A Aliança Entre a Umbanda e o Santo Daime

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    Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 19 p. 77-106, jan./jun. 2011

    O AX DE JURAMIDAM: A ALIANA ENTRE O SANTO DAIME

    E A UMBANDAJssica Greganich1

    Resumo:O presente artigo pretende delinear a aliana entre o Santo Daimee a Umbanda a partir de uma viso ecltica, especificando a Umbandaime noRio Grande do Sul, nas igrejas de Porto Alegre, em parceria com um Centro de

    Umbanda, introduzindo uma discusso acerca do sincretismo, da bricolage e dabutinage.

    Palavras-chave:Umbandaime; Sincretismo; Bricolage; Butinage.

    Abstract: The aim of this article is to discuss the alliance between Santo Daimeand Umbanda from an eclectic point of view, dealing with Umbandaime in RioGrande do Sul, in the churches of Porto Alegre, which maintain a partnershipwith a Centro de Umbanda. It leads to a discussion about syncretism, bricolage

    and butinage.Keywords: Umbandaime; Syncretism; Bricolage; Butinage.

    A Umbandaime um neologismo criado pelos daimistas do CEFLURIS(Centro Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) para ser-vir de referncia ao estudo medinico dentro da doutrina do Santo Daime,a partir de uma aliana com a Umbanda. Esta vertente da Umbandaimedentro da linha do CEFLURIS relativamente recente e no incorporadapor todas as igrejas daimistas. Considerada em pleno andamento, est sedesenvolvendo e se adaptando de acordo com cada igreja, no possuindoainda uma norma estabelecida. No Rio Grande do Sul, mais especificamenteem Porto Alegre, a Umbandaime est se consolidando cada vez mais. Nestesentido, pretendo esboar esta aliana a partir do meu trabalho etnogrfico

    1 Psicloga, com especializao em atendimento clinico nfase em psicanlise. Mestre em

    antropologia social pela UFRGS e doutoranda em antropologia social pela UFRGS.

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    iniciado em 2008, procurando compreender o sincretismo presente nessemovimento introduzindo uma discusso terica acerca da bricolage e dabutinage.

    O SANTO DAIME

    O Santo Daime uma religio ayahuasqueira brasileira fundada porRaimundo Irineu Serra Mestre Irineu, em 1930, em Rio Branco, no Acre.Quando o Mestre Irineufez a passagem(faleceu), em 1971, o grupo religioso

    dissipou-se, devido insatisfao de muitos fiis com a nova diretoria. Assim,em 1974, Sebastio Mota de Melo Padrinho Sebastio funda o CentroEcltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS).

    Atualmente, o CEFLURIS comandado pelo Padrinho Alfredo, um dos fi-lhos de Sebastio Mota, indicado por ele, ainda em vida, para ser seu sucessorespiritual e encontra-se presente em todos os estados do pas e no exterior.

    Os rituais do Santo Daime esto centrados no uso da ayahuasca chpsicoativo de origem indgena conhecido como Daime. Mestre Irineu insti-

    tuiu os rituais de concentrao e bailado. O trabalho de Concentrao fazparte do calendrio oficial, ocorrendo todo dia 15 e 30 de cada ms. Nessasesso, busca-se, atravs do silncio, do relaxamento e da meditao, a co-nexo com o Ser interior e uma maior conscincia do nosso Eu superior2,recebendo instrues valiosas para o seguimento espiritual. Os fardados devem

    2De acordo com Groisman (1999, p. 54) o eu inferior est ligado s coisas terrenas, satisfao das necessidades materiais imediatas e dos desejos egostas. O eu superior

    um eu espiritual, um eu divino. Estes estados de ser, chamados eu inferior e eu superiorsistematizam a crena daimista na existncia de um livre arbtrio. Todo esprito encarnadofaz escolhas durante sua passagem pelo plano material. Neste sentido, tanto o eu superior,quanto o eu inferior fazem parte da natureza do ser humano. Porm, a vida cotidiana eiluso do mundo material faz com que o ser humano privilegie as escolhas ligadas ao seueu inferior. O eu superior, por isso, fica encoberto, inacessvel. Com o trabalho espiritual, possvel conhecer o eu superior. Esta descoberta tem fora de revelao da divindadeinterior. A revelao desta dimenso espiritual da existncia modifica a viso de mundodo sujeito e o faz reinterpretar sua vida luz dos novos significados. O eu superior deonde emerge a nova interpretao dos caminhos at ento percorridos, dando sentido a

    eventos e ensinamentos recebidos no passado, mas no compreendidos.

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    estar vestidos da farda azul3e o ritual dura cerca de quatro horas. O bailado

    um trabalho festivo e, conforme Groisman (1999, p. 74), [...] consiste emuma dana repetitiva, na qual a pessoa deve acompanhar, sincronicamente,o movimento coletivo, deslocando-se de acordo com o ritmo dos hinos e omovimento do grupo. Os fardados devem estar vestindo farda branca e oritual dura de oito a doze horas. O Padrinho Sebastio introduziu, na doutri-na, o carter comunitrio, messinico e apocalptico, composto de trabalhoscom incorporaes, passes, voltados para cura e doutrinao de espritos. Ostrabalhos de cura compreendem diversos tipos: Trabalho de Estrela, Crculo de

    Cura, So Miguel e Cruzes. No tempo do Mestre Irineu, os trabalhos de curaeram, basicamente, de Concentrao. J o Padrinho Sebastio, acrescentouuma seleo de hinos que foi, aos poucos, se ampliando at chegar atualverso do Hinrio de Cura. O trabalho de Mesa Branca passou a fazer partedo calendrio oficial a partir de 1997, sendo normalmente realizado no ltimosbado de cada ms. Possui grande influncia do espiritismo Kardecista, noqual Padrinho Sebastio trabalhou um tempo como mdium4, sendo tambmconhecido como banca aberta, j que se abre a mesa para receber todo e qual-

    quer tipo de esprito. A Umbandaime no consta no calendrio oficial e ficaa critrio de cada igreja. um trabalho de gira com o Daime e, tambm, osoutros trabalhos de banca abertaso considerados dentro da Umbandaime,visto que se d passagem para as entidades do panteo umbandista.

    A doutrina do Santo Daime pode ser definida como um movimentoecltico, de carter espiritualista, possuindo uma base crist, combinada comtradies pr-colombianas, esoterismo europeu, crenas africanas e xamanismoindgena (Alverga, 1998).

    Os daimistas definem a doutrina como possuindo uma origem crist.A base da doutrina a Sagrada Famlia. A Virgem Santa Me a Rainha daFloresta, de quem Mestre Irineu recebeu o hinrio Cruzeiro, que reinterpretaa cosmologia crist, sendo considerado pelos daimistas o Terceiro Testamentoou a Terceira Revelao. A primeira revelao teria sido dada a Moiss, no

    3 Nome da vestimenta utilizada pelos adeptos da doutrina, chamados de fardados os quevestem a farda.

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    Aquele que faz o meio de campo entre a matria e o esprito/mundo espiritual.

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    Monte Sinai, dos antigos profetas, concretizada no Antigo Testamento. Asegunda revelao seria a do Mestre Jesus aos apstolos, concretizada noNovo Testamento. A terceira revelao seria a deJuramidam, dada ao MestreIrineu, que seria o prprio consolador prometido por Jesus, conforme diz oEvangelho de Joo. Ento, os hinrios so o Terceiro Testamento.

    O hinrio considerado uma nova Bblia participativa; participativo,porque todos os membros daimistas podem receber hinos, mas nem todosrecebem. O hinrio recebido diretamente do astral, pois se considera que,no mundo espiritual, existe uma linha de trabalhos, cujos ensinamentos so

    transmitidos atravs dos hinos (Cemin, 2002, p. 357). Os hinos devemser consagrados em uma sesso. Consagrar ser aceito pela irmandade,que avalia se este est dentro da linha de hinrios que expressam os valoresculturais e espirituais da doutrina e, desse modo, reconhece-se a pessoa queo recebeu como donodo hinrio.

