3 Criação e Salvação na perspectiva de Adolphe Gesché · dissociativa da Criação e...

34
3 Criação e Salvação na perspectiva de Adolphe Gesché 3.1. Introdução ao capítulo No capítulo anterior, vimos o desenvolvimento de uma perspectiva teológica dissociativa da Criação e Salvação que foi se impondo ao longo da história. Com este capítulo, iniciaremos uma grande empreitada. Exporemos o pensamento teológico de Adolphe Gesché com intuito de superação da ruptura entre Criação e Salvação. Não basta, no entanto, apenas expor as Sagradas Escrituras para se superar esta ruptura. Se isso fosse suficiente este trabalho estaria concluído desde a primeira e a segunda parte do primeiro capítulo deste trabalho. Porém, há uma hermenêutica que foi se impondo desde os primeiros séculos da história cristã e que direcionou a maior parte dos tratados teológicos para uma tendência dissociativa acerca do tema aqui abordado, que precisa ser combatida com o risco de se ter a compreensão bíblica deste tema comprometida. Além disso, não se pode deixar de lado o desenvolvimento científico e humano atual. O pensamento de Gesché nos possibilitará uma abordagem atual do tema. Uma abordagem que abre espaço diante dos outros saberes, ao mesmo tempo que é um retorno ao dado bíblico. Fazer teologia é dizer a fé hoje, em nosso tempo, é buscar caminhos de encarnação para as boas novas da Salvação que liberta. Caso isso não seja respeitado o discurso de fé corre o risco de ser encarado como algo alienado e alienante. Além do mais, não podemos repetir a falha da Reforma que na melhor das intenções resgatou o texto e a doutrina bíblica, mas desconsiderou as outras vozes que tinham que, por necessidade (da própria teologia) e direito, ser ouvidas. Este capítulo estará dividido em três blocos. No primeiro bloco (3.2.) exporemos as bases hermenêuticas que situarão e darão lugar a este trabalho diante das demais ciências a partir da perspectiva de Adolphe Gesché. No segundo bloco (3.3.) trataremos diretamente o tema da Criação na teologia de Gesché em diálogo com a filosofia e outras ciências e, no terceiro bloco (3.4.), trataremos do tema da

Transcript of 3 Criação e Salvação na perspectiva de Adolphe Gesché · dissociativa da Criação e...

3

Criação e Salvação na perspectiva de Adolphe Gesché

3.1.

Introdução ao capítulo

No capítulo anterior, vimos o desenvolvimento de uma perspectiva teológica

dissociativa da Criação e Salvação que foi se impondo ao longo da história. Com este

capítulo, iniciaremos uma grande empreitada. Exporemos o pensamento teológico de

Adolphe Gesché com intuito de superação da ruptura entre Criação e Salvação.

Não basta, no entanto, apenas expor as Sagradas Escrituras para se superar

esta ruptura. Se isso fosse suficiente este trabalho estaria concluído desde a primeira e

a segunda parte do primeiro capítulo deste trabalho. Porém, há uma hermenêutica que

foi se impondo desde os primeiros séculos da história cristã e que direcionou a maior

parte dos tratados teológicos para uma tendência dissociativa acerca do tema aqui

abordado, que precisa ser combatida com o risco de se ter a compreensão bíblica

deste tema comprometida. Além disso, não se pode deixar de lado o desenvolvimento

científico e humano atual. O pensamento de Gesché nos possibilitará uma abordagem

atual do tema. Uma abordagem que abre espaço diante dos outros saberes, ao mesmo

tempo que é um retorno ao dado bíblico.

Fazer teologia é dizer a fé hoje, em nosso tempo, é buscar caminhos de

encarnação para as boas novas da Salvação que liberta. Caso isso não seja respeitado

o discurso de fé corre o risco de ser encarado como algo alienado e alienante. Além

do mais, não podemos repetir a falha da Reforma que na melhor das intenções

resgatou o texto e a doutrina bíblica, mas desconsiderou as outras vozes que tinham

que, por necessidade (da própria teologia) e direito, ser ouvidas.

Este capítulo estará dividido em três blocos. No primeiro bloco (3.2.)

exporemos as bases hermenêuticas que situarão e darão lugar a este trabalho diante

das demais ciências a partir da perspectiva de Adolphe Gesché. No segundo bloco

(3.3.) trataremos diretamente o tema da Criação na teologia de Gesché em diálogo

com a filosofia e outras ciências e, no terceiro bloco (3.4.), trataremos do tema da

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

63

destinação, onde veremos explicitamente, no pensamento de Gesché, a relação entre

Criação e Salvação. Basicamente estaremos utilizando os livros O ser humano e A

destinação como base para este capítulo.

3.2.

Bases hermenêuticas

Antes de entrarmos diretamente no tema da relação entre Criação e Salvação

na teologia de Gesché, veremos a sua reflexão acerca da própria teologia e sua

relevância na atualidade. Nesta reflexão, Gesché situa a teologia diante de outras

ciências (discursos), demonstrando não somente seu lugar, mas também, e

principalmente, sua relevância e necessidade. Em outras palavras, o discurso

teológico tem sua voz própria, seu logos próprio que deve ser escutado e tido como

fundamental contribuição para o conhecimento acerca da realidade. Ao mesmo

tempo, esta reflexão nos servirá de base hermenêutica para o desenvolvimento do

restante deste trabalho.

3.2.1.

O espaço e a relevância do pensar teológico na atua lidade

Nossa sociedade atual emerge de um ambiente em que a racionalidade foi a

palavra de ordem. Passada a modernidade, a pós-modernidade questiona o lugar de

um discurso teológico que diga algo sobre o ser humano e sobre a realidade, na

perspectiva cristã, uma realidade criada. Na modernidade outra palavra lhe foi

característica: sentido. Este período foi sensível aos valores, à ética, à ação e ao

engajamento.

A pós-modernidade também tem suas características. Uma palavra que

descreveria uma destas características é a palavra destinação. Na perspectiva de

Adolphe Gesché, na época em que vivemos, a felicidade, a ternura, a finalidade, o

sentido do destino são questões em pauta. Cada palavra citada acima, de certa forma,

outorga algum privilégio a uma razão, ou a um discurso específico sobre si, que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

64

ganhará notoriedade em cada época. Assim, levando-se em conta que a ciência é

preposta ao saber, à verdade e à técnica, a filosofia ao entendimento, ao sentido e aos

valores, é razoável supor, segundo Gesché, que a teologia é preposta à Salvação, à

existência e à destinação. Com isso, é razoável supor, juntamente com Gesché, que

entramos em uma era teológica.

Apoiado na afirmação de Thierry Maulnier, que diz sermos envolvidos pelo

mundo em uma tripla dimensão: “do sensível, do racional e do incompreensível”,1

Gesché costura as palavras racionalidade, sentido e destinação, para uma maior

análise. Por definição, definição aristotélica, o ser humano é um ser racional, e esta

racionalidade será sempre uma necessidade do ser humano. Ela se impõe (sem

qualquer reducionismo) sobre todos os aspectos da existência humana, inclusive a fé.

Esta exigência racional demonstra aqui, a legitimidade e necessidade da teologia, pois

sem ela, a fé corre o risco de tornar-se mera superstição.

Gesché introduz além da racionalidade (sem reducionismo) outro aspecto da

existência humana: o ser humano não é apenas razão (isto seria um reducionismo) e

luz (total compreensibilidade), mas é também enigma. “há em nós algo de

indecifrável, de incompreensível, que permanecerá sempre, e que é até constitutivo de

nosso ser, portanto, de nossa formação. Qualquer verdade sobre e para o ser humano

não pode ser construída sem levar isso em conta”.2 Sendo parte da vida humana, o

enigma deve ser respeitado como graça que impede que a racionalidade torne-se um

engano e não deve ser abolido seja pela racionalidade, seja pela fé ou pela técnica.

Citando Agostinho, Gesché aprofunda o conceito de enigma nos seres

humanos: ninguém se conhece em sua totalidade, “tornei-me para mim mesmo uma

grande questão”.3 Esta realidade não se impõe somente em relação a si, mas também

em relação aos outros. O enigma se faz presente nos relacionamentos, visto que nem

mesmo o mais perfeito amor está isento da escuridão do desconhecido. Da mesma

forma que a racionalidade não dissipa o enigma, tampouco a afetividade o faz.

Rompemos a barreira do iluminismo em que se acreditava que o

conhecimento racional pudesse a tudo iluminar. Em plena pós-modernidade, época

1 Thierry Maulnier apud GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 16. 2 GESCHÉ, Adolphe. op. cit., p. 16. 3 Santo Agostinho apud GESCHÉ, Ibid., p. 17

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

65

em que o poder iluminador da razão já não goza de tantos créditos, já se sabe que a

realidade não é transparente e a esta assertiva não se chega, segundo o autor, por uma

limitação do conhecimento humano, mas porque a realidade é sem previsibilidade.

Esta reflexão também diz respeito à teologia. Por isso, na perspectiva de

Adolphe Gesché, Deus não deve ser concebido como o detentor da chave de todos os

enigmas, “Deus não está preposto aos significados”.4 Pensar desta forma seria

assumir uma visão utilitarista de Deus. Mas, o próprio Deus se revelou velando-se,

assim foi com seu povo no deserto “o Senhor ia adiante deles, de dia, numa coluna de

nuvem” (Ex 13,21). Deve haver o reconhecimento deste enigma que não se satura,

nem por Deus, nem pela fé, nem pela racionalidade e nem pela técnica.

