A GUERRA SECRETA DE SALAZAR EM ÁFRICA

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JOSÉ MANUEL DUARTE DE JESUS Com a colaboração redaccional de INÊS DE CARVALHO NARCISO A GUERRA SECRETA DE SALAZAR EM ÁFRICA Aginter Press: Uma rede internacional de contra-subversão e espionagem sediada em Lisboa

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J O S É M A N U E L D U A R T E D E J E S U SC o m a c o l a b o r a ç ã o r e d a c c i o n a l d e I N Ê S D E C A R V A L H O N A R C I S O

A G U E R R A S E C R E T A D E S A L A Z A R E M Á F R I C AA g i n t e r P r e s s : U m a r e d e i n t e r n a c i o n a l

d e c o n t r a - s u b v e r s ã o e e s p i o n a g e m s e d i a d a e m L i s b o a

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Preâmbulo .........................................................................................

Prefácio de Luís da Costa Correia .............................................

Abreviaturas ......................................................................................

O Imediato pós-Segunda Guerra Mundial na Europa ........1. Da Organização Gehlen ao BND (intelligence alemã). As lutas entre o Dr. John e Gehlen .....................................2. Do fascismo italiano à criação do SIFAR. O consulado de De Lorenzi .................................................

A OAS e Portugal ............................................................................1. Dum problema franco-argelino a uma dimensão

internacional. A doutrina do Appel aux Français de Argoud e a Cité Catholique .....................................................2. Espanha e Portugal ................................................................

A Voz do Ocidente ..........................................................................

Í N D I C E

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1. La Voix de l’Occident – Uma rede privilegiada e instrumento da OAS em Lisboa ........................................

A Aginter Press ................................................................................1. Constituição. Yves Guérin-Sérac e Robert Leroy – O acordo com a PIDE de 1966. Os cursos de guerra subversiva e o manual ............................................................2. A OT (Ordem e Tradição), a OACI (Organização Anticomunista Internacional). Seus membros ...................

As Conexões Maoístas ...................................................................

2. O PCSML/PPS (Parti Communiste Suisse Marxiste Léniniste)/ /Parti Populaire Suisse) de Gérard Bulliard

e as relações com Robert Leroy ...........................................3. Manuel Rio e o CPL (Comité Portugal Libre) ...................

As Guerras de África – A Operação Zona Leste ....................1. Os mercenários – The Dogs of War ........................................2. Os mercenários do Catanga e do Congo anti-Catanga. A ajuda militar a Tschombé e Mobutu. As relações com Roger Faulques, Claude Jacquemart e Eric Bouzin ..........3. As tentativas de golpes em Brazzaville. O Presidente Fulbert Youlou ........................................................................4. A Operação Kobe ....................................................................5. A Operação Barbarossa ..............................................................6. Portugal e o caso do Biafra ....................................................

O pós-25 de Abril ............................................................................1. O 11 de Março e a «Matança da Páscoa». O grupo de Madrid ................................................................2. A Frente de Libertação dos Açores (FLA) .........................

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Í N D I C E

...........................................................................................

Agradecimentos ...............................................................................

.......................................................................

Outras fontes ....................................................................................

Anexo documental ..........................................................................

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Em ciência, um único artigo pode transformar a reputação de uma pessoa.

Isso quase nunca acontece em diplomacia, mas aconteceu com o Long Telegram.1

Terminada a Segunda Guerra Mundial, em 1945, dois países vi-veram, de modo diverso, um verdadeiro vazio de poder e institu-cional: a Alemanha e a Itália.

Houve quem durante a «Guerra Quente» tivesse antevisto a

tico Andrey Andreyevich Vlasov, com o seu «Manifesto de Smo-lensk», de 1943-44, e o brigadeiro-general Gehlen, que depois do seu último despacho com Adolf Hitler, a 9 de Janeiro de 1945, es-condeu documentação sobre os soviéticos que previa vir a ser im-portante para os americanos, no pós-guerra.

Vlasov, comandante do 2.º Exército, com nove divisões de blin-dados e dois regimentos de artilharia, foi capturado pelos alemães e rendeu-se a 11 de Junho de 1942.

