

Nietzsche afirma num fragmento do outono de 1887 que aldquoPotencializaccedilatildeo do valor do homemrdquo foi ateacute entatildeo obra dos meiosdisciplinadores da moral Entretanto entre as forccedilas engendradas pelamoral estaacute a veracidade que por fim descobre a falsidade subjacente agraveinterpretaccedilatildeo moral do mundo Eacute a proacutepria moral em suas raiacutezes imoraise natildeo-verdadeiras que deve desvendar a inverdade do processo O valorda moral poreacutem natildeo estaacute em seu grau de veracidade mas em possibilitara vida em ser antiacutedoto ao niilismo (Cf XII 5 [70]) (ARALDI 1998Paacutegs 78)

Ao pensar o valor da moral como sendo fundamentando na categoria de veracidade

o filoacutesofo abre a possibilidade de se pensar a necessidade de superaccedilatildeo do niilismo a partir

de seus valores como exigecircncia para a proposiccedilatildeo de uma nova forma de valoraccedilatildeo Nesse

processo a consciecircncia da falta de sentido no mundo da verdade na verdade mesma

desempenha papel fundamental Por isso entendemos que o niilismo nietzschiano

relaciona-se com o seu perspectivismo que tem na falta de sentido por traacutes da criaccedilatildeo de

um mundo da verdade assim como da distinccedilatildeo deste de um mundo das aparecircncias um

141

aspecto fundamental Do mesmo modo a identificaccedilatildeo dessa tendecircncia como aquilo que

alimentava sua duacutevida seu ceticismo indica que sua proacutepria concepccedilatildeo negativa em

relaccedilatildeo agrave verdade natildeo eacute isenta de um reconhecimento do niilismo como adversaacuterio

32 Os niilismos nietzschianos

Em uma das primeiras apariccedilotildees do termo entre os escritos poacutestumos nietzschianos

Nietzsche jaacute esboccedila uma reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da evoluccedilatildeo de uma

tendecircncia segundo a qual o niilismo eacute concebido ldquocomo um pequeno preluacutediordquo (NFFP

1882 2 [4]) que ldquoComo o budismo torna improdutivo e bomrdquo e que ldquoa Europa tambeacutem

estaacute sob sua influecircncia cansadardquo (NFFP 1882 2[4]) Em sua leitura o niilismo seria natildeo

um caso de exceccedilatildeo mas ldquoum estado normalrdquo (NFFP 1887 9[35]) um ldquoestado

intermediaacuterio patoloacutegicordquo (NFFP 1887 9 [35]) ou seja uma etapa decrescente de forccedila

no desenvolvimento da cultura de um povo na medida em que se generaliza a conclusatildeo

de que ldquonatildeo haacute nenhum sentido absolutordquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoas forccedilas

produtivas natildeo satildeo ainda suficientemente fortesrdquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoa

deacutecadenceacute ainda vacila e natildeo foi inventado ainda seus remeacutediosrdquo (NFFP 1887 9 [35])

Como a consciecircncia de uma ldquofalta de metardquo (NFFP 1887 9 [35]) como a

ausecircncia de resposta para a pergunta pelo ldquopor quecircrdquo o niilismo representa para o filoacutesofo

que ldquoos valores supremos se desvalorizamrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o que para Nietzsche

torna o niilismo algo ambiacuteguo (NFFP 1887 9 [35]) na medida em que a consciecircncia da

desvalorizaccedilatildeo dos valores supremos poderia implicar em duas atitudes uma permanecircncia

nos valores dados apesar da consciecircncia de sua falta de sentido ou a criaccedilatildeo de novos

valores Estas duas atitudes por sua vez enquanto condicionadas pela forccedila ou cansaccedilo do

niilista que se depara com os valores dados seriam aspectos fundamentais de duas formas

de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo Poreacutem mais do que duas formas

desconectadas de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo significariam dois estaacutegios

na dinacircmica proacutepria do niilismo que vai de seu surgimento a sua radicalizaccedilatildeo78 Posto

78 Araldi pensa os diferentes modos de apresentaccedilatildeo do niilismo na obra tardia o niilismo passivo oniilismo ativo e o niilismo completo como representaccedilotildees de diferentes momentos no processo dedesenvolvimento do niilismo Assim o comentador afirma ldquoEacute importante ressaltar entatildeo que o foco centraldas diversas caracterizaccedilotildees elaboradas na obra tardia estaacute no caraacuteter de processo do niilismo o qual

142

que para Nietzsche as diversas formas que o niilismo assume em sua obra mais do que

uma apresentaccedilatildeo de suas variaccedilotildees cumpririam a funccedilatildeo de determinar uma loacutegica de

superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo

Assim o filoacutesofo representa a possibilidade do niilismo se apresentar como ldquosigno

do poder ascendente do espiacuteritordquo o que nesta leitura significa que a atitude diante dos

valores poderia condicionar um niilismo ativo (NFFP 1887 9 [35]) Dessa forma ao

passo que ldquoa forccedila do espiacuterito poderia ter crescido tanto que as metas que tinha ateacute o

momento (lsquoconvicccedilotildeesrsquo artigos de feacute) lhe satildeo inadequadasrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o

niilismo pode tornar-se o primeiro estaacutegio na produccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do que eacute dado como insuficiente

Nesse sentido para Nietzsche mais do que uma convicccedilatildeo motivada por um

conhecimento superior ldquouma crenccedila de fato expressa em geral a coerccedilatildeo de condiccedilotildees de

existecircncia uma submissatildeo agrave autoridade de situaccedilotildees em que um ser prospera cresce

ganha poderrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o niilismo ativo representaria uma consciecircncia

ascendente do oder que rejeita o que eacute dado como sendo insuficiente Ou seja o autor

entende que todo ser prospera cresce e ganha poder de acordo com as condiccedilotildees que lhe

satildeo dadas e aceitas como crenccedilas Por sua vez a consciecircncia da vacuidade de sentido

dessas crenccedilas seria o niilismo mas a atividade de criaccedilatildeo de novos valores a partir da

consciecircncia dessa vacuidade de sentido seria o que determinaria uma forma ativa de

niilismo

Por sua vez o niilismo passivo o estaacutegio oposto ao niilismo ativo eacute caracterizado

por Nietzsche como ldquodecreacutescimo e retrocesso do poder do espiacuteritordquo como signo de

debilidade como sinal de esgotamento e cansaccedilo da vontade De tal forma que modo que

ldquoas metas e os valores existentes ateacute o momento satildeo inadequados e natildeo encontram creacuteditordquo

(NFFP 1887 9 [35]) Nesse sentido como sintoma de enfraquecimento da vontade e

cansaccedilo que impede a criaccedilatildeo de novos valores o niilismo passivo seria ainda signo de

ldquodissolvecircncia da proacutepria siacutentese entre valores e metasrdquo sobre as quais descansa toda cultura

forte (NFFP 1887 9 [35]) Nesse estado de cansaccedilo e perda de vivacidade da cultura

tudo o que eacute reconfortante tudo que anestesia passa para primeiro plano torna-se em

comporta uma gecircnese um transcurso e um acabamentordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 84)

143

valor por sob diferentes disfarces tratem-se de disfarces morais religiosos poliacuteticos ou

esteacuteticos

O niilismo passivo seria marcado como ldquoum signo de uma forccedila insuficiente para

apresentar-se novamente de um modo produtivo uma meta um lsquoporquecircrsquo uma crenccedilardquo

(NFFP 1887 9 [35]) Este seria tambeacutem visto pelo filoacutesofo como um ldquoniilismo cansado

que jaacute natildeo atacardquo (NFFP 1887 9 [35]) e cuja forma mais famosa e uma das mais

presentes em seus comentaacuterios do niilismo passivo seria o budism79 De fato tanto o

budismo quanto o cristianismo aparecem na obra nietzschiana como expressotildees de uma

vontade cansada portanto como manifestaccedilotildees de uma forma negativa de niilismo

A diferenccedila aqui seria de grau desde que o cristianismo ao rejeitar o valor da vida

em sua corporeidade coloca o valor da vida em um aleacutem Por meio desta transposiccedilatildeo do

valor do terreno da vida e sua corporeidade para o terreno de uma existecircncia ideal o

cristianismo operaria uma espeacutecie de promoccedilatildeo da extinccedilatildeo da vida agrave categoria de ideal O

budismo por outro lado seria compreendido por Nietzsche como uma forma radical de

niilismo passivo que reconhece a falta de sentido e coloca seu empenho no

estabelecimento do nirvana ou seja no reino do nada absoluto Assim Claudemir Araldi

enfoca esta distinccedilatildeo fundamental quando chama a atenccedilatildeo para o fato do niilismo

enquanto uma forma europeia de budismo natildeo compartilhar ainda da radicalidade

daquele seu correlato indiano

O cristianismo procura retardar o niilismo da accedilatildeo (der Nihilismus derThat) forma consequente de niilismo que encoraja para a morte eautoaniquilamento atraveacutes da indicaccedilatildeo de uma falsa sobrevivecircncia paraaleacutem desse mundo Em vez do autoaniquilamento o cristianismo propotildeeuma vida duradoura mas fraca e empobrecida (XIII 14 (9)) O budismorepresenta uma forma mais radical de niilismo pois nele haacute a dissoluccedilatildeoda vontade do indiviacuteduo no nada no nirvana ldquoO pessimismo europeuestaacute ainda em seu iniacutecio ele natildeo tem ainda aquela descomunal fixideznostaacutelgica do olhar na qual se espelha o nada como ele teve outrora naIacutendiardquo (XI 25 (16)) (ARALDI 1998 Paacutegs 86-87)

79 A compreensatildeo do niilismo como uma forma de budismo europeu estaacute presente no proacutelogo de AGenealogia da Moral onde este eacute pensado como modelo de uma forma de niilismo passivo e portantopoderia ser considerado uma forma de budismo europeu

144

Por outro lado em O Anticristo Nietzsche pensa a relaccedilatildeo entre o budismo e o

cristianismo como expressatildeo de uma disputa entre uma forma positiva e uma forma

negativa de religiatildeo da decadecircncia Ainda como religiotildees da decadecircncia ambas se

distinguiriam pelo niacutevel de realismo do budismo que natildeo apregoa a necessidade de um

outro mundo mas restringe suas praacuteticas agraves esferas da dieteacutetica e da higiene Aqui como

manifestaccedilatildeo mais realista de uma forma decadente o budismo eacute considerado por

Nietzsche como uma forma superior de se encarar o problema da falta de sentido Pois

para o filoacutesofo o budismo representaria uma forma de racionalizaccedilatildeo do problema da falta

de sentido da realidade muito a frente do cristianismo

Com minha condenaccedilatildeo do cristianismo natildeo quero ser injusto com umareligiatildeo a ele aparentada que pelo nuacutemero de seguidores ateacute o supera obudismo As duas satildeo proacuteximas por serem religiotildees niilistas ndash religiotildees dedecadence ndash as duas de diferenciam de modo bastante notaacutevel O criacuteticodo cristianismo tem uma diacutevida de gratidatildeo aos eruditos hindus pelo fatode elas poderem se comparadas ndash O budismo eacute mil vezes mais realistado que o cristianismo ndash ele carrega a heranccedila da colocaccedilatildeo fria e objetivados problemas ele vem apoacutes seacuteculos de contiacutenuo movimento filosoacutefico oconceito de ldquodeusrdquo jaacute foi abolido quando ele surge O budismo eacute a uacutenicareligiatildeo realmente positivista que a histoacuteria tem a nos mostrar ateacute mesmoem sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo ndash )(ACAC I sect20)

Com base nessa leitura podemos ver que a distinccedilatildeo fundamental entre o

cristianismo e o budismo se resume a uma diferenccedila de graus de niacuteveis mas natildeo em sua

natureza Ambas compartilham na especulaccedilatildeo nietzschiana uma classificaccedilatildeo comum

enquanto formas passivas de niilismo Como tais sua expansatildeo significaria para o filoacutesofo

um risco para a cultura Assim em A Gaia Ciecircncia Nietzsche relaciona a propagaccedilatildeo do

budismo e do cristianismo a um adoecimento da vontade a um decreacutescimo no iacutempeto de

comando que levou os homens a procurar por uma autoridade forte fora do mundo

A feacute sempre eacute mais desejada mais urgentemente necessitada quandofalta a vontade pois a vontade eacute enquanto afeto de comando o decisivoemblema da soberania e da forccedila Ou seja quanto menos sabe algueacutemcomandar tanto mais anseia por algueacutem que comande que comandeseveramente mdashpor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um

145

confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteria De onde se concluiriatalvez que as duas religiotildees mundiais o budismo e o cristianismo podemdever sua origem e mais ainda a suacutebita propagaccedilatildeo a um enormeadoecimento da vontade E assim foi na verdade ambas as religiotildeesdepararam com a exigecircncia de um ldquotu devesrdquo alccedilada ateacute o absurdo peloadoecimento da vontade e indo ateacute o desespero ambas ensinaram ofanatismo em eacutepocas de afrouxamento da vontade com issoproporcionando a muitos um apoio uma nova possibilidade de quererum deleite no querer Pois o fanatismo eacute a uacutenica ldquoforccedila de vontaderdquo quetambeacutem os fracos e inseguros podem ser levados a ter como uma espeacuteciede hipnotizaccedilatildeo de todo o sistema sensoacuterio-intelectual em prol daabundante nutriccedilatildeo (hipertrofia) de um uacutenico ponto de vista e sentimentoque passa a predominar mdash o cristatildeo o denomina sua feacute Quando umapessoa chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandadatorna-se ldquocrenterdquo inversamente pode-se imaginar um prazer e forccedila naautodeterminaccedilatildeo uma liberdade da vontade em que um espiacuterito sedespede de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em seequilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidades e em danccedilar ateacute mesmo agravebeira de abismos Um tal espiacuterito seria o espiacuterito livre por excelecircncia(FWGC V sect347)

Nietzsche pensa a propagaccedilatildeo do cristianismo e do budismo como sintoma de uma

forma de adoecimento da vontade que acaba por condicionar a busca pelo comando em

esferas exteriores agrave esfera do acontecer humano que se mostra preponderantemente sob o

domiacutenio dos instintos fracos Dessa forma jaacute no periacuteodo de gestaccedilatildeo de sua obra

intermediaacuteria niilismo e budismo mostram-se associados Mais do que as religiotildees da

decadecircncia o niilismo passivo determina o avanccedilo de uma forma de pensar uma doutrina

acerca da verdade e do conhecimento contra a qual como vemos no fim da passagem

citada se voltariam os espiacuteritos livres

Em oposiccedilatildeo agrave forma de pensar condicionada pela necessidade de crenccedilas como

substitutos para o iacutempeto de comando os espiacuteritos livres seriam marcados pela sua

liberdade em relaccedilatildeo a toda forma de determinaccedilatildeo dogmaacutetica toda forma de verdade

dada Nesse sentido o espiacuterito livre ldquopor excelecircnciardquo seria aquele que obteacutem prazer ldquona

autodeterminaccedilatildeordquo na ldquoliberdade da vontaderdquo e no despedir-se de toda crenccedila Seria

justamente este abandono de todo ldquodesejo de certezardquo e abandono de si ldquosobre tecircnues

cordas e possibilidadesrdquo que caracterizaria a forma de conhecer proacutepria aos espiacuterito livre

146

Assim na necessidade de definir este estilo de filosofar a ele poderia ser comparado uma

danccedila a beira do abismo a brincadeira com o perigoso propor novas verdades80

Retomando poreacutem o problema da distinccedilatildeo entre as diferentes formas de niilismo

temos que o niilismo passivo seria marcado pela consciecircncia de uma falta de sentido

estrutural dos valores que no entanto natildeo subordina a produccedilatildeo de novos valores por se

dar em uma natureza cansada Aqui aparece o niilista como o sujeito dessa vontade

cansada como aquele que nega o mundo dos fenocircmenos mas que natildeo consegue criar um

mundo ideal e que portanto transporta para outra esfera o mundo das criaccedilotildees ideias

A criacutetica nietzschiana ao niilismo eacute caracterizada pela criacutetica agrave rejeiccedilatildeo do mundo

existente com base na defesa da necessidade de um mundo melhor inexistente uma

realidade idealizada Criacutetica que se sustentaria com base na negaccedilatildeo da realidade

imperfeita que eacute percebida pelo filoacutesofo como sendo nossa criaccedilatildeo Assim em uma

80 Aqui poreacutem torna-se necessaacuterio distinguir aquela que Nietzsche toma como a atitude filosoacutefica porexcelecircncia e a atitude ceacutetica A descriccedilatildeo do espiacuterito livre como aquele que se despede das certezas natildeo seconfunde com a defesa de uma forma ceacutetica de consideraccedilatildeo do conhecimento Ou seja natildeo faz parte denossa tese a reduccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzscheana de conhecimento a uma forma de ceticismo O ceticismo naverdade recorrentemente aparece entre os poacutestumos como representante de um tipo de niilismo passivo oque diga-se de passagem serve de referecircncia para distinguir o Perspectivismo nietzschano de uma forma deceticismo Em sua criacutetica ao ceticismo antigo nos poacutestumos Nietzsche chega a chamar Pirro de ldquoum budistagregordquo (NFFP 1888 14[85]) e retorna essa opiniatildeo quando diz que ldquoO filltoacutesofogt antigo ltagt partir deSoacutecrates tem os estigmas da decadecircncia moralismo e felicidaderdquo e que Pirro havia alcanccedilado o pontoculminante desta tendecircncia ldquoalcanccedilando o niacutevel do budismordquo (NFFP 1888 14[87]) Leia-se especialmenteo fragmento (NFFP 1888 14[99]) em que Nietzsche retorna a chamar Pirro de budista e oferece umacomparaccedilatildeo deste com Epicuro como tipos caracteriacutesticos da deacutecadeacutence entre os gregos Neste fragmentodiz Nietzsche sob o tiacutetulo de filosofia como decadecircncia ldquoFilosofia como deacutecadence ndash O cansaccedilo saacutebioPirro O budista Comparaccedilatildeo com Epicuro Pirro Viver entre os humildes humildemente Sem orgulhoViver de maneira ordinaacuteria honrar e crer o que todos creem Estar em guarda frente a ciecircncia e o espiacuteritoinclusive frente a tudo que inflahellip Simplesmente indescritivelmente paciente despreocupado suave (hellip)Um budista para Greacutecia crescido em meio ao tumulto das escolas vindo tarde fatigado o protesto docansado ante o zelo dos dialeacuteticos a natildeo crenccedila do cansado na importacircncia de todas as coisas Viu aAlexandre viu aos penitentes hindus Em tais indiviacuteduos tardios e refinados tudo o que eacute humilde tudo o queeacute pobre tudo o que eacute idiota causa efeitos inclusive sedutores Isto atua como um narcoacutetico produz distensatildeoPascal Por outro lado em meio do gentio e confusos com qualquer estes sentem um pouco de calornecessitam calor esses indiviacuteduos cansados hellip (hellip) Pirro igualmente a Epicuro duas formas da deacutecadencegrega afins no oacutedio contra a dialeacutetica e contra todas as virtudes histriocircnicas [schauspielerische] ndash A estasduas coisas entatildeo se chamou filosofia ndash intencionalmente eacute o humilde o que estes amam escolhendo paraisto os nomes habituais e inclusive depreciados representando um estado no qual natildeo se estaacute nem doentenem satildeo nem vivo nem mortohellip Epicuro mais ingecircnuo mais idiacutelico mais agradecido mais viajado commais experiecircncias vividas mais niilistahellip Sua vida foi um protesto contra a grande teoria da identidade(felicidade = virtude = conhecimento) A vida reta natildeo se encontra mediante a ciecircncia a sabedoria natildeo fazldquosaacutebiosrdquohellip (NFFP 1888 14[99]) Com o que fica dito a guisa de justificaccedilatildeo do uso ocasional do termoldquoceticismordquo nesta tese natildeo se depreende a tentativa de definiccedilatildeo do ceticismo na filosofia nietzschianaNossa explicaccedilatildeo natildeo eacute nem poderia ser exaustiva Quando se queira aprofundar sobre este tema natildeopoderiacuteamos recomendar nada melhor do que a tese de doutoramento de Rogeacuterio Lopes que serviu deinspiraccedilatildeo para muitas das ideias discutidas aqui e que se encontra na bibliografia

147

passagem bastante conhecida pelos autores que trabalham o tema do niilismo Nietzsche

pensa o niilista como ldquoo homem que a respeito do mundo tal como eacute julga que natildeo

deveria ser e a respeito do mundo que deveria ser julga que natildeo existerdquo (NFFP 1887

9[60]) Nesta leitura ao negar o mundo o niilista estaria negando o proacuteprio ser que se

apresenta na forma de um ldquoagir sofrer querer sentirrdquo que aparece para ele como natildeo

tendo sentido O niilista assim se caracterizaria pelo pathos do ldquoem vatildeordquo que percebe

como uma inconsequecircncia (NFFP 1887 9[60])

Em outros termos o niilista atua por forccedila de uma forte rejeiccedilatildeo do que cria da

realidade condicionada como sua criaccedilatildeo e procura a verdade em uma realidade que este

natildeo pode criar Ou seja o filoacutesofo define o niilista como aquele que rejeita o mundo com

que se relaciona em prol de um mundo com o qual sabe natildeo poder se relacionar O que

norteia esta realizaccedilatildeo para o autor da passagem seria mesmo uma espeacutecie de impulso

para o nada em que o mais proacuteximo e exequiacutevel eacute abandonado em prol do distante e

inexequiacutevel Quase como algueacutem que diante da possibilidade de conquistar uma vitoacuteria

certa mais humilde se lanccedila agrave conquista de um objetivo grandioso embora impossiacutevel

Ora se pensarmos que nossa realidade eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees entatildeo o

mundo que o niilista rejeita eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees o qual ele desejaria ver

substituiacutedo por um mundo ideal independente de nossas valoraccedilotildees Na leitura

perspectivista nietzschiana no entanto posto que natildeo se pode pensar um mundo senatildeo

como produto de nossas valoraccedilotildees o niilista seria aquele que pretende alcanccedilar um

mundo de objetividade natildeo avaliada

Esta concepccedilatildeo do niilismo estaacute estreitamente relacionada com a criacutetica

nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Seria apenas porque a concepccedilatildeo de

verdade estaria relacionada com a ideia de uma realidade inaccessiacutevel que o filoacutesofo

considera niilista todo projeto filosoacutefico ocidental que se deixa guiar pela ideia de uma

realidade objetiva natildeo valorada da qual decorreria a verdade Do mesmo modo a rejeiccedilatildeo

operada pela filosofia tradicional do testemunho dos sentidos em prol de uma realidade que

apenas pode ser concebida pelo intelecto eacute vista pelo filoacutesofo como constituindo um dos

primeiros estaacutegios na histoacuteria do niilismo ocidental

Nessa leitura a ideia de uma realidade idealizada que apenas pode ser

compreendida aqui como realidade enquanto criaccedilatildeo do intelecto seria o ponto de

148

culminacircncia de toda forma disfarccedilada de niilismo Por outro lado aquele que concebe o

mundo como criaccedilatildeo como inferior posto que eacute sua criaccedilatildeo rejeita nele mesmo a proacutepria

criaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo desta criaccedilatildeo no entanto configura-se como passividade na medida em

que se determinaria por uma rejeiccedilatildeo do proacuteprio criar

Satildeo essas razotildees que nos impotildeem a necessidade de distinguir entre duas formas de

niilismo o niilismo ativo e o niilismo passivo Pois uma avaliaccedilatildeo desta distinccedilatildeo torna

claro que aquilo que comumente se toma como a criacutetica nietzschiana ao niilismo estaria

voltada prioritariamente a uma forma passiva de niilismo em detrimento do niilismo como

um todo Assim se o niilismo passivo como vimos estaria relacionado ao cansaccedilo das

forccedilas criativas que se tornam ressentimento da necessidade de criaccedilatildeo quase como se o

intelecto ciente de sua condicionalidade enquanto estrutura criativa se visse ressentido de

sua limitaccedilatildeo enquanto instacircncia de criaccedilatildeo e passasse a criar a partir desse ressentimento

por outro lado o niilista ativo seria aquele que consciente da realidade de sua criaccedilatildeo

enfatiza os poderes criativos do intelecto como superiores criando uma realidade

idealizada a partir da potecircncia criativa do intelecto

Partindo dessa consideraccedilatildeo das diferenccedilas entre uma forma passiva e uma forma

ativa de niilismo percebe-se que nada se aproveita do niilismo passivo posto que apenas

os piores instintos os instintos cansados parecem estar a seu serviccedilo Ao niilismo ativo

por outro lado Nietzsche relaciona um aspecto positivo na medida em que neste jaacute se

reconhece a moral como algo superado Neste sentido o niilismo ativo poderia ser lido

como a representaccedilatildeo de uma forma de superaccedilatildeo criativa do pessimismo da existecircncia o

que caracteriza essa forma de niilismo como sintoma de um grau elevado de ldquocultura

espiritualrdquo Alto grau de cultura espiritual aqui significa que este estaacutegio de desdobramento

do niilismo seria caracterizado pela criaccedilatildeo proliacutefica de novas realidades

Natildeo eacute que a ldquopenuacuteriardquo tenha aumentado pelo contraacuterio ldquoDeus a moral aresignaccedilatildeordquo eram remeacutedios a niacuteveis profundos e terriacuteveis de miseacuteria oniilismo ativo aparece em condiccedilotildees relativamente muito mais favoraacuteveisJaacute o fato de que se sinta a moral como algo superado supotildee um graubastante elevado de cultura espiritual esta por sua vez a um relativobem-estar Um certo cansaccedilo espiritual que a grande luta de opiniotildeesfilosoacuteficas conduziu ateacute a um ceticismo desesperado frente a filosofiacaracteriza tambeacutem agrave classe de nenhuma maneira baixa destes niilistasPense-se na situaccedilatildeo na que surgiu Buda A doutrina do eterno retorno

149

teria pressupostos doutos (assim como os tinha a doutrina de Buda porexemplo o conceito de causalidade etc) (NFFP 1886-1887 5 [71])

A crenccedila no Deus assim como a moral que pertenceriam a um estado inferior da

ldquocultura espiritualrdquo satildeo superados pela suposiccedilatildeo de uma forma nova de valorar no

niilismo ativo O niilismo ativo assim distingue-se do passivo pela potencialidade

criativa que supera a moral dada Em comparaccedilatildeo ao niilismo ativo o niilismo passivo

pode ser visto como algo esteacuteril posto que em seu desenvolvimento este natildeo confronta a

realidade de forma tatildeo criativa quanto aquele Desta forma como uacuteltimo momento do

confronto do niilista com a realidade este jaacute pressuporia um alto niacutevel de desenvolvimento

cultural produto das sucessivas superaccedilotildees das produccedilotildees do niilismo passivo

Nesse sentido o ceticismo nietzschiano para com toda forma de criaccedilatildeo moral

apareceria como sintoma deste alto niacutevel de desenvolvimento cultural No entanto este

ceticismo como sintoma da superaccedilatildeo de diversas formas de moral apareceria tambeacutem

como a exaustatildeo de forccedilas criativas Por isso o ceticismo eacute visto como uma forma

desesperada de niilismo que se daacute diante da constataccedilatildeo da inutilidade da moral mas que

natildeo condiciona a accedilatildeo Do mesmo modo aqui estariacuteamos diante da ideia de uma forma

mais extrema de niilismo ativo no qual ocorre natildeo apenas a negaccedilatildeo da moral mas uma

elaboraccedilatildeo do homem em meio de cura em graus profundos de miseacuteria Nesse sentido o

niilismo ativo aparece em condiccedilotildees que se configuram relativamente mais favoraacuteveis

Seria portanto na possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que apareceria em toda

profundidade a diferenccedila entre o niilismo passivo e o niilismo ativo Porque o iacutempeto para

a destruiccedilatildeo dos valores dados passo necessaacuterio na constituiccedilatildeo dos novos valores apenas

se daacute pela consciecircncia da vacuidade de sentido da carecircncia de fundamento do que eacute dado

atraveacutes do qual ldquoseu maacuteximo de forccedila relativa eacute alcanccedilada como forccedila violenta de

destruiccedilatildeo como niilismo ativordquo (NFFP 1887 9 [35]) O fundamental aqui eacute reconhecer

que um niilismo ativo poderia representar um passo importante na dinacircmica de superaccedilatildeo

do proacuteprio niilismo

Satildeo muitos os fragmentos poacutestumos em que o filoacutesofo se refere a uma forma mais

desenvolvida do niilismo ativo um niilismo perfeito enquanto ldquoconsequecircncia necessaacuteria

dos ideais tidos ateacute o momentordquo (NFFP 1887 10 [42]) Ou seja em contraposiccedilatildeo ao

150

niilismo incompleto em meio ao qual o filoacutesofo pensa que se desdobrava a cultura

filosofia e religiatildeo de sua eacutepoca haveria uma forma extrema de niilismo que poderia

produzir resultados no processo de superaccedilatildeo do niilismo como perda de sentido

Na medida em que Nietzsche entende que as tentativas de escapar-se do niilismo

sem realizar uma avaliaccedilatildeo dos valores recebidos da tradiccedilatildeo apenas tornavam mais agudas

as consequecircncias do niilismo (NFFP 1887 10[42]) ele pensa o niilismo completo como

uma forma de superar a negatividade do niilismo a partir do proacuteprio niilismo Assim a

radicalizaccedilatildeo do niilismo que conduz ao niilismo completo como ponto da dinacircmica do

niilismo em que se rompe a cadeia de criaccedilatildeo de valores niilistas se daria com o colapso

do conceito de ldquoDeusrdquo entendido aqui como fundamento de todos os valores niilistas

Como diz Araldi ldquoA morte de Deus eacute um evento que repercute na modernidade e que

aciona novas formas de niilismo sempre na perspectiva de sua radicalizaccedilatildeordquo (ARALDI

1998 Paacutegs 85-86) Isto porque o conceito de ldquoDeusrdquoeacute visto pelo filoacutesofo como uma

repercussatildeo da realidade ideal como a traduccedilatildeo moderna do antigo conceito platocircnico de

realidade das ideias

Tal como a realidade ideal platocircnica o Deus veraz atua na modernidade como

fundamento uacuteltimo da verdade Aqui aparece para Nietzsche o cristianismo como um

ldquoplatonismo para as massasrdquo como o lugar de fundamentaccedilatildeo de uma veracidade que se

perde na iminecircncia do grande evento da morte de Deus Posto que Deus passa a ser visto

de acordo com os princiacutepios dessa veracidade como ldquouma hipoacutetese demasiado extremardquo

(NFFP 1886 5[71]) Motivo pelo qual Claudemir Araldi pensa a distinccedilatildeo entre uma

forma incompleta e uma forma completa de niilismo como dependendo fundamentalmente

do anuacutencio da morte de Deus

Eacute nesse sentido que Nietzsche distingue entre niilismo incompleto eniilismo completo No niilismo incompleto (unvollstaumlndig Nihilismus) haacutea tentativa de preencher o vazio decorrente da morte do deus cristatildeo tidocomo a fonte da verdade (XII 10 (42) Atraveacutes de ideais laicizados (oprogresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia) os homensainda mantecircm o lugar outrora ocupado por Deus o supra-sensiacutevel poisbuscam algo que ordene categoricamente ao qual possam se entregarabsolutamente Em suma no niilismo incompleto haacute a tentativa desuperar o niilismo sem transvalorar os valores (XII 10 (42)) No niilismocompleto (vollkommener Nihilismus) haacute uma autoconsciecircncia do homem

151

sobre si proacuteprio e sobre a sua nova situaccedilatildeo apoacutes a morte de Deus (XII10 (42) Esta forma de niilismo eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria dosvalores estimados ateacute entatildeo como superiores Nesse momento contudonatildeo ocorre ainda a criaccedilatildeo de valores afirmativos o niilista completo natildeoconsegue mais mascarar atraveacutes de ideais e ficccedilotildees a vontade de nadaNatildeo eacute apenas o supra-sensiacutevel que eacute abolido mas tambeacutem a oposiccedilatildeoentre ambos (GDCI Como o Mundo Verdadeiro tornou-se Faacutebula) Comum olhar paacutelido desfigurado o niilista completo contempla e idealiza apartir da fraqueza A completude do niilismo natildeo ocorre somente nessadissoluccedilatildeo passiva no tipo do decadente que frui passivamente de seuesgotamento (ARALDI 1998 Paacutegs 86)81

Segundo Araldi Nietzsche compreendeu a modernidade filosoacutefica como a tentativa

de ocupar o lugar vago pela ausecircncia do Deus cristatildeo atraveacutes da admissatildeo de ideais

laicizados tais como o progresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia Estas

tentativas no entanto aparecem para o autor como uma forma fracassada de abandonar os

ideais cristatildeos82 Desde que os fundamentos satildeo reconhecidos aqui como pertencendo a

uma instacircncia superior agrave instacircncia do acontecer humano esfera na qual Nietzsche enxerga

a dinacircmica da criaccedilatildeo de valores esta tentativa ainda se fundamentava em uma concepccedilatildeo

tradicional de verdade Sendo assim esta tentativa de superaccedilatildeo do Deus cristatildeo cai por

terra na medida em que conserva o lugar ocupado por Deus Esta leitura eacute coerente com o

que ao autor expressa em A Gaia Ciecircncia o filoacutesofo narra os motivos do fracasso dessa

tentativa de se livrar de Deus como a permanecircncia na crenccedila na verdade

Mas jaacute teratildeo compreendido onde quero chegar isto eacute que a nossa feacute naciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica ndash que tambeacutem noacutes quehoje buscamos o conhecimento noacutes ateus e antimetafiacutesicos aindatiramos nossa flama daquele mesmo fogo que uma feacute milenar acendeuaquela crenccedila cristatilde que era tambeacutem de Platatildeo de que Deus eacute a verdadede que a verdade eacute divinahellip Mas como se precisamente isto se tornacada vez menos digno de creacutedito se nada mais se revela divino com apossiacutevel exceccedilatildeo do erro da cegueira da mentira ndash se o proacuteprio Deus serevela como a nossa mais longa mentira (FWGC V sect344)

81 A citaccedilatildeo manteve intacta a estrutura e redaccedilatildeo dada por seu autor ao texto ou seja foram preservados osaspectos do texto que foram redigidos anteriormente agrave adoccedilatildeo das normas do novo acordo ortograacutefico daliacutengua portuguesa82 Nos diz ainda Claudemir Araldi ldquoA modernidade representa para o filoacutesofo tanto o esforccedilo de substituir odeus transcendente por outros valores (razatildeo histoacuteria progresso) bem como o vazio aberto pela percepccedilatildeode que o deus transcendente jaacute natildeo exerce nenhuma influecircncia sobre a existecircnciardquo (ARALDI 1998 Paacutegs77-78) Ou seja segundo Araldi natildeo apenas a modernidade filosoacutefica fracassa em ocupar o lugar deixadovago pela morte de Deus como ainda traz a tona a realidade desse vazio

152

A morte de Deus a perda do ldquobem em sirdquo e o desaparecimento de um fundamento

universal da realidade constituem nessa leitura diferentes niacuteveis de uma mesma

experiecircncia Poreacutem a radicalidade do ponto de partida nietzschiano diz respeito agrave

concomitacircncia destes fundamentos em uma concepccedilatildeo tradicional de verdade Assim a

permanecircncia na verdade marca ainda o lugar onde uma uacuteltima crenccedila deve ser abandonada

A avaliaccedilatildeo dos valores portanto comeccedila pela consciecircncia da morte do Deus cristatildeo que

eacute anunciada no aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia mas apenas se conclui a partir da

consciecircncia da caducidade da ideia de verdade

Em suma estaacute fase intermediaacuteria representaria ainda uma manifestaccedilatildeo do niilismo

incompleto em que a tentativa de superar o niilismo ocorre sem oferecer uma completa

avaliaccedilatildeo dos valores No niilismo completo no entanto ocorre uma tomada de

consciecircncia o reconhecimento da responsabilidade pela criaccedilatildeo dos valores que

condiciona a radicalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo do niilismo tornando-se este assim uma forma de

niilismo ativo

Se o niilismo eacute a situaccedilatildeo a que se vecirc confrontada uma eacutepoca que experimenta a

perda de validade dos valores supremos na medida em que Nietzsche reconhece nos

ldquovalores superioresrdquo mais do que a fundamentaccedilatildeo da organizaccedilatildeo social humana mas a

proacutepria atribuiccedilatildeo de valor para a vida entre os homens ou seja a moral o filoacutesofo

reconhece na perda de validade destes valores um risco iminente para a humanidade

33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade

Nos primeiros capiacutetulos deste trabalho procuramos mostrar que apesar de o

desdobramento da reflexatildeo nietzschiana acerca do niilismo pertencer agrave terceira fase de seu

pensamento o potencial afirmativo inerente agrave superaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de

verdade jaacute se acha prenunciado no pensamento da primeira fase desse autor em sua

confrontaccedilatildeo de uma forma radical de pessimismo fundado em uma concepccedilatildeo moral do

conhecimento Em suas primeiras incursotildees filosoacuteficas em que o niilismo aparece ainda

sob a aparecircncia de uma forma radical de pessimismo Nietzsche identifica um potencial

153

deleteacuterio da cultura europeia Este potencial de destruiccedilatildeo dos valores fundamentais eacute

criticado pelo autor pela primeira vez a partir da suspeita lanccedilada agraves formulaccedilotildees teoacutericas

do racionalismo socraacutetico Naquela reflexatildeo Nietzsche pensava as condiccedilotildees histoacutericas de

surgimento do conceito de verdade como algo que teria se associado agrave ideia de valor

absoluto por meio de uma interpretaccedilatildeo moral

Considerando-se que neste periacuteodo de seu pensamento o filoacutesofo ainda parece

considerar a justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia como uma contra medida para com os

valores cristatildeos que seriam aqueles que pretendem-se unicamente morais eacute possiacutevel

pensar que a criaccedilatildeo artiacutestica dos valores seria uma forma de contrapor-se aos valores do

pessimismo Nesse sentido mais do que uma criacutetica agrave moral a criacutetica ao mundo-de-laacute

criado para difamar o mundo de caacute tenciona alargar a denuacutencia dos problemas teoacutericos

referentes agrave consideraccedilatildeo do verdadeiro que em Nietzsche estatildeo indissociavelmente

relacionados aos valores morais do cristianismo

O cristianismo eacute concebido no pensamento nietzschiano como se opondo natildeo

apenas agrave vida mas tambeacutem a seus princiacutepios fundamentais dentre os quais a aparecircncia a

arte e o proacuteprio caraacuteter perspectivo de que toda vida seria dependente Tal ideia da

negaccedilatildeo cristatilde dos valores fundamentais agrave vida eacute expressa com clareza no prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia em que Nietzsche reflete sobre o silecircncio que houvera

conservado para com o cristianismo naquela obra

Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendorantimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro inteiro setrata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeodo tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutar Na verdadenatildeo existe contraposiccedilatildeo maior agrave exegese e justificaccedilatildeo puramenteesteacutetica do mundo tal como eacute ensinada neste livro do que a doutrinacristatilde a qual eacute e quer ser somente moral e com seus padrotildees absolutos jaacutecom sua veracidade de Deus por exemplo desterra a arte toda arte aoreino da mentira ndash isto eacute nega-a reprova-a condena-a Por traacutes desemelhante modo de pensar e valorar o qual tem de ser adverso agrave arteenquanto ela for de alguma maneira autecircntica sentia eu tambeacutem desdesempre a hostilidade agrave vida a rancorosa vingativa aversatildeo contra aproacutepria vida pois toda a vida repousa sobre a aparecircncia a arte a ilusatildeo aoacuteptica a necessidade do perspectiviacutestico e do erro (Prefaacutecio sect5 Paacuteg 19)

154

Ainda que de modo inconsciente em sua formulaccedilatildeo na filosofia nietzschiana de

juventude a suspeita em torno da verdade e sua relaccedilatildeo com a moral cristatilde satildeo vistas aqui

como um grande perigo para a humanidade Segundo o autor natildeo apenas contra o

cristianismo ldquocomo a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade

chegou ateacute agora a escutarrdquo mas contra os princiacutepios morais do niilismo expressos sub-

repticiamente nessa moral seus instintos o haviam precavido Precauccedilatildeo que teria se

refletido no silecircncio para com estes temas que o filoacutesofo conserva em sua obra de estreia

Assim entendemos que embora o niilismo seja inegavelmente uma concepccedilatildeo em que

Nietzsche passa a se deter mais prontamente a partir do periacuteodo intermediaacuterio de seu

pensamento e que recebe um tratamento mais aprofundado apenas a partir de seus uacuteltimos

escritos os pressupostos para a formulaccedilatildeo desta concepccedilatildeo jaacute estavam contidos na criacutetica

nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento

Seu projeto de superaccedilatildeo do niilismo portanto natildeo se resume a apontar o futuro do

niilismo e sua superaccedilatildeo definitiva Uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo genealoacutegica

nietzschiana as condiccedilotildees de superaccedilatildeo do niilismo residem na consideraccedilatildeo das razotildees

pelas quais ele se tornou hegemocircnico na vida intelectual do Ocidente Por sua vez em

consequecircncia de sua compreensatildeo do niilismo como uma tendecircncia agrave desvalorizaccedilatildeo da

realidade a possiacutevel superaccedilatildeo dos valores de decadecircncia soacute poderia advir de uma

consideraccedilatildeo fundamental sobre o caraacuteter da realidade como interpretaccedilatildeo

Nessa leitura a consideraccedilatildeo da vida em sua essecircncia como vontade de potecircncia

desempenharia um papel fundamental Pois se para Nietzsche ldquoesse mundo eacute a vontade de

potecircncia e nada aleacutem dissordquo (NFFP 1885 38[12]) tambeacutem a vida enquanto uma

manifestaccedilatildeo no mundo seria apenas vontade de potecircncia e nada mais Apesar de natildeo

constituir objeto fundamental de nosso trabalho e apesar de natildeo possuirmos espaccedilo

suficiente aqui para uma correta abordagem dessa importante concepccedilatildeo nietzschiana

consideramos que a concepccedilatildeo de vontade de potecircncia deve ser brevemente elucidada para

efeitos de compreensatildeo do que se diz nesse capiacutetulo e mais a frente

Em nossa interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia natildeo

seria possiacutevel natildeo mencionar a interpretaccedilatildeo de Muumlller-Lauter83 Em seu comentaacuterio da

83 Trabalhamos em nossa leitura com a traduccedilatildeo para o portuguecircs do artigo ldquoA Doutrina da Vontade dePoder em Nietzscherdquo de Oswaldo Giacoacuteia Juacutenior publicado pela editora Annablume Satildeo Paulo 1997conforme bibliografia

155

concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia Muumlller-Lauter a qualifica como uma

concepccedilatildeo metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 51-52) mesmo rejeitando

ldquoconceber a vontade de poder como lsquoinequiacutevocarsquo vontade metafiacutesica no sentido de

Schopenhauerrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 70) e mesmo rejeitando a posiccedilatildeo de

Heidegger De fato Muumlller-Lauter escreve suas consideraccedilotildees acerca da concepccedilatildeo

nietzschiana de vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo adversaacuteria da interpretaccedilatildeo de

Heidegger

Nesta reflexatildeo polecircmica o autor parte da suposiccedilatildeo de que a filosofia nietzschiana

representaria um acabamento do pensamento metafiacutesico Posiccedilatildeo como se vecirc muito

proacutexima da leitura heideggeriana No entanto para Muumlller-Lauter o pensamento

nietzschiano se converte em uma forma de metafiacutesica por forccedila do constante questionar-se

nietzschiano acerca da metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 53) Por outro lado o

autor compreende que este estreito refletir acerca da metafiacutesica que teria forccedilado

Nietzsche mesmo a adotar uma certa terminologia metafiacutesica em suas obras natildeo se

confunde com uma compreensatildeo abrangente do sentido de metafiacutesica Sendo assim se

Nietzsche pode ser considerado um pensador metafiacutesico isto natildeo torna seu pensamento

paradoxal pois o sentido de metafiacutesica de sua reflexatildeo natildeo se confundiria com aquilo que

o filoacutesofo criticava sob o nome de metafiacutesica

Como se pode ver estamos aqui diante de uma possiacutevel autocontradiccedilatildeo no

pensamento nietzschiano que tem que ser enfrentada por Muumlller-Lauter Pois ao interpretar

a vontade de potecircncia como conceito metafiacutesico o autor precisa confrontar a criacutetica

nietzschiana agrave metafiacutesica presente em boa parte de seus escritos Em sua interpretaccedilatildeo o

autor realiza este movimento por meio de uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana agrave

metafiacutesica a partir da compreensatildeo de que o filoacutesofo teria entendido por metafiacutesica uma

compreensatildeo da realidade segundo uma teoria dos dois mundos Ou seja embora o

pensamento nietzschiano possa ser entendido como uma forma de pensamento metafiacutesico

este pensamento natildeo operaria com base na defesa de um dualismo ontoloacutegico

Esta interpretaccedilatildeo enquanto pode ser vista como uma leitura vaacutelida da filosofia

nietzschiana enfrenta dificuldades peculiares Primeiro por que a distinccedilatildeo entre duas

formas de filosofia no pensamento nietzschiano parece repousar em evidecircncia textual

precaacuteria E segundo porque a criacutetica nietzschiana a toda forma de filosofia natildeo parece ser

156

compatiacutevel com a ideia de uma defesa nietzschiana de uma determinada forma de

metafiacutesica O que motiva a adoccedilatildeo de Muumlller-Lauter desta interpretaccedilatildeo da filosofia

nietzschiana como uma certa forma de metafiacutesica seria antes de tudo a necessidade de

interpretar a concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia como uma forma de

fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da verdade Ou seja a tentativa de fundamentar o discurso

nietzschiano em uma compreensatildeo da vontade de potecircncia como conceito ontoloacutegico

subjacente agrave realidade das interpretaccedilotildees

De fato em um fragmento poacutestumo de fins de 1887 3 iniacutecios de 1888 Nietzsche

considera a vontade de potecircncia sob a luz de uma consideraccedilatildeo desta enquanto ldquoum

quantum de poder um devir na medida em que nele nada tem o caraacuteter do lsquoserrsquordquo (NFFP