    Assim, a doutrina do Santo Daime considerada, tambm, comouma ressistematizao dos ensinamentos de Cristo (Groisman, 1999, p.17). De acordo com Goulart (2002), os conceitos do espiritismo kardecista

    juntam-se s concepes crists na organizao das explicaes daimistaspara a construo de uma individualidade moral, como as noes crists dearrependimento e perdo, associada ideia de disciplina; esta est relacio-nada a uma reorientao do comportamento numa nova moral, com basena noo kardecista de evoluo espiritual, que se d atravs de um conjuntode valores que enfatizado com o reforo do catolicismo ortodoxo e que semistura s crenas do curandeirismo amaznico.

    Os daimistas consideram-se como fazendo parte de uma doutrina viva.

    De acordo com Alverga (1998, p. 23), uma doutrina que ainda est sefazendo, [...] que ainda no foi aprisionada na necessidade de se formularteologicamente. Pelez (1994) utiliza a expresso Centro Livre, termo micoque sintetizaria, para os daimistas, as suas caractersticas eclticas e, ao mes-mo tempo, significaria flexibilidade e abertura para continuar incorporandooutras tradies que pudessem contribuir para o seu enriquecimento. Dizo Livro de Normas de Rituais do CEFLURIS5:

    5 Disponvel em: www.wmestreirineu.org. Acesso em: 20 de jan. 2010.

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    O ritual de uma doutrina viva um guia, um mapa simblico que nos ajuda

    a percorrer com maior facilidade os intricados caminhos do conhecimentoespiritual. Uma vez fossilizado, tanto o ritual quanto a doutrina podem setornar um entrave, uma autentica camisa de fora para os seus participantes.Por isso mesmo que devemos evitar os extremos tanto de ignorarmos asprescries to sbias da tradio como a fossilizarmos a ponto de ficarmospresos a frmulas ocas e exteriores. Nesse sentido deve haver sempre um zeloe um respeito em relao quilo que foi prescrito pelos mestres, sem que issoimpea a tradio de manter o contedo de sua mensagem atual e til paraas diferentes necessidades de cada poca (Cefluris, 1997, p. 2).

    Nesse sentido, o Santo Daime apresenta uma flexibilidade em suasadesescosmolgicas religiosas, com uma proposta de unio, de somatizao,visando a um conhecimento espiritual universal e um amplo entendimentoentre as vrias religies. Diz o hino da Nova Anunciao,de Alex Polari de

    Alverga:

    Oxal, Shiva, Juramidam

    Nesta noite vo se reunirPara firmar esta alianaEterna para os tempos que ho de virEu sinto o perfume desta flor

    Jesus Cristo meu Mestre ImperadorO Oriente veio para o OcidenteE foi nele que tudo se encontrouEu sado os Budas e OrixsE glria deles todos dou louvorNo Himalaia, nos Andes, na florestaSe escuta o rufar de mil tamborOxal, Shiva, JuramidamSo Joo foi quem me revelouE o Mestre no final dos temposNo Santo Daime todos trs triunfou

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    A INSERO DA UMBANDA NO SANTO DAIME

    Viva o Rei Ogum/ele veio anunciar/que as linhas esto abertas/que pra ns se aliar6

    A insero da Umbanda no Santo Daime ocorreu no final dos anos 80,a partir da adeso das camadas mdias urbanas, de hippiese mochileiros aoculto daimista. Padrinho Sebastio j realizava trabalhos de Mesa Brancae de So Miguel, frutos de sua experincia com o espiritismo kardecista.Este processo de insero foi bem descrito por Alves Junior (2007), que foimarcado pela presena do macumbeiro Cear, em 1977, na ento Col-nia Cinco Mil (Acre). Cear permaneceu na comunidade daimista porsete meses, realizando consultas e trabalhos voltados para qualquer tipo deaflio, atravs de entidades espirituais (caboclos, orixs e exus), sacrifciode animais, cachaa, charuto, plvora, galo e dana sobre cacos de vidro.Padrinho Sebastio e sua comunidade desordenaram-se em funo da atra-o, do deslumbramento e da iluso exercida pelo Cear, culminando noseu assassinato pelos daimistas (julgados e absolvidos).

    O desarranjo provocado na comunidade estava ligado ao discurso poste-riormente apresentado pelo macumbeiro Cear, do qual estaria travandoum embate entre as foras do bem e as foras do mal. Cear estaria dolado do mal, preferindo dar passagem para vrios exus, significativamenteo Tranca Rua guerreando com o Padrinho Sebastio, com o Daime, coma luz. Porm, as entidades do mal incorporadas em Cear manifestavam odesejo de tomar Daime, o que provocou a perda das foras de Cear e suaconsequente derrota. Ocorrendo o desvelamento de seu feitio, as mu-

    lheres da comunidade anunciaram seu envolvimento com o macumbeiroque foi assassinado pelos maridos trados. Todavia, a guerra no terminoucom a morte do macumbeiro, pois o Exu Tranca Rua passou a obsediaro Padrinho Sebastio, marcando um perodo de imensas dificuldades, demuitas doenas como a malria. Essa batalha astral foi vencida com tra-

    6Hino 5 da Nova Anunciao,de Alex Polari de Alverga. Este hino tambm cantadonos trabalhos do Centro de Umbanda que faz parceria com as igrejas daimistas de Porto

    Alegre.

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    balhos de Estrela (que j havia sido demandado pelo Tranca Rua quando

    Cear era vivo), de So Miguel, visando doutrinao de espritos a partirda incorporao7medinica. A batalha finalmente termina aps trs anos,quando o Padrinho Sebastio, entre a vida e a morte, manifesta a entidadedo Ogum Beira-Mar, que anuncia a doutrinao total do Exu Tranca Ruado Cear, que firma uma aliana no astral com o Padrinho, que passa atuara servio da doutrina.

    Neste sentido, os daimistas interpretaram esses acontecimentos comoa vinda de um feiticeiro, um verdadeiro mago das trevas, que comandava

    uma legio de exus no-doutrinados, exus pagos, para ensinar a destrincharas foras do mal, j que as entidades das trevas aparelhadas por ele, ao toma-rem Daime, eram doutrinadas. Sendo iluminados, abandonavam as prticasmalvolas, com a ajuda do panteo umbandista que passou a ser incorporado doutrina e referenciado nos hinos. Assim, os daimistas entenderam queexiste um outro lado da espiritualidade, a partir de uma dualidade entre aluz e as trevas, e os trabalhadores, a servio da lei de Deus, esto em todasas partes. Os exus so esses espritos que, ao contrrio de outros, trabalham

    em regies densas da espiritualidade, as trevas, ou umbral (ou at mesmoinferno para alguns). No significa que todos sejam malvolos, demonacos,e sim agentes de lei divina que controlam essas regies e nos protegem deseus ataques, trabalhando a fim de contribuir com o equilbrio espiritual.

    A Umbandaime foi legitimamente incorporada a partir da aliana demembros de um terreiro de Umbanda, comandado pela me-de-santo Baixi-nha Igreja Cu da Montanha, fundada em 1984, no Rio de Janeiro. Em1985, Padrinho Sebastio os visita, fortalecendo esta aliana, da qual resultou

    no fardamento da Baixinha e de seus filhos. Com Alex Polari de Alverga,a Baixinha estabeleceu trabalhos de banca e giras, inclusive na outra igrejadaimista carioca Cu do Mar, que foi fundada em 1982. Posteriormente,Baixinha leva a Umbandaime ao Cu do Mapi, sede geral da doutrina,

    7 Incorporao no uma palavra adequada para os daimistas, mesmo que ainda utilizadapor muitos, pois remete a entrar pra dentro, e sim aparelhamento, visto que o mdium consciente, ele ouve e percebe que o que vai falar no seu, que h uma inspirao

    dentro dele, uma fora que o dirige. Ele apenas um veiculo dessa fora, um aparelho.

