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1 A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO DEL-REI Nilo da Silva Lima Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG El movimiento moderno en el Brasil, fue un grito de alegria y entusiasmo. Fue el grito fuerte de la gente nueva. Un grito necesario, que encontró repercusión en todos los rincones de la tierra brasileña. La reación modernista, entre nosostros, nació de una fatiga unánime. (Peregrino Junior Verde, ano.1, n.5, jan.1928, p.15) Resumo: Objetivo desse artigo é analisar a recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei, por considerá-lo uma vertente praticamente desconhecida dos estudos e pesquisas acerca desse importante movimento literário no âmbito da história, da literatura, da arte e da cultural brasileira. Palavras-chaves: Modernismo, recepção, imprensa de São João del-Rei. 1 Introdução: Apesar de todo atraso na constituição da imprensa no Brasil, ora impedida pela Ordem- Régia, de 6 de junho de 1747, proibindo a publicação de quaisquer papéis no Brasil, ora pela morosidade na criação de infraestrutura mínima para a impressão, ora em razão da grande distância entre o interior de Minas Gerais e Rio de Janeiro e São Paulo, ainda, assim, São João del-Rei “foi, todavia, a segunda cidade mineira que teve imprensa periódica”, cujo marco foi a edição do Astro de Minas, por Baptista Caetano de Almeida, em 20 de novembro de 1827, “que o fundou e o manteve durante doze anos ininterruptos” (VIEGAS, 1969, p.74). Tendo, inclusive, promovido a implantação da primeira tipografia da cidade, onde foi impresso o Astro de Minas (REZENDE, 2008, p.1) que circulou em São João del-Rei, de 20 de novembro de 1827 a 6 de junho de 1839, em três edições semanais: às terças, quintas e sábados (REZENDE, 2008, p.6).

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A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO DEL-REI

Nilo da Silva Lima

Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG

El movimiento moderno en el Brasil, fue un grito de alegria y

entusiasmo. Fue el grito fuerte de la gente nueva. Un grito

necesario, que encontró repercusión en todos los rincones de la

tierra brasileña. La reación modernista, entre nosostros, nació

de una fatiga unánime.

(Peregrino Junior – Verde, ano.1, n.5, jan.1928, p.15)

Resumo:

Objetivo desse artigo é analisar a recepção do modernismo na imprensa de São João

del-Rei, por considerá-lo uma vertente praticamente desconhecida dos estudos e

pesquisas acerca desse importante movimento literário no âmbito da história, da

literatura, da arte e da cultural brasileira.

Palavras-chaves:

Modernismo, recepção, imprensa de São João del-Rei.

1 – Introdução:

Apesar de todo atraso na constituição da imprensa no Brasil, ora impedida pela Ordem-

Régia, de 6 de junho de 1747, proibindo a publicação de quaisquer papéis no Brasil, ora

pela morosidade na criação de infraestrutura mínima para a impressão, ora em razão da

grande distância entre o interior de Minas Gerais e Rio de Janeiro e São Paulo, ainda,

assim, São João del-Rei “foi, todavia, a segunda cidade mineira que teve imprensa

periódica”, cujo marco foi a edição do Astro de Minas, por Baptista Caetano de

Almeida, em 20 de novembro de 1827, “que o fundou e o manteve durante doze anos

ininterruptos” (VIEGAS, 1969, p.74). Tendo, inclusive, promovido a implantação da

primeira tipografia da cidade, onde foi impresso o Astro de Minas (REZENDE, 2008,

p.1) que circulou em São João del-Rei, de 20 de novembro de 1827 a 6 de junho de

1839, em três edições semanais: às terças, quintas e sábados (REZENDE, 2008, p.6).

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Ressalta-se, aqui, o que Guilherme Jorge de Rezende (2008) destaca quanto ao Astro de

Minas que esse jornal “acumulava também, como queria o seu mentor, a função de

livraria, comercializando livros e demais tipos de publicação” (2008, p.2).

Portanto, a imprensa de São João del-Rei nasce com e na publicação do Astro de Minas

(1827). Dessa época, além do “entusiasmo da mocidade” (VIEGAS, 1969, p.77) que se

aflora num número significativo de “folhas literárias de vida brilhante, mas efêmeras”

(VIEGAS, 1969, p.77), ao lado dos jornais murais, que surgem do empenho pioneiro de

João Lobosque Neto (Joanino Lobosque), criador do Jornal do Poste (OLIVEIRA,

2004), característica que distingue ainda esse jornalismo tipicamente são-joanense, a

imprensa se desenvolve e se firma como uma forma explícita e apaixonada pelo

progresso, pela defesa, pela projeção de São João del-Rei tanto em Minas Gerais quanto

no cenário nacional.

Uma análise, ainda que preliminar, incompleta, provisória e panorâmica dos programas

dos jornais, que elegem, de modo específico o editorial como território propício de sua

manifestação, e que compõe a linha de pensamento do jornal, desde a primeira edição

do Astro de Minas, em 1827, até os que hoje ainda continuam sendo escritos,

distribuídos, lidos, criticados e defendidos, em meio à absoluta transformação pela qual

a imprensa e todo sistema de comunicação atravessam, constata-se, claramente, a

manutenção da paixão por São João del-Rei. Pelo povo são-joanense, pelo progresso,

pela liberdade de imprensa, pela informação de qualidade, pela denúncia consciente,

responsável, pela prestação de serviços, pela cultura e, sobretudo, por uma consciência,

cada vez mais crítica, da riqueza inexorável do patrimônio histórico, artístico, literário e

cultural de São João del-Rei.

Nesse sentido, as “folhas literárias” têm vencido a efemeridade por essa consciência de

que a imprensa tem a responsabilidade na preservação, divulgação e modernização de

São João del-Rei. Aliás, à luz dessa consciência do patrimônio cultural de São João del-

Rei é que Baptista Caetano de Almeida cria a Biblioteca Municipal, “a primeira

biblioteca pública de Minas Gerais” (REZENDE, 2008, p.1). Nela, além do imenso

tesouro que guarda, mantém um acervo significativo dessas “folhas literárias”, que

comprovam a vitalidade contínua da imprensa são-joanense. Acervo que ainda clama

por investimentos, pesquisas, divulgação, que têm por obrigação corroborar a

consciência tanto dos que escreveram e escrevem quanto dos que preservam esse

patrimônio cultural são-joanense. Afinal, preservar implica muito mais do que criar e

manter acervos. Implica, sobretudo, democratizar o acesso a esse patrimônio cultural,

pesquisá-lo, conhecê-lo, entender a sua função social, trazê-lo dos cômodos

ensombrados e empoeirados dos arquivos à luz dos estudos contemporâneos de história,

literatura, arte, e cultura. Posto que “a questão do arquivo não é uma questão do

passado; trata-se de uma questão do futuro, de uma resposta, de uma promessa e de uma

responsabilidade para amanhã” (DERRIDA, 2001, p. 50). Ou seja, este é o tempo de

busca, de ir, de se desassossegar pela obsessão do “mal de arquivo” (DERRIDA, 2001,

p. 118) por conhecê-lo, pesquisá-lo, entendê-lo, para que o sentido menos incompleto se

revele num futuro, num amanhã que há de ser constituído por essa busca incessante

empreendida pelos estudos atuais, que se mostram tardios.

O interesse pela busca, pela pesquisa da recepção do modernismo na imprensa de São

João del-Rei, portanto, nasce e se justifica por essa busca incessante, não apenas pelo

simples registro da passagem da caravana de modernistas pela cidade. Mas, sobretudo,

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pela procura do significado dessa passagem, que mais do que dado, precisa ser

construído, tanto para o projeto histórico, artístico e cultural do modernismo quanto

para a imprensa são-joanense e para a produção literária que teve nessa imprensa, em

especial, no jornal, a sua principal e, por vezes, única fonte de registro, de veiculação e

de memória.

Um conjunto de ideias, ao mesmo tempo, provoca e justifica o estudo acerca da

recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei.

Primeiro, o que, a princípio, não teria nada a ver, o projeto que desenvolvo na produção

de uma espécie de dicionário de escritores e poetas de são-joanenses, ainda em

execução e que foi também um dos elementos que me fizeram deparar com uma enorme

produção literária feita, por muitos autores, apenas nessas chamadas “folhas literárias

são-joanenses”, em jornais que gritam, clamam, de seu silêncio quase absolutamente

mudo, pelo resgate, estudo, por um lugar, ainda apenas lá nesses bastidores da literatura.