Diante disso, resta aos seres humanos prosseguirem, caminharem, avançarem

na construção de si mesmos juntamente com esse “insuportável”, “indizível” que têm

em si: “o ser humano embora se construa com a racionalidade, o sentido, a

afetividade, com a ação e com Deus (se nele crê), se constrói também com esse

insuportável que é o indizível, o insaturável”.5

Esta realidade, se aceita, conclama toda a forma de conhecimento, seja

científico, filosófico, afetivo ou teológico a uma humildade em que se reconhece a

limitação de cada campo ou área de conhecimento. Ao mesmo tempo, abre caminho

para a teologia e outras fontes de entendimento e discernimento. Aqui o lugar da

reflexão teológica acerca da realidade está assegurado, com toda a humildade e

reconhecimento das limitações que lhe são possíveis.

3.2.2.

Teologia como Antropologia: um discurso que fala o ser humano, do

ser humano e para o ser humano

Todo o discurso teológico, de certa forma, é discurso antropológico que leva

ao ser humano o discurso da transcendência. O que a teologia tem a dizer do homem

e para o homem não será dito por nenhum outro discurso. Por isso a teologia tem o

4 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 19. 5 Ibid., p. 21.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

66

seu lugar de direito entre os diversos discursos. Ao se falar de Criação e Salvação,

fala-se do homem, para o homem e por meio do homem. Assim, falar deste tema

também é falar de antropologia. Neste ponto, Gesché propõe três justificativas que

especificam e legitimam o discurso teológico como antropológico.

Em primeiro lugar, a teologia é considerada um discurso antropológico porque

Deus nunca é encontrado em estado puro. Isto é o que nos ensinam as Sagradas

Escrituras: homem algum pode ver a Deus e continuar vivo (Ex 33,20) e “ninguém

viu o Pai a não ser o Filho” (Jo 1,18). O encontro com Deus se dá por mediações. A

mais importante das mediações é precisamente o ser humano. Essa é a mensagem

encontrada no Novo Testamento, pois, este deixa claro que o que de Deus se pode

conhecer, conhecemos pelo Filho. Com isso o autor conclui que não há discurso

sobre Deus sem que o ser humano não esteja no início.

Porque Deus não é um objeto deste mundo, e a teologia, como conhecimento, toma seu embalo daquilo que lhe é dado ‘na terra’, aquilo que é primeiramente encontrado nesse caminho rumo a Deus; ela é o homem falando de Deus. Tal é o seu lugar, ao mesmo tempo teórico e prático, onde lhe é dado o Deus do qual ela fala.6

Também porque a teologia se apresenta não apenas como um discurso sobre

Deus, mas também como um discurso de Deus sobre o ser humano. A fé judaico-

cristã considera que Deus tem algo a dizer sobre o ser humano e ao ser humano. E

esta visão do ser humano é única, não pode ser substituída por qualquer outra forma

de conhecimento ou discurso, é própria da teologia.

A segunda justificativa se trata do lugar de onde fala a teologia, apontado pelo

autor. A teologia tem seu lugar próprio e este deve estar bem situado para que a voz

da teologia não seja confundida com outras vozes. As demais ciências, filosofia,

psicologia, sociologia etc. falam do ser humano (do mesmo ser humano), mas cada

uma delas fala do lugar que lhe é próprio.

O lugar próprio da teologia cristã como discurso é, segundo Gesché, falar do

ser-humano-que-fala-de-Deus.7 Gesché abordará não qualquer ser-humano-que-fala-

de-Deus, ele delimitará ainda mais sua abordagem para que se não corra o risco da

6 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 30. 7 Cf. Ibid., p. 32.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

67

superficialidade. Trata-se do ser-humano-que-fala-de-Deus que crê, o ser humano de

um ethos-fé. E neste ser humano encontram-se três componentes que o caracterizam.

É um ser humano de atitude que através da fé envereda-se por um caminho. É um ser

humano de uma adesão, uma adesão a Deus, que nele crê e confia. Por fim, é um ser

humano de um conhecimento, pois este é visitado por uma palavra e sua fé tem um

conteúdo.

A terceira justificativa, que legitima o discurso teológico como um discurso

antropológico, expressa a forma como a teologia fala do homem. Mesmo que seja um

discurso sobre o ser humano crente, este não é exclusivo da teologia. O ser humano

crente também é objeto da psicologia, sociologia, filosofia, história. Isso quer dizer

que a teologia tem lugar específico e este lugar deve ser justificado pelo modo que ela

fala do ser humano e “é isso que distingue as disciplinas que falam do mesmo

objeto”.8

Como o discurso sobre o ser humano crente não é exclusivo da teologia, qual

deve ser a postura do teólogo ao encarar estes outros discursos? A esta indagação

Gesché responde: a mais positiva possível. Pois estes outros discursos são feitos de

seus lugares próprios e por isso mesmo ajudam a teologia a purificar a fé daquilo que

não é ela mesma: “as ciências humanas permitem entregar a fé a si mesma,

desembaraçada de suas impurezas”.9

No tocante à Criação é evidente o serviço prestado pelas demais ciências

(história, arqueologia, ciência experimental, etc.) para a redução da fé na Criação e

Salvação àquilo que lhe é exclusivo. Convém, no entanto explicar este conceito de

redução utilizado por Gesché. Não se trata de reducionismo, o que implicaria uma

redução de todo um universo de possibilidades a uma única, dispensando as demais.

Trata-se, na realidade, de uma delimitação, em que através do conhecimento dos

outros discursos procura-se estabelecer a especificidade da abordagem teológica,

eliminando-se, desta forma, tudo aquilo que não pertence à especificidade da fé (o

irredutível da fé).

8 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 37. 9 Idem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

68

Assim, deve haver interação, não concorrência entre teologia, ciência, história,

psicologia, antropologia, etc. Mas, trata-se de uma interação consciente. Consciente

de que a linguagem das ciências humanas não esgota o fenômeno da fé, nem que a

linguagem teológica seja a única aplicável. A preservação de uma linguagem que não

é redutível à científica, tem sua racionalidade própria e por isso se comunica com o

logos universal. Pois, poderia o logos da cientificidade esgotar toda a universalidade

do Logos? Não. “O Logos não tem sua pátria e sua expressão unicamente na ciência...

uma é a linguagem do logos científico, outra a da poesia, do amor, mas trata-se

sempre do Logos”.10

Visto que a fé pode ser abordada de diferentes pontos e por diferentes

discursos, qual discurso abordaria a fé em sua transcendência? Em sua alteridade? Em

sua irredutibilidade? Seria o discurso científico capaz de fazer ouvir aquilo que a fé

tem a anunciar como próprio? Aqui, Gesché é incisivo: “não”. Este papel pertence à

teologia. Assim,

A teologia, como antropologia, será exatamente o discurso encarregado de expressar o logos sobre o ser humano que está incluído no ethos-fé. Porque há sobre o ser humano, na fé, um discurso específico e que tem o direito de ser ouvido.11

Um exemplo do que a fé propõe como própria e que não está dito em nenhum

outro discurso e só pode ser dito pela teologia é a não inexorabilidade da realidade.

Essa é uma característica exclusiva da fé que necessita de voz específica para

pronunciá-la. Ao contrário da sociologia, história, política, economia, etc. que nos

falam sobre o irremediável e a fatalidade, a fé diz que tudo pode ser salvo. Afirma

ainda que a característica da humanização é justamente a crença, a esperança na

Salvação (que antropologia diz isso?): “quando a fé fala de Deus como criador ex

nihilo, como salvador, ela diz que, se não se quer parar de ser ser humano, é preciso

acreditar no impossível e parar de acreditar miseravelmente só no possível”.12

10 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 39. 11 Ibid., p. 40. 12 Ibid., p. 41.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

69

3.2.3.

A função do discurso teológico

Adolphe Gesché descreve a função da teologia como um discurso da fé.

Sendo discurso da fé, a teologia é sua mediação que preserva a sua especificidade e

lhe permite ser ouvida e compreendida. Gesché fala, na realidade, em uma tripla

função da teologia: fazer respeitar os direitos de existência do ethos-fé, dizer o logos

que está inscrito nesse ethos e justificar esse logos específico. Esta tripla função é

realizada em duas direções: ad intra e ad extra. A primeira estaria a serviço da

própria fé e a segunda, a serviço da sua presença entre os outros discursos sobre o ser

humano.13

A teologia em seu serviço à própria fé (ad intra) deve atuar como sua

hermeneuta, interpretando-a, mostrando aos que crêem o seu verdadeiro sentido. Sua

função é fazer com que essa fé não se degenere entre o círculo dos que crêem, pois

esta pode desviar-se em gnose, superstição e esoterismo. A teologia é a instância

crítica que impede tal degeneração e preserva a lógica interna da fé. No entanto,

deve-se ter em mente outro risco de degeneração da fé, este talvez mais sutil. Na

ânsia de se preservar a especificidade da fé, corre-se o risco de se cair em um

fundamentalismo. Este risco aparece sempre que a interpretação da fé estiver

exclusivamente calcada em textos do passado, apesar do grande privilégio de tais

textos, com o prejuízo ao presente da fé e seus suportes atuais. Assim, a função da

teologia, como instância crítica, é preservar o sentido da fé, salvaguardando sua

coerência interna, livrando-a dos riscos tanto das gnoses, superstições e esoterismos,

quanto do fundamentalismo.