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    resultando na criao de uma igreja daimista umbandista no Rio de Janeiro,

    comandada pela prpria Baixinha, o Terreiro Lua Branca.Conforme dito pelo Padrinho Alfredo, o Daime e a Umbanda andamjuntos. Porm, a Umbanda no est no calendrio daimista, de forma queno existem datas especficas para realizao de trabalhos de Umbanda, fi-cando estes a cargo da igreja daimista e do dirigente em questo, pois muitasigrejas no toleram a Umbandaime, apesar de j consagrada no Santo DaimeCEFLURIS, resultando assim em variaes de seus rituais.

    A UMBANDAIME NO RIO GRANDE DO SUL

    Como no Rio de Janeiro, com a me de santo Baixinha e a unio de seuterreiro com a igreja daimista e, posteriormente, a criao de sua prpria igreja;em Porto Alegre, tambm encontramos um movimento no mesmo sentido,a partir do fardamento do cacique8Luiz, h sete anos na igreja daimistaCu do Cruzeiro do Sul. A comunidade do Cruzeiro do Sul localiza-se naestrada do Canto Galo, 2805/a, bem na divisa entre Porto Alegre e Viamo.Foi fundada h 21 anos e seu patrono o Tio Chico Corrente9. Atualmente, comandada pelo padrinho10dson. O Tio Chico Corrente quem maisfaz as aberturas das terreiras nas igrejas do Santo Daime, e com quem Luizesteve na sua primeira gira ocorrida na igreja Chave de So Pedro11, apren-dendo a grande semelhana com os trabalhos de desenvolvimento medinicorealizados na Umbanda.

    Luiz tem 65 anos e cacique h trinta anos. Atualmente, dirige o

    Centro Esprita de Umbanda (C.E.U) Sete Raios de Luz, tambm chama-do de Casinha por seus adeptos, localizado na rua Dona Alzira, no bairro

    8 Ou sacerdote da Umbanda. Pai de santo especfico do candombl.9Nasceu em 20/07/1948. Acompanhou o Padrinho Sebastio na criao da igreja da

    Colnia Cinco Mil, no Rio do Ouro e no Mapi. Foi encarregado por ele a gerencia daCinco Mil. considerado um capito-do-mato da doutrina.

    10 Designao para o sacerdoteda doutrina. Tambm refere-se ao dirigente, comandantede cada igreja.

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    Outra igreja daimista localizada em Porto Alegre.

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    Sarandi, em Porto Alegre. O Centro foi fundado em 31 de maro de 1999.

    Ele tem atendimento ao grande pblico essencialmente s teras, quartase quintas-feiras, chegando a atender mil pessoas por ms. s teras-feiras noite, realizam-se trabalhos com Pretos Velhos, a partir de passes e consultas,nos quais se indica a necessidade de trabalhos e demandas. As demandasreferem-se aos atendimentos s quintas-feiras noite, com os caboclos,tambm chamados de trabalhos de desobsesso. s quartas-feiras tarde,trabalham as entidades de Pretos Velhos, sendo esses atendimentos distri-budos entre passes e consultas com nfase na presena do Povo do Oriente,

    visando ao apoio psico-fsico-emocional. Por exemplo, quando eu consulteina tera-feira noite, com o Preto Jos, ele me indicou trs trabalhos e trsdesobsesses. O trabalho era voltado para cura e foram utilizados uma velabranca, uma vela rosa, duas rosas cor de rosa, perfume de alecrim, doispapis brancos e dois papis rosa, sendo realizado com So Joo Batista,representante do Povo do Oriente. Fiquei deitada num colchonete no cho,parte dos papis (um rosa e um branco) foram colocados na minha cabeacomo um turbantee a outra parte foi posta sob a minha barriga; uma vela

    ficou acesa na minha cabeceira e a outra sob os papis na minha barriga.Fiquei segurando uma rosa em cada mo e fui banhada pelo perfume. Pos-teriormente, todo o material foi enrolado nos papis e despachado.

    Sbado tarde, acontece o trabalho de desenvolvimento especificamentepara os mdiuns da casa. O trabalho de desenvolvimento dura trs anos.O centro tem por fundamento a prtica do bem e a caridade, para que oassistido, de acordo com a lei do merecimento, alcance o desejado.

    Dentro da Umbandaime encontramos os trabalhos de mesa branca

    e gira. A gira um trabalho tpico de Umbandaime, de abertura para otrabalho das entidades umbandistas. No Rio Grande do Sul, cada igreja12possui o seu terreiro de cho batido, em baixo de rvores, normalmente namata. As giras ocorrem, em mdia, uma ou duas vezes por ano, numa terreiraescolhida, na qual os participantes de todas as igrejas daimistas e do centro

    12No caso estudado: Chave de So Pedro, Cu do Cruzeiro do Sul ambos em Porto Alegree Cu de So Miguel, em Dois Irmos. No Rio Grande do Sul, tambm temos a igreja

    de Cachoeira do Sul, que ainda no possui sua terreira.

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    de Umbanda se renem. O ritual acontece, preferencialmente, num sbado

    durante o dia manh ou tarde. mantida acesa uma fogueira na entradada terreira. Os participantes devem estar vestidos de roupa branca e psdescalos, ficando dispostos em crculo com homens de um lado e mulhe-res de outro. Os msicos e as puxadoras ficam num canto, separadamente.So cantados hinos e pontos do Daime e da Umbanda com instrumentosmusicais como violo, tumbadora e bong. H uma diferena entre pontose hinos. Explica o Luiz13:

    O Padrinho Sebastio determinou um caderno chamado de pontos-hinos.E pra minha surpresa esses hinos eram estruturados assim: pontos-hinos. NaUmbanda tem uma diferena, sempre tudo ponto e l no Daime tem pontose tem hinos. A diferena que os hinos tem um padro musical permanente:as marchas, as mazurcas e as valsas, uma coisa tradicional at da musicalidadel do norte, nordeste, enquanto que na Umbanda tem um tom assim quevrias casas mudam esse tom. Por exemplo, aqui ns no usamos tambor eem muitas casas de Umbanda se usa tambor. T certo, no t errado. quecada casa, cada corrente que no usa, porque o tambor acelera bastante a

    mediunidade, bom para incorporao, mas para minha viso, pros voos altos,Oxal, quando eu dirijo a gira no Oxal, eu peo para parar os tambores. Praminha surpresa, esses hinos em pontos eram ordenados por falange, pontosde Ogum hinos, pontos de Iemanj. A eu vi aquilo e como ns. Porque nsaqui no desenvolvimento medinico, sbados tarde, a gente canta todas asfalanges pra ver quem vai chegar nos aparelhos, nos mdiuns. A, quando euvi isso, olha aqui a primeira similitude.

    O comandante da gira no precisa, necessariamente, ser cacique, pai-de-santo ou chefe de terreiro, mas se tiver um fardado que tambm o seja muito bom, com a presena da abertura e do fechamento do padrinho emadrinha da igreja, visto que preciso firmeza e domnio, pois acontecemmuitas variveis durante o trabalho. Neste sentido, quase sempre as girasso dirigidas pelo Luiz, pelo seu caboclo o Cobra Coral, que o mesmo

    13Entrevista concedida em doze de abril de 2011. Todos os depoimentos seguintes se

    referem entrevista do Luiz, exceto o que referenciado como informante.

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    que dirige os trabalhos de seu centro de Umbanda. Porm, na ltima gira,

    ocorrida no final do ano de 2010, aps sete anos de trabalhos daimistas,apareceu outro caboclo, atravs do aparelho do Luiz para dirigir. Veja o queo Luiz diz sobre:

    Comigo aconteceu uma coisa interessante, porque eu trabalho com o CobraCoral, todos trabalhos fui eu, foi ele que eu trabalhei, n, a de repente um outrocaboclo se apresentou, era um Oxssi tambm, porque eu tenho facilidadescom Oxssi, porque tem toda a histria do mdium tambm, eu sou taurino,o planeta Venus, ento a linha do Oxssi bem integrada. A chegou um outrocaboclo que no esse aqui e dirigiu o trabalho quando ns fizemos a ltima girano ano passado no So Miguel, esse caboclo chegou e falou com o padrinho

    Alan: eu vim e vou dirigir o trabalho. No final desse trabalho, o Alan veioe falou comigo; disse assim: quando teu caboclo chegou, eu vi que era umcaboclo muito do Daime. Tem at uma discusso nos fruns da internet seo caboclo que tu recebe no Daime o mesmo da Umbanda. Eu t bem nesseaprendizado. Quando o meu se apresenta, que j dirigiu vrios trabalhos eraesse aqui, agora aparece esse outro o Folha Verde. J o Preto Velho sempre

    foi outro. Aqui eu recebo o Pai Joo, l no Daime eu recebo o Pai Joo daMata. Ele mais solto, ele mais alegro. Eu fico especulando, seria o mesmoe o Daime soltou ele mais? Como que isso, n? um estudo que t emandamento ainda. Tem uma linha que diz que tem caboclos, pretos velhos,crianas prprios. J criana, eu sempre recebo o meu daqui, o Pedrinho, noSanto Daime o mesmssimo, no muda nada. Ento, um estudo que estem andamento ainda.