Segundo, ainda persistindo em Derrida, essa possessão pelo “mal de arquivo”. Uma

febre que possui esse tipo de pesquisador e o leva, e o arrasta continuadamente para o

arquivo. Uma paixão por ouvir os gritos silentes e empoeirados dessa literatura, desse

patrimônio, não só literário, mas cultural, para trazê-lo à luz dos estudos

contemporâneos carentes da luminosidade esquecida, nunca ou raramente iluminadora

da cultura que nele reside. Reiterando nesse aspecto a obsessão que me fez ir atrás de

uma revista modernista editada aqui em São João del-Rei, mesmo entendendo que ela,

de fato, nunca poderia ser encontrada.

Apesar do diálogo constante, mantido entre poetas, escritores, jornalistas e artistas

ligados ao modernismo tanto de São Paulo e Rio de Janeiro quanto de Belo Horizonte e

poetas, escritores, jornalistas e artistas de São João del-Rei, um estudo dessa

correspondência comprovaria as consequências desse diálogo para a produção artística

são-joanense, aquela aversão pela destruição do passado, que erroneamente foi atribuída

aos projetos estéticos do modernismo, mediante a consciência da função do passado

para São João del-Rei, de fato, aqui nunca nasceria uma revista modernista. Embora o

modernismo nas letras, nas artes, na história e na cultura aqui se faça de uma maneira

que se constitui na vertente que mais encantaria Mário de Andrade, Manuel Bandeira,

Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, dentre os que aqui vieram e ainda continuam

vindo em busca de arte e de passado que aqui se fazem presentes.

Terceiro, a provocação que o jornal A Tribuna (1914-1938) continua propondo com

relação ao manancial inesgotável de suas fontes que podem não saciar à extinção

absoluta da sede, mas alentar essa sede da história, da literatura, da memória cultural de

São João del-Rei. Em especial, dois artigos publicados em suas páginas, um em 1924,

noticiando a visita de uma caravana de modernistas a São João del-Rei, a recepção que

tiveram na cidade. Outro em 1925 repudiando o futurismo, ainda eivado da mesma

confusão da época da Semana de Arte Moderna e que acirrara os ânimos entre

“modernistas/futuristas” e “conservadores”. Ao lado do fragmento de uma carta de 1938

enviada à redação por Gilberto de Alencar. Por uma obsessão por ler nesse conjunto de

textos mais do que o mero registro da passagem da caravana de modernistas pela cidade

sem outras consequências, um itinerário que implica uma nova vertente pela qual o

modernismo ainda não se leu nem foi lido.

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Por que A Tribuna, se o objetivo é pesquisar a recepção do modernismo na imprensa de

São João del-Rei? É que, apesar do grande número de jornais que sempre circularam e

ainda circulam em São João del-Rei, apenas A Tribuna registra a visita da caravana de

modernistas a São João del-Rei, com destaque para “essa cidade hospedando gente de

tão alta estirpe!” (T.B, 1924, p.1).

E também em razão da relevância que esse jornal apresenta no âmbito da imprensa e da

cultura são-joanenses, o que a sua história comprova, mantendo-se até hoje como um

dos jornais de São João del-Rei que, desde o Astro de Minas (1827), primeiro jornal

impresso de São João del-Rei, resistira bravamente à “efemeridade das folhas literárias

são-joanenses”.

Procedeu-se, desse modo, a uma ampla pesquisa em todos os jornais que circularam em

São João del-Rei no período compreendido entre 1919 a 1938. A escolha desse corpus

se fez por considerar a relação de proximidade com o ano de 1922, ano de realização da

Semana de Arte Moderna em São Paulo, em fevereiro de 1922 e os desdobramentos da

Semana na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (BOAVENTURA, 2000), quanto

os antecedentes da Semana. Assim, opta-se pelo início em 1919, por se tratar da data da

primeira viagem de Mário de Andrade a Minas Gerais (NATAL, 2007, p.193), e 1938

como término, considerando a morosidade, de certo modo natural, para que chegasse,

despertasse interesse e fosse tomada como matéria jornalística, no interior, a própria

Semana de Arte Moderna e a sua repercussão na imprensa de São Paulo e do Rio de

Janeiro, que se constituíam nos centros culturais com que os jornalistas, escritores e

poetas de São João del-Rei mantinham contatos, diálogos e até correspondência mais

frequentes. 193. E, ainda, em razão de um terceiro texto – o fragmento de uma carta

endereçada à redação d‟A Tribuna,em 16 de janeiro de 1938 e que faz eco com a

recepção do modernismo na imprensa são-joanense.

Nenhum jornal, a não ser A Tribuna, em São João del-Rei, portanto, ocupa-se, noticia e

se torna, em virtude dessa exclusividade, a fonte tanto do registro quanto das pesquisas

da recepção do modernismo em São João del-Rei. Quando se insiste na recepção do

modernismo e não apenas no registro isolado da caravana, como tem acontecido até o

momento, fundamenta-se essa opção no fato de que, além do artigo de T.B (Tancredo

Braga), publicado na primeira página, da edição nº537, de 24 de abril de 1924,

noticiando a chegada e a visita dos modernistas, o mesmo jornal publica, um ano

depois, novamente, na primeira página, da edição nº627, de 5 de março de 1925, o

artigo de J. Brandão “Verso futurista...Abaixo o futurismo!”, que se constitui num dos

documentos que testemunham a recepção do modernismo na imprensa de São João del-

Rei.

Quarto, por uma paixão – outra? – pela produção literária são-joanense que, guardadas

algumas exceções, continua se fazendo na contramão, ou pelo menos numa aparente

contramão, da estética modernista. Talvez seja esse o aspecto dessa produção que mais

me provoca e apaixona.

E, por último, pela possibilidade de pesquisa dessa vertente do modernismo que se

escreve não dos compêndios literários onde se torna uma tradição, mas dessas margens,

dos bastidores de si, de seu movimento, que permanece o modernismo ainda longe de

uma tradição de si como tradição.

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2 – A Semana de Arte Moderna

No livro, 22 por 22: a semana de arte moderna vista pelos seus contemporâneos

(2000), organizado por Maria Eugenia Boaventura, a pesquisadora “reúne as polêmicas

divulgadas na imprensa no decorrer do ano de 22”, quando ocorre, entre 11 e 18 de

fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo a Semana de Arte Moderna.

Os artigos reunidos demonstram, de modo claro e inequívoco, que a Semana de Arte

Moderna, além de ter sido um fiasco, do ponto de vista do desejo de envolver toda

sociedade paulista, provocou, na imprensa, um ímpeto de ataques de defensores dos

cânones artísticos e culturais contra os idealizadores da chamada nova era artística e

literária.

Houve uma resistência explícita, e certamente pouco pensada pelos modernistas da

Semana, manifestada por parte da imprensa, contra as ideias desse modernismo que lhes

pareceu ainda eivado de arrogância. O núcleo desses ataques foi a confusão estabelecida

entre futurismo, na sua acepção ligada às propostas de Marinetti, Boccioni e Russolo,

que defendiam uma ruptura total com o passado, pela independência, originalidade e

personalidade artística e o modernismo, como tendência para um futuro em oposição à

decadência melodramática do passado de que não queriam depender (ANDRADE, apud

BOAVENTURA, 2000, p.108). Essa confusão se origina a partir dos próprios

promotores da Semana de Arte Moderna que se nomeiam futuristas. Não sei se por um

lapso ou propositadamente. A defesa que, sobretudo, Oswald de Andrade faz do

equívoco de considerar futuristas os modernistas não resolve a dúvida acerca do lapso

ou do propósito. Pelo contrário, apenas acirra os ânimos e, assim, dissemina a Semana

pelo país (ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p.108).

É provável que a aversão ao futurismo afeito às ideias e aos ideais de Marinetti, aflore-

se em função da destruição do passado como forma de inaugurar e de impor o novo. E,

então, as calorosas disputas na imprensa, aliadas ao fracasso, aparente, da Semana de

Arte Moderna, acabam desviando o foco da semana propriamente dita, que talvez fosse

o objetivo maior, ainda que não de todo ou mesmo pouco consciente desta rebelião

estética, que erroneamente ainda continua confundindo com os tumultos da Semana, em

detrimento das conquistas para a arte, a literatura e para o cenário da cultura brasileira,

que irradiam a partir dessa Semana. Porém, sem estar, sem depender estritamente da

Semana em si. Tanto que todo transtorno do fiasco quanto a série de prolongados

ataques acaba corroborando a disseminação dos ideais, mais do que apenas das ideias

inauguradoras da Semana.