No exercício de sua função ad extra, a teologia tem dois papéis a exercer:

dizer o conteúdo dessa fé e justificar esse conteúdo. Ao dizer o conteúdo da fé, a

teologia assume uma função que lhe é própria e que não cabe à fé, visto que “a fé não

existe para ‘passar o tempo’ esclarecendo o logos do qual é portadora”.14 É papel da

teologia prestar esse serviço à fé, serviço de ser discurso da fé e fazê-lo diante de

13 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 43. 14 Ibid., p. 45.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

70

outros discursos. A teologia, neste sentido, é a instância reflexiva que assegura a

relevância do conteúdo da fé ante as demais disciplinas. Conteúdo que é único e

exclusivo da fé, que traz em si um precioso segredo de superação e transcendência, e

que se não é dito pela teologia, não será dito por mais nenhuma outra disciplina.

Ao justificar o discurso da fé, a teologia realiza este papel em dois momentos,

um negativo e outro positivo. A realização desta tarefa negativa implica em não

impor ao discurso da fé um outro logos que não lhe seja próprio. Isto quer dizer que

há uma unidade do Logos que por sua vez se difunde em logos próprio dos diferentes

discursos humanos: “há dentro do Logos universal o logos do amor, o logos da

ciência, o logos da filosofia etc.”.15 Resumidamente, todos estes logos dependem do

Logos universal.

O equívoco ocorre quando se tenta aplicar um logos que tem sua jurisdição,

seu campo bem definido a outro campo que não lhe é próprio. Um exemplo próximo

é o que ocorre inúmeras vezes entre teologia e ciência da religião. Esta, ao analisar o

homem de fé, o faz a partir do seu logos próprio, que implica em um método

científico próprio para a análise do fenômeno religioso. E aquela, por sua vez,

também o faz a partir do logos que lhe é próprio para a reflexão que tem como ponto

de partida uma escuta de fé.16

A realização desta tarefa positiva implica em defender o direito de existência e

inteligibilidade de um logos próprio, “situando-o no mapa geral do Logos

universal”.17 O logos próprio que a teologia ao justificar defende, trata-se de uma

ratio de utopia. Esta definição do logos carece de uma explicação.

Na compreensão de Gesché, a linguagem da fé propõe uma compreensão do

ser humano como um ser que deve conquistar aquilo que ainda não é, que ainda não

tem lugar, mas poderá ser e terá lugar. Esse “não-lugar” compreende a idéia de Deus

sobre o ser humano. Em outras palavras “a utopia proclama o direito do ser”.18

15 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 48 16 Um exemplo bastante ilustrativo encontramos em ALVES, Ruben. O que é Religião. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 25. : Se colocássemos uma música clássica, a nona de Beethoven, por exemplo, para tocar e pedíssemos para que um surdo descrevesse a sua experiência de escuta desta música, isso seria algo impossível. Mas se pedíssemos para que o surdo visse um ouvinte tendo a experiência de escuta da nona de Beethoven, ele seria capaz de analisar e fazer um relatório de tal análise. 17 GESCHÉ, Adolphe. op. cit., p. 50. 18 Idem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

71

Os outros discursos falam já de uma realidade presente, que já tem seu espaço.

Já a fé fala daquilo que ainda não existe. Sendo assim, segundo Gesché, embora a fé

seja para este mundo, ela não é deste mundo, a fé não é deste topos. Não obstante a

isso, essa utopia é a máxima sabedoria verdadeira para o ser humano, pois se trata da

sabedoria de Deus.

A função do discurso teológico é dizer e preservar o direito deste logos ímpar,

que à diferença dos outros dizeres, não pertence a este lugar, mas “vem de outro

lado”.19 O discurso teológico só é porta-voz legítimo da fé se fala de seu lugar

próprio, caso contrário “é melhor que desapareça, não tendo outra coisa a fazer que

repetir discursos que outros também sabem pronunciar tão bem, ou até melhor”.20

3.3.

Criação na perspectiva judaico-cristã: arte e liber dade

Entre os diversos discursos, sejam científicos, sejam filosóficos, que tratam

acerca da origem ou surgimento do mundo, segundo Gesché, é patente a ausência do

termo Criação. Este termo é exclusivo da linguagem de fé e traz uma epistemologia

única, ausente em qualquer outro campo de conhecimento. No entanto, mesmo

expressando uma verdade de fé, este termo necessita de um discurso que o expresse

em alta voz e em sua exclusividade, para que desta forma, seja evidenciado o

exclusivo desta fé. Este papel, conforme já visto, pertence à teologia.

Adolphe Gesché, para expressar a originalidade, relevância e contribuição do

discurso teológico para um mundo que emerge de um reducionismo científico, busca

na alteridade a melhor forma de expressar esse seu conteúdo. Para isso, compara a

teologia da Criação com outra concepção que nomeia de “cosmológica”. Vejamos

primeiramente a concepção “cosmológica” e posteriormente a teologia da Criação na

reflexão de Gesché.

19 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 51. 20 Idem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

72

3.3.1.

Concepção cosmológica: a natureza e o acaso em abso luta

necessidade

Esta concepção, segundo Gesché, foi a que mais se destacou na época das

origens da ciência ocidental e em algumas formas de ateísmo. O acesso a esta

concepção se dá através dos escritos de Platão no Timeu,21 que a explicita, embora o

faça para contestá-la. Platão, explicitando esta concepção, afirma que no começo,

antes de existir as coisas que conhecemos, havia a chora.22 Segundo Gesché este

termo, de difícil compreensão, pode significar lugar, região, lugar virtual e

receptáculo. Trata-se de algo completamente indistinto “onde tudo aquilo que será um

dia, mas ainda não o é, se acha contido de forma imanente... matéria daquilo que

será... na qual reina a necessidade cega, mas onde se produzirá tudo aquilo que virá a

ser”.23 A partir desta chora tudo se produziu ou através da physis (natureza), ou

através da techne (arte) ou do tyche (acaso).24

Nesta concepção “cosmológica” os dois termos de maior importância são

physis e tyche. As obras da natureza e do acaso são as maiores e mais belas e estão no

mesmo nível no surgimento da realidade. Segundo um processo de necessidade

absoluta, ambas arrancam a realidade da indiferença do caos “sem nenhuma

intervenção de uma inteligência nem de algum deus, nem da arte”.25 Porém, há uma

diferença entre essas duas “razões”, que, no entanto, não diminui em nada tanto uma

como a outra: a natureza é compreensível, é racional, já o acaso é impenetrável à

razão.

A arte, nesta concepção “cosmológica”, não está no mesmo nível das duas

razões acima. Ela é posterior, cronológica e essencialmente, às duas razões mais

importantes e é produzida a partir delas. Sendo essencialmente e cronologicamente

posterior à natureza e ao acaso, a sua produção é inferior. Ela age sobre aquilo que foi

21 Cf. PLATÃO. Timeu. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. 22 Cf. Ibid.., 52 a. 23 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 54. 24 Cf. PLATÃO. op. cit.,, 888 e. 25 PLATÃO. Leis. São Paulo: Edipro, 1999, 889 a-c.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

73

produzido pelo acaso e pela natureza, modelando coisas artificiais.26 A arte age sobre

as produções da natureza e do acaso de duas maneiras, uma nobre e séria e outra, não

séria. A maneira nobre e séria seria o prolongamento da natureza como no caso da

medicina e da agricultura. A maneira não séria seria a produção de coisas que

possuiriam apenas uma frágil parte de verdade, como por exemplo, a pintura e a

música.27 Mas em ambas as produções da techne a realidade verdadeira tem pouca

relação. A arte não passa, neste caso, de imitação da natureza.28 Em resumo,

conforme vimos até aqui, essa concepção “cosmológica” da realidade é produzida

pela natureza e pelo acaso em absoluta necessidade imanente e para ela a arte tem

pouca importância.

3.3.2.

Criação divina: a arte preposta à natureza e ao aca so

A partir da primeira expressão do Gênesis, a fé na Criação divina judaico-

cristã apresenta uma diferença fundamental em relação à concepção “cosmológica”.

Mesmo tendo em comum a afirmação acerca do princípio: “no princípio, Deus...” (Gn

1,1), a fé na Criação judaico-cristã, diferentemente da concepção “cosmológica”,

expressa que no princípio há um sujeito, uma liberdade, não um acaso ou

necessidade. Para Gesché este relato não quer tanto afirmar que Deus criou o mundo,

mas que, e principalmente, o princípio é Deus. Esta afirmação, segundo ele, exprime

uma intenção, uma vontade e não a necessidade e o acaso.29

Gesché infere da afirmação acima alguns corolários. Primeiramente, “no

princípio, Deus...” afirma um sujeito no princípio. É dizer que a realidade é resultado

(Criação) de uma liberdade. A indicação de “Deus no princípio” retira completamente

a noção de uma necessidade.

Em segundo lugar, “no princípio, Deus...” é a libertação do anonimato,

situando, desde o início, a Criação no reino da pessoa, “é dizer, desta vez, que a

26 Cf. PLATÃO. Leis, 889 a-c. 27 Cf. PLATÃO. Leis, 889 d. 28 Cf. ARISTÓTELES. Física IV (Coleção os Pensadores). São Paulo: Eitora Abril, 1973. 194 a. 29 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 56.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

74

Criação, trazida por um sujeito, corresponde a um plano”.30 A realidade não está

entregue ao acaso, mas é presidida por uma subjetividade, por uma Pessoa.