    A gira aberta como o ritual daimista, com trs pais-nossos e trs ave-marias intercalados; em seguida feita a prece de critas e a distribuiode Daime, seguindo para a chamada das entidades. No existe uma nicaordem correta de chamada das entidades nas giras, sendo estas variveisconforme a fora do ritual. De acordo com o Luiz, primeiro devemos sau-dar os protetores da porteira, para que nada possa vir de fora interferir notrabalho espiritual. Neste caso, os Exus tomam conta da porta para fora e opai Ogum da porta para dentro da casa. Assim, sada-se aos Exus, inicial-

    mente, e depois a Ogum. A sequencia dos chamados, da por diante, varia

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    de casa para casa e, ao final, tanto podem vir limpar a corrente os Exus ou

    os Ers (crianas) com sua alegria (trabalhando, incorporando nos mdiuns),descarregando qualquer energia mais densa que tenha ficado. A chamadainicial no para os trabalhos com os Exus, mas sim para pedir licena paraa corrente trabalhar. Como necessrio ter um conjunto de hinos, quemestiver sintonizado ou autorizado pelo padrinho da igreja faz a seleo. Comoexemplo, numa gira no So Miguel, havia a seleo e, na hora, por intuio,foi decidida a ordem: primeiro as foras de limpeza e proteo e cura, comOxssi, Xang, Ogum, Omolu e Yans; seguindo com as mames: Oxum,

    Yemanj, Nan. Depois, Oxal s com vozes e por fim as Crianas.O centro de Umbanda do Luiz trabalha com a linha da Umbanda Bran-

    ca e, neste sentido, no so recebidas certas entidades. Porm, os trabalhosde gira so eclticos, somando as linhas da Umbanda Branca, UmbandaCruzada e Nao. Diz o Luiz:

    Aqui tambm ns no trabalhamos com a linha de Iemanj velha, que soas Nans, que um aparelhamento maravilhoso, que uma luz s. A Nan

    incorporada no precisa nem falar, a coisa sai da gente pra pessoa. Mas comoa Nan tambm trabalha perto do Omolu e perto da barra do cemitrio e pp p, na linha branca de Umbanda ns no mexemos com ela. Mas umacoisa bonita desse estudo de como se manifesta com o Daime essa linha comoo Omolu que uma linha bem africana e essas linhas mais tradicionais do

    Xang, Iemanj, Oxum. Ento, no Umbandaime soma tudo e se apresentatudo, vai tambm da condio medinica e da percepo. Eu compreendique somos aparelhos universais e at no Daime muitas vezes acontece assim,chega um irmo que tem uma ligao grande com Ogum e da ele acha que

    ele s vai receber Ogum e ele aparelha Ogum nos trabalhos. Ento, uma parteda misso que tem nos cabido que ns vamos l e os mdiuns aqui pegamtodos, n? E eles perguntam como que isso? isso, ns somos aparelhosuniversais. Ento, conforme a necessidade e a presena do trabalho que tuest, vai chegar o Omolu, se for preciso, vai chegar uma linha de Oxal que uma linha muito elevada.

    A inteno de um trabalho de gira que todos tomem Daime e todos

    aparelhem, mesmo aqueles que nunca tiveram este tipo de manifestao,

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    visto que o Daime aflora a mediunidade, atravs de sua atuao sobre oschacras14, possibilitando esse desenvolvimento medinico a todos que parti-cipam dos trabalhos daimistas. Cada indivduo tem um chacra mais oumenos aberto, determinando mais a presena de Iemanj, Oxum, Ogume, no momento que o Daime abre isso, as pessoas aparelham. Portanto,o Daime atua em todos os chacras, alm do indivduo compreender suasaes, porque que primeiro esse ou aquele chacra sempre h algunsbloqueados e outros abertos e, nesse caminho do Eu Sou, do Eu Superior,o sujeito deve estar muito integrado e o Daime ajuda com a presena desses

    seres espirituais.Os daimistas pertencentes linha da Umbandaime acreditam que naprpria estrutura do trabalho sempre existiu o chamamento das entidades,mesmo na linha do Mestre Irineu, referente ao trabalho anterior ao Padri-nho Sebastio, em que no h incorporao. Assim, havia esse chamamentode seres no hinrio do Mestre, por exemplo, o hino 63 Princesa Solonae outros, citando vrios nomes prprios da regio Amaznica. O hino 33 Papai Velho15 interpretado como um Preto Velho falando e depois o

    Padrinho Sebastio soltou mais a coisa. Deste modo, a Umbandaime abrea possibilidade desses seres atuarem num trabalho com finalidade de cura.Esses seres protetores auxiliam na limpeza e harmonizao do aparelho,na caridade, na evoluo e no aprendizado. A diferena de aparelhar como Daime e sem o Daime que o Daime, sendo um veculo expansor daconscincia, facilita bastante. Ento, o sujeito tende a ficar mais fortementeaparelhado, incorporado com a presena do ch, enquanto que numa ses-so normal de Umbanda prescinde de mais ritual, de um preparo maior,

    de mais desenvolvimento. A fora com que as entidades chegam muitomaior: como se no houvesse mais nenhuma barreira, que seriam os planos, para

    14So pontos em que se ligam o corpo fsico e o corpo astral, ou sutil, e centros de energiafsica. So sete chacras principais.

    15Papai velho e Mame velha/vs me d o meu basto/sou eu sou eu sou eu/com minhacaducao/at que enfim at que enfim at que enfim/eu recebi o meu basto/pude melevantar/com minha caducao/reduzi meu corpo em p/o meu esprito entre flores/soueu sou eu sou eu/ filho do rei do amor/mame velha sempre d/papai a caminhar/sou eu

    eu sempre digo/eu nasci em Natal.

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    quebrar um pouco daquela energia, tal efeito que se assemelha a de um meteoro

    vindo do Universo ao encontro da Terra16

    . muito comum as incorporaesno Daime serem acompanhadas de miraes17intensas, o indivduo estaparelhando e ao mesmo tempo esta mirando a entidade. De acordo com oLuiz, so pouqussimos mdiuns de seu C.E.U que veem as entidades, masquase todos aqueles que vo no Daime tm essa vidncia.

    Uma das vidncias bem interessantes que eu troco informaes com os irmos que tu aparelha e daqui a pouco tu enxerga a entidade. A pergunta onde

    que tu tava? Tu sentiu que tava incorporado e tu enxergou a entidade, queo Daime te propiciou sair e tu enxergar em ti. uma coisa fantstica, falandoparece uma loucura, mas acontece.

    Deste modo, o exerccio da mediunidade nico no Daime, pois oindivduo est exercendo a mediunidade de incorporao, sob o efeito doprprio Daime, que arregimenta a legitimidade da incorporao. Veja odepoimento do Luiz:

    O Daime surpreende muito, porque o irmo aparelha l e no importa opassado dele, se ele tem preparo ou no, ns botamos gente na frente dele,gente pra tomar passe, pra consultar. Aqui na Umbanda no primeiro anons no colocamos pessoas na frente. Primeiro o mdium tem que estar bempreparado. No segundo ano ele vai ser passista, o caboclo dele vai trabalharnas demandas. No terceiro ano, que ele vai dar consulta. No que as entidadesno pudessem, mas para firmar o aparelho. J no Daime pelo transe medinicoproporcionado pelo Santo Daime, a legitimidade que ta expressa to grande

    ali que se permite. At porque muitos que esto participando de uma giratambm tomaram. Ento pode ir l na frente. Eu j levei mdium meu quet desenvolvendo aqui e o que que tem? Isso eu aprendi l, n. Que que tem?Ele t aparelhando dentro da fora do Santo Daime.