1887-1888 11[73]) Sendo assim enquanto esta interpretaccedilatildeo poderia por um lado ser

considerada a afirmaccedilatildeo de um caraacuteter ontoloacutegico da vontade de potecircncia por outro na

medida em que o filoacutesofo afirma que esta concepccedilatildeo teria relaccedilotildees com o devir em

contraposiccedilatildeo ao ser fica difiacutecil natildeo pensar que esta passagem se contrapotildee a uma tentativa

de pensar a Vontade de potecircncia como uma espeacutecie de fundamento Na medida em que

nada na vontade de potecircncia refletiria um ser ela mesma natildeo poderia ser vista como

fundamento do existente

Como alternativa pode-se pensar uma interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de

vontade de potecircncia como a compreensatildeo desta como uma hipoacutetese Dessa forma

tornando-se possiacutevel evitar a necessidade de fundamentaacute-la em uma interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica Ao interpretar esta concepccedilatildeo como uma forma de quantum de potecircncia a

vontade de potecircncia natildeo refletiria um existir determinado mas apenas a percepccedilatildeo dela

enquanto um ponto mais baixo ou mais elevado de potecircncia Ou seja a vontade de

potecircncia natildeo seria uma realidade sua interpretaccedilatildeo enquanto vontade forte ou vontade

fraca dependeria da captura de um momento de seu existir pois ldquonatildeo haacute nenhuma

vontade haacute pontuaccedilotildees da vontade que constantemente aumentam ou perdem seu poderrdquo

(NFFP 1887-1888 11[73]) Sendo assim a vontade de potecircncia natildeo poderia ser pensada

de maneira independente de sua interpretaccedilatildeo submetendo-se ela mesma aos princiacutepios

nietzschianos da hegemonia da interpretaccedilatildeo

Esta forma de compreender a vontade de potecircncia parece combinar perfeitamente

com o sentido de textos Nietzschianos tais como o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal

157

em que Nietzsche expressamente fala da vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo

Naquele texto sobre o qual falaremos no uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho Nietzsche

considera a concepccedilatildeo dos fiacutesicos e de suas leis da natureza como uma maacute interpretaccedilatildeo e

a ela confronta a possibilidade de se explicar os mesmos fenocircmenos com base na hipoacutetese

da vontade de potecircncia Neste confronto o que parece interessar ao filoacutesofo que busca

destituir de validade a ideia de uma realidade natural como texto a ser interpretado seria a

possibilidade de se confrontar perspectivas diferentes diferentes hipoacuteteses como formas

igualmente verdadeiras de se interpretar o mesmo fenocircmeno

Perdoem a esse velho filoacutelogo que sou se natildeo renuncia a abdicar domaligno prazer que representa pocircr o dedo na chaga das explicaccedilotildeeserrocircneas de vossas fraquezas filoloacutegicas Porque em verdade essemecanismo das ldquoleis da naturezardquo de que voacutes fiacutesicos falais com tantoorgulho natildeo eacute um fato nem um texto mas uma composiccedilatildeoingenuamente humana dos fatos uma deturpaccedilatildeo do sentido umaadulaccedilatildeo servil agrave habilidade dos instintos democraacuteticos da alma modernaldquoEm todas as partes igualdade diante da lei a este respeito a naturezanatildeo foi melhor tratada que noacutesrdquo Sedutora segunda intenccedilatildeo que encobremais uma vez o oacutedio da plebe contra toda marca de privileacutegio e de tiraniabem como uma segunda forma mais sutil de ateiacutesmo Ni Dieu nimaitre Voacutes tambeacutem desejais que assim seja e por isso gritais ldquoVivam asleis da naturezardquo (JGBABM I sect22)

Muumlller-Lauter no entanto parece pensar diferente Assim quando julga a

possibilidade de interpretar a vontade de potecircncia como uma hipoacutetese tatildeo verdadeira

quanto a hipoacutetese representada naquele texto pela posiccedilatildeo dos fiacutesicos o autor afirma ldquoEle

proacuteprio [Nietzsche] sustenta uma pretensatildeo de superioridade em face de outras

interpretaccedilotildees do mundo Ao questionarmos seu pensamento em relaccedilatildeo a essa pretensatildeo

deparamos com o problema da fundamentabilidade de sua lsquodoutrina da vontade de poderrsquordquo

(MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 121) Desta maneira o autor parece compreender que

Nietzsche natildeo teria pensado sua posiccedilatildeo a interpretaccedilatildeo da natureza segundo a hipoacutetese da

vontade de potecircncia como uma hipoacutetese de validade igual agrave hipoacutetese apresentada pelos

fiacutesicos mas como posiccedilatildeo superior Assim a pretensatildeo de superioridade das posiccedilotildees

nietzschianas problema fundamental do uacuteltimo capiacutetulo desse trabalho impediria a

compreensatildeo da concepccedilatildeo de vontade de potecircncia como interpretaccedilatildeo

158

Nos parece algo bastante simboacutelico que ao analisar o aforismo vinte e dois de

Aleacutem do Bem e do Mal Muumlller-Lauter considere que ldquoPara o que aqui nos importa eacute

essencial que ele [Nietzsche] impute aos lsquofiacutesicosrsquo uma maacute lsquofilologiarsquordquo ou seja ao

considerar o aforismo em questatildeo Muumlller-Lauter julga que o fato de Nietzsche considerar

a posiccedilatildeo dos fiacutesicos como uma maacute interpretaccedilatildeo conduz agrave crenccedila de que o filoacutesofo

sustentava sua proacutepria interpretaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo segundo uma boa filologia

como uma interpretaccedilatildeo superior Assim ao confrontar a hipoacutetese de que Nietzsche

necessariamente deva tomar suas posiccedilotildees como interpretaccedilotildees com a necessidade de que

o filoacutesofo as defenda como uma interpretaccedilatildeo superior chegamos a um ponto fundamental

para o questionamento acerca do valor destas interpretaccedilotildees Refletindo sobre este

problema Muumlller-Lauter escreve

Entatildeo toda explicaccedilatildeo (Deutung) do mundo eacute tambeacutem uma interpretaccedilatildeoperspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos que aquela quecompreende todo acontecer do mundo como o caos de vontades de podercooperantes e combatentes Em consequecircncia disso lsquoorsquo mundoconcebido como soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeo perspectiva domundo ao lado de inuacutemeras outras Em face da fundamental relatividadede todo explicar-o-mundo o que poderia ser aduzido em favor dalsquoverdadersquo da interpretaccedilatildeo de Nietzscherdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997Paacutegs 126)

O fundamental aqui eacute o questionamento acerca do que pode ser acrescentado em

favor da posiccedilatildeo defendida por Nietzsche a fim de que esta venha a ser tomada como mais

verdadeira e portanto superior ao posicionamento dos fiacutesicos e sua explicaccedilatildeo mecacircnica

da natureza Na leitura do autor apenas a compreensatildeo que identifica a vontade de

potecircncia como fundamento da verdade poderia garantir esta veracidade e consequente

superioridade Mas aqui se confunde superioridade de uma perspectiva e sua veracidade o

que eacute justamente questionado por meio do perspectivismo nietzschiano Ou seja se

assumirmos que apenas a veracidade de uma posiccedilatildeo pode ser ponto de demarcaccedilatildeo de seu

valor tornamos sem sentido o perspectivismo nietzschiano Mas sendo assim de que outro

modo se poderia justificar a superioridade do posicionamento nietzschiano

A resposta a esta questatildeo representa um ponto fundamental de nossa interpretaccedilatildeo

Trata-se de considerar como ponto central das criacuteticas de Nietzsche agrave concepccedilatildeo tradicional

159

de verdade a implicaccedilatildeo entre valor e verdade de um posicionamento concepccedilatildeo que a

interpretaccedilatildeo tradicional da natureza da verdade nos levaria a aceitar Esta implicaccedilatildeo a

qual Nietzsche jaacute denuncia como improcedente desde seus escritos de juventude

notadamente seu Ensaio sobre Verdade e Mentira seria apenas o resultado de uma

interpretaccedilatildeo moral do problema da verdade Por outro lado como julgar da superioridade

de interpretaccedilotildees adversaacuterias quando natildeo se pode reclamar para estas uma maior

veracidade No caso especiacutefico apresentado por Muumlller-Lauter como justificar a

superioridade da posiccedilatildeo nietzschiana em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees que o filoacutesofo combate

Uma possiacutevel resposta para esta pergunta eacute que nada pode ser acrescentado em favor da

ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiana No entanto no que se trata do questionamento da

superioridade desta posiccedilatildeo poderiacuteamos acrescentar agrave posiccedilatildeo nietzschiana o fato dela ser

derivada de uma arte de filologia superior

Nesta interpretaccedilatildeo consideramos que Nietzsche toma a concepccedilatildeo de vontade de

potecircncia como uma parte de sua filosofia que eacute apenas reconhecida pelo filoacutesofo como

uma possiacutevel interpretaccedilatildeo entre outras interpretaccedilotildees Por outro lado o fato de Nietzsche

se opor a certas interpretaccedilotildees e defender as suas proacuteprias natildeo nos obriga a pensar que o

autor tomava suas posiccedilotildees como mais verdadeiras Pois diferentemente da interpretaccedilatildeo

sustentada por Muumlller-Lauter distinguimos uma interpretaccedilatildeo superior de uma

interpretaccedilatildeo mais verdadeira O fato de Nietzsche tomar sua posiccedilatildeo como superior tanto

no caso em questatildeo como em todos os casos em que este aparente paradoxo se apresenta

natildeo significa que estamos julgando dentro do terreno da veracidade

De fato desde que esta atitude seja entendida como componente do perspectivismo

nietzschiano ela deve ser interpretada como a representaccedilatildeo de uma forma de se

confrontar o dogmatismo pela proacutepria defesa da interpretaccedilatildeo como possibilidade Assim

o que eacute dito na mencionada passagem de Aleacutem do Bem e do Mal representaria um

exerciacutecio deste tipo de compreensatildeo em que a proacutepria possibilidade de se apresentar novas

interpretaccedilotildees jaacute pesa contra a possibilidade de uma posiccedilatildeo dogmaacutetica que deve sempre

ser vista como a uacutenica interpretaccedilatildeo vaacutelida

O mesmo se observa na descriccedilatildeo nietzschiana das forccedilas e suas relaccedilotildees como

aspecto mais iacutentimo da vontade de potecircncia Nestes casos como em todos os casos em que

o filoacutesofo se propotildee a realizar uma descriccedilatildeo da vontade de potecircncia enxergamos uma

160

atitude experimental e artiacutestica um modo criativo de apresentar hipoacuteteses em

contraposiccedilatildeo a uma determinaccedilatildeo definitiva Assim embora saibamos que natildeo temos aqui

uma apresentaccedilatildeo definitiva das justificativas para tanto tomaremos a concepccedilatildeo de

vontade de potecircncia como hipoacutetese interpretativa como um expediente com a qual

Nietzsche pretendeu opor-se a uma determinaccedilatildeo dogmaacutetica da realidade

A inferioridade das posiccedilotildees que critica eacute sempre relacionada por Nietzsche aos

instintos do pesquisador que apresenta esta posiccedilatildeo ou aos valores por traacutes de tais

interpretaccedilotildees A verdade ou falsidade destas posiccedilotildees eacute tomada pelo filoacutesofo sempre como

um efeito colateral dos valores sustentados por tais posiccedilotildees No entanto eacute claro que o

filoacutesofo natildeo poderia tomar suas posiccedilotildees como mais verdadeiras em sentido tradicional

posto que considerava tais concepccedilotildees como aspectos de sua interpretaccedilatildeo da realidade O

que significa dizer que elas tinham que ser tomadas como interpretaccedilotildees a partir de sua

perspectiva

Desde que a partir da concepccedilatildeo nietzschiana da realidade todos os fenocircmenos satildeo

redutiacuteveis agrave categoria de vontade de potecircncia a vida mesma passa a ser expressa como

uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia Logo os valores afirmativos da vida que se

manifestam atraveacutes de um sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia satildeo tidos nessa leitura

como valores superiores Novamente como compreender a superioridade destes valores se

abdicamos de uma suposta veracidade superior para os mesmos Esta superioridade se

deveria ao fato destas interpretaccedilotildees representarem de forma mais adequada uma

determinada configuraccedilatildeo de forccedilas que se mostraria ascendente naquele momento Como

interpretaccedilatildeo em que as forccedilas mais fortes ou um nuacutemero maior de forccedilas se expressa

uma posiccedilatildeo poderia no entender de Nietzsche ser tomada como refletindo de forma mais

afirmativa a vida e assim a proacutepria vontade de potecircncia

Por outro lado os valores morais que com o apoio da doutrina cristatilde obtecircm os

nomes mais elevados na tradiccedilatildeo filosoacutefica seriam consequecircncia de um estado em que

forccedilas menos fortes se agrupariam em torno de um fim Neste sentido enquanto sintoma de

forccedila descendente de forccedilas menos fortes estes valores seriam expressatildeo de tudo que eacute

inferior Por representarem uma configuraccedilatildeo descendente de forccedilas tais valores

inviabilizariam a vida que cresce constituindo-se em valores de negaccedilatildeo de tudo que eacute

161

necessaacuterio agrave sobrevivecircncia A estes valores que Nietzsche toma como expressatildeo mesma do

niilismo estaria ligada uma corrupccedilatildeo fundamental do animal homem

Digo que um animal uma espeacutecie um indiviacuteduo estaacute corrompido quandoperde seus instintos quando escolhe prefere o que lhe eacute desvantajosoUma histoacuteria dos ldquosentimentos superioresrdquo dos ldquoideais da humanidaderdquo ndashe eacute possiacutevel que eu tenha de escrevecirc-la ndash tambeacutem seria quase a explicaccedilatildeode porque o homem se acha tatildeo corrompido A vida mesma eacute para miminstinto de crescimento de duraccedilatildeo de acumulaccedilatildeo de forccedilas de poderonde falta a vontade de poder haacute decliacutenio Meu argumento eacute que a todosos supremos valores da humanidade falta essa vontade ndash que valores dedecliacutenio valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados(ACAC I sect6)

Como a citaccedilatildeo sugere na fase final de seu pensamento o filoacutesofo entende o

niilismo como a concomitacircncia de dois eventos a corrupccedilatildeo dos valores fundamentais e o

empobrecimento vital da espeacutecie o enfraquecimento da vontade de potecircncia Para

Nietzsche a vida como uma expressatildeo da vontade de potecircncia se constitui como luta

interminaacutevel por mais poder Por sua vez a afinidade a iacutentima relaccedilatildeo entre o niilismo e o

cristianismo enquanto filiados a um impulso para a piedade para a compaixatildeo denuncia

um certo cansaccedilo da espeacutecie que natildeo mais vecirc prazer na destruiccedilatildeo e como esta eacute apenas

uma face da criaccedilatildeo natildeo vecirc mais prazer na criaccedilatildeo propriamente Para a pergunta por que

os valores cristatildeos seriam valores niilistas Competiria responder porque nestes valores a

ambiccedilatildeo por poder eacute tomada como algo negativo Onde haacute vida haacute uma acumulaccedilatildeo de

poder onde falta o desejo dessa acumulaccedilatildeo falta a vida Corrupccedilatildeo decadecircncia e niilismo

estatildeo aqui vinculados a uma mesma ideia a destituiccedilatildeo de valor da vida Valores que

impossibilitam a vida satildeo tomados segundo essa leitura como valores niilistas e a estes eacute

atribuiacuteda a potecircncia corruptora por excelecircncia

O impulso para a piedade e agrave compaixatildeo comuns ao niilismo e ao cristianismo eacute

entendido por Nietzsche como impulso para a negaccedilatildeo de tudo que eacute afirmativo da vida

desde que vida mesma em sua leitura se opotildee agrave piedade O processo dinacircmico por ldquomais

poderrdquo se daacute em todas as formaccedilotildees de domiacutenio e o niilismo mesmo constitui apenas uma

ldquoparterdquo uma etapa do processo dinacircmico que caracteriza tudo aquilo que existe Como

162

tudo que existe ele apenas quer mais poder84 Assim o autor entende o niilismo como

movimento que confronta diretamente o apetite para o crescimento que eacute comum a tudo

que vive e que para Nietzsche na avaliaccedilatildeo segundo a moral da decadecircncia muitas vezes

se expressa na forma de crueldade

Nesse impulso para a morte na negaccedilatildeo da vida inerente a uma concepccedilatildeo cristatilde do

mundo estaria a justificativa para os ataques ferrenhos de Nietzsche ao cristianismo assim

como contra as pretensotildees da moral cristatilde a qual eacute vista na leitura nietzschiana como uma

tentativa de aprisionar o homem em valores ilusoriamente tomados como absolutos Com

base nessa concepccedilatildeo da moral cristatilde o filoacutesofo move sua genealogia como tentativa de

trazer agrave luz as negras raiacutezes dos ideais humanos Este procedimento mais do que

descortinar o caraacuteter ilusoacuterio das concepccedilotildees dogmaacuteticas eacute pensado como meio de tornar

vaacutelidas tambeacutem as demais criaccedilotildees humanas

Assim enquanto tendecircncia imobilizante a esta tendecircncia moral e epistemoloacutegica

estariam vinculados impulsos de morte O que aqui deve ser compreendido no sentido mais

amplo tanto quando diz respeito a um impulso para a verdade enquanto objetividade

entendida como a caracterizaccedilatildeo estaacutevel de uma realidade em movimento como quanto a

uma vontade de paz comum aos espiacuteritos religiosos Nesse sentido O Anticristo apresenta

os mais ferozes ataques de Nietzsche ao niilismo e a seus valores dos quais a compaixatildeo

destaca-se como elemento fundamental

Ousou-se chamar a compaixatildeo uma virtude (ndash em toda moral nobre eacuteconsiderada fraqueza ndash) foi-se mais longe fez-se dela a virtude o solo eorigem de todas as virtudes ndash apenas eacute verdade e natildeo se deve jamaisesquecer do ponto de vista de uma filosofia que era niilista queinscreveu no seu emblema a negaccedilatildeo da vida Schopenhauer estava certonisso atraveacutes da compaixatildeo a vida eacute negada tornada digna de negaccedilatildeo ndashcompaixatildeo eacute a praacutetica do niilismo (ACAC I sect7)

84 Ao fim e ao cabo a destruiccedilatildeo dos valores motivada pelo niilismo seria apenas uma expressatildeo danatureza que tem na destruiccedilatildeo de formas organizadas sua funccedilatildeo primordial por meio da qual obtecircm poderSegundo Giacoia ldquoUma formaccedilatildeo decadente eacute para Nietzsche uma Verkehtheit isto eacute uma totalidade postasob o impeacuterio de um movimento de inversatildeo de reversatildeo violenta de fins e propoacutesitos cujo ser e operarpotildeem em movimento a destruiccedilatildeo de uma determinada estrutura hierarquizada de forccedilas em relaccedilatildeo Estadestruiccedilatildeo eacute no entanto um lsquoevento natural do mundo orgacircnicorsquordquo (GIACOIA 1997 Paacuteg 21)

163

Por meio de uma anaacutelise genealoacutegica da compaixatildeo que teria se tornado um valor

fundamental tanto da filosofia quanto da moral de seus contemporacircneos o filoacutesofo nos

apresenta um processo de decadecircncia na passagem de uma moral nobre em que a

compaixatildeo era tomada como expressatildeo de fraqueza para a moral cristatilde85 Assim mais do

que uma virtude cristatildeo a compaixatildeo teria se tornado mesmo uma marca um sintoma dos

instintos desagregadores de sua eacutepoca

A compaixatildeo cristatilde eacute tomada aqui como expressatildeo de uma falta de higiene do

espiacuterito de modo que para Nietzsche ldquoNada eacute mais insalubre em meio a nossa insalubre

modernidade do que a compaixatildeo cristatilderdquo e seria necessaacuterio com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo

cristatilde ldquoser meacutedico aqui ser inexoraacutevel aqui usar a faca ndash isso pertence a noacutes esse eacute nosso

modo de amor ao homem com isso noacutes somos filoacutesofos noacutes hiperboacutereosrdquo (ACAC I

sect7) Com isto o filoacutesofo pretendeu afirmar o verdadeiro papel do filoacutesofo na forma da

eterna inimizade para com a compaixatildeo como fundamento do valor Pois em sua leitura a

compaixatildeo estaria ligada de forma inseparaacutevel agrave decadecircncia

Repito esse instinto depressivo e contagioso entrava os instintos quetendem agrave conservaccedilatildeo e elevaccedilatildeo do valor da vida eacute um instrumentocapital na intensificaccedilatildeo da decadeacutence como um multiplicador damiseacuteria e como conservador de tudo que eacute miseraacutevel ndash a compaixatildeopersuade ao nadahellip Mas natildeo se diz ldquonadardquo diz-se ldquoaleacutemrdquo ou ldquoDeusrdquoou ldquoa verdadeira vidarsquo ou nirvana salvaccedilatildeo bem-aventuranccedilahellip Estainocente retoacuterica do acircmbito da idiossincrasia moral-religiosa parecemuito menos inocente quando se nota qual a tendecircncia que aiacute veste omanto das palavras sublimes a tendecircncia hostil agrave vida (ACAC I sect7)

O fato do autor enfatizar aqui a expressatildeo ldquoa verdadeira vidardquo natildeo eacute ocasional

como se pode perceber Esta expressatildeo carregaria um certo sentido teoloacutegico por traacutes do

qual se esconde um certo anseio pelo nada uacutenica realidade possiacutevel por traacutes da cortina dos

valores ensinados pela religiatildeo86 Por meio desta consideraccedilatildeo criacutetica do cristianismo

85 Conforme nota da seccedilatildeo anterior acerca da revoluccedilatildeo dos escravos na moral em Genealogia da Moralou seja da mudanccedila de paradigma dos valores morais constituidores da cultura romana para os valoresmorais cristatildeos originados no interior da cultura judaica86 Leia-se novamente o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[35]) em que o niilismo passivo eacute apresentadocomo uma divinizaccedilatildeo de tudo que eacute decadente atraveacutes da valorizaccedilatildeo exacerbada de tudo que ldquorefrescacura tranquiliza anestesiardquo que passa para o primeiro plano de consideraccedilatildeo humana sob ldquodisfarcesdiversosrdquo O fato do filoacutesofo referir-se ainda ao ldquoNirvanardquo indica a proximidade com que considera tanto ocristianismo quanto o budismo ambos como sendo posicionamentos niilistas que pregam sob os mais belos

164

apresentado como um subterfuacutegio por meio do qual inocular os valores do niilismo o autor

combate a crenccedila na sacralidade dos valores morais fundamentados pela religiatildeo cristatilde No

entanto cumpre salientar que o ataque ao cristianismo nestas reflexotildees natildeo seria o cerne

mas apenas uma consequecircncia do ataque ao niilismo

De que o ataque de Nietzsche ao cristianismo seria apenas a consequecircncia de um

ataque mais amplo a toda uma forma de consideraccedilatildeo da realidade o autor nos demonstra

em diversas passagens do anticristo em que associa cristianismo e budismo agrave mesma

tendecircncia negativa em relaccedilatildeo ao impulso para ser mais proacuteprio de tudo que vive Ou seja

a renuacutencia a este iacutempeto de criaccedilatildeo e expansatildeo teria como substrato uma tendecircncia mais

geral o niilismo propriamente como tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo Desta forma tendo em

vista esclarecer que sua criacutetica ao cristianismo assim como ao budismo tinha no niilismo

um alvo mais geral o autor afirma natildeo querer fazer injusticcedila a estas duas expressotildees

religiosas Isto mesmo quando considera que ldquoAmbas devem ser classificadas entre as

religiotildees niilistasrdquo e logo que ldquoambas satildeo religiotildees de decadecircnciardquo (ACAC I sect20)De

fato o autor ateacute demonstra certa afinidade com os princiacutepios do budismo sobretudo sua

epistemologia que assim como a concepccedilatildeo sustentada por Nietzsche seria ldquoum

fenomenismo estritordquo (ACAC I sect20)

Apesar de sua determinaccedilatildeo se dirigir ao niilismo e de ateacute mesmo demonstrar certa

admiraccedilatildeo pelo budismo87 Nietzsche deixa claro em O Anticristo que o instinto teoloacutegico

seria uma ameccedila subterracircnea agrave vida na medida em que de forma velada propagaria os

valores da negaccedilatildeo da realidade em prol de uma realidade inexistente Nesta leitura o

filoacutesofo considera toda virtude religiosa como uma maacutescara um simulacro para camuflar

os reais propoacutesitos da moral que seria a extinccedilatildeo da vida por meio da supressatildeo de suas

manifestaccedilotildees mais fortes mais sadias Com isso uma desvalorizaccedilatildeo de todo sentimento

de forccedila tem lugar e todo instinto de criaccedilatildeo eacute suplantado a partir do instinto teoloacutegico

Assim tambeacutem a compaixatildeo a virtude cristatilde por excelecircncia eacute vista como um disfarce por

nomes o desejo do nada87 O budismo via de regra eacute considerado por Nietzsche uma forma superior de niilismo passivo Seja emsua consideraccedilatildeo da epistemologia budista como um ldquofenomenismo estritordquo seja em sua consideraccedilatildeo assuas prescriccedilotildees bem ao gosto de Nietzsche como tendo uma prescriccedilatildeo de fundo higiecircnico Vida ao ar livreviagens todas formas de combater uma depressatildeo originada em uma profunda sensibilidade ao sofrimentoesta forma de niilismo exime-se das criacuteticas agudas que o filoacutesofo impotildee ao cristianismo e sua moral Nascomparaccedilotildees que o filoacutesofo apresenta entre o cristianismo e o budismo Nietzsche realccedila o caraacuteter meramenteobjetivo da consideraccedilatildeo budista do mundo que em oposiccedilatildeo ao cristianismo natildeo enfrenta uma luta entre obem e o mal na forma de uma luta contra o pecado

165

meio do qual o niilismo esconderia seu rosto doentio no manto dos valores cristatildeos Como

disfarce por meio do qual seriam inoculados os valores niilistas o instinto teoloacutegico se

expressaria por meio da feacute uma espeacutecie de maacute visatildeo para com a realidade

A este instinto de teoacutelogo eu faccedilo guerra encontrei sua pista em todaparte Quem possui sangue de teoacutelogo no corpo jaacute tem ante todas ascoisas uma atitude enviesada e desonesta O paacutethos que daiacute se desenvolvechama a si mesmo de feacute cerrar os olhos a si mesmo de uma vez portodas para natildeo sofrer da visatildeo da incuraacutevel falsidade Dessa defeituosaoacutetica em relaccedilatildeo agraves coisas a pessoa faz uma moral uma virtude umasantidade vincula a boa consciecircncia agrave falsa visatildeo ndash exige que nenhumaoutra oacutetica possa mais ter valor apoacutes tornar sacrossanta a sua proacutepriausando as palavras ldquoDeusrdquo ldquosalvaccedilatildeordquo ldquoeternidaderdquo (ACAC I sect9)88

Como uma maacute visatildeo para com a falsidade que se transveste de boa consciecircncia a feacute

se expressa como um fechar os olhos para todo defeituoso que se encontra a nosso alcance

Este fechar os olhos para todo defeituoso torna-se um defeito na oacutetica do instinto teoloacutegico

que ignora que a vida depende fundamentalmente de falsidades Do mesmo modo a vida

parece se fortalecer com base nessas falsidades ineliminaacuteveis Esta oacutetica da vida nesse

sentido se confundiria com a oacutetica humana a oacutetica dos valores humanos

Aqui Nietzsche retoma uma concepccedilatildeo que sustenta desde seu Ensaio sobre

Verdade e Mentira e que permanece no periacuteodo intermediaacuterio de sua obra A concepccedilatildeo

segundo a qual a vida depende fundamentalmente de certos erros para sua manutenccedilatildeo Por

outro lado agrave moral que se fundamenta na feacute nega esta caracteriacutestica fundamental da vida e

por isto se torna uma concepccedilatildeo niilista A esta moral niilista que eacute criada a partir dos

instintos teoloacutegicos estaria vinculada uma perspectiva defeituosa que estimula a natildeo

enxergar o defeituoso na existecircncia e que ao mesmo tempo deturpa o valor de outras

perspectivas A feacute agiria no sentido de fazer parecer toda outra perspectiva todo enxergar a

falsidade na realidade como moralmente defeituosa Esta deturpaccedilatildeo do valor de outras

oacuteticas seria propriamente o que se chama moral religiosa enquanto a negaccedilatildeo de toda

perspectiva que natildeo eacute tornada sacrossanta pela feacute ou seja que natildeo eacute contaminada pela

oacutetica defeituosa da feacute

88 Acompanhamos a traduccedilatildeo de David Jardim Juacutenior para a editora Nova Fronteira

166

Haacute que se pensar que a rejeiccedilatildeo nietzschiana dessa moral assim como da

perspectiva moral que lhe sustenta natildeo se relaciona com um problema teoloacutegico Natildeo

interessa ao filoacutesofo os problemas religiosos assim como a feacute mesma natildeo seria um

problema para o autor de O Anticristo No entanto enquanto parte de um movimento mais

amplo enquanto instrumento para a expansatildeo do niilismo esta perspectiva se torna algo a

ser criticado Importante nesse sentido compreender que a moral teoloacutegica natildeo respeita os

limites da mera religiatildeo se expandindo para diversas aacutereas da experiecircncia humana Motivo

pelo qual Nietzsche afirma encontrar este instinto teoloacutegico em todas as partes

Desencavei o instinto de teoacutelogo em toda parte eacute a mais disseminada aforma realmente subterracircnea de falsidade que existe na Terra O que umteoacutelogo percebe como verdadeiro tem de ser falso aiacute se tem quase queum criteacuterio da verdade Seu mais fundo instinto de conservaccedilatildeo proiacutebeque a realidade receba as honras ou mesmo assuma a palavra em algumponto Ateacute onde vai a influecircncia do teoacutelogo o julgamento de valor estaacute decabeccedila para baixo os conceitos de ldquoverdadeirordquo e ldquofalsordquo estatildeonecessariamente invertidos o que eacute mais prejudicial agrave vida chama-seldquoverdadeirordquo o que a realccedila eleva afirma justifica e faz triunfar chama-se ldquofalsordquohellip se acontece de os teoacutelogos atraveacutes da ldquoconsciecircnciardquo dospriacutencipes (ou dos povos ndash ) estenderem a matildeo para o poder natildeoduvidemos do que no fundo sempre se daacute a vontade de fim a vontadeniilista quer alcanccedilar o poder(ACAC I sect9)

A reflexatildeo que encontramos aqui entre a amplitude da esfera de atuaccedilatildeo dos

instintos teoloacutegicos e a questatildeo da verdade natildeo eacute acidental A radicalidade da criacutetica

nietzschiana a esta fragilidade fundamental da concepccedilatildeo teoloacutegica chega tatildeo longe a

ponto de quase tornar em princiacutepio de verdade a contraposiccedilatildeo agraves suas suposiccedilotildees

Nietzsche percebe na atuaccedilatildeo destes instintos a expansatildeo de uma moral niilista sob

diferentes aspectos da existecircncia humana que se tornam contaminados por um princiacutepio de

desvalorizaccedilatildeo que toma de assalto tudo o que interessaria agrave vida ser tomado como

verdadeiro Assim como uma maacute vontade para tudo que eacute defeituoso enquanto visatildeo

radicalmente contraacuteria aos elementos mais fundamentais de toda visatildeo a concepccedilatildeo

teoloacutegica da realidade distingue-se como visatildeo falsa por definiccedilatildeo Eacute contra esta forma de

maacute perspectiva que Nietzsche impotildee uma concepccedilatildeo de perspectividade de todo conhecer

167

Pois em sua leitura Nietzsche entende como verdadeiro tudo que se reconhece no caraacuteter

perspectivo relativo de toda concepccedilatildeo da realidade

Na leitura apresentada pelo autor a boa consciecircncia cristatilde que teria por base uma

visatildeo defeituosa seria profundamente marcada por uma incapacidade de perceber a

necessidade das perspectivas incapaz de atribuir valor a qualquer outra forma de ver

Assim a feacute nesta leitura seria a covarde negaccedilatildeo do caraacuteter aparente que eacute necessaacuterio agrave

existecircncia como negaccedilatildeo da falsidade inerente a toda forma de vida A suposiccedilatildeo de uma

perspectiva privilegiada proveniente da feacute seria assim um dos defeitos congecircnitos de toda

consideraccedilatildeo teoloacutegica da realidade

A compreensatildeo nietzschiana desta forma de considerar a realidade ao postular que

essa perspectiva limitativa tem sua origem em uma ldquovisatildeo defeituosardquo se associa em seu

pensamento agrave necessidade de se conceber uma forma de valorar que seja contraacuteria agrave loacutegica

do niilismo Em seu julgamento criacutetico o que torna a oacutetica teoloacutegica algo condenaacutevel seria

sua incapacidade em captar a falsidade como elemento fundamental da realidade Por outro

lado esta forma de se compreender as coisas eacute entendida como defeituosa porque lhe falta

o caraacuteter criativo inerente a todo olhar que se entende como um projetar o mundo a partir

de seu ponto de vista

A leitura nietzschiana do caraacuteter epistemoloacutegico da posiccedilatildeo teoloacutegica passa por uma

qualificaccedilatildeo do criteacuterio fisioloacutegico de verdade em contraposiccedilatildeo a uma caracterizaccedilatildeo

negativa dos valores morais Segundo esta leitura assim como a concepccedilatildeo teoloacutegica

constitui seus valores com base em uma atividade instintiva de negaccedilatildeo da vida tambeacutem

uma forma afirmativa de vida constitui seus valores atraveacutes da atuaccedilatildeo de seus instintos

Pois a potecircncia criativa que gera as perspectivas eacute vista pelo filoacutesofo como uma

manifestaccedilatildeo da proacutepria vontade por traacutes da realidade

O que a anaacutelise do instinto teoloacutegico nos ensina eacute que em um sentido fundamental

Nietzsche pensa que toda perspectiva parte de uma determinada configuraccedilatildeo instintual

Satildeo os instintos teoloacutegicos que orientam a formaccedilatildeo de uma moral niilista uma moral que

rejeita a realidade Dessa moral em outros termos desta primeira unidade de formaccedilatildeo de

valores surge a oacutetica que orienta os filoacutesofos metafiacutesicos a buscarem uma outra realidade

que natildeo a realidade das falsidades indispensaacuteveis agrave vida para fundamentar sua concepccedilatildeo

168

de verdade Nesse sentido a verdade mesma natildeo eacute tomada mais do que como um

indicativo de forccedila ou decadecircncia O valor mesmo recai natildeo sobre a veracidade da feacute mas

na configuraccedilatildeo de instintos que impulsiona a feacute em determinadas verdades

Estes instintos satildeo vistos por Nietzsche como manifestaccedilotildees de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedila Deste modo a criaccedilatildeo dos valores correspondente a uma atividade

instintual afirmativa em relaccedilatildeo agrave existecircncia dependeria tambeacutem de uma determinada

configuraccedilatildeo de forccedilas Em sua leitura os valores da moral teoloacutegica nunca satildeo tomados

como orientados para uma forma menos verdadeira de avaliaccedilatildeo da realidade Eles satildeo

considerados inferiores porque direcionados a uma forma de avaliar a vida que constrange

seu crescimento Do mesmo modo devemos supor que os valores criados a partir de uma

perspectiva afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida natildeo seriam mais verdadeiros do que os valores da

moral teoloacutegica No entanto enquanto guiados por uma oacutetica em que a falsidade da

realidade natildeo eacute ignorada estes valores seriam mais afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida

Se tomarmos estes valores como expressatildeo da verdade segundo as diferentes oacuteticas

em anaacutelise entatildeo chegaremos agrave conclusatildeo que o autor de Anticristo oferece uma anaacutelise de

seu valor sem levar em conta sua veracidade propriamente mas sua afinidade com as

exigecircncias da vida Em outras palavras importa mais ao autor o que se toma por

verdadeiro e o motivo pelo qual se toma isto por verdadeiro do que a verdade do que se

toma por verdadeiro Assim desde que ao fim aos valores criados nenhuma realidade

superior estaacute ligada tanto no caso da concepccedilatildeo teoloacutegica como no caso de uma concepccedilatildeo

afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida a veracidade em sentido tradicional natildeo importa para a

consideraccedilatildeo de sua validade

A liccedilatildeo que a anaacutelise dos valores teoloacutegicos nos ensina eacute que a oacutetica de onde uma

determinada moral eacute forjada eacute determinada por uma certa configuraccedilatildeo instintual que

determina seu valor Desde que o filoacutesofo entende que desde sempre nos movemos apenas

em meio a inverdades o fundamental seria caracterizar o valor destas inverdades para a

vida pois ldquoDe fato faz uma grande diferenccedila com que finalidade se mente se com isso

se conserva ou destroacuteirdquo (ACAC I sect58) Por outro lado ao cristianismo parece pertencer

um impulso para a negaccedilatildeo da realidade que nega inclusive esta negaccedilatildeo ela mesma ou

seja a moral cristatilde para o filoacutesofo parece fundamentar-se no esquecimento de seu valor

enquanto interpretaccedilatildeo

169

Na compreensatildeo nietzschiana nessa adoraccedilatildeo do aleacutem como uma doenccedila que se

propaga por meio da cultura o niilismo ameaccedila o futuro do homem na exata medida em

que os cientistas e filoacutesofos consideram avanccedilar em seu conhecimento do mundo O autor

sinaliza o avanccedilo desta concepccedilatildeo sobre as demais esferas da experiecircncia humana atraveacutes

de sua denuacutencia da confluecircncia da filosofia e da religiatildeo assim como no crescente apreccedilo

pela compaixatildeo como virtude uacuteltima na moral Esta compreensatildeo eacute vista por Nietzsche

como contraacuteria a tudo que era tomado como bom senso em filosofia ateacute Kant89 como

atesta o reconhecimento de ilustres pensadores anteriores a si como representantes

destacados da criacutetica agrave compaixatildeo

Atraveacutes dessa leitura todo impulso metafiacutesico eacute visto pelo filoacutesofo como tendecircncia

funesta impulso para o nada disfarccedilado de vontade de verdade Por esse motivo a vontade

de verdade estaria intrinsecamente associada agrave vontade de morte enquanto vontade de que

cesse o vir-a-ser da existecircncia Por outro lado o avanccedilo da concepccedilatildeo filosoacutefica que vecirc na

compaixatildeo a virtude moral por excelecircncia apresenta-se para Nietzsche como sintoma do

avanccedilo do proacuteprio niilismo que passa aos olhos desapercebidos dos filoacutesofos europeus na

figura do melhoramento do homem90

89 A opiniatildeo de Nietzsche acerca da moral kantiana eacute sujeita a alguma variaccedilatildeo no interior de sua obraEmbora aqui Kant apareccedila entre os filoacutesofos ilustres que antes de Nietzsche se contrapuseram agrave compaixatildeocomo virtude em O Anticristo Nietzsche reproduziraacute uma extensa criacutetica agrave moral kantiana a associando auma forma niilista de consideraccedilatildeo do mundo ldquoAlgumas palavras agora contra Kant como moralista Umavirtude tem de ser nossa invenccedilatildeo deve brotar de nossas necessidades naturais para nossa defesa Emqualquer outro caso eacute uma fonte de perigo Tudo que natildeo pertence agrave nossa vida a ameaccedila uma ldquovirtuderdquocomo Kant queria eacute perniciosa ldquoVirtuderdquo ldquodeverrdquo o ldquobem pelo bemrdquo a bondade baseada na impessoalidadeou em uma noccedilatildeo de validez universal ndash tudo isso natildeo passa de quimeras e nelas encontramos apenas umaexpressatildeo de decadecircncia o uacuteltimo colapso da vida o espiacuterito chinecircs de Koumlnigsberg Exatamente o contraacuterio eacuteexigido pelas mais profundas leis da autopreservaccedilatildeo e do desenvolvimento perceber que todo homemencontra sua proacutepria virtude o seu proacuteprio imperativo categoacuterico Uma naccedilatildeo se despedaccedila quandoconfunde o seu dever com o conceito geral de dever Nada provoca mais completo e pungente desastre doque todo dever ldquoimpessoalrdquo todo sacrifiacutecio diante do Moloc da abstraccedilatildeo Pensar-se que ningueacutem achou oimperativo categoacuterico de Kant perigoso para a vidahellip Somente o instinto teoloacutegico o tomou sob suaproteccedilatildeo ndash uma accedilatildeo motivada pelo instinto vital mostra-se uma accedilatildeo correta pela quantidade de prazer quetraz consigo no entanto aquele niilista com as suas entranhas de dogmatismo cristatildeo considera o prazercomo uma objeccedilatildeohelliprdquo (ACAC I sect11)90 No aforismo onze do segundo livro de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Nietzsche opotildee sua concepccedilatildeo de moralcomo obediecircncia aos instintos agrave concepccedilatildeo que equaciona felicidade com a obediecircncia agrave Razatildeo e que entendeo ensinamento da subserviecircncia agrave Razatildeo como uma forma de moral do aperfeiccediloamento Jaacute no livro seacutetimoda mesma obra intitulada Os ldquomelhoradores da humanidaderdquo o autor parte da compreensatildeo da inexistecircnciade ldquofatos moraisrdquo para qualifica a moral como uma maacute interpretaccedilatildeo de determinados fenocircmenos Nessesentido aquilo que os pregadores morais teriam realizado sob a prerrogativa de melhoramento dahumanidade apenas teria significado um amansamento uma debilitaccedilatildeo da forccedila inerente ao homem(GDCI VII sect2)

170

34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo

Em um fragmento poacutestumo de 1885 ou 1886 que pertenceu aos planos para um

livro acerca do niilismo europeu (Der europaumlische Nihilismus)91 Nietzsche apresenta uma

reflexatildeo profunda acerca da emergecircncia do niilismo Nessa reflexatildeo o autor pensa que o

niilismo como consequecircncia de um processo em curso de desvalorizaccedilatildeo da realidade

estaria estreitamente relacionado ao fato de que nossa realidade natildeo pode ser desvinculada

de nossa oacutetica de avaliaccedilatildeo

Mais do que a mera desvalorizaccedilatildeo da realidade por conta de sua falsidade

estrutural o niilismo implicaria uma rejeiccedilatildeo do valor de tudo aquilo que natildeo pertenceria agrave

realidade de maneira certa e incorruptiacutevel Em outros termos tudo que eacute acrescentado agrave

realidade por meio da atividade humana eacute tomado em uma leitura niilista como

contaminaccedilatildeo Quase como se por meio de nossa interpretaccedilatildeo da realidade a

destituiacutessemos de valor por acrescentar a ela a limitaccedilatildeo caracteriacutestica de nossa oacutetica

Por outro lado segundo a compreensatildeo nietzschiana uma realidade tal como o

homem a venera em sua eternidade e veracidade natildeo teria valor para noacutes Pois tudo que

tem valor na realidade para o homem eacute produto de sua atividade de interpretaccedilatildeo Para noacutes

tem valor o mundo em que vivemos que criamos que somos Assim o filoacutesofo afirma

que ldquoOcasiona o seu ocaso a oposiccedilatildeo do mundo que noacutes veneramos do mundo em que

noacutes vivemos que noacutes somosrdquo (NFFP 1885 2[131])92 Com isso Nietzsche pretendia

assinalar que diante da eminecircncia de uma forma radical de niilismo teriacuteamos duas opccedilotildees

ou aboliriacuteamos nossa adoraccedilatildeo do mundo ideal ou de noacutes mesmos Segundo sua leitura a

segunda forma seria uma expressatildeo do niilismo cuja emergecircncia o autor considerava uma

certeza como expressatildeo do desenvolvimento do pessimismo inerente agrave valorizaccedilatildeo da

91 Extraiacutedo de (eKGWBNF-18852[131] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1885 mdash Herbst 1886)Exceto menccedilatildeo em contraacuterio para a traduccedilatildeo foram utilizadas as traduccedilotildees de Marco Antocircnio Casanova parao volume VI das traduccedilotildees dos fragmentos poacutestumos da editora Forense Universitaacuteria92 Segundo Araldi (ARALDI 1998 Paacutegs 77) esse aforismo pertence aos planos para elaboraccedilatildeo de A GaiaCiecircncia correspondendo ao aforismo 346 onde Nietzsche diz ldquoNatildeo caiacutemos exatamente com isso nasuspeita de uma oposiccedilatildeo uma oposiccedilatildeo entre o mundo no qual ateacute hoje nos sentiacuteamos em casa com nossasveneraccedilotildees ndash em virtude das quais talvez suportaacutessemos viver ndash e um outro mundo que somos noacutes mesmosnuma inexoraacutevel radical profunda suspeita acerca de noacutes mesmos que cada vez mais e de forma cada vezpior toma conta de noacutes europeus e facilmente poderia colocar as geraccedilotildees vindouras ante essa terriacutevelalternativa lsquoou suprimir suas veneraccedilotildees ou ndash a si mesmosrsquo esta seria niilismo mas aquela natildeo seria tambeacutemndash niilismo Eis a nossa interrogaccedilatildeordquo (FWGC V sect346)

171

realidade segundo os juiacutezos de valor cristatildeo que eram juiacutezos de valor moral baseado na

ldquovontade de verdaderdquo

O diagnoacutestico do filoacutesofo eacute claro se queremos superar o niilismo temos que

escolher entre uma realidade ideal e a realidade de nossas valoraccedilotildees a realidade em que

vivemos que noacutes somos Como forma de se contrapor ao niilismo restaria ao homem uma

valorizaccedilatildeo da realidade de nossas impressotildees como valor em si mesma Estas satildeo as

consequecircncias que se pode extrair das vaacuterias conclusotildees da filosofia nietzschiana acerca da

relaccedilatildeo entre a vida e a verdade Ou seja se nessa leitura a vida apenas pode prosperar no

que eacute perspetivo se a vida depende fundamentalmente de falsidade a realidade ideal seria

um siacutembolo para nossa extinccedilatildeo Assim ao homem interessaria sobretudo abrir matildeo de

uma realidade ideal em prol da realidade de suas proacuteprias avaliaccedilotildees