De modo geral, os artigos apresentam duas vertentes: a do entusiasmo dos “semideuses,

bárbaros e modernos”, sonhando uma “renascença paulista” e a condenação absoluta

dos adversários daquele “delírio coletivo a acometer um grupo de intelectuais

empolgados por um capricho passageiro”. Assim, temos, de um lado, a defesa

apaixonada da Semana de Arte de Moderna e da nova era literária e artística por Mário

de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Millet, Sérgio Buarque. E,

do outro lado, não menos apaixonadamente, porém contra, os ataques de Mário Pinto

Serva, Galvão Muniz, Oscar Guanabarino e Plínio Salgado.

Se por um lado, os apelos de modernização talvez exigissem, em nome da eficácia de

seu objetivo, e até pelo enfrentamento de uma tradição já canonizada, devidamente,

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constituída numa espécie de herança cultural, uma posição mais agressiva e veemente, o

que foi lido como arrogância. Por outro lado, os adversários, interessados na

manutenção dos cânones artísticos e culturais, no bônus dessa herança que se transmitia

como se nunca fosse ser questionada um dia, levaram ao extremo, a suposição dessa

arrogância, dessa agressividade do próprio movimento que visava mudança radical no

jeito de fazer, de interpretar, de criticar e de reler o patrimônio cultural e artístico do

país. Ora, não provocasse nada, tivesse sido toda morna, meiga e comportada, a Semana

teria sido pior do que o fracasso absoluto de que foi vítima, não teria existido. Não teria

movido absolutamente nada na cultura brasileira.

Portanto, o futurismo que os modernistas queriam, ainda que inspirado no ideal de

ruptura com o passado, não se quis, aqui, destruição alguma do passado. Antes,

postulava apenas, como esclareceria Oswald de Andrade, “um futuro construtor, em

oposição à decadência melodramática do passado de que não queríamos depender”

(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p.108).

Um aspecto relevante desse conjunto de textos é a fonte – o jornal. Uma ampla

discussão de arte, literatura e cultural brasileira que se inaugura e se faz pelos jornais.

Pode-se se dizer que exclusivamente pelos jornais, que são a memória mais profícua a

que as consequências, obrigatoriamente, continuariam voltando. Uma discussão toda ela

disseminada em jornais, a princípio de São Paulo e Rio de Janeiro, pela territorialidade

próxima do núcleo dessa discussão. Mas que se espalha também pelo interior, pelas

folhas literárias e culturais do interior, de uma maneira silenciosa, por vezes, sem o

galhardo, o sarcasmo, a violência e a força demonstradas na Semana de 1922.

Entretanto igualmente firme e veemente. Uma vertente esquecida e silenciada dessa

discussão ainda sem tempo exato de cessar no âmbito da cultura brasileira. Permanece

legada à poeira, à solidão, ao amarelamento, aos odores que habitam as inúmeras folhas

que compõem acervos de jornais imprescindíveis aos estudos do modernismo que

mantém dobras quase que absolutamente desconhecidas, praticamente um século depois

de 1922. Como o caso específico de São João del-Rei que não fica, nunca ficou à

margem desse palco de dramatização de uma das principais peças do patrimônio

histórico, artístico, literário e cultural desse país e mantém em seus acervos não mero

registro da passagem de caravana de modernistas, mas um marco importante e de

consequências mal conhecidas para a compreensão e o entendimento do próprio

modernismo, do que ele foi capaz de provocar, de produzir fora, para além do adro do

Teatro Municipal de São Paulo, para depois de 1922.

A caravana de modernistas que aqui esteve em 1924 e que o jornal A Tribuna (1914-

1938) noticia em suas páginas, com exclusividade, dadas as pesquisas empreendidas por

todos os outros jornais de circulação na época compreendida entre janeiro de 1919 e

janeiro de 1938, não se trata de uma mera passagem como se tudo tivesse silenciado

após a passagem da caravana, ainda em meio aos barulhos que persistem ameaçadores.

Também, não foi à toa, como um mero passeio sem pretensões que os modernistas

vieram a Minas Gerais, iniciando-se por São João del-Rei, exatamente na contramão da

mais grave acusação de que o movimento era alvo – a destruição do passado. Como não

foi à toa, ou por “deboche” que por aqui por Minas, e São João del-Rei novamente

estiveram de outras vezes. Andando, como Mário de Andrade disse “em busca de arte e

de passado” (ANDRADE, 1993, p.158). Vieram, pois, os modernistas, ver, sentir,

conhecer, estudar o passado, porque pretendiam superá-lo, não destruí-lo.

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Se o modernismo, confundido com futurismo tanto incita os ânimos na imprensa

paulista e carioca, com ataques veementes contra os ideais de uma nova era literária,

aqui, em São João del-Rei, haja vista que se defenderia, em tese, como fundamento da

nova estética, a destruição do passado, e o passado se constituindo no maior patrimônio

cultural da cidade, e o próprio jornal A Tribuna mantinha em seu programa, e esse afã

que se repete por todos os programas de quase todos os jornais que aqui foram

publicado e que ainda se publicam, explicitado em diversos de seus editorais, um

apaixonado compromisso com o patrimônio material, artístico e cultural de São João

del-Rei, não poderia, a princípio, reagir de outra forma a imprensa são-joanense.

Portanto, ela se soma à imprensa nacional, absolutamente a tempo, posto que a Semana

tinha acontecido em 1922, gritando “Verso futurista... Abaixo o futurismo!”, no artigo

de J. Brandão, de março de 1925.

Embora a imprensa são-joanense, penso, tivesse tido a chance, com a passagem da

caravana de modernistas por São João del-Rei, de entender dois anos após a tumultuada

Semana de Arte Moderna, que o modernismo não tinha nada a ver com o futurismo e

que, ao contrário de destruir o passado, os modernistas, que aqui se encontravam,

vinham a Minas Gerais em busca das fontes deste passado e de sua arte, porque se opor

ao passado exige conhecê-lo antes, profundamente.

Portanto, o artigo de J. Brandão de 1925 contra o futurismo, malgrado os ânimos ainda

acirrados pelo interior, parece-me meio na contramão histórica daquela distinção na

hospitalidade com que a caravana de modernistas foi acolhida em São João del-Rei,

regada a desfile de blocos carnavalescos, vinhos bons e discursos. Uma noitada que

marca profundamente os modernistas, em especial, Mário de Andrade que recomenda a

Manuel Bandeira São João del-Rei, em resposta à carta de 2 de janeiro de 1928, em que

Manuel Bandeira conta a Mário de um projeto de viagem às cidades históricas de Minas

Gerais, incluindo São João del-Rei. Viagem que entre acertos e falhas, Manuel Bandeira

faria no final de fevereiro de 1928 (MORAES, 2001, p. 371-394) e até agora pelas

pesquisas teria passado sem nenhum registro na imprensa de São João del-Rei. Ou seja,

Mário de Andrade e Manuel Bandeira trocam impressões dessas viagens a Minas Gerais

de janeiro de 1928, quando Manuel Bandeira revela a Mário a intenção da viagem, até

junho de 1928, quando Mário diz a Manuel Bandeira que fora incluído por José

Mariano numa nova caravana a Ouro Preto, custeada pelo Governo de Minas.

3 – A Tribuna

A Tribuna começa a circular em São João del-Rei no dia 26 de julho de 1914 com o

título em caixa alta: A Tribuna:“Semanário noticioso, literário, humorístico e

ilustrado”, sob a direção de seus fundadores: Tancredo Lisboa Braga (funcionário da

Diretoria dos Correios), João Jeunon Júnior (comerciante) e João Viegas Filho

(estudante de Farmácia em Ouro Preto). Circula quase ininterruptamente entre 1914 a

1938. Trata-se do primeiro jornal ilustrado de São João del-Rei e era impresso na

Gráfica Garcia, no Rio de Janeiro, em quatro páginas de papel acetinado, medindo 48

cm de comprimento por 34 cm de largura, sendo que a partir do quarto número passa a

ser impresso em papel comum, devido os preços e as dificuldades causadas pela guerra

europeia. A Tribuna compreende duas fases: a primeira, de 1914 a 1920, fase do

idealismo lisonjeador, no sentido de que se acreditava no progresso da cidade, que

haveria ser resgatada junto à fé otimista no homem e na paz; a segunda, de 1920 a 1938,

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fase da maturidade, da fundamentação do programa, da conquista de espaço e de

credibilidade (LIMA, 2004, p. 76-83).