    16 Informante.17

    Nome dado para as vises contempladas sob a fora do Daime.

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    Assim sendo, na gira todos os participantes tomam Daime e aparelham,

    podendo dar consultas e passes, sendo aparelhagens conscientes (no lem-brado de tudo, mas de grande parte), pois esta traz o aprendizado, se notanto faz se um humano ou uma cadeira.

    Eu posso dizer que tem aqueles mdiuns to duro, to necessitados deaconselhamento que ns ficamos recebendo Preto Velho que d exemplo, qued conselho pra um monte de gente e muitos servem pra ns e ns estamosali ouvindo.

    colocada, no dia da gira, uma pequena mesa de madeira, como umaltar do centro ou uma pedra, que serve de mesa, na qual temos a cruz decaravaca18, uma vela acesa e uma garrafa de Daime que ser distribuda pelopadrinho aos participantes. O ritual possui um despacho de Daime para oaparelho e, no decorrer da sesso, as entidades quando descem pedem paratomar Daime e batem cabea para ele nessa mesa/altar que acaba se tornan-do um cong. Quando o sujeito est aparelhado, a bebida tomada para aentidade e no para o aparelho. uma coisa maravilhosa de perceber, eles

    tomam aquilo e parecem que j tomaram ou quando tiveram vida aqui naterra tomavam e a ele pediu para riscar o ponto dele. L dentro do trabalhodo Daime pra o caboclo se identificar quem era.

    O ponto riscado a designao para os smbolos riscados pelos cabo-clos como forma de identificao, de marcar um ponto local e de fixar suavibrao. So smbolos que trazem a fora da natureza representada pelosol, pela lua, pela estrela, pela gua, pela flecha, pelo machado etc. Na Casi-nha, a entidade risca o ponto com giz no cho, bem sua frente. Na gira

    daimista, no necessariamente h ponto riscado, visto que esses smbolosso cantados, diferenciando apenas o modo de demonstrar. Deste modo, aentidade riscar ponto, quando assenta, no uma regra ou comportamentocorriqueiro nas terreiras daimistas. Em algumas, o ponto nunca riscado;em outras, s vezes, e, em algumas, sempre; normalmente no existe um

    18Ou Santo Cruzeiro, a cruz que possui dois braos sobrepostos, sendo o de cima maiorque o de baixo. um dos principais smbolos daimista, significa a volta de Cristo, o

    Mestre Irineu, bem como o trabalho do discpulo sobreposto ao do Mestre.

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    local definido. Nas giras, no Rio Grande do Sul, os pontos normalmente

    so riscados e colocados na frente da referida mesa/altar.A gira encerrada como os fechamentos dos trabalhos de concentraoe bailado, tendo o cuidado de averiguar se todos esto bem.

    Os trabalhos de mesa branca normalmente ocorrem no ltimo sbadode cada ms, na igreja de cada comunidade daimista, durando cerca de seishoras. A mesa branca ou banca aberta, como tambm conhecida, que aexpresso quando o dirigente do trabalho diz a banca est aberta, est, ento,permitida a incorporao. Neste sentido, os trabalhos de Estrela, de Cura,

    de So Miguel acabam sendo trabalhos de banca aberta e os trabalhos deconcentrao e bailado so de banca fechada. Portanto, abrir a banca signi-fica que os membros participantes que aparelham esto autorizados a darpassagem e, tambm, que o lado espiritual pode se manifestar. O dirigentedo trabalho o padrinho quem d o comando e tambm fecha a banca.Teoricamente, qualquer pessoa poderia receber alguma entidade no meio dotrabalho de banca aberta, mas como se trata de um trabalho de doutrinaoespiritual deve haver um esforo em dar passagem s manifestaes de cura

    e atentar fiscalizao da casa que possui seu direcionamento que ordenao momento certo de cada tipo de manifestao.

    Os trabalhos de banca aberta iniciam com a orao do Daime (compostapor uma seleo de hinos que abrem todos os trabalhos daimistas), passandopara um momento de oraes espritas (prece para o comeo da reunio,prece para os mdiuns e prece para afastar os maus espritos todas de AllanKardec). Posteriormente, inicia a parte dos caboclos e entidades19e depoisretorna para os hinos de fechamento daimista o Cruzeirinho , sendo

    este um momento bem alegre, em que todos de p, em crculo, veem-separa firmar a corrente. Assim, quem ainda no voltou vai voltando e sefirmando novamente. Encerra-se com as rezas finais. Na igreja do CantaGalo, o padrinho dson abre e fecha os trabalhos de banca, mas na parte deincorporaes do trabalho ele entrega o comando para o caboclo do Luiz.

    19Podem ser entidades, seres de qualquer religio. Por exemplo, no Cu de So Miguel,uma fardada sempre aparelhava um tipo de rptil, um ser extra-planetrio. No hinrio

    de So Miguel, comumente descea falange de Miguel, que so soldados de luz.

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    Para que um trabalho transcorra em paz, harmonia e equilbrio e para

    que as entidades espirituais possam atuar em benefcio das pessoas, preci-so que a tronqueira20esteja firmada, porque assim ativada, ela um portalpara o vazio relativo regido pelo Exu guardio ligado ao orix de frente domdium dirigente do trabalho. Um Exu guardio assentado na tronquei-ra, do lado esquerdo de quem entra no salo da igreja, e vrios outros sofirmados dentro dela, sendo que estes esto ligados a outros exus guardiesde reinos e de domnios regidos por outros orixs. Os outros no podemser assentados, seno dois vazios relativos se abrem ao redordo espao espi-

    ritual internoda igreja, e a ao de um interfere na do outro. Um s exuguardio assentado, e todos os outros so apenas firmados na tronqueira,pois, se dois forem assentados na mesma, a ao de um pode interferir naao do outro vazio relativo aberto no lado de forada igreja. esquerda dequem est do lado de dentro do espao ritual voltado para a porta da rua.Quanto ao terreiro, deve-se acender apenas a vela do cruzeiro. No regrater o ponto na porta da rua, opcional e a casa de exu no pode ser dentrodo salo, tem que ser sempre do lado de fora, ao lado esquerdo da entrada.

    Cada igreja tem uma maneira certa de trabalhar, de acordo com suademanda. Por exemplo, a busca da cura de cncer de uma mulher no SoMiguel, onde durante o ritual ela permaneceu deitada num colchonete evrias entidades foram dar passes e trabalhar nela, e o caso de uma fardadaque, no momento em que perdeu a guarda do filho ao pai, pelo fato delae o menino frequentarem o Santo Daime, foi realizada uma mesa brancapara destrinchar essas energias de litgio.

    Cada grupo tem sua metodologia para dinamizar a evoluo do seu

    trabalho que, por ser ecltico, tudo pode ser feito, desde que respeitando aresoluo da casa.

    A incorporao no trabalho sempre vai depender da ordem do comandode cada igreja. Se o padrinho no d o comando, o mdium deve segurar asentidades que querem chegar, exigindo uma disciplina medinica. Como

    j referido, os trabalhos do Santo Daime vo afinando e iluminando os

    20A tronqueira um espao para cuidar dos espritos trevosos. Foi inicialmente criada na

    mata, na Colnia Cinco Mil, a partir da solicitao do Exu Tranca Rua do Cear.