No entanto a ideia de uma realidade ideal apenas eacute operante na filosofia da

antiguidade Assim como uma forma de traduzir este problema para sua eacutepoca o filoacutesofo

converte a ideia de um colapso da realidade ideal na ideia da morte de Deus O Deus veraz

que eacute traduzido na filosofia moderna como o grande garantidor da verdade substitui na

filosofia contemporacircnea a ideia de uma realidade ideal Com o anuacutencio da morte de Deus

que aparece no fim do periacuteodo intermediaacuterio da obra nietzschiana93 o filoacutesofo identifica o

estado geral do homem moderno com a ausecircncia do valor supremo da vida considerado

ateacute entatildeo como uacutenica garantia de felicidade para o homem num aleacutem-mundo

A passagem em que a morte de Deus eacute revelada na obra nietzschiana de forma mais

expressiva e rica de sentido eacute o aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia Nesta passagem que

ocupa um lugar estrateacutegico no livro trecircs daquela obra logo apoacutes o louvor do horizonte

aberto agraves novas descobertas e antes de uma seacuterie de explicaccedilotildees acerca das supersticcedilotildees

religiosas94 o autor nos potildee diante do evento decisivo da morte de Deus

93 Pela primeira vez em A Gaia Ciecircncia e novamente em Assim Falou Zaratustra94 Para efeito de compreensatildeo o tiacutetulo dos aforismos que se seguem ao 125 satildeo 126 Explicaccedilotildees miacutesticas127 Efeito posterior da antiga religiosidade 128 O valor da oraccedilatildeo 129 As condiccedilotildees para Deus 130 Umadecisatildeo perigosa breve reflexatildeo acerca do fato da decisatildeo cristatilde de achar o mundo feio e ruim que acaba portornar o mundo feio e ruim 131 o cristianismo e o suiciacutedio 132 contra o cristianismo e outros queapresentam sempre a ideia de uma criacutetica agraves crenccedilas religiosas inclusive agraves do cristianismo comosupersticcedilotildees mal fundadas Isto ateacute o 145 que apresenta uma variaccedilatildeo do tema na criacutetica ao vegetarianismoApoacutes este o autor apresenta uma criacutetica ao nacionalismo alematildeo e a seguir volta a atacar o cristianismo

172

O louco saltou no meio deles e os transpassou com os olhos ldquoOnde estaacuteDeus ele chorou eu quero te dizer Noacutes o matamos ndash vocecirc e eu Somostodos seus assassinos Mas como fizemos isso Como pudemos beber omar Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro O quefizemos ao desatar a terra do seu sol Onde eles estatildeo se movendo agoraPara onde vamos Longe de todos os soacuteis Natildeo estamos mergulhandocontinuamente Para traacutes para os lados para frente em todas asdireccedilotildees Existe ainda algum em cima ou para baixo Natildeo estamosvagando como que atraveacutes de um nada infinito Natildeo sentimos na pele osopro do vaacutecuo Natildeo ficou mais frio Natildeo permanece sempre a noite emais noite Natildeo se tem que acender lanternas de manhatilde Natildeo ouvimos obarulho da cova de Deus sendo cavada Natildeo sentimos o cheiro daputrefaccedilatildeo divina - Deuses tambeacutem decompotildeem-se Deus estaacute mortoDeus continua morto E noacutes o matamos Como havemos de nos consolaros assassinos de todos os assassinos O santo e mais poderoso que omundo ateacute entatildeo possuiacutea ele sangrou ateacute a morte em nossas facas - quemvai limpar o este sangue de noacutes Com que aacutegua poderiacuteamos nospurificar A expiaccedilatildeo que jogos sagrados teremos de inventar natildeo amagnitude desta obra muito grande para noacutes Natildeo devemos nos tornarDeuses simplesmente para aparecer digno Nunca houve uma maior accedilatildeondash e quem eacute nascido depois de noacutes pertence a este ato de amor de umamaior histoacuteria de toda a histoacuteria ateacute aqui (FWGC Livro III sect125)

O clima geral de duacutevida em torno do anuacutencio da morte de Deus parece tornar clara

a ideia fundamental de que com a extinccedilatildeo deste fundamento uacuteltimo da veracidade todo

posicionar-se eacute determinantemente abalado Por isso o texto faz menccedilatildeo agrave concepccedilotildees

cientiacuteficas como a ideia da gravitaccedilatildeo da terra em torno do sol o qual ainda se relaciona

com a concepccedilatildeo platocircnica de bem que eacute representada como o sol que ilumina a verdade

e portanto reforccedila a ideia de que o racionalismo da ciecircncia se relaciona com a crise da

verdade representada pela morte de Deus

Deus como siacutembolo de uma realidade ideal inexistente que chega a seu colapso na

filosofia Nietzscheana O que significa neste contexto que toda a busca por certezas ou a

vontade de verdade proacutepria da ciecircncia satildeo interpretados nessa leitura como oriundos de

um empreendimento desprovido de sentido Pois na medida em que o processo mesmo de

desenvolvimento das ciecircncias foi guiado por uma vontade de verdade sobretudo a partir do

seacuteculo XIX entatildeo o que condiciona seu desenvolvimento eacute uma loacutegica interna de auto-

supressatildeo Isto porque eacute o proacuteprio avanccedilo da moralidade cristatilde que condiciona esta

vontade de verdade Por sua vez o aacutepice do desenvolvimento desta moralidade cristatilde eacute a

consciecircncia da falta de sentido da proacutepria vontade de verdade Assim diante da

necessidade que a moralidade cristatilde ocasiona desta efetuar sua proacutepria criacutetica o colapso

173

do edifiacutecio teoacuterico criado pela racionalidade ocidental jaacute podia estar determinado desde a

fundaccedilatildeo de seus alicerces

Eacute a proacutepria exigecircncia de rigor da ciecircncia que eacute uma consequecircncia da moralidade

cristatilde presente neste empreendimento teoacuterico que gera as condiccedilotildees para o colapso de seu

fundamentos Este colapso tem sua expressatildeo mais clara na filosofia nietzschiana na ideia

da morte de Deus no colapso da proacutepria moralidade cristatilde por conta de suas proacuteprias

exigecircncias Por sua vez a ciecircncia que se deixa determinar por essa moralidade encontra

seu colapso no colapso da ideia de um fundamento uacuteltimo para a verdade representado

aqui na ideia de Deus

A destituiccedilatildeo de validade de um sistema de crenccedilas e conhecimento a ciecircncia

mesma perece por forccedila das contradiccedilotildees internas da moralidade a partir da qual se

desenvolveu Atinge seu ponto de validade mais baixo por determinaccedilatildeo de seus proacuteprios

fundamentos morais Ou seja na medida em que o mundo ideal pensado por Nietzsche

como sendo a proacutepria expressatildeo de nosso ponto mais baixo em termos de vitalidade

corresponderia em sua eacutepoca agrave ideia de Deus o filoacutesofo concebe a morte de Deus como

correlato agrave supressatildeo da realidade ideal De maneira que o ldquomaior de todos os eventosrdquo eacute

percebido em sua filosofia como evento marcante no processo de desenvolvimento do

niilismo

2) O cristianismo perecendo de sua moral ldquoDeus eacute a verdaderdquo ldquoDeus eacute oamorrdquo ldquoo Deus justordquo ndash o maior de todos os eventos ndash ldquoDeus estaacute mortordquondash sentido de maneira grosseira A tentativa alematilde de transformar ocris[tianismo] em uma gnose eacute recusada por uma desconfianccedila profundao ldquoinveriacutedicordquo aiacute eacute experimentado da maneira mais forte o possiacutevel(contra Schelling por exemplo) (NFFP 1885 2[131])

Nietzsche analisa a pouca influecircncia desse evento ainda em sua eacutepoca e concluiacute que

este evento ainda era sentido de forma grosseira em contraposiccedilatildeo por exemplo a uma

tentativa de se reorganizar o cristianismo decadente transformando-o em uma expressatildeo

da ciecircncia Em um outro fragmento poacutestumo de 1886 ou 188795 outro plano para o

trabalho intitulado O Niilismo Europeu Nietzsche reflete sobre o niilismo ativo e sua

95 Idem (eKGWBNF-18865[71]) mdash Nachgelassene Fragmente Sommer 1886 mdash Herbst 1887 citado nocapiacutetulo anterior paacuteg 138

174

expressatildeo na moral cristatilde Em sua leitura o fato dessa moral natildeo haver ocasionado um

aumento na indigecircncia ou seja uma intensificaccedilatildeo no empobrecimento intelectual da

Europa favorece sua crenccedila de que tal seria consequecircncia de uma alianccedila entre a

intelectualidade e a moral cristatilde Nesse sentido os eruditos como manifestaccedilotildees do

niilismo ativo teriam mesmo se utilizado dos artifiacutecios da moral cristatilde como meios para

sua conservaccedilatildeo

Estes fragmentos como se vecirc satildeo contemporacircneos ao periacuteodo de preparaccedilatildeo de A

Gaia Ciecircncia periacuteodo em que Nietzsche refletia fortemente acerca da morte de Deus e sua

relaccedilatildeo com o niilismo conceito que no entanto natildeo aparece nos livros anteriores ao livro

cinco daquela obra Assim uma anaacutelise daquele que considerava o maior de todos os

eventos pertencia aos seus planos de anaacutelise do fenocircmeno niilismo evento narrado ainda

nos primeiros livros daquela obra e que portanto haviam sido elaborados de forma

passiacutevel agrave publicaccedilatildeo antes de suas conclusotildees acerca do niilismo terem tomado uma

forma apresentaacutevel

Na medida em que o niilismo enquanto movimento histoacuterico de desvalorizaccedilatildeo

dos valores relaciona-se com o conceito de Deus enquanto fundamento uacuteltimo da

verdade o niilismo mais extremo adquire sentido positivo a partir da queda do uacuteltimo e

mais elevado dos valores que fundamentam a concepccedilatildeo filosoacutefica ocidental Para

Nietzsche o niilismo apenas se torna expressatildeo de um grande risco na Europa por conta

de sua associaccedilatildeo com os valores inerentes a uma concepccedilatildeo moral da realidade

notadamente sua concepccedilatildeo de um mundo do aleacutem apartado do mundo dos fenocircmenos No

entanto eacute esta mesma forma de moralidade que culminando no sentido de uma necessaacuteria

veracidade conduz ao colapso das consideraccedilotildees advindas da forma cristatilde de consideraccedilatildeo

da realidade como diz Araldi

A moral cristatilde eacute o evento determinante do Ocidente No cristianismo ainterpretaccedilatildeo moral da existecircncia e do mundo se impotildee em todo o seusignificado e com pretensatildeo absoluta de domiacutenio A vontade de verdadeou a ambiccedilatildeo metafiacutesica de certeza tem sua gecircnese jaacute em Soacutecrates ePlatatildeo mas eacute no cristianismo que ela desdobra a amplitude de seu sentidoe de seu caraacuteter problemaacutetico e ambiacuteguo A vontade de verdade quenasce da moral cristatilde volta-se contra a moral contra a necessidade dementira e falsificaccedilatildeo do mundo que ela comporta (ARALDI 1998Paacutegs 79)

175

A vontade de verdade impulsionada pela consideraccedilatildeo cristatilde da realidade aponta

para uma criacutetica da consideraccedilatildeo falsa do mundo que eacute inerente agrave moral cristatilde torna-se

eminente a crise da proacutepria concepccedilatildeo de veracidade e do fundamento uacuteltimo dessa

veracidade segundo uma consideraccedilatildeo moral cristatilde Nesse sentido o avanccedilo do niilismo

nos meios intelectuais da Europa estaria vinculado a outro evento histoacuterico de importacircncia

igualmente significativa a morte de Deus

A partir da aproximaccedilatildeo entre a moral cristatilde e o niilismo que eacute tiacutepica do uacuteltimo

periacuteodo de produccedilatildeo da filosofia nietzschiana o filoacutesofo concebe uma possibilidade de

superaccedilatildeo do niilismo no esgotamento vital da concepccedilatildeo cristatilde Com base na afirmaccedilatildeo de

Dostoieacutevski ldquoSe Deus natildeo existe tudo eacute permitidordquo96 Nietzsche vislumbra natildeo o terror do

relativismo moral que parece motivar o romancista russo mas a liberdade de atuaccedilatildeo

teoacuterica independente da necessidade de verdade da vontade de verdade proacutepria do

pensamento racionalista Eacute nesse sentido por exemplo que o filoacutesofo relaciona a ideia da

queda dos fundamentos da necessidade de se crer na verdade com a ideia de uma

liberdade de atuaccedilatildeo improacutepria de homens acostumados com os valores cristatildeos e com a

qual estes teriam entrado em contato pela primeira vez quando adentram os segredos da

seita oriental dos assassinos

Quando os cruzados cristatildeos no Oriente depararam com aquela invenciacutevelOrdem dos Assassinos aquela ordem de espiacuteritos livres par excellencecujos graus inferiores viviam numa obediecircncia que nenhuma ordemmonaacutestica alcanccedilou igual obtiveram de algum modo informaccedilatildeo sobreaquele siacutembolo e senha reservado aos graus superiores como seusecretum ldquoNada eacute verdadeiro tudo eacute permitido (GMGM III sect24)

As questotildees levantadas pela passagem em questatildeo dizem respeito ao verdadeiro

sentido de espiacuterito livre Se considerarmos verdadeiro o que Nietzsche nos diz nessa

passagem em contraposiccedilatildeo aos cientistas os membros da seita dos assassinos seriam

verdadeiros modelos de espiacuteritos livres Para o filoacutesofo isso se deveria sobretudo a sua

libertaccedilatildeo do uacuteltimo dos entraves ao espiacuterito a crenccedila na verdade A suprema sabedoria

96 Expressatildeo utilizada por Dostoieacutevski em sua famosa obra Irmatildeos Karamazov e que impactouprofundamente a reflexatildeo nietzschiana natildeo apenas em seu desenvolvimento da ideia da morte de Deus masainda na reflexatildeo em torno das consequecircncias morais da ausecircncia da crenccedila na verdade

176

expressa na renuacutencia de toda forma de verdade aparece nessa leitura como traccedilo

caracteriacutestico de uma vivecircncia da realidade superior a toda forma de sabedoria advinda do

meacutetodo cientiacutefico

A ecircnfase nietzschiana na expressatildeo ldquonada eacute verdadeiro tudo eacute permitidordquo eacute bastante

expressiva Ela atua no sentido de realccedilar uma revelaccedilatildeo fundamental uma sabedoria

superior reservada apenas aos graus mais elevados da seita dos assassinos Esta sabedoria

ganha sentido na contraposiccedilatildeo desta com aquilo que era considerado sabedoria pelos

autoproclamados uacuteltimos idealistas os cientistas de sua eacutepoca Se estes se consideravam

espiacuteritos livres na medida em que pensavam terem conquistado independecircncia para com

toda forma de dogmatismo o filoacutesofo lhes apresenta ainda uma uacuteltima crenccedila da qual

teriam esquecido de se desvencilhar Seria portanto a partir de sua compreensatildeo do que

significa ser um espiacuterito livre que Nietzsche descreve a distacircncia entre os cientistas e os

membros da seita dos assassinos

Diante da imagem dos membros da seita dos assassinos os quais se libertaram ateacute

mesmo da ideia de verdade algo que os cientistas estariam longe de alcanccedilar Nietzsche

estabelece como criteacuterio uacuteltimo de libertaccedilatildeo da metafiacutesica a renuacutencia da crenccedila na

verdade Eacute a partir da compreensatildeo de que os cientistas ao permanecerem presos agrave

verdade natildeo poderiam reclamar para si o tiacutetulo de espiacuteritos livres que eacute posta em duacutevida o

caraacuteter antimetafiacutesico e ateu da ciecircncia de sua eacutepoca Ao confrontar os cientistas modernos

com sua crenccedila na verdade a qual o autor relaciona como uma uacuteltima expressatildeo do

idealismo os pretensos espiacuteritos livres satildeo tomados como aqueles que natildeo compreendem

ateacute que ponto ainda permanecem presas de uma crenccedila ancestral na verdade Apesar de sua

profissatildeo de feacute contra a autoridade teoloacutegica

De modo geral sem ferir o sentido do texto nietzschiano podemos considerar que

nessa passagem Nietzsche efetua uma reformulaccedilatildeo da expressatildeo de Dostoieacutevski ao

substituir o termo ldquoDeusrdquo pelo termo ldquoverdaderdquo que para o autor poderia ser tomado como

uma traduccedilatildeo literal do sentido de Deus Com isso nos aproximamos da grande

significacircncia de sua concepccedilatildeo da morte de Deus que entendemos como querendo

significar principalmente crise da concepccedilatildeo de verdade A morte de Deus como aacutepice da

desvalorizaccedilatildeo da crenccedila em um mundo verdadeiro traz consigo o reconhecimento de que

a abdicaccedilatildeo da crenccedila na verdade traz de volta a liberdade de atuaccedilatildeo necessaacuteria aos

177

espiacuteritos livres Pois em sentido amplo a morte de Deus enquanto o maior evento da

histoacuteria humana leva consigo todas as certezas

Eacute assim por exemplo que Heidegger em sua avaliaccedilatildeo criacutetica da filosofia

nietzschiana interpreta a morte de Deus como um ponto central do niilismo nietzschiano

articulando este conceito com a ideia da caducidade do sentido97 Para o filoacutesofo em uma

leitura que privilegia a originalidade do pensamento nietzschiano e sua relaccedilatildeo com os

desdobramentos do niilismo esta concepccedilatildeo compreendida como momento histoacuterico

singular poderia mesmo ser resumida na expressatildeo nietzschiana ldquoDeus estaacute mortordquo que

marca um ponto de viragem entre o desenvolvimento posterior e a culminacircncia e extrema

significaccedilatildeo que o niilismo viria a obter no seacuteculo vindouro Para Heidegger se o Deus

Cristatildeo ocupa para a eacutepoca de Nietzsche o lugar de principal representaccedilatildeo do

suprassensiacutevel a denuacutencia da caducidade dessa representaccedilatildeo carrega o sentido de uma

crise na credibilidade do proacuteprio suprassensiacutevel que eacute o traccedilo fundamental do niilismo

Nietzsche emprega a palavra ldquoniilismordquo como o nome para o movimentohistoacuterico por ele reconhecido pela primeira vez que jaacute transpassava demaneira determinante os seacuteculos precedentes e que determina o seuproacuteximo seacuteculo um movimento cuja interpretaccedilatildeo essencial ele concentrana sentenccedila ldquoDeus estaacute mortordquo essa sentenccedila quer dizer o ldquoDeus cristatildeordquoperdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definiccedilatildeo do homem O ldquoDeuscristatildeordquo eacute ao mesmo tempo a representaccedilatildeo diretriz para oldquosuprassensiacutevelrdquo em geral e para as suas diversas interpretaccedilotildees para osideias e para as normas para os ldquoprinciacutepiosrdquo e as ldquoregrasrdquo para asldquofinalidadesrdquo e os ldquovaloresrdquo que satildeo erigidos ldquosobrerdquo o ente a fim de lheldquodarrdquo ao ente na totalidade uma meta uma ordem e ndash como se diz demaneira sucinta ndash um ldquosentidordquo Niilismo eacute aquele processo histoacuterico pormeio do qual o domiacutenio do ldquosuprassensiacutevelrdquo se torna nulo e caduco de talmodo que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido Niilismo eacute ahistoacuteria do proacuteprio ente uma histoacuteria por meio da qual a morte do Deuscristatildeo vem agrave tona de maneira lenta mas irremediaacutevel (HEIDEGGER2014 Paacuteg 482)

Assim na leitura heideggeriana na medida em que Deus torna-se a fundamentaccedilatildeo

do mundo suprassensiacutevel o evento descomunal da morte de Deus significa que a validade

desta realidade caduca deixa de ser atuante Com isso o conceito de Deus que estaria no

97 As polecircmicas em torno da interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana satildeo bastante conhecidasNossa referencia agrave interpretaccedilatildeo de Heidegger natildeo significa uma adesatildeo irrestrita agrave suas posiccedilotildees mas oreconhecimento de que este eacute um autor que natildeo se pode desconsiderar ao propor-se uma interpretaccedilatildeo dopensamento nietzschiano No entanto a interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana eacute tomada aquicom bastante cautela conforme jaacute antecipado na introduccedilatildeo deste trabalho

178

cerne das preocupaccedilotildees nietzschianas especialmente em relaccedilatildeo ao niilismo como a

culminacircncia e preparaccedilatildeo para a superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

quer significar apenas a validade dos valores e do sentido Na interpretaccedilatildeo heideggeriana

o conceito do Deus cristatildeo que ocupa uma posiccedilatildeo central em relaccedilatildeo ao sentido como

norma como lei e como fundamento tem a significacircncia de um agregador de sentido

metafiacutesico Assim como o niilismo como consequecircncia da crenccedila na caducidade dos

valores e das normas significaria o colapso da crenccedila na validade da realidade

suprassensiacutevel que tem seu colapso traduzido na simples expressatildeo ldquoDeus estaacute mortordquo

Com o colapso da crenccedila na verdade que tem seu correlato na moral na crenccedila

cristatilde no Deus garantidor da verdade colapsaria todo o edifiacutecio de sentido da humanidade

que na eacutepoca de Nietzsche estaria fundado no suprassensiacutevel Ainda segundo Heidegger

este problema fundamental seria mesmo o problema nietzschiano por excelecircncia Do

mesmo modo o niilismo como movimento histoacuterico que conduz ao colapso da crenccedila na

verdade representada na figura do Deus cristatildeo seria o meio atraveacutes do qual a reflexatildeo

nietzschiana poderia se constituir em uma leitura acerca do sentido metafiacutesico da

existecircncia

Podemos discordar de Heidegger na medida em que natildeo identificamos na filosofia

nietzschiana a busca por um sentido metafiacutesico da existecircncia98 Ainda assim podemos

concordar com o filoacutesofo na concepccedilatildeo que toma a morte de Deus enquanto

acontecimento filosoacutefico como possuindo um lugar de proeminecircncia entre as conclusotildees

teoacutericas de Nietzsche Do mesmo modo compreendemos que Heidegger compreende bem

esta concepccedilatildeo quando a vincula ao problema do valor e de sua crise que se expressa na

obra nietzschiana na forma do niilismo

98 Sobre a questatildeo da influecircncia de Heidegger na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas do niilismo eda morte de Deus Claudemir Araldi esclarece na nota sete do artigo de que temos nos utilizado em nossainterpretaccedilatildeo ldquoHeidegger ressalta a importacircncia da questatildeo do niilismo no pensamento de Nietzsche ateacute oponto de afirmar lsquoSeu pensamento se vecirc sob o signo do niilismorsquo (Heidegger 5 p 178) O filoacutesofo daFloresta Negra entretanto procura levar a seacuterio Nietzsche como pensador metafiacutesico situando o niilismo nahistoacuteria metafisicamente determinada do Ocidente Criticando Nietzsche Heidegger diraacute que nihil emniilismo eacute um conceito de ser e natildeo de valor Visto que Nietzsche investiga o niilismo a partir da moralHeidegger distancia-se radicalmente do projeto nietzschiano pois remete agrave essecircncia do niilismo agrave Questatildeo doSer Apesar da distacircncia entre os projetos filosoacuteficos de Nietzsche e de Heidegger parece-nos pertinente ainterpretaccedilatildeo heideggeriana do niilismo como um processo fundamental (constituiacutedo de um advento de umdesenvolvimento e por sua superaccedilatildeo) que move a Histoacuteria do Ocidente A Morte de Deus eacute o eventofundamental nesse processo tendo como consequecircncias a ruiacutena do mundo supra-sensiacutevel e a derrocada dosvalores tradicionaisrdquo (ARALDI 1998 Paacutegs 91)

179

No entanto a restituiccedilatildeo do valor agrave esfera do ser que parece ser o ponto

fundamental da interpretaccedilatildeo de Heidegger ultrapassa em muito nossa interpretaccedilatildeo da

filosofia nietzschiana Em nossa compreensatildeo seria a partir de uma reconstruccedilatildeo teoacuterica

do avanccedilo da moral cristatilde em sua eacutepoca que Nietzsche traccedilaria uma iacutentima relaccedilatildeo entre o

aspecto histoacuterico do niilismo e a questatildeo da perspectiva da genealogia dos valores morais99

Nesse sentido em sua leitura da histoacuteria do surgimento e superaccedilatildeo do niilismo

tanto o racionalismo socraacutetico quanto a fundamentaccedilatildeo da crenccedila cristatildeo ocupam lugar

privilegiado na constituiccedilatildeo de uma realidade suprassensiacutevel em que eacute depositada toda a

crenccedila e todos os valores da humanidade100 A morte de Deus seria vista nessa leitura como

uma etapa do processo de negatividade instaurado pela proacutepria loacutegica do niilismo processo

que tem seu fechamento e conclusatildeo jaacute preacute-determinado desde sua origem na criaccedilatildeo do

mundo ideal o qual Nietzsche localiza no racionalismo socraacutetico

Dessa forma o anuacutencio da morte de Deus constitui um dos aspectos de suma

importacircncia no desenvolvimento da dinacircmica proacutepria do niilismo explicitada por

Nietzsche na medida em que aqui se daria o ponto de ruptura em que o niilismo

engendraria a partir de seu progresso sua proacutepria superaccedilatildeo Atraveacutes do processo de

internalizaccedilatildeo da veracidade em seus valores fundamentais o cristianismo teria

possibilitado a tomada de consciecircncia dos paradoxos envolvidos na proacutepria crenccedila na

verdade Assim a morte de Deus representaria a tomada de consciecircncia da derrocada da

metafiacutesica na medida em que potildee abaixo sua pretensatildeo de verdade a validade das

verdades eternas e inalcanccedilaacuteveis ao homem em sua vivecircncia material O conceito de Deus

o fundamento uacuteltimo da verdade para a metafiacutesica que desde Platatildeo faz sua entrada no

reino das preocupaccedilotildees filosoacuteficas por meio da categoria de bem101 colapsa diante do

avanccedilo de uma tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo de todos os valores que eacute impulsionada pela

crenccedila da filosofia em encontrar a verdade objetiva em uma realidade extrafenomecircnica

99 Ainda conforme Araldi sobre a relaccedilatildeo entre a histoacuteria de desenvolvimento do niilismo e sua relaccedilatildeo coma moral cristatilde ldquoEacute a partir da histoacuteria da moral que o filoacutesofo procuraraacute caracterizar e validarmetodologicamente as diversas formas de niilismo Ou seja o niilismo foi cunhado na obra de Nietzsche apartir da investigaccedilatildeo da moral da qual resulta a elaboraccedilatildeo de um novo meacutetodo de anaacutelise da moral oprocedimento genealoacutegicordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 78)100 A histoacuteria de um erro a faacutebula nietzschiana expressa em Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da origem ecolapso da ideia de uma realidade ideal ou mundo verdadeiro pode ser lida em consonacircncia com estainterpretaccedilatildeo de onde se entende em que sentido a morte de Deus pode ser lida como um ponto de viragemem relaccedilatildeo agrave mentira de dois mil anos da idealidade de uma realidade apartada da realidade das perspectivas101 Conforme nota 73 ainda nesse capiacutetulo

180

Em outras palavras Nietzsche entende a concepccedilatildeo concebida no interior do

racionalismo socraacutetico como a imagem da verdade no mundo das ideias como um

ancestral da ideia de Deus que teria sido mais tarde reelaborada pelo cristianismo atraveacutes

da vinculaccedilatildeo da existecircncia de uma verdade com a existecircncia de um fundamento da

verdade Isto porque se Platatildeo compreendeu o conceito de bem como uma ideia divina

como o sol que iluminava todas as verdades este conceito moral e epistemoloacutegico encontra

na modernidade na figura do Deus cristatildeo sua uacuteltima apariccedilatildeo Nesse sentido enquanto

sustentada pelo Deus extraterreno garantidor absoluto da verdade a verdade mesma teria

se tornado divina

Na medida em que a leitura nietzschiana encontra no racionalismo socraacutetico a

origem do processo de desenvolvimento do niilismo identifica no conceito de bem de

Platatildeo uma crenccedila que embora natildeo tivesse na antiguidade o mesmo papel que Deus na sua

eacutepoca esta estreitamente relacionada com a ideia de fundamentaccedilatildeo extraterrena da

verdade Do mesmo modo o supremo geocircmetra concebido pelos modernos como aquele

que garante a validade das verdades eternas desde que as caracteriacutesticas de clareza e

distinccedilatildeo natildeo nos possibilitariam discernir o que eacute real do que eacute sonho sem que a

existecircncia do Deus veraz nos fosse necessaacuteria Com isso tem-se a origem e deslocamento

de uma crenccedila fundamental na idealidade dos valores que se reinventa atraveacutes da histoacuteria

e que ocupa na imagem do Deus cristatildeo seu uacuteltimo desenvolvimento

Do ponto de vista da filosofia nietzschiana no entanto o ponto fundamental do

anuacutencio da morte de Deus seria a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que aparece

como consequecircncia do vaacutecuo criado pelo colapso do sistema moral cientiacutefico ancorado na

ideia de uma realidade ideal Podemos portanto relacionar a morte de Deus enquanto

correlata da morte da verdade com uma representaccedilatildeo do fim das limitaccedilotildees que o proacuteprio

homem se havia imposto Assim quando renuncia agrave crenccedila em uma realidade ideal

inexistente o homem se torna apto a criar sua proacutepria realidade Mais do que isso sua

avaliaccedilatildeo dessa realidade criada da realidade de suas valoraccedilotildees natildeo sofre mais o

constrangimento de uma realidade ideal inexistente com a qual pudesse ser comparada

Nesse sentido a morte de Deus enquanto colapso da seguranccedila do fundamento

significaria a abertura de possibilidades novas de criaccedilatildeo que adveacutem do abandono das

certezas fundamentadas no nada

181

Com a morte de Deus abrem-se caminhos novos nunca trilhados102 E seria

sobretudo por isso que o anuacutencio da morte Deus ocupa o lugar que ocupa em A Gaia

Ciecircncia Pois o anuacutencio da morte de Deus nos revela que haacute um vazio no ponto de

estimaccedilatildeo ideal nada nos constrange a tomar como valiosas nossas proacuteprias estimaccedilotildees

Assim surge a possibilidade do abandono da necessidade de uma escala superior de

avaliaccedilatildeo Motivo porque tambeacutem a ideia da coragem para criar associada agrave ideia de

lanccedilar-se em novos mares eacute constantemente retomada por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia

como um convite para a alegre criaccedilatildeo de sentido que se torna possiacutevel apenas quando

abrimos matildeo das certezas que satildeo aqui representadas na imagem de velhos portos Assim

no aforismo anterior ao citado acima o filoacutesofo anuncia

No horizonte do infinito ndash Deixamos a terra firme e embarcamosQueimamos a ponte ndash mais ainda cortamos todo laccedilo com a terra queficou para traacutes Agora tenha cautela pequeno barco Junto a vocecirc estaacute ooceano eacute verdade que ele nem sempre ruge e agraves vezes se estende comoseda e ouro e devaneio de bondade Mas viratildeo momentos em que vocecircperceberaacute que ele eacute infinito e que natildeo haacute coisa mais terriacutevel que ainfinitude Oh pobre paacutessaro que se sentiu livre e agora se bate nasparedes dessa gaiola Ai de vocecirc se for acometido de saudade da terracomo se laacute tivesse havido mais liberdade ndash e jaacute natildeo existe mais terra(FWGC III sect124)

Aqui anuncia-se um aspecto fundamental do posterior desenvolvimento do niilismo

nietzschiano na aproximaccedilatildeo da necessidade de se libertar de um ponto de vitalidade baixo

com relaccedilatildeo agrave necessidade de se lanccedilar ao sem sentido para criar O anuacutencio da morte de

Deus nos diz que o homem precisa se livrar do medo do desconhecido apresentado pelo

autor como primeira consequecircncia do advento da queda dos fundamentos Eacute este medo que

se torna para o homem liberto das amarras de uma existecircncia ideal o uacutenico impedimento

para sua auto-exultaccedilatildeo Sendo assim a partir da morte de Deus o homem precisa

acostumar-se com a ausecircncia de terra firme conceitos estaacuteveis verdades absolutas pelos

quais se guiar Para ele natildeo haacute mais porto seguro possiacutevel de modo que se pode desconfiar

que aqui a humanidade se encontraria em pior estado do que quando gozava confiante da

102 Se por um lado eacute inquestionaacutevel que a imagem do mar de possibilidades que se abre com o anuacutencio damorte de Deus tem uma significaccedilatildeo moral na obra nietzschiana por outro lado esta imagem comporta aindauma significaccedilatildeo epistemoloacutegica Esta significaccedilatildeo eacute perceptiacutevel na anaacutelise do conjunto do livro em que oaforismo em questatildeo se insere Dentre estes aforismos deve ser destacado o importante aforismo 354 em queNietzsche trata de seu perspectivismo

182

ilusatildeo das verdades permanentes como se naquelas houvesse mais liberdade Nisso tudo se

passa como no estaacutegio passivo do niilismo

Poreacutem a indecisatildeo natildeo poderia durar para sempre e o proacuteprio Nietzsche parece

avanccedilar em seu otimismo na medida em que passa a refletir acerca das possibilidades

abertas pelo colapso da realidade ideal Assim quando o filoacutesofo retomar a ideia da morte

de Deus no livro cinco da mesma obra escrito quase cinco anos apoacutes o livro trecircs103 esta

ideia jaacute estaraacute claramente relacionada agrave ideia de liberdade de criaccedilatildeo tanto na esfera dos

valores quanto na esfera da investigaccedilatildeo teoacuterica No aforismo 343 de A Gaia Ciecircncia o

autor mostrasse cheio de esperanccedilas para com o futuro do homem quando consegue

absorver os efeitos do grande evento da morte de Deus Nessa passagem o autor reflete

sobre as primeiras consequecircncias do anuacutencio da morte de Deus que lanccedila suas ldquoprimeiras

sombras sobre a Europardquo e chega agrave conclusatildeo de que ao menos para os espiacuteritos livres os

poucos corajosos e desejosos o suficiente para ainda criar a morte de Deus representa uma

libertaccedilatildeo a promessa de novos mares abertos

O sentido de nossa jovialidade - O maior acontecimentos recentes- O fato de que ldquoDeus estaacute mortordquo de que a crenccedila no Deus cristatildeoperdeu o creacutedito ndash jaacute comeccedila a lanccedilar suas primeiras sombras sobre aEuropa Ao menos para aqueles poucos cujo olhar cuja suspeita no olhareacute forte e refinada o bastante para esse espetaacuteculo algum sol parece ter seposto alguma velha e profunda confianccedila parece ter se transformado emduacutevida para eles nosso velho mundo deve aparecer cada dia maiscrepuscular mais desconfiado mais estranho ldquomais velhordquo (hellip) De fatonoacutes filoacutesofos e ldquoespiacuteritos livresrdquo ante a notiacutecia de que ldquoo velho Deusmorreurdquo nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nossocoraccedilatildeo transborda de gratidatildeo espanto pressentimento expectativa mdashenfim o horizonte nos aparece novamente livre embora natildeo esteja limpoenfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todoperigo novamente eacute permitida toda a ousadia de quem busca oconhecimento o mar o nosso mar estaacute novamente aberto eprovavelmente nunca houve tanto ldquomar abertordquo (FWGC Livro Vsect343)

Na medida em que o autor identifica os filoacutesofos e os espiacuteritos livres como aqueles

que vislumbram com otimismo ldquogratidatildeo espanto pressentimento expectativardquo o grande

evento da morte de Deus qualifica estes como aqueles capazes de mesmo diante da

103 A Gaia Ciecircncia foi redigida por Nietzsche em trecircs momentos distintos primeiramente em 1881 o quartolivro em 1882 e recebe um novo prefaacutecio e o quinto livro em 1886

183

evidecircncia da mais completa cataacutestrofe experimentada pelo gecircnero humano se lanccedilar agrave

criaccedilatildeo A estes no entanto o filoacutesofo contrasta os entristecidos pelo escurecimento pelo

obscurecimento do proacuteprio sol novamente em uma referecircncia clara agrave antiga concepccedilatildeo

platocircnica do bem Com isso o autor nos apresenta a dualidade do evento da morte de Deus

que por sua vez nos remete agrave jaacute referida ambiguidade do niilismo

Partindo da distinccedilatildeo entre o niilismo passivo e o niilismo ativo podemos

representar dois momentos apresentados em A Gaia Ciecircncia como consequecircncias da morte

de Deus Em uma analogia direta entre a forma como o niilismo ativo se distingue do

niilismo passivo poderiacuteamos dizer que a ideia de que a falta de sentido apresentada aqui

por meio da imagem do novo infinito do mar aberto condiciona duas formas de encarar o

evento da morte de Deus simboliza a possibilidade de superaccedilatildeo da inaccedilatildeo por meio de

uma atitude afirmativa diante da responsabilidade pela criaccedilatildeo

A queda dos fundamentos simbolizada aqui pelo evento da morte de Deus eacute

apresentada como evento ainda incerto que divide a humanidade em dois tipos diferentes

reconhecidos na histoacuteria do conhecimento atraveacutes de duas atitudes opostas diametralmente

Se por um lado a queda dos fundamentos representa para o filoacutesofo da tradiccedilatildeo o fim do

conhecimento e desespero das ciecircncias para os espiacuteritos livres os filoacutesofos do futuro tal

acontecimento representa a afirmaccedilatildeo de ldquotoda ousadia do conhecedorrdquo que agora pode se

lanccedilar sobre um mar de possibilidades Assim em um aforismo do livro cinco de A Gaia

Ciecircncia o filoacutesofo retoma a questatildeo das novas possibilidades de criaccedilatildeo abertas com a

mote de Deus

O mundo tornou-se novamente ldquoinfinitordquo para noacutes na medida em que natildeopodemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitasinterpretaccedilotildees Mais uma vez nos acomete o grande tremor mdash mas quemteria vontade de imediatamente divinizar de novo agrave maneira antiga essemonstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecidocomo ldquoo ser desconhecidordquo Ah estatildeo incluiacutedas demasiadaspossibilidades natildeo divinas de interpretaccedilatildeo nesse desconhecidodemasiada diabrura estupidez tolice de interpretaccedilatildeo mdasha nossa proacutepriahumana demasiado humana que bem conhecemoshellip (FWGC Livro Vsect374)

184

Nesse aforismo em que Nietzsche reflete acerca da pluralidade de perspectivas

inerentes agrave nova forma de contemplar a realidade a partir da morte de Deus surge a

afirmaccedilatildeo do nosso novo infinito de possibilidade de criar e o temor advindo dessa

possibilidade que surge como consequecircncia da exposiccedilatildeo dos perigos agenciados pela

morte de Deus A afirmaccedilatildeo do caraacuteter perspectivo da existecircncia inerente a uma forma de

conceber a realidade que se liberta das certezas fundamentadas na concepccedilatildeo tradicional de

verdade representa a antecipaccedilatildeo do problema fundamental do conflito entre o niilismo o

pessimismo da existecircncia e a proacutepria perspectiva o caraacuteter mais imediato da existecircncia

Em sua leitura do avanccedilo do niilismo como vimos em seccedilotildees anteriores a postura

eminentemente antiniilista de conceber a verdade eacute sempre representada por meio da

referecircncia ao perspectivo ao ponto de vista agrave acuidade do olhar Estas satildeo sempre formas

de interpretar que o autor apontaraacute em oposiccedilatildeo ao racionalismo socraacutetico e ao

cristianismo com o intuito de demarcar a diferenccedila essencial entre os ideais regidos pela

negatividade e a concepccedilatildeo afirmativa da existecircncia Assim a morte de Deus tal como

Nietzsche parece entender este pensamento profundo surge aqui como uma completa

compreensatildeo da ausecircncia de sentido da vida do homem a partir da qual surge na vacacircncia

do trono divino a possibilidade do proacuteprio homem ocupar o lugar de significaccedilatildeo maacutexima

que eacute representada na possibilidade de se divinizar perspectivas

Aleacutem do Deus cristatildeo no entanto tambeacutem outros iacutedolos necessitam ser demolidos

Entre eles os princiacutepios da moral todos eles entendidos na leitura nietzschiana como

estando fundados na crenccedila em uma realidade suprassensiacutevel Ou seja todo princiacutepio

considerado aqui como reminiscecircncia das ideias platocircnicas como formas de valores

superiores ateacute entatildeo Assim em obras posteriores em que o niilismo eacute tratado por

Nietzsche em maior profundidade tais como Para Aleacutem de Bem e Mal Para a Genealogia

da Moral e O Anticristo assim como nos fragmentos contemporacircneos a estas haacute a

indicaccedilatildeo de sintomas pelos quais o acontecimento da morte de Deus e suas consequecircncias

para o futuro do homem satildeo retratadas como o resultado de uma profunda crise

Partindo de uma concepccedilatildeo afirmativa advinda do panorama aberto pela morte de

Deus o filoacutesofo concebe a possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo que eacute marcado pela

crenccedila nas verdades fundamentadas na ideia de bem Assim pode-se afirmar que na

terceira fase da obra nietzschiana o filoacutesofo estaria de posse de tudo que eacute fundamental

185

para a proposiccedilatildeo de uma soluccedilatildeo para o problema do niilismo assim como das possiacuteveis

vias de superaccedilatildeo no pensamento dogmaacutetico

35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar

Entre os comentaacuterios do pensamento nietzschiano com frequecircncia nos deparamos

com um tratamento eminentemente criacutetico do sentido de niilismo na obra deste autor Por

estas leituras serem tratadas como uma reflexatildeo acerca dos valores e sua corrupccedilatildeo por

desprezar o aspecto deleteacuterio desse conceito em relaccedilatildeo aos valores epistemoloacutegicos a

anaacutelise do niilismo suportada nestas leituras acaba por mostrar-se uma leitura parcial

Assim na medida em que o niilismo eacute contemplado nestes comentaacuterios exclusivamente

com base em sua implicaccedilatildeo criacutetica enquanto processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores a

ele logo eacute associada a criacutetica nietzschiana agrave moral

Por outro lado um exame atento dos textos nietzschianos demonstraria a forma

como o filoacutesofo relaciona a corrupccedilatildeo dos valores morais com a corrupccedilatildeo dos princiacutepios

epistemoloacutegicos Pois o autor reconhece na concepccedilatildeo tradicional de verdade assim como

a submissatildeo cega da ciecircncia a esta concepccedilatildeo traccedilos de uma moral niilista Uma leitura

neste sentido propiciaria uma interpretaccedilatildeo segundo a qual a desconfianccedila nietzschiana

para com os fundamentos morais da concepccedilatildeo tradicional de verdade acaba por despertar

no filoacutesofo a necessidade de repensar o valor do conhecimento posto que considera que

este teria se enredado com uma vontade de verdade estranha aos fundamentos da proacutepria

vida

Se por um lado o niilismo nietzschiano eacute concebido como a loacutegica de corrupccedilatildeo

dos valores por outro percebe-se que o autor pensa essa desvalorizaccedilatildeo como atingindo

tambeacutem o acircmbito do conhecimento Nesta leitura se Nietzsche rejeita as concepccedilotildees

tradicionais de verdade e conhecimento tal se daria porque reconhece nestas concepccedilotildees

elementos constitutivos de uma vontade de verdade que para o filoacutesofo seriam expressatildeo

de uma moral decadente Tendo em vista a superaccedilatildeo desta moral decadente Nietzsche

contrapotildee agrave concepccedilatildeo tradicional de ciecircncia uma concepccedilatildeo de conhecimento pensada em

186

conformidade com os preceitos da vida Por sua vez em sua explicitaccedilatildeo dos preceitos

internos agrave proacutepria vida o filoacutesofo se utiliza da categoria de vontade de potecircncia uma

interpretaccedilatildeo da realidade em sua loacutegica interna que viabilizaria uma concepccedilatildeo de

conhecimento afeita aos princiacutepios da proacutepria vida

Tendo em vista a superaccedilatildeo do niilismo Nietzsche expotildee a loacutegica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes de um procedimento genealoacutegico chegando a uma

forma de niilismo em que as verdades eternas mesmas concepccedilatildeo que desencadeia o

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores eacute reconhecida como uma concepccedilatildeo sem valor Se

eacute a proacutepria concepccedilatildeo da realidade ideal que confere ao niilismo sua limitaccedilatildeo na medida

que as exigecircncias da concepccedilatildeo de verdade inerente a essa criaccedilatildeo deve culminar em um

exame das concepccedilotildees cientiacuteficas morais e filosoacuteficas que delas eacute dependente entatildeo o

advento do niilismo prepara as condiccedilotildees do surgimento desenvolvimento e queda dos

valores supremos segundo uma dinacircmica de autossuperaccedilatildeo (Selbstaufhebung) dos valores

ideais104

A anaacutelise genealoacutegica do niilismo conduz agrave identificaccedilatildeo de uma dinacircmica de

desvalorizaccedilatildeo dos valores superiores que potildee em riso a existecircncia humana na medida em

que esta existecircncia apenas pode se dar com base em uma avaliaccedilatildeo segundo uma hierarquia

de dominaccedilatildeo e subjugaccedilatildeo Por sua vez a consideraccedilatildeo do aspecto ativo do niilismo

dentro da dinacircmica de desenvolvimento interna ao niilismo conduz agrave compreensatildeo de que

a destituiccedilatildeo dos valores apesar de atuar de forma debilitante em algumas naturezas

conduzindo ao niilismo passivo e consequentemente agrave criaccedilatildeo de valores morais

decadentes pode ser considerado do ponto de vista de naturezas melhores condicionadas