Em 1943, escreveu o chamado «Manifesto do Movimento Vla-sov», de que Otto Skorzeny2 teve conhecimento através do barão

1 «In science, a single paper can transform someone’s reputation. That almost never happens in diplo-macy, but it happened with the Long Telegram.» Nicholas Thomson, The Hawk and the Dove – Paul Nitze, George Kennan, Nova Iorque, Henry Holt and Company, 2009.

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Adrian von Fölkersam3. O manifesto apontava claramente para uma visão fascizante duma Europa da «Nova Ordem», em que a

Skorzeny4

do bolchevismo, de Estaline e da sua clique; uma paz honrosa com a Alemanha; e criação duma nova Rússia, sem bolchevismo, sem capitalismo, com a colaboração da Alemanha e de outras nações da Nova Europa. O programa era composto por 13 pontos:

1. Proibição de trabalho forçado e liberdade de criação de sindicatos;

2. Fim da propriedade colectiva e entrega das terras aos seus proprietários;

3. Restauração do comércio, da pequena indústria e do arte-sanato;

4. Direito de os intelectuais trabalharem livremente no inte-resse do povo;

5. Justiça social e protecção dos trabalhadores da exploração;

todos os trabalhadores;7. Eliminação do terror e introdução de direitos humanos;8. Garantia de liberdade para todos os povos da Rússia;9. Amnistia para todos os presos políticos;10. Reconstrução das aldeias e cidades segundo um plano di-

rector governamental;

cializados em operações especiais, as mais famosas das quais foram certamente o rapto de Mussolini, quando estava preso em Gran Sasso, em 1943, utilizando planadores, du-

das Ardenas, em 1944. Exilou-se em Espanha, onde foi activo colaborador da Aginter e onde veio a falecer.

3 Adrian von Fölkersam foi um activo membro das forças de operações especiais do Terceiro Reich, em várias regiões e fases da Segunda Guerra Mundial, e companheiro de Otto Skorzeny, nalgumas delas.

4 Otto Skorzeny, Meine Kommando Unternehmen, Munique, Universitas Verlag, 1993.

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11. Reconstrução de fábricas segundo um plano director governa-mental;

12. Cancelamento de todas as dívidas russas contraídas secreta-mente por Estaline aos anglo-saxões;

13. Garantia dum nível de vida mínimo a todos os estropiados da guerra e suas famílias.

O antiliberalismo e a ideia duma nova ordem europeia, apesar dos pontos não coincidentes com a doutrina do Terceiro Reich, uma vez que inclui os eslavos na Europa ariana, eram claramente fascizantes. Não obstante, segundo Skorzeny, estes pontos só foram

Smolensk», de 14 de Novembro de 1944. Para Skorzeny, era claro que Vlasov e o seu movimento ROA (Russkaya Osvoboditel’naya Armia) viam a Rússia integrada numa nova Europa e não como um país asiático.

Pode dizer-se que Vlasov, com este seu plano pouco realista, pre-tendia evitar um enfraquecimento da Europa pós-Segunda Guerra Mundial e uma arquitetura confrontacional entre Estaline e os Es-tados Unidos, em suma, uma Guerra Fria que talvez tenha chegado a imaginar como um cenário possível.

Já o general Gehlen previu a derrota alemã e um posterior con-fronto Leste-Oeste, a primeiroa liderada pelos ex-aliados soviéti-cos e o segundo, pelos americanos. Mas, antes que essa arquitectura geoestratégica se estabelecesse, um grande vazio dominaria a Ale-manha e, de modo mais confuso, a Itália.

Quem, indiscutivelmente, conceptualizou numa análise notá-vel a arquitectura da Guerra Fria foi o diplomata americano Geor-ge Kennan, no seu famoso Long Telegram, expedido de Moscovo a

-mento está na origem de toda a doutrina de contenção – «contain-ment policy» – de Truman e formatou a futura política americana da

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Guerra Fria. Se o documento pode hoje ser considerado histórico,

5

O telegrama analisa o problema soviético, dando-lhe uma dimen-são histórica. O marxismo-leninismo não faz mais do que encobrir um expansionismo estalinista dum velho império «inseguro», para usar as suas expressões, face a um Ocidente cujos avanços de mo-dernidade o assustam.6

Em cinco pontos de análise e nos seus correspondentes de con-clusões, Kennan aponta o caminho que o Ocidente e especialmente os Estados Unidos devem seguir para enfrentar Estaline.