Em terceiro lugar, “no princípio, Deus...”, inverte a ordem da concepção

“cosmológica”. Nesta, a arte é posterior à necessidade e ao acaso. Na Criação divina

ocorre o contrário, a arte é primeira enquanto que a natureza e a necessidade são,

cronologicamente e essencialmente, posteriores. É invertida a lógica grega, aqui é a

arte que precede e define o que será a natureza. Conforme dito no tópico anterior, no

esquema da concepção “cosmológica” da chora a arte tinha pouca relação com a

realidade verdadeira. Esta visão perde espaço na concepção judaico-cristã da

realidade, aqui é o valor da physis e da tyche que depende da techne.

Em quarto lugar, “no princípio, Deus...” significa que a liberdade e a

inventividade (criatividade) são constituições do ser. Na concepção grega, há na

noção de liberdade algo de não natural, ela é tardia e não está no cerne das coisas.

Segundo Gesché, embora os gregos tenham alcançado a liberdade no plano ético e

político, falta-lhes a liberdade no plano do ser, é o fatum31 neste campo, que ocupa o

ponto principal. Ocorre o inverso na concepção de Criação judaico-cristã, aqui a

prioridade da Criação (arte) indica a prioridade da liberdade sobre a natureza. A

liberdade é o princípio e o cerne das coisas criadas. Segundo nosso autor, a fé na

Criação desfatalizou não somente a história, mas também o ser.

A liberdade preside a constituição das coisas... está inscrita no ser... é vista, não como um objeto (tardio) de uma extorsão, e sim como o direito (primeiro) de um dom. No regime judaico-cristão, a Criação e, conseqüentemente, a liberdade e a invenção são o direito e o fio, o tecido da existência criada.32

Em quinto lugar, “Deus no princípio” nos liberta da imanência onde as leis

são ditadas pela própria natureza a si mesma. Esta imanência da qual estamos libertos

é, segundo Adolphe Gesché, exatamente aquela em que a natureza é seu próprio

sujeito e objeto, a natura naturans de Espinosa que tem sua raiz já em Aristóteles: “é

30 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 57. 31 Por fatum Gesché compreende o destino a que o homem e até os deuses estão presos fatalmente. Cf. HERÓDOTO. História. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, 1, 90, 4. 32 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 59.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

75

a natureza que conduz a natureza”.33 Esta imanência, seria uma estrada cíclica,

tautológica, um mergulho na natureza e somente nela, aprofundado posteriormente

por Heidegger: “qualquer interpretação que se dê desse ser da ‘natureza’, todos os

modos de ser do ser-mesmo interior ao mundo derivam ontologicamente da

mundidade do mundo e, com isso, do fenômeno do ser-no-mundo”.34

Falar de “Deus no princípio” é estabelecer alteridade. Trata-se da libertação de

qualquer tipo de fechamento imanentista. É colocar diante da imanência uma

transcendência, uma referência diante da qual a Criação tem de responder. Aqui a

alteridade é um anúncio de liberdade, impossível no círculo fechado da imanência.

Diante da transcendência, o ser humano tem direito, poder de decisão e liberdade

porque é capaz de prestar conta: “o ser humano é um ser que realizou atos

responsáveis, precisamente porque há uma exterioridade, um face a face”.35 Nessa

mesma linha, Sartre fala sobre a falência de uma liberdade sem referencial: “Talvez o

desconhecimento da realidade irredutível da alteridade e da transcendência e uma

interpretação puramente negativa da proximidade ética e do amor provenham da

obstinação de os dizer em termos de imanência”.36

A Criação, segundo a perspectiva judaico-cristã, é feita em liberdade. Por isso

mesmo, a humanidade, desde o início, tem a liberdade inscrita em si desde sua

Criação. Esta liberdade não é uma conquista humana posterior, mas uma dádiva de

seu Criador, desejada por Ele. É uma liberdade que liberta o ser humano e que

permite e possibilita outros bens.

3.3.3.

A alteridade e diferenciação como liberdade e possi bilidade de Criação

No tópico acima vimos a originalidade da fé cristã na Criação frente à

concepção “cosmológica” que nos serviu também de ponte para uma inicial

interlocução com a ciência moderna e algumas formas de ateísmo. A radical inversão

percebida na fé na Criação colocando Deus no princípio, privilegiando, desta forma,

33 ARISTÓTELES. Física II (Coleção os Pensadores). São Paulo: Eitora Abril, 1973. 194 a. 1, 193 b. 34 HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: vozes, 2001. (II v.) 35 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 61. 36 SARTRE apud GESCHÉ, Adolphe. Ibid., p. 62.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

76

essencialmente e cronologicamente, a arte frente à natureza e ao acaso, aponta uma

lógica própria desta fé. Vejamos qual é essa lógica da fé na Criação judaico-cristã.

Na seqüência da primeira expressão do Gênesis visto acima (cf. Gn 1,1), é

introduzido o verbo criar (bara’). Este verbo, segundo Gesché, expressa duas noções

que se apresentam inseparavelmente no pensamento hebraico: fazer e separar. Nosso

autor propõe uma possível tradução que nos abrirá um leque de informações que

reduziriam37 ao exclusivo da fé: “No princípio, Deus ‘fez-separou’ o céu e a terra..., o

dia e a noite..., o homem e a mulher”.38 Importante é não separar as duas noções,

Deus não somente fez, ou somente separou.39 O bara’ de Deus se dá, justamente,

fazendo diferente, diferenciando.

A partir do que foi dito acima, Gesché infere que a Criação divina é

justamente constituição de algo distinto de Deus, ou seja, a alteridade está na essência

da Criação. Diferentemente da concepção neoplatônica, não se trata de emanação,

nem de mistura de parte divina com parte profana como pretende o Enuma Elish, e

nem de uma sombra de um mundo perfeito como ensina o platonismo. A Criação

divina é Criação de uma realidade inteiramente diferente e inédita. É uma realidade

rigorosamente ela mesma. Nas palavras de Gesché, trata-se de uma realidade a-téia.40

Esta distinção na Criação não é um acidente ou falha, mas sim, a intenção de Deus

apresentada desde o início.

A Criação divina é, ainda, o estabelecimento da separação na própria Criação.

Em outras palavras, é colocar diferenciação (ao contrário da chora onde no início

reina a confusão) nas coisas criadas. Neste sentido, a Criação é um ato de arte. Para

Gesché, a alteridade e a diferenciação na própria Criação são a afirmação de que as

escolhas são possíveis e de que nem tudo está pronto: 41

37 Este termo deve ser compreendido conforme explicado na primeira parte deste segundo capítulo. 38 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 64. 39 Isso seria afirmar a eternidade e não-Criação da matéria. 40 A expressão a-téia não deve ser entendido no sentido comum de descrença em Deus. Gesché retoma esta expressão de Lévinas que, através dela, descreve a própria posição criadora de Deus, cuja grandeza é ter criado algo diferente, separado, uma realidade diferente dele mesmo. 41 Não seria isso que as árvores do jardim representam? Cf. Gn. 2,9.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

77

Criar é instaurar uma realidade que não é completa, ‘una’, acabada pronta e amarrada, e sim uma realidade na qual há distanciamento, jogo, carência (como entre o homem e a mulher), precisamente porque há novidade, liberdade, invenção.42

Nesta Criação-separação, em que a arte precede a natureza e o acaso, a

realidade é vista como um grande campo de invenção e Criação, “um espaço de

liberdade no qual nada está definitivamente acabado e definido”.43 Torna-se patente

assim, a radical diferença entre a Criação e uma ordem sem liberdade, pronta e

imobilizadora. A Criação divina na concepção judaico-cristã é invenção e não

necessidade. A liberdade e a invenção (arte) se sobrepõem a qualquer repetição ou

fatalidade da natureza ou do acaso.

A afirmação acima indica necessariamente, segundo Gesché, que toda a

realidade, desde seu início, anterior ao ser humano já se encontra impregnada de

liberdade e criatividade. Esta concepção evita o isolamento indevido do ser humano,

pois este em sua liberdade não é uma exceção absoluta. A liberdade humana, por

mais específica que seja se “enraíza numa ordem geral, na qual toda a realidade já

está permeada por um regime de liberdade”.44 Neste ponto, Gesché indica a diferença

desta concepção judaico-cristã com a concepção da liberdade humana no

existencialismo. Neste, o estatuto da liberdade humana é acósmico, o que enfraquece

ontologicamente seu estatuto. Naquele o ser humano é inseparável do cosmo e do

espaço.

Segundo Gesché, esta compreensão é de suma importância para o diálogo

entre teologia e ciência. O fato é que a teologia não poder ser feita ignorando a

ciência. Não que haja dependência entre uma e outra, mas por serem discursos

diferentes ambas têm o que dizer sobre a realidade, cada uma de seu campo. E esse

dizer mútuo pode contribuir e muito para cada campo. A compreensão da realidade

como um lugar de liberdade, lugar de Criação, não seria de grande valia para a

ciência, que tem sobre si a exigência de não subjugação da natureza e de não trato do

ser humano como um brinquedo? Em outras palavras, a ciência poderá encontrar no

discurso teológico da Criação judaico-cristã um companheiro.