A diagramação d‟A Tribuna distribui os elementos da seguinte forma: a primeira página

traz no alto o título e o subtítulo do jornal e logo abaixo o número da edição, o ano de

publicação, o local, a data, constando dia, mês e os artigos dispostos em cinco colunas

verticais, por vezes, apresenta uma sexta coluna.

A primeira página é o palco das notícias mais importantes. Nela se encontra um

panorama sobre a cidade – administração pública municipal, eventos religiosos, cívicos,

políticos, militares e culturais, como o carnaval, a semana santa, bem como artigos

sobre educação, discursos, alguns ensaios sobre literatura e arte e o editorial, que não

aparece em todas as edições. Aparecem também nessa página poemas e crônicas de

colaboradores de São João del-Rei e de outras cidades, quase sempre autores

consagrados. E a ilustração que é a inovação do jornal, sempre retratando

personalidades da vida política de São João del-Rei e de projeção em Minas Gerais.

Posteriormente, figuram também moças e artistas de famílias tradicionais de São João

del-Rei.

A segunda página se constitui no espaço de notas sociais. Aliás, traz o título em

destaque “Chronica Social”, que se transforma logo após a quinta edição em “Notas

Sociais”, que permanece até a última edição do jornal. Registram-se nessa página lista

de aniversariantes da semana, comentários de recepções, notas de falecimento, avisos de

cultos e celebrações religiosas, e a coluna “Instantâneos/Perfis”, assinada por P.Tronio,

tratando de um olhar quotidiano poeticamente romantizado sobre a cidade e sua gente,

em especial sobre as moças, numa visão assexualizada e divinizadora da mulher.

Publicam-se também os avisos sobre Teatro, que mantinha sempre alguma peça em

cartaz ora no Teatro Municipal, ora no Teatro Artur Azevedo, os recitais de piano, as

exibições da orquestras Ribeiro Bastos e Lira Sanjoanense, com objetivo de incentivar e

divulgar um turismo que se interesse cada vez mais pelo patrimônio cultural de São

João del-Rei.

A terceira página é reservada à publicação de atos oficiais da Câmara Municipal, como

balancetes, resumos de obras em andamento ou finalizadas no perímetro urbano e nos

Distritos, prestações de contas – o jornal antecede muitos anos antes da legislação

pública moderna, criando em São João del-Rei a cultura da transparência e da prestação

de contas do serviço público que hoje é exigida por uma legislação rigorosa. Nela se

inicia, conforme a diagramação que varia de uma edição para a outra, os anúncios

publicitários.

A quarta página é exclusivamente dedicada aos anúncios publicitários dos órgãos do

comércio e de empresas que patrocinavam a edição do jornal.

A Tribuna tinha uma tiragem de 2000 exemplares por edição, que eram distribuídos

entre assinantes, órgãos públicos e a população. Além de São João del-Rei, o jornal

chegava a Belo Horizonte, Barbacena, Lavras, Juiz de Fora, Mariana, Ouro Preto, Ponte

Nova, Rio de Janeiro e São Paulo. O que comprova a relevância desse jornal do interior

de Minas Gerais cuja circulação teve sempre como objetivo a divulgação de São João

del-Rei como uma cidade importante em Minas Gerais e para o país, constituindo-se

num centro cultural imprescindível à história, à literatura, à arte e à cultural brasileira.

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Ainda que não se constitua numa inovação, mas A Tribuna é um dos jornais de São João

del-Rei que não apenas cria espaço na imprensa são-joanense para noticiar a publicação

de textos escritos por mulheres, na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, como

mantém entre seus colaboradores mulheres que passam a escrever permanentemente

para o jornal, como Gilka Machado Vargas, Inimá, Maria Coelho Pacheco, Regina

Guerra, entre outras cuja publicação ocorreu com menos frequência.

O estudo da recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei, como as

pesquisas demonstram, tem seu fundamento em dois artigos e numa correspondência

publicadas pelo jornal A Tribuna. Sendo dois artigos diretamente relacionados ao

impacto que as ideias e os ideais do modernismo causaram na imprensa são-joanense,

um de 24 de abril de 1924, o outro de 5 de março de 1925 e uma carta endereçada à

redação do jornal em 16 de janeiro de 1938.

4 – A recepção do modernismo na imprensa são-joanense

Assim, em 24 de abril de 1924, A Tribuna publicava em sua primeira página:

Palmo e meio

T.B1

Em conseqüência da sobrelevante honra concedida por D.

Helvécio, a suprema autoridade eclesiástica de Minas, de

pontificar aqui nas festas da Semana Santa, a cidade esteve cheia

de forasteiros.

Dentre grande número de visitantes ilustre, sem falar nos

conterrâneos residindo fora da terra natal – é preciso que

registremos mui desvanecidos a visita feita a São João del-Rei

por um grupo de artistas e intelectuais que aqui vieram para

assistir aos atos sacros e admirar as antigas belezas

arquitetônicas de nossa cidade.

Senhora Olívia Guedes Penteado, dama da mais nobre distinção,

figura luminar da alta aristocracia paulista. Senhorinha Tarsila

do Amaral, pintora, alma de verdadeira artista, de rara e perfeita

beleza. Blaise Cendrars, nome popular em França, o que vale

dizer em todo mundo, considerado um dos maiores intelectuais

parisienses. Espírito jovial, boêmio e sonhador. Cinco anos de

guerra. Um fuzil alemão inutilizou-lhe o braço. Dr. René de

Castro Thiollier, redator do “Jornal do Comércio de São

Paulo”, autor do livro Senhor Don Torres. Dr. Oswaldo de

Andrade, literato, jornalista. Publicou o livro Condenados. Dr.

Mário de Andrade, redator do “Correio Paulistano”, professor

do Conservatório de São Paulo, autor de Paulicéia Desvairada.

1 T.B – Trata-se das iniciais de Tancredo Lisboa Braga, fundador e diretor do jornal A Tribuna, junto com

João Jeunon Júnior e João Viegas Filho.

Page 10: 1 A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO ...

10

Gofredo Telles, jornalista, escritor. Tem publicado os livros Mar

da Noite e Fada Nua.

Esta plêiade de pensadores e homens de letras são, com Graça

Aranha e Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro e Paulo Prado,

em São Paulo, os introdutores no Brasil do chamado

“movimento literário”, essa coisa nova, ultra-original e esquisita

também, conhecida por “futurismo” que conseguiu suplantar o

simbolismo e o cubismo. São eles os organizadores da “Semana

de arte” que tanto sucesso tem causado na paulicéia.

Essa cidade, hospedando gente de tão alta estirpe mental, sente-

se vaidosa, desvanecida, principalmente porque saíram

encantados, levando a melhor impressão, “croquis” e fotografias

para contar lá fora, nas folhas paulistas e francesas as nossas

grandezas. São João del-Rei falada em Paris. Que ponta!

(A Tribuna, ano X, n.537, 24 de abril de 1924)

Esse artigo se reveste de uma pluralidade de significado. Primeiro, por se somar aos

traços que marcam o itinerário do modernismo numa vertente que, por testemunhar a

andança, a visita e os estudos dos modernistas fora do centro de onde a Semana de Arte

Moderna tinha acontecido e ainda se desdobrava em consequências para as margens

distantes do Teatro Municipal de São Paulo, far-se-ia dessas margens, desses bastidores,

até então desconhecidos do modernismo, que nem modernismo se sabia ser, que se

nega, por vezes, como modernismo, para o núcleo de próprio modernismo.

Segundo, porque o artigo no âmbito dessa leitura deixa de valer apenas pela

exclusividade da publicação feita pela A Tribuna para se revestir de uma importância

fundamental para a imprensa de São João del-Rei, que demonstra, até mesmo em função

de uma análise conjunta de todos os artigos e matérias publicada nessa edição nº537, de

24 de abril de 1924, a sintonia dos jovens diretores de um jornal do interior de Minas

Gerais com um eventos artístico e cultural desse país e que se transformaria ao longo da

história, embora contestado por alguns, no principal evento da cultura artística e literária

brasileira. Aqui, em São João del-Rei, a imprensa estava conectada aos andamentos das

discussões artísticas e literárias que estavam em cena em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O artigo não apenas cita nominalmente cada um dos componentes da caravana dos

modernistas, como descreve, com detalhe que mescla características pessoais e

identificação profissional e especialização de cada um dos componentes, inclusive

citando obras escritas, pintura e a participação no jornalismo paulista.