Aponta no Ocidente os aliados mais ou menos encobertos com que a União Soviética conta – os partidos comunistas, muitos mo-vimentos de libertação das mulheres, os pobres, os explorados, de-signadamente vários dos movimentos nacionalistas das colónias.

Nomeia, igualmente, os dois grandes inimigos dos soviéticos – os reaccionários burgueses e os socialistas ou sociais-democratas. Nesta linha, sugere que se protejam os primeiros e se considerem os segundos como aliados.

Claro que se trata duma análise bastante conservadora e que não

arquitectura da segunda metade da Guerra Fria. Podemos concluir, com Kennan, que a máxima de Von Clau-

sewitz se inverte e a paz se torna uma maneira de continuar a guerra – a guerra contra-subversiva, para evitar a guerra aberta que Ken-nan julga altamente desaconselhável.

5 «My reputation was made. My voice now carried.» George Kennan, Memoirs, Nova Iorque, Pantheon, vol. 1, 1967, vol. 2, 1972.

6 «[…] that it arises mainly from basic inner-Russian necessities which existed before recent war and exist today» «que nasce principalmente de necessidades internas russas que já existiam antes da recente guerra e continuam a existir hoje em dia» (Tel. 861.002 – 2246, «secreto», de Kennan, de Moscovo para Washington, 22 de Fevereiro de 1946).

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-dente fazer a guerra à União Soviética nem destruí-la, mas somen-

os movimentos expansionistas de Estaline.

a curto prazo, a grande divisão que polarizou o mundo das rela-ções internacionais durante a Guerra Fria. Essa polarização veio a concretizar-se quando a zona de ocupação soviética se transformou

ocidentais se transformou na República Federal Alemã.A conhecida expressão «Cortina de Ferro» foi formulada por

Long Telegram, na sua alocução de 5 de Março de 1946, no Westminster College, em Fulton, Missouri, depois de sublinhar que acolhia de bom grado contactos cada vez mais frequentes e substantivos com o povo russo: «De Estetino, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o Continente. Para lá dessa linha, estão todas as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental.»7

Se Nitze8 elaborou o seu famoso USSBS (United States Strategic Bombing Survey) e acreditava numa política armamentista, Kennan apostava numa nova concepção de estratégia através de poderosas

intelligence, capazes de actuar preventivamente e evitar – ou conter – o avanço comunista na Europa e no mundo.

7 «From Stettin in the Baltic to Trieste in the Adriatic, an iron curtain has descended across the Continent. Behind that line lie all the capitals of the ancient states of Central and Eastern Europe.» Churchill Speaks 1897-1963, Nova Iorque, Barnes & Noble, 1980.

8 -junto de George Kennan. Amigos íntimos, estiveram juntos nalgumas das mais impor-tantes decisões que os EUA tomaram, como a partição da Alemanha e o Plano Marshall, embora em forte desacordo quanto, por exemplo, à questão do armamento.

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Kennan cria e dirige o OPC9, que se forma pouco depois da CIA, e onde o seu amigo Frank Wisner, um ex-OSS, vem a tomar o seu lugar. Uma das frentes onde esta estratégia se vai desenvolver será nas primeiras eleições em Itália do pós-guerra, para impedir a vitó-ria do Partido Comunista, uma antevisão da «estratégia de tensão» de que a Aginter será um actor importante.

Assim serão criadas as «operações especiais», que enfrentarão as acções secretas da Spetsnaz soviética, a unidade de elite para ope-rações especiais sob o comando da intelligence militar (GRU) cuja primeira grande operação foi a tomada da Checoslováquia, com acções clandestinas ou sob cobertura. Continua hoje a existir, des-tinada a acções de antiterrorismo.