42 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 66. 43 Ibid., p. 64. 44 Ibid., p. 68.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

78

Esta seta apontada por Adolphe Gesché podemos perceber já em Platão que,

diante dos atomistas pré-socráticos que descartaram deus (a intervenção) de sua

“cosmologia”, postulou expressamente a intervenção, a existência de um demiurgo

(deus) para que o mundo não fosse entregue ao acaso e a necessidade. Isto Platão faz

em favor do ser humano, pois vê na afirmação de uma teologia uma forma de evitar a

depressão humana. Assim, “temos em Platão uma prova de Deus singularmente forte,

especialmente para nosso tempo”.45 Em nosso tempo, em que o ateísmo está

fundamentado principalmente na compreensão de que a idéia de Deus é prejudicial ao

ser humano, a fé na Criação, reiterada por Platão, com seu demiurgo (intervenção),

expressa exatamente o oposto. A compreensão de um mundo, sem qualquer

intervenção, isto sim, é prejudicial ao ser humano.

3.3.4.

A conseqüência da lógica da Criação para a compreen são da Criação

do ser humano

A partir da lógica da Criação vista acima, em que arte está preposta à natureza

e ao acaso, vimos que a Criação divina tem impregnado em seu ser a liberdade e está

permeada de inventividade (criatividade). Refletindo agora sobre a Criação do ser

humano, este, bem mais que o restante da Criação, será um ser criado criador em uma

tripla relação: em relação ao cosmo, em relação a si mesmo e em relação a Deus.

Segundo Santo Agostinho, com o ser humano o anseio do cosmo ganhará todo

o seu sentido: “para que houvesse verdadeiramente começo e iniciativa, o ser humano

foi criado”.46 É assim atribuído ao ser humano um sacerdócio diante de toda a

Criação, pois será ele quem irá realizá-la de fato. Gesché fundamenta esta

compreensão no relato da Criação do Gênesis basicamente em três pontos: o repouso

de Deus no sétimo dia (cf. Gn 2,1-3), o tema do cultivo do Jardim (cf. Gn 2,15) e o

mandamento de crescer e multiplicar (cf. Gn 1,24-27).

45 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 70. 46 Santo Agostinho apud Ibid., p. 71.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

79

Para nosso autor, o repouso de Deus no sétimo dia sugere que a partir do

descanso divino será outro que dará continuidade ao gesto criador. Isto parece ser

confirmado com o indicativo da nomeação feita pelo ser humano em relação aos

animais, que não se trata de simples classificação, mas trata-se de fazer existir aquilo

que simplesmente é, pois segundo Gesché, nomear é ser. O tema do cultivo do jardim

indica uma concepção de continuidade de Criação, que suspendida por Deus, é

confiada ao ser humano. O cultivo, não se trataria de uma simples gerência, mas

também de invenção. Em resumo, estamos “diante de um mundo perfeitamente

imperfeito”.47 A perfeição da Criação divina, na perspectiva de Gesché, parece

consistir precisamente no fato de ter dado ao ser humano um mundo onde há o que

fazer.

O mandamento divino ao ser humano de crescer e multiplicar traz, ainda na

perspectiva de Gesché, a idéia de que o mundo está inacabado, sendo o ser humano

chamado a expandir e aperfeiçoar todas as coisas. Em relação às outras criações

(plantas e animais) é dada a ordem divina para que se multipliquem segundo suas

espécies, já aos seres humanos é ordenado apenas que se multipliquem e cresçam,

pois o ser humano é criado como alguém, único. Adão e Eva não são chamados a

reproduzirem sua espécie (adamidade), mas outras pessoas.

O ser humano é criado criador em relação ao Cosmo, pois possui em si uma

liberdade inventiva que não diminui em nada a Criação divina, pelo contrário, dá

continuidade à intenção do Criador. Aprofundando este argumento, pode-se afirmar

que o ser humano não foi simplesmente causado, mas criado como causa:

o ser humano é criado para criar, para que tenha liberdade ‘assim na terra como no céu’. Deus não criou coisas e sim, criou a Criação, algo que deve sempre se inventar e ser inventado, e onde o ser humano, criado criador, exerce a função insuperável de co-criador.48

Com isso, infere-se que o cosmo ainda está em estado de Criação e cabe ao ser

humano dar-lhe o seu desdobramento. Porem, há de se ter em mente que não se trata

de descobrir aquilo que já existia, mas sim de criar, de fazer, de suscitar. O cosmo

47 MUSIL, R. Homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1989, p. 91. 48 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 73.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

80

sem o ser humano seria sem sentido, sendo assim, aguarda o ser humano para lhe dar

o completo sentido.

O ser humano é um ser criado criador também em uma segunda direção,

conforme assinalado acima. Ele é criado criador em relação à si mesmo. O ser

humano, neste sentido, está imbuído na construção de seu próprio ser, fazendo parte

de sua própria Criação. Encontramos no texto de Gênesis a afirmação de que o ser

humano é criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26) e justamente por

isso o ser humano torna-se um ser criador, isto faz parte de seu próprio ser.

A famosa máxima existencialista “a existência precede a essência” pode ser

usada em paralelo com o que se pretende dizer aqui. Porém, há que se fazer uma

ressalva. A fé cristã não pode simplesmente afirmar a máxima acima. O ser humano,

segundo a perspectiva cristã, recebe uma proposta de Deus e o que o ser humano

recebe nesta proposta divina, não recebe completamente. Nesse sentido, o ser humano

tem de se fazer, e somente neste sentido pode-se afirmar que nossa existência precede

(faz existir) nossa essência: “tornar aquilo que somos, realizar, pela nossa existência,

o chamado de nossa essência: é assim que se concebe a antropologia cristã,

antropologia de vocação”.49

Trata-se, na realidade, de uma destinação sobrenatural e gratuita, na qual o ser

humano deve completar a sua essência. Esta “lhe é proposta e finalmente dada, mas

exatamente sob forma de dom, isto é, como realidade a ser acolhida, querida e

preparada”.50 Este tema aponta para o que será desenvolvido mais à frente, a

Salvação, a construção de si próprio em relação (direção) a Deus. Visto desta forma, a

Salvação do ser humano não o atinge de fora. Mas em seu próprio ser, ao ser humano

é dado, uma capacidade ontológica (perdoe a redundância), essencial, em outras

palavras, o ser humano é essencialmente capaz de Deus (capax Dei).

Além de criado criador em relação ao cosmo e a si mesmo, segundo Adolphe

Gesché, o ser humano é um ser criado criador em relação a Deus. O ser humano é

criado criador em relação a Deus à medida em que sua relação com Ele não é vivida

em termos de obrigação e sim de liberdade, Criação e invenção. Pois é ao ser humano

49 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 77. 50 Idem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

81

que cabe, em sua diferença de Deus, em sua realidade a-téia,51metamorfosear,

transformar esta diferença, esta separação, em união. De forma ainda mais

fundamental, Gesché descreve esta relação de criado criador do ser humano

indagando se não é missão do ser humano, recebida de Deus, fazer existir Deus. Com

certeza Deus simplesmente é, e não carece do ser humano para ser, mas não seria a

missão do ser humano fazê-lo existir? “Se vocês não se manifestarem eu não

existirei”.52

3.3.5.

Fé na Criação: contribuições à ciência e à antropol ogia

Poderia a fé na Criação dar alguma contribuição à ciência e à Antropologia?

Ou a concepção teológica do universo é, em relação à posição científica e humanista,

um conceito arcaico e pré-racional? Gesché encontrou primeiro em Platão um apoio

para uma resposta positiva à primeira indagação e uma resposta negativa à última

indagação.

Mesmo conhecendo a interpretação da concepção atéia do surgimento da

realidade (vale lembrar, concepção muito próxima à concepção científica moderna e

atéia), Platão lançou mão de um demiurgo para que pudesse compreender o mundo

onde reina a arte e a liberdade. Ele se recusou a enxergar no acaso e na natureza a

origem e a razão do que o cosmo veio a se tornar.

Vemos que, para o respeitável Platão, a idéia teológica não é arcaica nem pré-

racional. Sua opinião, pelo contrário, era de que a idéia teológica era uma grande

proeza, que merece tudo menos zombaria e desprezo.53 Segundo ele, a idéia teológica

nada tinha de insustentável e de menos inteligente do que a concepção atéia e tinha

um grande benefício: salva o ser humano de uma visão onde a lei da necessidade

domina.54

51 Cf. nota 195. 52 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 82. Esta é uma citação feita por Gesché tirada do Talmude. 53 Cf. PLATÃO. O Timeu, 28 c. 54 Cf. Ibid. 48 d.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

82

Para Gesché, as idéias de Platão confirmam a convicção judaico-cristã, pois

esta afirma que colocar Deus no começo é colocar a liberdade na partida de todas as

coisas, é romper com toda a fatalidade. Mais ainda, é anunciar no mundo uma

liberdade criadora e não mimética. Tal liberdade criadora é mais do que simples

liberdade, é uma liberdade de pleno direito e dever, é uma liberdade que constrói.

Além disso, a crença na Criação, segundo Gesché, propõe uma antropologia

muito forte, pois mostra que o ser humano não é mais traçado pela necessidade e pela

submissão, mas, encontra seus traços na liberdade e na invenção. Não é justamente

isso que está no cerne das Antropologias modernas? Há Antropologia mais moderna

do que esta?