Terceiro, por se tratar a primeira página onde o artigo foi publicado, do espaço das

notícias consideradas mais importantes, ao lado da notícia de pontificação da semana

santa em São João del-Rei pela autoridade máxima do Arcebispo Dom Helvécio e das

últimas informações sobre a celebração do 21 de abril, data cívica relevante para São

João del-Rei, por causa de Tiradentes, cujo local de nascimento tem como território a

Fazenda do Pombal, numa espécie de rede territorial que envolve os Municípios de São

João del-Rei, Tiradentes e Ritápolis (SACRAMENTO, 2005), a imprensa de São João

del-Rei dá destaque à visita dos modernistas que reúne na cidade uma “plêiade de

pensadores e homens de letras”.

Page 11: 1 A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO ...

11

Quarto, por demonstrar pleno conhecimento da representação desses visitantes para a

arte, a literatura e a cultura brasileira, quanto para a inserção de São João del-Rei no

âmbito das discussões provocadas pelos ideais dos modernistas, reconhecendo-os, por

um lado, como “os introdutores no Brasil do chamado movimento literário”, esse ânimo

de inovação sempre acompanha e caracteriza os programas das chamadas “folhas

literárias” que compõem a imprensa são-joanense. E, por outro lado, de modo sucinto,

porém, com extrema clareza e pertinência crítica, determinando uma posição crítica do

jornal sobre o movimento: “essa coisa nova, ultra-original e esquisita, também,

conhecida por futurismo”. Como se vê, aqui, também se repete a mesma confusão que

persistia na recepção do modernismo na imprensa nacional, porquanto se confunde

futurismo com modernismo.

Quinto, o artigo encerra, ressaltando o êxito para os modernista que “saíram daqui

encantados, levando a melhor impressão, croquis e fotografias” e para São João del-Rei,

uma vez que os visitantes vão “contar lá fora, nas folhas paulistas e francesas a nossas

grandezas”.

Portanto, a somas de todos esses elementos, mais a produção poética de Oswald de

Andrade, a pintura de Tarsila do Amaral, a crítica histórica e estética de Mário de

Andrade, todos, a partir de 1924, eivados da história e do patrimônio cultural de São

João del-Rei corroboram o conjunto que dá a dimensão de que a recepção do

modernismo na imprensa de São João del-Rei marca efetivamente a própria recepção do

patrimônio cultural de São João del-Rei, de Minas Gerais no destino do modernismo

como um dos principais movimentos de história, arte e cultura brasileira. Além de

ressaltar que, ao contrário do que os adversários do modernismo queriam fazer crer, os

modernistas, em absoluta distinção dos ideais radicais do futurismo de Marinetti, não

queriam destruição alguma do passado, antes, andaram por Minas Gerais em busca de

arte e do passado, para conhecê-lo. A superação, a rejeição do passado é por apenas não

repeti-lo indefinidamente sem crítica, sem originalidade, sem personalidade de que tanto

a história quanto a criação artística e literária precisam.

São João del-Rei maravilha os modernistas por lhes apresentar o ideal estético, artístico

e cultural que buscam nessas andanças por essas trilhas fora do caminho oficial da arte

moderna que nascia. São João del-Rei, que abre o caminho dos modernistas por outras

cidades de Minas Gerais, como Congonhas, Ouro Preto e Mariana, oferece aos

modernistas o que vieram buscar – arte e passado, numa lição silenciosa, mas de

encantamento pela relação intrínseca que sempre houve nela entre a tradição e a

modernidade. O passado lançando luzes à construção do presente.

Cabe ressaltar que A Tribuna traz na segunda coluna da segunda página uma nota acerca

de um festival de blocos “Mi-Carême”, vencido pelo bloco Custa mais vai, e que a

diretoria do bloco oferece uma recepção onde “foram servidos vinhos finos e cerveja

aos representantes da imprensa e da sociedade carnavalesca, bem como à missão

artística que nos visitou”. Ou seja, ao término das festividades da Semana Santa,

posterior às celebrações de 21 de abril, um festival de blocos carnavalescos – São João

del-Rei, um espaço plural em que o sagrado e o profano, a fé e o carnaval, a memória e

a construção do presente, o passado, a tradição, a história e a cultura moderna tudo

convive num mesmo palco. Não há qualquer destruição do passado, antes, ele se torna

num elemento fundamental da própria implantação da modernidade. A nota ainda

Page 12: 1 A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO ...

12

ressalta “...missão artística que nos visitou”. Não vieram, aqui, à toa os modernistas,

mas em missão – buscar arte e passado e o encontraram por todos os lados de São João

del-Rei, de uma forma que apenas São João del-Rei, Minas Gerais, podia conceder ao

modernismo.

Assim, o modernismo que se faz depois dessas visitas a Minas Gerais ganha um

contorno, uma identidade que se tornará característica do modernismo brasileiro, por

acrescentar à identidade paulista, repleta dos vestígios das vanguardas europeias, essa

marca da arte e do passado de Minas Gerais.

No entanto, em meio ao desvanecimento e à vaidade de São João del-Rei por hospedar

“essa gente de tão alta estirpe”, em 5 de março de 1925, portanto, um ano após a visita

da caravana de modernistas, A Tribuna, publica na primeira página, da edição nº627,

uma espécie de manifesto anti-futurista, assinado por J. Brandão:

Verso Futurista... Abaixo o Futurismo!

J. Brandão

Abaixo a arma perigosa daqueles que, desprotegidos da prenda

espiritual que lhes fora negada pelas potências arqui-divinas,

procuram pô-las em prática contra a rainha excelsa das

sinfonias cadenciadas: – a métrica, embarcação capaz de

conduzir no bravio oceano da realidade, e também da fantasia,

anjo tutelar dos templos de Polymnia – a poesia!

Esses incapazes, empurrados pelo desejo ardente de uma

composição versificada, embrenham-se, audaciosamente, pela

trilha barulhenta onde se encontra instalado a palacete do já

célebre futurismo.

Esse hipotético “rei da elegia hodierna” pensa em penumbrar a

humanidade experimentada, que se não cansa de gritar por todos

os povos: Abaixo o “pé-quebrado”! Abaixo o intrujão! Abaixo o

pseudo transformador dos cânticos autênticos, expelidos pelos

lábios alcanforados das deusas que residem no pantheon das

graças – imortalizadas pelos sons eólicos das harpas melodiosas

que lhe servem de guia – quando sobre suas cabeças desce esse

misterioso e sobrenatural dogma instituído na arquipotente

métrica: os sons cadenciados pelas sílabas tônicas que vêm ferir

o ouvido daqueles contemplados pelo ideal e infusos a esse

recurso pulveráceo, surgido das entranhas artimanhosas da

vetusta inveja!

Abaixo o futurismo! – é o estribilho do universo em peso!

E eles, os adeptos, os perseguidores e incapazes de reproduzir

em estrito verso, prosseguem, na mais viva esperança de enlutar

o paraíso aquático, onde os cisnes de plumagem alva adormecem

Page 13: 1 A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO ...

13

embalados aos sonoros cânticos metrificados pelos lábios

purpurinos das sereias!...

Abaixo o futurismo! É o grito irresistível que se ouve de norte a

sul!

( A Tribuna, ano XI, n.627, 5 de março de 1925)

O primeiro aspecto que logo se destaca, numa leitura em conjunto de ambas as

publicações, é o de uma aparente contradição entre o desvanecimento e a vaidade de

1924, época da recepção da caravana de modernistas, e 1925, época da recepção da

estética modernista, de modo absolutamente claro, na linha de confusão entre futurismo

e modernismo que acirrara os ânimos da imprensa paulista por ocasião da Semana de

Arte Moderna. Aparentemente, porque voltando ao texto de 1924: “... introdutores no

Brasil do chamado “movimento literário”, essa coisa nova, ultra-original e esquisita

também, conhecida por “futurismo” que conseguiu suplantar o simbolismo e o

cubismo”, notamos que em meio à hospedagem que se envaidecia com a vista dos

intelectuais, já o autor, Tancredo Braga, aponta para uma crítica sucinta, pouco

consistente, certamente em função de um domínio ainda preliminar de todo programa

modernista, porém, visível – essa coisa nova, ultra-origina, e esquisita também. O

primeiro esboço crítico parece se perder no meio do desvanecimento pela recepção dos

intelectuais, cuja ideia ainda não foi devidamente apreciada. Por este lado, o artigo de

1925, de J. Brandão, não se mostra incoerente, apenas, passado um ano da visita dos

modernistas e três anos da Semana de Arte Moderna, a imprensa de São João del-Rei,

retoma o tema da estética modernista, confundida ainda com o futurismo para uma

análise mais profunda.