É nos próprios Estados Unidos que surge, assim, o «pecado ori-

explicar a criação do ambiente que permite o aparecimento de or-ganizações como a Aginter Press.

Kennan e Wisner contrataram um ex-nazi, Dr. Gustav Hilger, como conselheiro do governo em Washington. Com este acto, a

em Itália e em Portugal.Claro que Hilger era, realmente, um caso especial, pois não

era militar nem SS. Foi diplomata do Terceiro Reich em Mos-covo antes da guerra e, tal como Gehlen, veio a servir os ame-ricanos a seguir à guerra no início da ocupação, tendo depois ido para os Estados Unidos, onde trabalhou como consultor para a CIA e representou a chamada Organização Gehlen (OG) naquele país.

Quando regressou à RFA, Gehlen foi ainda conselheiro para assuntos do Leste no Auswärtiges Amt (Ministério dos Negócios

9 -tamento de Estado.

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Estrangeiros) e chegou a ser condecorado com a Verdienstkreuz an-tes de falecer, em 1965.

Mas o recurso dos norte-americanos ao ex-inimigo alemão, que se havia tornado um aliado estratégico contra o ex-aliado soviéti-co, que era agora inimigo, abre as portas pelas quais entram outras

ligadas ao nazismo poderiam, apesar de tudo, merecer considera-10

-macia americana. Sempre concebeu a diplomacia ligada a operações secretas que evitassem o confronto e, como viveu mais de cem anos,

já quando esteve, durante a Segunda Guerra Mundial, colocado na Embaixada americana em Lisboa, se ocupava da coordenação dos serviços de espionagem.

As frases com que termina o seu aludido telegrama são de quem -

pre foi possível evitá-los, como o tema deste trabalho torna evidente:

--

nal, o maior perigo que nos pode sobrevir ao lidarmos com este problema do comunismo soviético é que nos deixemos transfor-mar naqueles com quem lidamos.11

10 Kennan teve, de resto, problemas nos anos 80 com historiadores americanos de-vido a este caso.

11 human society. After all, the greatest danger that can befall us in coping with this problem of Soviet com-munism is that we shall allow ourselves to become like those with whom we are coping.»

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. D a O r g a n i z a ç ã o G e h l e n a o B N D ( i n t e l l i g e n c e a l e m ã ) .

A l u t a e n t r e o D r . J o h n e G e h l e n

[…] as complexidades do problema alemão actual são tão terríveis que se pode dizer que o problema

tem uma dialéctica própria […].12 («Memo» de George Kennan, 1949)13

Actualmente, é difícil a uma nova geração imaginar o clima que se vivia na Alemanha do imediato pós-guerra. Era um mundo sem

tinham desaparecido numa espécie de catástrofe cósmica. O mundo

esquemas e estruturas ad hoc, que mudavam a cada dia e que con-

constante mudança.Quando visitei a Alemanha, na década de 1950, ainda não haviam

-ra, erguia-se e consolidava-se orgulhosamente a Alemanha Federal, que já assumia um papel preponderante no mundo, mas em que se sentiam ainda profundas feridas herdadas da loucura hitleriana.14

Uma espécie de no man’s land ocupava no pós-guerra o território. A economia voltara à pré-história. A noção de moeda desaparecera.

12 «[...]to have its own dialectics.»

13 «Memo» escrito quando Kennan regressou aos EUA, em 1949, citado em Nicholas Thomson, The Hawk and the Dove – Paul Nitze, George Kennan, Nova Iorque, Henry Holt and Company, 2009.

14 Razões familiares deram-me oportunidade de conhecer testemunhos orais do pós--guerra. Minha mulher é alemã e seus familiares e amigos mais velhos foram fontes orais inesgotáveis do que foi a região de Bona nessa época.

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O Reichsmark ainda existente nada valia e ninguém o queria. Os es-

economias paralelas que se iam criando entre a população com a

entidades estranhas – os aliados –, que, em estilos muito diversos,

minha mulher ter conseguido adquirir uma velha camioneta junto dos americanos, em troca de uma colecção de pfennig, pequenas mo-edas que pusera num pote e que pôde vender como cobre. (Essa ca-mioneta permitiu-lhe montar um pequeno negócio de distribuição.)