Com isso vemos que a fé na Criação é progresso e não uma regressão em

relação à interpretação imanente do mundo e do ser humano. A idéia de Deus no

começo, desta forma, poderia ser vista como requerida por razão antropológica:

Poderia haver erro ou risco de erro antropológico, não ‘simplesmente’ teológico, ao descartar-se Deus da compreensão das coisas. Porque é toda uma epistemologia da realidade que está aqui em jogo, e principalmente toda uma semântica do ser humano: como vamos compreendê-lo melhor?55

Por fim, a idéia cristã da Criação propõe uma visão da realidade que não é

redutível a nenhuma outra. Esse exclusivo da fé judaico-cristã na Criação eleva a

realidade ao ser e introduz um princípio de alteridade e diferença que permite a

liberdade humana, uma liberdade inventiva, liberdade criativa.

Aqui, percebe-se que o discurso teológico se junta aos anseios existencialista e

humanista da construção humana de si e dá a sua contribuição ao logos, uma

contribuição exclusiva que nenhum outro discurso poderia dar e sem o qual, todos os

discursos, sejam de quais áreas forem, seriam incompletos. Reafirma-se aqui mais

uma vez a relevância do discurso teológico sobre a Criação e sua contribuição para

outras ciências, ao mesmo tempo em que aponta para a realidade que lhe é intrínseca

conforme veremos no próximo item, a realidade da Salvação afirmada pela teologia

cristã.

55 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 86.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

83

3.4.

Salvação judaico-cristã: a plena realização do ser humano

Anteriormente, na terceira parte deste capítulo, vimos como o autor Adolphe

Gesché articula o discurso judaico-cristão da fé na Criação. O que vimos já indicou

setas para o que iremos tratar nesta quarta parte deste capítulo. Aqui trataremos da

idéia cristã de Salvação, e como o autor articula este conceito com a idéia de Criação.

Também veremos as questões da relevância e inteligibilidade deste tão caro conceito

cristão.

3.4.1.

A relevância do discurso teológico sobre a Salvação

Atualmente o termo Salvação parece não gozar mais do mesmo status que já

gozou em idos tempos nos meios religiosos. Uma simples observação dos diversos

discursos religiosos (cristãos), tão acessíveis em nossos dias nos meios de

comunicação, comprova a observação acima. Parece haver certa repugnância diante

da suspeita de uma culpabilidade incompreensível. A palavra “Salvação” aparece

assim, como um termo arcaico que parece mostrar uma visão de mundo e concepção

do ser humano obsoletas e incompreensíveis.

No entanto, o termo que, em sua própria casa parece não ter honra, parece

estar muito presente e gozar de alta honra, nas mentes de notáveis pensadores.

Conforme afirma Gesché, “é como se todos esses pensadores não-ortodoxos viessem

perturbar nossos lapsos de memória cristã obliterada e nos lembrar de que possuímos

palavras preciosas que não temos o direito de trair sem novamente ouvir a causa

delas”.56 Nas palavras de Theodor Adorno, a filosofia, “da única maneira com que ela

ainda pode se postar diante do desespero, seria a tentativa de considerar todas as

coisas sob o ponto de vista da redenção”.57

56 GESCHÉ, Adolphe. A destinação. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 7. 57 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, 333.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

84

A teologia, ao falar de Salvação, expressa, de um modo mais fundamental,

uma preocupação de destinação. Trata-se de uma preocupação com a sorte do ser

humano e, segundo Gesché, esta preocupação é peculiar à fé e conseqüentemente,

também à teologia. Com o termo “Salvação”, de forma mais direta, a fé cristã

expressa o interesse pela realização total do ser humano, interesse pelo cumprimento

efetivo de sua existência. Nesta perspectiva, a palavra “Salvação” tem um significado

transcendente, tendo assim um peso de eternidade que, segundo Gesché, do mesmo

modo parece gozar de certo grau de desprezo. Mas, teria a palavra “eternidade”

perdido seu sentido e importância? A esta indagação Gesché responde com Hannah

Arendt, pois ela denunciou a armadilha de uma destinação pensada apenas no

horizonte da história, somente como fim da ação humana: “se a secularização do

mundo implica o renascimento do antigo desejo de uma espécie de imortalidade

terrestre, então a ação humana se deve mostrar como particularmente inadequada para

responder às exigências da nova época”.58

Diante da importância da questão da Salvação presente em grandes

pensadores seculares, o repensar teológico sobre a Salvação torna-se uma exigência

atual. Pois a Salvação, na perspectiva da fé, ultrapassa todas as interpretações

seculares que se possa ter desta. Sendo assim, deve-se voltar à palavra (Salvação) e

perguntar pelo seu conteúdo irredutível, pelo que lhe é exclusivo e próprio.

Essa questão deve ser então, esclarecida. Principalmente o motivo pelo qual a

idéia da Salvação não goza do mesmo elevado prestígio do passado, ao contrário,

suscita hoje muito mais do que reticências. A Salvação que no passado era algo

evidente se transformou em não-evidência, aliás em algo muito pouco verificável.

Qual a causa dessa mudança, dessa desconfiança em relação à Salvação cristã

anunciada? Seria esta idéia, tão arraigada em nós e em nosso passado, vivida há bem

pouco tempo como a mais importante, totalmente falsa e enganadora? A proposta que

Adolphe Gesché nos faz é que talvez a Salvação seja algo diferente daquilo que,

tradicionalmente, costumamos pensar.

Fundamentalmente, segundo nosso autor, a palavra “Salvação” visa a sorte e o

sentido da existência humana. O que está por trás dela é a questão da felicidade e da

58 ARENDT, Hannah apud GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 6.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

85

desgraça, do sucesso e do fracasso, do sentido da vida e do destino do ser, enfim, tudo

aquilo que diz respeito à destinação e aos fins do ser humano. Sendo assim, a questão

da Salvação não é uma questão tola, obsoleta e sem sentido que não diz nada mais ao

ser humano de hoje, o que grandes pensadores já perceberam. A questão, de acordo

com Gesché, simplesmente está mal posta.

3.4.2.

Salvação cristã: realização total do ser humano

A questão da Salvação como é comumente tratada, é preposta por outra

questão. Trata-se da questão do pecado. Mas a questão da Salvação trata-se somente

de uma Salvação do pecado? Segundo Gesché, conforme indicado acima, esta

questão está, na realidade, mal posta. Da forma como se compreende esta idéia

comumente, o que ocorre é um reducionismo da Salvação cristã. A questão

“precisamos da Salvação porque somos pecadores” precisa ser repensada.

Tal como está colocada, a questão da Salvação é motivo para inúmeras

suspeitas do tipo: “a Salvação não seria uma invenção dos padres, invenção essa

endereçada para uma mais fundamental, a de que seríamos pecadores?”.59 Esta

suspeita já fora denunciada por Delumeau que afirmou ser uma invenção destinada a

nos levar à Deus pela força e pelo medo.60 Esta suspeita é ratificada por outros

dizeres do tipo: “é porque não há mais senso do pecado que se perdeu o senso de

Deus”. O fato, e isso talvez seja o principal motivo da incompreensão da questão

salvífica, é que o mal e o pecado podem ser instrumentalizados e utilizados para

justificar uma necessidade de Salvação na caminhada para Deus.

O que era uma ampla questão, na perspectiva de Gesché, foi reduzida, até o

ponto de quase ficar descaracterizada. Ao tratar da Salvação a fé judaico-cristã trata

de uma questão que se mostra bem maior do que o senso comum compreende, pois

Salvação diz respeito à destinação do ser humano. Assim, Gesché pretende recuperar

59 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 23. 60 Cf. DELUMEAU, J. O pecado e o medo: a culpabiliação no ocidente. Bauru: Edusc, 2003.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

86

a questão da Salvação desvinculando-a primeiramente da exclusividade com que

ficou atrelada ao pecado.

Ao invés de se falar de pecado antes de Salvação deve-se falar, isto sim, de

Criação.61 Pois a Salvação não é uma questão negativa (salvar de...), ela apresenta-se,

primeiramente, como uma questão positiva. Isto é verificado pela própria raiz da

palavra e seus derivados: salvus significa forte, sadio, sólido e conservado, e salvare

significa tornar forte, preservar e conservar.62 Sendo assim, segundo Gesché, salvar é

levar alguém até a própria meta, permitir que ele se realize, que atinja seu objetivo,

objetivo ao qual foi criado.

Conforme visto no item sobre a Criação do ser humano,63 este é um ser de

liberdade e inacabado, criado criador em relação a si mesmo, que está se construindo

em busca de sua realização. Assim, todo o ser humano busca se realizar e vê nisso um

bem que se liga ao que há de mais fundamental em seu ser. O ser humano deseja algo

mais e melhor para si. Posto desta forma, a idéia de Salvação traz em si, antes de

qualquer superação de pecado, a realização do ser humano. É uma idéia totalmente

positiva. Esta é, na perspectiva de Gesché, a mensagem cristã apresentada sobre a

Salvação, mensagem apresentada em termos de finalidade do ser humano que crê.