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    chacras, ocorrendo um afloramento da mediunidade. Acontece que esses

    seres acabam se apresentando em todos os trabalhos daimistas. Tu fica, porexemplo, de fiscal21na porta ou mesmo de fiscal no salo, tu sente a diferenaque tu t acompanhado e mesmo irmos que no esto com a sua mediunidadetrabalhada eles percebem que tem um ser espiritual que est com eles, daquia pouco eles aparelham. Igualmente, acabam ocorrendo incorporaes emtrabalhos de banca fechada que precisam ser disciplinadas, sabendo os mo-mentos certos de dar as passagens. Existe uma diferena de quem est com amediunidade aflorando e de quem est com a mediunidade j estudada o

    mdium tarimbado. Nesse sentido, aqui no Rio Grande do Sul, recomenda-serespeito com esses irmos, pacincia, doutrina, esclarecimento e instruo(importncia de fiscais bem preparados). O padrinho dson diz que no sedeve aparelhar, mas se um irmo l aparelhar, vamos cuidar, vamos respeitar

    porque aconteceu, ali que precisava, mas a a regra geral que no.Quando as manifestaes perturbam os trabalhos, estamos na presena

    de seres de pouca luz, chamando a ateno e desviando irmos do sentidoverdadeiro de se encontrar com seu Eu Superior, com Deus. Muitos chegam

    ao Daime carregadssimos, com todos os seus demnios, com seus obsessores,e num trabalho daimista eclode, eles vm pra fora, pois, se esto se mani-festando, porque preciso descarregar o mdium, sendo importante osirmos estarem bem firmados no Daime: toca seu marac e fica firme e odemais vai ser tratado pelo acompanhamento espiritual da casa. O padrinhodson fala:O Daime leva, o Daime traz, ningum deve se assustar, porquedentro do prprio trabalho o irmo vai tratar. Uma vez ou outra, os mdiunsexperientes, como o Luiz, aparelham diante a necessidade do irmo, para

    ficar perto dele. J observei no Cu de So Miguel, o padrinho Alan dandouma dose a mais de Daime ao manifestado, como forma de doutrinao.Se o ser de luz, toma e se aquieta, se no , se recusa a tomar. Tambm, seencaminha o mdium ao Cruzeiro, para que se faa a limpeza da histria eeste possa voltar numa boa ao trabalho; se a pessoa ainda estiver em alguma

    21Fiscal o nome dado ao fardado que recebe a funo especifica de ajudar durante umasesso no bom andamento dos trabalhos auxiliando os participantes emperreias(situaes

    difceis) e zelando pelo cumprimento do ritual.

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    passagem, encaminha-se ao quarto de cura, at que esteja em condies

    de se recompor.O trabalho de quinta-feira noite, na Casinha, um trabalho dedemanda, de desobsesso. So os caboclos em p, com pontos riscados nocho, puxando os demnios das pessoas que vem feio, em atuaes, ma-nifestaes, mas esto sob controle dos caboclos e da proteo da casa. Numtrabalho como esse, vem para fora e passa no mdium, a partir de uma fsicaespiritual, o mdium ta preparado e a Umbanda tem seus rituais, indo para anatureza, para o mar, para mata, ficando o mdium bem limpinho depois.

    Ento passa da pessoa para o mdium indo embora e no voltando porqueessa fsica da passagem faz com que aquele ser se desligue e a pessoa sai limpa.

    E l no Daime, o prprio Daime faz a limpeza. O poder da corrente porque oDaime extremamente, aqui tambm muito cantado. Esse trabalho aqui dequinta se canta um nico ponto o tempo todo. Ento o trabalho dos irmosfirmes l tocando seus instrumentos musicais, os maracs e o canto vai fazercom que esse ambiente, faz com que haja proteo, do irmo ver l suas vidas

    passadas e de vez em quando um de ns que t mais firmado assim, nessetrabalho de Umbanda vai l d um passe, ajuda a processar ali. Por isso temosque ter muito cuidado ali, os fiscais tm que ter muito cuidado de no interferiralm do ponto, n. O irmo t ali se estribuchando e tal vamos cuidar que eleno se bata, que ele no bata a cabea e tal, mas vamos com calma, porque elet sendo trabalhado ali, ele e os seres que o envolvem.

    Muitos no Daime tm viso dos obsessores dos irmos, requerendo umcuidado enorme de revelar ou no. Deve-se, de preferncia, ficar quieto, ob-

    servando se eles vo sair ou no, raramente interferindo, deixando o Daimetrabalhar. Dependendo da situao, pode avisar: , meu, te cuida a, v oque t acontecendo, vai perceber o que tu t atraindo, mas, diferentementeda Umbanda, no Daime, isso delicadssimo. Cada rgo humano tem umser e quando existe uma doena, os seres negativos esto dominando ali eas fixaes, as cargas mais pesadas tambm esto nos chacras. Assim, todotrabalho de Daime acaba sendo um trabalho de cura, desobsesso e caridadee na Umbanda tambm.

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    Como no Santo Daime no tem uma sequncia de trabalho de banca

    aberta, eles ocorrem, em mdia, uma vez por ms, dependendo do calend-rio oficial. Ento, muitas entidades chegam e falam para seus aparelhos quequerem trabalhar, que a pessoa procure uma casa. Uma das coisas bonitas quando o cara se apresenta pra mim pela fora do Daime: eles mandaram eufalar com o Sr. da eu j sei o que , n. O preceito do Luiz no trazer ummdium em potencial do Daime para a Casinha, mas muitos acabam indo.

    Quando eu comecei a ir mais intensamente, eu pensei: bom, eu vou levar

    alguns mdiuns, ento pode ser que algum se encante pelo Daime e deixe aUmbanda, por enquanto no aconteceu. Aconteceu que vrios de l vieram praUmbanda e tambm no deixaram o Daime. Que o exemplo que eu mesmodou. Eu sou tesoureiro da igreja do Cruzeiro do Sul. T bem entronhado le fao as duas coisas. Logo que eu comecei, uma pessoa me falou assim: ahs tem uma pessoa no Brasil que faz as duas coisas que a Baixinha, a eufalei assim: se um macaco faz, todos podem fazer e o que t acontecendocomigo e com outros mdiuns aqui de fazer as duas coisas.

    Nos rituais umbandistas do C.E.U do Luiz, so cantados alguns hinosdaimistas, juntos com os pontos de Umbanda como o hino recebido pelaBaixinha referente a Iemanj: Vem levantando do fundo do mar/a estrelaazul em seu trono divinal/l vem, l vem para nos curar/a estrela azul emseu trono divinal/ela vem curar quem acreditar/a estrela azul em seu tronodivinal. Quanto s implicaes do Santo Daime no trabalho de Umbanda,o Luiz explica:

    A experincia que a gente tem tido, n. Tu vai l num trabalho de Daime,vai de sexta pra sbado, faz um trabalho de 4h, seja o que for, a, 8h depois,tu vem aqui num trabalho de Umbanda, tu sente que a entidade chega plenaem ti, porque o Daime te depurou, n. Tu vomitou l. Isso uma coisa que aspessoas no entendem, tu botou pra fora as porcarias, entendeu. Tu te aliviou,dentro do trabalho, aquela msica. A tu chega aqui, para um trabalho, porexemplo, um trabalho que eu fiz aqui no dia de Oxum, antes eu tinha feitoum trabalho forte no Daime, noite, l e aqui, de tarde, l terminou 8h, 9h

    da manh e depois de tarde, aqui. Da tu sente que aquela vibrao interna da

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    entidade vem contigo e a quem chega ali na tua frente s ganhou, n. Onde

    que tu preparou isso? L. fantstico essa unio. A prtica me mostrou isso.Teve um trabalho que a gente fez, levei 4, 5 mdiuns daqui. Todos vieramcomentar comigo: Oxum me pegou e ela trabalhou que vinha de mim paraas pessoas, transbordando, n. E o que tinha acontecido? Tinha feito umaconcentrao maravilhosa, atravs do Santo Daime, e da tu v que unio linda,n. Fomos l, trabalhamos, vimos coisas, ouvimos coisas pra ns mesmos ea viemos aqui e transpassamos isso pra quem entrou a. Ns estvamos numpreparo intensssimo, viemos pra c e trouxemos essa fora pra quem chegar.Isso um aspecto lindo disso.