104 Na leitura heideggeriana toda forma de conceber a realidade segundo princiacutepios enquanto forma deordenamento de comando constitui seus valores e eacute portanto uma forma de moral uma metafiacutesica dosvalores Nesse sentido se Heidegger pensa que toda filosofia posterior a Platatildeo eacute uma concepccedilatildeo metafiacutesicana medida em que pensa o ente a partir de valores dados ou seja se ldquoNesse entendimento toda a filosofiadesde Platatildeo se transforma em uma metafiacutesica dos valoresrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 652) entatildeo tambeacutem afilosofia nietzschiana poderia ser compreendida como uma metafiacutesica dos valores Assim na leituraheideggeriana o confronto de Nietzsche com a metafiacutesica platocircnica faz da filosofia nietzschiana uma formainvertida de platonismo e desse modo ainda uma especulaccedilatildeo metafiacutesica da realidade Ao contrapor-se aessa tese heideggeriana fundamental Scarlett Marton procura analisar a filosofia nietzschiana como umprojeto de filosofia da natureza uma cosmologia em sentido similar agravequele dos filoacutesofos preacute-socraacuteticosNeste sentido a radicalidade da filosofia nietzschiana ldquonatildeo residiria na tentativa de levar a metafiacutesica ateacutesuas uacuteltimas consequecircncias [Heidegger] nem no ensaio de inaugurar novas teacutecnicas de interpretaccedilatildeo[Foucault]rdquo (MARTON 1990 p 13) mas na tentativa de reduzir todos os processos de formaccedilatildeo de valor auma instacircncia especiacutefica a vontade de potecircncia que apoiada em dados cientiacuteficos deve constituir a basedesta cosmologia

187

tornando-se niilismo ativo e conduzindo a uma compreensatildeo interpretativa da realidade

Ou como nos diz Claudemir Araldi

A compreensatildeo nietzschiana da moral como a ldquoteoria das relaccedilotildees dedominaccedilatildeo sob as quais se origina o fenocircmeno lsquovidarsquordquo (JGBBM sect19)implica na admissatildeo da ambiguumlidade do termo a moral pode engendrarum povo e indiviacuteduos superiores ou pode levar agrave decadecircncia dependendode qual fonte os valores satildeo criados da vida afirmativa ou da vida doenteAo examinar a preacute-histoacuteria da moral o periacuteodo da eticidade dos costumes(die Sittlichkeit der Sitte) Nietzsche constata que o processo da eticidadedos costumes tem como termo o indiviacuteduo soberano (das souveraineIndividuum) autocircnomo e extra-moral que por fim se liberta da coaccedilatildeo edos deveres morais a que estava vinculado (GMGM II 2))Compreendida desse modo a moral eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para aautodisciplina e auto-superaccedilatildeo do homem (ARALDI 1998 Paacutegs 79)

Segundo a dinacircmica proacutepria desse movimento tal como Nietzsche a descortina o

niilismo ativo do qual surge a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria sua

radicalizaccedilatildeo na emergecircncia de uma forma de niilismo extremado em que os proacuteprios

princiacutepios da dinacircmica do niilismo satildeo questionados Com a emergecircncia dessa forma de

niilismo extremo que levaria a termo as potencialidades do niilismo ativo uma tendecircncia a

um perecer para tudo aquilo que fenece uma vontade de nada para tudo aquilo que anseia

pelo fim eacute posta em praacutetica por meio da negaccedilatildeo da proacutepria concepccedilatildeo de uma verdade em

si105 que culmina com o grande evento da morte de Deus

De maneira geral o processo histoacuterico de desenvolvimento e radicalizaccedilatildeo do

niilismo eacute concebido por Nietzsche como algo que apenas pode ser conduzido a termo por

meio de sua vivecircncia ateacute o fim atraveacutes da vivecircncia de uma forma radical de niilismo106

Nesse sentido se por um lado o niilismo eacute um mal para as naturezas fraacutegeis aquelas que

105 Eacute neste sentido que Heidegger pensa a realizaccedilatildeo do niilismo ativo como a realizaccedilatildeo de que aquilo quequer perecer deve perecer ldquoEm contrapartida o niilismo lsquoativorsquo interveacutem revoluciona na medida em que seexpotildee a partir do modo de vida ateacute aqui e inspira com razatildeo ainda maior ao lsquoanseio pelo fimrsquo aquilo que querperecerrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Assim se a concepccedilatildeo de uma realidade em si eacute vista na leituranietzschiana como obra de uma vontade cansada que quer perecer a contemplaccedilatildeo do sem sentido dessaconcepccedilatildeo apenas faz perecer essa vontade cansada106 Em sua leitura do problema do niilismo e do papel que esta concepccedilatildeo desempenharia na histoacuteria doocidente Heidegger afirma ldquoPara se tornar completo o niilismo precisa atravessar o lsquoextremorsquordquo(HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Para o filoacutesofo ldquoO lsquoniilismo extremorsquo reconhece que natildeo haacute nenhumalsquoverdade eterna em sirsquo Na medida em que soacute se conforma determinadamente com essa intelecccedilatildeo e em queobserva a decadecircncia dos valores supremos ateacute aqui ele permanece passivordquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg657)

188

dependem do valor das verdades em si por outro ele implica um bem para as naturezas

afeitas agrave necessidade de criaccedilatildeo de valor como apresentaccedilatildeo da possibilidade de um novo

modo de valorar Torna-se entatildeo necessaacuterio compreender de que forma o niilismo ativo

concebido em conformidade com a concepccedilatildeo do fim da verdade que eacute anunciada por

Nietzsche no grande evento da morte de Deus culminaria em uma forma de pensar que ao

mesmo tempo identificada com o niilismo propicia as condiccedilotildees da superaccedilatildeo da dinacircmica

da desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes da renuacutencia agrave criaccedilatildeo de uma realidade ideal

Na medida em que o niilismo passivo eacute pensado por Nietzsche como contraacuterio ao

proacuteprio estabelecimento de valores que eacute preacute-condiccedilatildeo para a vida sua superaccedilatildeo se daria

com base na observaccedilatildeo dos aspectos fortalecedores da vida entre os quais Nietzsche

destaca a perspectividade Nesse sentido a capacidade de criar valores que se entende

desde o princiacutepio apenas como criaccedilotildees portanto valores que natildeo se deixam determinar

pelas exigecircncias da veracidade constituem o acircmago de uma nova moral a partir de

Nietzsche assim como da proacutepria concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento107 Por esta

razatildeo o filoacutesofo pensa a possibilidade de se estabelecerem valores como criaccedilotildees cujo

fundamentos natildeo teriam relaccedilotildees com a concepccedilatildeo tradicional de verdade e que portanto

natildeo reclamam para si um acesso privilegiado a um acircmbito objetivo

Para Nietzsche todas as revoluccedilotildees observadas na modernidade significariam uma

tentativa de ocupar o lugar da veracidade que colapsa conservando as mesmas estruturas e

por isso para o filoacutesofo estariam fadadas ao fracasso Neste ponto o filoacutesofo reflete

acerca da superaccedilatildeo do niilismo e pensa que esta natildeo poderia prescindir de uma

reavaliaccedilatildeo da estrutura mesma de fundamentaccedilatildeo dos valores Nesse sentido a proacutepria

veracidade que o filoacutesofo entendia como a fundamentaccedilatildeo do mundo verdadeiro na figura

de um Deus garantidor da verdade passa por uma revisatildeo Por isso o filoacutesofo pensa que

uma verdadeira superaccedilatildeo do niilismo apenas se tornaria possiacutevel por meio de uma

radicalizaccedilatildeo do niilismo mesmo o que significaria a destruiccedilatildeo dos princiacutepios de

107 Pois como Araldi ressalta haacute traccedilos do niilismo em todas as formas de cultura contemporacircnea inclusiveem teoria do conhecimento ldquoA reflexatildeo de Nietzsche sobre si e sobre sua eacutepoca eacute elaborada filosoficamenteem termos de niilismo O niilismo que se origina e se desenvolve a partir da moral radicaliza-se namodernidade tanto na teoria quanto na praacutetica haacute traccedilos niilistas na teoria do conhecimento na moral nasciecircncias naturais na poliacutetica na esteacutetica (XII 2 (131) Natildeo haacute como fugir desse hoacutespede inquietante que seinstala sorrateiramente em todos os domiacutenios da modernidaderdquo (ARALDI 1998 Paacuteg 87)

189

avaliaccedilatildeo dominantes A ideia de uma superaccedilatildeo do niilismo pelos filoacutesofos do futuro

aparece por exemplo em um aforismo de A Genealogia da Moral

Algum dia poreacutem num tempo mais forte do que esse presente murchoinseguro de si mesmo ele viraacute o homem redentor o homem do grandeamor e do grande desprezo o espiacuterito criador cuja forccedila impulsoraafastaraacute sempre de toda transcendecircncia e toda insignificacircncia cujasolidatildeo seraacute mal compreendida pelo povo como se fosse fuga darealidade quando seraacute apenas a sua imersatildeo absorccedilatildeo penetraccedilatildeo narealidade para que ao retornar agrave luz do dia ele possa trazer a redenccedilatildeodessa realidade sua redenccedilatildeo da maldiccedilatildeo que o ideal existente sobre elalanccedilou Esse homem do futuro que nos salvaraacute natildeo soacute do ideal vigentecomo daquilo que dele forccedilosamente nasceria do grande nojo da vontadede nada do niilismo esse toque de sino do meio-dia e da grande decisatildeoque torna novamente livre a vontade que devolve agrave terra sua finalidade eao homem sua esperanccedila esse anticristatildeo e antiniilista esse vencedor deDeus e do nada ele tem que vir um dia (GMGM II sect24)

Atraveacutes do recurso agrave imagem dos homens do futuro que pensam de forma

divergente do estabelecido pelo ldquoideal vigenterdquo Nietzsche antecipa um ponto de viragem

na histoacuteria dos valores ateacute entatildeo Para o filoacutesofo as diferentes formas do niilismo o

primeiro como uma forma de debilidade uma representaccedilatildeo da incapacidade de fixar

valores verdadeiramente novos o segundo como expressatildeo da forccedila como tendecircncia a

destruiccedilatildeo dos valores antigos representariam a expressatildeo de instintos fundamentais

atuando por traacutes da atividade de criaccedilatildeo de valores e que culminariam na substituiccedilatildeo do

ideal pela criaccedilatildeo Esta revoluccedilatildeo do pensamento se daria como um anuacutencio do meio dia o

momento da menor sombra em que a vontade deixa de ser vontade de verdade e torna-se

vontade livre Esta ideia tem similaridade com o que Nietzsche expotildee na segunda seccedilatildeo do

Ensaio sobre Verdade e Mentira acerca da forma como o intelecto se liberta da pressatildeo da

necessidade e torna-se criador de produccedilotildees artiacutesticas que reconhece como manifestaccedilotildees

mais puras de um princiacutepio natural criador de metaacuteforas108

Na medida em que o filoacutesofo entende que a tendecircncia humana agrave formulaccedilatildeo de

conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural a capacidade de criaccedilatildeo aparece

como impulso para a arte e para as ciecircncias Assim ainda quando qualifica sua eacutepoca como

sendo culturalmente dominada pela primordialidade da ciecircncia portanto como uma eacutepoca

ameaccedilada pelo enrijecimento do esquema conceitual e da cega obediecircncia agrave vontade de

108 Conforme exposto na seccedilatildeo 224 do primeiro capiacutetulo desse trabalho

190

verdade que possibilita a expansatildeo dos domiacutenios das ciecircncias todo esse progresso

cientiacutefico apenas aponta para a emergecircncia de uma nova veracidade que se compreende em

seu caraacuteter criativo Pois apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida humano

tender a uma expansatildeo contiacutenua a atividade criativa do intelecto a que deve-se a

capacidade de conversatildeo de metaacuteforas em conceitos assim como dos produtos artiacutesticos

nunca deixa de atuar nos homens sendo mesmo seu traccedilo caracteriacutestico

No entanto esta forma de niilismo ativo seria marcada pela radicalidade de sua

novidade Esta novidade eacute compreendida como provindo da consciecircncia mesma do

aprofundamento do niilismo sem a qual o filoacutesofo pensa que natildeo seria possiacutevel a inversatildeo

dos valores proacutepria da filosofia do futuro a qual pensa contemplar Ou seja o filoacutesofo

concebe sua proacutepria praacutetica filosoacutefica assim como toda a filosofia do futuro como

expressotildees de uma forma ativa produtiva de niilismo Pois essa filosofia do futuro seria

profundamente determinada pela consciecircncia da natildeo existecircncia de verdades em sentido

tradicional Natildeo admira portanto que sua concepccedilatildeo de conhecimento funde-se na mesma

certeza que para o filoacutesofo inaugura o niilismo

Que natildeo haacute verdades que natildeo haacute constituiccedilatildeo absoluta das coisas quenatildeo haacute ldquocoisa em sirdquo ndash isso mesmo eacute um niilismo e o mais extremoColocar o valor das coisas precisamente em que a esse valor natildeo lhecorresponde nem lhe correspondeu nenhuma realidade senatildeo que eacuteapenas um sintoma de forccedila por parte de quem institui o valor umasimplificaccedilatildeo com o fim da vida (NFFP1887 9 [35])

Por traacutes da compreensatildeo criacutetica acerca do conhecimento suportada na fase madura

de seu pensamento permanece a mesma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que eacute

inerente ao niilismo mais extremo Na medida em que esta estaria fundada na compreensatildeo

fundamental da ausecircncia de verdades e da ausecircncia de um mundo de ldquocoisas em sirdquo como

um ponto de vista exterior a todas as formas de avaliaccedilatildeo a ela corresponderia uma forma

extrema de niilismo Do mesmo modo a compreensatildeo de que nenhum valor corresponde agrave

realidade mas que apresenta-se como resultado de uma avaliaccedilatildeo que toma a vida como

medida compreensatildeo que remonta agraves primeiras investigaccedilotildees do autor acerca da natureza

da concepccedilatildeo tradicional de finalidade natural permanece em seu pensamento da

necessidade de superaccedilatildeo do niilismo Em sua leitura no entanto a desconfianccedila para com

191

a concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute traduzida em uma interpretaccedilatildeo em que seria a forccedila

de quem institui os valores que garantem a validade da concepccedilatildeo suportada

A verdade seria nessa leitura resultante das forccedilas em jogo na sustentaccedilatildeo de uma

determinada concepccedilatildeo Isto sem duacutevida implicaria em uma imposiccedilatildeo posto que eacute a

maior forccedila em accedilatildeo em uma determinada compreensatildeo da realidade natildeo sua veracidade

em sentido tradicional que garante sua superioridade Por sua vez a esta imposiccedilatildeo de

valores corresponderia uma simplificaccedilatildeo ldquocom o fim da vidardquo ou seja uma simplificaccedilatildeo

para efeitos de sobrevivecircncia Pois as valoraccedilotildees possibilitadas pela dominacircncia de uma

determinada forma de compreender a realidade correspondem apenas a uma parcela da

objetividade geral que seria garantida apenas de forma hipoteacutetica pela consideraccedilatildeo do

maior nuacutemero possiacutevel de formas de compreensatildeo da realidade

O aspecto fundamental da compreensatildeo nietzschiana acerca da verdade

compreensatildeo em que a verdade passa a ser entendida como uma restriccedilatildeo da esfera de

criaccedilatildeo de valores agraves necessidades de cada ser interpretante pode ser compreendida como

reflexo de uma concepccedilatildeo nietzschiana de juventude acerca da verdade No entanto eacute

preciso assinalar que na maturidade de seu pensamento a compreensatildeo da dinacircmica

proacutepria do niilismo desempenha um papel fundamental em suas consideraccedilotildees acerca da

natureza do conhecimento e da verdade Pois na medida em que o filoacutesofo pensa que esta

concepccedilatildeo de conhecimento se relaciona intimamente com ldquoO niilismo enquanto negaccedilatildeo

de um mundo verdadeiro de um serrdquo (NFFP 1887 9 [41]) e que por isso mesmo

ldquopoderia ser um modo de pensamento divino (NFFP 1887 9 [41]) podemos concluir que

sua concepccedilatildeo madura apenas se torna possiacutevel mediante a identificaccedilatildeo da dinacircmica

proacutepria de desenvolvimento do niilismo

A concepccedilatildeo expressa por Nietzsche em seus textos de juventude de que a verdade

que nos interessa corresponderia apenas a uma simplificaccedilatildeo para fins da sobrevivecircncia

retorna em seu pensamento de maturidade como fundamento uacuteltimo de seu perspectivismo

Assim sua compreensatildeo madura acerca do conhecimento distingue-se de suas concepccedilotildees

de juventude na medida em que eacute entendida como uma etapa no processo que

caracterizaria uma forma de superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores

constituiacutedos Segundo esta compreensatildeo apenas conforme uma interpretaccedilatildeo do

192

perspectivismo nietzschiano como representando uma forma divina de pensar se pode

reconhecer um aspecto positivo na admissatildeo nietzschiana de seu niilismo109

Na medida em que a noccedilatildeo de niilismo tem dois sentidos no interior da reflexatildeo

nietzschiana e que passamos de uma forma de niilismo passivo para uma forma afirmativa

de niilismo faz sentido pensar que o autor localizava seu pensamento como uma forma

afirmativa de niilismo Forma que prepara os passos para sua radicalizaccedilatildeo Assim

enquanto uma forma de niilismo fundado na concepccedilatildeo da inexistecircncia da verdade a forma

de niilismo extremo ao qual o pensamento nietzschiano poderia ser relacionado diria

respeito agrave consciecircncia da ausecircncia de verdades consciecircncia que constrange agrave criaccedilatildeo de

valores novos a partir de uma vontade afirmativa Nesse sentido esta forma de niilismo se

distinguiria fortemente de uma forma passiva de niilismo que atuando segundo a vontade

de verdade natildeo se vecirc capaz da criaccedilatildeo de novos valores embora compreenda os valores

antigos como sendo valores fundados em um mundo inexistente

Na leitura nietzschiana a forma mais extrema de niilismo estaria vinculada agrave

concepccedilatildeo de que todas as crenccedilas satildeo falsas Esta forma de compreender segundo a qual

todas as crenccedilas seriam falsas apenas poderia se fundamentar na certeza da inexistecircncia de

uma realidade ideal na certeza da inexistecircncia de um fundamento uacuteltimo da verdade A

esta forma de niilismo corresponderia a negaccedilatildeo de toda certeza assim como a

impossibilidade de toda forma de valoraccedilatildeo Tendo em vista sua sobrevivecircncia o homem

crecirc naquilo que precisa crer para continuar vivendo Assim o homem passa a crer na

veracidade de seus discursos na correspondecircncia de sua linguagem em relaccedilatildeo a uma

realidade ideal em tudo por fim que garanta sua permanecircncia na terra No entanto o que

eacute uma crenccedila Para Nietzsche esta pergunta estaria relacionada ao caraacuteter perspectiviacutestico

da realidade

O que eacute uma crenccedila Como surge Toda crenccedila eacute um tomar-por-verdadeiro ( fuumlr-wahr-halten) A forma extrema do niilismo seria que toda crenccedila todo tomar-por-verdadeiro eacute necessariamente falso porque natildeo haacute em absoluto um mundoverdadeiro Portanto uma aparecircncia perspectivista cuja origem estaacute em noacutesmesmos (enquanto temos necessidade permanentemente de um mundo maisestreito abreviado simplificado ndash que a medida da forccedila eacute o grau em que

109 Segundo uma interpretaccedilatildeo do fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9 [123]) apresentada no iniacutecio destecapiacutetulo

193

podemos admitir a aparencialidade a necessidade da mentira sem sucumbir(NFFP 1887 9[41])

A crenccedila nada mais eacute do que a confianccedila na veracidade de uma concepccedilatildeo para ela

portanto natildeo interessa a veracidade da concepccedilatildeo em jogo Por outro lado para Nietzsche

este tomar por verdadeiro daquilo que necessitamos crer para viver corresponderia a uma

aparecircncia perspectivista da realidade Ou seja a origem da forccedila de toda crenccedila a

capacidade de se tomar por verdadeiro o que eacute necessaacuterio para nossa sobrevivecircncia estaria

em nosso interior E o que determinaria a nobreza do homem seria o fato da natureza o ter

munido de um intelecto capaz de criar estas condiccedilotildees para sua sobrevivecircncia A esta

capacidade corresponderia nossa capacidade de criar uma realidade cada vez mais criacutevel

Mas como Nietzsche antecipa em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira esta potencialidade

do intelecto apenas foi dada ao homem porque este seria o animal mais ameaccedilado o mais

fraacutegil frente as demais espeacutecies o que o teria tornado o animal mais dependente de

aparecircncias para sobreviver

Por outro lado enquanto a fraqueza de um ser vivo possa ser determinada pela

quantidade de acessoacuterios de que este depende para sobreviver a forccedila do homem poderia

ser determinada pela quantidade de ilusotildees de que este depende para sua manutenccedilatildeo Em

outros termos de quantas ilusotildees quantas crenccedilas poderia o homem se livrar sem

sucumbir Posto em termos nietzschiano quatildeo longe o homem poderia se aprofundar no

niilismo sem sucumbir A isto Nietzsche chama experimento a ideia de que algumas

naturezas sucumbem enquanto outras florescem na compreensatildeo de que a vida natildeo tem

valor aleacutem do valor que damos a ela

Nesse sentido a partir da vacuidade de sentido gerada na corrupccedilatildeo das certezas

inerente ao grande evento da morte de Deus o filoacutesofo pensa a possibilidade do

surgimento de uma forma de pensar afirmativa em relaccedilatildeo ao terriacutevel da existecircncia ateacute

mesmo de sua falta de sentido radical A esta forma de pensar Nietzsche as vezes se refere

como pensamento traacutegico as vezes como concepccedilatildeo dionisiacuteaca da realidade Nessa

concepccedilatildeo o filoacutesofo parece vislumbrar o surgimento de uma nova forma de filoacutesofos

Filoacutesofos traacutegicos capazes de apropriar-se de forma ativa de sua potencialidade criativa

superando a negatividade do niilismo atraveacutes de sua consumaccedilatildeo

194

Noacutes os pensantes-que-sentem somos os que de fato e continuamentefazem algo que ainda natildeo existe o inteiro mundo em eterno crescimentode avaliaccedilotildees cores pesos perspectivas degraus afirmaccedilotildees e negaccedilotildeesEsse poema de nossa invenccedilatildeo eacute pelos chamados homens praacuteticos(nossos atores como disse) permanentemente aprendido exercitadotraduzido em carne e realidade em cotidianidade O que quer que tenhavalor no mundo de hoje natildeo o tem em si conforme sua natureza mdash anatureza eacute sempre isenta de valor mdashfoi-lhe dado oferecido um valor efomos noacutes esses doadores e ofertadores O mundo que tem alguminteresse para o ser humano fomos noacutes que o criamos mdashMas justamenteeste saber nos falta e se num instante o colhemos no instante seguintevoltamos a esquececirc-lo desconhecemos nossa melhor capacidade e nossubestimamos um pouco noacutes os contemplativos mdash natildeo somos tatildeoorgulhosos nem tatildeo felizes quanto poderiacuteamos ser (FWGC IV sect301)

O pensamento do futuro portanto seria a retomada de uma forma de filosofia de

artista no sentido em que os novos filoacutesofos deveriam empoderar-se de sua capacidade

criar valor atraveacutes das criaccedilotildees de seu intelecto O uacuteltimo homem aquele que sofre ainda

das consequecircncias negativas da morte de Deus seria incapaz deste empoderamento A ele

se assemelharia um artista que se perde na criaccedilatildeo e por vezes perde o sentido de sua

criaccedilatildeo Inerente a este tipo de filosofia estaria a capacidade de conviver com um grau

elevado de ilusotildees sem deteriorar seu valor por conta da independecircncia dessas ilusotildees de

uma realidade ideal

Em sua reflexatildeo acerca do conhecimento Nietzsche pensa o homem como criador

de valor que por vezes esquece-se dessa propensatildeo de sua natureza Em certo sentido o

filoacutesofo compreende que algumas formas de constituiccedilatildeo vital vinculadas pelo filoacutesofo a

uma moral decadente e a uma ciecircncia dogmaacutetica tornam-se extremamente dependentes do

tipo de verdade concebida no interior de uma concepccedilatildeo platocircnica da realidade enquanto

outras formas segundo Nietzsche melhor constituiacutedas tem sua vitalidade vinculada agrave

negaccedilatildeo desse tipo de realidade ideal A sua noccedilatildeo de experimento assim significaria uma

forma de pensar as manifestaccedilotildees niilistas da cultura como sintomas de enfraquecimento

vital

Nesta leitura a consciecircncia da ausecircncia de verdades absolutas possibilitaria a

criaccedilatildeo de valores novos nos quais temos consciecircncia da falta absoluta de fundamentaccedilatildeo

Sendo assim o pensamento maduro nietzschiano compreendido dentro dos limites de uma

195

consideraccedilatildeo acerca da possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria como base a

consciecircncia de que toda crenccedila eacute essencialmente falsa A esta consciecircncia estaria vinculada

a certeza de que toda crenccedila seria efeito de uma confianccedila na veracidade de uma

concepccedilatildeo e natildeo de sua veracidade propriamente Acreditamos que a referecircncia ao

perspectivo no fragmento poacutestumo citado acima natildeo eacute aleatoacuteria nem mesmo indireta mas

que diz respeito aos princiacutepios que Nietzsche faz constar como elementos fundamentais de

sua compreensatildeo afirmativa do conhecimento Ou seja o questionamento do quanto de

verdade um ser vivente suporta sem sucumbir110 constitui-se como as bases para a

compreensatildeo de um modo divino de pensar

O perspectivismo enquanto pensamento radical que se contrapotildee a toda verdade

absoluta a todo ser enquanto fundamento da existecircncia representaria assim o modo de

pensar divino que afirma de modo criativo a falta de sentido da existecircncia Esta

compreensatildeo da perspectividade de toda suposta verdade refletiria aquilo que Nietzsche

nos diz quando afirma em um fragmento poacutestumo de 1887 ldquoNessa medida o niilismo

poderia como negaccedilatildeo de um mundo verdadeiro de um ser ser um modo de pensar

divinordquo (NFFP 1887 9[41]) Ou seja o perspectivismo nietzschiano enquanto expressatildeo

de um niilismo extremo que nega todo ser e o substitui por aparecircncias que nega toda

verdade e a substitui por interpretaccedilotildees corresponderia a uma forma de pensar que

refletiria um grau maacuteximo de forccedila um grau divino de existecircncia humana

O filoacutesofo relaciona a forma mais extrema de niilismo agrave tomada de consciecircncia da

inexistecircncia de um mundo verdadeiro Esta compreensatildeo da realidade em que o mundo

verdadeiro perde forccedila de significaccedilatildeo a partir do grande evento da morte de Deus pode

110 Atraveacutes de sua concepccedilatildeo de experimento Nietzsche retoma uma ideia fundamental jaacute presente em seuEnsaio sobre Verdade e Mentira e que retorna com frequecircncia em seus escritos posteriores A concepccedilatildeo danecessidade humana de falsidade de um mundo simplificado tornado passiacutevel de comunicaccedilatildeo um mundoque natildeo eacute mais do que a soma dos erros fundamentais necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia Esta concepccedilatildeofundamental para a compreensatildeo nietzschiana que vincula o conhecimento agrave necessidade humana desobrevivecircncia eacute expressa com frequecircncia em seus poacutestumos de 1887 e a ideia apresentada no fragmentopoacutestumo 9[41] de nossa necessidade de um mundo simplificado jaacute havia sido antecipada no aforismo 9[35]em sua segunda seccedilatildeo Neste fragmento em que Nietzsche pensa ldquoO fato de natildeo haver nenhuma verdaderdquo(NFFP 1887 9[35]) como uma consequecircncia positiva do niilismo o filoacutesofo antecipa a ideia de que adesvalorizaccedilatildeo dos valores fundados em uma realidade ideal implica a constataccedilatildeo de um enfraquecimentovital inerente agrave afirmaccedilatildeo dessa realidade Assim a constataccedilatildeo ldquode natildeo haver nenhuma constituiccedilatildeoabsoluta das coisas nenhuma lsquocoisa em sirsquordquo (NFFP 1887 9[35]) implica a investigaccedilatildeo das forccedilas posta emjogo na afirmaccedilatildeo de uma tal realidade Nesse sentido o perspectivismo nietzschiano na medida em que estaacuterelacionado agrave denuacutencia da inexistecircncia de uma realidade ideal apresenta-se como manifestaccedilatildeo de umniilismo extremo e como manifestaccedilatildeo de uma forccedila afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida

196

ser relacionada com a falsidade atribuiacuteda a todas as perspectivas assim como com o

potencial de valor associado ao princiacutepio que gera as perspectivas Desta maneira apesar

da nossa necessidade de perspectivas na medida em que nos desenvolvemos segundo a

necessidade de um mundo simplificado passiacutevel de ser comunicado essa necessidade

poderia ser valorizada como ponto de vista da criaccedilatildeo como arte

36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo

Consideradas a obra nietzschiana do ponto de vista cronoloacutegico temos que a partir

de 1880 seu pensamento apresenta uma abordagem diferenciada para os problemas que

havia antecipado em seus escritos de juventude A emergecircncia de conceitos como Vontade

de Poder e Niilismo circunscrevem um periacuteodo em que seu pensamento toma como

fundamento o sentimento de afirmaccedilatildeo do mundo e da vida Nesta leitura a estrateacutegia

nietzschiana de radicalizaccedilatildeo do niilismo se fundamenta em uma nova estrutura conceitual

na qual o filoacutesofo vinha trabalhando jaacute desde seu Assim Falava Zaratustra Assim na

uacuteltima fase de seu pensamento em que Nietzsche estaacute preocupado de maneira especial

com o niilismo assim como em oferecer uma estrateacutegia de superaccedilatildeo deste entram em

jogo conceitos novos com os quais o filoacutesofo tencionava mobilizar uma estrateacutegia de

reversatildeo do processo de decadecircncia moral e cultural em que acreditava que sua eacutepoca

havia se aprofundado111

111 Esta interpretaccedilatildeo natildeo eacute incomum nos comentaacuterios da filosofia nietzschiana Nesse sentido eacute relevanteretomar a conhecida interpretaccedilatildeo heideggeriana para quem o pensamento nietzschiano poderia sercircunscrito a cinco conceitos fundamentais que seriam ldquoOs cinco tiacutetulos principais mencionados ndashlsquoniilismorsquo lsquotransvaloraccedilatildeo de todos os valores ateacute aquirsquo lsquovontade de poderrsquo lsquoeterno retorno do mesmorsquolsquoaleacutem-do homemrsquo ndash mostram a metafiacutesica de Nietzsche em um aspecto a cada vez uno mas respectivamentedeterminante do todordquo (HEIDEGGER 2007 Paacuteg 38) Nessa leitura a opccedilatildeo heideggeriana pelo niilismocomo conceito fundamental do pensamento metafiacutesico nietzschiano e a traduccedilatildeo de outros conceitosnietzschianos fundamentais a partir desse conceito indica um caminho de leitura possiacutevel em que osprincipais expoentes do pensamento nietzschiano relacionam-se a uma tentativa de superaccedilatildeo do niilismo Noentanto na medida em que compreendemos que no pensamento nietzschiano natildeo estamos diante de umauacutenica forma de niilismo posto que seria possiacutevel identificar em seu pensamento um niilismo da verdade umniilismo como antirealismo um niilismo como criacutetica dos fundamentos da religiatildeo um niilismo como criacuteticaaos fundamentos da ciecircncia e por uacuteltimo e talvez mais relevante um niilismo dos valores morais torna-senecessaacuterio ir aleacutem da interpretaccedilatildeo unificante de Heidegger De certa forma posto que o niilismo se apresentaa Nietzsche como mostrando-se a partir de ldquocentena de signosrdquo talvez fosse mais correto dizer que Nietzscheentende o niilismo como uma tendecircncia deteriorante uma doenccedila que perpassa diversas formas de culturahumana manifestando-se atraveacutes da negaccedilatildeo da realidade

197

Estes aspectos conduzem seu pensamento agrave busca pelos modos de se atingir o mais

elevado grau de vivacidade possiacutevel de ser experimentado De maneira geral importa a

Nietzsche neste periacuteodo de sua reflexatildeo oferecer alternativas aos problemas teoacutericos e de

fundo fisioloacutegico112 que o filoacutesofo encontra em sua eacutepoca Eacute nesse momento de sua

produccedilatildeo que o filoacutesofo registra em suas notas em um fragmento poacutestumo que costuma

constar como proacutelogo nos comentaacuterios do niilismo nietzschiano

O que eu relato eacute histoacuteria dos proacuteximos dois seacuteculos Descrevo o que estaacutea caminho o que natildeo pode mais ser diferente o advento do niilismoEssa histoacuteria pode ser relatada desde jaacute pois eacute a necessidade mesma queopera aqui Esse futuro fala agora mesmo atraveacutes de uma centena designos esse destino se anuncia em toda parte para essa muacutesica do futurotodos os ouvidos estatildeo abertos agora mesmo Por algum tempo ateacute agoratoda a nossa cultura europeia se moveu como que em direccedilatildeo a umacataacutestrofe com uma tensatildeo tortuosa que foi crescendo deacutecada por deacutecadaincansavelmente violentamente irrecorrivelmente como uma torrenteque quer alcanccedilar o fim que jaacute natildeo reflete que tem medo de refletir(KSA XIII 11[411])

Neste fragmento o niilismo eacute apresentado como se mostrando atraveacutes de uma

ldquocentena de signosrdquo ou seja como manifestando-se em diversas formas de expressatildeo na

cultura europeia Motivo pelo qual a ele ldquotodos os ouvidos estatildeo abertosrdquo Claramente aqui

o que estaacute em jogo eacute um sentido negativo do niilismo como uma ldquocataacutestroferdquo que se

anuncia por diversos signos Estes signos seriam a crescente tendecircncia decadente

subversora do sentido que Nietzsche enxerga presente na filosofia nas ciecircncias e de modo

geral na moral e que poria em risco a proacutepria existecircncia humana

De fato considerando-se que a moral eacute o grande campo de disputa da reflexatildeo

nietzschiana e que seu uso do termo aparece muitas vezes relacionado agrave sua criacutetica ao

cristianismo enquanto fundamento da moral ocidental entatildeo natildeo teriacuteamos duacutevida acerca

da natureza deste conceito em sua obra Deveriacuteamos concluir que o uso nietzschiano do

112 No fundo os problemas teoacutericos e suas consequecircncias fisioloacutegicas nunca satildeo distintos de forma clara nopensamento nietzschiano que toma a fisiologia dos processos de reflexatildeo como um modelo de reflexatildeo Esteaspecto tambeacutem eacute parte do experimentalismo da postura do filoacutesofo na qual o corpo e suas manifestaccedilotildeesfisioloacutegicas satildeo tomadas como laboratoacuterio de pesquisa Nesse sentido o conhecimento importa ao autor namedida em que possibilita o fortalecimento do tipo humano ao contraacuterio eacute relegado ao plano da especulaccedilatildeosem sentido

198

termo niilismo condiz com uma forma de criticar uma tendecircncia que se encontraria muito

fundamentalmente arraigada nos fundamentos da moral A partir da moral entatildeo o

niilismo enquanto tendecircncia teoacuterica conseguiria expandir-se para os outros terrenos da

cultura humana Nesse sentido na medida em que a ciecircncia e a filosofia se deixam

influenciar por concepccedilotildees morais inoculam o niilismo em suas produccedilotildees

Diante do exposto acreditamos natildeo ser absurdo contemplar o efeito da tendecircncia

niilista nas teorias do conhecimento criticadas por Nietzsche Em termos epistemoloacutegicos

que dizem respeito mais diretamente ao objeto deste trabalho o uso nietzschiano do termo

niilismo estaacute vinculado a uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade e conhecimento

como conceitos vinculados a uma vontade negativa em relaccedilatildeo agrave vida Nesse sentido o

niilismo estaria relacionado ao posicionamento epistemoloacutegico que afirma a possibilidade

de se atingir verdades absolutas com base em uma realidade suprassensiacutevel Ao negar a

possibilidade de se atingir verdades absolutas Nietzsche pretende opor resistecircncia agrave

tendecircncia niilista em teoria do conhecimento vista em sua leitura como um fundamento do

pensamento ocidental presente tanto no racionalismo como na metafiacutesica na religiatildeo e ateacute

mesmo na ciecircncia113

A questatildeo fundamental acerca do niilismo eacute colocada por Nietzsche nos seguintes

termos ldquoO niilismo estaacute agrave porta de onde nos vem esse mais sinistro de todos os

hoacutespedesrdquo (NFFP 1885 2[127]) Esta pergunta pode ser respondida com base nos textos

nietzschianos onde a genealogia do niilismo efetuada por Nietzsche acaba por conduzir ao

otimismo socraacutetico a crenccedila na razatildeo como remeacutedio para a existecircncia como a raiz mais

antiga do niilismo114 Se o filoacutesofo vincula a origem do niilismo a uma tendecircncia

epistemoloacutegica da antiguidade que certamente reflete uma opccedilatildeo moral associada pelo

113 Nietzsche certamente natildeo foi o primeiro a opor resistecircncia agraves concepccedilotildees que pretendem fundamentar oconhecimento em uma esfera exterior agrave realidade material Assim o perspectivismo nietzschiano enquantopostura epistemoloacutegica teria antecedentes histoacutericos em algumas correntes relativistas radicais daantiguidade tais como em Goacutergias famoso sofista nascido em Leontinos na Siciacutelia por volta de 485480aC cuja ceacutelebre negaccedilatildeo da existecircncia do ser assim como a negaccedilatildeo da possibilidade de seu conhecimentoe comunicaccedilatildeo testemunham uma das primeiras criacuteticas radicais agrave categoria de verdade na antiguidade Poroutro lado o relativismo agnoacutestico de Protaacutegoras que o leva a construir seu meacutetodo da antilogia a crenccedila deque natildeo existiria uma soacute verdade sobre os objetos mas duas verdades opostas e igualmente sustentaacuteveisatraveacutes do discurso possivelmente deve ser considerado como uma influecircncia melhor reconhecida nareflexatildeo nietzschiana Isto se daacute por conta dos embates deste sofista com os filoacutesofos disciacutepulos de Soacutecratesque com certeza refletem-se no antiplatonismo radical que Nietzsche reclama para sua filosofia Ao comparara postura nietzschiana com relaccedilatildeo agrave verdade a estas tendecircncias relativistas da antiguidade fica claro que seuposicionamento tem suas origens em uma espeacutecie de relativismo extremado embora natildeo possa ser reduzido aisto posto que tem tambeacutem um caraacuteter construtivo como pretendemos demonstrar a frente

199

filoacutesofo agrave valores decadentes o presente do niilismo para Nietzsche estaria diretamente

vinculado agrave moral cristatilde Motivo pelo qual na sequecircncia do texto jaacute referido o filoacutesofo

afirma que ldquoem uma interpretaccedilatildeo bem determinada na interpretaccedilatildeo moral cristatilde reside

o niilismordquo Ou seja considerando o niilismo um evento histoacuterico o filoacutesofo suscita uma

desconfianccedila acerca de suas bases constitutivas Poreacutem dado que reconhece uma inter-

relaccedilatildeo entre a moral cristatilde e a epistemologia que move a ciecircncia de sua eacutepoca natildeo tem

duacutevidas acerca do presente do niilismo Do mesmo modo por conta de seu caraacuteter de

mascaramento que reproduz de forma dissimulada a mesma tendecircncia presente no

otimismo socraacutetico o autor considera o cristianismo uma versatildeo popular do platonismo

A definiccedilatildeo de niilismo que se segue no poacutestumo em questatildeo pode ser considerada

definitiva ldquoQue significa niilismo ndash Que os valores supremos desvalorizem-se Falta o

fim falta a resposta ao lsquoPor quecircrsquordquo115 Assim ao niilismo estaria associada uma falta

estrutural de referenciais assim como a ausecircncia total de finalidade do devir Na medida

em que entende que o niilismo teve sua apariccedilatildeo nos meios culturais europeus e que nestes

fez residecircncia sem convite e sem se dar por conhecido o autor descreve o niilismo como

ldquoo mais estranho e mais ameaccedilador de todos os hoacutespedesrdquo116 Diante da nota nietzschiana

ldquoNiilismo falta a metardquo deduz-se que toda ausecircncia de objetivos manifesta uma vacuidade

de sentido da accedilatildeo humana para a qual ldquofalta a resposta ao por quecircrsquordquo deixando a accedilatildeo

humana pendendo sob o abismo da indeterminaccedilatildeo Sendo que o homem eacute visto nessa

leitura como ser limitado a uma determinada forma de viver eacute um ser determinado pela

necessidade de diretrizes ldquoO fato de que os valores supremos se desvalorizamrdquo

114 Eacute nesse sentido por exemplo que Heidegger no capiacutetulo de sua obra colossal acerca da filosofianietzschiana inicia sua apresentaccedilatildeo do niilismo por uma apresentaccedilatildeo da filosofia platocircnica HEIDEGGERMartin Nietzsche 2ordf ediccedilatildeo traduccedilatildeo de Marco antocircnio Casanova editora Forense Universitaacuteria Rio deJaneiro 2014 Mais do que isso o platonismo ocupa a primeira posiccedilatildeo nos estaacutegios do importante capiacutetulode Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da histoacuteria de um erro em que o autor apresenta sua versatildeo para a origem daideia de um mundo verdadeiro que estaacute na base do niilismo epistemoloacutegico como a crenccedila na verdade comovalor

115 Idem116 Nesse mesmo fragmento poacutestumo a consciecircncia da aproximaccedilatildeo de uma eacutepoca em que os fundamentosse tornam inoacutecuos eacute expressa por Nietzsche na sentenccedila ldquoo niilismo estaacute a portardquo (KSA XII 2[127])

200

(NFFP1887 9[35])117 ocasiona para ele um ponto de ruptura a partir do qual poucas

possibilidades se lhe apresentam

O que significa que os valores se desvalorizam Primeiramente isto significa que

natildeo haacute na razatildeo um norte a ser seguido uma finalidade determinada que conduza a accedilatildeo

humana Em segundo lugar isto significa que a concepccedilatildeo em que os valores fundamentais

se baseia mostra-se sem valor sem sentido O que seria para Nietzsche resultado de um

processo de anaacutelise da razatildeo que potildee valores sobre estes mesmos valores Assim com a

questatildeo acerca do sentido da falta de sentido do niilismo nietzschiano nos colocamos

diante de uma exposiccedilatildeo clara e determinante de como este deve ser compreendido em

associaccedilatildeo a duas concepccedilotildees fundamentais Primeiramente o niilismo se opotildee a toda

forma de teleologia ele se afirma na constataccedilatildeo da vacuidade de objetivos para a

realidade Em segundo lugar o niilismo estaacute relacionado com uma vacuidade nos valores

uma deterioraccedilatildeo dos valores fundamentais

Nestas duas concepccedilotildees temos um ponto de partida o niilismo significa que os

valores que fundamentam a existecircncia humana os fundamentos necessaacuterios para nossa

accedilatildeo perdem seu valor Para a pergunta fundamental para o sentido da existecircncia nos falta

uma resposta Deste problema fundamental surge a necessidade de se ocupar o vaacutecuo de

sentido para a existecircncia criado pela emergecircncia do niilismo Considerado o problema

dessa maneira a partir de uma compreensatildeo da falta de sentido na existecircncia duas

possibilidades parecem se apresentar ao filoacutesofo Motivo pelo qual ainda no aforismo

mencionada acima o autor traccedila uma distinccedilatildeo entre duas formas do niilismo o niilismo

ativo e o niilismo passivo

Ao niilismo passivo estaria vinculada toda forma de cansaccedilo da existecircncia toda

forma de instinto decadente O filoacutesofo entende o niilismo enquanto maldiccedilatildeo para a

117 eKGWBNF-18879[35] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1887 Em relaccedilatildeo aos aforismospoacutestumos foram consultados os originais na ediccedilatildeo digital das obras e cartas de Nietzsche organizadas porCOLLIMORTINARI Sempre que disponiacuteveis utilizamos as traduccedilotildees dos poacutestumos reunidas na coletacircneade fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI traduzidos por Marco Antocircnio Casanova publicado pelaeditora GEN em parceria com a Forense Universitaacuteria Tambeacutem utilizamos a ediccedilatildeo de fragmentos do espoacuteliode julho de 1882 a inverno de 18831884 traduzidos por Flaacutevio R Kothe e publicada pela editora UNBTambeacutem foram consultados os fragmentos sobre o Niilismo reunidas nas uacuteltimas paacuteginas do volumeNietzsche da coleccedilatildeo os pensadores editora Abril Cultural 1978 com seleccedilatildeo de textos de Geacuterard Lebrun ecom traduccedilotildees Rubens Rodrigues Torres Filho Quando satildeo utilizados fragmentos que natildeo constam nessascoletacircneas a traduccedilatildeo eacute de nossa responsabilidade A indicaccedilatildeo dos poacutestumos segue o seguinte padratildeo(NFFP Ano Nuacutemero do volume das notas poacutestumas e nuacutemero do fragmento)

201

humanidade como estando vinculado a uma necessidade de repouso que se expressa

muitas vezes em uma adoraccedilatildeo de uma realidade inexistente A constituiccedilatildeo de uma

concepccedilatildeo de verdade como correspondecircncia a uma realidade apartada da realidade

humana estaacute ligada de forma direta a esta forma passiva de niilismo Nesse sentido o

niilismo poderia tambeacutem ser visto como um sinal de forccedila ldquonatildeo suficienterdquo um estado

cansado passivo reativo em relaccedilatildeo agrave realidade A este estado corresponderia uma

afirmaccedilatildeo da idealidade do que se nos apresenta uma sacralizaccedilatildeo dos valores apesar da

consciecircncia de sua ineficiecircncia Nesse sentido o niilismo passivo apresenta-se como uma

forma decadente de valorar a realidade na medida em que se ampara em valores vazios

em que torna o proacuteprio nada como um telos

A esta forma passiva do niilismo Nietzsche vincula as formas negativas de

existecircncia aquelas que se potildee em contradiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave vida O cristianismo eacute como

se sabe considerado pelo autor como um exemplo da manifestaccedilatildeo desse tipo de niilismo

na histoacuteria118 E jaacute no prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche expressa a

radicalidade da contrariedade do cristianismo em relaccedilatildeo agrave vida e a consequente

valorizaccedilatildeo negativa da vida inerente a essa postura

O cristianismo foi desde o iniacutecio essencial e basicamente asco e fastioda vida na vida que apenas se disfarccedilava apenas se ocultava apenas seenfeitava sob a crenccedila em ldquooutrardquo ou ldquomelhorrdquo vida O oacutedio ao ldquomundordquoa maldiccedilatildeo dos afetos o medo agrave beleza e agrave sensualidade um lado-de-laacuteinventado para difamar melhor o lado-de-caacute no fundo um anseio pelonada pelo fim pelo repouso para chegar ao ldquosabaacute dos sabaacutesrdquo (Prefaacuteciosect5 Paacuteg 19)