O Deutsche Mark, a nova moeda, vem a ser introduzido ainda durante a ocupação, mas em 1948, um ano antes da criação da Re-pública Federal Alemã.

É neste caos que precedeu a década de 1950 que encontramos as raízes de algumas instituições mais ou menos clandestinas, pela sua natureza, mas essenciais na fase em que se cavava o fosso da Guerra Fria. Essenciais para as forças ocidentais de ocupação e, de-

Há que referir uma personagem-chave na constituição dum servi-ço de intelligence para os americanos, durante este período de no man’s land do pós-guerra e prelúdio da Guerra Fria: o referido general Rei-nhard Gehlen.

Gehlen foi chefe da 12.ª Secção da Wehrmacht, responsável pelo OKH (Oberkommando der Heeres – Estado-Maior do Exército), em

-bre as forças soviéticas, ainda hoje considerado de inegável valor.

Gehlen15, depois do seu último despacho com Adolf Hitler, a 9 de Janeiro de 1945, estava consciente da inevitável derrota alemã.

15

posto, de 1961 a 1963.

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Porém, e não querendo tomar outra atitude que julgaria de traição, resolveu, numa antecipação da posterior clivagem da Guerra Fria, como já apontei, esconder em diversos locais da Alemanha docu-mentação de intelligence sobre o Leste, que julgou poder vir a ser fundamental para os americanos, face à ameaça soviética.

É um caso típico de quem anteviu a arquitectura da situação in-ternacional da Guerra Fria, antes de a «Guerra Quente» ter termi-nado, e para quem os verdadeiros inimigos eram os russos e não os anglo-saxões.

Gehlen foi preso pelos americanos a 20 de Maio de 1945.16 De-pois de o ouvirem e tendo em conta a documentação que Gehlen possuía, em como o seu enorme conhecimento das Forças Arma-das soviéticas, estes decidiram optar por um deal.

de 1945 a 1950, altura em que foi criado o BfV (Bundesamt für Ver-fassungsschutz – Ministério Federal para a Defesa da Constituição).17 E com ele nasceu a Organização Gehlen (OG), embrião dos serviços de intelligenceOG em 26 milhões de dólares americanos. Em Pullach, sede da OG, estavam hasteadas a bandeira alemã e a norte-americana.18

Em 1948, Gehlen conheceu Adenauer e estabeleceu-se uma evi-dente simpatia entre os dois homens. No ano de 1950, o Governo

intelligence -

ção, por razões óbvias: Rudolf Diels havia sido chefe da Gestapo

16 Vide, entre outras obras sobre este assunto, Thomas Walde, ND-Report – Die Rolle der Geheimen Nachrichtendienste im Regierungssytem der Bundesrepublik Deutschland, Munique, Pi-per Verlag, 1971, e os artigos de Joachim Joesten, Im Dienste des Misstrauen, Munique, 1964.

17 O BfV foi criado em Novembro-Dezembro de 1950.18 Sobre este assunto, o Spiegel

número 39, de 22 de Setembro de 1959, um artigo com o título «Gehlen – des Kanzlers lieber General» «Gehlen – o querido general do chanceler». O montante é referido, de resto, em diversas fontes. Vide obra citada de Thomas Walde.

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até 1934; o almirante Konrad Patzig fora antecessor de Canaris na direcção da Abwehr; e Fabian von Schlabrendorff estivera implica-do no atentado de 20 de Julho de 1944 contra Hitler.

Nenhum era o candidato favorito de Adenauer, chanceler da RFA. Porém, o seu candidato, o seu chefe de gabinete, Dr. Ernst Wirmer, também não foi aceite.

20 de Julho, de origem inglesa e que não era da simpatia pessoal de Adenauer, que o considerava «um homem dos ingleses».