Segundo aspecto, esse artigo, faz eco com a visão da Semana de Arte Moderna pelos

seus contemporâneos, porquanto reproduz a voz do mesmo acirramento que ocorrera na

imprensa paulista em 1922. Incapaz de distinguir futurismo de modernismo. Mesmo

São João del-Rei tendo lançado luzes, no ano anterior, à vertente de um modernismo

com a características especificamente brasileiras, a de uma multiplicidade que faz

conviver na arte, na literatura, na cultura brasileira o passado, a tradição e a

modernidade, a leitura, a interpretação, a estética moderna, ainda assim, agora,

contraditoriamente, rejeita-se essa nova era literária, artística e cultural, como alguma

coisa que vem destruir, anular, absolutamente tudo foi feito até então em literatura, arte

e cultura.

Há de se notar no futurismo um grande contingente de

ingenuidade. Espíritos fracos que, por insuficiência mental, não

compreendem a substância da arte eterna, incapazes de atingir a

espiritualidade dos grandes gênios, atiram-se ao futurismo na

ilusão, em que se encontram, de serem gênios incompreendidos.

(SERVA, apud BOAVENTURA, 2000, p. 214).

O futurismo é a arte no avesso, estilizada com a mão canhota e

deformada a golpes de audácia e de cavação (...) ninguém

conseguiu penetrar nas intenções macabras desse carnaval da

pintura, dessa literatura mômica e desses versos cambaios com

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fumaças de arte e que não passam da zabumba rimada à custa de

fórceps. (CASTRO, apud BOAVENTURA, 2000, p. 231-232.)

Em música são ridículos; na poesia são malucos e na pintura são

borradores de telas. (GUANABARINO, apud BOAVENTURA,

2000, p.259).

...o uivo da besta encheu de tal maneira a atmosfera beatífica

onde os deuses do passado dormiam o seu quieto sono que até os

Joves pesadões da crítica, que dormitavam encostados aos seus

relâmpagos de latão, vieram à beira do abismo espiar o barulho.

(PAUCI, apud BOAVENTURA, 2000, p.270).

Comparando o artigo de J. Brandão com esses fragmentos de alguns textos dos

adversários do modernismo que insistiam em lê-lo com futurismo, fica claro o permear

de vozes semelhantes na rejeição da nova era literária como “esse abscesso de

futurismo” (ELECTI, apud BOAVENTURA, 2000, p. 249). O que corresponde ao

lastro de metáforas do texto de J. Brandão, como desvairismo, penumbrismo,

alucinação, desordem, rompimento radical com o passado, vetusta inveja para qualificar

a nova estética com um abscesso da arte, da literatura e da cultura brasileira. Portanto,

um movimento que devia ser rechaçado do cenário artístico, literário e cultural.

Terceiro, enquanto Mário de Andrade diz:

Depois do pranto de todo um século romântico, “coroado” nos

espinhos duma guerra tremenda, queremos rir e livremente rir!

Batem os sinos! É sábado de Aleluia! Não me pesa ser o Judas

desse sábado, contanto que me deixem sorrir aos leitores d’A

Gazeta, no dia em que refloresce para mim o terno idílio.

(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p. 42).

A imprensa são-joanense defende como poesia a permanência dos cânones simbolista,

parnasiano e romântico. Arte, cultural e, sobretudo, poesia para ser feita quase que

exclusivamente à luz de conceitos como inspiração, “prenda espiritual”, metrificação,

rima, sílabas expelidas pelos lábios de “alcandoradas deusas”. Algo quase impossível ao

humano. Uma arte toda ela embevecida do “pranto de um século romântico”. Poesia

compreendida e feita com uma linguagem etérea, como um pablo sagrado e imortal das

deusas, e não um produto cultural e humano.

Contra essa fatura de lirismo descomedido é que o modernismo impõe nova estética, a

estética da liberdade e da libertinagem do poético e do poeta, que procura, que precisa

rir, rir livremente. Um riso que coagule o pranto de séculos. Nesse sentido é que a busca

pela arte e pelo passado se apresentam como estratégia fundamental ao modernismo que

não quer destruir por destruir esse patrimônio, mas superá-lo, não repeti-lo. Produzir

uma arte moderna livre, com identidade própria, que nasce não da destruição do

passado, mas do conhecimento, do estudo e da superação de seus cânones.

Essa nova estética, que passada a caravana dos modernistas, retoma, ela mesmo, os

barulhos que ainda repercutem na imprensa são-joanense. É ela que fica para

testemunhar a recepção do modernismo por aqui. Que se faz em duas vertentes, uma

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15

que hospeda, com desvanecimento e vaidade os intelectuais modernistas, com certa

desconfiança acerca do que eles propõem para a arte brasileira. E outra que se soma às

vozes acirradas da imprensa paulista contra a nova estética, quando ela, de fato, impõe

sua própria recepção no cenário artístico e cultural.

Uma análise da produção poética que tem feito da imprensa são-joanense, sobretudo de

suas “folhas literárias” meio de veiculação, de publicação e de memória, demonstra,

que, com raras exceções, a poesia, em especial, no âmbito das artes e da cultura,

continua arraigada, senão tanto pela forma rígida de seus versos, pela escolha dos temas,

pela linguagem, pela própria concepção poética que, por vezes, constitui-se em matéria,

em objeto poético, arraigada aos cânones do parnasianismo, do simbolismo e,

sobretudo, do romantismo. O que não torna essa poesia menor, nem inferior a qualquer

outra poética, apenas a distingue no âmbito das chamadas poéticas modernas. O que por

si merece e prova a sede de pesquisá-la. De ir atrás dela, de ouvir, de sentir o ela diz.

Por último, A Tribuna publica na edição de nº1.412, de 16 de janeiro de 1938, carta de

Gilberto de Alencar, cujo fragmento destacamos:

Os modernistas dirão que isso é passadismo bolorento. Mas seria

de certo interessante pedir a eles que vivem com a boca cheia de

patrimônio e nacionalismos, seria de certo lhes pedir que nos

explicassem direitinho, como é que se pode formar uma pátria

verdadeira sem o culto ao passado.

Passadismo ou não, urge que resguardemos as nossas tradições

e os nossos costumes.

A cidade deveria ser, por isso mesmo, classificada como

monumento nacional, a fim de que a ignorância dos modernistas

não possa desfigurá-la e destruí-la.

Assim procedem os povos mais cultos e adiantados do mundo.

(A Tribuna, ano XXIV, nº1.412, 16 de janeiro de 1938).

Com um jornalismo moderno e inovador A Tribuna cria espaço em suas páginas para a

publicação de uma série de correspondência endereçada à redação. Possibilita, ciente de

que não é a dona absoluta da verdade sobre os fatos que noticia, o diálogo com o leitor,

com a população são-joanense, com o visitante, com o turista. Essa correspondência

apresenta um repertório variado: repercussão e recepção do jornal e dos acontecimentos

por ele noticiados; respostas e comentários a denúncias feitas pelos artigos; cobrança de

transparência e prestação de serviços por parte dos órgãos da administração pública, em

especial da administração pública municipal; registro de visitantes que estiveram ou

leram sobre São João del-Rei e se confessam seduzidos pela cidade, por sua história,

seu patrimônio cultural e sua gente; elogios; sugestões e exigências feitas com relação à

preservação do patrimônio histórico de São João del-Rei.

Dentre essa multiplicidade de vertentes, a carta de Gilberto de Alencar, publicada na

edição nº1.412, de 16 de janeiro de 1938, que tem como fio condutor – o abandono, a

destruição, a substituição do passado, das tradições e costumes pelo modernismo. E é

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por ele que seu texto se liga, soma-se ao eco das desconfianças, das denúncias, da

resistência, da confusão feita em relação ao modernismo.