Ao cristianismo portanto estaria ligado uma forma negativa de niilismo passivo

Consequentemente ao cristianismo estaria ligada uma forma negativa de existecircncia Mas o

niilismo passivo natildeo eacute a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do niilismo Se por um lado

diante da criacutetica ao cristianismo que encontramos no interior da obra nietzschiana nos

veriacuteamos diante da necessidade de atribuir um valor estritamente negativo ao niilismo do

118 Embora o budismo tambeacutem seja apresentado pelo autor em certas passagens notadamente no Anticristocomo uma forma do niilismo passivo na medida em que entende que este fundamentava-se em uma negaccedilatildeoagrave realidade O budismo no entanto distinguir-se-ia do cristianismo na medida em que o cristianismo conduza uma atitude de rejeiccedilatildeo da realidade que eacute estranha ao budismo

202

qual o cristianismo seria a manifestaccedilatildeo mais elevada por outro lado uma tal condenaccedilatildeo

do niilismo por si passa por alto a distinccedilatildeo fundamental entre niilismo ativo e passivo

Mais do que isso a condenaccedilatildeo do niilismo pode ainda ser vista como um aspecto do

niilismo passivo no qual natildeo se apresentaria uma alternativa de superaccedilatildeo Por sua vez ao

niilismo ativo estaria vinculada uma foacutermula da superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo Esta forma

de superaccedilatildeo do niilismo que toma o niilismo mesmo como elemento relaciona-se

intimamente com o projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo dos valores

A esta forma do niilismo segundo Nietzsche estariam vinculados os instintos

afirmativos e criadores Assim ainda no fragmento poacutestumo 9[39] de 1887 Nietzsche

afirma ldquolsquoNiilismorsquo como ideal da mais elevada potencialidade do espiacuterito em parte

destrutivo em parte irocircnicordquo (NFFP 1887 9[39]) Com isso o filoacutesofo daacute a entender que

o niilismo por si natildeo eacute apenas um estado negativo uma fatalidade histoacuterica Pois em sua

leitura quando o valor da existecircncia carece de sentido o niilismo pode ser ldquosinal do poder

elevado do espiacuteritordquo na medida em que ldquoas metas ateacute aquirdquo se mostram inapropriadas para

algueacutem incapazes de satisfazer as ldquoconvicccedilotildeesrdquo ou os ldquoartigos de feacuterdquo do indiviacuteduo

O niilismo ativo se mostra aqui como potencial criativo na medida em que a

consciecircncia da vacuidade dos valores produz valores novos A proacutepria mudanccedila dos

valores sua transformaccedilatildeo seria manifestaccedilatildeo da forccedila da vontade como uma expressatildeo

direta do crescimento do poder daquele que estabelece os valores (NFFP 1887 9[39])

Para o filoacutesofo a caducidade dos valores eacute condicionada pela sua crescente ineficiecircncia

pela sua incapacidade em suprir a vontade do indiviacuteduo em questatildeo dando margem agrave

mudanccedila dos valores Nesse sentido agrave mudanccedila dos valores estaria ligada a um progresso

no poder criativo daqueles que constituem os valores os legisladores o tipo filosoacutefico

cotejado por Nietzsche em seus escritos a partir de Humano demasiado Humano

Esta distinccedilatildeo se mostra fundamental para um estudo aprofundado do pensamento

de Nietzsche e nem sempre estaacute clara nas leituras mais ligeiras da obra deste autor Assim

apesar da criacutetica ao niilismo na filosofia nietzschiana superar enormemente o sentido

afirmativo dessa tendecircncia eacute importante considerar que na leitura nietzschiana do

processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores nem todo niilismo eacute um niilismo passivo Posto

203

que no o autor contempla a possibilidade em se falar de um niilismo positivo afirmativo

ou como prefere Nietzsche um niilismo ativo transformador da realidade119

O niilismo ativo como consciecircncia da falta de sentido no mundo que conduz a

criaccedilatildeo de sentido eacute uma forma de niilismo de extrema significaccedilatildeo na filosofia

nietzschiana Sua concepccedilatildeo da vontade de potecircncia enquanto poder criativo inerente agrave

realidade associa-se intimamente a esta concepccedilatildeo e seu experimentalismo estaacute

estreitamente relacionado com a ideia de um atribuir valor as coisas como podemos ver

em um outro fragmento de 1887 no qual o autor declara

Aquele que natildeo eacute capaz de pocircr sua vontade nas coisas que eacute sem forccedila devontade sabe pelo menos dar um sentido agraves coisas isto eacute agrave crenccedila de queelas encerram uma vontade Eacute uma medida para indicar o grau de forccedilade vontade o saber ateacute que ponto podem as coisas carecer de sentido paranoacutes ateacute que ponto suportamos viver num mundo sem sentido (NFFP1887 9[60])

O filoacutesofo aponta para uma capacidade de atribuir sentido para as coisas

pertencente agravequeles capazes de colocar sua vontade nas coisas E essa capacidade eacute

encarada aqui como uma medida para julgar entre posiccedilotildees contraacuterias entre diferentes

quanta de forccedila O experimento aqui consiste em saber ateacute que ponto as coisas podem

carecer de sentido e serem ainda afirmadas ou de outro modo ateacute que ponto uma

constituiccedilatildeo fisioloacutegica suporta a falta de sentido estrutural nas coisas Tal medida natildeo se

distingue fundamentalmente da ideia presente em outras partes da produccedilatildeo nietzschiana

nas quais o autor relaciona o eterno retorno enquanto extrema forma de niilismo como a

falta de sentido mais elevada e o questionamento acerca do quanto de verdade algueacutem

pode suportar Neste experimento eacute constatado o proacuteprio fato de que a medida da forccedila eacute

quanto podemos admitir da necessidade da mentira sem perecer120

Mesmo diante da constataccedilatildeo da falta de sentido da existecircncia o filoacutesofo chega a

uma conclusatildeo fundamental segundo a qual uma determinada vontade pode ser expressa

em um ato positivo no sentido de sustentar uma crenccedila tomaacute-la por verdade independente

de ser ela verdade ou natildeo Assim considerado a partir dessa perspectiva o niilismo eacute

119 A diferenciaccedilatildeo entre niilismo ativo e passivo eacute expressa por Nietzsche no fragmento poacutestumo(NFFP1887 9[35]) citado a frente (Conforme ainda A Vontade de Poder Paacuteg 36) 120 Vide por exemplo o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[41])

204

ressignificado tornando-se a negaccedilatildeo do mundo do ser o mundo ideal contraposto ao

mundo real da ausecircncia de sentido Natildeo eacute sem importacircncia o fato de que seraacute justamente

nessa superaccedilatildeo da necessidade de um aleacutem enquanto fonte de sentido da existecircncia que o

filoacutesofo encontraraacute a forma mais adequada ao espiacuterito livre

Com base nesta concepccedilatildeo do niilismo ativo pode-se pensar a desconfianccedila acerca

da possibilidade de se nos representarmos a realidade em sua inteireza proacutepria do

perspectivismo como fundamento de uma concepccedilatildeo do conhecimento como criaccedilatildeo A

consideraccedilatildeo frequente nos textos nietzschianos especialmente a partir de A Gaia Ciecircncia

de uma forma de conhecimento como associada agrave audaacutecia da criaccedilatildeo e da experimentaccedilatildeo

assume um novo sentido que lhe afasta da mera consideraccedilatildeo do relativismo inerente agrave

consideraccedilatildeo de que todo conhecimento afirma-se como uma mera interpretaccedilatildeo

Na leitura do filoacutesofo quando uma determinada estrateacutegia epistemoloacutegica vista

aqui apenas como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia torna-se uma obsessatildeo no homem por

exemplo quando a vontade de verdade se sobrepotildee agrave vontade de vida quando o

conhecimento se torna para o homem uma ilusatildeo e uma fuga a ele se vinculam instintos

contraacuterios agrave manutenccedilatildeo da vida E dessa forma se abriria a possibilidade de uma forma

de niilismo Eacute contra o niilismo desta concepccedilatildeo que Nietzsche se volta ao pensar o

conhecimento segundo uma compreensatildeo perspectivista

A este niilismo oriundo da consciecircncia da desvalorizaccedilatildeo dos valores

epistemoloacutegicos ou seja a consciecircncia da inconsistecircncia dos conceitos tomados ateacute entatildeo

como os mais certos vincula-se a possibilidade de criar Esta criaccedilatildeo no entanto natildeo eacute

mais tomada como verdade tais como as criaccedilotildees da ciecircncia e da filosofia dogmaacutetica A

criaccedilatildeo aqui passa a ser vista como de fato eacute apenas uma forma de valorar a realidade

segundo as capacidades e limitaccedilotildees do homem Daiacute o perspectivismo

Nessa leitura entra em jogo uma forma de conceber a criaccedilatildeo que difere da

falsificaccedilatildeo a qual Nietzsche atribuiacute agrave ciecircncia e a filosofia dogmaacutetica No fundo tal como

em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira o autor trabalha aqui com duas possibilidades

inerentes agrave inesgotaacutevel capacidade humana de figuraccedilatildeo De um lado teriacuteamos o homem

dos conceitos que se embrenha nas criaccedilotildees do intelecto sem se dar conta da falsidade de

sua atuaccedilatildeo acabando por ficar preso nas redes de seu proacuteprio dogmatismo para o qual

205

natildeo vecirc saiacuteda mesmo quando se torna consciente da falsidade de seus conceitos Aqui

Nietzsche fala propriamente em uma falsificaccedilatildeo da realidade posto que a atitude para

com os produtos do conhecimento implicaria na crenccedila na veracidade destes produtos

A esta atitude para com os produtos do intelecto o autor confronta o modo de

proceder do homem intuitivo do artista do filoacutesofo do futuro do espiacuterito livre todos

variaccedilotildees em torno de uma mesma compreensatildeo do papel do filoacutesofo Segundo Nietzsche

por agir para com os produtos do intelecto de maneira conscientemente artiacutestica o homem

que se liberta do dogmatismo da ciecircncia e da filosofia natildeo falsearia a realidade mas apenas

a dissimularia Deste modo o que estaacute em jogo natildeo eacute mais a falsidade dos produtos da

atuaccedilatildeo perspectivista humana mas a crenccedila em sua veracidade A ideia de

experimentalismo em Nietzsche estaacute estreitamente relacionada a esta compreensatildeo da

atuaccedilatildeo do intelecto Isto porque o filoacutesofo pensa seu experimentalismo como o

questionamento do quanto o homem poderia se aprofundar no niilismo ou seja quanto ele

poderia tornar-se consciente do caraacuteter meramente artiacutestico de seus conceitos de suas

verdades sem sucumbir

Uma filosofia experimental tal como eu a vivo antecipaexperimentalmente ateacute mesmo as possibilidades de um niilismo radicalsem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negaccedilatildeo no natildeoem uma vontade de natildeo Ela quer em vez disso atravessar ateacute ao inversondash ateacute a um dionisiacuteaco dizer - sim ao mundo tal como eacute sem descontoexceccedilatildeo e seleccedilatildeo ndash quer o eterno curso circular ndash as mesmas coisas amesma loacutegica e iloacutegica do encadeamento Supremo estado que umfiloacutesofo pode alcanccedilar estar dionisiacamente diante da existecircncia ndashminha foacutermula para isso eacute amor fati (NFFP XIII 16 [32])121

Se o que o filoacutesofo diz aqui eacute dito com relaccedilatildeo ao mundo ldquosem desconto exceccedilatildeo e

seleccedilatildeordquo entatildeo tambeacutem implicaria um radical dizer-sim ateacute agrave pequenez de nossa

perspectiva humana Nesse sentido o amor fati tambeacutem significaria amar nossa

perspectiva em seu caraacuteter aparente sem sucumbir Segundo a compreensatildeo nietzschiana

em que aspectos das ciecircncias naturais satildeo tomados como suporte teoacuterico o perspectivismo

apareceria como uma postura em relaccedilatildeo ao conhecimento mais proacutexima das exigecircncias da

121 Foi utilizada a traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres filho do espoacutelio do Outono de 1888 constante novolume das obras selecionadas de Nietzsche para a coleccedilatildeo os pensadores

206

proacutepria vida Pois na medida em que uma espeacutecie aparece para o filoacutesofo como

dependente de uma consideraccedilatildeo da realidade segundo suas necessidades seria a proacutepria

perspectividade que potencializaria o desenvolvimento daquela espeacutecie Em contrapartida

a confusatildeo entre o tomar como perspectivo o que eacute necessaacuterio agrave vida e o tomaacute-lo como

verdadeiro caracterizaria uma forma de vida decadente

Na medida em que o autor pensa a transvaloraccedilatildeo como esse movimento que busca

o inverso a partir do que eacute dado ou seja que considera que a chegada em um estaacutegio

superior de afirmaccedilatildeo apenas se torna possiacutevel quando se supera um estaacutegio radical de

negaccedilatildeo a passagem necessaacuteria pelo niilismo radical se torna uma parte importante de seu

procedimento de experimentaccedilatildeo Pois para o filoacutesofo o niilismo apresenta-se como uma

fase um estaacutegio no caminho da afirmaccedilatildeo mais radical o dionisiacuteaco dizer sim Nesse

sentido fundamental o experimentalismo nietzschiano estaria vinculado a uma tentativa de

superaccedilatildeo do niilismo radical

Como o fragmento acima citado demonstra a utilizaccedilatildeo dos termos ldquofilosofia

experimentalrdquo e ldquoamor fatirdquo pertencem ao periacuteodo dos uacuteltimos escritos nietzschianos em

que o filoacutesofo jaacute esboccedila uma tentativa de reconstruccedilatildeo de sua proacutepria obra122 A esta

tentativa pertence tambeacutem e de forma especial o conceito de transvaloraccedilatildeo o qual

vinculamos em nossa interpretaccedilatildeo agrave superaccedilatildeo do niilismo por meio de uma vivecircncia do

niilismo radical ou seja a tentativa de superar o niilismo atraveacutes do niilismo mesmo

122 Como sugere Charles Andler em ANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Paris Gallimard 1958vol 2 p 13

207

4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas

Qualquer interpretaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano enfrenta uma dificuldade

inicial peculiar a escassez de referecircncias a esta concepccedilatildeo tanto em textos publicados em

vida quanto na obra poacutestuma do filoacutesofo O termo ldquoperspectivismordquo aparece propriamente

apenas em poucas passagens da obra nietzschiana publicada O primeiro exemplo de

apariccedilatildeo deste termo que gostariacuteamos de analisar encontra-se no sect 354 de A Gaia Ciecircncia

que eacute de tal modo frequente em todos comentadores que trabalham a temaacutetica do

perspectivismo a ponto de quase ser considerada como um ponto de partida oficial dos

comentaacuterios do perspectivismo nietzschiano

Nesta passagem o perspectivismo eacute associado ao ldquofenomenalismordquo no que o autor

pretende como sendo uma afirmaccedilatildeo do caraacuteter amplamente restritivo que a consciecircncia

assume em seu pensamento Nesta consideraccedilatildeo das limitaccedilotildees de sua concepccedilatildeo de

consciecircncia que eacute afirmada em aberta contraposiccedilatildeo ao tratamento epistemoloacutegico

tradicional e seu par conceitual sujeitoobjeto o conceito de perspectivismo natildeo eacute no

entanto oferecido como uma contribuiccedilatildeo original mas eacute apresentado como um traccedilo

caracteriacutestico do pensamento do autor

Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendoa natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemosnos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado ndash quetudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralorelativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-seconsciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeosuperficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo (FWGC Livro V sect354)

Com sua referecircncia ao ldquoFenomenalismordquo de suas concepccedilotildees o autor de A Gaia

Ciecircncia demarca o acircmbito da investigaccedilatildeo a que se propotildee o aparecimento das realidades

em estudo Interessa ao autor portanto o estudo daquilo que se apresenta a noacutes em nossa

experiecircncia Mais ainda o autor assume o caraacuteter restritivo de sua investigaccedilatildeo do tema

208

posto que eacute tomado como advindo de uma perspectiva limitada Do mesmo modo

consciente de que a atuaccedilatildeo da consciecircncia123 conduz a uma superficializaccedilatildeo daquilo que eacute

investigado por meio dela o autor denomina perspectivismo a sua apropriaccedilatildeo do objeto

na medida em que sua apropriaccedilatildeo desse objeto como toda aproximaccedilatildeo de qualquer

objeto por meio da consciecircncia apenas pode se dar de modo a falsear tornar comunicaacutevel

generalizar

Ao entender que sua filosofia esta demarcada por um fenomenalismo e um

perspectivismo o autor reconhece que sua abordagem dos problemas filosoacuteficos natildeo estaacute

alheia ao conhecimento de que toda posiccedilatildeo filosoacutefica apenas pode se dar por meio de uma

grande reduccedilatildeo e simplificaccedilatildeo da realidade Nesta compreensatildeo da necessaacuteria reduccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo operada pela consciecircncia encontramos elementos da abordagem que

Nietzsche adota em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra Moral

Notadamente a afirmaccedilatildeo do caraacuteter falsificador da atuaccedilatildeo da organizaccedilatildeo intelectual

humana124

Em ambos textos o autor parece partir do reconhecimento do avanccedilo das ciecircncias

naturais Esta abordagem eacute significativa porque a partir dela a consciecircncia apareceria para

noacutes como um fenocircmeno entre outros cada vez melhor conhecido e natildeo mais como

substacircncia separada da realidade125 Nesta leitura a consciecircncia atuando no sentido de

123 Vale ressaltar que Nietzsche aplica aqui a anaacutelise da consciecircncia de um modo distinto da tradiccedilatildeo Obrassobre a consciecircncia a razatildeo o entendimento humano satildeo comuns desde a modernidade mas o autor doEnsaio Sobre Verdade e Mentira trabalha com este conceito em um sentido fisioloacutegico e de certo modoevolucionista que distoa da concepccedilatildeo metafiacutesica da consciecircncia tal como esta foi entendida pela tradiccedilatildeoEsta interpretaccedilatildeo parte da consideraccedilatildeo do Ensaio Sobre Verdade e Mentira no sentido Extra-moral cujatemaacutetica e desenvolvimento eacute semelhante as do aforismo em questatildeo A consciecircncia aparece nessa concepccedilatildeocomo um oacutergatildeo do aparato humano uma adaptaccedilatildeo bioloacutegica que cumpre um papel essencial na manutenccedilatildeode nossa espeacutecie O trato naturalista que Nietzsche aplica a consciecircncia seraacute desenvolvido adiante124 Em ambos textos Nietzsche trabalha com a ideia de que o aparato racional humano ao constituir alinguagem simplifica a realidade em prol da sobrevivecircncia humana Ou seja ao inveacutes de estar voltado para averdade como se a realidade estivesse constituiacuteda de forma racional e apenas racionalmente pudesse serdesvelada a razatildeo humana trabalharia no sentido de tornar racional algo muito mais complexo do que a razatildeopossa compreender Assim na tentativa de converter esta complexidade pura em algo passiacutevel decomunicaccedilatildeo a razatildeo operaria uma ldquoviolecircnciardquo para com a realidade propriamente Note-se que toda estaexplicaccedilatildeo parece sugerir que haacute um algo que eacute traduzido em linguagem por meio de uma simplificaccedilatildeo Noentanto a existecircncia desse ldquoalgordquo se deveria muito mais a uma limitaccedilatildeo da linguagem com relaccedilatildeo ao que ofiloacutesofo tenta dizer do que propriamente uma crenccedila de Nietzsche em uma realidade em si que eacute traduzidaem linguagem por meio desta simplificaccedilatildeo Esperamos que isto fique claro no decorrer de nossa exposiccedilatildeoPor fim uma importante ressalva a ser feita diz respeito ao termo utilizado para se referir ao oacutergatildeoresponsaacutevel pela criaccedilatildeo da linguagem em ambos textos Em se Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzscherefere-se a esta faculdade como intelecto (Intelect) e no aforismo em questatildeo de A Gaia Ciecircncia o filoacutesofoconsidera a consciecircncia a estrutura responsaacutevel por esta conversatildeo125 Nesse sentido o autor do aforismo estaacute em conformidade com o essencial da leitura de Lange dafilosofia e do modo como a aplicaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico conduziria a um afastamento cada vez maior das

209

gerar comunicaccedilatildeo conduz a uma reduccedilatildeo cada vez maior de todos os aspectos internos

tudo que haacute de mais individual na vida humana a uma generalizaccedilatildeo passiacutevel de ser

tornada comum Este aspecto generalizante faz com que fiquemos impedidos de nos

relacionar com os eventos verdadeiros ateacute mesmo de nossa proacutepria existecircncia pessoal

Assim perspectivamos o que haacute de verdadeiro acerca de nossa proacutepria constituiccedilatildeo interna

que eacute individual e natildeo passiacutevel de comunicaccedilatildeo na tentativa de nos tornarmos conscientes

de acontecimentos cuja ocorrecircncia natildeo permitiria generalizaccedilatildeo126

A anaacutelise nietzschiana se destaca pela associaccedilatildeo entre perspectivismo e

consciecircncia como uma forma de inversatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Ou seja se a tradiccedilatildeo

compreende que seria o elemento racional humano o elemento potencializador do

conhecimento Nietzsche quer problematizar a natureza desta concepccedilatildeo de conhecimento

que para o filoacutesofo natildeo se relacionaria com a descoberta de verdades disponiacuteveis agrave razatildeo

Sua reflexatildeo criacutetica portanto diz respeito agrave anaacutelise de nossa capacidade de conhecer e do

oacutergatildeo que a tradiccedilatildeo considera responsaacutevel por este conhecimento

Este movimento se realiza com o mesmo sentido com que a tradiccedilatildeo teria operado a

criacutetica ao sensualismo como a desqualificaccedilatildeo dos oacutergatildeos dos sentidos como fonte do

conhecimento Ou seja assim como a tradiccedilatildeo desqualifica os sentidos como fonte de

conhecimento por considerar que sua afinidade com o movimento comprometeria sua

capacidade de revelar qualquer coisa verdadeira Nietzsche desqualifica a consciecircncia

como fonte de conhecimento e suspeita de suas certezas como se natildeo se tratasse de algo

proacuteprio da realidade Assim o primeiro aspecto de uma teoria perspectivista do

conhecimento trata da natureza de nossa consciecircncia a qual natildeo eacute considerada na leitura

nietzschiana como oacutergatildeo para a verdade Desde que sua funccedilatildeo estaria relacionada agrave

generalizaccedilatildeo a vulgarizaccedilatildeo a igualaccedilatildeo do natildeo igual

supersticcedilotildees metafiacutesicas tal como a concepccedilatildeo tradicional de consciecircncia Esta passa a ser analisada tambeacutemaqui em sua geraccedilatildeo e desenvolvimento como fenocircmeno e natildeo mais como substacircncia eterna e imortal126 Este argumento da ignoracircncia no qual somos mantidos em relaccedilatildeo agrave nossa constituiccedilatildeo interna eacute caro aNietzsche para sua negaccedilatildeo de que obtemos qualquer acesso agrave verdade assim como que esta verdade se nosdaacute a conhecer atraveacutes da consciecircncia Este argumento jaacute aparece em seu Ensaio Sobre Verdade e Mentira nosentido Extra-moral em um sentido muito proacuteximo do utilizado na passagem da Gaia Ciecircncia citada acimaldquoO que sabe propriamente o homem sobre si mesmo Sim seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-secompletamente como se estivesse em uma vitrina iluminada Natildeo lhe cala a natureza quase tudo mesmosobre seu corpo para mantecirc-lo agrave parte das circunvoluccedilotildees dos intestinos do fluxo raacutepido das correntessanguiacuteneas das intrincadas vibraccedilotildees das fibras exilado e trancado em uma consciecircncia orgulhosa charlatatildeEla atirou fora a chave e ai da fatal curiosidade que atraveacutes de uma fresta foi capaz de sair uma vez docubiacuteculo da consciecircncia e olhar para baixo e agora pressentiu que sobre o implacaacutevel o aacutevido o insaciaacutevel oassassino repousa o homem na indiferenccedila de seu natildeo-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorsode um tigrerdquo (WLSVM sect1)

210

O aparato cognitivo humano aparece aqui como a ferramenta atraveacutes da qual nossa

espeacutecie se livra da pluralidade e extrema individualidade a fim operacionalizar uma cadeia

de comando produtiva Em outros termos este aparato teria evoluiacutedo em funccedilatildeo de uma

estrateacutegia de sobrevivecircncia tipicamente humana estrateacutegia em que estaria envolvida a

dissimulaccedilatildeo de elementos da realidade127 para efeitos de comunicaccedilatildeo Assim a

consciecircncia que eacute tomada pela filosofia moderna como instrumento revelador da verdade

passa a ser considerada como instrumento ldquomascaradorrdquo oacutergatildeo que cria metaacuteforas a partir

da verdade multifacetada e em constante mudanccedila

E esta seria a passagem na obra nietzschiana em que o termo perspectivismo

aparece com maior clareza Na grande quantidade de notas epistemoloacutegicas reunidas nos

poacutestumos nietzschianos cumpre notar que o termo perspectivismo eacute mencionado apenas

raras vezes O tratamento destas passagens como constituindo um conjunto de notas

epistemoloacutegicas no entanto nada tem a ver com a determinaccedilatildeo dada por seu autor a estas

Este tratamento relaciona-se com uma apreciaccedilatildeo destes textos como constituindo uma

profunda reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento suas consequecircncias e pressupostos

Sobressai entre estas passagens o fragmento 7[60] de fins de 1886 e iniacutecios de 1887

bastante conhecido dos comentadores e ao qual fazemos repetidas referecircncias nesse

trabalho

Contra o positivismo que fica no fenocircmeno ldquosoacute haacute fatosrdquo eu diria natildeojustamente natildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildees [Interpretationen] Natildeopodemos verificar nenhum fato ldquoem sirdquo talvez seja um absurdo quereruma tal coisa ldquoTudo eacute subjetivordquo dizeis mas jaacute isso eacute interpretaccedilatildeo[Auslegung] O ldquosujeitordquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais

127 Estes argumentos satildeo apresentados por Nietzsche em oposiccedilatildeo ao que a tradiccedilatildeo postulava motivo peloqual o autor se vecirc na necessidade de fazer referecircncia a um objeto ideal tal como a realidade na tentativa deprovar que se a consciecircncia evolui no sentido de propiciar a comunicaccedilatildeo entatildeo seu funcionamentonecessariamente envolve a eliminaccedilatildeo de elementos do real a fim de criar realidades que possam sercomunicadas Assim sua hipoacutetese eacute apresentada para demonstrar que nosso elemento racional natildeo poderiaser algo afeito agrave natureza veraz da realidade como um oacutergatildeo para a verdade mas que sua atuaccedilatildeo apenas serestringiria agrave criaccedilatildeo de verdades que possam ser comunicadas A permanecircncia na filosofia de juventude deNietzsche deste elemento uacuteltimo absolutamente individual eacute resultado da influecircncia da filosofia metafiacutesicade Schopenhauer e torna parte da filosofia nietzschiana passiacutevel de ser relacionada a uma forma depensamento metafiacutesico No entanto acreditamos que ainda na juventude Nietzsche sustenta uma reflexatildeoeminentemente criacutetica para com toda forma de metafiacutesica Jaacute em 1872 atraveacutes da influecircncia naturalistaobtida da leitura de Lange Nietzsche se vecirc de posse de um arsenal de argumentos cientiacuteficos que lhepossibilitam recusar qualquer recurso a uma explicaccedilatildeo metafiacutesica De que o filoacutesofo se afasta jaacute naqueleperiacuteodo de uma concepccedilatildeo metafiacutesica de verdade temos como testemunho os textos analisados nos primeiroscapiacutetulos deste trabalho em que o filoacutesofo procura responder agrave diversas questotildees referentes agrave verdade combase nos resultados das ciecircncias naturais notadamente na anaacutelise dos oacutergatildeos dos sentidos

211

inventado posto por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes dainterpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacutetese (NFFP 1886-1887 7[60])

A passagem citada eacute geralmente interpretada como a negaccedilatildeo da possibilidade do

conhecimento independentemente do sujeito que conhece e de sua constituiccedilatildeo especiacutefica

Assumimos esta interpretaccedilatildeo como propiacutecia agrave elucidaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano

que vem a filiaacute-lo aos resultados da filosofia kantiana Poreacutem com isso natildeo queremos dizer

que o autor destas notas permanece preso agraves consequecircncias teoacutericas a que Kant chega

Pois ao passo que Nietzsche entende o conhecimento como trabalho ativo da consciecircncia

em sua postulaccedilatildeo mais tardia esta ideia se liga agrave inutilidade em se conceber uma realidade

natildeo interpretativa

Ainda que com estas ressalvas Nietzsche conserva algo do espiacuterito da primeira

criacutetica kantiana ao assumir que todo conhecer seria produto da atuaccedilatildeo do sujeito Ou seja

que o conhecimento teria expressatildeo fenomecircnica como apropriaccedilatildeo de eventos natildeo

racionalizaacuteveis de acordo com nossa perspectiva de sujeito O que de partida afastaria a

possibilidade de que em algum momento de nossas formulaccedilotildees teoacutericas estejamos lidando

com fatos brutos ou verdades puras desinteressadas o que jaacute denunciaria o caraacuteter

racional dos elementos por detraacutes da interpretaccedilatildeo Como se pode notar esta constataccedilatildeo jaacute

estaacute presente no aforismo 354 da Gaia Ciecircncia analisado acima

Nesta leitura o conhecimento do mundo pode apenas ser visto como uma

possibilidade quando levamos em consideraccedilatildeo que conhecimento natildeo eacute a explicitaccedilatildeo do

sentido do mundo sua realidade uacuteltima Natildeo haacute um sentido por traacutes mas uma

multiplicidade de sentidos em um mundo permanentemente em mudanccedila impossiacutevel de

apreender de uma vez por todas O que nos conduz agrave necessidade de considerar outra

apariccedilatildeo do termo perspectivismo nos poacutestumos nietzschianos

41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade

Em uma anotaccedilatildeo poacutestuma Nietzsche questiona a crenccedila dos fiacutesicos em um mundo

verdadeiro Crenccedila que o filoacutesofo julga subjacente agraves teorias das ciecircncias como um todo

Nesta leitura o mundo aparente enquanto o mundo disponiacutevel para cada um segundo suas

212

capacidades de apreensatildeo se revelaria como paacutelido reflexo deste mundo dos fatos A

criacutetica nietzschiana agraves ciecircncias aqui cumpre os mesmos estaacutegios de sua criacutetica agrave filosofia

dogmaacutetica Assim do mesmo modo que o filoacutesofo houvera criticado a concepccedilatildeo de um

mundo platocircnico das ideias rebate aqui a concepccedilatildeo de aacutetomos que eacute tomada como uma

mera ficccedilatildeo para fins da ciecircncia

Os fiacutesicos acreditam em um ldquomundo verdadeirordquo agrave sua maneira umafirme sistematizaccedilatildeo de aacutetomos igual para todos os seres [Wesen] e commovimentos necessaacuterios ndash de modo que para eles o ldquomundo aparenterdquose reduz ao lado acessiacutevel a cada ser [Wesen] segundo sua espeacutecie do ser[Sein] universal e universalmente necessaacuterio (acessiacutevel e tambeacutem aindapreparado ndash feito ldquosubjetivordquo) Mas com isso enganam-se o aacutetomo quepostulam eacute deduzido a partir da loacutegica daquele perspectivismo daconsciecircncia ndash tambeacutem ele proacuteprio eacute portanto uma ficccedilatildeo subjetiva Essaimagem de mundo que eles projetam natildeo eacute em absoluto essencialmentedistinta da imagem de mundo subjetiva ela soacute eacute construiacuteda com sentidosestendidos pelo pensar mas absolutamente com nossos sentidos Porfim sem sabecirc-lo omitiram algo da constelaccedilatildeo justamente o necessaacuterioperspectivismo em virtude do qual cada centro de forccedila - e somente ohomem - constroacutei a partir de si todo o mundo restante isto eacute medeapalpa forma pela sua forccedila Esqueceram de computar essa forccedila quepotildee perspectivas no ldquoser verdadeirordquo [ldquowahre Seinrdquo] Dito na linguagemda escola o ser-sujeito Eles acham que este foi ldquodesenvolvidordquo que veiode acreacutescimo - Mas o quiacutemico ainda o usa tal eacute o ser-especiacutefico quedetermina o agir e reagir de tal e qual maneira sempre de acordo(NFFP 188814 [186])

Segundo esta leitura tudo o que eacute fato para noacutes jaacute seria o resultado do trabalho

ativo da consciecircncia o que natildeo garante que hajam fatos por traacutes do que nos eacute dado como

objeto de conhecimento Esta afirmaccedilatildeo tem como consequecircncia mais radical a negaccedilatildeo de

um mundo a ser interpretado um mundo para aleacutem das interpretaccedilotildees Isso explica a

negaccedilatildeo do mundo aparente junto agrave negaccedilatildeo do mundo verdadeiro tal como se observa na

passagem de Crepuacutesculo dos Iacutedolos cujo subtiacutetulo histoacuteria de um erro denuncia a

falsidade por traacutes da constituiccedilatildeo do conceito de mundo verdadeiro Processo em que

segundo Nietzsche a filosofia kantiana ocupa uma etapa importante128

128 Esta passagem eacute parte do livro Trecircs do Crepuacutesculo dos Iacutedolos a ldquoRazatildeordquo em filosofia onde Nietzschediz ldquo3 O mundo verdadeiro - inatingiacutevel indemonstraacutevel despromoviacutevel mas o proacuteprio pensamento disso -um consolo uma obrigaccedilatildeo um imperativo (No fundo o velho sol mas visto atraveacutes da neblina e doceticismo A ideia tornou-se elusiva paacutelida noacuterdica koumlnigsbergiana)rdquo O aspecto ldquokoumlnigsbergianordquo domundo real eacute claro refere-se agrave concepccedilatildeo kantiana do mundo ldquonoumenalrdquo

213

Com o que fica dito nestas observaccedilotildees jaacute nos aproximamos dos elementos

fundamentais de uma compreensatildeo perspectivista da verdade tal como acreditamos poder

extrair do pensamento nietzschiano Primeiramente a afirmaccedilatildeo norteadora de que natildeo haacute

fatos apenas interpretaccedilotildees que regula a compreensatildeo da verdade em questatildeo como

contraacuterio tanto ao conceito de verdade herdado da tradiccedilatildeo quanto a uma concepccedilatildeo de

verdade com base na atuaccedilatildeo desinteressada do pesquisador presente na concepccedilatildeo

positivista da filosofia

De fato a pretensatildeo positivista de localizar fatos brutos no efetivo sua esperanccedila

de atingir os fatos eternos por traacutes das coisas ultrapassa os limites impostos pelas

consideraccedilotildees criacuteticas nietzschianas Nesta leitura a renuacutencia a qualquer origem natildeo

investigada assim como a negaccedilatildeo da permanecircncia de qualquer fundamento uacuteltimo satildeo

componentes ineliminaacuteveis Por traacutes desta consideraccedilatildeo criacutetica haacute uma compreensatildeo baacutesica

segundo a qual em nossa atividade cognoscitiva temos sempre apenas interpretaccedilotildees de

acontecimentos que nos satildeo dados sem forma racional anterior sendo necessaacuterio tornaacute-los

conscientes o que significa nesta leitura categorizaacute-los segundo os ditames de nossa

racionalidade o que jaacute seria acreacutescimo na constituiccedilatildeo de nossas interpretaccedilotildees Em outras

palavras a consideraccedilatildeo da realidade segundo a pressuposiccedilatildeo de fatos seria um defeito do

qual cumpriria ao filoacutesofo se libertar sempre que este pretendesse uma aproximaccedilatildeo

cientiacutefica da realidade

A elucidaccedilatildeo dos erros fundamentais dos quais os filoacutesofos devem se libertar eacute um

aspecto frequente nas obras nietzschianas Em sua Genealogia da Moral estes erros

fundamentais aparecem como traccedilos de um ideal que guiaria as formulaccedilotildees dogmaacuteticas

em filosofia A partir de sua concepccedilatildeo do caraacutecter perspectivo de todo conhecimento ao

filoacutesofo interessaria antes de tudo criticar a concepccedilatildeo metafiacutesica da verdade como uma

posiccedilatildeo que concebe algo tatildeo absurdo quanto uma visatildeo do nada Com isso a posiccedilatildeo

nietzschiana implicaria a compreensatildeo de que natildeo haacute verdade que natildeo seja em si uma

perspectiva e de que de modo aproximado natildeo haacute conhecimento que natildeo parta de uma

motivaccedilatildeo

Esta compreensatildeo de uma a motivaccedilatildeo a guiar todo posicionamento filosoacutefico estaacute

presente em um dos relatos mais abrangentes acerca do caraacuteter perspectivo do

conhecimento no aforismo doze da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral Neste

texto Nietzsche rejeita a ldquoposiccedilatildeo asceacutetica que se potildee a filosofarrdquo como uma forma de

214

negaccedilatildeo da vida que descarregaraacute seu arbiacutetrio ldquoNaquilo que eacute experimentado do modo

mais seguro como verdadeiro como realrdquo ou seja que em sua tentativa de perverter a

proacutepria verdade ldquobuscaraacute o erro precisamente ali onde o autecircntico instinto de vida situa

incondicionalmente a verdaderdquo (GMGM III sect12) Com isso com as ldquoresolutas inversotildees

das perspectivasrdquo operada pelo ideal asceacutetico que se potildee a filosofar a tradiccedilatildeo teria

procurado operar uma negaccedilatildeo da verdade de que haacute ldquoapenas uma visatildeo perspectiva

apenas um lsquoconhecerrsquo perspectivordquo (GMGM III sect12)

Na medida em que a tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute entendida aqui como tendo se alinhado a

um ideal de negaccedilatildeo da corporeidade Nietzsche interpreta toda a filosofia antiga como a

tentativa de promover uma falsificaccedilatildeo uma corrupccedilatildeo uma simplificaccedilatildeo da verdadeira

objetividade129 que implicaria na pluralidade de perspectivas inerente a toda corporeidade

O traccedilo distintivo desta falsificaccedilatildeo seria a imaginaccedilatildeo de uma objetividade ideal uma

realidade das verdades eternas e imutaacuteveis Segundo a compreensatildeo nietzschiana no

entanto a objetividade como apreensatildeo dos objetos em sua forma natildeo interpretativa seria

inalcanccedilaacutevel para noacutes Objetividade nesse sentido implicaria uma ausecircncia de

necessidades um desinteresse que natildeo eacute caracteriacutestico da atividade teoacuterica Assim o autor

afirma em Genealogia da Moral

Devemos afinal como homens do conhecimento ser gratos a taisresolutas inversotildees das perspectivas e valoraccedilotildees costumeiras com que oespiacuterito de modo aparentemente sacriacutelego e inuacutetil enfureceu-se consigomesmo por tanto tempo ver assim diferente querer ver assim diferente eacuteuma grande disciplina e preparaccedilatildeo do intelecto para a sua futura

129 Entende-se por objetivismo a concepccedilatildeo filosoacutefica que associa conhecimento verdadeiro aoconhecimento dos objetos independente da apreensatildeo de seres conscientes Em um sentido kantianoobjetividade significa a qualidade dos objetos em-si independentes das condiccedilotildees de constituiccedilatildeo de taisobjetos para a experiecircncia Contemporaneamente a vertente filosoacutefica que entende que o valor de verdade deasserccedilotildees acerca da realidade depende da existecircncia de tais objetos se chama realismo em contraposiccedilatildeo agravecorrente anti-realista a qual se constitui em torno da negaccedilatildeo dessa dependecircncia Tal como o objetivismo operspectivismo nietzschiano ao menos em sua formulaccedilatildeo mais primitiva parece requerer uma interpretaccedilatildeoda realidade como algo natildeo interpretativo ou objetivo De acordo com essa interpretaccedilatildeo falar emperspectivismo significa dizer que natildeo temos acesso agraves coisas como elas satildeo para aleacutem de nossainterpretaccedilatildeo A existecircncia de uma realidade objetiva a partir do projeto criacutetico kantiano se relacionaintimamente com a postulaccedilatildeo das coisas em si entidades anteriores a constituiccedilatildeo do fenocircmeno daexperiecircncia Bem se vecirc que Nietzsche natildeo eacute indiferente a polecircmica em torno das coisas em si e embora parteconsideraacutevel de suas teorias sobre a verdade pareccedilam repousar na dependecircncia de tais objetos seupensamento se filia claramente a corrente anti-realista no sentido de que sustenta em boa parte de suaproduccedilatildeo uma criacutetica incisiva as coisas em si No entanto a afirmaccedilatildeo frequente em seu Ensaio sobreVerdade e Mentira de que nossas afirmaccedilotildees do mundo consideradas verdadeiras satildeo de fato metaacuteforas deque a verdade natildeo passa ao final de uma ilusatildeo tem em seu caraacuteter iacutentimo a necessidade de falsear taisverdades e afirmaccedilotildees

215

ldquoobjetividaderdquo ndash a qual natildeo eacute entendida como ldquoobservaccedilatildeodesinteressadardquo (um absurdo sem sentido) mas como a faculdade de terseu proacute e seu contra sob controle e deles poder dispor de modo a saberutilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas einterpretaccedilotildees afetivas De agora em diante senhores filoacutesofosguardemo-nos bem contra a antiga perigosa faacutebula conceitual queestabelece um ldquopuro sujeito do conhecimento isento de vontade alheio agravedor e ao tempordquo guardemo-nos dos tentaacuteculos de conceitos contraditoacuterioscomo ldquorazatildeo purardquo ldquoespiritualidade absolutardquo ldquoconhecimento em sirdquo ndashtudo isto pede que se imagine um olho que natildeo pode absolutamente serimaginado um olho voltado para nenhuma direccedilatildeo no qual as forccedilasativas e interpretativas as que fazem com que ver seja ver-algo devemestar imobilizadas ausentes exige-se do olho portanto algo absurdo esem sentido Existe apenas uma visatildeo perspectiva apenas um ldquoconhecerrdquoperspectivo e quanto mais olhos diferentes olhos soubermos utilizarpara esta coisa tanto mais completo seraacute no ldquoconceitordquo dela nossaldquoobjetividaderdquo (GMGM III sect12)

Ora se toda investigaccedilatildeo se orienta por um objeto a idealizaccedilatildeo da pesquisa

desinteressada natildeo faria nenhum sentido Do mesmo modo a objetividade enquanto

propriedade de um objeto ideal exterior a todo interesse seria uma criaccedilatildeo tornada

operante por meio da negaccedilatildeo do verdadeiro aspecto da objetividade sua perspectividade

Ou seja se toda apreensatildeo da realidade apenas se daacute de acordo com interesses

determinados entatildeo soacute nos restaria ansiar por uma objetividade na forma determinada pela

comparaccedilatildeo das diversas perspectivas sendo que jamais alcanccedilaremos a objetividade

absoluta dado serem inuacutemeras as perspectivas inuacutemeras as interpretaccedilotildees possiacuteveis

Enquanto tentativa de atingir uma realidade ideal o ideal asceacutetico se mostra como

uma forma fracassada de se fazer filosofia No entanto a atuaccedilatildeo dos filoacutesofo segundo os

preceitos deste ideal trariam como consequecircncia positiva a preparaccedilatildeo para uma forma de

pesquisar afeita agrave diversidade de perspectivas Nesta leitura a objetividade passa a ser

compreendida como uma idealizaccedilatildeo uma hipoteacutetica reuniatildeo de todas as perspectivas

possiacuteveis Para o autor o exerciacutecio de novas perspectivas no caso a perspectiva do ideal

asceacutetico prepararia o terreno para uma nova compreensatildeo do conhecimento dos conceitos

e da objetividade e a proacutepria restriccedilatildeo dos termos conhecimento objetividade e conceito

que encontramos nesta passagem implica uma interpretaccedilatildeo perspectiva de conceitos da

tradiccedilatildeo

Pretender conhecer a essecircncia em si do mundo eacute um disparate pois conhecer eacute

exatamente apropriar-se tornar uma coisa no que ela eacute de fato e natildeo desvendar sua

216

essecircncia uacuteltima Tal ldquodesvelamentordquo se fosse possiacutevel seria qualquer coisa mas nunca

conhecimento Eacute a proacutepria imposiccedilatildeo das necessidades do ser que interpreta que faz com

que ver se torne visatildeo de algo Se natildeo haacute interpretaccedilatildeo independente das necessidades de

quem interpreta e se essas necessidades satildeo para cada indiviacuteduo o valor para ele entatildeo

toda interpretaccedilatildeo seria consequecircncia natildeo apenas de uma perspectiva mas tambeacutem de um

conjunto de valores Por sua vez a razatildeo o proacuteprio instrumento que segundo a tradiccedilatildeo nos

conduziria agrave verdade eterna por traacutes das coisas distorce inevitavelmente o real

Nessa interpretaccedilatildeo as conclusotildees de Nietzsche acerca da natureza perspectiva do

conhecimento satildeo contrapostas frontalmente agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal

como a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental a consolidou Desde os princiacutepios da filosofia a

atividade de conhecer eacute interpretada como o esforccedilo humano na tentativa de descortinar a

realidade de sua aparente transitoriedade e assim revelar sua verdade objetiva posta por

traacutes das coisas O ideal de verdade a determinaccedilatildeo da accedilatildeo a partir da postulaccedilatildeo de fins da

razatildeo e a dicotomia entre mundo verdadeiro e o mundo aparente seriam os elementos

identificados por Nietzsche como constitutivos da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

Dentre estes elementos constitutivos destaca-se o proacuteprio ideal de verdade o qual em

Aleacutem do Bem e do Mal eacute tomado como ldquoa ceacutelebre veracidade que ateacute agora todos os

filoacutesofos reverenciaramrdquo (JGBBM I sect 01) e que em Genealogia da Moral apresenta-se

como ldquoa feacute no proacuteprio ideal asceacuteticordquo (GMGM III sect 24)