Vemos então que se trata de aspiração que é interpretada independentemente de qualquer idéia negativa de falta ou de queda. De fato, é um sentimento bem mais global, envolvendo também o coração e a inteligência, o corpo e a ação. Aspiração que nos penetra como um sopro e como um impulso de vida: atingir a meta de si mesmo, chegar ao extremo das próprias possibilidades e faculdades, chegar a se realizar, a conseguir esta profunda satisfação e essa felicidade de ter tido uma vida sensata e realizada, de não ter passado ao largo de sua vida e de seu ser, de conseguir esta profunda satisfação de uma vida bem-sucedida e realizada.64

Visto assim, em sua essência, a questão da Salvação não é uma questão

secundária ao pecado. Mas sim, da realização humana e de todas as coisas dentro da

finalidade que os define. A Salvação é a realização total do ser humano em sua

capacidade de Deus. Pode-se falar aqui de estrutura de capacidade, tornando-o apto a

61 Esta ordem está implícita na forma como esta capítulo está montado. 62 Cf. GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 24. 63 Cf. tópico 3.3.4. 64 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 24.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

87

Deus. O ser humano, por isso mesmo, não é atingido pela Salvação a partir de fora,

mas em seu ser. É uma capacidade “ontológica”, essencial e não puramente moral.65

O aspecto negativo que foi indicado acima é, porém, um aspecto real da

Salvação. O problema aparece quando se reduz toda a Salvação a este aspecto. No

caminho, em busca de sua realização, o ser humano faz experiências de muitos

empecilhos e obstáculos. E neste caso, pode-se falar de “Salvação de”. Somente neste

ponto, apoiado primeiramente no aspecto positivo da idéia de Salvação, pode-se falar

de Salvação em termos negativos. Para Gesché é somente pela existência destes

obstáculos e empecilhos encontrados pelo ser humano em sua busca de Salvação-

realização, que a Salvação assume uma forma de uma redenção.

O aspecto negativo da Salvação é essencial, porém é restrito e secundário em

relação à idéia primeira de Salvação positiva, como realização total de toda a

finalidade humana. O problema se deu a partir do momento em que, na história do

pensamento cristão, confundiu-se a totalidade da Salvação com o que era apenas um

de seus aspectos. A conseqüência desta confusão resultou em uma má compreensão

do homem de si mesmo: o ser humano seria um ser condenado por uma obscura

maldição. Esta má compreensão acarretou muitos danos para o cristianismo e um

deles é uma compreensão de Salvação como libertação humana de si mesmo, dando

margem para uma compreensão gnóstica em que a Salvação consistiria em uma

libertação da natureza má que carregamos.

Uma visão bíblica correta, na perspectiva de Gesché, tem espaço para essa

idéia de libertação, mas de libertação daquilo que nos impede de sermos nós mesmos,

não de libertação de nós mesmos. A Salvação cristã não está, assim, fundada sobre o

desprezo do ser humano de si mesmo, de sua natureza. O que ocorre é exatamente o

contrário, pois a idéia de Salvação cristã baseia-se em uma compreensão bastante

sublime do ser humano, que em sua trajetória rumo à plena realização, encontra

obstáculos dos quais precisa ser liberto a fim de prosseguir em seu caminho.66 A

“Salvação de” não teria sentido se não fosse uma libertação “em vista de”.

65 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O ser humano, p. 103. 66 Cf. Id., Adolphe. A destinação, p. 26.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

88

Recuperado o sentido da Salvação cristã e sua idéia essencialmente positiva,

podemos falar agora especificamente sobre o aspecto negativo da Salvação. Todo o

ser humano deseja salvar sua vida, realizá-la. Segundo Gesché, “quem perde esse

desejo, que é o alfa e o ômega de toda a vida, já corre o risco de estar perdido, no

sentido forte do termo, como antônimo de salvo”.67 E, quem se encontra nesta

situação, está diante do sofrimento humano mais profundo e os conflitos morais são

apenas sintomas desta situação.

Na busca de sua realização total, o ser humano se depara com inúmeros

obstáculos à realização de sua destinação. Porém, estes obstáculos podem ser

resumidos em três principais: a morte, a fatalidade e o mal. Mesmo este aspecto

negativo da Salvação não pode ser reduzido unicamente à questão do pecado. O

pecado é apenas um dos obstáculos dos quais precisamos ser libertos em nossa

caminhada rumo à realização plena da destinação de nosso ser e está inserido na

categoria do “mal”. A idéia de Salvação cristã, mesmo em seu aspecto negativo, se

apresenta bem mais ampla do que espontaneamente se pensa. Vejamos de perto esses

obstáculos.

O mal, tanto o mal imposto (desgraças, sofrimentos imerecidos e inocentes)

ou o mal desejado (a injustiça cometida por nós mesmo, a falta, o pecado), se

apresenta como obstáculo à nossa vontade mais profunda de realização de nosso ser.

O mal é um duro obstáculo que já o apóstolo Paulo denunciou: “Porque o que faço,

não o aprovo; pois, o que quero, isso não faço, mas o que aborreço, isso faço” (Rm

7,15). Mais a frente trataremos de perto este aspecto.

A morte não é encarada normalmente pelos seres humanos como um bem,

embora saibamos que se trata de algo natural e que todos os seres humanos estão

condicionados a ela. Todos de alguma forma são assombrados por ela. Isto é

demonstrado pelo fato de que todos nós queremos adiá-la o máximo possível, ou seja,

a morte não é uma realidade que amamos. A morte está diante de nós como que

indicando nossas limitações e finitude, indicando que não conseguiremos ir até o fim

de nossos planos de realização absoluta, pois ela é nosso aguilhão (cf. I Co 15,55-46).

67 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 26.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

89

No entanto, apesar da morte, o cristianismo fala de Salvação, e coloca a morte

em posição de inimiga que será aniquilada no fim, com a ressurreição (cf. I Co 15,26-

32). Não se trata, segundo Gesché, de uma concepção vitalista onde a morte biológica

seria completamente abolida. O sentido da vitória sobre a morte é teologal, pois a

morte está revestida de um aspecto que ultrapassa a morte física.68

O discurso da fé na Salvação cristã afirma que a morte não será um obstáculo

absoluto à nossa realização. Apesar da morte, o ser humano deve crer que foi criado

para a vida e não para a morte (cf. Gn 2,7). Assim, por mais real que a morte seja, ela

não pertence à definição do ser humano, não constitui sua finalidade, seu destino.

Com isso a morte não é negada, apenas é negado que ela defina o ser humano.

A fatalidade, segundo obstáculo para nossa realização, é caracterizada pelas

impotências de todos os tipos e imposições, sejam biológicas, históricas ou

existenciais, e age como uma força que obstaculiza e nos impede de chegarmos à

plena realização. Embora não creiamos mais na força do destino, que de tão forte até

os deuses a ela estariam submetidos, conhecemos os limites da liberdade humana. As

desgraças sociais, as doenças incuráveis, etc. estão a nos lembrar que o campo de

nossa liberdade é um tanto reduzido.

Temos que diferenciar neste ponto, essa nossa liberdade, um tanto limitada, do

fatalismo. Não é disso que trata Adolphe Gesché quando usa o termo “fatalidade”.

Contudo, não raramente encontramos em nosso meio, traços deste fatalismo que

julgávamos ter sido superado. Jargões do tipo “está escrito”, ou “foi da vontade de

Deus”, ou “é o destino” estão aí para nos lembrar que o antigo fatalismo ainda não foi

totalmente superado nas mentes comuns. A crescente busca pelas notícias dos

horóscopos, que indicam que nosso destino está traçado e determinado em algum

lugar, é mais um indício do fatalismo que nos ronda. Não obstante a estes falsos

discursos que na realidade engessam o ser humano, as ciências, sejam a psicologia ou

sociologia, denunciaram a realidade de determinismos que pesam sobre cada ser

humano e limitam nossa liberdade.69

68 Cf. GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 29. 69 Aqui poderíamos citar no campo da psicologia as análises psicológicas que demonstraram o poder do inconsciente, ou a descoberta na sociologia da força dos mecanismos de massa, ou ainda, no

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

90

Diante de tal situação, a fé na Salvação pregada pelo cristianismo tem alguma

contribuição para superação deste obstáculo que nos impede de prosseguirmos rumo à

realização do ser? Segundo Gesché o discurso cristão tradicional sobre a Salvação é

menos claro e atual do que o discurso sobre o pecado e a morte.70 Este é um fato

constatado, principalmente na teologia protestante.

No entanto, pensadores da envergadura de J. Habermas, entre outros, já

disseram que o cristianismo desfatalizou a história. Nos sistemas de pensamento,

como o grego, a liberdade era cerceada por uma mitologia, uma moral de resignação

(estoicismo) e uma concepção cíclica do tempo traduzida pela lei do eterno retorno.

Olhando de perto para a fé cristã da Salvação perceberemos que Habermas realmente

tem razão. Pois a fé cristã, ao falar de Salvação em seu sentido negativo, fala do

pecado, não como um poder incompreensível que a todos escapa. Mas, fala do pecado

como uma falta que nos é imputável. Dito de outra forma, a fé na Salvação afirma

que o mal não escapa totalmente da liberdade humana. O ser humano não se encontra

de mãos atadas diante do poder do mal, como se este fizesse parte do seu destino.