    SINCRETISMO, BRICOLAGE, BUTINAGE

    O sincretismo, para Bastide (1970, p. 101), [...] consiste em unir ospedaos das histrias mticas de duas tradies diferentes em um todo quepermanece ordenado por um mesmo sistema. O autor desenvolve o con-

    ceito ao analisar a relao dos afro-religiosos com o catolicismo, propondouma distino entre dois tipos ou dimenses de sincretismos: o sincretismoreligioso e o sincretismo mgico. O sincretismo religioso seria um movi-mento orientado por uma inteno combinatria, associativa, a partir decosmologias justapostas, hierarquicamente caracterizadas por um principiode ciso ou de corte, obedecendo a uma lgica da acumulao e da adio,mantendo a compartimentalizao. O sincretismo mgico uma espcie devontade de formulao de snteses, centrada na resposta pragmtica a certos

    problemas individuais. uma acumulao de poder simblico, caracterizadopela metfora da bricolage de Lvi-Strauss (tronco e os ramos), obedecendoa uma lgica de correspondncias, mantendo o compartilhamento (Mary,2000). Os dois modelos de sincretismo, o religioso (de ciso) e o mgico (debricolage), no so rgidos ou estanques. Muito dificilmente poder-se- afirmar,com certeza, a existncia de um sistema-partida (Mary, 2000; Sanchis, 1994).

    Groisman (1991, p. 89) prope a ideia de ecletismo para a cosmologiadaimista, retirando a noo do prprio estatuto do CEFLURIS. Assim, o

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    Santo Daime , segundo sua autodefinio, uma instituio ecltica. O

    ecletismo evolutivo, de acordo com Groisman, possibilita a convivnciaentre diversos sistemas cosmolgicos, tais como a Umbanda, o espiritismo eo cristianismo, sendo um sistema totalizante, que engloba todos os aspectosda vida do sujeito.

    preciso, no caso, abordar com muito cuidado um possvel carter sincrticoda doutrina. A idia de sincretismo pode indicar a rejeio de uma linha mestrade aglutinao de concepes espirituais diferentes, o que no ocorre no campo

    simblico da doutrina e que a caracteriza como fenmeno religioso sui generis[...] O ecletismo que envolve a doutrina dinamiza o processo ritual e abreespao para que concepes rituais diversas [...] manifestem-se no seu interior[...] Este ecletismo ento significa um marco de um grupo em expanso, namedida que existem mecanismos que os transmitem mesmo queles que seengajam, oriundos de outras realidades culturais (Groisman, 1991, p. 233-234)

    Para o autor, a bricolage caracteriza a constituio do sistema reli-gioso daimista. Para ele o fenmeno implica uma bricolage simblica,

    pensando tal bricolagem no em termos de uma estrutura lingustica, masem termos de um cdigo emblemtico dinmico, que, antes de produzir epromover tradio, impulsiona e aglutina pessoas em torno de uma din-mica de modernizao pragmtica. Em seu interior, esse processo pareceser motivado, de um lado, por uma espcie de empirismo espiritualista ou uma tendncia de explorao dos limites da conscincia humana, e,por outro, uma busca de desenvolvimento espiritual ou uma ideologiade integrao e reparao csmicas no contexto da nova conscinciareligiosa (Groisman, 2004).

    Luiz Eduardo Soares (1994) coloca que a bricolagem, no Santo Daime,parece ser o modo da cultura alternativa realizar-se, inclusive a si prpria.Sendo assim, entende-se porque o misticismo ecolgico pode ser, em certonvel, tributrio de uma cosmologia estruturada e, em outro nvel, refe-rncia para errncia, de cujo itinerrio resulta um recorte particular, umacombinao prpria, um arranjo singular dos paradigmas cosmolgicos.

    Por isso, essa cosmologia antecede e sobredetermina as demais aquelas

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    que os peregrinos da Nova Era puderem deslocar no caminho e encaixar

    na grade mvel, a que recorrem como fonte. A operao de encaixe temde ser, necessariamente, sempre diferente. Alguns procedimentos tendem,porm, a ser comuns.

    Para Soares (1994, p. 210), no Santo Daime esse misticismo encontraum sistema igualmente flexvel e, alm disso, o enfrenta com seus prpriostemas e focos e o resultado se inverte: a provisoriedade tende a ser substitudapela adeso, pensada e vivida como permanente e definitiva, e a converso setorna a estratgia de alternao (ressocializao radical). Ele diz: O Santo

    Daime que d as cartas da hermenutica cruzada, muitas vezes, termina poranular o potencial de convivncia e sobredeterminao da cultura alternativae, por englob-la, subordinando conjuntos de elementos da cosmologiaalternativa a sua prpria ordem simblica.

    O conceito de butinage foi pensado por Edio Soares, Gilbert Rist eYvan Droz, na Sua, num contraponto ideia de bricolage religiosa. Apalavra butin oriunda do baixo-alemo. Ela designa tambm o comparti-lhamento, o compartilhamento de alguma coisa que foi pega outra pessoa

    ou natureza. Por exemplo, o butin de um roubo ou de uma colheita, ou obutin que trazem as formigas, as abelhas. Da palavra butin decorre o verbobutinar. Butinar dividir o que recolhemos. As abelhas butinam as florespara procurar alimento dentro da flor e as dividem com todos os outrosbutinosos (Soares, 2009, p. 29).

    Segundo Edio Soares (2009, p. 67-68), a noo de bricolage, tal qualela foi concebida por Claude Lvi-Strauss de acordo com o qual pr-prio a bricolage, religiosa ou no a recomposio pela permutao dos

    elementos ou dos registros religiosos preconcebidos culturalmente, querdizer em conformidade com as origens. Nesse sentido no tem nada de umacomposio crente deliberada e, sobretudo, sem obrigaes. A bricolagelvi-straussiana se exerce no interior de um sistema simblico preconcebido a memria autorizada de uma tradio dada onde o bricolador quenada tem de um sujeito autnomo joga com os materiais socioculturaisdo qual ele dispe. A bricolage , neste sentido, um jogo dialtico que visaa refazer o que j foi feito. Ou seja, a estruturar, desestruturar e reestruturar

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    o que j est ali. Essa lgica combinatria no visa, ento, s margens ou

    s bordas do inesperado, o que opostamente caracteriza um pensamentoengenhoso. A butinage outra coisa alm do que um arranjo de elementosem um universo religioso fechado. Ela , a princpio, o que desvia, o quetira a repetio, pura observao do que est prescrito por uma tradioreligiosa dada. O que caracteriza a butinage , certamente, o compromissoperptuo com a estrutura religiosa e suas observaes, sendo essa estruturacomposta de mltiplos registros religiosos.

    Neste sentido, a butinage um arranjo entre o previsto e o imprevisto,

    entre o garantido e a abertura, o estruturado (a tradio) e a estrutura (arealidade cotidiana do butinador), quer dizer, entre opre o visvel, e tam-bm os invisveis. nesse arranjo, os mltiplos entre, que se representa acriao, a fabricao. Como podemos observar, na insero da Umbanda noSanto Daime, a partir de uma presena inesperada o macumbeiro Cear, ainterpretao daimista dessa experincia e, posteriormente, a adeso da mede santo Baixinha ao Daime, revigorando a importncia que o Exu passoua ter na doutrina, bem como o panteo umbandista e o desenvolvimento

    medinico a incorporao, criando a Umbandaime.Como um beija-flor, [...] o praticante butina de uma denominao

    religiosa a outra, recriando e fabricando sentido, no perfume cada vez maisespecfico e renovado (Soares, 2009, p. 267). O beija-flor, na doutrina dai-mista, visto como o esprito do prprio ser divino polinizador do MestreIrineu e do Padrinho Sebastio, contido na ayahuasca/daime e em sua ex-panso para o mundo inteiro. Os daimistas identificam com essa metfora,considerando-se hoje em dia todos [...] beija-flores que esto fazendo o seu

    jardim e polinizando outras flores. O jardim pode ser associado ao processode butinage e s flores as outras cosmologias religiosas. Como analisou Goulart(2004, p. 113), a Umbandaime vai [...] fundir elementos da Umbanda edo Santo Daime, criando outra esttica e simbologia ritual, e reordenandoa cosmologia destas duas religies num novo sistema.