Seraacute justamente contra este ideal de verdade que tem suas origens ligadas

diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta a Nietzsche como fundamento

constituidor do niilismo o objeto privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual o

filoacutesofo mobilizaraacute sua concepccedilatildeo de interpretaccedilatildeo Por outro lado quando em Genealogia

da Moral Nietzsche representa a interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja

renuacutencia os cientistas pensam obter sua honra como uma tendecircncia agrave ldquoviolentar ajustar

abreviar omitir preencher imaginar falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do

interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma uma criacutetica jaacute suportada em seus escritos de

juventude que naquele momento se apresentava na forma da explicitaccedilatildeo da formaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional de verdade e da constituiccedilatildeo da linguagem como uma forma de

dissimulaccedilatildeo da realidade

A defesa nietzschiana da interpretaccedilatildeo como forma mais adequada de verdade

estaria ligada a uma criacutetica ao ideal tradicional de verdade que jaacute se encontrava na filosofia

217

de juventude do autor Nessa leitura sua criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade se daacute

na forma de uma defesa da interpretaccedilatildeo como noccedilatildeo mais adequada do que a verdade

poderia significar e como posiccedilatildeo contraacuteria agrave noccedilatildeo de verdade encampada por valores

niilistas Esta criacutetica tambeacutem reclamaria em sua criacutetica que os ldquopensadores mais fortes

mais vitais ainda sedentos de vidardquo viessem a ldquotomar partido contra a aparecircncia e

pronunciar jaacute com altivez a palavra lsquoperspectivarsquordquo (JGBBM I sect10)

Por outro lado assim como a concepccedilatildeo de verdade vinculada agrave valores de

decadecircncia teria no platonismo suas primeiras origens tambeacutem a dicotomia entre mundo

verdadeiro e mundo aparente130 outro aspecto fundamental da concepccedilatildeo niilista vinculada

por Nietzsche a um ldquoniilismo e sinal de uma alma em desespero mortalmente cansadardquo

(JGBBM I sect10) teria suas raiacutezes no racionalismo socraacutetico Em sua criacutetica a esta

dicotomia fundamental o autor atribui um cansaccedilo e desilusatildeo essencial conducente ao

nada como forma de repouso a toda consideraccedilatildeo da necessidade de se defender a

existecircncia de uma realidade apartada da realidade das perspectivas e da interpretaccedilatildeo

Mas se a realidade do aleacutem-mundo teria sua origem no platonismo o filoacutesofo

reconhece sua sacralizaccedilatildeo na crenccedila cristatilde de um mundo do aleacutem A determinaccedilatildeo da accedilatildeo

a partir da postulaccedilatildeo de fins da razatildeo131 como uma forma de estabelecer-se virtudes a

partir da razatildeo que se vincula a uma concepccedilatildeo teoloacutegica e que na modernidade vincula-se

tanto agrave ideia cristatilde de um Deus como fonte do bem quanto na concepccedilatildeo moralista agrave ideia

de uma tendecircncia ao bem inerente agrave racionalidade teria encontrado tambeacutem no platonismo

sua origem e estiacutemulo na equaccedilatildeo que faz equivaler razatildeo virtude e felicidade

Em todas estes posicionamentos criacuteticos o ponto em comum seria a compreensatildeo

nietzschiana da razatildeo como elemento falseador do caraacuteter perspectivo da realidade Assim

o filoacutesofo enxerga na supervalorizaccedilatildeo da razatildeo um risco para a cultura e contra a

decadecircncia uma maacute ferramenta posto que a crenccedila na razatildeo natildeo eacute vista pelo filoacutesofo como

uma forma de se contrapor a algo que ela mesma figura com necessidade Ou seja em sua

leitura quando os filoacutesofos e moralistas fazem da razatildeo um meio para sair do processo de

decadecircncia ldquoelegem como meio como salvaccedilatildeordquo algo que ldquoeacute apenas mais uma expressatildeo

da deacutecadencerdquo (GDCI II sect11) Assim em sua contraposiccedilatildeo a toda forma de

130 Conforme (JGBBM I sect10) e a importante seccedilatildeo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Como o verdadeiro mundoacabou por se tornar uma faacutebula em que a filosofia platocircnica ocupa o primeiro estaacutegio do processo decriaccedilatildeo do ideal131 Esta ideia fundamental eacute narrada em Crepuacutesculo do Iacutedolos na seccedilatildeo sobre O problema de Soacutecrates sect10

218

melhoramento do homem toda forma de estabelecimento de virtudes por meio de uma

supervalorizaccedilatildeo da razatildeo Nietzsche defende a proeminecircncia dos instintos como forma de

julgar as accedilotildees humanas Pois entende que ldquoTer de combater os instintos ndash eis a foacutermula da

deacutecadencerdquo mas ldquoenquanto a vida ascende felicidade eacute igual a instintordquo (GDCI II sect11)

Com isso o filoacutesofo acredita opor-se ao platonismo assim como agrave proacutepria tradiccedilatildeo

filosoacutefica na medida em que faz sobressair o corpo em contraposiccedilatildeo agrave razatildeo e a ideia de

objetividade deduzida a partir dela

Se a noccedilatildeo de objetividade segundo a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento

seria apenas um valor que perde sentido com a constataccedilatildeo da inexistecircncia de uma

realidade ideal entatildeo sempre que se credita possuir ou pelo menos ter direito de atingir a

interpretaccedilatildeo definitiva opera-se no interior de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica e como tal

apenas uma ilusatildeo O conhecimento soacute tem sentido se considerado em suas limitaccedilotildees

enquanto conhecimento humano determinado pelo conjunto de interesses que guiam sua

busca Do ponto de vista de uma realidade objetiva no entanto ele natildeo pode ser

totalizante

Por isso na continuaccedilatildeo do fragmento poacutestumo citado acima Nietzsche nos diz

ldquoTanto quanto a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute conheciacutevel mas ele eacute

interpretaacutevel de outra maneira ele natildeo tem nenhum sentido atraacutes de si mas sim inuacutemeros

sentidos lsquoperspectivismorsquordquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Haacute tantos sentidos ldquopor traacutesrdquo da

realidade quantas interpretaccedilotildees possiacuteveis da mesma Pois o sentido eacute sempre um sentido

para algueacutem nunca um sentido ldquoem-sirdquo Assim ao mesmo tempo em que Nietzsche afirma

que o conhecimento humano eacute possiacutevel ele nega a pretensatildeo de se atingir uma verdade

absoluta Logo haacute tantas formas de conhecimento quantas forma de configuraccedilatildeo de

necessidades especiacuteficas

Natildeo admira que a concepccedilatildeo tradicional de verdade compreendida por Nietzsche

como tendo suas origens ligadas diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta

ao filoacutesofo como fundamento constituidor do niilismo tenha se tornado o objeto

privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual este mobiliza sua concepccedilatildeo de

interpretaccedilatildeo Tendo renunciado agrave possibilidade de obter um conhecimento coerente com

os princiacutepios da vida a partir da razatildeo Nietzsche passa a compreender o conhecimento

como expressatildeo de uma determinada forma de valoraccedilatildeo da realidade Posto que natildeo

219

havendo fatos por traacutes das coisas conhecer natildeo pode ser algo como esta objetividade

imaginada pelas cabeccedilas metafiacutesicas

Conhecer na interpretaccedilatildeo nietzschiana seria o mesmo que interpretar segundo os

padrotildees humanos de acordo com a atuaccedilatildeo dos instintos que guiam nossas opccedilotildees teoacutericas

Ou seja o conhecimento eacute sempre consequecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de

necessidades o que significa uma determinada ordenaccedilatildeo das necessidades internas ao

indiviacuteduo Isto no entanto de modo algum elimina a possibilidade de outras

interpretaccedilotildees

A criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave incapacidade desta em

reconhecer adequadamente os limites da perspectiva a qual o filoacutesofo vecirc como elemento

ineliminaacutevel de toda formulaccedilatildeo teoacuterica e que aparece para o filoacutesofo como viacutecio inerente

a toda forma de consideraccedilatildeo dogmaacutetica Assim quando Nietzsche representa a

interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja renuacutencia os cientistas pensam obter

sua honra como uma tendecircncia ldquoa violentar ajustar abreviar omitir preencher imaginar

falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma

suas concepccedilotildees de juventude acerca da formaccedilatildeo da verdade e da constituiccedilatildeo da

linguagem como uma forma de dissimulaccedilatildeo da realidade defendendo essa concepccedilatildeo

como componente de sua proacutepria compreensatildeo do conhecimento contraacuteria agrave noccedilatildeo de

verdade niilista

Com isso reconhece-se que sua defesa da interpretaccedilatildeo estaacute ligada a sua criacutetica ao

ideal tradicional de verdade Certamente esta atitude natildeo qualifica um posicionamento

teoacuterico determinado em relaccedilatildeo agrave verdade embora surja como reflexo de uma criacutetica ao

sentido tradicional de verdade Com isso a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma

forma de se elevar para aleacutem das consideraccedilotildees em torno da noccedilatildeo tradicional de verdade e

sua relaccedilatildeo com a perspectividade inerente a toda consideraccedilatildeo da realidade pode ser vista

como um posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade sem

no entanto estabelecer-se como outra forma de verdade Considerando-se o pensamento

nietzschiano em sua totalidade considerando-se especialmente o progresso de suas

consideraccedilotildees criacuteticas acerca do conhecimento e da verdade o que nos eacute apresentado eacute

uma compreensatildeo do conhecimento que reduz sua validade agraves instacircncias de sua

enunciaccedilatildeo sem que com isso se destitua qualquer afirmaccedilatildeo de seu valor em relaccedilatildeo agraves

demais afirmaccedilotildees necessaacuterias agrave sobrevivecircncia

220

O foco das criacuteticas nietzschianas agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento recai

completamente sobre a razatildeo e seu caraacuteter limitado Limitaccedilatildeo que conduz a uma

concepccedilatildeo de realidade como mundo verdadeiro Neste sentido desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas sua criacutetica ao conhecimento estaacute relacionada agrave apresentaccedilatildeo de nosso

aparato intelectual como parte de nosso aparato bioloacutegico e assim como algo que se

desenvolve em torno de nossa necessidade de sobrevivecircncia e natildeo a favor de uma verdade

objetiva

O perspectivismo nietzschiano especialmente na forma como fica exposto no

aforismo doze de Genealogia da Moral carrega consigo a ideia de que todas as

perspectivas satildeo limitadas nesse sentido natildeo verdadeiras Nem por isso falsas pois em

segundo plano agrave exposiccedilatildeo do perspectivismo permanece a ideia de que a objetividade

como a totalidade de perspectivas eacute algo que se pode conceber sem contradiccedilatildeo como a

totalidade de perspectivas possiacuteveis Em outro sentido o conhecimento como a tradiccedilatildeo o

entende como a visatildeo unilateral de uma verdade existente de forma independente do ato

de conhecer se torna uma perspectiva inferior exatamente por que abre matildeo da

multiplicidade de perspectivas inerente agrave ideia de objetividade cotejada por Nietzsche Ou

seja embora natildeo represente em si mesma uma teoria acerca do conhecimento nem

implique a criacutetica ao conhecimento tradicional como distorccedilatildeo da realidade o

perspectivismo nietzschiano utiliza-se da metaacutefora da perspectiva para promover o

reconhecimento do caraacuteter natildeo-fundacional do conhecimento assim como caracterizar

como contraditoacuteria a ideia de uma realidade em si mesma

42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores

Consideramos a questatildeo do valor como uma questatildeo fundamental para o

pensamento nietzschiano com base na qual se poderia entender sua concepccedilatildeo de verdade

pois esta gira em torno da necessidade de desconsiderar a concepccedilatildeo tradicional da

verdade afim de estabelecer algo de suma importacircncia para a determinaccedilatildeo de um valor

superior ou seja a proacutepria vida Para Nietzsche o problema dos valores estaria

relacionado ao fato de que na histoacuteria da filosofia a questatildeo dos valores morais foi tomada

221

como a proacutepria questatildeo do valor Assim ao refletir sobre isso o filoacutesofo afirma que ldquoA

ldquoAvaliaccedilatildeo moralrdquo ateacute onde eacute algo social mede erroneamente o homem a partir de seus

efeitosrdquo (NF FP 1887 9 [55]) Ou seja que a apreciaccedilatildeo dos valores de um ponto de

vista dos valores morais reduz a questatildeo mais ampla dos valores a uma consideraccedilatildeo que

leva apenas os efeitos praacuteticos da avaliaccedilatildeo moral dentro de um contexto no qual a

sociabilidade eacute tomada como um estado natural o filoacutesofo procura desfazer essa confusatildeo

pensando a natureza do valor em seu surgimento e totalidade

Por outro lado a consideraccedilatildeo dos valores em uma avaliaccedilatildeo exterior agrave proacutepria

sociabilidade se distinguiria fundamentalmente de uma compreensatildeo dos valores como

determinaccedilatildeo objetiva fora dos homens Nessa leitura a interpretaccedilatildeo dos valores morais

como os valores em si como a uacutenica forma de valor eacute confrontada por uma explicitaccedilatildeo

dos valores como resultado de um processo fisioloacutegico avaliaccedilatildeo que expotildee os valores

morais como algo pertencente apenas a um tipo bastante determinado de valor

Nesta interpretaccedilatildeo do problema dos valores em geral os valores morais

corresponderiam apenas a uma forma da categoria mais ampla dos valores Assim os

valores natildeo seriam realidades independentes dos homens mas produtos de sua atuaccedilatildeo

interpretativa poisldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas com a interpretaccedilatildeordquo (NF

FP 18851886 2 [77]) A interpretaccedilatildeo nietzschiana dos valores assim exclui a validade

de uma consideraccedilatildeo de um ldquosentido no em sirdquo na medida em que considera os valores

como decorrecircncias de nossa interpretaccedilatildeo Todo sentido passa a ser considerado nessa

leitura como algo relacional e perspectivo Os valores morais aparecem aqui como

resultado de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica como a interpretaccedilatildeo que substitui a

interpretaccedilatildeo religiosa decadente (NFFP 1887 9 [60])

A partir da intuiccedilatildeo fundamental de que todo valor seria produto de uma

interpretaccedilatildeo ou seja de que todo valor corresponderia a uma avaliaccedilatildeo portanto de que

toda moral deve alcanccedilar seu instante de superaccedilatildeo em uma nova taacutebua de valores (ZAZa

III Das antigas e novas taacutebuas sect02) Nietzsche contempla a possibilidade de uma

afirmaccedilatildeo incondicional do mundo e da vida na atividade criativa de valores Os valores

morais satildeo entendidos aqui como valores de conservaccedilatildeo consolidados por uma

determinada tradiccedilatildeo dos quais competiria ao homem se livrar na medida que potildee o

fortalecimento da vida a frente de sua conservaccedilatildeo Este pensamento que se coloca na

222

contramatildeo de tudo o que se fez desde a cultura racional do socratismo-platonismo ateacute o

presente traduz a maacutexima expressatildeo da afirmaccedilatildeo da vida na aceitaccedilatildeo de seu caraacuteter

ficcional

Em sua leitura Nietzsche qualifica o valor como ponto de vista fundamental

segundo os ditames das necessidades de algo que queira permanecer no curso do devir

Assim em um fragmento poacutestumo o filoacutesofo afirma ldquoO ponto de vista do lsquovalorrsquo eacute o ponto

de vista das condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e aumento com respeito a formaccedilotildees complexas de

relativa duraccedilatildeo da vida no seio do devirrdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) Em outros termos

a vida aparece para Nietzsche como condiccedilatildeo de possibilidade de toda avaliaccedilatildeo posto que

ela eacute preacute-requisito para toda avaliaccedilatildeo Para tudo que pretende durar na existecircncia assume

valor aquilo que possibilita esta duraccedilatildeo Por isso o filoacutesofo pensa desde suas primeiras

incursotildees filosoacuteficas a verdade como correlata a um valor desde que esta seria parte

fundamental na estrateacutegia de sobrevivecircncia humana

O problema do perspectivismo se relaciona com o problema do valor jaacute na

suposiccedilatildeo nietzschiana de que toda interpretaccedilatildeo seria o produto de nossas necessidades

Assim o filoacutesofo escreve ldquoSatildeo nossas necessidades as que interpretam o mundo nossos

impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de acircnsia de domiacutenio cada um

tem sua perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os demais impulsosrdquo (NF

FP 1886-1887 7[60]) Na medida em que cada impulso tem seu proacute e seu contra a ele

estaria relacionada uma determinada ordenaccedilatildeo de valores uma determinada hierarquia

Sua vontade tem como moacutevel acima de tudo o estabelecimento de seus proacutes e contras

como norma geral Ou seja toda perspectiva tem como razatildeo de existir o estabelecimento

de valores a partir de si Neste sentido natildeo haacute valor extra-perspectivo Do mesmo modo

que natildeo haacute perspectiva que natildeo implique valores Com isso podemos ver que a perspectiva

e o valor estatildeo intimamente relacionados no pensamento nietzschiano

Valores satildeo estabelecidos na medida em que sua capacidade de fazer algo

permanecer na existecircncia eacute comprovada Assim quando uma determinada configuraccedilatildeo de

forccedilas se mostra propiacutecia agrave manutenccedilatildeo da vida em seu entorno se agrupam cada vez mais

forccedilas o que acaba conduzindo agrave formaccedilatildeo de centros de domiacutenio ldquolsquovalorrsquo eacute

essencialmente o ponto de vista para o aumento ou a diminuiccedilatildeo destes centros de domiacutenio

(NFFP 1887-1888 11[73]) O valor configura perspectivas na medida em que tende a

223

agrupar forccedilas em torno de um determinado centro de domiacutenio que passa a se fazer valer

como uma perspectiva de dominaccedilatildeo Uma perspectiva nesse sentido seria justamente o

ponto de vista de uma determinada ordenaccedilatildeo das forccedilas inerentes a uma realidade

segundo os ditames de sua manutenccedilatildeo ou crescimento

Se toda forma de avaliar depende das condiccedilotildees de manutenccedilatildeo de um determinado

tipo de vida entatildeo toda filosofia enquanto conjunto de valores enquanto reflexo de uma

determinada valoraccedilatildeo corresponderia a um determinado conjunto de necessidades

inerentes a um modo de vida pois ldquopor traacutes de toda loacutegica e de sua aparente soberania de

movimentos existem valoraccedilotildees ou falando mais claramente exigecircncias fisioloacutegicas para

a preservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vidardquo (JGBABM I sect03) Assim a

substituiccedilatildeo de uma filosofia niilista por uma forma perspectivista de filosofia

corresponderia no pensamento nietzschiano agrave substituiccedilatildeo de uma forma decadente de

valoraccedilatildeo que tem no conjunto de suas necessidades uma necessidade de nada suportada

pela crenccedila em uma realidade ideal por uma forma ascendente de avaliaccedilatildeo que tem na

multiplicidade e na mudanccedila suas necessidades essenciais

A substituiccedilatildeo de uma esfera ideal de constituiccedilatildeo dos valores pela vida tomada

aqui como escala segundo a qual os proacuteprios valores se constituem possibilitaria uma

avaliaccedilatildeo dos valores que difere completamente da avaliaccedilatildeo tradicional segundo a qual

haveriam valores dados e irrevogaacuteveis Pois segundo uma compreensatildeo dos valores que

toma a vida como criteacuterio as condiccedilotildees em que algo tem que se firmar mudam Nesse

sentido eacute natural que tambeacutem os valores mudem posto que natildeo haacute sentido exterior a uma

escala de necessidades nem nenhuma escala determinante na esfera do devir

A cada momento para cada espeacutecie verdadeiro eacute apenas aquilo que possibilita sua

conservaccedilatildeo Seraacute justamente esta interpretaccedilatildeo do valor que possibilitaraacute ao filoacutesofo opor-

se tanto agrave moral dogmaacutetica quanto agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica de conhecimento Um valor

segundo a tradiccedilatildeo criticada por Nietzsche seria justamente o bem em si mesmo uma

ideia a qual o filoacutesofo se opotildee fortemente O mesmo ocorreria com a verdade em si que

segundo esta compreensatildeo teria por problema fundamental sua dependecircncia em relaccedilatildeo agrave

defesa niilista de uma realidade criada que torna sem valor a realidade dos fenocircmenos

224

Ateacute onde se compreende o que Nietzsche considera problemaacutetico no dogmatismo

filosoacutefico tradicional fica claro que ele entende que a grande falha da filosofia tradicional

teria sido seu entendimento da verdade como algo localizaacutevel de forma definitiva ainda

que em uma realidade externa agrave realidade dos fenocircmenos Esta realidade externa aos

fenocircmenos no entanto natildeo houvera aparecido para a tradiccedilatildeo como uma realidade criada

do mesmo modo que a realidade a partir dos sentidos A partir de sua consideraccedilatildeo criacutetica

da razatildeo como parte do esquema de simplificaccedilatildeo da realidade Nietzsche se coloca em

condiccedilotildees de questionar justamente este caraacuteter simplificado da realidade concebida a

partir da razatildeo aprofundado uma criacutetica que a tradiccedilatildeo filosoacutefica apenas havia comeccedilado

Assim no prefaacutecio de Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche explica brevemente o que ele

chama de ldquoo erro do dogmatismordquo Apoacutes sua pequena anedota acerca do despreparo dos

filoacutesofos dogmaacuteticos para abordar uma mulher o filoacutesofo diz

Falando seriamente haacute boas razotildees para esperar que toda dogmatizaccedilatildeoem filosofia natildeo importando o ar solene e definitivo que tenhaapresentado natildeo tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa deiniciantes e talvez esteja proacuteximo o tempo em que se perceberaacute quatildeopouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutasconstruccedilotildees filosofais que os dogmaacuteticos ergueram ndash alguma supersticcedilatildeopopular de um tempo imemorial (como a supersticcedilatildeo da alma que comosupersticcedilatildeo do sujeito e do Eu ainda hoje causa danos) talvez algumjogo de palavras alguma seduccedilatildeo da gramaacutetica ou temeraacuteriageneralizaccedilatildeo de fatos muito estreitos muito pessoais demasiadohumanos (JGBABM Proacutelogo sect1)

Em sua leitura o autor denomina dogmaacutetico tudo aquilo que se segue agrave criaccedilatildeo das

sublimes e absolutas criaccedilotildees filosoacuteficas com base em fatos pessoais idiossincrasias

filosoacuteficas coisa humana demasiado humana A proacutepria criaccedilatildeo platocircnica do reino das

ideias fundamento e ponto de partida de toda concepccedilatildeo niilista parece fornecer o modelo

deste tipo de construccedilatildeo filosoacutefica dogmaacutetica Motivo pelo qual em sua leitura o autor

indica a invenccedilatildeo do ldquopuro espiacuterito e do bem em sirdquo como um erro de dogmaacutetico o ldquopior o

mais persistente e perigoso dos erros ateacute aquirdquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Do mesmo

modo a criaccedilatildeo da moralidade decorrente da criaccedilatildeo dogmaacutetica das noccedilotildees de ldquoo bemrdquo e

ldquoo malrdquo seria mais a frente abordada por Nietzsche e com maior profundidade em

Genealogia da Moral

225

O que determina a importacircncia das poucas indicaccedilotildees acerca do que o autor entende

como sendo o dogmatismo da concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute o bastante para conectar

a fabricaccedilatildeo da moralidade ao problema do dogmatismo e sua superaccedilatildeo na consideraccedilatildeo

do caraacuteter perspectivo da existecircncia Assim em uma outra passagem do proacutelogo de Aleacutem

do Bem e do Mal Nietzsche considera que o erro dogmaacutetico de Platatildeo surgiu de sua

incapacidade em adotar um perspectivismo adequado ldquoCertamente significou pocircr a

verdade de ponta-cabeccedila e negar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica de toda vida falar do

espiacuterito e do bem como o fez Platatildeordquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Para Nietzsche portanto a

luta para superar o erro dogmaacutetico platocircnico e toda moralidade decorrente desse erro

significava pocircr a verdade de volta sob seus peacutes e afirmar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica

de toda a vida

De fato nesta leitura tambeacutem a verdade enquanto componente de uma estrateacutegia

especiacutefica de sobrevivecircncia natildeo poderia ter seu valor determinado absolutamente Assim

como parte de uma estrateacutegia de sobrevivecircncia tiacutepica de uma espeacutecie que busca se manter

no curso do devir o conhecimento humano tambeacutem corresponderia a um ponto de vista

determinado de valores proacuteprios De fato toda ciecircncia e filosofia ateacute entatildeo teria seu valor

vinculado agrave conservaccedilatildeo da vida Motivo pelo qual para Nietzsche a loacutegica por exemplo

soacute eacute importante porque nosso modo de vida depende dela fundamentalmente Isto natildeo

significa que a realidade seja ela mesma loacutegica ou que se comporte de forma loacutegica

apenas que a realidade assume valor para noacutes na exata medida em que podemos aplicar a

loacutegica a ela

Por outro lado conceitos fundamentais da fiacutesica tambeacutem apenas adquiririam

sentido para noacutes por sua utilidade praacutetica natildeo por sua veracidade De um modo geral toda

forma de compreensatildeo da realidade segundo instacircncias fixas seria reflexo desta mesma

conversatildeo da realidade em elementos uacuteteis para a conservaccedilatildeo da vida pois ldquonatildeo haacute

unidades uacuteltimas duradouras natildeo haacute aacutetomos natildeo haacute mocircnadas tambeacutem aqui lsquoo ente [das

Seiende]rsquo foi introduzido primeiro por noacutes (por razotildees praacuteticas uacuteteis segundo a

perspectiva)rdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) A criacutetica nietzschiana a esta perspectiva por

sua vez natildeo diria respeito a seu caraacuteter perspectivo Pois posto que todo conhecimento eacute

perspectivo seria necessaacuterio possuir uma verdade no sentido que o filosofo rejeita para

entatildeo questionar a perspectividade de uma posiccedilatildeo

226

No entanto o fato desta perspectiva adotar como interesse praacutetico a conservaccedilatildeo

motivo pelo qual se apoia em conceitos imobilistas aparece como algo criticaacutevel para

Nietzsche que reconhece nestes conceitos criaccedilotildees de menor valor Nesse sentido o

perspectivismo nietzschiano distingue-se fundamentalmente de uma teoria pragmaacutetica da

verdade Pois o filoacutesofo considera toda utilidade enquanto princiacutepio para a conservaccedilatildeo

como manifestaccedilatildeo de valores de decadecircncia Na leitura do filoacutesofo o princiacutepio de

utilidade conduziria agrave criaccedilatildeo de valores imobilistas e estes por sua vez conduziriam agrave

criaccedilatildeo de uma realidade extra-fenomecircnica logo acaba por se configurar em uma forma

dogmaacutetica de filosofia ou ciecircncia Desta maneira se pode entender a criacutetica agrave concepccedilatildeo

tradicional de utilidade presente no final do aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia

Natildeo temos nenhum oacutergatildeo para o conhecer para a ldquoverdaderdquo noacutesldquosabemosrdquo (ou cremos ou imaginamos) exatamente tanto quanto podeser uacutetil ao interesse da grege humana da espeacutecie e mesmo o que aqui sechama ldquoutilidaderdquo eacute afinal apenas uma crenccedila uma imaginaccedilatildeo etalvez precisamente a fatiacutedica estupidez da qual um dia pereceremos(FWGC IV sect354)

Posto que o filoacutesofo compreende que toda forma de conhecimento conduz agrave

admissatildeo de erros fundamentais conclui que a proacutepria utilidade seria um erro talvez o erro

fundamental de que um dia sucumbiremos Nesta leitura Nietzsche percebe que o homem

enquanto animal de rebanho persegue por comodidade valores de conservaccedilatildeo valores

dos quais se o homem deve se livrar do niilismo precisa abandonar Em seu lugar

competiria ao homem estabelecer o conhecimento sob o fundamento de valores de

aumento da forccedila de crescimento Estes valores estatildeo vinculados ao risco satildeo valores

experimentais os quais o filoacutesofo do futuro deveria acolher em detrimento dos valores de

decadecircncia Nesta leitura o problema com a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento seria

sua renuacutencia ao caraacuteter perspectivo de todo conhecimento

Tomada sua reflexatildeo criacutetica em sentido amplo eacute possiacutevel ver em seus ataques aos

filoacutesofos que lhe precedem uma condenaccedilatildeo de toda tentativa de dizer a verdade vistas

aqui como um ato que constrange interpretaccedilotildees diversas a uma unificaccedilatildeo improcedente

o que condiciona o sentido da verdade a um posicionamento dogmaacutetico Assim parte de

227

sua criacutetica agrave metafiacutesica se fundamentaria no fato de que esta atraveacutes da busca pelos

fundamentos uacuteltimos teria conduzido a filosofia a estipular um deux ex machina na figura

de concepccedilotildees tais como a concepccedilatildeo de causa sui

A causa sui eacute a mais bela contradiccedilatildeo jaacute cogitada uma espeacutecie deviolaccedilatildeo e golpe mortal agrave loacutegica Poreacutem o orgulho ilimitado do homemconduziu-o a um emaranhamento cada vez maior no intrincado absurdo odesejo do ldquolivre arbiacutetriordquo entendido no sentido superlativo e metafiacutesicoque domina ainda (por desgraccedila nos ceacuterebros semi-cultivados) que eacute anecessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidade de seusatos e natildeo atribuiacute-la a Deus ao mundo agrave hereditariedade agrave sorte agravesociedade esta causa sui natildeo eacute mais que a necessidade de ser algueacutem ecom esta audaacutecia intreacutepida que supera agrave do baratildeo de Muumlnchhausen tentatirar a si mesmo do pacircntano do nada puxando seus proacuteprios cabelos eentrar na luz da existecircncia (JGBABM Livro I sect21)

O que o autor nos apresenta em sua leitura criacutetica das concepccedilotildees antagocircnicas de

livre-arbiacutetrio e determinismo eacute uma mesma crenccedila de base na causalidade A causalidade eacute

vista pelo autor como um condicionamento das concepccedilotildees que se pretendem natildeo

condicionais de causa e efeito Mais especificamente a crenccedila em que todos os atos

humanos ou bem seriam produtos de uma escolha ou bem satildeo resultados da atuaccedilatildeo de

causas externas agrave vontade humana o que acaba por conduzir agrave compreensatildeo de que toda

causa deva ter um efeito reciacuteproco Esta compreensatildeo da realidade que eacute a compreensatildeo

de base dos naturalistas quando se baseiam no meacutetodo mecanicista eacute tida aqui como um

erro de interpretaccedilatildeo oriundo da crenccedila na necessidade de uma dicotomia de princiacutepios

Assim o filoacutesofo apela para que tal concepccedilatildeo seja abandonada

Se algueacutem chegasse a vislumbrar a neacutescia rusticidade do famoso conceitodo ldquolivre arbiacutetriordquo ateacute chegar a afastaacute-lo do seu espiacuterito eu lhe rogariaque desse mais um passo e afastasse de seu ceacuterebro o contraacuterio dessepseudoconceito isto eacute o ldquodeterminismordquo que conduz ao mesmo abusodas noccedilotildees de causa e efeito Natildeo eacute preciso cometer o erro de tornarcondicionados causa e efeito como fazem os naturalistas (e todos quesequem seu meacutetodo de pensar) segundo as cretinices mecanicistas emvoga que querem que toda causa impulsione e pressione ateacute produzir umefeito (JGBABM Livro I sect21)

228

A crenccedila na causalidade na lei que rege as accedilotildees humanas com a mesma

regularidade com que rege os eventos da natureza seria por sua vez um reflexo na crenccedila

na oposiccedilatildeo entre falsidade e verdade Estas concepccedilotildees surgem de uma consideraccedilatildeo

mecanicista da realidade que opotildee duas esferas governadas pela mesma lei de necessidade

Razatildeo pela qual em seu pensamento antimetafiacutesico Nietzsche buscaria ao contraacuterio da

concepccedilatildeo tradicional minar o dualismo fundamental que divide o mundo em uma

realidade superior agrave realidade dada pelos sentidos e desta forma instaurar a validade

perspectiva como uacutenica pretensatildeo possiacutevel ao conhecimento humano

Atraveacutes da constataccedilatildeo da hegemonia da interpretaccedilatildeo satildeo igualadas todas as

concepccedilotildees acerca da realidade como sendo igualmente falsas sendo que satildeo oriundas de

uma consideraccedilatildeo perspectiva A ausecircncia de fundamento uacuteltimo que surge da anaacutelise

perspectivista das concepccedilotildees tradicionais expotildee o absurdo de se buscar a verdade uacuteltima

Mediante esta reflexatildeo a proacutepria oposiccedilatildeo entre interpretaccedilatildeo e mundo verdadeiro eacute

esvaziada de sentido Posto que natildeo havendo texto ou seja natildeo havendo uma realidade

ideal com base na qual julgar a realidade das avaliaccedilotildees natildeo haacute necessariamente

interpretaccedilatildeo Assim ao padratildeo de avaliaccedilatildeo da realidade segundo os criteacuterios de verdade e

falsidade Nietzsche contrapotildee a hipoacutetese de se interpretar a realidade conforme diferentes

valores os quais natildeo se distinguiriam de maneira dicotocircmica mas se diferenciariam

conforme a um padratildeo correlato ao padratildeo de uma avaliaccedilatildeo esteacutetica

Aqui se nos apresenta o seguinte problema o que caracteriza a condiccedilatildeo

perspectiva de toda vida como o ponto correto de consideraccedilatildeo da realidade Ou seja se

tudo que temos satildeo interpretaccedilotildees como a consideraccedilatildeo nietzschiana da primordialidade

das perspectivas pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo melhor do que a interpretaccedilatildeo

platocircnica Estariacuteamos aqui diante de uma consideraccedilatildeo dogmaacutetica da perspectividade da

existecircncia em Nietzsche Quando considerada a criacutetica nietzschiana a toda forma de

determinaccedilatildeo de verdade como certeza este natildeo parece ser o caso

O perspectivismo nietzschiano implicaria assim na afirmaccedilatildeo de que toda

justificaccedilatildeo de nossas crenccedilas depende de um contexto dado a partir de outras crenccedilas que

passam por verdadeiras quando no fundo satildeo apenas consideradas incontestaacuteveis para o

momento Assim a defesa nietzschiana de suas posiccedilotildees de suas concepccedilotildees filosoacuteficas

em especial natildeo partiria de uma consideraccedilatildeo de sua veracidade mas de uma afirmaccedilatildeo

229

contextual que tomaria a vida como criteacuterio absoluto e sobre o qual nenhum outro criteacuterio

poderia ser estabelecido Isto no entanto por vezes pode parecer insuficiente posto que a

defesa da posiccedilatildeo nietzschiana parece requerer uma base para a qualificaccedilatildeo desta como

superior ou entatildeo o filoacutesofo incorreria em uma forma menos expliacutecita de dogmatismo

Assim certamente o filoacutesofo natildeo poderia dizer que sua perspectiva eacute verdadeira baseada

apenas no modo como as coisas lhe parecem Mesmo que natildeo conte com uma base objetiva

ou neutra deve dar conta do porquecirc de sua perspectiva dever ser confiada antes de outra

Desde que Nietzsche claramente faz afirmaccedilotildees de verdade que ele acredita que satildeo

apoiadas por seu perspectivismo sem no entanto explicar o que exatamente as torna

verdadeiras o filoacutesofo introduz embora experimentalmente o problema da verdade tal

como este surgiu entre os gregos e que culminaria na elaboraccedilatildeo platocircnica do mundo das

ideias Mas um relato decisivo acerca do que realmente seria a verdade nunca esteve entre

os planos do filoacutesofo que ao inveacutes de propor uma concepccedilatildeo proacutepria de verdade preferiu

esclarecer um problema inerente agraves formas tradicionais da concepccedilatildeo de verdade132

Ao oferecer uma criacutetica extensa do equiacutevoco que Nietzsche considera comum entre

os filoacutesofos que lhe precedem de que algo possa ser afirmado objetivamente fora de

qualquer perspectiva sua reflexatildeo em torno da verdade constitui-se apenas de forma

negativa Desta maneira suas posiccedilotildees filosoacuteficas seriam reconhecidas como hipoacuteteses

interpretaccedilotildees que natildeo reclamariam nenhuma vantagem em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees que o

filoacutesofo critica a natildeo ser pelo fato de se reconhecerem como interpretaccedilotildees o que se torna

possiacutevel na medida em que suas concepccedilotildees natildeo se deixam guiar por uma vontade de

verdade moralmente decadente

O perspectivismo nietzschiano assim deve ser avaliado como contraproposta a

uma forma de conhecimento tradicional associada por Nietzsche a uma tendecircncia niilista

de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a uma consideraccedilatildeo negativa da

realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a proacutepria perspectividade Na defesa

desta contraproposta apresentada de modo experimental mais do que uma anaacutelise da

verdade de posicionamentos filosoacuteficos interessa a Nietzsche a anaacutelise do valor desses

posicionamentos

230

43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas

O problema da verdade que aparece ao filoacutesofo desde suas primeiras incursotildees

filosoacuteficas como um problema fundamental assume um caraacuteter duplo em sua reflexatildeo

madura Esta mudanccedila apenas pode ser produzida quando Nietzsche confronta o problema

do niilismo que condiciona uma mudanccedila de sentido da concepccedilatildeo de vida em seu

pensamento agora natildeo mais pensada apenas enquanto instacircncia bioloacutegica mas tambeacutem

como instacircncia de fundamentaccedilatildeo de valores Se em Zur Teleologie motivada pelo

problema da questatildeo teoloacutegica o filoacutesofo pensa a vida apenas como algo que pode ser

mantido agora ela lhe aparece como algo que natildeo apenas se deve manter mas que tambeacutem

deve ser fortalecida Assim quando tomada a vida como determinante para a

caracterizaccedilatildeo dos valores primeiramente haveriam os valores de manutenccedilatildeo da vida e

depois aqueles valores que tornam a vida mais forte Os primeiros valores que estariam

vinculados a criaccedilatildeo de uma realidade ideal e conceitos imobilistas seriam valores

inferiores em relaccedilatildeo agrave vida Em contraposiccedilatildeo a estes os valores de afirmaccedilatildeo da vida

seriam aqueles que a fortalecem Nesse sentido a perspectividade enquanto fundamento de

uma compreensatildeo da realidade que rejeita toda forma de imobilismo estaria vinculada de

maneira necessaacuteria ao fortalecimento da vida caracterizando um posicionamento superior

quando em comparaccedilatildeo ao posicionamento dogmaacutetico

Para Nietzsche portanto o fundamental de um posicionamento filosoacutefico seria seu

potencial afirmativo da vida natildeo sua veracidade Em sua interpretaccedilatildeo criacutetica da

concepccedilatildeo tradicional de verdade interessaria ao filoacutesofo opor vida e valores e desta

forma questionar o valor dos valores afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida em oposiccedilatildeo aos

valores que satildeo essenciais para nossa sobrevivecircncia Neste sentido no fragmento poacutestumo

7[8] que tem por tiacutetulo ldquoNiilismordquo escrito entre o final de 1886 e a primavera de 1887 e

que corresponderia ao terceiro capiacutetulo do terceiro livro dos planos para a obra Vontade de

Potecircncia Nietzsche apresenta este como sendo seu verdadeiro problema que apenas em

sua filosofia se teria feito consciente

231

Suportei ateacute aqui uma tortura todas as leis segundo as quais a vida sedesenvolve pareciam-me estar em contradiccedilatildeo com os valores em virtudedos quais noacutes nos mantemos vivos Natildeo parece ser o estado do qualmuitos sofrem conscientemente apesar disso quero reunir os sinais apartir dos quais suponho que esse eacute o caraacuteter fundamental o problematraacutegico propriamente dito de nosso mundo moderno e a indigecircnciasecreta a causa ou a interpretaccedilatildeo de todas as nossas indigecircncias Esseproblema tornou-se consciente em mim (NFFP 18861887 7 [08])

Na medida em que se considera que entre as leis em que a vida se desenvolve se

inclui a proacutepria consideraccedilatildeo perspectiva da realidade que se opotildee frontalmente agrave nossa

necessidade de aparecircncias que ocupam na loacutegica de nossa sobrevivecircncia um lugar de

importacircncia iacutempar natildeo pode haver duacutevida de que neste fragmento estamos diante do

questionamento acerca do valor mesmo de uma consideraccedilatildeo perspectiva dos valores em

relaccedilatildeo ao valor das proacuteprias aparecircncias Se a caracterizaccedilatildeo da perspectiva como condiccedilatildeo

inerente agrave vida pode ser vista como contraposiccedilatildeo a um mal-entendido da verdade que o

autor identifica nas posiccedilotildees dogmaacuteticas entatildeo os valores suportados pela consideraccedilatildeo

tradicional da verdade estariam ligados agrave manutenccedilatildeo da vida e os valores de uma

consideraccedilatildeo perspectivista da vida estariam ligados a uma forma de valorar segundo

valores que tornam a vida mais forte

O perspectivismo nietzschiano por sua vez desde que tem em seus fundamentos

uma reavaliaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de verdade pode ser visto como uma forma de

reflexatildeo radical natildeo apenas acerca do conhecimento e da verdade mas tambeacutem dos

valores como criaccedilotildees oriundas de uma perspectiva limitada e que natildeo tem importacircncia

para aleacutem da esfera de sua criaccedilatildeo O que torna o mundo dos valores enquanto mundo da

criaccedilatildeo humana segundo sua perspectiva como uacutenica realidade para aleacutem da consideraccedilatildeo

de uma realidade verdadeira assim como de uma realidade como aparecircncia Nesse sentido

a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma forma de reverter completamente a noccedilatildeo

tradicional da natureza da verdade e da perspectiva pode ser vista como um

posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade ainda que com

isto se acentue a contradiccedilatildeo entre aquilo que propicia a sobrevivecircncia humana em relaccedilatildeo

ao que a torna mais forte

Ao propor a ideia de que a realidade seja interpretada segundo uma escala de

inuacutemeros valores o filoacutesofo adianta-se em sua missatildeo de instituir um antiplatonismo

232

radical ao atacar a concepccedilatildeo de mundo verdadeiro A concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana do

conhecimento nesse sentido corresponderia a uma tentativa de analisar a possibilidade de

se considerar qualquer posicionamento teoacuterico como passiacutevel de ser localizado dentro de

uma escala valorativa de infinitos graus infinitos valores para usar a terminologia

nietzschiana em que no grau mais baixo se encontraria o posicionamento menos

afirmativo em relaccedilatildeo agrave vida posto que tende a uma concepccedilatildeo de mundo verdadeiro Pois

na medida em que o mundo verdadeiro que fundamentaria as concepccedilotildees cientiacuteficas e

filosoacuteficas agraves quais Nietzsche se opotildee eacute criticado como a maior das falsidades jaacute criada os

valores que repousam sobre este fundamento satildeo forccedilados a uma reavaliaccedilatildeo Sua negaccedilatildeo

do mundo verdadeiro representaria a ruptura com a mentira de seacuteculos que instituiu um

mundo separado da realidade material como forma de fugir ao caraacuteter limitado de nossas

formulaccedilotildees teoacutericas

A necessidade de uma alteraccedilatildeo do criteacuterio de avaliaccedilatildeo surge da constataccedilatildeo

nietzschiana do colapso do sistema valorativo tradicional suportado pela filosofia

metafiacutesica pela ciecircncia naturalista e pela concepccedilatildeo religiosa Quanto a esta necessidade a

leitura nietzschiana da filosofia tradicional eacute muito clara em sua suposiccedilatildeo de que o

dualismo ontoloacutegico teria levado a pesquisa filosoacutefica a sua exaustatildeo o que se daacute atraveacutes

do confronto entre a inexistecircncia de uma realidade idealizada e a hegemonia da

interpretaccedilatildeo

Para pensar a relaccedilatildeo intriacutenseca entre o conhecimento e os afetos subjacentes agrave

consciecircncia eacute necessaacuterio retornar com ecircnfase especial ao paraacutegrafo 333 de A Gaia

Ciecircncia onde o autor apresenta um suposto tiacutetulo que de fato corresponde a uma citaccedilatildeo

de Espinosa O que significa conhecer Non ridere non lugere nequi detestari sed

intelligere A passagem do Tractatus Politicus de Spinoza aparece aqui como a forma mais

contraacuteria agrave concepccedilatildeo de conhecimento que o autor almeja defender Em contraposiccedilatildeo agrave

ideia de conhecimento como cessaccedilatildeo dos afetos o autor diraacute que o conhecimento natildeo

surge a partir de um apagamento dos impulsos de rir lamentar e detestar mas sim de uma

certa tomada de consciecircncia dos uacuteltimos estaacutegios da luta desses impulsos

A noacutes nos chega agrave consciecircncia apenas as uacuteltimas cenas de conciliaccedilatildeo eajuste de contas desse longo processo e por isso achamos que intelligere eacutealgo conciliatoacuterio justo bom essencialmente contraacuterio aos impulsos

233

enquanto eacute apenas uma certa relaccedilatildeo dos impulsos entre si (FWGC IVsect333)

Conhecer portanto natildeo seria deixar calar os instintos mais iacutentimos do pesquisador

mas o chegar agrave consciecircncia destes estados iacutentimos Pois o que move o conhecimento eacute

precisamente o duelo entre esses instintos de modo que o resultado desse duelo produz

algo diferente novo e que sobreveacutem ao pesquisador como uma faiacutesca que surge do contato

entre duas espadas Ora destes estados iacutentimos o pesquisador reconhece apenas os uacuteltimos

momentos logo ele natildeo eacute sujeito de conhecimento exceto em uma acepccedilatildeo muito precaacuteria

Para todos os efeitos o pesquisador eacute apenas instrumento dos instintos que nele lutam e

atraveacutes dele chegam a uma conformaccedilatildeo especiacutefica segundo a natureza de seus instintos

Esta eacute de fato a caracteriacutestica uacuteltima do tipo de conhecimento defendido por