Ainda que se possa, e com razão, acusar o discurso cristão de estar na origem de uma culpabilidade excessiva, que foi tão fortemente calcada no ocidente, não se pode negar que ao mesmo tempo o primeiro deu ao segundo o senso de responsabilidade (e, portanto de liberdade) e uma grande paixão de luta contra todos os destinos e o predeterminismos.71

Isto foi possível por causa da interpretação do mal como pecado. Interpretar o

mal como pecado é interpretá-lo como não-fatalidade. Dizer ao ser humano que ele

pecou é dizer que ele poderia não ter pecado e o mal que veio como conseqüência de

seu pecado poderia ter sido evitado. O diferente é possível. Por isso, o ser humano

pode escolher seu caminho, outro caminho, para que não incorra no mesmo erro e não

lhe sobrevenha a mesma sorte: “a insistência na idéia de pecado introduz no ser

estruturalismo e sua acentuação sobre as pretensões do Sujeito em que se afirmou que somos precedidos por estruturas sociais e psíquicas que determinam nosso eu. 70 Cf. GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 30. 71 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 31.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

91

humano a consciência de que o mal não é de maneira alguma um poder fatal... mas

sim que é algo que ele pode vencer e destruir, ou seja, o mal não é irremediável”.72

Essa é a idéia de Salvação proclamada pela fé cristã. Idéia de que nada é

irremediável e definitivo, e que tudo pode ser retomado. Em uma palavra, tudo pode

ser salvo. Na prática, falar de Salvação é dizer ao ser humano que se viciou em

drogas que ele pode sair desta situação, pois esta situação não é definitiva. Embora

ele esteja usando droga não é esta realidade que o define, ele não é um drogado. É um

ser criado para a vida que precisa vencer os obstáculos que lhe impedem a realização

de seu ser. Não é essa a mensagem que é sintetizada no relato da mulher adúltera?

E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher, apanhada em adultério; E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E, na lei, nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que, dentre vós, está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Quando ouviram isto, saíram, um a um, a começar pelos mais velhos, até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu, também, te condeno; vai-te, e não peques mais. (Jo 8,3-11).

A mensagem de Salvação ensinada por Jesus Cristo é vista em seu voltar-se

para os homens e mulheres curvados e atados em seus corpos e almas. Seres humanos

aprisionados, profundamente infelizes, presos em seus obstáculos, sem liberdade que,

no encontro com Jesus Cristo, recebem força, direito e dever de liberdade que salva e

liberta. Recebem paz interior e exterior e confiança em seus próprios recursos,

tornando-se capazes de decisões criativas, de transgressão de toda e qualquer

fatalidade.

A fé na Salvação cristã, conforme vimos até aqui, é muito mais ampla do que

nos parecia. Mesmo o aspecto negativo da Salvação não pode ser restrita a nenhum de

seus sub-aspectos. A Salvação é, antes de qualquer coisa, uma idéia positiva de

realização total do ser humano, trata-se de uma questão que ultrapassa a simples

moral, pois refere-se à destinação do ser humano. No entanto, o aspecto negativo,

72 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

92

embora secundário, também é constitutivo da idéia de Salvação. Esse aspecto rompe

com a barreira da morte e com toda a sorte de fatalismo. Em resumo, em sua essência,

portanto, a idéia de Salvação significa a plena realização do ser humano.

Conseqüentemente, a fatalidade se esvai diante de tão profundo conceito.

3.4.3.

Salvação cristã: imanência, transcendência e Inteli gibilidade

Vista a questão sobre o real sentido da Salvação cristã, algo ainda fica em

suspense: esta realização plena (Salvação) trata-se de uma questão imanente, um bem

terrestre ou de uma realidade celestial, transcendente? E, qual a inteligibilidade desta

realidade?

Gesché apoiando-se, inicialmente em Kant, procura esclarecer a questão da

Salvação e identificá-la como uma questão de toda a raça humana. Para Kant, existem

três grandes questões essenciais ao ser humano e que o constituíram: primeira, “o que

posso saber?” Esta questão está situada no campo da ciência e do saber; segunda, “o

que devo fazer?” Esta questão está situada no campo da moral, da ação, da vida em

sociedade; e terceira, “o que me é permitido esperar?” Esta questão está situada no

campo das religiões, das finalidades, das questões de destinação.73

É justamente a terceira questão kantiana que nos interessa para efeito desta

abordagem. Esta questão tange o que tem de mais fundamental no ser humano, sua

aspiração mais profunda. Não bastam apenas as duas primeiras questões kantianas,

pois o ser humano precisa poder conhecer “o significado último do que sabe e do que

faz, ter diante de si uma esperança... uma finalidade que dá direção e orientação ao

que ele realiza”.74

O ser humano se questiona sobre essa finalidade de sua existência e a palavra

“destinação” ou “Salvação” desperta nele a idéia de que sua realização como ser

humano talvez tenha um sentido que o transcenda, que o leve “além de”. Para Gesché

73 Cf. GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 45. 74 Ibid., p. 46.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

93

essa idéia de uma realização transcendente, de uma destinação que confere sentido ao

ser humano, na realidade é constitutiva de seu ser.

Por isso a questão “o que me é permitido esperar?” para Kant é uma questão

do ser humano, pois este foi feito para mais do que ele consegue ver. O ser humano é

um ser transcendente que tem por estranha a idéia de um limitado destino ao qual está

aberto o caminho para uma destinação em que seu ser se realizaria plenamente. Desta

forma, “o termo profano ‘destinação’ e o religioso ‘Salvação’ evocam uma idéia na

qual o ser humano é convidado a buscar o fundamento de seu ser e de sua liberdade

para além do horizonte de certezas restritas”.75

Outro autor, Ernst Bloch, fora do campo cristão, segue nesta mesma linha.

Para este o ser humano é guiado por uma constitutiva esperança.76 Gesché, levando às

últimas conseqüências o pensamento deste autor, diz que a questão da Salvação cristã

encontra ecos fora de seu ambiente, pois, segundo ele, implicitamente Bloch

corrobora a afirmação de que a questão da Salvação é uma verdadeira questão e se

apresenta como uma questão de sentido e destinação.

Gesché, baseado em Kant e em Bloch, afirma a inteligibilidade da idéia de

Salvação, tendo como ponto de partida o que já foi dito sobre a Criação. Segundo ele,

o ser humano traz em si uma dimensão à qual nomeia de “mapa do céu”. Uma

dimensão que faz o ser humano viver. E para decifrar este mapa há de se lembrar, em

primeiro lugar, que somos a imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Em

palavras mais antigas, cada ser humano é uma centelha do infinito. Que o ser

humano é um ser finito já vimos, mas o que acabamos de ver quer dizer também que

o homem e a mulher são seres de infinito e de absoluto. Trata-se de verdadeiros

existenciais humanos.

Mas, diante disso, onde deve estar a atenção humana? No céu ou na terra? No

finito ou no infinito? Em sua imanência ou em sua transcendência? Neste ponto

Gesché alerta para os perigos de atenções unilaterais:

Não há lugar para se ficar entre o céu e a terra, entre salvar esta vida aqui ou salvar aquela vida lá. Creio mais que ambas se salvam uma pela outra. Todavia, nestes

75 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 47. 76 Cf. BLOCH, E. apud GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 47.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

94

últimos tempos se insistiu tanto sobre uma delas, que não é inútil trazer de novo à baila o lado esquecido do céu. Ao lado do véu de Verônica, que nos ensina a caridade do mundo, lá estava no mesmo dia, o véu do templo, que nos convida a olhar para o alto.77

O fato é que o ser humano não é apenas criatura como as demais obras da

Criação (cf. Gn 2,7.18-19). Ele é mais, é filho de Deus (cf. I Jo 3,1) criado à sua

imagem e semelhança (cf. Gn 1,26). Para o apóstolo Paulo nós somos templos de

Deus (cf. I Co 3,16), e para João Crisóstomo, somos lugares de uma liturgia divina.

Para Gesché, o ser humano é transcendido pelo alto. Somos seres de transcendência,

habitados por um sopro que vem do alto.

Conforme visto no tópico anterior, há inúmeros obstáculos que impedem o ser

humano de se realizar plenamente, de ser salvo, que foram classificados em três: a

morte, o mal e a fatalidade. Todos são empecilhos ao ser humano de chegarem

justamente à transcendência da qual estamos falando. Finalidade última do ser

humano.

3.5.

Conclusão do capítulo

Vimos no primeiro capítulo a ruptura entre as idéias cristãs da Criação e da

Salvação. Neste segundo capítulo, através da teologia de Adolphe Gesché,

procuramos encontrar elementos de articulação entre essas duas idéias preciosas e

fundamentais para o cristianismo. Com estes elementos, que dialogam tranqüilamente

com outros saberes atuais, vimos a superação desta ruptura anunciada no primeiro

capítulo.

O ser humano criado com uma finalidade de realização plena, de Salvação, é

criador em relação a si mesmo e se constrói rumo a essa absoluta realização, mas no

caminho encontra obstáculos que o impede de prosseguir. A fé cristã, porém,

proclama que destes obstáculos também será salvo. E sejam quais forem, eles não

definem o que é o ser humano. A superação da ruptura que vimos aqui se deu de

forma encarnada e articulada com outros discursos, outras razões e coloca o discurso 77 GESCHÉ, Adolphe. A destinação, p. 49.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA

95

teológico em condições de diálogo com outras ciências, como a teologia deve ser:

dizer nossa fé hoje. Porém resta-nos ver, ainda, a articulação teológica de Adolphe

Gesché sobre a Criação cosmológica e a cristologia cósmica e suas relações com a

idéia de Salvação cristã. Sobre estes pontos nos deteremos no próximo capítulo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0821116/CA