Piccarolo (1992), em artigo publicado em La revista coloniale, deixa claro a posição

dos modernistas quanto à interpretação do passado: não defendem uma relação de

mórbida mimese, de mera submissão e repetição acrítica do passado, antes, procuram

conhecer o passado, saem em busca de sua arte, de sua história, das tradições e

costumes, não para copiá-los, mas para superá-los. Haja vista o objetivo das andanças

dos modernistas por Minas Gerais e pelo país.

Para nos liberarmos do passado não é necessário destruí-lo: é

suficiente não copiá-lo. Destruí-lo significaria não compreendê-

lo, não sentir toda a sua beleza, não interpretar sua função

histórica. E vocês, caros amigos, esta beleza sentem, vocês

entendem perfeitamente a grande ação que a arte, a verdadeira e

grande arte de todos os séculos exerceu sobre todas as épocas

[...]. Destruir o passado, de resto, para substituí-lo por uma arte

nova significaria colocar-se contra a mais indestrutível das leis

eternas da natureza: as leis do devir [...]. Mas para superá-lo é

necessário estudá-lo e conhecê-lo, o que não se poderia fazer se

o destruísse.

(PICCAROLO, apud, BOAVENTURA, 2000, p. 96).

Gilberto defende, ainda, a classificação de São João del-Rei como monumento

nacional, para que “a ignorância dos modernistas não possa desfigurá-la, destruí-la”.

Ora, toda essa desconfiança que se configura não apenas na imprensa são-joanense,

porque ao publicar a carta, A Tribuna torna esse texto, de certa forma, eco de sua

própria voz, mas na imprensa nacional, trata-se de uma recepção eivada de dúvidas

acerca da verdadeira intenção, do pensamento, da arte e do destino que os modernistas

dariam ao patrimônio cultural herdado do passado. Essa reação permanece dezesseis

anos após a Semana de Arte Moderna. Como ainda, hoje, noventa e um anos depois da

Semana de Arte de Moderna, continua acirrando os ânimos e disseminando dúvidas e

desconfianças. O que comprova que o modernismo, quase um século depois, ainda não

se concluiu definitivamente.

Outro aspecto que merece destaque: todo trabalho, pesquisa, estudos, publicações,

viagens, que, sobretudo, Mário de Andrade fará ao longo de sua vida, comprovariam o

apreço que tanto ele quanto o próprio modernismo mantiveram em relação ao

patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil. Ressalta-se a criação, em 13 de

janeiro de 1937, portanto, um ano antes da carta de Gilberto de Alencar e da publicação

n‟A Tribuna, pela Lei 378, do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(SPHAN), no governo de Getúlio Vargas, por solicitação do Ministro da Educação,

Gustavo Capanema, a uma equipe, de que fazia parte Mário de Andrade, de um projeto

sobre a preservação do patrimônio artístico e cultural brasileiro com o objetivo de

salvaguardar os bens patrimoniais brasileiros (FERNANDES, 2010, p.10).

Portanto, não procede sobre os modernistas a acusação de ignorantes e, muito menos, de

destruidores do patrimônio nacional. Pelo contrário, a pesquisa, o estudo, a preservação

e a divulgação do patrimônio artístico e cultural brasileiro, incluindo a diversidade dessa

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cultura que varia, multiplica-se e se distingue em cada região, tornou-se numa das

vertentes mais caras aos modernistas.

5 – O enigma do “deboche” dos modernistas

Da época da visita dos modernistas, 1924, conta ainda uma anotação, que Mário de

Andrade fez de próprio punho no livro de registro do Hotel Macedo onde se

hospedaram em São João del-Rei e transcrevera para o seu arquivo, onde segundo

Lopez (2008) se destaca o “claro riso dos modernos”.

D. Olívia Guedes Penteado, solteira, photographer, anglaise,

London; D. Tarsila do Amaral, solteira, dentista, americana,

Chicago; Dr. René Thiollier, casado, pianista, russo, Rio; Blaise

Cendrars, solteiro, violinista, allemand, Berlin; Mário de

Andrade, solteiro, fazendeiro, negro, Bahia; Oswald de Andrade

Filho, solteiro, escrittore, suíço, Berne; Oswald de Andrade,

viúvo, escolar, holandês, Rotterdan.

(LOPEZ, 2008, p. 1).

O hotel não existe mais, como também não foram encontrados os livros do acervo do

hotel. No entanto, como o próprio Mário de Andrade tinha transcrito a anotação para

seu arquivo, futuramente, quando das pesquisas e estudos do acervo de Mário de

Andrade, esse registro se torna público, como outros vestígios dessas visitas dos

modernistas por Minas Gerais, em especial, e pelo país continuam sendo revelados.

Considerando o teor do texto, penso que pelo que pelo menos duas leituras podem ser

feitas: a primeira, associando-se a um fragmento do poema “Noturno de Belo

Horizonte”, que fora escrito por Mário de Andrade também em 1924, quando de sua

visita a Belo Horizonte, é lida por muitos são-joanenses como um deboche de Mário de

Andrade à cidade de São João del-Rei, à arte e ao passado que aqui vieram buscar,

viram e levaram ou viram e não gostaram, salvo raríssima exceção – São Francisco de

Assis. Como se a cidade que os recebeu com “desvanecimento” e “vaidade”, como

registrara Tancredo Braga, no artigo d‟A Tribuna de 1924, e o povo são-joanense que

inclusive levou a todos os modernistas para o “Mi-Carême”, o festival de blocos

vencido pelo “Custa mas vai” quando lhes serviram vinho bom, cerveja e discurso, na

verdade não passava de um caiporas sem nenhum ou com pouca noção de arte, onde o

próprio Theatro Municipal, um teatro grego, em toda sua imponência histórica, que mal

viu, mal entendeu, não passava de uma inutilidade nesse canto do país onde jamais seria

encenada uma peça de Eurípedes. Neste aspecto, os modernistas que diz vieram em

busca de arte e de passado, chegaram como eram acusados pelos opositores da Semana

de Arte Moderna, muito arrogantes, precisando sim, de arte e de passado, porém, sem

humildade suficiente para entender a própria multiplicidade como fundamento da arte

moderna. Esse “deboche” faria, portanto, eco com o artigo de 1925 de J.Brandão que

um ano após a visita registra explicitamente a estética moderna, nesse estranhamento

produzido na recepção do modernismo. Por esta razão até hoje (SACRAMENTO,

2003) anda certa mágoa com os modernistas, em especial contra Mário de Andrade por

esse suposto deboche da arte, da cidade e do povo são-joanense lido nesse conjunto de

textos.

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18

Em Cataguases, por exemplo, onde não esteve nenhuma caravana, mas de modo

peculiar, no interior de Minas Gerais, chegara o modernismo, a recepção foi marcada

desde o primeiro momento, haja vista, a trajetória histórica da revista Verde (1927) por

um indiferentismo em relação às ideias e aos ideais modernistas tanto de São Paulo e

Rio quanto do exterior. Fizeram, como disseram os moços do grupo Verde (ÁVILA,

2011, p.4-5) o seu modernismo verde. Numa afronta, a princípio, aos que se impunha

daqui pr‟ali como os inventores, os donos e os tutores de arte moderna. Se riram desse

modernista verde, receberam também em troca o riso de indiferença dos modernistas de

Cataguases. Tanto que Ribeiro Couto (1927, p. 15) „”...por enquanto ainda não sabemos

o que queremos, sabemos tão só o que não queremos”. E, então, quando começara a

receber artigos para a revista e elogios, achavam também que era deboche, e não era.

Por outro lado, lida a anotação de Mário, escrita no livro de registro do Hotel Macedo,

mais o fragmento do poema “Noturno de São Belo Horizonte”, mais essa mesma

sensação de deboche sofrida pelos modernistas da Verde, de Cataguases, por parte dos

modernistas de São Paulo e mais uma passagem de um artigo de Mário de Andrade:

Depois do pranto de todo século romântico “coroado” nos

espinhos duma guerra tremenda, queremos rir e livremente rir!

Batem os sinos! É sábado de Aleluia! Não me pesa ser o Judas

desse sábado, contanto que me deixem sorrir, no dia em que

refloresce para mim o terno idílio.