Nietzsche e estaacute em iacutentima associaccedilatildeo com sua concepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia De

fato a luta dos instintos eacute uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia que nesse sentido

seria a verdadeira responsaacutevel pela interpretaccedilatildeo que chega ao pesquisador em seus

estaacutegios finais como conhecimento Na vontade que Nietzsche pensa como subjacente a

toda concepccedilatildeo racional de natureza nada como a verdade existe Por isso o filoacutesofo diz

ldquoGuardemo-nos de dizer que haacute leis da natureza Haacute apenas necessidades natildeo haacute ningueacutem

que comande ningueacutem que obedeccedila ningueacutem que transgridardquo (FWGC III sect109) Assim

visto a questatildeo ainda de outro modo o conhecimento natildeo seria o cessar das contradiccedilotildees

inerentes aos instintos em luta como se estaria tentado a deduzir diante da concepccedilatildeo

apresentada por Nietzsche como sendo a de Spinosa Mas antes o apaziguar dessas

contradiccedilotildees por meio da consciecircncia mediante a pressatildeo de uma necessidade nossa uma

coaccedilatildeo bioloacutegica que aspira a um cessar dos instintos

A coaccedilatildeo subjetiva que impede de contradizer eacute uma coaccedilatildeo bioloacutegica oinstinto de utilidade que haacute em concluir assim como concluiacutemos tornou-se para noacutes uma segunda natureza somos quase esse instinto Mas queingenuidade querer extrair daiacute a demonstraccedilatildeo de que possuiacutemos umaverdade em si O fato de natildeo ser possiacutevel a contradiccedilatildeo eacute prova de umaincapacidade e natildeo de uma ldquoverdaderdquo (NFFP 1888 14[152])

234

Apesar de o apaziguamento dos instintos que se daacute no sujeito surgir como o efeito

de uma potecircncia ordenadora constituinte da proacutepria consciecircncia aqui natildeo se expressa uma

capacidade superior como por vezes a tradiccedilatildeo do pensamento deixa entender A ela estaacute

ligada a necessidade de simplificar uma realidade caoacutetica para fins de comunicaccedilatildeo Com

isso natildeo se expressa uma potecircncia uma capacidade para a verdade mas uma limitaccedilatildeo

Concebemos verdades com uma determinada regularidade natildeo por uma maior capacidade

interpretativa mas por uma maior dependecircncia de regularidade em relaccedilatildeo a outras

espeacutecies naturais

() O mundo imaginaacuterio do sujeito da substacircncia da ldquorazatildeordquo etc eacutenecessaacuterio haacute em noacutes uma potecircncia ordenadora simplificadora quefalsifica e separa artificialmente ldquoVerdaderdquo eacute a vontade de tornar-sesenhor da multiplicidade das sensaccedilotildees (NFFP 1887 09[189])

Dependemos de estabilidade para viver assim criamos um mundo imaginaacuterio da

substacircncia Com isso nenhuma verdade eacute atingida a natildeo ser que se tome por verdade

aquilo que eacute necessaacuterio para nossa existecircncia Segundo Nietzsche esse teria sido o erro da

tradiccedilatildeo ateacute entatildeo tomar por verdadeiro o que eacute necessariamente verdadeiro para noacutes

Nessa leitura o conhecimento tal como este foi perseguido pela tradiccedilatildeo estaria

relacionado a uma impotecircncia para criar que encontra na vontade de verdade a mateacuteria

prima para a construccedilatildeo do outro mundo

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir Em outras palavras o filoacutesofo compreende que o bem e o mal

natildeo estatildeo colocados de uma vez por todas no real pois jaacute em sua filosofia de juventude

conclui que a realidade natildeo possui ordem ou desordem Assim o mundo se o

considerarmos em si mesmo independente do homem natildeo eacute afeito a coisas como erro

verdade mentira bom ou ruim

235

Na leitura nietzschiana a realidade natildeo possui valor em si valores natildeo-humanos

Todo valor eacute decorrecircncia da atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo

com ilusotildees interpretaccedilotildees muito proacuteprias ligadas desde sua origem a ordem de suas

necessidades Por isso o filoacutesofo afirma ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie ()

traz entatildeo um esplecircndido cortejo de motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer

esquecer que no fundo eacute impulso instinto tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1)

Assim Nietzsche concebe o mundo como uma decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de

sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se carregado de sentido a partir da existecircncia

humana Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto eacute por definiccedilatildeo

sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana natildeo eacute guiada

por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima instacircncia a accedilatildeo

humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento

Nessa leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a

finalidade a moralidade o sentido satildeo tomadas pro Nietzsche com instacircncias do instinto

de conservaccedilatildeo nos seres humanos Os diferentes valores natildeo passam de padronizaccedilotildees

humanas inexistentes no mundo mesmo pois como nos diz o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas

que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a

lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse

mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre fizemos ou seja

mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim a uma atribuiccedilatildeo

humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de sobrevivecircncia de

uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

A necessidade do mundo necessaacuterio da substacircncia condiciona nossa busca pelo

conhecimento como a busca pelo conhecimento deste mundo antropomorficamente

necessaacuterio Mas posto que a existecircncia desse mundo eacute dependente de nossa atuaccedilatildeo a este

mundo natildeo corresponderia nenhuma realidade em si Assim a concepccedilatildeo de conhecimento

combatida por Nietzsche se relaciona intimamente com a tendecircncia niilista que se

propaga do campo da moral para o campo do conhecimento Em sua concepccedilatildeo

perspetivista que confronta o fato de que natildeo haacute outro mundo o elemento criativo

plasmador de interpretaccedilotildees torna-se o ponto central No entanto a negaccedilatildeo de um outro

mundo distingue-se da negaccedilatildeo de uma realidade em si que seria jaacute certo

236

comprometimento com aquilo que se tenciona negar Por outro lado a afirmaccedilatildeo de nosso

mundo de interpretaccedilotildees eacute coerente com o sentido mais iacutentimo da reflexatildeo nietzschiana

conforme o autor esclarece em um fragmento poacutestumo a ideia que regeu sua obra

Que o valor do mundo reside em nossa interpretaccedilatildeo (ndash que em algumoutro lugar talvez sejam possiacuteveis ainda outras interpretaccedilotildees que natildeo ashumanas ndash) que as interpretaccedilotildees ateacute aqui satildeo avaliaccedilotildeesperspectiviacutesticas graccedilas agraves quais noacutes nos mantemos na vida ou seja navontade de poder de crescimento de poder que toda elevaccedilatildeo do homemtraz consigo a superaccedilatildeo de interpretaccedilotildees mais estreitas que todaintensificaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo do poder alcanccediladas abrem novas perspectivase conclamam a que se acredite em novos horizontes ndash isto eacute algo queatravessa meus escritos O mundo que em alguma medida nos dizrespeito eacute falso isto eacute natildeo eacute nenhum fato mas uma sedimentaccedilatildeo e umarrendondamento a partir de uma soma mais magra de observaccedilotildees eleestaacute em ldquofluxordquo como algo que deveacutem como uma falsidade que semprese translada novamente que nunca se aproxima da verdade pois ndash natildeo haacutenenhuma ldquoverdaderdquo (NFFP 18851886 2 [108])

Aqui eacute necessaacuterio voltar-se para a definiccedilatildeo nietzschiana de niilismo na tentativa

de entender radicalmente sua negaccedilatildeo do outro mundo Nietzsche diz ldquoo niilista eacute o

homem que julga que o mundo tal como eacute natildeo deveria existir e o mundo tal qual deveraacute

ser natildeo existerdquo (NFFP 1887 9[60]) O niilista portanto seria aquele que defende a

existecircncia de uma realidade idealizada com base na negaccedilatildeo da realidade imperfeita que eacute

nossa criaccedilatildeo Assim se pensarmos em uma posiccedilatildeo que tenciona superar o niilismo

estamos diante da necessidade natildeo de negar um outro mundo mas de afirmar o mundo

que eacute nossa criaccedilatildeo Pois o nosso mundo objetivo enquanto totalidade de perspectivas eacute

afirmado na consideraccedilatildeo perspectivista nietzschiana como o uacutenico mundo existente

Em contraposiccedilatildeo ao niilista que natildeo consegue aceitar o mundo como totalidade de

perspectivas por consideraacute-lo inferior ao mundo ideal inexistente o filoacutesofo perspectivista

seria aquele que apreende um mundo que entende desde o comeccedilo como produto de sua

atuaccedilatildeo criativa no mundo Desta maneira a ele se assemelha o homem das metaacuteforas

intuitivas do ensaio sobre verdade e mentira para quem as metaacuteforas constituem em seu

caraacuteter mesmo de metaacuteforas o material de sua existecircncia poeacutetica Ao homem da ciecircncia no

ensaio em questatildeo corresponderia o niilista que tenta apoiar-se em uma perspectiva

definitiva uacutenica verdadeira apesar de igualmente ilusoacuteria

237

Conforme referido anteriormente a vontade de verdade constitui uma impotecircncia

para criar que encontra reflexo na afirmaccedilatildeo de que o mundo que deveria ser jaacute eacute e jaacute estaacute

aiacute Atraveacutes dessa concepccedilatildeo a vontade que move a afirmaccedilatildeo da existecircncia do mundo

ideal exclui-se da criaccedilatildeo do mundo e age tatildeo-somente em sua antecipaccedilatildeo Poreacutem na

medida em que se assume que este mundo o mundo aparente natildeo deveria existir caiacutemos

no niilismo Por outro lado haacute tambeacutem um niilismo em uma criacutetica agrave vontade de verdade

tal como a empreendida por Nietzsche Ela se configura como a afirmaccedilatildeo de que o mundo

tal como deveraacute ser ou tal como deveria ser natildeo existe Dessa maneira estamos sempre no

limiar entre um niilismo ativo e um passivo na medida em que assumimos a necessidade

de criar um mundo na ausecircncia deste ou nos ausentamos desta requisiccedilatildeo Eacute nesse terreno

que encontramo-nos quando com Nietzsche nos embrenhamos na anaacutelise genealoacutegica da

verdade como falsidade

A posiccedilatildeo criacutetica nietzschiana assume sua maior radicalidade na tentativa de

subverter todos os dualismos a partir da reavaliaccedilatildeo de toda duplicidade de consideraccedilotildees

da realidade como sendo produto da crenccedila em instacircncias superiores Na medida em que

seu ataque ao dualismo de valores inerente agrave concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional se torna

cada vez mais radical o colapso da crenccedila em uma realidade superior se torna o meio pelo

qual ficaria exposta a existecircncia exclusiva de um mundo aparente Nesse sentido a

destituiccedilatildeo de validade do mundo verdadeiro e com ela a invalidaccedilatildeo de sua contraparte o

mundo aparente considerado como mundo falso coloca nossas afirmaccedilotildees no terreno da

interpretaccedilatildeo sem texto

44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva

Em sua obra acerca da verdade na filosofia nietzschiana Clark sustenta que a

problemaacutetica presente nesse pensamento em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade

teria se tornado um dos grandes temas de discussatildeo da filosofia desse autor De fato esta

preocupaccedilatildeo fundamental encontra-se com frequecircncia na obra nietzschiana Sobretudo em

seus uacuteltimos livros notadamente em Aleacutem do Bem e do Mal e Genealogia da Moral

Apesar disso rigorosamente falando o filoacutesofo natildeo oferece em contraposiccedilatildeo a esta

238

concepccedilatildeo tradicional uma concepccedilatildeo proacutepria plenamente desenvolvida acerca da

natureza da verdade Em seu lugar Nietzsche teria optado por oferecer uma criacutetica de

amplo alcance acerca das noccedilotildees tradicionais de objetividade e correspondecircncia Ao que

tudo indica o filoacutesofo esperava dessa forma iniciar um amplo diaacutelogo acerca do valor da

verdade para a filosofia contemporacircnea

O questionamento pelo valor das perspectivas e da proacutepria possibilidade de uma

perspectiva do valor relaciona-se agrave necessidade de julgar qual o fundamento da criacutetica

nietzschiana a outras concepccedilotildees partindo-se da admissatildeo nietzschiana de suas proacuteprias

conclusotildees filosoacuteficas como sendo decorrecircncias de uma perspectiva determinada Em

outras palavras trata-se da busca pela validade das concepccedilotildees nietzschianas em

detrimento de sua possiacutevel veracidade busca que se torna necessaacuteria desde que ao

interpretarmos algumas das passagens mais conhecidas da produccedilatildeo nietzschiana vemos

que o proacuteprio Nietzsche pareceu natildeo se incomodar com a consideraccedilatildeo de suas suposiccedilotildees

como interpretaccedilotildees Como vemos por exemplo na seguinte passagem

Mas como disse isso eacute interpretaccedilatildeo natildeo texto e bem poderia viralgueacutem que com intenccedilatildeo e arte de interpretaccedilatildeo opostas soubesse lerna mesma natureza tendo em vista os mesmos fenocircmenos precisamentea imposiccedilatildeo tiranicamente impiedosa e inexoraacutevel de reivindicaccedilotildees depoder ndash um inteacuterprete que lhes colocasse diante dos olhos o caraacuteter natildeoexcepcional e peremptoacuterio de toda ldquovontade de poderrdquo em tal medidaque quase toda palavra inclusive a palavra ldquotiraniardquo por fim parecesseimproacutepria ou uma metaacutefora debilitante e moderadora ndash demasiadohumana e que no entanto terminasse por afirmar sobre esse mesmomundo o mesmo que vocecircs afirmam isto eacute que ele tem um cursoldquonecessaacuteriordquo e ldquocalculaacutevelrdquo mas natildeo porque nele vigoram leis e simporque faltam absolutamente as leis e cada poder tira a cada instantesuas uacuteltimas consequecircncias Acontecendo de tambeacutem isto ser apenasinterpretaccedilatildeo ndash e vocecircs se apressaratildeo em objetar isso natildeo ndash bem tantomelhor (JGBABM I 22)

O ldquotanto melhorrdquo ao fim da conhecida passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que nos

parece emblemaacutetica do tipo de posicionamento criacutetico que predomina nos escritos

nietzschianos indica que Nietzsche natildeo pretendia ao se contrapor agraves posiccedilotildees das quais

discordava apresentar uma posiccedilatildeo mais verdadeira Isto porque o filoacutesofo se volta contra

a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica Assim considerar as

239

concepccedilotildees nietzschianas do ponto de vista de uma investigaccedilatildeo acerca da verdade destas

posiccedilotildees natildeo parece ser uma atitude produtiva desde que a proacutepria caracterizaccedilatildeo do

filoacutesofo de suas concepccedilotildees como interpretaccedilotildees parece negar a possibilidade de que estas

sejam verdadeiras e que o filoacutesofo rejeita ou natildeo parece se incomodar nem mesmo em

rejeitar a proacutepria concepccedilatildeo de verdade que sustenta as posiccedilotildees que critica

Se por um lado a duacutevida acerca da seriedade com que Nietzsche enfrenta a posiccedilatildeo

dos fiacutesicos parece ser reforccedilada pelo fato do filoacutesofo tomar suas proacuteprias concepccedilotildees como

interpretaccedilotildees e natildeo fatos uma leitura mais atenta poderia demonstrar que o filoacutesofo

reconhece na proacutepria possibilidade de se apresentar novas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de

criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Desta maneira na passagem citada a

concepccedilatildeo de vontade de potecircncia tomada como hipoacutetese contraacuteria agrave opccedilatildeo das ciecircncias

pela compreensatildeo da natureza como algo conforme a uma legalidade natural eacute considerada

pelo proacuteprio Nietzsche uma interpretaccedilatildeo E para o filoacutesofo parece tanto melhor que

assim seja posto que isto concorda com a suposiccedilatildeo inicial de que apenas hajam

interpretaccedilotildees Portanto quando rejeita a posiccedilatildeo dos fiacutesicos a qual considera estar

vinculada a uma concepccedilatildeo moral da verdade o proacuteprio Nietzsche parece rejeitar a

verdade de sua suposiccedilatildeo hipoteacutetica

Isto ocorre porque a criacutetica nietzschiana ao posicionamento dos fiacutesicos se daacute no

interior de uma consideraccedilatildeo que toma a proacutepria necessidade de verdade que para o

filoacutesofo move a ciecircncia como uma rejeiccedilatildeo moral do valor mesmo das interpretaccedilotildees

Nesta leitura a confianccedila das ciecircncias ainda aparece para o filoacutesofo como reflexo da antiga

vontade de verdade como um traccedilo indeleacutevel do niilismo que suporta estas posiccedilotildees

Assim por exemplo em um fragmento do mesmo periacuteodo de elaboraccedilatildeo de Aleacutem do Bem

e do Mal Nietzsche reflete que haacute um traccedilo niilista nas ciecircncias naturais em seu

causalismo e mecanicismo na crenccedila na ldquoconformidade a leisrdquo (NFFP 1885-1886

2[131]) Para o filoacutesofo estes traccedilos niilistas permaneceriam ainda na poliacutetica e na

economia poliacutetica como reflexo de uma falta de inocecircncia e confianccedila no direito de cada

um Do mesmo modo na histoacuteria em sua confianccedila no ldquofatalismo e no darwinismordquo

(NFFP 1885-1886 2[131]) em sua tentativa desesperada de ldquoinserir interpretativamente

a razatildeo e a divindaderdquo (NFFP 1885-1886 2[131]) em sua leitura de um suposto

progresso da humanidade

240

Em seu julgamento das ciecircncias e seu pendor niilista para uma vontade de verdade

o filoacutesofo faz observar entre parecircnteses que tambeacutem aqui se faz necessaacuterio o

fenomenalismo na compreensatildeo do caraacuteter como maacutescara desde que ldquonatildeo haacute nenhum

fatordquo (NFFP 1885-1886 2[131]) Na medida em que mais do que estabelecer uma

concepccedilatildeo mais verdadeira de verdade interessa a Nietzsche questionar os compromissos

morais inerentes agrave vontade de verdade sua filosofia torna-se uma teoria criacutetica da verdade

um posicionamento criacutetico em relaccedilatildeo a toda vontade de verdade inerente agrave ciecircncia e agrave

filosofia tradicional O que natildeo significa a defesa de uma determinada teoria da verdade

mas a investigaccedilatildeo da proacutepria verdade como valor

O posicionamento eminentemente criacutetico de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave verdade faz

emergir uma concepccedilatildeo negativa de verdade desde que sua criacutetica a este conceito perpassa

boa parte de suas obras revelando natildeo uma opccedilatildeo teoacuterica mas o contraste entre uma moral

que se rejeita e uma determinada concepccedilatildeo de verdade que eacute compreendida pelo filoacutesofo

como aliada a uma forma decadente de consideraccedilatildeo da realidade Assim quando

Nietzsche sugere em outra passagem de Aleacutem do Bem e do Mal que natildeo haacute uma parede

divisoacuteria entre a verdade e a aparecircncia fica claro que o filoacutesofo concebe a verdade apenas

como uma espeacutecie de aparecircncia pondo em duacutevida a tradicional distinccedilatildeo entre a verdade e

o aparente como valores distintos

Eacute um simples preconceito acreditar que a verdade eacute melhor que aaparecircncia eacute inclusive a mais infundada que existe Deve-se confessaacute-lo avida natildeo seria possiacutevel sem toda uma engrenagem de apreciaccedilotildees e deaparecircncias e se se suprimisse o ldquomundo aparenterdquo com toda aindignaccedilatildeo voltada contra ele por certos filoacutesofos supondo-se que istofosse possiacutevel nada restaria tampouco de nossa ldquoverdaderdquo Pois o quenos obriga a admitir que exista uma parede divisoacuteria entre o ldquoverdadeirordquoe o ldquofalsordquo Natildeo bastaria admitir graus de aparecircncia como quem falassede matizes e harmonia mais ou menos claros ou obscuros valoresdiferentes para empregar a linguagem dos pintores Por que o mundo emque vivemos natildeo poderia ser fictiacutecio E se objetasse ainda que toda ficccedilatildeodeve ter um autor natildeo se poderia responder com toda franqueza ldquoPorquecircrdquo A expressatildeo ldquodeve terrdquo natildeo constitui tambeacutem parte da ficccedilatildeo Natildeose pode permitir um pouco de ironia com o sujeito com o predicado ecom o objeto O filoacutesofo natildeo tem razatildeo de declarar-se rebelde contra aconfianccedila cega concedida agrave gramaacutetica Respeito muito aos governantesporeacutem natildeo seria a hora da filosofia renunciar um pouco agrave feacute nosgovernantes (JGBABM Livro II sect34)

241

Ao opor-se criticamente agrave indignaccedilatildeo demonstrada pelos filoacutesofos tradicionais ao

enganoso mundo aparente como uma forma de erro que deveria ser suprimido Nietzsche

apresenta natildeo uma forma diversa de verdade mas uma compreensatildeo diversa da relaccedilatildeo

entre verdade e aparecircncia Pensar que a supressatildeo do mundo aparente ocasiona a supressatildeo

da verdade leva a crer que a verdade pode ser vista como uma forma de aparecircncia Em

outro sentido Nietzsche pensa como inoacutecua a distinccedilatildeo tradicional entre verdade e

aparecircncia posto que considera que natildeo possuiacutemos o suficiente para traccedilar uma tal

distinccedilatildeo Assim a realidade poderia ser representada natildeo mais segundo o dualismo

verdadeiro e falso mas como uma composiccedilatildeo de diferentes tons de aparecircncia

Com esta simples metaacutefora das cores Nietzsche torna possiacutevel pensar a

diferenciaccedilatildeo de valor entre a verdade e o aparente como algo que natildeo remete a

consideraccedilatildeo de diferentes graus de afastamento de uma realidade idealizada mas que

torna a proacutepria aparecircncia o grau a ser levado em consideraccedilatildeo na diferenciaccedilatildeo de tons da

realidade Com isso o filoacutesofo pode oferecer uma leitura diferenciada da relaccedilatildeo entre

valor verdade e aparecircncia sem no entanto necessitar estabelecer uma teoria tradicional

acerca da verdade E se for necessaacuterio definir o perspectivismo nietzschiano deve-se

pensaacute-lo natildeo como uma teoria da verdade mas como um posicionamento criacutetico em

relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que toma a distinccedilatildeo em graus de aparecircncia

como um traccedilo necessaacuterio de toda consideraccedilatildeo da realidade Em relaccedilatildeo ao

conhecimento por outro lado o perspectivismo pode ser pensado como uma relaccedilatildeo para

com a disposiccedilatildeo dos diferentes valores a capacidade de dispor de diferentes valores de

aparecircncia como modo de constituiccedilatildeo de uma determinada interpretaccedilatildeo

Seria possiacutevel portanto pensar que assim como nessa passagem de Aleacutem do Bem

e do Mal a concepccedilatildeo tradicional de ldquovalor de verdaderdquo se torna sem sentido na filosofia

nietzschiana na medida em que o autor considera a verdade mesma apenas um grau de

aparecircncia que poderia corresponder a uma forma conveniente de falsidade De tal maneira

que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso na filosofia nietzschiana seria reduzida a uma

especulaccedilatildeo do valor de determinadas aparecircncias assim como de sua combinaccedilatildeo para as

necessidades especiacuteficas inerentes a uma determinada organizaccedilatildeo de forccedilas Organizaccedilatildeo

que pode ser interpretada como um sujeito

Pois para Nietzsche o sujeito natildeo seria ldquoalgo dado senatildeo algo inventado e

acrescentado algo posto por traacutesrdquo ou seja tambeacutem uma interpretaccedilatildeo Assim por meio da

242

discordacircncia nietzschiana de que o mundo como uma ficccedilatildeo dependa de um autor

correlata agrave negaccedilatildeo de que ldquouma interpretaccedilatildeo necessite de um inteacuterpreterdquo (NFFP 1886-

1887 7[60]) o filoacutesofo estabelece como ponto de partida para sua compreensatildeo do mundo

como uma interpretaccedilatildeo que o ldquosujeitordquo natildeo seria algo distinto daquilo que se procura

conhecer e que se tem considerado como produto da atuaccedilatildeo do sujeito Em grande

medida a criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo que toma a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia

como uma distinccedilatildeo ldquodualoacutegicardquo indevida parte de uma consideraccedilatildeo do sujeito como

uma aparecircncia

Em sua consideraccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo tradicional de sujeito Nietzsche reflete

acerca do proacuteprio sujeito como sendo objeto de uma avaliaccedilatildeo perspectivista que como

tal natildeo poderia ser tomado como fundamento para o estabelecimento de uma distinccedilatildeo tatildeo

fundamental quanto a distinccedilatildeo entre verdade e aparecircncia Neste sentido o filoacutesofo

compreende a concepccedilatildeo tradicional de sujeito como estando fundada em uma

desconsideraccedilatildeo do necessaacuterio perspectivismo a compreensatildeo da realidade como produto

de nossa avaliaccedilatildeo

45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo

O perspectivismo nietzschiano surge no pensamento desse autor agrave margem de uma

consideraccedilatildeo criacutetica das concepccedilotildees tradicionais de conhecimento e verdade mas que nem

por isso constitui uma teoria do conhecimento ou da verdade antagocircnica agraves concepccedilotildees

tradicionais Nestes diferentes momentos a criacutetica agrave verdade efetuada pelo autor parece ser

orientada por uma noccedilatildeo caracteriacutestica acerca do valor que subjaz agraves nossas afirmaccedilotildees

sobre a realidade o que impede mesmo a formulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo alternativa de

verdade posto que para o autor o problema da concepccedilatildeo tradicional residiria na

necessidade mesma de verdade Ou seja compreendemos que com seu perspectivismo o

filoacutesofo natildeo pretendeu oferecer uma nova concepccedilatildeo de verdade mas iniciar um

questionamento acerca do valor da verdade para nossa sobrevivecircncia Do mesmo modo

mais do que estabelecer uma teoria do conhecimento interessava agrave Nietzsche o problema

do valor na filosofia

243

No entanto esta compreensatildeo eacute gestada atraveacutes dos diversos periacuteodos da filosofia

nietzschiana Apenas assumindo a forma de uma teoria dos valores por assim dizer na fase

madura do pensamento deste autor A relaccedilatildeo entre criacutetica da concepccedilatildeo tradicional da

verdade e teoria do valor que seria o perspectivismo propriamente apenas se torna

possiacutevel porque na maturidade do pensamento nietzschiano a reflexatildeo acerca do caraacuteter

perspectivo da avaliaccedilatildeo se associa a uma compreensatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos

valores Assim em sua abordagem do problema da desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria

inerente agrave dinacircmica que o autor reconhece nos meios intelectuais europeus de sua eacutepoca e

que em diversos fragmentos poacutestumos nomeia como niilismo embora sem expor

propriamente o que seria o niilismo132 fica clara a tentativa do filoacutesofo de descobrir uma

forma de se contrapor a um processo de decadecircncia que potildee em risco a cultura e a proacutepria

humanidade como organizaccedilatildeo cultural

Sendo assim o perspectivismo nietzschiano que tal como o niilismo seria uma

tese da maturidade do pensamento nietzschiano que careceu de desenvolvimento na obra

publicada pode ser pensado como uma parte fundamental de uma estrateacutegia mais ampla de

combate agrave dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores que seria comum ao niilismo A questatildeo

do valor das perspectivas na filosofia nietzschiana e por sua vez a questatildeo da

perspectividade dos valores estaria dessa forma intimamente relacionada com a questatildeo

acerca do valor da verdade que na concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento substitui a

questatildeo do valor de verdade Esta reflexatildeo criacutetica acerca do sentido tradicional de verdade

se reflete na projeccedilatildeo nietzschiana de uma filosofia do futuro

132 Apesar de constituir objeto de importacircncia reconhecidamente elevada no interior do pensamentonietzschiano de modo geral o tema do niilismo foi tratado apenas de forma obliacutequa na obra desse autorVide por exemplo o comentaacuterio de Lebrun no volume Nietzsche da coleccedilatildeo os pensadores Paacuteg 378 Nessapassagem o comentador e coorganizador do volume em questatildeo das obras selecionadas trata de formaresumida o tema do estado geral da obra nietzschiana a interrupccedilatildeo dessa obra por sua doenccedila e o status dospoacutestumos ldquoAteacute agora escolhi os textos com uma dupla intenccedilatildeo 1ordm) despertar no leitor o gosto por um autorque se queria lsquoextemporacircneorsquo 2ordm) preservaacute-lo dos contrassensos estuacutepidos de que Nietzsche tanto sofreu(anti-semita preacute-nazista etc) ndash A dificuldade agora eacute a seguinte Nietzsche quando foi atingido peladoenccedila estava preparando a obra que considerou a fundamental A Vontade de Potecircncia ndash Os editorespublicaram sob esse tiacutetulo um livro contestado e sem duacutevida contestaacutevel do ponto de vista filoloacutegico poisos fragmentos estatildeo agrupados sem levar em conta sua dataccedilatildeo Em sua ediccedilatildeo criacutetica Coli e Montinaripreferiram dispensar estes textos tatildeo arbitrariamente selecionados entre os fragmentos poacutestumos deNietzsche ndash Como aqui repito trata-se apenas de despertar no leitor o gosto e a curiosidade por Nietzschepermiti-me ndash os eruditos me perdoem ndash escolher em A Vontade de Potecircncia e nos textos poacutestumos osfragmentos referentes a dois temas que a obra publicada soacute aborda obliquamente o niilismo e o eternoretornordquo

244

A ideia de que o futuro do pensamento ocidental seria marcado pela renuacutencia agrave

ideia de verdade em sentido tradicional mais do que tudo condiciona a aposta

nietzschiana na emergecircncia dos espiacuteritos livres Assim por meio da compreensatildeo de uma

iacutentima relaccedilatildeo entre este processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores e a necessidade de se

superar a concepccedilatildeo tradicional de verdade a questatildeo dos valores se insere na reflexatildeo

nietzschiana acerca dos problemas em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade O

abandono da concepccedilatildeo tradicional de verdade era uma esperanccedila do filoacutesofo esperanccedila

fundada na compreensatildeo da necessidade de se superar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos

valores que em sua eacutepoca se espalhava por todas as esferas da cultura europeia

Ao lado do problema da verdade a questatildeo acerca dos valores ocuparia um papel

fundamental na consideraccedilatildeo nietzschiana acerca do conhecimento E mesmo Maudemarie

Clark apesar de declarar natildeo pretender se aprofundar sobre o problema do valor defende

que este se oferece como uma posiccedilatildeo nietzschiana fundamental que apareceria lado a

lado ao problema da verdade no interior da especulaccedilatildeo nietzschiana

Apesar da ecircnfase recente acerca de suas afirmaccedilotildees sobre a verdadepoucos negariam que a importacircncia fundamental de Nietzsche estaacuteconectada com aquilo que ele tem a dizer acerca dos valoresespecialmente ao desafio que ele oferece aos valores recebidos Seudesafio aos valores recebidos parece repousar em afirmaccedilotildees como aseguinte que a moralidade eacute uma expressatildeo do ressentimento e danegaccedilatildeo da vida que a vida em si mesma eacute vontade de poder quefilosofia religiatildeo e moralidade estatildeo entre as mais refinadas formas dessavontade que a civilizaccedilatildeo ocidental encontra-se sob o grave perigoadvindo da morte de Deus e o niilismo que a esta estaacute ligada Natildeo eacuteminha preocupaccedilatildeo aqui explicar como exatamente tais afirmaccedilotildeesdesafiam os valores recebidos mas aparentemente eacute claro que estasafirmaccedilotildees natildeo podem se contrapor aos valores recebidos a menos quesejam tomados como verdadeiros (CLARK 1990 Paacuteg 03)

Nesta interessante passagem da extremamente importante obra de Clark a autora

lanccedila-se agrave anaacutelise da verdade ao mesmo tempo em que apenas apresenta o problema do

valor na filosofia nietzschiana Segundo esta compreensatildeo a concepccedilatildeo nietzschiana

acerca da verdade apareceria como sendo o fundamento da criacutetica nietzschiana aos valores

recebidos Isto porque o valor da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de moral

dependeria do valor de verdade de suas proacuteprias concepccedilotildees Pois para a autora seria

245

absurdo pensar que o autor oferece uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional sem estar de posse

de uma concepccedilatildeo mais verdadeira

Sendo assim Maudemarie Clark natildeo nega a importacircncia das consideraccedilotildees

nietzschianas acerca dos valores mas utiliza-se do contexto em que a criacutetica nietzschiana

aos valores eacute formulada como exemplo do modo como o filoacutesofo muitas vezes parece

argumentar com base em afirmaccedilotildees que refletem um determinado compromisso com a

verdade Ou seja apesar de reconhecer a importacircncia fundamental do problema dos

valores a autora apenas insinua a importacircncia de na tentativa de se fundamentar a criacutetica

nietzschiana aos valores recebidos da tradiccedilatildeo ou agrave moralidade tradicional que satildeo os

grandes pontos a serem combatidos pela filosofia nietzschiana estabelecer o sentido de

verdade na filosofia desse autor Isto eacute claro aceitando-se que a menos que se considerem

as afirmaccedilotildees nietzschianas contraacuterias agrave moral tradicional e seus valores como estando

fundadas em uma forma de verdade toda sua criacutetica torna-se sem sentido

Considerando-se a obra nietzschiana como um todo torna-se evidente que a

questatildeo do valor aparece no pensamento desse autor como um ponto fundamental O

niilismo nietzschiano orbita naturalmente em torno da questatildeo do valor e da desvalorizaccedilatildeo

dos valores fundamentais Motivadas por essa compreensatildeo do niilismo suas obras mais

conhecidas conduzem a uma reavaliaccedilatildeo do valor da moral Do mesmo modo concepccedilotildees

nietzschianas fundamentais como sua concepccedilatildeo do super-homem apenas podem ser

compreendidas mediante a consideraccedilatildeo de uma necessaacuteria transvaloraccedilatildeo dos valores

Outra concepccedilatildeo nietzschiana fundamental a morte de Deus aparece sob uma nova luz

quando considerada do ponto de vista de uma necessaacuteria consideraccedilatildeo do problema dos

valores Segundo esta leitura compreendemos o anuacutencio da morte de Deus nas obras

nietzschianas do periacuteodo intermediaacuterio como uma concepccedilatildeo que se baseia na derrocada

do valor da verdade assim como na necessidade de se estabelecer novos valores por meio

dos quais qualificar a verdade

Se estamos corretos em nossa interpretaccedilatildeo entatildeo temos que repensar a reflexatildeo de

Maudemarie Clark Pois quando a autora considera o valor da criacutetica nietzschiana agrave moral

como fundamentalmente dependente da compreensatildeo do autor do sentido de verdade ela

submete a questatildeo do valor a uma anaacutelise da questatildeo da verdade Virtualmente invertendo a

ordem dos fatores em sua reflexatildeo acerca da filosofia nietzschiana Na medida em que

246

concordamos com a autora em que uma correta caracterizaccedilatildeo do sentido de verdade seria

fundamental para a determinaccedilatildeo do sentido da criacutetica nietzschiana aos valores

entendemos ainda que uma compreensatildeo preexistente acerca da natureza dos valores

perpassa a investigaccedilatildeo nietzschiana acerca da moral Ou seja de certo modo seria a

conclusatildeo nietzschiana acerca da dependecircncia da moral que subjaz a uma forma tradicional

de verdade a qual o filoacutesofo jaacute considera problemaacutetica que estaacute na base de sua

compreensatildeo criacutetica acerca dos valores morais

Nesta compreensatildeo do problema enfatizamos a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

verdade como valor Caracterizaccedilatildeo que aparece na obra do filoacutesofo desde seus primeiros

escritos como objeto de criacuteticas A partir da denuacutencia desta consideraccedilatildeo moral da

verdade tributada agrave concepccedilatildeo tradicional o filoacutesofo assume uma posiccedilatildeo criacutetica e

negativa para com toda caracterizaccedilatildeo definitiva da verdade Este caraacuteter criacutetico cuja

expressatildeo maacutexima se daacute na rejeiccedilatildeo em apresentar uma teoria proacutepria acerca da verdade

faz com que seu pensamento assuma a feiccedilatildeo de uma aproximaccedilatildeo pessimista do potencial

humano para o conhecimento

O caraacuteter criacutetico da reflexatildeo nietzschiana acerca da verdade e do conhecimento

conduz a uma consideraccedilatildeo negativa destas instacircncias em que o perspectivo se destaca

como contraposiccedilatildeo agrave possibilidade de se atingir uma visatildeo objetiva da realidade Como

consequecircncia as conclusotildees apresentadas por Nietzsche especialmente em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia

Por sua vez o caraacuteter pessimista de sua consideraccedilatildeo sobre o conhecimento aparece

nesse contexto como reverberaccedilatildeo da criacutetica ao racionalismo da filosofia ocidental

herdeira de Soacutecrates e de seu otimismo infundado denunciados desde O Nascimento da

Trageacutedia A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e agrave filosofia com

esta comprometida enquanto expressatildeo de uma ldquovontade de verdaderdquo moralmente

decadente e na qual a figura de Soacutecrates desponta como grande signo e sintoma diria

respeito a uma criacutetica mais fundamental ao valor do conhecimento como expressatildeo de uma

determinada moral

247

De fato interessa ao filoacutesofo questionar em primeiro lugar a reduccedilatildeo da verdade a

um valor moral e em segundo lugar a reduccedilatildeo do valor a uma caracterizaccedilatildeo

simplificadora em que todo valor aparece apenas como valor moral Tal como o filoacutesofo

expressa em um fragmento do periacuteodo intermediaacuterio ldquoOra mas o valor ateacute aqui sobretudo

o valor da filosofia (lsquoda vontade de verdadersquo) estava baseado em juiacutezos moraisrdquo (NFFP

1885-1886 2[131] 4) Assim em sua consideraccedilatildeo criacutetica os valores morais aparecem

como uma simplificaccedilatildeo de valores mais fundamentais valores para a vida enquanto

valores de crescimento e de conservaccedilatildeo Aos valores morais implicaria o lugar entre os

valores de conservaccedilatildeo portanto seriam considerados valores de uma ordem inferior Por

outro lado a caracterizaccedilatildeo tradicional da verdade que condiciona a verdade a uma forma

de valor moral torna esta igualmente um valor de conservaccedilatildeo

O conhecimento torna-se nessa leitura em consequecircncia da adoccedilatildeo de verdades

como valores morais um mero instrumento para a conservaccedilatildeo perdendo sua

caracteriacutestica criativa vinculada a valores mais elevados de fortalecimento da vida

Motivos pelos quais o pessimismo epistemoloacutegico na filosofia nietzschiana que surge

como uma desconfianccedila com relaccedilatildeo ao conhecimento como remeacutedio para a existecircncia e

como atitude afirmativa torna-se frequente na obra do filoacutesofo

A desconfianccedila nietzschiana para com a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional do

conhecimento fundamenta-se em uma compreensatildeo criacutetica desta posiccedilatildeo que a toma

como estando em contrariedade em relaccedilatildeo agrave vida Esta caracterizaccedilatildeo criacutetica da concepccedilatildeo

tradicional de conhecimento oriunda de uma avaliaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e seu compromisso

com valores de decadecircncia se refletiraacute em sua reflexatildeo em uma atitude pessimista para

com o potencial humano para o conhecimento Por sua vez o pessimismo em relaccedilatildeo ao

papel do conhecimento na vida humana fundamento da vocaccedilatildeo antiplatocircnica de sua

filosofia conduz seu pensamento agrave negaccedilatildeo da identificaccedilatildeo entre o real e o racional assim

como agrave negaccedilatildeo da possibilidade de se estabelecer uma forma afirmativa de conhecimento

a partir do uso da razatildeo

Esta compreensatildeo criacutetica do sentido de conhecimento na tradiccedilatildeo no entanto natildeo

chegaria a caracterizar uma filiaccedilatildeo nietzschiana a alguma forma de ceticismo Posto que

248

Nietzsche conduziu diversas criacuteticas agrave postura ceacutetica em sua obra133 Por outro lado esta

caracterizaccedilatildeo critica conduz a reflexatildeo nietzschiana a uma tentativa de reavaliaccedilatildeo da

concepccedilatildeo tradicional do conhecimento por meio da qual o filoacutesofo pretendia libertar o

conhecimento de seu compromisso com valores de decadecircncia valores filiados a uma

compreensatildeo niilista da realidade

Sendo assim ainda que as conclusotildees apresentadas pelo autor acerca do

conhecimento e consequentemente o valor eminentemente negativo atribuiacutedo ao

conhecimento como tendecircncia moral e como expressatildeo de valores decadentes culmine em

uma apreciaccedilatildeo pessimista da possibilidade do conhecimento na medida em que a verdade

como valor mais elevado acaba sofrendo uma destituiccedilatildeo de valor as uacuteltimas expressotildees

do pensamento nietzschiano nos potildeem diante da possibilidade de um sentido criativo para

o conhecimento o que nos apresenta um potencial afirmativo do conhecimento para a

humanidade

Neste sentido acabamos por concluir que a consideraccedilatildeo criacutetica nietzschiana acerca

do conhecimento conduz a uma compreensatildeo do conhecimento como algo vinculado ao

potencial criativo humano Ou seja na medida em que Nietzsche liberta o conhecimento de

suas funccedilotildees de conservaccedilatildeo do ser humano que o aprisionam em uma realidade

convencionada simulada este passa a ser caracterizado como uma forma de atividade

artiacutestica ligada agrave criaccedilatildeo de valores Considerada assim a concepccedilatildeo de conhecimento que

Nietzsche poderia defender entende-se que ela tem de estar de acordo com o tipo de

filoacutesofo que o autor pressupotildee como sendo o filoacutesofo do futuro aquele que o autor elege

como seu sucessor espiritual

Motivos pelos quais Josef Simon em sua leitura da filosofia nietzschiana apresenta

as caracteriacutesticas de uma possiacutevel continuidade da filosofia nietzschiana em relaccedilatildeo agrave

tradiccedilatildeo Em sua leitura a filosofia nietzschiana se voltaria fundamentalmente contra dois

133 A relaccedilatildeo de Nietzsche com o ceticismo eacute bastante controversa resistindo em algumas passagens de suaobra uma avaliaccedilatildeo positiva da atitude ceacutetica em contraposiccedilatildeo a outras passagens em que o autor se mostraabertamente criacutetico do ceticismo De maneira bastante resumida poderia ser dito que o posicionamentonietzschiano com relaccedilatildeo ao conhecimento reflete certos aspectos da postura ceacutetica na exata medida em querejeita a abstenccedilatildeo ceacutetica propriamente Em outras palavras enquanto o filoacutesofo elogia um certocomedimento em se posicionar acerca da verdade tiacutepico de uma postura ceacutetica rejeita a inaccedilatildeo inerente a umconformismo ligado agrave uma rejeiccedilatildeo em opinar diante da compreensatildeo dos limites do conhecimento possiacutevelPara maiores informaccedilotildees sobre essa relaccedilatildeo conflituosa recomendamos a tese e doutoramento de RogeacuterioLopes de 2008 que consta na bibliografia e que serviu enormemente na elaboraccedilatildeo desta tese

249

aspectos da filosofia tradicional a questatildeo do valor que estaacute diretamente relacionada ao

correto proceder e a questatildeo do conhecimento Nesse sentido a questatildeo da verdade na

filosofia nietzschiana deveria ser compreendida agrave luz da concepccedilatildeo tradicional de verdade

Mais corretamente a busca irrevogaacutevel pela verdade que seria o traccedilo distintivo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica ateacute Nietzsche eacute considerado aqui o valor mesmo que eacute questionado na

filosofia nietzschiana

A filosofia contra a qual Nietzsche e seu conceito de filoacutesofo querem secolocar eacute uma filosofia que acima de tudo reflete sobre duas coisassobre a verdade e sobre o correto proceder (rechte Handeln) Por isso eacuteimportante refletir que a autocompreensatildeo contra a qual Nietzsche sevolta deve ser entendida em seu caraacuteter duplo A busca pela verdadedeve em si mesma ser considerada um valor Sem questionamentoacerca de se em cada caso este impulso para a verdade corresponderia aum procedimento correto A esse respeito diz Nietzsche o que o filoacutesofocomo ele o entende deveria fazer ldquoconhecer o que eacute necessaacuterio fazerrdquo(SIMON 1992 paacuteg 02 grifo do autor)

Segundo Simon a filosofia nietzschiana aquela que o autor pressupotildee como sendo

a filosofia a ser adotada pelos filoacutesofos do futuro deveria estar relacionada ao problema do

valor mesmo da verdade Na leitura do autor verdade e valor vatildeo de matildeos dadas na

filosofia nietzschiana na medida em que esta se mostraria como uma profunda reflexatildeo

acerca dos fundamentos do correto agir Pois para Nietzsche natildeo haacute nenhum conhecimento

puro o qual por meio de uma verdade pura nos seria acessiacutevel

Segundo a compreensatildeo de Simon a negaccedilatildeo de uma forma pura de conhecimento

significa na filosofia nietzschiana que o conhecimento natildeo pode ser libertado de seus preacute-

conceitos filosoacuteficos de sua visatildeo filosoacutefica de seus necessaacuterios ldquofundamentos iniciaisrdquo

Em comparaccedilatildeo agraves valoraccedilotildees nele contidas natildeo pode haver liberdade de avaliaccedilatildeo mas

apenas uma transvaloraccedilatildeo Por meio dessa transvaloraccedilatildeo atraveacutes da qual a filosofia

dominaria a ciecircncia em um tal sentido que permaneceria capaz de reavaliar suas

ldquoconcepccedilotildeesrdquo de base fixa ldquorestringirrdquo o ldquoilimitado instinto de conhecimento da unidade

(SIMON 1992 paacuteg 02) No entanto se compreendermos que o valor da verdade nessa

leitura seu valor moral em contraposiccedilatildeo ao seu valor para a constituiccedilatildeo de uma