Após uma luta renhida, a OG, que informava Adenauer, mas também os seus principais opositores, como Ollenhauer e Schu-macher, é incorporada no Governo, em Julho de 1954, e recebe um orçamento federal de 26 milhões de marcos. A CIA suspende o seu

--se na BND (Bundesnachrichtendienst19

Gehlen e muitos dos seus antigos colaboradores aproveitaram a ocasião para branquear os seus dossiers em Pullach e associaram à OG gente como Hans Speidel, Ernst Feder ou Hans Guderian, todos aproveitados pelo seu anticomunismo convicto.20

-dentais de elementos anticomunistas de extracção fascista e nazi, que explicam o contexto da iminente Guerra Fria e, mais tarde, a

19

20 Vide Joesten; Stefton Delmer, Black Boomerang, Nova Iorque, 1962, e obra citada de Thomas Walde.

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. D o f a s c i s m o i t a l i a n o à c r i a ç ã o d o S I F A R .

O c o n s u l a d o d e D e L o r e n z i

A democracia é uma infecção do espírito.21

-camente o que restava do edifício místico do Terceiro Reich e so-breveio um vazio germanicamente apocalíptico, na Itália o Estado desmembrou-se em 1943, quando a 10 de Julho o general Montgo-mery desembarcou na Sicília e, pouco depois, o general Clark de-sembarcou na Calábria.

A partir desse momento, ou mais propriamente a partir da assi-natura do armistício de Cassibile, em Setembro do mesmo ano, a Itália passou a ser um reino pró-aliado, encabeçado por Vítor Ema-nuel III e, depois de vários episódios rocambolescos, uma República Social Italiana – um quase-protectorado alemão – encabeçada por Mussolini. Ocorreriam episódios mais «operáticos», em contraste com a seriedade germânica.

O marechal Pietro Badoglio, como primeiro-ministro, prende Mussolini por ordem do rei. Mussolini é encarcerado a mais de 2000 metros de altitude no Gran Sasso, mas é raptado, durante a noite,

com 10 planadores silenciosos. O ditador acabaria por ser preso, trajando uniforme alemão, e assassinado num episódio verdadeira-mente patético, a 28 de Abril de 1945.

Estaline reconhece o novo governo italiano de facto, que assim deixa o Eixo e integra os Aliados.

21 «La démocratie est une infection de l’esprit.» Pino Rauti, jornalista do Il Tempo, de extre-ma-direita, foi fundador do Ordine Nuovo, em 1956, e um dos duros no movimento ne-ofascista italiano MSI. Foi um importante elo de ligação da Aginter Press.

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-dicando a favor de Humberto II, que, por sua vez, se exilará, na

-blicano, em 1946.

Na situação confusa, que contrasta com a do Tribunal de Nu-remberga na Alemanha, será votada uma amnistia para os crimino-sos de guerra, baseada na curiosa distinção entre «torturas normais», por um lado, e «sevícias particularmente cruéis», por outro.

Neste panorama, os fascistas italianos tradicionais e outros neo-

de um Adenauer, um Ollenhauer ou um Willy Brandt, como na

aventureiras, que só ajudam a estabelecer o caos.Durante a guerra, na chamada Zona Libertada, não controlada

por Mussolini, os serviços de intelligence estiveram a cargo do coro-nel Pompeo Agrifoglio até 1945, funcionando no âmbito america-no do OSS, percursor da CIA.

-ricanos, James Jesus Angleton, que durante a guerra começou por servir nos serviços «X-2» de contra-espionagem do OSS em Lon-dres – onde conheceu o agente duplo Kim Philby –, foi co-fundador da CIA e veio a fazer uma carreira lendária durante anos naquela

serviços de contra-informação – a chamada «unidade Z». Aí desen-volveu muitos contactos com a extrema-direita italiana para contra-riar os avanços socialistas e comunistas.22

22

também foram vítimas. Também nesse campo Angleton desempenhou, a favor de Allan Dulles, então chefe da CIA, importantes serviços. Vide Tim Weiner, História da CIA – Um Legado de Cinzas, Lisboa, Difel, 2008.

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Segundo alguns autores, Anleton e Carlo Resio terão salvado e levado para Roma o príncipe Valerio Borghese23 vestido com uni-forme americano. Borghese encontrava-se escondido na sua resi-

sumário.24 O recurso da contra-espionagem americana a ex-nazis estava em curso.