    Numa lgica prpria, do que Wladimyr Sena de Arajo (1999) definiucomo cosmologias em construo, a doutrina daimista engloba e ressigni-fica elementos provenientes de diversas tradies: de grupos indgenas, da

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    tradio afro-brasileira, do espiritismo kardecista, do esoterismo europeu,

    do catolicismo popular e do universo da nova era. O Santo Daime estsempre em construo, a partir de uma doutrina viva. A Umbandaimeest em pleno desenvolvimento e sendo construda e reconstruda a partirda experincia cotidiana, na prtica. De acordo com Law (2004), prticassobrepem-se de diferentes e imprevisveis maneiras, portanto, h sempreinterferncias entre as diferentes realidades. Podemos ver como a prtica naUmbandaime, no Rio Grande do Sul, amplifica-se para alm das relaessociais, para ser construda na rede de elementos humanos e no-humanos.

    Veja o depoimento do Luiz:

    um estudo que t em andamento, voc sabe que a gente t aprendendo, tvendo. Eu vejo as correlaes. Por exemplo, o Daime tem a linha do Tucum.O Tucum, uns dizem que o cip, outros dizem que uma arvorezinha quefaz que nem um cipozinho, assim, que no quebra, que uma fora. Quandoum ser desses vem em ti, uma fora assim. Eu costumo comparar com aGuarda Pretoriana, sabe, aqueles soldados fortssimos. Puxa o que isso? Quemso eles? Como que eles so? Ser que eles so da linha do Ogum? Em qu?Da linha de Ogum, de Oxossi, de Xango? Que so caboclos fortes, lutadores.Ento tem essa linha, eu estou estudando isso. Recebendo eles, s vezes eu taparelhando, eles to l no Daime. Como que significa isso, assim? A gentet estudando.

    CONSIDERAES FINAIS

    MacRae (2000) realiza uma anlise introdutria a respeito das rela-es do Santo Daime com as tradies espritas e umbandistas. Ele partede um conceito emprestado de Cndido Camargo, segundo o qual h umcontinuummedinico brasileiro religioso: num polo esto as vertentes maisafricanas da Umbanda e, no outro, o espiritismo kardecista mais ortodoxo.O autor afirma que a doutrina daimista, atravs de concepes como karma,evoluo espiritual, doutrinao de espritos, reencarnao, noo de pessoa

    etc., localiza-se no polo mais branco ou kardecista do continuum medinico,

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    apesar de agregar elementos da Umbanda. O autor sustenta que haveria uma

    dificuldade de relacionamento entre o Daime e a Umbanda.Esta ideia de continuumno parece se adequar Umbandaime, pelomenos no Rio Grande do Sul, e o sincretismo presente nessa cosmologia nopode ser entendido do ponto de vista linear, de um polo a outro. A teoriada bricolage no d conta de explicar esse sistema religioso,

    [...] no minimizando o alcance das reflexes sobre a bricolage religiosa nosseus estados mais diversos (ecletismo teolgico, composio crente etc). Elas

    representam um esforo considervel de compreenso de transformao doreligioso, de suas formas de expresso na modernidade religiosa e das prticasque decorrem dela. Trata-se mais de acrescentar s suas reflexes elementosque podem, sobre o plano das prticas, dar conta de uma dinmica religiosaque escapa aos imperativos socioeconmicos e polticos de um tempo e deum lugar dado. (Soares, 2009)

    Acredito que a butinage caracterizaria a constituio do sistema religiosodo Santo Daime e da Umbandaime, e levanto a hiptese de estar estruturadacomo uma rede (Latour, 2002), dentro de uma lgica de conexes. E no desuperfcies, definidas por seus agenciamentos internos, no pelas fronteirase limites demarcados pelas instituies religiosas.

    A noo de rede de Latour bem prxima da noo de rizoma, elaboradapor Deleuze e Guattari (1995), como modelo de realizao das multipli-cidades. Diferentemente do modelo da rvore ou da raiz (que se aproximada bricolage), que fixam um ponto, uma ordem, no rizoma qualquer pontopode ser conectado a qualquer outro. Na bricolagem, a metfora do tronco edos ramos, utilizada por Lvi-Strauss (1976), refere-se estrutura (tronco),ocorrendo a bricolage mais nos ramos do que no tronco. Lvi-Strauss (1976)sublinha que a bricolage ocorre com os ramos, no chegando a colocar emcheque o equilbrio estrutural que mantido pelo tronco. A bricolage nuncaafeta a estrutura, como tal, a estrutura que afeta os elementos. A bricolage colagem, incorporao, o sujeito tem uma base e ele comea a transitar eincorporar, mas no afetando a base, que estrutural, e no muda.

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    Para Latour (2002), tal como no rizoma, na rede no h unidade, ape-

    nas agenciamentos; no h pontos fixos, apenas linhas. Assim, uma rede uma totalidade aberta capaz de crescer em todos os lados e direes, sendoseu nico elemento constitutivo o n. Uma rede de atores no redutvel aum ator sozinho, nem a uma rede, mas composta de sries heterogneas deelementos, humanos e no-humanos conectados, agenciados. Ela , simul-taneamente, um ator, cuja atividade consiste em fazer alianas com novoselementos, e uma rede capaz de redefinir e transformar seus componentes.O conceito botnico de rizoma diz22:

    Rizoma a extenso do caule que une sucessivos brotos. Nas epfitas a parterasteira que cresce horizontalmente no substrato. Ele pode ser bem extenso esemelhante a um arame ou bem curto, quase invisvel. Dele partem o caule,pseudobulbos e razes. Na espcie de Zygopetalum maxillare, quase sempreassociada a uma samambaiau, o comprimento do rizoma entre os pseudobulbospode variar. Elas produzem pequenos pseudobulbos seguidos por um longotrecho de rizomas e em seguida outro pequeno pseudobulbo, at alcanar acoroa da samambaiau na qual forma feixes e a florao aparece. Nas espciesterrestres o rizoma pode estar no subsolo ou na superfcie do solo.

    Nesse sentido, podemos metaforizar que o processo de butinage ojardim do beija-flor, tendo a base de um rizoma. O beija-flor, praticante,articula diferentes contedos religiosos (flores) em uma s prtica religio-sa, no caso a Umbandaime. Essa prtica equivaleria, pela analogia, a umaubiquidade religiosa: O Criador est presente em todo lugar ao mesmoinstante e o praticante est presente em todo lugar na prtica da butinagereligiosa (Soares, 2009).

    Ao incorporarmos, abrimos o leque medinico para outras conscincias:femininas, masculinas, andrgenas, joviais, infantis, maduras, guerreiras,nobres, caadoras, ou seja, toda a possibilidade de termos as conscinciasmais mltiplas, como o prprio universo do Deus Criador. Sim, todas as

    22 Disponvel em: http://rizomas.net/filosofia/rizoma/77-o-conceito-botanico-de-rizoma.

    html. Acesso em: 18 de out. 2010.

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    entidades podem trabalhar no Santo Daime, ao incorporarmos as entidades

    associadas a outras tradies (kardecista, candombl, catimb, orientalismo,Umbanda, etc) estamos recebendo-as dentro de um aparelho energizadopela presena do Santo Daime. As entidades que chegam so apresentadasao Mestre e ao Padrinho Sebastio e logo entendem que o trabalho espiritualsob a proteo de Jesus Cristo, uma forma de evoluo do mdium para ocaminho da tica da luz e da prpria entidade que pode praticar a caridadede iluminar-nos com seus conhecimentos especficos de cada corrente23.

    Assim, no h um beija-flor do qual emana afabricaode seu jardim,

    mas uma rede heterognea de atores, humanos e no-humanos, conectados.

    REFERNCIAS

    ALVES JUNIOR, Antnio. Tambores para a Rainha Floresta: a insero daumbanda no Santo Daime. Dissertao de mestrado em Cincia da Religio.So Paulo, PUC, 2007.

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    Informante.

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