250

estrateacutegia que propicia a ampliaccedilatildeo da potecircncia da vida eacute uma questatildeo fundamental que

conecta as concepccedilotildees nietzschianas de juventude agraves suas concepccedilotildees de maturidade

sobretudo por meio de uma consideraccedilatildeo do sentido tradicional de verdade e sua relaccedilatildeo

com as exigecircncias mesmas da vida estariacuteamos entatildeo de posse de um eixo de interpretaccedilatildeo

fundamental para caracterizar o posicionamento nietzschiano acerca do conhecimento e

em consequecircncia o fundamento do julgamento nietzschiano negativo em relaccedilatildeo agraves

concepccedilotildees morais

Desta maneira se as conclusotildees apresentadas por Nietzsche em sua filosofia de

juventude traduzem o conhecimento enquanto algo da esfera do humano uma construccedilatildeo

humana motivada pela necessidade de sobrevivecircncia na maturidade de seu pensamento a

verdade enquanto valor de manutenccedilatildeo da vida eacute confrontada com uma caracterizaccedilatildeo da

perspectiva como elemento de fortalecimento da vida Ainda segundo esta leitura valores

de manutenccedilatildeo da vida assumiriam uma posiccedilatildeo inferior com relaccedilatildeo aos valores de

fortalecimento da vida

Esta forma de compreensatildeo do problema dos valores jaacute aparece em seu Ensaio

sobre Verdade e Mentira onde uma das funccedilotildees primordiais da linguagem seria a criaccedilatildeo

de hierarquias Por sua vez no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia que em grande medida

retoma os argumentos apresentados no ensaio vemos Nietzsche novamente estabelecer a

cadeia de comando como uma das principais motivaccedilotildees para a criaccedilatildeo da linguagem Esta

ideia retornaraacute ainda em Genealogia da Moral na ideia da relaccedilatildeo conflituosa entre o

senhor e o escravo assim como na reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da

revoluccedilatildeo dos escravos Nestas passagens da obra nietzschiana uma mesma ideia eacute trazida

agrave luz a ideia de que as hierarquias de valor satildeo os instrumentos por meio dos quais se

estabelecem as relaccedilotildees de comando Por outro lado esta ideia aparece na filosofia

nietzschiana como reflexo de sua compreensatildeo da funccedilatildeo primordial do poder criativo

humano como algo relacionado agrave criaccedilatildeo de valores

Segundo esta leitura o proacuteprio niilismo considerado uma forma de ordenaccedilatildeo

cultural segundo a premecircncia de valores que se desvalorizam que perdem sua vitalidade

por forccedila de seu uso continuado refletiria ainda algo da ideia traduzida por Nietzsche na

imagem dos conceitos como moedas que perdem seu troquel e que passam a valer como

metal e natildeo mais como moedas Assim como os conceitos enquanto formas enfraquecidas

251

das intuiccedilotildees originaacuterias conserva ainda algo do potencial criativo inerente agrave organizaccedilatildeo

humana os valores de decadecircncia do niilismo seriam tambeacutem ao fim e ao cabo

expressotildees desse potencial Mas que apropriados por uma constituiccedilatildeo fisioloacutegica doente

expressam-se por meio da negaccedilatildeo mesma de seu elemento criativo que daacute lugar a uma

exaltaccedilatildeo de uma ilusoacuteria origem extramundana

Em outras palavras na medida em que a humanidade tornando-se cada vez mais

linguiacutestica cada vez mais dependente de uma realidade conceitual deixa de lado a

capacidade de constituir valores afirmativos abandona a potecircncia primordial de sua funccedilatildeo

criativa e passa a reproduzir valores com base em uma hierarquia da decadecircncia Por sua

vez o perspectivismo representaraacute a tentativa nietzschiana de revalidar a capacidade

criativa por meio da exposiccedilatildeo do caraacuteter artiacutestico existente em todo conhecimento Nesta

leitura o perspectivismo passaria a ser visto como tendo seus fundamentos na crenccedila de

que a criaccedilatildeo de valores eacute uma atividade inerente agrave organizaccedilatildeo humana

O problema da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal como este problema foi

apresentado na filosofia de juventude nietzschiana visto retrospectivamente pelo autor no

prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia representaria a tentativa dogmaacutetica de

estabelecer valores universais Desta maneira esta concepccedilatildeo de conhecimento passa a ser

compreendida como o contra perspectivismo por excelecircncia Eacute com base nesse tipo de

reflexatildeo acerca do conhecimento que Nietzsche jaacute no acima mencionado prefaacutecio tardio

para O Nascimento da Trageacutedia trataraacute lado a lado o problema do pessimismo e a tentativa

socraacutetica de soluccedilatildeo do problema

E a ciecircncia mesma a nossa ciecircncia ndash sim o que significa em geralencarada como sintoma da vida toda a ciecircncia Para que pior ainda deonde ndash toda ciecircncia Como Eacute a cientificidade talvez apenas um temor euma escapatoacuteria ante o pessimismo Uma suacutetil legiacutetima defesa contra ndash averdade E amoralmente uma astuacutecia Oacute Soacutecrates Soacutecrates foi esteporventura o teu segredo ironista misterioso foi esta porventura a tuandash ironia (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14)

Com isso o autor que reflete acerca de sua obra de estreia com olhos voltados para

os problemas da maturidade do seu pensamento aponta para a insuficiecircncia de uma

concepccedilatildeo de conhecimento racionalista frente ao crescente pessimismo o niilismo

252

extremo oriundo da compreensatildeo da ausecircncia de valores na proacutepria existecircncia Nessa

reflexatildeo tardia acerca de seu pensamento de juventude o autor reflete acerca do otimismo

da razatildeo que eacute apresentada aqui como expressatildeo desesperada de cansaccedilo de ldquoinstintos que

se dissolvem anaacuterquicosrdquo (GTNT Prefaacutecio sect1 Paacuteg 14) Nesse sentido todo o

empreendimento cientiacutefico expresso aqui em um questionamento pela ldquonossa ciecircnciardquo eacute

tomado pelo autor com suspeita

Nessa reflexatildeo em que Nietzsche identifica como um dos problemas fundamentais

de O Nascimento da Trageacutedia o problema da ciecircncia e sua relaccedilatildeo com a arte a criaccedilatildeo

artiacutestica eacute concebida como a atitude humana que permitiria a superaccedilatildeo do pessimismo

inerente agrave existecircncia De tal maneira que a arte enquanto atitude superior a toda forma de

racionalizaccedilatildeo passaria a ser identificada como o local mesmo em que a ciecircncia deveria

ser pensada Posto que a ciecircncia mesma parece natildeo estar afeita a fazer sua criacutetica Mas a

arte por sua vez deveria se submeter ela tambeacutem a uma instacircncia superior tendo apenas

a vida como criteacuterio de julgamento

Estas satildeo por fim as caracteriacutesticas de uma filosofia perspectivista tal como

Nietzsche poderia tecirc-la formulado Uma compreensatildeo artiacutestica do valor que se potildee acima

da ciecircncia posto que deve determinar seu valor a partir de uma avaliaccedilatildeo das exigecircncias da

vida Assim se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas em sua filosofia de juventude nos potildee diante de uma forma de

niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo apenas ao niilismo

mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento

conduziria o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo Este niilismo exuberante surge em

consequecircncia da compreensatildeo de que desde que estamos diante de uma infinita

possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar aberto o homem pode assumir a

funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch schaffendes Subjekt segundo a

terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA 1 p 883]) Isto porquecirc ao nos

darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo humana nos descobrimos que

ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM V sect192) O oposto ao niilismo

deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano entendido como a afirmaccedilatildeo de

253

uma incondicional vontade de criar que se subleva na filosofia nietzschiana como

expressatildeo de uma tentativa de combater os valores de decadecircncia

254

5 Conclusatildeo

A compreensatildeo do conhecimento que encontramos entre as uacuteltimas reflexotildees

nietzschianas enquanto postura que nega as certezas e que retira da existecircncia qualquer

sentido e finalidade preacute-determinados qualquer essecircncia a ser desvendada associa-se a

uma anaacutelise da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores interna agraves concepccedilotildees metafiacutesicas

constituindo-se em uma postura acerca do conhecimento em que eacute negada a possibilidade

de se atingir verdades uacuteltimas e absolutas Assim a caracterizaccedilatildeo nietzschiana da

realidade como vontade de potecircncia configura um mundo em que a existecircncia de fatos em

si eacute aniquilada Nessa leitura todo acontecimento seria decorrecircncia do jogo de forccedilas que

buscam se afirmar a todo custo Desta maneira natildeo haacute acontecimentos modelos nem

nenhuma forma de previsatildeo dos acontecimentos Pois para o filoacutesofo antes que um fato

seja percebido ele precisa ser projetado pela dinacircmica das forccedilas interna agrave vontade de

potecircncia

Sob a luz dessa compreensatildeo podemos ver que a criacutetica nietzschiana agrave moral e agrave

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento satildeo consequecircncias de uma compreensatildeo estrutural

acerca da muacutetua relaccedilatildeo entre valor e conhecimento Nesse sentido a criacutetica nietzschiana agrave

moral apareceria como uma consequecircncia da criacutetica nietzschiana agraves concepccedilotildees

tradicionais de conhecimento e verdade E estas em consequecircncia da criacutetica nietzschiana agrave

concepccedilatildeo tradicional de valor

Acima de tudo eacute a pretensatildeo de um conhecimento desinteressado que estaacute em jogo

nestas criacuteticas Para o filoacutesofo um conhecimento orientado pelos instintos errados perverte

no pesquisador a noccedilatildeo de utilidade Assim o instinto que motiva o pesquisador asceacutetico

conduziria agrave formulaccedilatildeo de um mundo de estabilidade que surge da negaccedilatildeo do mundo

aparente fazendo parecer o conhecimento de verdades uacuteltimas mais necessaacuterio do que o

conhecimento das aparecircncias

255

Suponha que um desejo corporal de contradiccedilatildeo e anti-natureza sejalevado a filosofar sobre o que ele vai perder seu iacutentimo arbitraacuteria Emque o mais seguro de todos para ser verdade eacute percebido como real eleestaacute procurando o erro apenas quando o verdadeiro instinto de vida averdade atribui agrave maioria absoluta (GMGM Livro III sect12)

Com base nesta compreensatildeo negativa da atuaccedilatildeo do ideal asceacutetico a interpretaccedilatildeo

nietzschiana da natureza do conhecimento configura-se como uma forma de renuacutencia a

qualquer pretensatildeo de verdade definitiva acentuando mesmo que a filiaccedilatildeo entre

conhecimento e a vontade de verdade natildeo seria algo automaacutetico natural mas decorrente da

permanecircncia na histoacuteria do pensamento de uma postura que identifica ambos

procedimentos Ainda segundo esta compreensatildeo criacutetica somente em uma acepccedilatildeo

decadente fraca o conhecimento poderia ser considerado apropriaccedilatildeo da objetividade

desejo de atingir a realidade uacuteltima por traacutes de cada aparecircncia

Posto que conhecer a verdade se torna algo contraditoacuterio na leitura nietzschiana

desde que conhecer aqui significa interpretar segundo os ditames da consciecircncia e nossas

necessidades bioloacutegicas a identificaccedilatildeo que torna redundante a expressatildeo conhecimento da

verdade seria a uacuteltima expressatildeo de um movimento moral decadente em que a busca da

verdade se sobrepotildee agrave pulsatildeo criativa onde a busca de estabilidade se eleva acima do

impulso afirmativo que nos impulsiona a desdobrar a realidade em formas sempre novas

Desta maneira a atividade do pesquisador passa a ser pensada em uma relaccedilatildeo de

proximidade com a atividade artiacutestica em seu caraacuteter criativo em contraposiccedilatildeo ao

procedimento teoacuterico que se norteia pela busca de verdades uacuteltimas A oposiccedilatildeo que

Nietzsche atribui ao pesquisador contemplativo em relaccedilatildeo ao teoacuterico da criaccedilatildeo jaacute

aparece em seu Assim Falava Zaratustra atraveacutes da condenaccedilatildeo da concepccedilatildeo de um

imaculado conhecimento

ldquopara mim seria a coisa mais elevada (assim diz a si mesmo o vosso falsoespiacuterito) olhar a vida sem cobiccedila e natildeo como catildees com a liacutengua de fora

Ser feliz na contemplaccedilatildeo com a vontade morta isento de capacidade ede apetite egoiacutesta frio de corpo mas com os olhos embriagados de luaPara mim seria o melhor (assim se engana a si mesmo o enganado) amara terra como a luz a ama e tocar na sua beleza apenas com os olhos

Eis o que eu chamo o imaculado conhecimento de todas as coisas natildeoquerer das coisas mais do que poder estar diante delasrdquo hipoacutecritas

256

afetados e lascivos Falta-vos a inocecircncia do desejo e por isso caluniais odesejo

Voacutes natildeo amais a terra como criadores como geradores satisfeitos de criar(ZaZA Livro II Do imaculado Conhecimento)

Este aspecto da postura nietzschiana poderia ser confundido com uma espeacutecie de

subjetivismo se jaacute natildeo tiveacutessemos visto por meio da referecircncia aos poacutestumos que

Nietzsche se previne de tal criacutetica ao alegar que jaacute haacute interpretaccedilatildeo ao se subentender um

sujeito que conhece ldquoO lsquosujeitorsquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais inventado posto

por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes da interpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia

hipoacuteteserdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Ora se Nietzsche rejeita a ideia de um sujeito por

traacutes das interpretaccedilotildees concepccedilatildeo entendida aqui como parte de uma interpretaccedilatildeo que

seguindo os ditames da loacutegica e da gramaacutetica teria sido tornado hegemocircnica134 entatildeo o

perspectivismo natildeo poderia ser confundido com uma teoria subjetivista da verdade

De fato a criacutetica agrave suposiccedilatildeo da categoria de sujeito como algo necessaacuterio para o

processo do conhecimento considerada em contraposiccedilatildeo com a afirmaccedilatildeo da hegemonia

da interpretaccedilatildeo levanta duas perguntas inevitaacuteveis ldquoquem interpretardquo e ldquoaquele que

interpreta interpreta o quecircrdquo Se natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees eacute necessaacuterio

estabelecer o que se interpreta e quem interpreta A resposta nietzschiana a ambas as

questotildees estaacute diretamente relacionada agrave sua teoria da vontade de potecircncia Segundo esta a

interpretaccedilatildeo seria o resultado da atividade de um complexo de forccedilas de pulsotildees que

cada uma por sua vez tem sua proacutepria interpretaccedilatildeo e gostaria de impocirc-la sobre as outras

interpretaccedilotildees

Segundo esta leitura em que seriam nossas necessidades a interpretar a realidade

segundo a pressatildeo de nossa necessidade de sobrevivecircncia cada forccedila tentaria se afirmar

como valor sob as demais forccedilas agrupando-se em comunidades com um objetivo em

comum constituindo na medida deste agrupamento determinadas escalas de avaliaccedilatildeo

Esta ambiccedilatildeo despoacutetica das vontades segundo a qual mesmo a palavra dominaccedilatildeo

apareceria como uma interpretaccedilatildeo paacutelida seria o fundo irracional de toda formaccedilatildeo de

valor

134 De fato parte fundamental da teoria perspectivista acerca do conhecimento se baseia na criacutetica deNietzsche a categoria de sujeito Nesta interpretaccedilatildeo estamos de acordo com a opiniatildeo de Antocircnio Marquesque vecirc no sujeito auto-afirmativo da modernidade a matriz do perspectivismo considerado em sua acepccedilatildeo deteoria do conhecimento em Nietzsche (MARQUES 2003 paacuteg 16)

257

Se um sujeito eacute uma representaccedilatildeo segundo uma certa organizaccedilatildeo das forccedilas entatildeo

toda interpretaccedilatildeo que parte de um sujeito seria uma forma destas forccedilas se imporem como

norma Assim as interpretaccedilotildees satildeo ferramentas atraveacutes das quais cada sujeito tenta

implantar sua forma de ver o mundo cada interpretaccedilatildeo eacute a tentativa de imposiccedilatildeo de um

mundo verdadeiro mas tal interpretaccedilatildeo sempre carrega consigo seu ponto de vista o que

fica impliacutecito quando da associaccedilatildeo de vaacuterias subjetividades que em conjunto tentam

fazer valer como mundo verdadeiro o mundo compartilhado entre tais subjetividades

Desta forma o perspectivismo apareceria como uma forma complexa de especificidade ou

seja como a manifestaccedilatildeo da especificidade de uma certa interpretaccedilatildeo mediante a

consideraccedilatildeo da multiplicidade de forccedilas que atuam em sua formulaccedilatildeo como Nietzsche

nos faz perceber em um poacutestumo de 1888

O perspectivismo eacute soacute uma forma complexa de especificidade - meumodo de ver eacute que cada corpo especiacutefico anseia por tornar-se senhor detodo espaccedilo por estender sua forccedila (-- sua vontade de poder) e repelirtudo que obsta agrave sua expansatildeo Mas ele se depara continuamente com omesmo ansiar de outros corpos e termina por arranjar-se (ldquounificar-serdquo)com aqueles que lhe satildeo aparentados o bastante ndash assim eles conspiramentatildeo juntos pelo poder E o processo segue adiante (NFFP 188814[186])

Decorre da passagem citada que na organizaccedilatildeo das pulsotildees que tentam se

estabelecer como estruturas determinantes em um processo de assimilaccedilatildeo da realidade

surgem novas interpretaccedilotildees que tentam impor-se como verdade uacuteltima Seria desse modo

por exemplo que o pensamento filosoacutefico compreendendo o sujeito como estrutura

fundamental da psique humana associa-se ao pensamento fiacutesico que estipula o aacutetomo

como estrutura fundamental da mateacuteria Ambas as interpretaccedilotildees satildeo oriundas de um

mesmo impulso a verdade definitiva e estaacutevel que na filosofia nietzschiana natildeo se

encontra em parte alguma da realidade Assim ele nega tanto o aacutetomo quanto o sujeito

atocircmico denunciando-os como interpretaccedilotildees grosseiras de um processo muito mais

complexo Mas se de fato ocorre dessa forma entatildeo sempre restaraacute a duacutevida de se o

perspectivismo enquanto ela mesma uma representaccedilatildeo complexa da especificidade de

suas conclusotildees deveria ou natildeo ser aceito como posiccedilatildeo verdadeira

258

Do mesmo modo apesar de a validade do perspectivismo enquanto posiccedilatildeo acerca

do conhecimento permanecer inalterada em face do caraacuteter interpretativo de suas

conclusotildees parece persistir a contradiccedilatildeo entre a aceitaccedilatildeo da validade das posiccedilotildees

oriundas do ascetismo cientiacutefico e sua condenaccedilatildeo moral que eacute proacutepria do perspectivismo

A oposiccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano para com o ideal asceacutetico se daria por

meio da anaacutelise genealoacutegica do ideal asceacutetico que o filoacutesofo executa nas trecircs dissertaccedilotildees

que compotildee a Genealogia da Moral

Nesta anaacutelise genealoacutegica o filoacutesofo filia o comportamento de negaccedilatildeo da

corporeidade o caraacuteter mais imediato da vida ao meacutetodo de pesquisa e criteacuterio de validade

que fundamentam a ciecircncia positiva e o pensamento metafiacutesico Desta maneira na medida

em que sua reflexatildeo pretende oferecer uma reavaliaccedilatildeo dos princiacutepios do ideal asceacutetico

seu perspectivismo oferece-se justamente como uma exaltaccedilatildeo do corpo A contraposiccedilatildeo

nietzschiana ao ideal asceacutetico passaria entatildeo a fundamentar-se nesta exaltaccedilatildeo da

corporeidade de onde sua contraposiccedilatildeo agrave tal postura mediante a especulaccedilatildeo de uma

atividade cientiacutefica e filosoacutefica seria contraacuteria aos princiacutepios desta Ou seja se a

condenaccedilatildeo moral do ideal asceacutetico se fundamenta em uma investigaccedilatildeo desse segundo os

princiacutepios do perspectivismo nietzschiano entatildeo esta condenaccedilatildeo natildeo pode ser tomada

como tendo um fundamento verdadeiro mas apenas um fundamento especiacutefico relacional

A criacutetica ao ideal asceacutetico assim como a descriccedilatildeo de seus fundamentos como

parte do perspectivismo nietzschiano natildeo poderia ser aceito como certeza mas apenas

como manifestaccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica gestada a partir dos valores que

norteiam a reflexatildeo nietzschiana Esta contradiccedilatildeo soacute pode ser solucionada aparentemente

pela consideraccedilatildeo de uma opiniatildeo especiacutefica de Nietzsche com relaccedilatildeo agrave postura

metafiacutesicocientiacutefica e sua adesatildeo ao programa asceacutetico Por outro lado esta posiccedilatildeo eacute

suportada pelo caraacuteter experimental de toda filosofia nietzschiana

A concepccedilatildeo nietzschiana de experimentalismo supotildee que nesse caso natildeo se trata

tanto de se colocar em uma perspectiva mais elevada mas de deslocar perspectivas poder

se movimentar entre interpretaccedilotildees divergentes com certa liberdade A esse respeito

Muumlller-Lauter esclarece que Nietzsche baseado no constante questionar de todas as suas

posiccedilotildees eacute levado a assumir o caraacuteter experimental de sua filosofia sem com isso rejeitar

sua validade Atraveacutes das perguntas fundamentais sobre a validade e alcance das posiccedilotildees

nietzschianas Muumlller-Lauter representa a posiccedilatildeo experimental do pensamento

259

nietzschiano como a inclusatildeo de sua filosofia enquanto interpretaccedilatildeo vaacutelida entre outras

interpretaccedilotildees vaacutelidas

A perspectividade de toda interpretaccedilatildeo torna-se um problema que porfim ricocheteia sobre o proacuteprio filosofar nietzschiano quando pensamosque entre as inumeraacuteveis interpretaccedilotildees de um texto natildeo haacute ldquonenhumainterpretaccedilatildeo lsquocorretarsquordquo Natildeo temos qualquer direito de admitir umldquoconhecedor absolutordquo ldquoo caraacuteter perspectivo enganoso pertence agraveexistecircnciardquo Entatildeo toda explicaccedilatildeo do mundo eacute tambeacutem umainterpretaccedilatildeo perspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos doque aquela que compreende todo acontecer do mundo como o caos devontade de poder cooperantes e combatentes Em consequecircncia disso ldquoordquomundo concebido como uma soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeoperspectivista do mundo ao lado de inuacutemeras outras Em face dafundamental relatividade de explicar-o-mundo o que poderia ser aduzidoem favor da ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiano (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacuteg 126)

Se natildeo haacute algo como uma posiccedilatildeo definitiva nem em se tratando do conhecimento

nem em se tratando de nada mais entatildeo em nosso agir limitado soacute nos caberia o papel

experimental segundo o qual vivemos para testar possibilidades sem garantias de soluccedilatildeo

de problemas teoacutericos Nesta leitura a preocupaccedilatildeo fundamental de um pesquisador

comprometido com a vida natildeo pode ser a sua elucidaccedilatildeo definitiva mas a praacutetica de

meacutetodos que lhe possibilitem experimentar um maior contato com a vida atraveacutes do

sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia Assim concordamos com o modo de ver de Scarlet

Marton para quem o pensamento nietzschiano natildeo pode ser analisado independentemente

de seu caraacuteter experimental Posto que aqui se trataria de uma postura frente ao

conhecimento e sua relaccedilatildeo com a vida que justifica o experimentalismo de sua filosofia

assim como sua opccedilatildeo pelo meacutetodo de escrita que o filoacutesofo adotou

Ora perspectivismo e experimentalismo estatildeo de certa formarelacionados Tanto Loumlwith quanto Kaufmann ressaltam o caraacuteterfundamentalmente experimental do pensamento nietzschiano e insistemno fato de o filoacutesofo ter colocado o estilo aforismaacutetico a serviccedilo de seuexperimentalismo Os aforismos tentativas renovadas de refletir sobrealgumas questotildees possibilitariam experimentos com o proacuteprio pensarSatildeo vaacuterios os textos em que Nietzsche convida o leitor agrave experimentaccedilatildeoseja por entender que noacutes humanos natildeo passamos de experiecircncias ou por

260

acreditar que natildeo nos devemos furtar a fazer experiecircncias com noacutesmesmos Em Para aleacutem de bem e mal refere-se aos novos filoacutesofos comoexperimentadores como os que tecircm o dever ldquodas cem tentativas das cemtentaccedilotildees da vidardquo E num fragmento poacutestumo chega a declarar ldquosempreescrevi minhas obras com todo o meu corpo e minha vida ignoro o quesejam problemas lsquopuramente espirituaisrsquordquo (IX 4 (285)) Concebendo avida como possibilidade de ldquoexperimentaccedilatildeo de conhecimentordquo percorremuacuteltiplos caminhos (MARTON 1990 paacuteg 22)

Nietzsche daacute exemplo de sua consideraccedilatildeo experimental acerca do conhecimento

atraveacutes de sua proacutepria praacutetica filosoacutefica que lhe levou a optar por uma forma de expressatildeo

contraacuteria a todas as determinaccedilotildees uacuteltimas o que confere a seus trabalhos o caraacuteter de pilha

de escombros sobretudo se comparado com os elegantes edifiacutecios teoacutericos da tradiccedilatildeo

metafiacutesica Sua assistematicidade e sua opccedilatildeo pelo aforismo satildeo exemplos vivos da

atividade de uma mente inquieta que jamais procurou a calma de determinaccedilotildees absolutas

mas que fez de sua filosofia um manifesto de uma praacutetica experimental plena e afinada

com sua vida nocircmade Nesse sentido Schacht conclui que

A abordagem perspectivista de Nietzsche estaacute ligada ao caraacuteterexperimental que segundo ele esse tipo de pensamento filosoacutefico possuiO problema eacute tratado pelo filoacutesofo de forma experimentalmenteprovisoacuteria e aberta A conclusatildeo de seus argumentos a respeito deproblemas especiacuteficos em quaisquer de seus trabalhos nunca eacute completaou final pois permanece sempre aberta agrave revisatildeo quando investigaccedilotildeesposteriores forem conduzidas envolvendo outras abordagens quepoderiam iluminar ainda mais a questatildeo135 (SCHACHT 1996 Paacuteg154)

Assim sua filosofia em seu caraacuteter mais refinado enquanto pensamento acerca do

valor da verdade ou seja da verdade vista como valor requer uma nova visatildeo do

verdadeiro onde a crenccedila no mundo ideal no ldquomundo verdadeirordquo comportaria a maior

falsidade a mais grosseira covardia e assim se torna o erro por excelecircncia A coragem de

que deve ser dotado todo pesquisador se mede pela sua sauacutede sua sauacutede pela sua toleracircncia

135 ldquoNietzsches perspectivist approach is connected with the ldquoexperimentalrdquo character he ascribes to hiskind of philosophical thinking His treatment of problems is avowedly merely provisional and openended Theupshot of what he has to say about specific problems in any of these works is never complete and final for italways remains open to revision when subsequent investigations are undertaken involving yet otherapproaches that may shed further light upon themrdquo

261

a verdade como renuacutencia a todo finalismo a toda acircnsia pelo conhecimento verdadeiro A

verdade se encontra sempre aleacutem no proibido para onde tendem os ldquosem medordquo

Quanta verdade suporta quanta verdade ousa um espiacuterito Cada vez maispara mim tornou-se isso a medida de valor Erro (a crenccedila no ideal) natildeo eacutecegueira erro eacute covardiacada conquista cada passo adiante noconhecimento eacute consequecircncia da coragem da dureza consigo da limpezaconsigohellip eu natildeo refuto os Ideais apenas ponho luvas diante delesNitimur in vetitum com esse signo venceraacute um dia minha filosofia poisateacute agora proibiu-se em princiacutepio somente a verdade (EHEH Proacutelogosect 2)

O perspectivismo torna-se assim uma descriccedilatildeo provisoacuteria das concepccedilotildees de

verdade e conhecimento que pode ser extraiacuteda do pensamento nietzschiano e que supotildee a

fragilidade de qualquer postulaccedilatildeo de verdades Por isso esta interpretaccedilatildeo natildeo pretende

ser definitiva mas reconhece na impossibilidade de se chegar a uma resposta definitiva um

elemento fundamental da eacutetica da pesquisa o uacuteltimo teste para o pesquisador realmente

comprometido com a pesquisa

A proacutepria distinccedilatildeo moral entre bem e mal nada mais representaria assim do que

um esquecimento do caraacuteter perspectivo desses valores da desconsideraccedilatildeo da atuaccedilatildeo da

capacidade criativa que eacute natildeo apenas a principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo de valores mas a

principal forccedila por traacutes da criaccedilatildeo da proacutepria realidade de seu tornar-se real Dado que o

mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo que aqui natildeo se distingue mais da criaccedilatildeo do

mundo e com ele do proacuteprio homem o reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo como a

aceitaccedilatildeo de que natildeo podemos evitar o fato de que nossa atividade confere valor agrave

realidade porque nossa proacutepria realidade incluiacutedos noacutes mesmos dependemos da avaliaccedilatildeo

em um niacutevel fundamental Assim seja como elemento mais fundamental da constituiccedilatildeo

humana seja como caraacuteter mesmo da existecircncia a criaccedilatildeo se sobrepotildee aos valores posto

que lhes eacute anterior Se essa avaliaccedilatildeo por sua vez apenas se realiza mediante a

perspectividade que eacute o caraacuteter mesmo da existecircncia entatildeo a perspectiva aparece ao lado

da vida como valor fundamental para o homem

Como se vecirc esta compreensatildeo da moral se distancia de toda concepccedilatildeo moral que

pressupotildee o conhecimento do bem e do mal que pressupotildee haver encontrado esse

conhecimento fora de si O moralista dogmaacutetico aqui age como um criador que ignora sua

262

criaccedilatildeo ou que tenciona fazecirc-la passar como proacuteprio reflexo de uma realidade superior

Tambeacutem por isso toda caracterizaccedilatildeo do bem e do mal como coisas em si como ideias

normativas seriam falsificaccedilotildees da realidade do criar Pois valores mesmo os valores

morais apenas podem ser concebidos como criaccedilotildees nunca como realidades

Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo

Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse

ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI

sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele

eacute vir-a-ser ou seja devir E eacute este conhecimento que se revela a Zaratustra como um

despertar de uma crenccedila que adormece e que conduz agrave superaccedilatildeo dos antigos valores da

antiga distinccedilatildeo do bem e mal como algo fixo independente de interpretaccedilatildeo Em

contraposiccedilatildeo agrave crenccedila na fixidez das concepccedilotildees acerca do bem e do mal o profeta do

super-homem ensina ldquoSoacute o que cria o fim dos homens e o que daacute o sentido e futuro agrave terra

soacute esse cria o bem e o mal de todas as coisasrdquo (ZAZa III Das antigas e novas taacutebuas

sect2) Esta contraposiccedilatildeo fundamental entre uma moral dogmaacutetica e uma moral como

reconhecimento das superaccedilotildees de cada povo oferece um modelo de como se relacionam

no pensamento nietzschiano sua concepccedilatildeo perspectivista e sua criacutetica a uma concepccedilatildeo

dogmaacutetica de conhecimento

E seraacute esse mesmo ldquocriar o fim dos homensrdquo que relacionando-se intimamente com

a capacidade criativa por traacutes da formaccedilatildeo das interpretaccedilotildees que compotildeem as diferentes

perspectivas que daraacute margem agrave concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento como criaccedilatildeo

Assim considerados todos os principais conceitos da obra nietzschiana na melhor das

hipoacuteteses como hipoacuteteses e na pior delas como produtos de uma atividade poeacutetica inerente

a toda accedilatildeo humana tal qual qualquer obra de arte como considerar com seriedade seu

pensamento Tudo sendo dito se toda verdade eacute abandonada por Nietzsche qual poderia

ser sua doutrina Resta ainda algo que se possa chamar uma doutrina em seu pensamento

Aqui seria preciso ouvir o autor

Qual pode ser a nossa doutrina ndash Que ningueacutem daacute ao ser humano suascaracteriacutesticas nem Deus nem a sociedade nem seus pais e ancestraisnem ele proacuteprio (ndash o contra-senso dessa uacuteltima ideia rejeitada foi

263

ensinado como lsquoliberdade inteligiacutevelrsquo por Kant e talvez jaacute por Platatildeo)Ningueacutem eacute responsaacutevel pelo fato de existir por ser assim ou assado porse achar nessas circunstacircncias nesse ambiente A fatalidade do seu sernatildeo pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e seraacute Ele natildeo eacuteconsequecircncia de uma intenccedilatildeo uma vontade uma finalidade proacutepriascom ele natildeo se faz a tentativa de alcanccedilar um lsquoideal de ser humanorsquo ouum lsquoideal de felicidadersquo ou um lsquoideal de moralidadersquo ndash eacute absurdo quererempurrar o seu ser para uma finalidade qualquer Noacutes eacute que inventamos oconceito de lsquofinalidadersquo na realidade natildeo se encontra finalidadehellip Cadaum eacute necessaacuterio eacute um pedaccedilo de destino pertence ao todo estaacute no todo ndashnatildeo haacute nada que possa julgar medir comparar condenar nosso ser poisisto significaria julgar medir comparar condenar o todohellip Mas natildeoexiste nada fora do todo ndash O fato de que ningueacutem mais eacute feitoresponsaacutevel de que o modo do ser natildeo pode ser remontado a uma causaprima de que o mundo natildeo eacute uma unidade nem como sensorium nemcomo lsquoespiacuteritorsquo apenas isto eacute a grande libertaccedilatildeo ndash somente com isso eacutenovamente estabelecida a inocecircncia do vir-a-serhellip O conceito de lsquoDeusrsquofoi ateacute agora a maior objeccedilatildeo agrave existecircnciahellip Noacutes negamos Deus noacutesnegamos a responsabilidade em Deus apenas assim redimimos o mundondash (GDCI VI sect8)

Por fim natildeo faria sentido a defesa de uma doutrina do perspectivismo dentro da

filosofia nietzschiana porque o filoacutesofo mesmo rejeita o valor de toda doutrina Em outras

palavras o filoacutesofo compreende que verdade e o erro natildeo estatildeo colocados de uma vez por

todas no real Pois jaacute em sua filosofia de juventude conclui que a realidade natildeo possui

ordem ou desordem Assim o mundo se o considerarmos em si mesmo independente do

homem natildeo eacute afeito a coisas como erro verdade mentira bem ou mal

O que Nietzsche reconhece como sua uacuteltima doutrina eacute a inocecircncia do devir sua

falta de propoacutesito Para tanto o autor se prende agrave ideia de uma inexistecircncia absoluta de um

ser absoluto ou uma existecircncia fora do todo que eacute o acircmbito do perspectivo Nessa leitura a

realidade natildeo possuiria valor em si valores natildeo-humanos Todo valor eacute decorrecircncia da

atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo com interpretaccedilotildees muito

proacuteprias ligadas desde sua origem agrave ordem de suas necessidades Por isso o filoacutesofo afirma

ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie () traz entatildeo um esplecircndido cortejo de

motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer esquecer que no fundo eacute impulso instinto

tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1) Assim Nietzsche concebe o mundo como uma

decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se

carregado de sentido a partir da existecircncia humana

264

Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto seria por

definiccedilatildeo sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana

natildeo eacute guiada por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima

instacircncia a accedilatildeo humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento Nessa

leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a finalidade a

moralidade o sentido satildeo tomados pro Nietzsche com instacircncias do instinto de

conservaccedilatildeo nos seres humanos

Se natildeo haacute por fim um sentido uacuteltimo para o homem entatildeo os diferentes valores

natildeo passam de padronizaccedilotildees humanas inexistentes no mundo mesmo Pois como nos diz

o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a

relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e

entremesclar nas coisas esse mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre

fizemos ou seja mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim

a uma atribuiccedilatildeo humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de

sobrevivecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas

Em Nietzsche de modo contraacuterio agravequele da tradiccedilatildeo ocidental de pensamento a

crenccedila se torna mais importante do que a verdade O valor da verdade em sua leitura

estaria vinculado agrave vida e seu fortalecimento que dependem mais fundamentalmente da

crenccedila do que na verdade contida nela Neste sentido desde que o filoacutesofo entende que a

condiccedilatildeo de tudo que vive eacute a perspectividade julga mais provaacutevel encontrar a verdade na

pluralidade de perspectivas do que na hipoacutetese de uma verdade imoacutevel apartada das

condiccedilotildees em que a vida mesma teria se originado e evoluiacutedo Por esta razatildeo Nietzsche

entende toda tentativa de aproximaccedilatildeo da verdade das filosofias anteriores como o esforccedilo

frustrado de captar uma objetividade inexistente em si que apenas pode existir na

totalidade de perspectivas que por sua vez seria inapreensiacutevel

Mas se eacute verdade que as conclusotildees negativas de Nietzsche com relaccedilatildeo ao

conhecimento apresentadas especialmente em sua filosofia de juventude nos potildee diante

de uma forma de niilismo em sua filosofia de maturidade o filoacutesofo nos apresenta natildeo

apenas ao niilismo mas a diferentes possibilidades diferentes atitudes diante do niilismo

Nesse sentido na medida em que o juiacutezo negativo em relaccedilatildeo ao conhecimento conduziria

265

o niilista desesperado agrave passividade a ausecircncia de accedilatildeo conduz o niilista ativo

igualmente a uma forma mais exuberante de niilismo

Este niilismo exuberante surge em consequecircncia da compreensatildeo de que desde que

estamos diante de uma infinita possibilidade de interpretaccedilatildeo de um novo infinito mar

aberto o homem pode assumir a funccedilatildeo de um sujeito criador artiacutestico (kuumlnstlerisch

schaffendes Subjekt segundo a terminologia do ensaio sobre verdade e mentira [WL KSA

1 p 883]) Isto porquecirc ao nos darmos conta da natureza criativa que subjaz a toda accedilatildeo

humana noacutes descobrimos que ldquoSomos muito mais artistas do que pensamosrdquo (JGBABM

V sect192) O oposto ao niilismo deveraacute surgir portanto no perspectivismo nietzschiano

entendido como a afirmaccedilatildeo de uma incondicional vontade de criar que se subleva nesse

pensamento como expressatildeo de uma tentativa de combater os valores do niilismo

266

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08 ISSN 1984-9052 Ano 2011 paacuteginas 146-167 Acesso em 15 maio 2018

MUumlLLER-LAUTER W A doutrina da vontade de poder em Nietzsche Trad de

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NEHAMAS Alexander Nietzsche Life as Literature Cambridge Harvard University

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OEHLER Richard Nietzsche-Register alphabetisch-systematische Uumlbersicht uumlber

Friedrich Nietzsches Gedankewelt nach begriffen und namen aus dem text entwicket von

Richard Oehler Saumlmtliche Werk in Zwoumllf Baumlnden Alfred Kroumlner Ed Band XII Stuttgart

1965

OVERBECK Franz Erinnerugen an Friedrich Nietzsche Berenberg Ed Berlin 2011

PLATAtildeO Diaacutelogos Teeteto e Craacutetilo Trad Carlos Alberto Nunes Coordenaccedilatildeo

Benedito Nunes 3ordf ediccedilatildeo revisada Ed Editora universitaacuteria UFPA Beleacutem 2001

REGO Pedro Costa Reflexatildeo e Fundamento sobre a relaccedilatildeo entre gosto e

conhecimento na esteacutetica de Kant KRITERION nordm 112 Dez2005 Belo Horizonte

(paacuteginas 214-228)

RICCARDI Mattia Nietzschersquos Critique of Kantrsquos Thing in Itself In Nietzsche

273

Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 39 Ed De Gruyter

(Berlin New York) 2010 (paacuteginas 333-351)

RIDLEY Aaron What is the meaning of aesthetic ideals In Nietzsche Philosophy and

the Arts Ed Cambridge University Press Cambridge 2002 (paacuteginas128-153)

RICHTER R Skepticismus in der Philosophie und seine Uumlberwindung (02 banden)

Leipzig Duumlrrsche Buchhandlung 1908

SCHACHT Richard Nietzsche In The Arguments of the Philosophers Ed Routledge

amp Kegan Paul London Boston Melbourne and Henley 1983

SCHACHT Richard Nietzschersquos Kind of Philosophy in The Cambridge Companion to

Nietzsche Ed Cambridge University Press Cambridge (paacuteginas 151-179) 1996

SCHATZKI Theodore Ancient and Naturalistic Themes in Nietzschersquos Ethics In

Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 23 Ed

Walter de Gruyter Berlin New York 1994 (paacuteginas146-167)

SCHRIFT Alan D Between Perspectivism and Philology Genealogy as Hermeneutic

In Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 16 Ed

Walter de Gruyter Berlin New York 1987 (paacuteginas0091-0111)

SIEMENS Herman Agonal Configurations in the Unzeitgemaumlsse Betrachtungen

Identity Mimesis and the Uumlbertragung of Cultures in Nietzschersquos Early Thought In

Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 30 Ed

Walter de Gruyter Berlin New York 2001 (paacuteginas 0080-0106)

SIMON Josef Das neue Nietzsche-Bild Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr

die Nietzsche-Forschung Band 21 Herausgeber Heinz Wenzel Walter de Gruyter Berlin

New York 1992 (Paacutegs 01-08)

____________ Die Krise des Wahrheitsbegriffs als Krise der Metaphysik Nietzsches

Alethiologie auf dem Hintergrund der Kantischen Kritik Nietzsche Studien

Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Gedenkband fuumlr Mazzino

Montinari Band 18 Walter de Gruyter Berlin New York 1989 (Paacutegs 242-259)

____________ Nietzsche und der Gedanke einer Kritischen Theorie Jahrbuch der

Nietzsche- Gesellschaft 56 Akademie Verlag Berlin 2000a (Paacutegs 195-208)

274

____________ Moral bei Kant und Nietzsche Nietzsche Studien Internationales

Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 29 Walter de Gruyter Berlin New York

2000b (paacuteg 178-198)

____________ Grammatik und Wahrheit Uumlber das Verhaumlltnis Nietzsches zur

spekulativen Satzgrammatik der metaphysischen Tradition Nietzsche Studien

Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung Band 1 Walter de Gruyter Berlin

New York 1972 (Paacutegs 01-26)

SOLOMON Robert C Nietzsche ad hominem Perspectivism personality and

ressentiment in The Cambridge Companion to Nietzsche Ed Cambridge University

Press Cambridge 1996 (paacuteginas 180-222)

SOUSA Maria Cristina dos Santos Demoacutecrito O racionalismo como representaccedilatildeo

artiacutestica do mundo segundo o Filoacutesofo Friedrich Nietzsche In Kalagatos V4 nordm 7

inverno de 2007 Ed UECE Fortaleza 2007 (paacuteginas 161-176)

STACK George J Lange and Nietzsche Monographien und Texte zur Nietzsche-

Forschung Ed Walter de Gruyter Berlin and New York 1983

STEGMAIER Werner Nietzsches Befreiung der Philosophie Kontextuelle

Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo Ed De Gruyter Berlin

Boston 2012

___________________ Darwin Darwinismus Nietzsche Zum Problem der

Evolution In Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-Forschung

Band 16 Ed Walter de Gruyter Berlin New York 1987 (paacuteginas 0264-0287)

STRAUSS Leo Note on the Plan of Nietzschersquos Beyond Good and Evil In Studies in

Platonic Political Philosophy With an Introduction by Thomas Pangle The University of

Chicago Press Chicago 1983 (paacuteginas 174-191)

TEO Thomas Friedrich Albert Lange On Neo-Kantianism Socialist Darwinism and

a Psychology Without a Soul In Journal of History of the Behavioral Sciences Vol

38(3) page 285ndash301 Published online in Wiley InterScience

(wwwintersciencewileycom) DOI 101002jhbs10062_ 2002 Wiley Periodicals Inc

Summer 2002

275

VECHIA Ricardo Bazilio Dalla O(s) Perspectivismo(s) de Nietzsche Tese de

doutoramento defendida junto ao Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas da UNICAMP

orientador Oswaldo Giacoia Juacutenior Satildeo Paulo 2014

___________________ A Filosofia da Filosofia de Nietzsche uma releitura de F

Kaubach revista Sofia Vol 3 Nordm 2 JulhoDezembro Vitoacuteria 2014 (paacuteginas 216-231)

WERNER Johannes Maximilian Erkenntnis un Wahrheit Nietzsches Destruktion de

Erkenntnistheorie als Konsequenz des Verlustes verbindlicher Wahrheit Ed Peter

Lang Frankfurt am Main Bern New York 1986

WILCOX John T Nietzsche Scholarship and ldquoThe Correspondence Theory of Truthrdquo

The Danto Case Nietzsche Studien Internationales Jahrbuch fuumlr die Nietzsche-

Forschung Band 15 Walter de Gruyter Berlin New York 1986 (paacuteginas 337-357)

WISE Isaac M The Cosmic God A fundamental philosophy in popular lectures

Office American Israelite and Deborah Cincinati-Ohio 1876

WOHLFART Guumlnter Zusatz zum Titel ein Nietzsche-Brevier Ed Koumlnigshausen amp

Neuman Wuumlrzburg 1991

YOUNG Julian Nietzschersquos philosophy of art Ed Cambridge University PressCambridge 1992

276

Erklaumlrung

Hiermit versichere ich an Eides statt dass ich die vorliegenden Dissertation selbststaumlndig

und ohne unzulaumlssige Inanspruchnahme Dritter verfasst habe Ich habe dabei nur die

angegebenen oder unveroumlffentlichten Quellen und Hilfsmittel verwendet und die aus

diesen woumlrtlich inhaltlich oder sinngemaumlszlig entnommenen Stellen als solche den

wissenschaftlichen Anforderungen entsprechend kenntlich gemacht Die Versicherung

selbststaumlndiger Arbeit gilt auch fuumlr Zeichnungen Skizzen oder graphische Darstellungen

Die Arbeit wurde in gleicher oder aumlhnlicher Form weder derselben noch einer anderen

Pruumlfungsbehoumlrde vorgelegt und auch noch nicht veroumlffentlicht Mit der Abgabe der

elektronischen Fassung der endguumlltigen Version der Arbeit nehme ich zur Kenntnis dass

diese mit Hilfe eines Plagiatserkennungsdienstes auf enthaltene Plagiate uumlberpruumlft und

ausschlieszliglich fuumlr Pruumlfungszwecke gespeichert wird Es ist mir bekannt dass wegen einer

falschen Versicherung bereits erfolgte Promotionsleistungen fuumlr unguumlltig erklaumlrt werden

und eine bereits verliehene Doktorwuumlrde entzogen wird

Fortaleza 03 de Abril de 2019

_________________________________________________

Joatildeo Pereira da Silva Neto

Kandidat fuumlr Promotion in Philosophie an der Federal University of Cearaacute und Kandidat

fuumlr Promotion in Philosophie bei Fakultaumlt fuumlr Kultur und Sozialwissenschaften von der

FernUniversitaumlt in Hagen

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