(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p. 42)

Portanto, sem o peso de quaisquer interpretações, sobretudo contra a recepção com que,

não as ideias, mas a comitiva, foi recebida, podemos concluir que de forma alguma

Mário de Andrade teria debochado de São João del-Rei, de sua gente, de sua arte e de

seu patrimônio cultural. Encontrara em Minas o alívio da “guerra” enfrentada pelos

modernistas desde 1922.

Neste aspecto, Álvaro Moreyra (1928) tinha razão, quando afirma em artigo, escrevendo

sobre o Grupo Verde, de Cataguases, que:

O mal do movimento chamado modernismo foi o desaforo do

começo. Numa terra que usa tanto de revoluções, ninguém sabe

para que um motim inteligente, de fins esclarecidos, provocou

repulsa...

(MOREYRA, 1928, p. 10)

Além do mais, Mário em sua correspondência com Manuel Bandeira, (MORAES, 2001,

p 371-394) em diversas cartas, trocadas com o amigo após sua visita a São João del-Rei

sempre se refere respeitosamente ao patrimônio cultural da cidade, tendo recomendado

a Manuel Bandeira em 1928, a incluí-la no rol das cidades mineiras que ele também

visitar. Tendo estendido essa distinção aos mineiros que ele diz fazendo um comentário

a uma anotação de Manuel Bandeira, que “sobre os mineiros você inteiramente razão.

Estou convencido de que são a coisa mais séria e mais digna de se observar no Brasil

literário de hoje” (ANDRADE, apud, MORAES, 2001, p. 250).

Assim, primeiro, a passagem “Teatro grego em São João del-Rei/Onde jamais

Eurípedes será encenado” (ANDRADE, 2011, p.212), não pode ser extraída do corpo da

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estrofe para ser lida isoladamente, sob o risco de perda do contexto integral do verso,

aliás de todo poema, até porque na estrofe anterior o poeta diz, sem nenhuma ironia

“Minas progride!”:

Afinal Belo Horizonte é uma tolice como as outras.

São Paulo não é a única cidade arlerquinal.

E há vida há gente, nosso povo tostado.

O Secretário de Agricultura é novo!

Fábricas de calçado.

Escola de Minas no palácio dos Governadores.

Na Casa dos Contos não tem mais poeta encarcerados,

Divinópolis possui o milhor chuveiro do mundo,

As cunhas não usam mais pó de oiro nos cabelos,

Os choferes avançam no bolso dos viajantes,

Teatro grego em São João del-Rei

Onde jamais Eurípedes será encenado...

Ninguém mais pára nas pontes, Critilo,

Novidadeirando sobre damas casadas.

Tenho pressa! Ganhemos o dia!

Progresso! Civilização!

(ANDRADE, 2011, p. 212)

O que o poeta ressalta nestes versos, não pode ser lido nunca como “deboche” a Minas

Gerais e especial a São João del-Rei. É, antes, um olhar que mira o progresso que se

encanta e convoca, em versos posteriores, para o encantamento de que se acha

embevecido das coisas de Minas. Provoca, antes, que venham ver, experimentar,

testemunhar a grandeza de Minas, utilizar, no seu interior, a suntuosidade de seu teatro

grego onde Eurípedes jamais será encenado. Se não vier, se não souber, se não

experimentar, se não vier a Minas, se não trouxer a Minas Eurípedes, posto que o teatro

grego está lá.

Em carta de 30 de dezembro de1924 a Mário de Andrade, Carlos Drummond de

Andrade, acusando o recebimento do poema “Noturno de Belo Horizonte”, assim se

refere ao poema:

Recebi o “Noturno de Belo Horizonte”, seguramente o maior

esforço da poesia nacional. (Se não quiser ler, vire a página; eu

vou elogiar.) Gostei ampla, vastamente. Ele me fez crer que você

tem razão, por isso que suas idéias nacionalistas o conduziram

de maneira lógica a um poema tão rico de expressão e intenção,

em que o sentimento da terra se confunde com o puro e

desinteressado lirismo. Isto eu aplaudo, patrício! É poesia, e da

melhor qualidade. Só não é poesia (pelo menos assim o creio) o

trecho em que você prega o nacionalismo universalista, e que

podia figurar dignamente num discurso a 15 ou 19 de novembro.

Mas o resto, quero dizer, quase todo o poema, é esplêndido.

Quantas coisas descobriu você em Minas, numa viagem de

poucos dias! Tenho 22 anos e quase nada sabia disso.

(ANDRADE, 2011, p. 92-93.)

6– Conclusão

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O modernismo, “essa coisa nova, ultra-original e esquisita também”, na verdade, desde

a proximidade com 1922, ainda em 1924, 1925 e 1938, é um movimento, cujas ideias

não tinham sido entendidas e inseridas na prática artística, histórica, e cultural do país,

menos ainda na imprensa de São João del-Rei. Por isso continuava contraditória e

acirrando os ânimos de defensores e opositores do movimento, que nunca se constituiu

numa unanimidade. Os artigos da imprensa de São João del-Rei demonstram,

dramatizam essa contradição. Em 1914, quando A Tribuna foi lançada, logo no seu

primeiro editorial, defende o abandono, a substituição, a superação dos programas

jornalísticos passados em nome de programas modernos com que ela passa a fazer o seu

jornalismo – adere, inova, moderniza-se lá e desconfia-se aqui.

Por outro lado, essa desconfiança e essa distinção entre a recepção dos modernistas e a

recepção do modernismo, demonstra a pertinência crítica do jornalismo realizado na

imprensa de São João del-Rei, que mesmo em se tratando de uma cidade longe do

centro de São Paulo e do Rio de Janeiro onde o modernismo nascera e chegara de

imediato e até de Belo Horizonte, onde muitos jornalistas, poetas e escritores de São

João del-Rei iam em busca de contato e de conhecimento dessas ideias, mostra-se firme,

capaz de distinguir o homem de suas ideais. Independente o suficiente para aceitar o

homem e, mesmo que nem rejeitando de todo suas ideias, pelo menos se desconfiando

delas, questioná-las, por vezes, colocando-se, claramente, contra.

O modernismo nunca foi uma unanimidade nem na imprensa, nem na crítica, nem no

próprio meio literário. Por isso, quase um século da Semana de Arte de Moderna, que se

propõe como inauguradora do modernismo, ele permanece um movimento que não se

concluiu plenamente em todas as suas vertentes. Haja vista o desconhecimento absoluto

dessas fontes primárias relegadas ao silêncio e à poeira dos acervos, onde gritam e

clamam por investimentos, por pesquisas, por estudos, capazes de contribuir com o

entendimento do modernismo. Esperam ser contempladas com a função social da

preservação dos arquivos que é a democratização de suas fontes para pesquisa.

Preservar o patrimônio artístico e cultural é trazê-lo dos bastidores, das margens

silenciosas aonde foram relegados à luz dos estudos contemporâneos de história,

literatura, artes e cultura. Ou estaremos ainda contribuindo para a destruição tão temida

do patrimônio cultural de que se acusavam os modernistas.

Em São João del-Rei a paixão pelo passado, por toda sua história literária e cultural

mesmo dialogando com os modernistas, não se fez e não faz senão com certa

entronização desse patrimônio cultural. Por isso a desconfiança e até aversão à

possibilidade, ainda que remota e imaginária de qualquer destruição, seja ela efetiva ou

apenas cultural. Regozijo pela nova estética sempre foi muito comedido por aqui, na

imprensa, nas artes, na literatura, na cultura. Porém, sem negligenciar o diálogo com o

modernismo.

A recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei se fez, portanto, à

penumbra de uma resistência natural. Primeiro, pela falta de um distanciamento

histórico que permitisse uma crítica mais apurada dos ideais, das ideias e da própria

estética modernista que mal tinha chegado por aqui e que se desperta em

desvanecimento e vaidade na recepção da caravana de 1924. Segundo, por entender o

risco da perda do certo padrão político, literário, artístico e cultural já definido e lhes

garantido por essa chamada herança cultural. A multiplicidade, não inaugurada, mas

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exposta pelo modernismo, produzia uma enorme sensação de perda de poder dos

mantenedores do patrimônio cultural. Ou seja, o novo haveria de se tornar num dos

paradoxos fundamentais da modernidade (COMPAGNON, 1996, p.13-36). Daí que na

imprensa de São João del-Rei, na arte e na literatura são-joanenses a modernidade, ou

melhor, uma modernidade se faz à revelia do modernismo, ou pelo menos daqueles

traços mais radicais da estética modernista.

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