Entre 1946 e 1948, houve um grande vazio institucional em Itália

1949 foi criado o SIFAR (Serviço de Informação das Forças Arma-

passou a fazer-se sentir em todo o aparelho de informação.Os chefes dos serviços secretos foram-se sucedendo, a come-

-ra tutelar de Giovanni de Lorenzo. A entrada da Itália na NATO

25 De Lorenzo permaneceria em funções até, devido a escândalos políticos, aban-donar o lugar em Outubro de 1962.

O consulado de De Lorenzo foi marcado pelas suas ligações à CIA e a Colby, director desta, e pela sua acção de controlo interno, que não poupou o Vaticano, através da colocação de microfones no Quirinal e no próprio Vaticano – na biblioteca pontifícia – para escutar alguns colaboradores de João XXIII.26

23 -

depois do golpe de Estado falhado de 8 de Dezembro de 1970. Exilou-se em Espanha, onde faleceu em 1974. Ficou conhecido por Príncipe Negro.

24 Vide Stuart Christie, Stefano delle Chiaie, Portrait of a Black Terrorist, Londres, Anar-chy Publications, 1984.

25 Vide Giuseppe De Lutiis, Storia dei Servizi Segreti in Italia, Roma, Editori Riuniti, 1984.26 Vide Roberto Faenza, Il Mallafare, Milão, Mandadori, 1978, e o «Joint Chief of

Staff Memorandum», de 14 de Maio de 1952, referido por Faenza (pág. 313). Apesar de

de cinema do que como investigador.

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O I M E D I A T O P Ó S - S E G U N D A G U E R R A M U N D I A L N A E U R O P A

A máquina interna surge com a criação do chamado «Serviço D», que constitui dossiers

--se senadores, deputados, sacerdotes, etc., como veio a revelar a Co-missão Beolchini. Só o dossier sobre o primeiro-ministro Amintore Fanfani teria quatro volumes.27 O próprio Andreotti, presidente do Conselho italiano, veio a declarar, a 5 de Julho de 1974, que havia sido suspeito ou caíra em desgraça junto do presidente Gronchi, devido à acção de De Lorenzo.

A primeira formação multilateral surge marginalmente à NATO, com a CENTO (Central Treaty Organization), que agrupa os Esta-dos Unidos, o Reino Unido, a Turquia, o Irão e o Paquistão e pre-

A CIA, a partir de 1959, trabalha estreitamente com De Lo-

Estados Unidos, que, na linha traçada por Kennan, acompanha-vam todos os «perigos» vindos da esquerda, em Itália, considera-da vulnerável à penetração soviética. Roberto Faenza defende no seu livro que o chefe de estação da CIA em Roma, Thomas Ka-ramessines, «sugere ao general De Lorenzo que aprofunde os CV de todos os líderes políticos favoráveis a uma abertura à esquerda, chegando a indicar as personagens [...]o grupo de colaboradores de Aldo Moro». Estes factos são importantes quando se avaliam mais tarde o triste destino que foi reservado a este político e os seus alegados responsáveis.

Segundo Giuseppe De Lutiis, o adido militar à altura na em-baixada americana em Itália, o coronel Vernon Walters28 defendia

27 Vide Maximo Caprara, artigo «La Verita sta negli Omissi» do Il Mondo, de 25 de Julho de 1974.

28 Vernon Walters, além de ter desempenhado as funções de adido militar também

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uma intervenção americana caso os socialistas ganhassem as elei-ções, atitude que, segundo a mesma fonte, não seria partilhada por Thomas Karamessines.

Acontece que, em 1962, John F. Kennedy, com a sua nova polí-tica externa americana, apoia uma abertura à esquerda não-comu-nista em Itália, linha que segue, de resto, o pensamento das velhas considerações de Kennan no seu Long Telegram, que apontava os sociais-democratas como os piores inimigos do Kremlin. Estas circunstâncias explicam algumas das mudanças no pessoal ameri-cano então levadas a cabo, como a substituição de Vernon Walters por James Strauss.

É interessante referir que, segundo Roberto Faenza, já antes de 1964, William Harvey29 terá recomendado a Renzo Rocca, do SI-FAR, que fomentasse acções contra a Democracia Cristã, a serem atribuídas à esquerda. O mesmo Faenza refere ter visto, nos arqui-vos da CIA em Roma, listas de alguns movimentos de extrema-di-reita implicados em acções anticomunistas.

Estamos, ainda, longe da tentativa falhada de golpe de Estado comandada por Junio Valerio Borghese (chefe da 10.ª MAS, força especial reconhecida pelo Reich em Setembro de 1943 e responsá-

30 e a vários anos do auge da «estratégia de tensão» que culminou no atentado bom-bista da Piazza Fontana, em Dezembro de 1970, em que a Aginter foi actor importante.

Os fascistas italianos e vários elementos da OVRA (polícia secreta de Mussolini) colaboravam com o SIFAR desde há muito.

diplomata. Foi representante permanente na ONU e embaixador na Alemanha, a seguir à queda do Muro, entre 1989 e 1991.

29 Harvey entrou para a CIA em 1947, depois de passar pelo FBI, e foi um dos ope-racionais de acções especiais contra o bloco comunista, tendo estado envolvido numa das tentativas de assassinato de Fidel Castro.

30 A MAS era a conhecida Decima Flotiglia Mezzi d’Assalto, da Armada Italiana, extinta depois do armistício, mas que reviveu como grupo pró-alemão na República Social Italiana.

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No ano de 1964, em Itália, a tensão política levava muitos ana-listas a pensarem que se tratava dum «normale aggiornamento» de um verdadeiro golpe que se prepararia, caso a esquerda ganhasse.

Por razões de saúde, De Lorenzo provoca a sua saída. É substituí-

Entretanto, o chefe de Estado-Maior é substituído em 1965 pelo -

ras do neofascismo italiano: Rauti e Giannettini, importantes cor-respondentes, como veremos, da Aginter Press.

-te impacto político, intitulada «A variedade de técnicas na condução da guerra revolucionária» e Rauti faz outra, com um título igualmente

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A 10 de Maio de 1967, a imprensa italiana faz explodir a bomba mediática, com o Espresso a noticiar em grande caixa de primeira página: «Finalmente la Veritá sul SIFAR. 14 de Iuglio 1964: complotto al Quirinale. Segni e De Lorenzo preparavano il colpe di Stato.»32

em dois actos, durante os 20 anos seguintes, período durante o qual

alimentariam e contrastariam com a evolução da Alemanha dividi-da, que soube, depois do seu aparente aniquilamento, consolidar uma democracia na parte ocidental.

-

sempre provados: tudo criou uma atmosfera propícia ao romancear

grande parte da classe política preferiu ocultar.

31 Vide obra citada de De Lutiis.32 «Finalmente a Verdade sobre o SIFAR. 14 de Julho de 1964: conspiração contra o

Quirinal. Segni e De Lorenzo preparavam o golpe de Estado.»

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(Serviço de Informação e Defesa), totalmente dependente dos mi-litares, embora com a ajuda de muitos dos antigos elementos do SIFAR. O nome, de resto, como refere De Lutiis, não foi muito bem escolhido, pois veio repetir as siglas do mesmo serviço da úl-tima República de Mussolini, depois de 1943. Durante o consulado

-tos da Grécia dos coronéis.

Em 1969, o general Viola organizou a «peregrinação» de 200 conhecidos fascistas italianos à Grécia, entre eles Rauti, Merlino e o Delle Chiaie.

No ano seguinte, deu-se a referida tentativa de golpe de Esta-do encabeçado pelo Príncipe Negro, Junio Valerio Borghese, na notte dell’Immacolata -clarecido mas que, depois das revelações da imprensa em Março de 1971, provocou a fuga de Borghese para Espanha, onde foi en-grossar o caudal fascista que ali encontrava refúgio.

A Organisation Armée Secrète e os seus elementos vieram, a seu tempo, a encontrar em Itália e em Espanha terreno excelente para operarem. Não obstante, será sobre a sua acção em África que o trabalho se concentrará.